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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO


INSTITUTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
MESTRADO EM EDUCAÇÃO

THAYLA FERNANDA SOUZA E SILVA

NARRATIVAS DE VIDA E FORMAÇÃO DA PESSOA


PRIVADA DE LIBERDADE:
SENTIDOS (RE)CONSTRUÍDOS NA/PELA EXPERIÊNCIA

CUIABÁ-MT
2019
1

THAYLA FERNANDA SOUZA E SILVA

NARRATIVAS DE VIDA E FORMAÇÃO DA PESSOA


PRIVADA DE LIBERDADE:
SENTIDOS (RE)CONSTRUÍDOS NA/PELA EXPERIÊNCIA

Dissertação apresentada no Programa de Pós-


Graduação Stricto sensu em Educação da
Universidade Federal de Mato Grosso, como parte
dos requisitos para obtenção do título de Mestre em
Educação na linha de pesquisa: Organização
Escolar, Formação e Práticas Pedagógicas.

Orientadora: Profª. Drª. Filomena Maria de Arruda


Monteiro

CUIABÁ-MT
2019
3

Dados Internacionais de Catalogação da Fonte.

S729n Souza e Silva, Thayla Fernanda.


Narrativas de vida e formação da pessoa privada de liberdade :
sentidos (re)construídos na/pela experiência / Thayla Fernanda
Souza e Silva. -- 2019
196 f. ; 30 cm.

Orientadora: Profª. Drª. Filomena Maria de Arruda Monteiro.


Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Mato Grosso,
Instituto de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação,
Cuiabá, 2019.
Inclui bibliografia.

1. Sistema Penitenciário de Mato Grosso. 2. Experiência de vida


e formação na Prisão. 3. Pesquisa Narrativa. 4. Processos Formativos. 5.
Ressocialização. I. Título.

Ficha catalográfica elaborada automaticamente, de acordo com os dados fornecidos pela


autora.
Permitida reprodução parcial ou total, desde que citada a fonte.
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4

DEDICATÓRIA

A cada ser humano privado de sua liberdade no contexto


penitenciário de (re)socialização, em especial aos que
atendi como psicóloga, outra ser humana, a quem foi
compartilhada parte de suas histórias, aquelas que não
estão escritas nos processos judiciais.

Aos meus pais Althair & Alcina, irmã Taruska e cunhado


Marcel, minha avó Rosa e avôs Alvino, Leopoldino e
Maria (in memoriam), que me ensinaram os valores mais
sagrados da humanidade, respeito, humildade, coragem,
dentre tantos outros, incluindo amor e dedicação: a vocês,
toda a minha gratidão.

Em memória de Ana Rosa Oliveira Gomes Monteiro e


Lygia de Oliveira Pinto e toda minha família do Porto,
minhas apoiadoras no processo de formação acadêmica.

A todos os colegas psicólogos, professores, assistentes


sociais, enfermeiros, diretores, agentes penitenciários
dentre outros profissionais do Sistema Penitenciário,
operadores do direito e afins, que compartilham da luta
por uma (re)socialização focada na cidadania, por uma
educação escolar emancipatória, libertária e política,
pela saúde mental e qualidade de vida numa instituição de
penitência.
5

AGRADECIMENTOS

À Santíssima Trindade, agradeço pelo dom da vida, por tudo que vivi, por me ajudar a
escrever e a trilhar o livro desta vida.
À professora Filomena Maria de Arruda Monteiro, minha orientadora, pela confiança
a mim depositada e a escuta desse público excluído e sem voz, agradeço a todo sim que recebi
e apoio nas escritas, orientações, participações em eventos e os nãos também quando
necessários (foram poucos), agradeço a paciência que teve comigo na jornada de me aventurar
na educação, em especial, na formação educativa e por ter deixado ser eu mesma em todo esse
processo, embora eu não sendo mais a mesma.
À minha família, que mais uma vez se fizeram presentes das mais diversas maneiras
possíveis, fortalecendo-me na caminhada, em especial minha mãe, sempre com uma escuta
atenta, lembrando-me de cuidar da saúde, participando dos momentos de ansiedade, tristezas e
alegrias: toda gratidão a você, minha companheira e amiga.
Aos participantes da pesquisa, pela coragem em quebrar o silêncio do sistema
prisional, dos seus próprios medos e preconceitos ao narrar suas histórias e intimidades tão
relevantes para este estudo. Minha gratidão, respeito e muita perseverança para que cada um
dos seus objetivos sejam alcançados.
À Secretaria de Justiça e Direitos Humanos (SEJUDH), que em 2019 se tornou
Secretaria de Segurança Pública (SESP), minha gratidão ao Sr. Winkler e agentes
penitenciários, por oportunizar a realização da pesquisa na unidade penitenciária. Em especial
a equipe de psicólogos — Luciano, Mauro e Rejane — pelo apoio e logística.
Aos meus colegas de trabalho da SESP, em nome do Diretor de Saúde do Sistema
Penitenciário Hozano Delgado e psicóloga da Diretoria Olga Santana, em especial minha
equipe do Serviço de Avaliação e Acompanhamento de Medidas Aplicadas a Pessoas com
Transtorno Mental em Conflito com a Lei — EAP, Simone Ribeiro, Tâmara Veruska, Larissa
Rondon e Caroline Piloni, pelo apoio que me deram neste processo de pesquisadora, no
primeiro ano em que trabalhava e estudava.
Ao Grupo de Pesquisa e Estudos em Política e Formação Docente (GEPForDoc)
Carlos Alberto, Cláudio, Deusodete, Eliane, Fábio, Lineuza, Rosilene, Rosimeire, Ricardo e
Sandra por todas as informações compartilhadas, conhecimento construído, amizade,
companheirismo nos eventos, publicações, ida nas escolas e, em especial, pelas discussões e
amadurecimento enquanto pesquisadora narrativa.
6

À professora Sandra Pavoeiro, que acompanhou meu processo de formação na


graduação, sendo minha professora e orientadora no estágio em Psicologia Jurídica, na
participação do grupo de pesquisa GEPForDoc e agora como parte da minha banca
examinadora interna na UFMT, com valorosas contribuições na produção deste material, em
cada detalhe o olhar atento, as indicações de leituras, a assiduidade da psicologia: a você,
minha gratidão e apreço.
À professora Elenice Onofre — examinadora externa pela Universidade Federal de
São Carlos (UFsCar), por aceitar o convite para compor a banca examinadora, pelas
orientações e indicações de leituras sugeridas, pelas valiosas contribuições recebidas por suas
pesquisas sobre o tema educação e prisão, pela cumplicidade na temática, disponibilidade e
afeto proferido na construção do estudo.
Aos meus professores por todo conhecimento compartilhado Sérgio Santos, Cândida,
Edson Caetano e Marlene no caminho de ser mestre.
Aos amigos, em especial, à #ufmtmedeu Adriana, Arthur, Edna, Ana Cristina, Eliane,
Fernando, Jane, Júnia, Juliana, Jorge, Larissa, Leydiane, Luciana, Marileuza, Rosângela,
Hipólito, Antonieta, Dejacy, Sávio, Talita, Vanessa e minha turma de mestrado, outros
colegas do doutorado, por todo companheirismo vivido durante esse período, por
compartilhar as refeições no restaurante universitário — RU, pelos momentos de
descontração, escuta, seminários debatidos, angústias das produções e prazos, enfim, gratidão
por todo o apoio recebido.
Ao Governo do Estado de Mato Grosso por investir em minha atividade profissional,
na dispensa e no último ano, licença-qualificação.
À UFMT pelo acolhimento em nome da Luísa e a todos aos servidores do Programa
de Pós-Graduação em Educação.
Ao CRP/MT 18ª, por dialogar e oportunizar discussões a nós, psicólogos
penitenciários, sobre nossa prática. Ao psicólogo Marcos Bersan, por me auxiliar no processo
de compreensão #aprendiz de mim, para além de minha formação educativa e experiência
profissional na reta final deste estudo.
De maneira geral, esse trabalho teve muitas mãos, emoções, sorrisos, lágrimas,
resistência, resiliência e afetos. Agradeço cada um(a) que contribuiu de forma direta ou
indireta para sua realização. Meu grande abraço!
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RESUMO

A investigação possui por objeto de estudo as experiências de vida e formação da pessoa


privada de liberdade no contexto penitenciário de (re)socialização do Estado de Mato Grosso.
O objetivo foi compreender como as pessoas privadas de liberdade dão sentido às suas
experiências de vida e formação, com ênfase às aprendizagens construídas no contexto
penitenciário e como estas podem interferir em sua (re)socialização. A problemática refere-se
a “que tipos de experiências estão envolvidas na aprendizagem informal da pessoa privada de
liberdade e como elas interagem com a reincidência e (re)socialização?” Os pressupostos
teóricos que dão sustentação a essa investigação, embasamos principalmente: para a discussão
do sistema penitenciário, Goffman (1974, 1988); educação, Freire (1987, 1997, 1999, 2000,
2014); experiência de vida e formação, Dewey (1959, 1976, 2010) e Dominicé (2014); sobre
educação na prisão, Onofre (2007, 2011, 2013, 2014, 2015), De Maeyer (2006, 2011, 2013) e
Julião (2011, 2013, 2016). A abordagem metodológica utilizada foi a qualitativa, pautada na
“pesquisa narrativa” e guiada por Connelly e Clandinin (1995, 2011). A investigação
narrativa possui como objeto a experiência historiada do indivíduo, através do seu relato e
história de vida, compreendendo práticas e saberes do cotidiano. O processo de interpretação
e análise das narrativas foi construído a partir da perspectiva da “composição de sentidos”,
sendo distribuída em 4 eixos: família; processos formativos; prisão e das experiências às
aprendizagens. Os resultados da pesquisa nos levam à constatação de que: as pessoas privadas
de liberdade tendem a virem de contextos de vulnerabilidade social, em que a prisão mais
uma dessas situações; o sistema penitenciário exerce de forma contraditória o seu papel, por
punir para “educar”; a superlotação e o baixo nível de escolaridade de seu público é
persistente, mas algo mais complexo se evidencia, como a aprendizagem informal na prisão,
com ênfase em seu caráter relacional; essas aprendizagens interferem na formação humana e
de identidade da pessoa privada de liberdade; salpica na sua (re)socialização e pode contribuir
para a reincidência, pois tende a (re)estabelecer o elo com a crime organizado na prisão; as
aprendizagens relacionais estão ligadas também a regras de convivência, sujeitas a
penalizações; aponta que nas relações com seus pares, o respeito às diferenças é o melhor
caminho para evitar conflitos dentro da prisão, além facilitar o acesso à realização da
atividade laborativa; demonstram preocupações com a (re)socialização, devido suas
identidades serem estigmatizadas, subalternizadas, marcadas por distinção e rejeição na
prisão; elucida que o elo e apoio familiar é essencial para uma (re)socialização efetiva e
enfrentamento da reincidência; políticas públicas voltadas para o acompanhamento pós-prisão
se destaca como enfrentamento à reincidência. Apontou para as ações na prisão que visam o
diálogo, respeito, fortalecimento de vínculos familiares e grupais, inserção no mercado de
trabalho, como fortalecedoras de uma vida e sociedade mais digna, cidadã e harmônica.

Palavras-chave: Sistema Penitenciário de Mato Grosso, Experiência de vida e formação na


Prisão, Pesquisa Narrativa, Processos Formativos e Ressocialização.
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ABSTRACT

The purpose of this research is to study the experiences of the person deprived of liberty in the
penitentiary context of (re)socialization of the State of Mato Grosso, whose objective was to
understand how persons deprived of their liberty give meaning to their life experiences and
training, with emphasis the learning acquired in the penitentiary context and how they can
interfere in their (re)socialization. The problematic refers to "what kinds of experiences are
involved in the informal learning of the person deprived of liberty and how do they interact
with recidivism and (re)socialization?" The theoretical assumptions that underpin this
investigation are mainly: discussion of the penitentiary system, Goffman (1974, 1988);
education, Freire (1987, 1997, 1999, 2000, 2014); life experience and training, Dewey (1959,
1976, 2010) and Dominicé (2014); on education in prison, Onofre (2007, 2011, 2013, 2014,
2015), De Maeyer (2006, 2011, 2013) and Julião (2011, 2013, 2016). The methodological
approach used was qualitative, based on "narrative research" and guided by Connelly and
Clandinin (1995, 2011). Narrative research has as its object the historized experience of the
individual, through his story and life history, comprehending daily practices and knowledge.
The process of interpretation and analysis of the narratives was constructed from the
perspective of the "composition of meanings", being distributed in 4 axes: family; training
processes; imprisonment and from experiences to learning. The results of the research lead us
to the realization that: people deprived of their liberty tend to come from contexts of social
vulnerability, where imprisonment plus one of these situations; the penitentiary system
exercises its role in a contradictory way, punishing "educating"; the overcrowding and the low
level of schooling of its public is persistent, but something more complex is evidenced, like
the informal learning in the prison, with emphasis in its relational character; these learnings
interfere with the human and identity formation of the person deprived of freedom; it splashes
(re)socialization and can contribute to recidivism, since it tends to (re)establish the link with
organized crime in prison; relational learning is also linked to rules of coexistence, subject to
penalties; points out that in relations with their peers, respect for differences is the best way to
avoid conflicts within the prison, and facilitate access to the work activity; they show
preoccupations with (re)socialization, because their identities are stigmatized, subalternized,
marked by distinction and rejection in prison; elucidates that the bond and family support is
essential for effective (re)socialization and coping with recidivism; Public policies aimed at
post-prison monitoring stand out as a response to recidivism. He pointed to actions in prison
aimed at dialogue, respect, strengthening of family and group ties, insertion in the labor
market, as strengthening of a life and society more dignified, citizen and harmonic.

Keywords: Penitentiary System of Mato Grosso, Life experience and formative in prison,
Narrative Research, Formative Processes and Resocialization.
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LISTA DE SIGLAS

ABGLT — Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e


Intersexos;
CAPS — Centro de Atenção Psicossocial;
CAPES — Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
CDP — Centro de Detenção Provisória;
CEE — Conselho Estadual de Educação;
CFP — Conselho Federal de Psicologia;
CNE — Conselho Nacional em Educação;
CIAPS — Centro Integrado de Atenção Psicossocial;
CJF — Conselho da Justiça Federal;
CNJ — Conselho Nacional da Justiça;
CNPCP — Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária;
CNPQ — Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico
CONFINTEA — Conferência Internacional em Educação de Jovens Adultos;
CRAS — Centro de Referência de Assistência Social;
CREAS — Centro de Referência Especializado de Assistência Social;
CVMT — Comando Vermelho de Mato Grosso
CTC — Comissão Técnica de Classificação;
DEPEN — Departamento Penitenciário Nacional;
EAD – Eduação a Distância;
EAP — Serviço de Avaliação e Acompanhamento de Medidas Aplicadas a Pessoas com
Transtorno Mental em Conflito com a Lei;
EJA — Educação de Jovens Adultos;
ENEM — Exame Nacional do Ensino Médio;
FUNAC — Fundação Nova Chance;
INFOPEN — Sistema de Informação Penitenciária do Ministério da Justiça;
IFMT — Instituto Federal de Mato Grosso;
GEPForDoc — Grupo de Estudos e Pesquisas em Política e Formação Docente;
LDBEN — Lei de Diretrizes Educação Brasil;
LEP — Lei de Execuções Penais;
LGBTT - Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transgêneros;
10

ME — Ministério da Educação;
MJ — Ministério da Justiça;
MS — Ministério da Saúde;
NUPS — Núcleo Psicossocial Forense;
OMS — Organização Mundial de Saúde;
ONU — Organização das Nações Unidas;
PAIF — Programa de Atenção Integral a Família;
PCC — Primeiro Comando da Capital
PCE — Penitenciária Central do Estado;
POP — Manual de Procedimento Padrão Operacional do Sistema Penitenciário de Mato
Grosso;
PNSSP — Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário;
PPGE — Programa de Pós-Graduação em Educação;
PROERD — Programa Educacional de Resistência às Drogas;
REDLECE — Rede Latino Americana de Educação em Contexto de Encarceramento;
SAAP — Secretaria de Administração Penitenciária;
SAMU — Serviço de Atendimento Móvel de Urgência;
SECITEC — Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia e Inovação;
SEDUC — Secretaria de Estado de Educação;
SEJUDH — Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos;
SENAI — Serviço Nacional da Indústria;
SENAC — Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial;
SESP — Secretaria de Estado de Segurança Pública;
SUAS — Sistema Único de Assistência Social;
SUS — Sistema Único de Saúde;
UFMT — Universidade Federal de Mato Grosso;
UFsCar — Universidade Federal de São Carlos;
UNESCO — Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura.
11

A injustiça que se faz a um é a ameaça que se faz a todos.


Montesquieu
12

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 13
MINHAS NARRATIVAS DE VIDA E FORMAÇÃO .................................................................... 16

1 O SISTEMA PENITENCIÁRIO .................................................................................................... 34


1.1 APONTAMENTOS SOBRE A EDUCAÇÃO ESCOLAR (FORMAL) E NÃO ESCOLAR
(INFORMAL) NA PRISÃO ............................................................................................................. 45

1.1.1 A Educação no Contexto Penitenciário: uma Perspectiva de Paulo Freire ...................... 55

1.2 CARACTERIZAÇÃO DA POPULAÇÃO PRISIONAL DE MATO GROSSO E DE UM


CENTRO DE RESSOCIALIZAÇÃO ............................................................................................... 58

2 EXPERIÊNCIAS DE VIDA E FORMAÇÃO ............................................................................... 70


2.1 EXPERIÊNCIA: REFLEXÕES SOBRE O CAMINHO TRILHADO ....................................... 70

2.1.1 Algumas Considerações em John Dewey ............................................................................. 73

2.2 FORMAÇÃO COMO PROCESSO DE REFLEXÃO CRÍTICA ............................................... 78

3 A CONSTRUÇÃO METODOLÓGICA GUIADA PELA PESQUISA NARRATIVA: COMO


CAMINHAMOS .................................................................................................................................. 82
3.1 CARACTERÍSTICAS DO LUGAR ........................................................................................... 88
3.2 CARACTERÍSTICAS DOS PARTICIPANTES ........................................................................ 92
4 NARRATIVAS DE VIDA E FORMAÇÃO COMPONDO SENTIDOS DAS EXPERIÊNCIAS
............................................................................................................................................................. 103
4.1 O SENTIDO DA FAMÍLIA ..................................................................................................... 105

4.2 O SENTIDO DO PROCESSO FORMATIVO ......................................................................... 118

4.3 O SENTIDO DA PRISÃO ........................................................................................................ 135

4.4 DAS EXPERIÊNCIAS ÀS APRENDIZAGENS ..................................................................... 163


CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................... 176
REFERÊNCIAS ................................................................................................................................ 185
13

INTRODUÇÃO

Só podemos entender o presente, olhando para a nossa história,


compreendendo-a, projetamos o futuro.

Autor Desconhecido

Inicio esta dissertação apresentando a vocês parte da minha experiência e tudo o que
dela agrega, de reconstruções, recomeços, inícios e fins de novos ciclos, num recorte da
história e tempo, contextos, lugares, pessoas e emoções, um movimento da vida e tudo o que
nela vai nos dando sentido.
Um recorte, narrado, historiado e entrelaçado em outras experiências, como as dos
participantes da pesquisa, os teóricos com quem dialogamos nesta investigação e até mesmo
com a do leitor, cuja temática da Educação e aspectos relacionados à Segurança Pública
fazem parte desta reflexão. O objeto de investigação eleitoo para a compreensão deste tema –
as experiências de vida e formação da pessoa privada de liberdade.
Investigar estas experiências é problematizar introspectiva, extrospectiva,
retrospectiva e prospectivamente as história de vida e formação. A socialidade desse público,
passa principalmente pela educação, como esclarece Onofre (2011, p. 55): “a educação na
prisão não é, portanto, apenas a educação dos prisioneiros, mas um processo comum de
socialização, de aprendizagem do reconhecimento do outro, quem quer que seja.” Assim, a
qualidade das relações sociais no interior da prisão é também um indicador da educação que
nela é vivida, proporcionando um prognóstico sobre o que acontecerá após a libertação da
pessoa em restrição ou privação de liberdade.
Buscamos na pesquisa narrativa o enfoque metodológico para guiar esta investigação.
Apresentada por Jean Clandinin e Michael Connelly (1995; 2011), de cunho qualitativo, a
pesquisa narrativa é uma modalidade de investigação recente no Brasil que toma como objeto
a experiência da pessoa através do seu relato e história de vida na qual a experiência vivida é
o foco central. Compreende, interpreta práticas e saberes do cotidiano para apresentar
reflexões sobre sua formação educativa e profissional. O pesquisador participante e a
interação relacional que se constrói no lugar que encontram-se situado e historiado, fazem
parte do mesmo fenômeno investigado.
Todo processo formativo vivido tem sido um aprendizado que nos potencializa
enquanto humanos. Os relatos oferecem possibilidades múltiplas de reflexão, indagação e
14

redefinição de modos de ser e agir, que vão evidenciando novos processos de aprendizagens,
dão suporte à compreensão da discussão dessa temática e, consequentemente, da presente
dissertação.
Nessa sentido, apoiando-nos em Clandinin e Connelly (2011, p. 169), que diz os
“pesquisadores narrativos” serem “sempre constituídos em torno de uma curiosidade
particular”, adentraremos à nossa (talvez a curiosidade do leitor), que problematizará
posteriormente essa pesquisa.
Passados alguns anos trabalhando como psicóloga no sistema penitenciário, deparei-
me com uma situação que me incomodava, continuou incomodando e não parava de me
incomodar, referente à população carcerária, sua reincidência. A problemática que se elucida
nesta investigação, refere-se a “que tipos de experiências estão envolvidas na aprendizagem
informal da pessoa privada de liberdade e como elas interagem com a reincidência e
(re)socialização?”
A pesquisa narrativa em educação faz-se referência pelo caráter relacional e pela
dinâmica interativa que apresenta, pois:

(...) a narrativa proporciona uma reconfiguração do sujeito, ou seja, uma


reconfiguração de si, ao tempo em que ao relatar a experiência, esse movimento,
desloca o sujeito no espaço tridimensional, o contato com a dimensão pessoal e
social, temporal e de lugar. (...) Ao deslocar-se ao passado, por meio da
retrospecção, o sujeito que narra emerge em direção ao seu futuro, ou seja, ele se
projeta a um devir, portanto, transfigurando-se em um novo, embotando o sujeito
que foi e, descolando-se do sujeito que é, para transfigurar-se em um sujeito a devir
carregando as marcas de todos os outros que foi. (CLANDININ; CONNELLY,
2011, p. 51)

Trazemos à discussão, partes significativas da minha experiência de vida e formação


com o intuito de discorrer sobre a trajetória e os caminhos que me trouxeram até aqui e de
como a temática da educação se fez presente. Aos contextos acadêmicos e profissionais, parto
da graduação de psicologia, a incompleta de filosofia; logo, a atuação como psicóloga do
Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), do Centro de Atenção Psicossocial
(CAPS), membro de Conselho de Direitos, psicóloga perita do Tribunal de Justiça, Sistema
Penitenciário, professora universitária e, por último, mestranda do Programa de Pós-
Graduação em Educação da UFMT.
Assim sendo, ao narrar minha história de vida, em contextos de atuação profissional
vividos, principalmente na carreira e pesquisa na área jurídica com a população privada de
liberdade, intuímos que os leitores possam desmistificar o contato com esse público. O espaço
15

prisional, mesmo que de penitência e castigo — considerado aqui o penitenciário —, é um


lugar, em potencial, para a formação humana e de intervenção para as ciências no campo da
pesquisa, em especial, da educação.
O objetivo principal desta investigação consiste em compreender como as pessoas
privadas de liberdade dão sentido às suas experiências de vida e formação, com ênfase às
aprendizagens construídas no contexto penitenciário e como elas podem interferir em sua
(re)socialização.
Os objetivos secundários estabelecidos são: contextualizar o sistema penitenciário e as
políticas educacionais voltadas para a (re)socialização; identificar experiências de vida e
percurso formativo da pessoa privada de liberdade; analisar como essas experiências
interferem em sua (re)socialização e reincidência no sistema prisional; por fim, narrar os
sentidos construídos a partir das experiências e aprendizagens que os participantes vivenciam
no sistema penitenciário.
Dominicé (2014, p. 138) afirma que “a formação de um adulto não pertence a
ninguém se não a ele próprio” e que “a história de formação de cada um é uma história de
vida”. Neste sentido, compreender as experiências de vida e formação em seu processo está
intrinsecamente associada a um novo porvir desse mesmo ser, que a presente investigação se
aterá, à pessoa privada de liberdade.
Parto da experiência profissional e educativa, compartilhando os momentos vividos e
percorridos para se chegar a este estudo, que Clandinin e Connelly (2011, p. 51), definem ser
a pesquisa narrativa

[...] uma forma de compreender a experiência. É um tipo de colaboração entre


pesquisador e participantes, ao longo de um tempo, em um lugar ou série de lugares,
e em interação com milieus. Um pesquisador entra nessa matriz no durante e
progride no mesmo espírito, concluindo a pesquisa ainda no meio do viver e do
contar, do reviver e recontar, as histórias de experiências que compuseram as vidas
das pessoas, em ambas perspectivas: individual e social.

Nas narrativas trago outras histórias imergidas, compondo-se como fonte de reflexão e
aprendizados vividos, por meio e no meio em que estou inserida. Nesta perspectiva, a
narrativa não é apenas um meio para se compreender a experiência, mas é também um meio
para a aprendizagem humana. (CLANDININ; CONNELLY, 2011).
16

MINHAS NARRATIVAS DE VIDA E FORMAÇÃO

Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.

Manoel de Barros

Contar sobre minha vida acadêmica é reviver recordações que me motivaram para o
conhecimento intrínseco do homem e sua interação com o mundo e a sociedade. Nesse
cenário, a “construção das narrativas, entre o viver, contar, reviver e recontar de uma história,
é sempre um processo reflexivo” (CONNELLY; CLANDININ, 1995, p. 108, tradução nossa).
Na psicologia, a cada nova descoberta trazida pelas correntes psicológicas e a vida
profissional, tornava-se uma nova reinvenção de minha identidade, ensinando-me a viver
nesse mundo, ofertando suporte e direções. Em contrapartida, estudar filosofia foi um
mergulhar no mundo do conhecimento e das ciências, já que dela todas partiram, fortalecendo
o pensamento crítico, desconstruindo verdades, desmistificando dogmas, enfim, cada ciência
com sua contribuição, abrindo caminhos que nem ao menos sabia da existência, seja do
indivíduo, seja da sociedade, cada um a seu modo.
No entanto, tive que escolher qual academia concluiria, uma vez que fazia os dois
cursos ao mesmo tempo, psicologia e filosofia, optei pela primeira que já se encontrava mais
avançada no currículo acadêmico. Após a conclusão do curso e ingresso em concurso público,
foi preciso mudar de cidade, inviabilizando a continuidade dos estudos da graduação em
filosofia. Contudo, as aprendizagens que este curso me ofertou, influenciaram em minha
formação humana, profissional, de emancipação e comprometimento social. Sob olhar do
indivíduo, ou das correntes psicológicas, sentidos e trajetórias que vieram aprimorar os
valores adquiridos ainda na infância da minha estimada família e adolescência no convívio
com minha família substituta.
Neste contexto, fui inserida aos 21 anos de idade no serviço público, com muita
vontade de colocar em prática cada ensinamento que obtive nas graduações que passei, na
atuação como psicóloga de um Centro de Referência de Assistência Social. O referido órgão é
fruto da política do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), proposta pela Lei n.º
12.435, de 6 de julho de 2011, cujo ofício ocorreu em vários municípios em tempos
alternados.
Dentro da política do SUAS, exercendo a função de “protetora social básica”, como
denomina a função do psicólogo, deparei-me com problemas sociais, comunitários, grupais,
familiares e individuais dos mais diversos, identificando a maneira como se formam,
17

influenciam-se entre si, entre outras, dando-me conta da proporção e urgência em trabalhar o
indivíduo além das questões psicoafetivas e familiares individualmente e como esses se
interligam com outros nas diversas esferas sociais, formando um terreno fértil de
vulnerabilidades, misto de drogadição, violência etc.
Descobri o papel como agente de proteção social básica, as entidades e esferas que
podemos mobilizar com os conhecimentos técnicos adquiridos em minha formação, a favor da
prevenção de problemas afetivos/sociais, diminuição da violência e criminalidade, do
sofrimento, na propagação da saúde mental e qualidade de vida, dentre outros.
Contextualizando o CRAS, é uma política do governo federal em que seus projetos,
serviços e benefícios destinam-se à população em situação de vulnerabilidade social
decorrente da pobreza, privação e/ou fragilização de vínculos afetivos/relacionais e de
pertencimento social (discriminações etárias, étnicas, de gênero ou por deficiências, dentre
outras). O CRAS é o local onde se concentram os programas nas diversas esferas, dentro da
Proteção Social Básica, cujo principal objetivo é trabalhar a família, sendo o Bolsa Família e
Programa de Atenção Integral a Família (PAIF) o principal programa deste centro, e no qual
meu serviço estava vinculado.
Recordo de vários momentos de angústia, em que me deparei com sinais da
vulnerabilidade do outro, seja na marca de uma violência psicológica, patrimonial, física,
sexual, seja no discurso e a constatação em visita técnica pela falta de alimento no lar, no
desamparo pela falta de conhecimento, informação, na miséria do sujeito pela ausência de
uma educação voltada para a cidadania, respeito ao próximo, dignidade, honestidade etc. Por
outro lado, houve momentos também de satisfação pessoal em que avistava os objetivos da
política serem alcançados.
Revivo uma situação em que uma assistente social, após chegar de uma visita em que
foi entregar cesta básica, encaminhou-me a família em questão, constituída de uma mãe
solteira, não muito apresentava seus 18 anos, grávida do seu terceiro filho havia pouco tempo,
tendo um menino de 4 e uma menina de 2 anos, veio a mim porque queria doar a filha de 2
anos de idade. Logo inseri as crianças no programa do Serviço de Convivência para Crianças
de 1 a 5 anos, que era outro serviço referenciado no CRAS e política SUAS, que na época
coordenava o projeto. Comecei o trabalho de orientação com essa mãe e acompanhamento
dessas crianças no grupo. A família sobrevivia apenas do “Bolsa Família” (programa federal
de assistência social de transferência de renda a famílias de baixa renda que cumpriam com as
condicionalidades de frequência escolar e vacinação dos filhos). Lembro de receber as
18

crianças sempre com um abraço apertado no grupo. Foi nessa época que peguei piolho
também depois de quase 18 anos sem essa peripécia. Resumindo, a mãe após alguns meses de
trabalho, desistiu de doar a filha, aprendeu artesanatos nos cursos que foi inserida de geração
de renda, confeccionou o enxoval de sua bebê, que carinhosamente deu o nome de Thayla,
quem eu tive o prazer de conhecer. O ocorrido me fez pensar como ajudar as pessoas a
encontrarem o sentido de suas vidas, o impacto de suas escolhas do presente a longo prazo,
estimular seu protagonismo familiar, podem fazer toda a diferença em sua vida.
Em outra ocasião, lembro-me de um menino de 8 anos que atendi, morava em um
assentamento, veio encaminhado pela escola e conselho tutelar, mal conseguia falar seu nome,
introspectivo, calado, apático. Quando o pedi para desenhar algo durante o atendimento, a
única coisa que conseguiu fazer foi o órgão reprodutor masculino, o pênis. A criança era
vítima de abuso sexual. Esse fato veio acompanhado de todo o seu fracasso escolar, sua falha
na comunicação interpessoal, na autoestima, na forma de agir com os colegas e consigo
mesmo. Como profissional, perdi a conta de histórias e consequências tristes como essa. Não
era apenas eu que tentava intervir em suas histórias, mas cada uma delas me modificava em
cada narrativa ouvida.
Por outro lado, pude sentir o que é ser um instrumento de proteção social básica, ao
acolher cada demanda relacionada a histórias contadas acima, junto com minha equipe,
formada de profissionais do Serviço Social, Educadores, técnicos do Programa Bolsa Família,
diversos instrutores, seja de artesanato, música, dança, capoeira e informática dentre outros e
proporcionar um novo fim para a história que tinha tudo para ser infeliz. Com os serviços
oferecidos pelo CRAS, as informações dadas e capacitações recebidas, essas pessoas em
situação de vulnerabilidade eram empoderadas e o protagonismo de sua vida e escolhas
resgatados.
O trabalho na política do SUAS abrangeu a participação nos Conselhos Municipais de
Direitos, seja da Criança e do Adolescente, dos Idosos, da Saúde entre outros. As ações que
marcaram esse período são de fiscalização e ampliação das políticas sociais, ao ser ofertado
capacitação e suporte para as entidades da rede municipal na área da saúde, assistência social,
educação e incluindo no setor jurídico. Nesse espaço pude perceber a responsabilidade e
autonomia que o cidadão civil também possui sobre as mesmas políticas bem como a
sociedade é alheia a isso.
Passados três anos no âmbito da assistência social, a convite, abri mão do concurso
público e fui me aventurar no Centro de Atenção Psicossocial, regulamentado pelo Ministério
19

da Saúde sob a Portaria n.º 336/GM/MS, de 19 de fevereiro de 2002. Sua política é pautada
pela Reforma Psiquiátrica no Brasil, na Lei Federal n.o 10.216, de 6 de abril de 2001, que
dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e
redireciona o modelo assistencial em saúde mental no Sistema Único de Saúde (SUS).
Deparar-me com as diversas manifestações do sofrimento psíquico me fez acordar para o
quão valorosa é a vida e como a mente é grandiosa e autônoma.
Memoro outra cena em um dos meus atendimentos, uma cliente de 36 anos na época,
casada e com filhos adolescentes, começou a se agachar e engatinhar durante a sessão,
comentando comigo que era um bebezinho e só queria engatinhar naquele momento. Não me
recordo bem do seu diagnóstico, porém estava evidente que seu sofrimento psíquico-
emocional havia se materializado na imagem de um bebê desamparado. Sim, ela melhorou
com o tempo, pôde retomar sua vida e suas atividades, sem deixar de frequentar o serviço ao
menos uma vez na semana.
Numa nova experiência, durante a sessão de terapia em grupo, um dos participantes,
jovem ainda, aproximadamente 19 anos, diagnosticado com transtorno de esquizofrenia,
colocou no colo a almofada do divã que estava sentado e começou a se masturbar durante a
atividade. A crítica fragilizada do mesmo, o fez pensar que as pessoas não tinham observado
seu movimento (de fato, alguns participantes, dos poucos que ali estavam, não perceberam).
Ele só cessou o ato quando questionado por mim o que estava fazendo e demonstrou sentir
profunda vergonha de que quiçá a psicóloga havia percebido o ocorrido. A sessão de
psicoterapia de grupo chegou ao final, todos se encaminharam para suas casas e afazeres,
menos eu, e a sessão continuava ainda comigo, refletindo sobre aquela situação vivida, a
ausência da crítica daquele jovem me fez perceber quão alheio estava aquele público de
maneira geral da sociedade e de si mesmos. Por outro lado, mostrou o quanto de valor tinha
aquela função que havia a mim atribuída, do profissional do comportamento humano, da
pessoa responsável por intervir na vidas, ajudar a dar sentido e qualidade a elas, ou
simplesmente auxiliar o outro a viver.
A carreira jurídica se iniciou para mim ainda no estágio em Psicologia, onde pude
acompanhar a atividade de Psicólogo Jurídico no Juizado Especial de Cuiabá por alguns
meses, no Núcleo Psicossocial Forense (NUPS). Fruto da Lei n.º 9.099, de 26 de setembro de
1995, que cria os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, que trata as infrações penais de
menor potencial ofensivo, ou seja, os crimes que não ultrapassam a pena máxima superior a
dois anos. Nos casos de dependência química em que o infrator é detido por porte de drogas,
20

poderia ser encaminhado para tratamento em vez de prisão em alguns casos, ou em caso de
violência doméstica preconizada pela Lei Maria da Penha de n.º 11.340/2006, em que o
suposto agressor poderia ser encaminhado para participar de grupos psicoterapêuticos em que
o NUPS coordenava.
O NUPS tem a função de aplicar tais medidas aos envolvidos, trabalhando sob a
perspectiva da Justiça Terapêutica. O trabalho psicossocial era pautado nas entrevistas de
anamnese e acompanhamento das partes (réu e vítima), visitas domiciliares, orientações
diversas, encaminhamentos a redes de apoio (Alcoólicos Anônimos etc.) e coordenação de
reuniões mensais de acompanhamento em grupo. Essa experiência foi marcante por
proporcionar o entendimento de como um simples episódio de conflito pôde se propagar por
anos a fio as partes, causando desgastes irreparáveis aos envolvidos e por outro lado, o
adoecimento das pessoas, que acaba atingindo uma série de esferas sociais, tais como a
penitenciária.
Não demorou muito para a atuação de Psicologia Jurídica fazer parte de minha carreira
profissional, quando fui credenciada junto ao Tribunal de Justiça de Mato Grosso pelo
Provimento n.º 008/2008, do seu Conselho de Magistratura (2008), para realizar estudos
psicológicos numa comarca com aproximadamente 12 mil habitantes, onde atuei diretamente
nos processos de adoção, guarda, perda do pátrio poder, processos relacionados a abuso
sexual infantil etc. Foi um momento de muito amadurecimento profissional, seguido por
outros desafios, como ser nomeada perita para avaliar aspectos psicológicos de determinados
litígios, muitas vezes exercendo uma atividade que, apesar da formação que recebi, não estava
de acordo com meu interesse de atuação profissional, sem falar que a atividade por algum
tempo não era remunerada. Depois de muitas lutas legalistas, em parceria com a gestora da
assistência social (a própria assistente social da prefeitura onde eu trabalhava), conseguimos
que o credenciamento de Psicólogo e Assistente Social do Tribunal de Justiça fosse realizado
também em nossa comarca, sendo mais tarde esta vaga pleiteada por mim. Logo, por meio da
remuneração recebida, pude investir na aquisição de testes psicológicos, na área de avaliação
dentre outros, e o que considero uma grande conquista na época: ter provocado e alcançado o
credenciamento.
Pois bem, a carreira de Psicologia Jurídica se consolidou com meu ingresso no
Sistema Penitenciário da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos de Mato Grosso
21

(SEJUDH1), onde atuei como psicóloga em uma equipe de saúde do sistema prisional, que
estava em processo de migração de Cadeia Pública para uma unidade com maior capacidade
de abrigo a pessoas privadas de liberdade.
A assistência psicológica a pessoas privadas de liberdade é regulamentada pela: a)
Constituição Federal em seu artigo 196, bem como os princípios e diretrizes preconizados
pelo Sistema Único de Saúde (SUS), que “definem que a saúde é direito de todos e dever do
Estado”; b) as “Regras Mínimas para Tratamento do Preso” no Brasil pela Resolução n.º
14/1994, resultante da recomendação do “Comitê Permanente de Prevenção do Crime e
Justiça Penal” da Organização das Nações Unidas (ONU) que estabelece (Art. n.º 15) “a
assistência psicológica como direito da pessoa presa”. O Ministério da Justiça, Departamento
Penitenciário Nacional (DEPEN) e o Conselho Federal de Psicologia (CFP) estabelece
“diretrizes para atuação e formação dos psicólogos do sistema prisional brasileiro”, publicado
em 2007, em seguida a Resolução CFP n.º 009/2010 que “regulamenta a atuação do psicólogo
no sistema prisional.”
Esta resolução, declara que as questões relativas ao encarceramento devem ser
compreendidas em sua complexidade e como um processo que engendra a marginalização e a
exclusão social. Assegurando que a Psicologia, como ciência e profissão, posicione-se pelo
compromisso social da categoria em relação às proposições alternativas à pena privativa de
liberdade, fortalece a luta pela garantia de direitos humanos nas instituições em que há
privação de liberdade (CFP, 2010).
Dentre as práticas no sistema prisional, estabelece que o(a) psicólogo(a) deverá
respeitar e promover:

Os direitos humanos dos sujeitos em privação de liberdade, atuando em âmbito


institucional e interdisciplinar; b) Processos de construção da cidadania, em
contraposição à cultura de primazia da segurança, de vingança social e de
disciplinarização do indivíduo; c) Desconstrução do conceito de que o crime está
relacionado unicamente à patologia ou à história individual, enfatizando os
dispositivos sociais que promovem o processo de criminalização; d) A construção de
estratégias que visem ao fortalecimento dos laços sociais e uma participação maior
dos sujeitos por meio de projetos interdisciplinares que tenham por objetivo o resgate
da cidadania e a inserção na sociedade extramuros. (CFP, 2010, p. 02)

1
Durante o processo de Defesa Pública desta Dissertação de Mestrado, a SEJUDH foi extinta pela nova Gestão
Estadual ao sancionar a Lei Complementar nº 612, de 28 de janeiro de 2019. Todas as suas atribuições foram
transferidas à Secretaria de Estado de Segurança Pública (SESP) em 28 jan. 2019. Assim, no que se referir à
SEJUDH neste estudo, considere referir-se à SESP.
22

Em relação à atuação com a população em privação de liberdade ou em medida de


segurança, destaca a compreender, por parte dos profissionais da pessoa privada de liberdade
em sua totalidade histórica, social, cultural, humana e emocional, bem como a promoção de
práticas que potencializem a vida em liberdade, de modo a construir e fortalecer dispositivos
que estimulem a autonomia e a expressão da individualidade dos envolvidos no atendimento.
A prática deve construir dispositivos de superação das lógicas dualistas e segregacionistas de
delinquente e não delinquente que atuam no sistema prisional e na sociedade, principalmente
com relação a projetos de saúde e reintegração social, aponta a referente normatização.
Em Mato Grosso, o cargo de psicologia do sistema penitenciário é ocupado apenas
mediante ingresso por concurso público, sob responsabilidade do Estado a organização, meios
de seleção e manutenção da carreira. Ela foi criada pela Lei Estadual Complementar de nº
389/20102 (SEDUC; SEJUDH, 2010). O profissional atende as normatizações do Conselho
Federal e Regional de Psicologia (CFP/CRP), incluindo o Código de Ética profissional. A
classe não possui normatizações3 de suas políticas no âmbito Estadual, no qual está vinculado.
Dada a conjuntura legalista em que as experiências compartilhadas foram construídas,
retomo o cenário dessa prática ao narrar meu primeiro dia de trabalho no sistema
penitenciário, que ao me apresentar à unidade designada, encontro-a em estado de ruínas. A
destruição parcial da estrutura física ocorrida a menos de 48 horas e teve por motivação um
motim4 dos rebelados, que atearam fogo nos colchões, perfuraram paredes, tetos, deixando-os
semiabertos, danificaram televisores, ventiladores, câmeras e seus próprios pertences. O
motim iniciou após um agente penitenciário ter se tornado refém de um sentenciado, que
estava munido de uma arma de fogo, após algumas horas, houveram fugas e trocas de tiros,
mas o conflito foi contido pelos militares, culminando com a morte de um detento, alguns
foragidos, vários feridos e outros em processo de transferência para unidades prisionais
próximas. O falecido era considerado o mais bobão da cela de convivência e foi usado como
escudo por seus pares durante a troca de tiros no momento da fuga.
2
SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO DE MATO GROSSO; SECRETARIA DE ESTADO DE
JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS. Lei Estadual Complementar de nº 389/2010 Reestrutura a carreira dos
profissionais do Sistema Penitenciário e dá outras providências. Disponível em:
http://www.sejudh.mt.gov.br/documents/412021pdf. Acesso em: 08 de novembro de 2017.
3
No ano de 2006, alguns servidores de psicologia do sistema penitenciário se reuniram junto ao sistema do
conselho – CRP/18º-MT –, e em diálogo, construíram um “Orientativo sobre a Prática da(o) Psicóloga(o) no
Sistema Penitenciário de Mato Grosso”, após dois anos de diálogo e estudo, divulgando as experiências, ações e
desafios deste profissional no sistema penitenciário de Mato Grosso. Entretanto, o material não possui caráter
instrutivo nem pedagógico, apenas de referência e esclarecimentos sobre como tem ocorrido essa prática. O
Orientativo foi aprovado em Assembleia Geral do CRP e publicizado no site oficial do próprio órgão. A
mestranda fez parte do rol desses servidores.
4
O delito de motim de presos está previsto no Artigo n° 354 do Código Penal, que descreve a conduta criminosa
como sendo o ato de os presos se rebelarem causando desordem ou perturbando a disciplina da prisão.
23

Além da estrutura física, o funcionamento da unidade havia passado por mudanças. A


população carcerária estava com suspensão de visitas de familiares, atividades escolares,
atendimento jurídico e administrativo dentre outros. O clima era de tensão e aflição em toda
parte do raio penal: de um lado o aparato militar, composto pelos agentes penitenciários,
policiais civis e militares de vários plantões e cidades vizinhas e de outro lado, os familiares
dos presos. O primeiro, reuniu-se na tentativa de compreensão do ocorrido, estabelecendo
estratégias de intervenção, afinal, com o motim a unidade estava com a segurança
comprometida, porquanto haviam foragidos nas redondezas que precisavam ser capturados;
por outro lado, nos portões afora, encontravam-se os familiares dos presos, buscando
informações do possível paradeiro de seus entes, se permaneciam na unidade, se foram
transferidos para outra cidade, se estavam feridos ou foragidos.
O fornecimento de energia elétrica e água estava sendo retomado aos poucos na
unidade penal, devido à destruição da rede elétrica causada pelo fogo. Dos presos restantes
poucos eram os identificados, portanto, os servidores não tinham respostas a esses familiares,
nem a seus advogados, o que retroalimentava a tensão do espaço prisional, desta vez, movido
por especulações e ameaças dos familiares quanto ao atentado pela equipe dirigente aos
direitos humanos de seus entes privados de liberdade.
O meios de comunicação local, sites de notícias, canais de televisão anunciavam o
ocorrido, com destaque aos foragidos — soltos pela cidade, para o espanto da sociedade. Esse
cenário configurou o meu primeiro dia de trabalho.
Nem todo conteúdo aprendido na capacitação que recebi pela escola penitenciária5 da
SEJUDH, antes de entrar em efetivo exercício no sistema penitenciário foram suficientes para
descrever o que havia sentido naquele dia. Questionamentos como: qual o lugar da psicologia
quando tenho que resguardar minha própria vida? Como ajudar o outro e a mim ao mesmo
tempo? — O outro, referindo-se à pessoa privada de liberdade que, na época, era
desconhecido e ameaçador.
Assim, foi se inaugurando outros dilemas nesse espaço, à medida que o experienciava.
Como operar em direitos humanos com quem rompe com esses mesmos direitos? Talvez
esteja na resposta a máxima do posicionamento ético, moral, valorativo e democrático que um

5
A escola penitenciária de Mato Grosso, criada pela Lei Estadual Complementar de n.º 389/2010, foi instituída
pelo Decreto Estadual n.º 629/2011, preconizando nele o Art. 9º,
§ 1º: “Os Profissionais do Sistema Penitenciário serão submetidos a prévio curso de formação/qualificação com
carga horária mínima de 480 (quatrocentas e oitenta) horas, a ser realizado pela Escola Penitenciária, após posse
no cargo”.
24

cidadão crítico pode dar ao outro em suas diferenças. Tal como uma cultura a seu povo, “o
vigor democrático de um Estado também é medido pelo nível de respeito aos direitos
humanos para com os cidadãos que não respeitam esses mesmos direitos” (DE MAEYER,
2011, p. 43).
Doravante, à medida que realizava os atendimentos, ao aproximar e conviver com a
população carcerária, fui desmistificando alguns estigmas e alcançando suas outras
identidades, como de maridos, pais, filhos, alguns com profissões, excelentes profissionais ou
nem tanto, de maneira geral, outros referenciais de vida que não fosse o artigo penal pelo qual
se encontrava detido. Pessoas que em algum ou vários momentos de deslize na vida, desvio
de caráter ou com características particulares de personalidade, como as psicopatias, foram
resumidas pela sociedade ao delito cometido, sendo julgado, condenado e assim rotulado seu
tratamento.
Algumas adversidades também iam se evidenciando, chegava a profissional mulher
dentro do contexto penitenciário. Trabalhar num ambiente de prevalência de gênero
masculino, tanto em relação à clientela como dos próprios colegas de trabalho, é uma tarefa
para guerreiras em nossa cultura ocidental com características machistas. Lembro de um
atendimento que realizei, o atendido havia feito bom vínculo comigo, demonstrava-se
comunicativo, seguro no espaço de atendimento, quis falar do delito que decorria seu
encarceramento, comportamento atípico, devido muitos se esquivarem de tocar nesse assunto,
por fim, num momento de sessão, quando tento interromper sua fala, em menção ao seu
próprio discurso, tentando compreender a demanda que trazia, este eleva o dedo indicador na
boca, em sinal de silêncio e me diz: silêncio, eu estou falando, fica quieta. O custodiado
estava cumprindo pena por feminicídio praticado contra a mãe de seu filho, sua esposa. As
relações de poder ficaram evidentes, não por essa atitude, mas outras também, que era
evidente em seu posicionamento à subalternidade feminina.
De fato, nem toda população com restrição e privação de liberdade irão apresentar
melhoras em sua conduta, ora psicopatia contida, seja pela ausência de vínculos afetivos
apresentada ou baixas perspectivas de vida, pela carência de políticas públicas especializadas
para lidar com o assunto e até mesmo capacitações específicas dos profissionais que os
acompanham (casos como pedofilia, sociopatia etc.) e provavelmente com eles há de se ter
cautela nas relações que quiçá foram construídas mesmo que profissionalmente. O
profissional terá que contar com seu conhecimento técnico, intuição e experiência para tentar
realizar um atendimento humanizado e assertivo frente à demanda que a pessoa privada de
25

liberdade traz, pois há uma linha muito tênue entre seu sofrimento e o que ele esconde através
dessa consternação.
Os atendimentos eram mediados pela equipe dirigente e só ocorria quando os agentes
podiam retirar os presos da carceragem. A própria solicitação era feita por meios deles, que
recolhiam os bilhetes ou bereus, como nomeiam os presos, e a entregava à psicologia. O uso
obrigatório das algemas por parte da pessoa privada de liberdade constantemente tinha que ser
negociada com os agentes de segurança durante o atendimento.
Longe de qualificar as normativas de segurança do sistema penal, contudo, atinar a
situação de segregação da humanidade, que não basta estar preso, faz-se necessário estar
privado de locomoção e é nesse contexto que transcorre a (re)socialização. Circunstâncias
como estas e outras sempre foram um obstáculo para o serviço da psicologia, em que muitos
não davam continuidade ao acompanhamento a não ser quando possuíam outros interesses,
como solicitar ao psicólogo para que telefonasse a familiares em vista de algum pedido.
As ações direcionadas à pessoa privada de liberdade, não pode perder de vista que
“eles não estão ali para serem punidos, pois o muro já é a segregação e o castigo, mas os seus
direitos humanos devem ser preservados” (ONOFRE, 2011, p. 279).
De maneira geral, o ingresso no sistema penitenciário de (re)socialização foi um ano
profissionalmente desafiador, no sentido de me deparar com a miséria humana e degradante
que o ambiente prisional proporciona. A superlotação é outro grande problema do sistema
penitenciário.
Recordo-me de um atendimento em que o preso informou que a convivência na cela
de sua moradia “está puxada doutora, estamos revezando, uns precisam ficar em pé, para
outros poderem sentar na cela”. Suportar o calor num cubículo de cimento, a coabitação com
seus pares, de diferentes personalidades, comportamentos, hábitos, às vezes fazendo uso de
cigarro, fumo e outras drogas. Alguns querendo dormir, outros fugir, muitos não conseguem
nem ao menos cuidar de sua própria higiene. Nem sempre por escolha, às vezes pela ausência
de produtos de higienização, pois até o colchão nem sempre supre a necessidade do sistema.
O barulho é outra constante e característico de um ambiente populoso como o prisional. Nesse
contexto, irônico, espera-se a recuperação do indivíduo.
Problematizo a situação de (re)socialização, apoio-me em Onofre (2011), que refere-se
à contradição do ambiente prisional, “a começar pela arquitetura, que separa, esconde, afasta
o condenado da sociedade, punindo-o e vigiando-o, enquanto fala de educação e (re)inserção
social”. A autora afirma ainda que:
26

O cotidiano das prisões mostra um ambiente com valores, regras e práticas, como
obstáculos à educação para a vida social livre, ao objetivo (re)socializador da pena.
De todas as tarefas que a prisão deve executar, nenhuma é mais ambígua que a de
transformar criminosos em não criminosos, pois os meios para atingi-las
permanecem incertos, e jamais serão efetivas, enquanto ela funcionar como
instrumento punitivo da justiça criminal (ONOFRE, 2011, p. 284).

Ciente de que era esse o meu papel, amenizar o impacto desse sistema de penitência
em que se encontravam as pessoas privadas de liberdade, por um tempo, atuei num projeto de
(re)socialização junto à pessoa privada de liberdade, visando aqueles que realizavam
artesanatos com linhas no interior das celas. Mediante interesse dos artesãos e comprovação
da fabricação das peças, eram direcionados para confeccionarem a Carteira Profissional do
Artesão, quando em liberdade poderiam fazer empréstimos financeiros e começar seu próprio
negócio rentável, além de amenizar transtornos dentro da unidade como de ansiedade e
depressão, o artesanato funcionava como terapia ocupacional e auxiliava na renda de algumas
famílias. Os artesãos privados de liberdade fabricavam tapetes, redes, bonés, pulseiras, bolsas,
algumas peças de roupas, artefatos de cozinha dentre outros.
Os resultados eram produtivos, mesmo atingindo uma pequena parcela da população
carcerária, dentre as dificuldades associadas a entrada de material, ou procedimento de
revistas que danificavam as linhas. Certa ocasião, presenciei uma mãe retirando um jogo de
banheiro de crochê, fabricado por seu filho, dizendo-se satisfeita: “toda semana tiro um jogo
de tapete que ele fabrica e vendo no trabalho, com o dinheiro pago a prestação da moto dele,
menos uma conta para mim”.
Casos parecidos eram compartilhados, em referência às preciosas peças fabricadas no
interior da unidade e que alguns presos aproveitam para presentear suas mulheres, mães,
irmãs, outros como forma de manter seu sustento na unidade como aquisição de mantimentos
oferecidos por outros visitantes quando não possuíam os seus próprios. Cartas de amor,
pedidos de desculpas e manifestações de saudades às vezes acompanhavam o material. De
maneira geral, a produção das peças estimulava o fortalecimento de vínculos dos artesãos
privados de liberdade com a comunidade externa.
A convivência forçada fazia surgir não apenas desavenças, mas também construções
de vínculos afetivos consistentes entre os pares. Em outro momento, um jovem adulto privado
de liberdade, confidenciou-me que conheceu na cadeia, um forte candidato a esposo para sua
mãe solteira, comentando que no tempo que dividiu a cela com este, pôde sentir o cuidado e
proteção de um pai, que não havia tido em situação de liberdade.
27

Movido ainda pelo relacionamento paterno, registro outro caso, em que o primeiro
delito da pessoa privada de liberdade foi aos 13 anos por homicídio. Quando perguntei a
motivação do crime, disse ter sido em homenagem ao pai que havia sido pistoleiro. Na época
o pai era vivo, com o tempo veio a falecer pelo mesmo viés do ofício que praticava.
Essas e tantas outras histórias vão moldando a pessoa privada de liberdade, que não
escolhe cor, raça, etnia, nacionalidade, classe econômica, social, cultural, moral, educacional
quando o assunto é a delinquência. A própria literatura da criminologia não elege as
motivações para prática do crime, mas as divide em correntes que defendem serem originadas
pelo indivíduo e outros no meio social onde foram se construindo.
A essa altura as preocupações que emergiam no desenrolar da prática profissional
eram outras, focadas na reincidência da pessoa privada de liberdade ao sistema prisional.
No cotidiano da atividade, sob posse da lista de chamada dos internos, (atualizada
diariamente pela equipe dirigente), que popularmente no sistema é conhecida como confere,
deparava-me com nomes familiares, que havia acompanhado, atendido, conhecido suas
famílias, que recebiam alvarás de soltura, passado um tempo lá estava o nome daquelas
pessoas novamente. Em outros momentos, era só assistir os noticiários locais ou acessar as
mídias digitais para ver os rostos conhecidos, que quando não retornavam à prisão, haviam
perdido suas vidas no mundo do crime, seja assassinados por rivais, seja em confrontos
policiais e outros envolvidos em acidentes.
As inquietações produzidas por esse cenário, fizeram-me pensar sobre quais ações, de
políticas públicas, que poderiam ser eficazes nesse processo de (re)socialização? No sentido
de investir no lado positivo da prisão, a escola dentro do sistema penitenciário se tornou
referência nesse processo. A figura do professor ganhou espaço nesse contexto, como agente
de prevenção da criminalidade, auxiliando a dar sentido à vida da pessoa privada de liberdade,
através do mundo que apresenta, através da literatura, das práticas pedagógicas, na
alfabetização, na escrita, na leitura, enfim, no resgate da cidadania daqueles que às vezes
nunca teriam oportunidade. Atuando em conjunto com os professores em suas dificuldades
com a população privada de liberdade, poderia ser uma excelente ferramenta de combate à
criminalidade.
A felicidade da pessoa privada de liberdade era garantida quando aprendia assinar seu
nome, principalmente na carteira de identidade em que muitos casos estava registrado, “não
alfabetizado”. Quando o feito, os mais próximos, solicitavam-me para que intercedesse junto
à direção, ao profissional do serviço social, quando possuía na unidade, e até mesmo
28

Defensoria Pública a requisição de uma nova carteira de identidade, desta vez com seu nome
escrito, assinado. O argumento era sempre o mesmo: agora já posso arrumar um emprego
melhor.
Isso quando possuíam documento de identificação. Lembro-me de outro caso, um
senhor com seus 53 anos de idade, preso por homicídio, nasceu, cresceu e ali estava no campo
desde estão, até que em função de uma desavença e uso de bebida alcoólica, cometeu o delito
contra seu parceiro de bar e veio parar na cadeia. Recolhido e sentenciado, destacou-se no
sistema pelas fabricações de peças artesanais, como tapetes, redes, pulseiras e foi convidado
para participar do projeto de profissionalização do artesão e tirar sua carteira profissional. Na
ocasião, informou nunca ter feito sua carteira de identidade, quase na idade da aposentadoria
do trabalhador rural que era. Esse senhor nem mesmo exercia sua cidadania, pois não havia
sido assistido por nenhuma instituição na vida, nem mesma a escola frequentou, a não ser
naquele momento em que encontrava-se preso. Na cadeia, ele pôde tirar sua certidão de
nascimento, cartão do SUS, seu documento de identificação e por fim, a carteira nacional do
artesão. Por essa oportunidade, demonstrou gratidão à equipe por todo feito e conquista, que
não deveria ser considerada nada mais que seu direito de cidadão.
Estudos de Vieira (2013), sobre realidades como essa fazerem parte da população
prisional, aponta:

(...) faz-se mister lembrar um dos caracterizadores do perfil dos detentos brasileiros:
a baixa escolaridade. Ou seja, extramuros, a escola não cumpriu com a maioria dos
apenados seu objetivo de formação do cidadão, de garantia de certificação capaz de
permitir a entrada no mercado de trabalho, de compartilhamento com as regras de
convivência do grupo social (VIEIRA, 2013, p. 101)

Motivada por situações como essas, relacionadas à educação ou à ausência dela,


direcionaram-me à pesquisa em educação, fez-me ater a questões preventivas e
potencializadoras de saúde mental. Através do ingresso na escola e alfabetização das pessoas
privadas de liberdade, reforçou seu “laço de pertencimento à sociedade, à palavra, à tradição,
à linguagem, à transmissão e à recriação da cultura, essenciais para a condição humana”,
cidadania, socialização e saúde mental (ONOFRE, 2011, p. 295).
Concomitante a esse percurso, experienciei de maneira passageira, não menos
marcante, na docência do nível superior, ao lecionar para jovens e adultos nos cursos de
Psicologia, Administração e Contabilidade de uma rede privada de ensino. Foram momentos
de muita tensão enquanto professora iniciante, ao instruir em salas de aula que chegavam a
cem alunos matriculados, o que exigiu mais do que conhecimento profissional, contudo,
29

habilidades ligadas à gestão, adaptabilidade, didática, entre outras. Por outro lado, a satisfação
de compartilhar um pouco do meu mundo “psiquê”, da psicologia, àqueles jovens, e muitos
adultos também que estavam ao alvorecer dos sonhos a brindar suas vidas com uma carreira
profissional, não teve preço.
Após essa experiência e outras intercorrências fui convidada para trabalhar no Serviço
de Avaliação e Acompanhamento de Medidas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno Mental em
Conflito com a Lei (EAP), onde me encontro vinculada atualmente. O órgão criado pelo
Ministério da Saúde pela Portaria nº 94, de 14 de janeiro de 2014, que em Mato Grosso
funciona através de um termo de cooperação técnica entre as Secretarias de Estado de Saúde
(SES) e Justiça (SEJUDH), em interface com o Poder Judiciário, onde provisoriamente se
encontra a sede da equipe, anexo a uma Vara de Execução Penal. Na atividade, a equipe
precisa lidar com o duplo estigma de nossa clientela “louca e infratora” e a privação de
liberdade está respaldada pela internação compulsória da pessoa que cometeu o delito. A
internação é dentro de uma unidade do Hospital Psiquiátrico Adauto Botelho em Mato
Grosso, concentrando seu maior público na unidade localizada dentro da Penitenciária Central
do Estado (PCE), sendo a missão da equipe principalmente a desinternação dessas pessoas
com foco em seu convívio familiar.
O comprometimento do familiar ou responsável é a condição para sua
desinternação/(re)socialização, instaurada ou não o exame de insanidade mental. A política é
recente, bem como sua implementação no estado, que ainda passa por ajustes, porém, vem se
fortalecendo e construindo sua identidade a cada novo caso acompanhado, debates em
seminários, reuniões ampliadas, entre outros, apesar dos inúmeros desafios para efetividade
das ações, pois não basta desinternação, a equipe, operadores do direito, os diversos
segmentos sociais possuem também o objetivo de auxílio em sua (re)socialização.
Lembro de um experiência em que, de posse do processo judicial, fazia os estudos
iniciais para o acompanhamento de um caso, antes de visitar a interna onde estava
institucionalizada. Em seu depoimento judicial, narrava que uma noite estava sonhando,
havia gritos, e sentiu que um cachorro lambia seus dedos, despertando, dirigiu-se ao quarto ao
lado e encontrou sua filha, de quinze anos desfalecida na cama. A interna tinha transtorno de
esquizofrenia, caracterizado pela manifestação de alucinação e delírio, de cisão com a
realidade, que num surto psicológico tirou a vida da única prole que possuía, como uma faca.
O transtorno não escolhe etnia, classe econômica, social, racial, nem determina nenhum
crime, ou hostilidade, seja agressão, mas o seu tratamento sim.
30

Dos casos referenciados na EAP, o diagnóstico chega tardiamente, na vida adulta


dessas pessoas, muitas vezes depois da realização do delito, quando ela precisa
obrigatoriamente fazer perícia com um psiquiatra. No ano de 2017, fizemos um levantamento
em documentos internos sobre o perfil desse público, a escolaridade era o que menos teve
referência nos registros e, quando apresentava, não fazia menção ao anos iniciais da educação
escolar que receberam. Constatou-se a prevalência de nível fundamental. Alguns dados foram
divulgados pela Associação de Pesquisa em Direitos Humanos (ANPEDH), sobre a EAP/MT,
em que Silva e Silva (2017, p. 15), referindo-se à realização desse serviço, como preza a
Constituição Federal do Brasil:

condições mínimas de trabalho, de autonomia para que sua ação seja efetiva e de
segurança aos envolvidos nesse processo desafiador de promoção de saúde mental a
quem mal consegue desfrutar de direitos fundamentais de saúde, educação, moradia,
lazer [...].

Frente aos emaranhados da vida e ao que ela trouxe para minha formação profissional,
frente a indagações e busca de respostas diante das minhas frustrações e impotência, sem
contudo deixar de ser a psicóloga de início de carreira que continua acreditando que o ser
humano é capaz de superar-se, ressignificar-se e que somente a EDUCAÇÃO de alguma
forma possa transformá-lo numa pessoa melhor, ética, comprometida socialmente e com o
próximo.
Assim, vi no Grupo de Pesquisa e Estudos em Política e Formação Docente
(GEPForDoc) da UFMT, um espaço para pensar, individual e coletivamente, sobre o tema
“educação e prisão”, consolidando meu ingresso no ano de 2017 e cujo resultado
apresentamos nesta dissertação. O percurso e desenrolar desta pesquisa poderá ser visto no
capítulo 3 deste estudo, que ancorado em Clandinin e Connelly (1995, 2011) e influenciados
por Dewey, ampliaram sua forma de investigar a experiência historiada e relacional, a partir
de referências como temporalidade, socialidade (individual/social) e o lugar, pilares da
tridimensionalidade, segundo afirmam os autores (2011, p. 85), ao definirem o espaço
tridimensional:

Definido esse sentido do lugar fundacional de Dewey em nossa concepção sobre a


pesquisa narrativa, nossos termos são pessoal e social (interação); passado, presente
e futuro (continuidade); combinados à noção de lugar (situação). Este conjunto de
termos cria um espaço tridimensional para a investigação narrativa, com a
temporalidade ao longo da primeira dimensão, o pessoal e o social ao longo da
segunda dimensão e o lugar ao longo da terceira. Utilizando esse conjunto de
termos, qualquer investigação em particular é definida por este espaço
tridimensional: os estudos têm dimensões e abordam assuntos temporais; focam no
31

pessoal e no social em um balanço adequado para a investigação; e ocorrem em


lugares específicos ou sequências de lugares.

Nesse sentido, quando narro em meus contextos minhas experiências, o tempo todo
trago a dimensão relacional, de interação com o outro, recheada de vivências que fui
construindo ao longo da carreira. A temporalidade do vivido — presente, passado e futuro —
se encontram, como um lugar de formação da pesquisadora.
A temática sobre educação, de maneira geral, fez-se presente desde a graduação em
filosofia, por meio das teorias do conhecimento, alimentei uma postura crítica frente a esse
mundo no qual estou inserida; na secretaria de assistência social, quando me deparei com as
mazelas humanas referentes à pobreza, seja financeira, cultural, de informação, afetiva, de
valores éticos, morais, que não é diferente, mesmo pelo viés da doença mental, com a
população do CAPS, doravante, por outros motivos, pois transtorno mental não escolhe cor,
classe econômica, social ou nível cultural, porém, em que a educação não deixa de ser
empobrecida, falha e ausente a esse mesmo público.
Para tanto, o estudo será guiado pela abordagem teórico-metodológica da pesquisa
qualitativa, com ênfase na pesquisa narrativa, de Connelly e Clandinin (1995, 2011). Os
pressupostos teóricos que darão sustentação a essa investigação, embasamos: para a discussão
do sistema penitenciário, Goffman (1974, 1988); educação, Freire (1987, 1997, 1999, 2000,
2014); experiência de vida e formação, Dewey (1959, 1976, 2010), Dominicé (2014), Finger,
(2014) e Nóvoa, (1997, 2012, 2014); sobre educação na prisão, Onofre (2007, 2011, 2013,
2014, 2015), De Maeyer (2006, 2011, 2013), Vieira (2013) e Julião (2011, 2013, 2016).
Para além desse autores, buscou-se dissertações, teses, livros no portal da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e outras
produções, como os Anais da ANPEDH – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa
em Direitos Humanos, nos grupos de trabalho (GT), “Educação e Prisão” e “Discurso sobre a
privação de liberdade e a prisão: análise das maneiras de dizer/fazer as políticas públicas para
condutas criminalizadas”.
Sobre o assunto, no capítulo 1, apresentamos os aspectos legais do sistema
penitenciário, partindo de apontamentos de como a justiça criminal e penal age com o
delinquente, resumindo a prática do delito aos seus aspectos subjetivos. Em oposição a isso,
surge os estudos contextualizando esses indivíduos, trazendo a ideia da influência do
ambiente social para a prática do delito. Ilustrando a relação dessas duas vertentes é que esse
estudo tratará. Este capítulo divulgará dados estatísticos sobre o índice e características da
32

população carcerária a nível de Brasil, Mato Grosso e de um Centro de Ressocialização deste


Estado, onde foi realizada a investigação.
Neste levantamento, um dado é visivelmente observado e torna a proposta da
discussão dessa temática relevante — o alto índice de reincidência que apresenta a população
carcerária em todas as esferas. Para investigar sobre as aprendizagens não escolares desses
jovens e adultos privados de liberdade, fez-se necessário algumas considerações sobre a
educação escolar no presídio, destacando-a como o melhor percurso de (re)socialização
efetiva.
No capítulo 2, apresentamos algumas considerações sobre a experiência de vida e
formação a partir dos pressupostos de Dewey (1959, 1976), que ousa na elaboração conceitual
de experiência enquanto aprendizado. Ele a considera como uma dinâmica relacional e
interativa, que em sua continuidade, possibilita a construção de novas situações,
conhecimento e aprendizagem. Enfatizamos a prática do exercício do pensamento crítico e
reflexivo da experiência como percurso da (re)socialização e emancipação social.
No capítulo 3, descrevemos o percurso utilizado no processo de investigação, sob a
metodologia da pesquisa narrativa, ilustrando as bases teóricas de Clandinin e Connelly
(1995, 2911) e a influência que o GEPForDoc exerceu sobre a escolha da metodologia.
Trilhamos caminhos de escuta, reflexão e análise interpretativa das narrativas dos
participantes da pesquisa. Relatamos como ocorreu a escolha da unidade penitenciária, dos
participantes, suas características e as variáveis, contingências e desafios encontrados durante
a pesquisa de campo.
No capítulo 4, trazemos as narrativas dos participantes, fruto de suas experiências de
vida e formação. O processo de interpretação e análise dos relatos foi construído a partir da
perspectiva de “composição de sentidos”, sendo distribuída em 4 eixos: família; processos
formativos; prisão e das experiências às aprendizagens. Esperamos com os resultados trazer:
dados relevantes para a discussão da temática do sistema prisional e de tudo o que nele vem
englobado, seja as demandas relacionadas à saúde, assistência social, justiça, políticas
públicas diversas e, em especial, da educação; vidas historiadas e narradas sob o olhar da
pessoa privada de liberdade sobre ele mesmo; narrativas historiadas no espaço tridimensional
da investigação científica, submergidas nas dimensões individual, social, lugar e tempo e na
dinâmica relacional de seus bastidores.
Por fim, apresentamos as considerações finais, mediante as narrativas das experiências
de vida e formação da pessoa privada de liberdade, em seus contextos, com ênfase no
33

penitenciário e os aprendizados que nele vieram a ocorrer. Por meio das significações
construídas observamos que na prisão as aprendizagens que se constrói estão ligadas a
dinâmica relacional da população carcerária, nelas, se estabele as regras para convivência,
bem como a punição para as transgressões entre os pares, além de propagação de ações
ligadas a criminalidade. Através das experiências compartilhadas abrimos espaço para a
sensibilização do leitor que em contato com o narrado poderá refletir sobre a população
carcerária para além do contexto penitenciário.
Dissertando, pude viver e reviver minha própria história que agora emerge em outras
histórias e se tornou para mim própria fonte de aprendizado e emancipação pessoal,
profissional e social. Portanto, vamos aos sentidos dados pelo campo legal sobre o assunto,
pelos teóricos, o que disseram anteriormente a respeito, às vidas historiadas dos participantes
e agora a composição de sentidos e significados feita por você, caro leitor!
34

1 O SISTEMA PENITENCIÁRIO

A escola do mundo ao avesso é a mais democrática das instituições educativas. Não requer exame de admissão,
não cobra matrícula e dita seus cursos, gratuitamente, a todos e em todas as partes, assim na terra como no
céu: não é por nada que é filha do sistema que, pela primeira vez na história da humanidade, conquistou o
poder universal.

Eduardo Galeano

Dialogar sobre o sistema penitenciário e seus emaranhados como superlotação dentro


das prisões, perpetuação da criminalidade, violação dos direitos humanos, dentre outros, é
falar de suas contradições. Se a educação tem o objetivo de emancipar o ser humano para o
exercício da cidadania, respeito, políticas públicas, o objetivo do sistema penitenciário é
(re)socializar, apesar de suas facetas fugirem deste princípio, tendo como resultado a
estigmatização e segregação sociais das pessoas privadas de liberdade.
Para tentar compreender esse sistema, contextualizaremos essa atmosfera
penitenciária de (re)socialização, utilizaremos a legislação, consultas a periódicos,
levantamentos estatísticos sobre a população prisional, artigos de revistas especializadas no
assunto, teóricos apresentados na bibliografia dentre outros.
De maneira geral o Estado possui a missão de pacificar os conflitos, assegurando a
estabilidade das relações sociais de forma harmoniosa, sem ferir os direitos individuais. O
intuito é equilibrar a aplicação da pena (com a demanda da sociedade de fazer justiça) à
pessoa que cometeu o delito e ela receber o tratamento apropriado à sua (re)socialização.
Do aspecto histórico que legitima o sistema penitenciário, encontramos referência no
Código Penal Brasileiro criado em 1940, que vem se atualizando ao longo dos anos enquanto
legislação penal. Em 1957 foi criada a Lei n.º 3.274, em 02 de outubro, dispondo sobre o
regime penitenciário. Com ela declarou-se a necessidade de se garantir a individualização das
penas, a classificação dos custodiados, sua separação entre provisórios e condenados, a
concessão do trabalho e a percepção do salário, a educação moral, intelectual, física e
profissional dos sentenciados, a assistência social aos condenados, aos egressos, às suas
famílias e às famílias das vítimas. (DOTTI, 1985, p. 71)
A Lei nº 7.209, de 11 de julho de 1984, que complementou o Código Penal
Brasileiro, manteve a pena privativa de liberdade, nas modalidades reclusão e detenção, como
também trouxe algumas modificações, tais como: o repúdio à pena de morte, novas penas
patrimoniais, a extinção das penas acessórias e a revisão das medidas de segurança.
35

No mesmo ano foi promulgada a Lei de Execução Penal (LEP) n.º 7.210, de 11 de
julho, trazendo avanços no que diz respeito ao tratamento dado à pessoa privada de liberdade
e prevê:

Art. 1º A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou


decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do
condenado e do internado.”; (...) Art. 10. A assistência ao preso e ao internado é
dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em
sociedade; Art. 11. Prevê aos encarcerados assistência: I - material; II - à saúde; III -
jurídica; IV - educacional; V - social; VI - religiosa.

Assim sendo, o sistema penitenciário tem o objetivo de custodiar as pessoas em


conflito com a lei, resguardando sua integridade física, psicológica, emocional, moral, com
vistas à harmonização social.
A educação e o trabalho tanto na sociedade como na unidade penal visa a
“concepção de tratamento penitenciário, cujo objetivo, pelo menos no discurso, é o de
reinserção social dos apenados, sendo reconhecida como política de (re)socialização e
tratamento penitenciário na execução penal” (JULIÃO, 2016, p. 37).
Entretanto, dentro desse próprio sistema, o que pode ocorrer é justamente o contrário,
pois o custodiado, devido à própria situação de privação da liberdade e o contexto em que se
encontra, poderá provocar adoecimento físico e emocional; fragilização de vínculos diversos,
familiar, comunitário, social; aprendizagens diversas relacionadas a transgressões da lei etc. A
sujeição da normatização, disciplina e outras formas de controle que o sistema propaga,
poderá alimentar a banalização da violência e criminalidade, situação que foge totalmente do
objetivo do sistema, que é a recuperação desse sujeito em conflito com a lei e, portanto,
contribuindo ao verdadeiro caos social. Ressaltando que esse mesmo sujeito terá a
possibilidade de retornar ao convivo da sociedade, de uma maneira mais fragilizada
emocionalmente, socialmente, às vezes fisicamente, financeiramente, do que do adentrou
anteriormente ao sistema.
Compreender, as contradições da prisão é tarefa das sociedade de maneira geral, das
ciências, seja do Direito, da Psicologia, Sociologia, Educação, Filosofia, à Criminologia, entre
outras, seja interpretar cientificamente o fenômeno da violência, advertindo como elas
constroem a realidade do crime.
A Organização Mundial da Saúde (OMS, 2014) define a violência como o uso de
força física ou poder, em ameaça ou na prática, contra si próprio, outra pessoa ou contra um
grupo ou comunidade que resulte ou possa resultar em sofrimento, morte, dano psicológico,
desenvolvimento prejudicado ou privação. Quando o assunto é o criminoso, que pratica essa
36

violência, a legislação dada pela justiça penal, mencionada anteriormente, tem a tendência de
responsabilizá-lo por seus atos, descontextualizando-o de suas influências sociais.
Referente ao assunto, Willem Schinkel (2010) aborda os paradoxos envolvidos no uso
do termo “violência” nas ciências sociais, como se segue:

A violência rompe com a ordem social ou a violência é constitutiva da ordem


social? A violência é um problema social ou a violência é uma solução
padronizada para os problemas sociais? A violência é uma forma puramente
destrutiva da socialidade ou a violência é uma forma positiva de socialidade que
faz as pessoas se unirem? Violência é uma forma de lidar com a contingência
ou a violência é uma forma importante e fonte de contingência? Violência rompe
com as normas ou a violência reforça as normas? Violência é uma situação
visível ou a violência é um processo oculto? A violência do Estado é reativa em
relação à violência ilegítima ou a violência do Estado é ativa em distinguir
violência legítima e ilegítima? Violência é um processo social significativo, cujo
sentido é posto em um referente externo ou a violência é um processo social
caracterizado, exclusivamente, pela autorreferência? A violência repele ou a
violência atrai? A violência é um meio para um fim ou é um fim em si mesmo?
(SCHINKEL, 2010, p. 15)

A criminalização da violência será abordada no decorrer deste estudo a partir de


diferentes pontos de vistas. A começar pela vertente da “criminologia”, ciência que estuda os
crimes, que faz referência à sua prevalência as condições sociais na influência do ato
individual criminoso. Esta linha de pensamento elenca a estrutura social com suas
desigualdades socioeconômicas, o sentido das interações intersubjetivas experienciadas, o
funcionamento do próprio sistema de justiça penal, refletido no exercício do sistema punitivo,
como veremos:

Denomina-se esse paradigma de reação social6 por se considerar que a realidade


seja construída mediante as relações sociais concretas, as interações entre indivíduos
e os determinismos socioeconômicos. Dessa forma, a criminalidade e o indivíduo
criminoso são construídos. A criminalidade não se explica pelo estudo das condutas
criminais, mas sim, pelo questionamento do sistema de controle social punitivo, que
determina o que é criminalidade (DEPEN, 2007, p. 58, grifos da autora).

Sobre essa última perspectiva que se desenrolara este estudo, uma vez que investiga
por meio das experiências da pessoa privada de liberdade aspectos de sua formação, que será
caracterizada por aqui e construída de forma relacional. Mas antes, seguiremos descrevendo
as circunstâncias que norteiam o tratamento da pessoa que cometeu delito do ponto de vista
legalista. A intenção é situar o leitor sobre que ponto de vista está sendo realizado essa
investigação, já que o tema “bandido”, no que diz respeito à origem causal, se entende

6
São representantes desse paradigma a teoria sociológica do Labelling Approach e outras teorias criminológicas
críticas.
37

historicamente a complexidade de compreensão, devido à gama de aspectos envolvidos,


dividindo a opinião da sociedade e o próprio sistema jurídico.
Do ponto de vista jurídico, a própria psicologia contribuiu historicamente para a
estigmatização da pessoa privada de liberdade ao tratar os problemas de delinquência como
fruto de alterações intrapsíquicos e de personalidade, no intuito de estabelecer a
“individualização” de seu tratamento no âmbito prisional, identificando inclusive seu grau de
periculosidade. Preconizado pela LEP no que se refere ao trabalho do psicólogo, que diz:

Capítulo I: Da classificação. Art. 5º. Os condenados serão classificados segundo os


seus antecedentes e personalidade, para orientar a individualização da execução
penal. Art. 6º. A classificação será feita por comissão técnica de classificação que
elaborará o programa individualizador e acompanhará a execução das penas
privativas de liberdade e restritivas de direitos, devendo propor, à autoridade
competente, as progressões e regressões dos regimes, bem como as conversões. Art.
7º. A comissão técnica de classificação existente em cada estabelecimento será
presidida pelo diretor e composta no mínimo por dois chefes de serviço, um
psiquiatra, um psicólogo e um assistente social, quando se tratar de condenado à
pena privativa de liberdade. Parágrafo único. Nos demais casos, a comissão atuará
junto ao Juízo da Execução, e será integrada por fiscais do serviço social. Art. 8º. O
condenado ao cumprimento de pena privativa de liberdade, em regime fechado, será
submetido a exame criminológico para obtenção dos elementos necessários a uma
adequada classificação e com vistas à individualização da execução. (LEP, 1984).

Na prática, a Comissão Técnica de Classificação (CTC) praticamente não funciona,


pela ausência de profissionais como psiquiatra principalmente; assim, o relatório psicológico
emitido pelo profissional de psicologia continua sendo utilizado para respaldar ações do
sistema jurídico e equipe dirigente, aqui tratada por todos os profissionais referenciados no
âmbito penitenciário.
De qualquer maneira, o psicólogo, segundo as “Diretrizes para atuação e formação
dos psicólogos do sistema prisional brasileiro”, lançado em 2007, pelo Ministério da Justiça –
Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) e o Conselho Federal de Psicologia, possui
em sua trajetória da atuação no sistema prisional pautado no interesse:

(...) das autoridades aspectos históricos e circunstanciais do criminoso, o que


possibilitava ao sistema jurídico-penal julgar não só o crime mas também o
comportamento e as condições de subjetividade do delinquente, apoiado pelo
conhecimento psicológico. [Nesse sentido] (...) ao analisar a participação da
Psicologia na fundamentação e operacionalização dos mecanismos institucionais da
prisão, é possível afirmar que essa ciência, no decorrer da História, como ciência e
profissão, vem exercendo função relevante e estruturante no processo prisional,
relacionada à manutenção das relações de poder e dominação, na medida em que
fundamenta mecanismos de controle, nomeia e classifica sujeitos. (DEPEN, 2007, p.
18-19)
38

Desse modo, o relatores deste manual informaram sobre o psicólogo, buscar “dados
que revelam a inteligência e a memória dos detentos, seus sentimentos de crueldade,
ferocidade, vaidade, covardia, sua insensibilidade moral e ausência de remorso”. Focando
também na investigação das relações da pessoa privada de liberdade com os familiares, a
religião, seus vícios, seu comportamento sexual, procuraram evidencias sobre a possibilidade
de regeneração (DEPEN, 2007, p. 28).
A prática vai desde atendimentos psicoterapêuticos à realização de avaliações, como
elaborar laudos e/ou pareceres psicológicos para integrar o exame criminológico,
considerando a particularidade de cada profissional e as condições de trabalho. Segundo
essas mesmas diretrizes anteriormente citadas, “apesar das diferenças regionais, a presença
dos psicólogos nas prisões tem sido marcada por muitas lutas e confrontos diários, diante da
cultura prisional imposta, e por questionamentos sobre a prática pericial do exame
criminológico” (Idem. Ibidem. p.38).
O exame criminológico, que avalia o grau de periculosidade do sentenciado, é o
requisito para progressões de regime, conversões de pena, livramentos condicionais, indultos
e transferências da pessoa privada de liberdade, sendo ainda um desafio para educação e
formação deste profissional no âmbito da política penitenciária, aponta o orientativo.
De qualquer maneira, a realização do exame criminológico remete a(o) profissional à
prática de estigmatizar a pessoa privada de liberdade, conforme explica:

(...) se o problema localiza-se exclusivamente no indivíduo, torna-se possível


demarcar o normal e o patológico, o indivíduo criminoso (o perigoso) e o não
criminoso (não perigoso), enfim, estabelecer um pensamento bipolar para análise da
realidade social e de seus problemas. Além do mais, o conhecimento científico
produzido a respeito do indivíduo delinquente adquire status de verdade, que passa a
representar esse indivíduo como um todo; em consequência, lhe é atribuída uma
marca social, portanto, um estigma, que o acompanhará mesmo que não realize mais
atos criminosos (DEPEN, 2007, p. 57).

O exame já foi obrigatório e atualmente é facultativo seu uso pelos operadores do


Direito, segundo a Lei n.º 10.792 de 2003, que alterou alguns artigos da LEP, dentre os quais
o que se refere à prática do exame criminológico -Art. 112, estipulado no art. 96, § 2º da
mesma legislação, que “dispõe sobre a viabilidade de produção de prova, inclusive pericial,
nos procedimentos relativos à execução da pena”.
De maneira geral, o orientativo informa que no ano de 2001 já ouve estudos nesta
área trazendo críticos apontamentos sobre a atuação da psicologia no que diz respeito à
estigmatização da pessoa privada de liberdade. Trabalhos desenvolvidos pelas psicólogas
39

Cristina Rauter (2003) e Fernanda Otoni (2001), bem como a psiquiatra Tania Kolker (2001)
e outros, traziam contribuições sobre a temática e problematizam as controvertidas práticas
deste profissional na prisão, uma vez:

que o cativeiro não pode ensinar a ser livre e incita reações contrárias ao poder que
oprime, segrega e deixa marcas indeléveis da perversidade da instituição em si,
provando que a prisão não é o laboratório da construção da cidadania, da
transformação e da inclusão social. Muito pelo contrário, é o espaço da humilhação,
da segregação e da exclusão social, da produção de novos criminosos. (DEPEN,
2007, p. 41)

Posicionamentos críticos como este foram ganhando proporções, debates, tomando


formas de encontro, seminários, quando foi homologada pelo CFP a Resolução n° 09/2010,
que regulamenta a atuação da(o) psicóloga(o) no âmbito do sistema prisional e já considera
em sua redação “as questões relativas ao encarceramento, que devem ser compreendidas em
sua complexidade e como um processo que promove a marginalização e a exclusão social”
(CFP, 2010). Enfatiza ainda que a população em privação de liberdade ou em medida de
segurança, a(o) psicóloga(o) deverá: a) compreender os sujeitos na sua totalidade histórica,
social, cultural, humana e emocional; b) promover práticas que potencializem a vida em
liberdade, de modo a construir e fortalecer dispositivos que estimulem a autonomia e a
expressão da individualidade dos envolvidos no atendimento dentre outros.
Nessa transição, da culpabilidade do delinquente para a contribuição do contexto
social para a delinquência, no caso, do sistema penitenciário no qual tratamos neste estudo,
abordaremos a sociedade dos cativos em suas complexidades, contradições, problematizações
e desafios num movimento que teoricamente busca a harmonização e socialização de seus
membros. Assentindo a Montesquieu (1689-1755), “a injustiça que se faz a um é a ameaça
que se faz a todos”, ou seja, não dá para pensar uma sociedade harmoniosa sem olhar a seus
excluídos, o singular reflete no plural e vice e versa.
Excluído,banido, barrado, escorraçado, expulso, isolado, rechaçado, recu-
sado, repelido, abandonado e tantos outros adjetivos são dedicados àquele que não soube
conviver em sociedade, de forma respeitosa, harmoniosa, íntegra, digna e conveniente. No
sentido de quem se define se limita, fazemos alguns apontamentos: tais adjetivos foram
qualificados por quem? Sobre que ponto de vista? Daí a importância que este trabalho tem de
trazer as descrições anteriores, que permeiam as experiências narradas de vida e formação no
contexto penitenciário e escolha da metodologia, que no capitulo 4 iremos abordar sobre o
ponto de vista dos próprios privados de liberdade que contribuíram com essa investigação,
pois, ninguém pode dar sentido à vida, do que o próprio que desfruta dela (FRANKL, 1990).
40

No entanto, como qualquer investigação cientifica, elegemos para além do campo


legal e outros estudos, as contribuições do sociólogo Erving Goffmam (1922-1982) ao
diálogo da temática: prisão (contexto penitenciário) e população com restrição e privada de
liberdade; aqui tratada como sinônimos (restrição/presos provisórios aguardando julgamento/
privação/ presos sentenciados, cumprindo pena).
Na sua obra “Manicômios, prisões e conventos”, Goffman (1974. p.11), define
“prisões” como “instituições totais” e as descreve como locais “de residência e de trabalho
onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais
ampla por um período considerável de tempo, que levam uma vida fechada e formalmente
administrada”.
As instituições totais produzem mudanças na pessoa privada de liberdade, através de
suas regras e vigilância, no sentido de que seu “eu civil”, a identidade que o referenciava
socialmente, passe por mortificações dentro da instituição. Os internados nessas instituições
podem complementar por si mesmos essas mortificações impostas pela equipe dirigente com
o tempo, por meio de restrições auto impostas (jejuns, penitências diversas), autoflagelação,
nesses casos, em destaque quando a religião se faz presente, em que o caminho para Deus é
considerado o da ascese. Nesse caso, “os efeitos psicológicos destrutivos do internamento
pode converter rejeição social em auto rejeição” (GOFMANN, 1974, p. 57).
Doravante, as diversas formas de mortificações do eu que acontecem ainda, na
perspectiva da produção de sujeitos pacificados, estigmatizados, apresentando baixa
autoestima e perspectiva de vida, adoecimentos, uma verdadeira ceifa de sua autonomia. Essa
transição da mortificação, ele chamou de “processo de despersonalização”, uma vez que o
interno:

Já no seu ingresso, começa a ser despido de referenciais identificatórios e a passar


por uma série de rebaixamentos, degradações, humilhações e profanações do
conceito que tinha de si mesmo. Sua “carreira moral” vai passar por mudanças
radicais e progressivas, suas crenças a respeito de si mesmo e sobre as pessoas
significativas para ele são questionadas, entram em crise e começam a desmoronar.
(GOFFMAN, 1974, p. 24)

A forma como a equipe dirigente/agente penitenciário de agir com o custodiado no


cotidiano em seus diversos contextos e demandas, são caracterizados por comportamentos:
manter a cabeça baixa quando andar fora da celas; raspar os cabelos; utilizar uniformes;
manter os braços para trás; mãos entrelaçadas quando não algemadas; correntes nos
41

tornozelos (marca-passo); manter o olhar fixo nos próprios pés e ouvidos atentos aos
comandos constituem esse cenário.
Para o autor, o controle minucioso é extremamente limitador no contexto prisional,
cuja vida do internado, ou seja, da pessoa privada de liberdade, é constantemente vigiada,
sobretudo no período inicial de sua estada, antes de acostumar-se e submeter-se aos
regulamentos da instituição.
Ora, se a população privada de liberdade, são pessoas acusadas de terem cometido
algum crime contra a sociedade, o recém-chegado, embora não tenha praticado esse delito,
pode chegar a compartilhar os sentimentos de culpa de seus pares, bem como suas complexas
defesas contra tais sentimentos. Inclina-se a desenvolver o sentido de injustiça e amargura
contra a sociedade, o que “assinala um movimento importante na carreira moral do internado”
(p. 56), como exemplifica Goffman:

Por seu raciocínio, depois de um delinquente ter sido submetido a castigo injusto ou
excessivo, bem como a tratamento mais degradante do que o prescrito pela lei, passa
a justificar o seu ato - o que não podia fazer quando o cometeu. Decide "descontar"
o tratamento injusto na prisão, e a vingar-se, na primeira oportunidade, através de
outros crimes. Com essa decisão, torna-se um criminoso. (GOFFMAN, 1974, p. 56).

O autor descreve uma situação típica do contexto penitenciário, de que a violência


gera violência de alguma maneira, desestrutura e torna falaciosa as ações de tratamento
adotadas pelo campo legal a população privada de liberdade. Evidencia que nem sempre
trancar, isolar, excluir é proteger, podendo essas alternativa se tornarem combustível para
marginalização e criminalização em massa.
Tais atitudes podem se manifestar na chegada da pessoa privada de liberdade, na
unidade penitenciária, até as regras de comunicação com a equipe de segurança, de saúde,
com o atendimento do advogado; regras para receber visita de familiares e mantimentos; a
seleção dos custodiados alunos e para atividade laboral; normas para participar de audiência,
saída para banho de sol e atendimento psicológico, social, dentre outros, até procedimentos e
ações relacionados à indisciplina e infrações durante o encarceramento dentre outros.
Por outro lado, o controle não existe apenas por parte da equipe dirigente, as relações
de poder também chegam no ambiente de convívio da pessoa privada de liberdade, de detento
com outro detento, situação essa que ocorre paralelamente e distante dessa equipe, porque diz
respeito a outras relações de poder. Perante a equipe dirigente todos estão em condições de
subalternidade, o que não ocorre diante da população privada de liberdade, aquele que foi
42

detido pelo furto de celular tem tratamento diferente no interior do estabelecimento penal,
entre seus pares, daquele que assaltou um banco.
Em nome da disciplinarização, cada especificação normativa de conduta priva o
custodiado, de ser ele mesmo, de expressar sua subjetividade, necessidades e objetivos,
estimulando o sentimento de repressão a sua autonomia segundo o teórico, estigmatizando sua
identidade, o colocando num patamar subalterno perante o outro, um lugar de inferioridade,
como mesmo refere-se ao “estigma”:

“Enquanto o estranho está à nossa frente, podem surgir evidências de que ele tem
um atributo que o torna diferente de outros que se encontram numa categoria em que
pudesse ser incluído, sendo, até, de uma espécie menos desejável [...]. Assim
deixamos de considerá-la criatura comum e total, reduzindo-a a uma pessoa
estragada e diminuída. Tal característica é estigma, especialmente quando o seu
efeito de descrédito é muito grande (...)”. (GOFFMAN, 1988, p. 12)

As consequências da estigmatização, modifica a identidade pessoa, a ponto que ela


apresente comportamentos de isolamento, desconfiança, hostilidade, desenvolva transtorno
como depressão e ansiedade, seja uma pessoa confusa como bem retrata o autor:

"Ter consciência da inferioridade significa que a pessoa não pode afastar do


pensamento a formulação de uma espécie de sentimento crônico do pior tipo de
insegurança que conduz à ansiedade (...) O medo de que os outros possam
desrespeitá-la por algo que ela exiba significa que ela sempre se sente insegura em
seu contato com os outros; essa insegurança surge, não de fontes misteriosas e um
tanto desconhecidas como uma grande parte de nossas ansiedades, mas de algo que
ela não pode determinar. Isso representa uma deficiência quase fatal do sistema do
"eu" na medida em que este não consegue disfarçar ou afastar uma formulação
definida que diz 'Eu sou inferior, portanto as pessoas não gostarão de mim e eu não
poderei sentir-me seguro com elas'. (GOFFMAN, 1988, p. 14-15.)

O indivíduo estigmatizado pode descobrir que se sente inseguro em relação à maneira


como a sociedade o receberá e reconhecerá:

"E eu sempre sinto isso em relação a pessoas direitas: embora elas sejam boas e
gentis, para mim, realmente, no íntimo, o tempo todo, estão apenas me vendo como
um criminoso e nada mais. Agora é muito tarde para que eu seja diferente do que
sou, mas ainda sinto isso profundamente: que esse é o seu único modo de se
aproximar de mim e que eles são absolutamente incapazes de me aceitar como
qualquer outra coisa” (GOFFMAM, 1988, p. 15).

Além disso, destaca outros aspectos do mundo cultural específico do internado numa
instituição total: autopiedade, noção do tempo, valor das distrações. Devido sua posição social
inferiorizada comparada à que ocupava no mundo exterior, cria nele uma sensação constante
de fracasso pessoal e de desgraça. Assim o autor vai descrevendo as consequências de
43

processo de encarceramento, que deixa indiscutivelmente marcas abusivas na subjetividade e


identidade do que ali tiveram moradia.
Existe também uma forte sensação de que o tempo de encarceramento é inútil,
perdido, roubado de sua vida, tempo que precisa ser apagado, cumprido, preenchido ou
arrastado de algum modo. Daí advém o significativo valor das atividades de distração nesses
estabelecimentos, sejam individuais ou coletivas: jogos ao ar livre, coral, teatro, aulas, ateliês
de arte, trabalhos manuais, televisão, filmes, jogos de cartas, homossexualidade, álcool que
eles mesmos fabricam, drogas que possibilitam “viagens”. Essas e outras atividades de
entretenimento ajudam o indivíduo a relaxar, aliviando um pouco a tensão produzida pelos
ataques constantes à sua pessoa. (GOFFMAN, 1974)
Nas dificuldades do processo de reinserção social Goffman (1974, p.66-69) analisa
alguns problemas típicos durante o processo de reinserção do internado na vida civil,
referindo-se ao retorno do internado à sociedade, ter a possibilidade de ser marcado pelo
mesmo estigma, angústia e a desaculturação.
Apesar da recuperação da liberdade, motivar o interno quando em liberdade, diante
das possibilidades, escolhas, decisões e prazeres que o status civil normal e cotidiano poderá
trazer. Do mesmo modo, a pessoa privada de liberdade tende a se esquecer da dureza da vida
de privações no estabelecimento penal e logo começa a aceitar novamente como indiscutíveis
seus direitos e privilégios, em torno dos quais organizava sua vida no ambiente institucional.
Os sentimentos de amargura, injustiça e alienação também costumam diminuir após
a libertação. O indivíduo percebe que a instituição total pela qual passou, deixou marcas
indeléveis em sua vida. Quando ingressou no estabelecimento, seu status intramuros tornou-se
radicalmente distinto do que era fora e se, e quando, sair, ele compreende que sua posição no
mundo externo nunca mais será igual à anterior ao ingresso. (GOFFMAM, 1974).
Assim, ex-cativo pode descobrir que ser livre significa passar do topo de um pequeno
mundo, já familiar, para o ponto mais baixo de uma sociedade ampla, provavelmente fria,
indiferente e hostil. Mais uma vez se destaca a relevância de trazer esse tema “prisão e pessoa
privada de liberdade” para discussão, como pauta de referência em política pública,
pedagógica, de saúde frente a prevenção da criminalidade.
Esse conceito é importante nesse estudo, por que demarca muitas dos temas aqui
relacionados e debatidos envolvendo o contexto espinhoso, polêmico e complexo,
considerado o prisional, pois não é nada agradável falar do lado excluído da nossa sociedade e
44

do próprio ser humano de maneira geral, que erra, que machuca, que manipula, que destrói,
que faz sofrer.
Por outro lado, esse mesmo ser humano, não só o privado de liberdade, tem o poder de
reorganizar suas mazelas e emaranhados, ressignificar sua história e dar novo sentido a ela, a
medida que essa violência não venha ao encontro. A partir da reflexão de suas escolhas e
experiências, bordando em um novo processo de sua formação enquanto pessoa no mundo,
como afirma Dominicé (1988, p. 138), “a formação de um adulto não pertence a ninguém se
não a ele próprio”.
Comprometido com esse movimento, o Ministério da Justiça, através do DEPEN
(2007), ressalta que:

diante dos antagonismos da prisão, não é possível recuperar e punir ao mesmo


tempo; segregar o sujeito isolando-o, principalmente quando ele não representa uma
ameaça em potencial para a sociedade, é, na prática, uma forma de vingança
institucionalizada, velada, disfarçada, que não insere o sujeito no contexto social,
que não repara a vítima, muito menos a sociedade, que passa a ser ainda um custo
sem benefício para o Estado e, certamente, com maiores danos e prejuízos para o
egresso do sistema prisional, haja vista as taxas de reincidência [...]. (DEPEN, 2007,
p. 123)

Portanto, o sistema penitenciário, ou de justiça criminal/penal, que trata da aplicação


das lei do delito e aplicação da pena respectivamente, está longe de ser um padrão valorativo
para a busca de dignidade e cidadania, direitos e deveres, compromissos importantes para que
as normas de convivência sejam mais civilizadas na arquitetura urbana, onde o mapa da
violência é mais intenso e reflete, significativamente, as adversidades do mundo
contemporâneo, segundo mesmo relatório.
Em contrapartida, a pessoa privada de liberdade é um educando, que não deixa de
aprender independente do contexto que se encontra, um ser inacabado, em construção,
contudo com a autonomia empobrecida tendo em vista os quesitos acima elencados. Já dizia
Paulo Freire, “somos seres inacabados, por isso aprendemos o resto da vida como próprio
afirmava, me experimento enquanto ser cultural, histórico, inacabado e consciente do
inacabamento” (FREIRE 1999, p. 22). Um educando que ali se encontra de forma provisória,
cuja liberdade e retorno a sociedade, será uma questão de tempo.
Assim, a educação escolar no contexto penitenciário é um mecanismo primordial no
processo de (re)socialização da pessoa privada de liberdade, em que novas perspectivas de
vida se abrem, diminuindo dos danos da criminalidade e violência, estes destroem vidas.
45

Através da formação educativa proporcionada pela escola, estas pessoas podem dar um novo
significado para à suas vidas, a começar pela ampliação do mercado de trabalho.
A LEP no Brasil preconiza esse caminho, por meio da assistência educacional,
contudo a sala de aula chega apenas para uma restrita parcela de apenados em que a própria
educação formal é comprometida por uma série de fatores como: vigilância constante devido
a possibilidade de motins e rebeliões; dificuldade de relacionamento interpessoal entre os
alunos privados de liberdade; presença de facções na unidade e suas relações de poder etc.
A pessoa privada de liberdade, quando em situação de usufruir dessa liberdade
novamente, continua muitas vezes multiplicando os emaranhados da prisão, pois ele saiu da
prisão, mas a prisão não saiu dele, dando espaço para a reincidência e alimentando o ciclo da
violência e criminalidade novamente.
Nesse sentido, a problemática dessa pesquisa se contextualizará na educação não
escolar do sistema penitenciário, cuja formação da pessoa privada de liberdade nesse
contexto, perpassa mais pela informalidade do que percorre a educação escolar ou formal, a
estigmatização, exclusão social e outras mazelas relacionadas a criminalidade do que uma
(re)socialização pautadas nos direitos humanos e cidadania. Sendo assim, analisar e pesquisar
sobre esta temática possibilita uma reflexão sobre quais mecanismos estão envolvidos nas
aprendizagens não escolares e como elas têm interferido na reincidência da pessoa privada de
liberdade.

1.1 APONTAMENTOS SOBRE A EDUCAÇÃO ESCOLAR (FORMAL) E NÃO


ESCOLAR (INFORMAL) NA PRISÃO

A educação não transforma o mundo.


A educação muda pessoas. Pessoas transformam o mundo.

Paulo Freire

Contextualizado os aspectos relacionados à educação para (re)socialização no


contexto penitenciário, sob a perspectiva de Paulo Freire (1987, 1999), seguiremos elucidando
a educação escolar/formal e não escolar/informal. Para entendermos o campo da educação na
prisão, nos apoiaremos na Declaração de Hamburgo sobre Educação de Adultos, da V
Conferência Internacional sobre Educação de Adultos (CONFINTEA), UNESCO (1997, p.
42), que declara:

A educação de adultos engloba todo o processo de aprendizagem, formal ou


informal, onde pessoas consideradas "adultas" pela sociedade desenvolvem suas
46

habilidades, enriquecem seu conhecimento e aperfeiçoam suas qualificações técnicas


e profissionais, direcionando-as para a satisfação de suas necessidades e as de sua
sociedade. A educação de adultos inclui a educação formal, a educação não formal e
o espectro da aprendizagem informal e incidental disponível numa sociedade
multicultural, onde os estudos baseados na teoria e na prática devem ser
reconhecidos.

Neste sentido, a conferência discute a amplitude complexidade ligadas ao tema da


educação e aprendizagem no contexto penitenciário. Pressupondo-a, como um conjunto de
ações e influências exercidas voluntariamente por um ser humano em outro, visando alcançar
um determinado propósito no indivíduo para que ele possa desempenhar alguma função nos
contextos sociais, econômicos, culturais e políticos de uma sociedade.
A escola é o ambiente fundamental para se ofertar e adquirir cidadania, por possuir
uma importância cívica fundamental permite-se ali dar os primeiros passos rumo a uma
sociedade justa e igualitária. É no ambiente escolar que são apresentados horizontes e
perspectivas aos indivíduos, pontos de vistas que os acompanharão por toda sua vida e que
possivelmente serão repassados, como valores, às próximas gerações, tão prejudicados nesse
grupo vulnerável, em que muitos que para chegar em situação de encarceramento, receberam
uma formação educativa frágil e/ou insuficiente.
Entendemos que educação formal diz respeito a formação educativa recebida pela
pessoa privada de liberdade na prisão, guiada pelos currículos, legislações, políticas públicas,
relacionadas a educação de jovens adultos.
Sobre o tema, no Brasil, há normatizações a respeito da educação prisional prescrita na
Constituição Federal de 1988, em seguida ampliada na Lei de Execução Penal de 1984, que
estabelece:

ART 17 – A assistência educacional compreenderá a instrução escolar e a formação


profissional do preso e do internado.
ART 18 – O ensino de 1º grau será obrigatório, integrando-se no sistema escolar da
Unidade Federativa.
ART 19 – O ensino Profissional será ministrado em nível de iniciação ou de
aperfeiçoamento técnico.
ART 20 – As atividades educacionais podem ser objeto de convênio com entidades
públicas ou particulares que instalem escolas ou ofereçam cursos especializados
(BRASIL, 1984/ 2015).

Essas atividades foram contempladas e regulamentadas em âmbito nacional pela Lei nº


9.394 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), (BRASIL, 1996), SEÇÃO V,
Da Educação de Jovens e Adultos (Art. 37.) “A educação de jovens e adultos será destinada
47

àqueles que não tiveram acesso ou continuidade de estudos no ensino fundamental e médio na
idade própria.” Destacando:

§ 1o Os sistemas de ensino assegurarão gratuitamente aos jovens e aos adultos, que


não puderam efetuar os estudos na idade regular, oportunidades educacionais
apropriadas, consideradas as características do alunado, seus interesses, condições
de vida e de trabalho, mediante cursos e exames. (BRASIL, 1996/2005 p. 19).

Nessa mesma direção, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária


(CNPCP) e Conselho Nacional de Educação (CNE) publicaram a Resolução nº 02, (BRASIL,
2010) que dispõe sobre as Diretrizes Nacionais para a oferta de educação para jovens e
adultos em situação de privação de liberdade nos estabelecimentos penais. Assim, destaca
Julião (2016), ficam garantidas que as ações de educação em contexto de privação de
liberdade devem estar calcadas na legislação educacional vigente no país, na Lei de Execução
Penal, nos tratados internacionais firmados pelo Brasil no âmbito das políticas de direitos
humanos e privação de liberdade, devendo atender às especificidades dos diferentes níveis e
modalidades de educação e ensino e são extensivas aos presos provisórios, condenados,
egressos do sistema prisional e àqueles que cumprem medidas de segurança (Art. 2º da CNE
nº 2, BRASIL, 2010).
Foram aprovadas também a Lei n° 12.433/2011 (BRASIL, 2011), que Dispõe sobre a
Remissão de parte do tempo de execução da pena por estudo ou por trabalho, prevendo da
nova redação ao artigo da LEP:

Art. 126. O condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto poderá
remir, por trabalho ou por estudo, parte do tempo de execução da pena. § 1º A
contagem de tempo referida no caput será feita à razão de: I - 1 (um) dia de pena a
cada 12 (doze) horas de frequência escolar - atividade de ensino fundamental,
médio, inclusive profissionalizante, ou superior, ou ainda de requalificação
profissional - divididas, no mínimo, em 3 (três) dias.

Sobre a remissão, de maneira geral, que pode ser verificado junto as narrativas dos
participantes e será tratado adiante, existe uma grande parcela de pessoas privadas de
liberdade que buscam a sala de aula como intuito apenas de remissão da pena, perdendo o
sentido desse conhecimento como emancipatório e libertador.
No ano de 2011, foi publicada também as Diretrizes básicas para arquitetura
prisional pela Resolução CNPCP nº 09/2011 (BRASIL, 2011) que determina previsão de
módulos educativos, laborais, de esporte e de lazer na construção de novas unidades penais.
No campo legal, a aprovação dessas Diretrizes Nacionais para oferta de educação para
jovens e adultos em situação de privação de liberdade nos estabelecimentos penais, foi
48

reconhecida pelos países integrantes da Rede Latino Americana de Educação em Contexto de


Encarceramento (REDLECE) como um documento inovador a ser seguido, como concepção,
pelos países membros (JULIÃO, 2016).
A nível regional, no ano de 2011 foi aprovado o Decreto Presidencial nº 7.626, que
institui o Plano Estratégico de Educação no âmbito do Sistema Prisional com a finalidade de
ampliar e qualificar a oferta de educação nos estabelecimentos penais, destacando em seus
objetivos (Art. 4º):

(I) executar ações conjuntas e troca de informações entre órgãos federais, estaduais e
do Distrito Federal com atribuições nas áreas de educação e de execução penal. (I)
executar ações conjuntas e troca de informações entre órgãos federais, estaduais e do
Distrito Federal com atribuições nas áreas de educação e de execução penal; (II)
incentivar a elaboração de planos estaduais de educação para o sistema prisional,
abrangendo metas e estratégias de formação educacional da população carcerária e
dos profissionais envolvidos em sua implementação; (III) contribuir para a
universalização da alfabetização e para a ampliação da oferta da educação no
sistema prisional; (IV) fortalecer a integração da educação profissional e tecnológica
com a educação de jovens e adultos no sistema prisional.

Em Mato Grosso, a Educação de Jovens Adultos (EJA) no âmbito penal é


regulamentada pela Resolução nº 002/2012 do Conselho Estadual de Educação (CEE) que
dispõe sobre as Normas para a oferta no Sistema Estadual de Ensino, da educação para
pessoas privadas de liberdade, e normatizada pelo Termo de Cooperação Técnica no ano de
2014, firmado entre Secretaria Estadual de Educação (SES) e Secretaria de Justiça e Direitos
Humanos (SEJUDH), o Plano Estadual de Educação no Sistema Prisional de Mato Grosso.
As políticas são administradas pela Escola Estadual Nova Chance, que regula a educação
formal curricular no Estado de Mato Grosso.
Esta escola está vinculada a Fundação Nova Chance (FUNAC) como é popularmente
conhecida, uma instituição do Governo do Estado de Mato Grosso vinculada à Secretaria de
Justiça e Direitos Humanos, cujo objetivo é a reinserção social de pessoas que estão em
privação de liberdade e egressos do sistema penitenciário, além de auxiliá-los na recuperação
psicossocial e na assistência familiar. A FUNAC, nesse sentido, tem voltado suas ações para a
melhoria das condições de vida dos assistidos por meio da elevação social, moral, física e
familiar, assim preparando e mostrando aos assistidos formas de contribuições para o
desenvolvimento da sociedade.
De maneira geral a educação escolar sofre inúmeras resistências em seu exercício, a
começar pelo própria estrutura física, muitas vezes precária, a rotatividade dos professores, a
49

relacionamento dos alunos e agentes penitenciários, dificuldade de acesso a materiais


educativos dentre outros como descreve Vieira (2013, p. 109):

(...)espaços destinados às escolas no cárcere são improvisados, nem sempre tendo


sido desenvolvidos, projetados, construídos especificamente para esse fim. As salas
são pequenas e muitas utilizam divisórias (que não vão até o teto) para separar as
salas. Os espaços são pequenos e limitadores, para alunos e professores. A escola
funciona concomitantemente com os horários de visitas dos presos, o que por vezes
os leva a faltar. A rotatividade dos alunos é grande, principalmente nas unidades de
custódia e de regime semiaberto; a falta de capacitação de agentes e professores é
um problema constante; a impossibilidade de utilização de determinados materiais
um empecilho.

O EJA em espaços de privação de liberdade deve estar pautada nos ideais da educação
popular, que tem o homem e a vida como centro do processo educativo, e em que o aprender a
ler, escrever e interpretar perpasse esse movimento de (re)construção da cidadania e de
humanização das pessoas. Assim sendo, “(...) o maior desafio, no entanto, é implantar ações
educativas significativas, uma vez que a instituição penal, por um lado, institucionaliza e
retira a autonomia e a educação, que, por outro lado, liberta e humaniza as pessoas”
(ONOFRE, 2015, p. 247).
Outro desafio se encontra no ingresso e formação do educador no contexto
penitenciário. Em Mato Grosso, no último concurso público realizado ano de 2009, pelo
Estado, contemplou o ingresso apenas do pedagogo, apartando os professores da área de
exatas e sociais da seleção. Dos selecionados, o número foi ineficiente para cobrir a demanda
do sistema, ingressando o restante por meio de contrato temporário, que mesmo assim
funciona de maneira ineficiente, pois na maioria das vezes os educadores começam a atuar
sem ter participado do curso de formação inicial, que terá conhecimentos básicos de defesa
pessoal, legislação penal, serviços da equipe de saúde, protocolos de segurança, dentro da
unidade penitenciaria, conhecimentos esses fundamentais para evitar evasões de professores,
envolvimento inadequado com o educando/preso, rotatividade, atividade ilícita do professor
sujeito a penalidades judiciais.
Nesse cenário, um fator de interferência educador/educando é o fato de muitos alunos
privados de liberdade, apresentarem vínculo familiar fragilizada, quando não rompido, sendo
o educador em alguns casos, o único contato tenha com o convívio social extramuros. Tal
situação pode sobrecarregar o professor, às vezes com pedidos de contato familiar, aquisição
de materiais, como de alimentação, higienização, elementos que somente a família estaria
autorizada a trazer, isso se estiver autorizado pela direção. Atitudes como essa, fogem do
papel de professor, levando-o a administrar da melhor forma possível para não interferir no
50

processo de aprendizagem e (re)socialização do aluno, bem como de não trazer problemas


para sua vida pessoal. A respeito, Nóvoa (1997, p. 25), já dizia, “a formação de professores
não se constrói por acumulação (de cursos, de conhecimentos ou de técnicas), mas sim através
de um trabalho de reflexão crítica sobre as práticas de re(construção) permanente de uma
identidade pessoal.
A conjuntura evidencia a necessidade e relevância da formação continuada do
educador do sistema penitenciário, que precisa além do seu currículo, reconstruir saberes
voltados para o público apenado, sobre sua identidade e compromisso enquanto formador e
promover através de suas aulas uma educação restaurativa, saber seu papel e evitar desvios
éticos em sua atuação.
Onofre (2011a, p. 275), em seu artigo “Educação Escolar na Prisão: controvérsias e
caminhos de enfrentamento e superação da cilada”, aponta que:

É impossível separar o processo educativo do contexto em que ele tem seu lugar. O
espaço prisional é um marco especialmente difícil para os processos educativos, cuja
finalidade, entre outras, é permitir que as pessoas tomem suas próprias decisões e,
em consequência, assumam controle de suas próprias vidas e possam inserir-se na
sociedade, de maneira autossuficiente. Nesse sentido, no contexto prisional a
educação é uma ferramenta adequada para o processo formativo, no sentido de
produzir mudanças de atitudes e contribuir para a integração social. Cabe ao
educador papel relevante nesta tarefa, pois enfrentar os problemas quando em
liberdade, significa administrar conflitos, analisar contradições, conduzir tensões e
dilemas da vida diária.

Sobre este contexto de restrição e privação de liberdade, que se insere na EJA, refere-
se a autora (2015, p. 244), “como um dos eixos mais invisíveis dessa modalidade de ensino e
nem sempre considerada relevante pelas políticas governamentais”. Trata-se de uma educação
voltada para um público heterogêneo, sendo grande parte advindo de processos de exclusão e
que visa Gadotti (2014, p. 21):

Atender os excluídos dos excluídos: indígenas, quilombolas, populações do campo,


ciganos, pessoas portadoras de deficiências, pessoas em situação de privação de
liberdade, catadores de materiais recicláveis, população em situação de rua.

O ambiente prisional em muitos casos, é o espaço que essa população carregada de


vulnerabilidades, historiciada por um frágil acesso escolar, quando não seu rompimento
precoce. Essa exclusão se estende também aos profissionais da lida desse público.
Arroyo (2011, p. 12), afirma que “(...) a EJA nomeia os jovens e adultos pela sua
realidade social: oprimidos, pobres, sem-terra, sem-teto, sem horizontes.” Estigmas que
precisam ser considerados no processo de aprendizagem, confrontados e não ignorados,
51

considerando a história e evolução desses jovens adultos frente a emancipação social,


considerados também por Freire (1987), refere-se em sua obra Pedagogia do Oprimido.
Além dos problemas externos, a relação de ensino e aprendizagem do educando/preso,
vem acompanhado de variáveis que supera a prática do ensino extramuros. Sentimentos como
desesperança, tristeza, isolamento, frustração, transtornos psicológicos como depressão e
ansiedade dentre outros, são mais acentuados na população privada de liberdade e podem
interferir no processo de aprendizagem. Silva e Monteiro (2017), de forma complementar,
apontam outras “variáveis como a subjetividade sequestrada pela nova identidade que o crime
julgado trouxe também interfere nessa relação, em outras palavras, não existe o ‘João’,
‘Pedro’, e sim o preso, o estuprador, e homicida, o “noiado” etc.” Elas comentam ainda que a
relação do aluno com o colega de forma natural é marcada por relações interpessoais de
diferenças de comportamento, cada um com sua subjetividade permeados pelo trajeto de vida,
valores, crenças, frustrações, expectativas, interesses, complexos, limitações dentre outros.
Contudo no ambiente carcerário essa diferenças tendem a se potencializar, devido
estigmatização dos delitos pelos quais foram julgados, bem como a cultura da separação da
convivência em grupos por afinidade dos mesmos delitos.
Discursos como esse, propagam o próprio preconceito e intolerância entre si, tão
expressados dentro e fora da sala de aula, nesta última refletindo uma indisposição,
resistência, intolerância do educando/preso, às vezes na tarefa proposta pelo educador, ora
pela troca de saberes entre o grupo escolar. De certa maneira, a interação de apenados
julgados por crimes diversos, interfere no relacionamento com o colega e a realização do
estudo, por exemplo, preso por homicídio tem resistência ao convívio com apenados por
crimes sexuais, num ambiente de socialização que é o escolar, essa interpessoal marcada pelo
estigma, traz impactos para aprendizagem individual e coletiva escolar.
Silva e Monteiro (2017), retratam ainda a expectativa da família frente à educação
escolar dentro da prisão, afirmando serem baixas quando o assunto é o estudo do familiar em
situação de encarceramento, pois ela está muito ligada ao papel desse mesmo indivíduo ser o
chefe da família e seu mantenedor de alguma forma. A família, se estiver presente, espera da
pessoa quando em liberdade, uma atividade laboral que auxilie e complemente nas despesas
financeiras de sobrevivência da família, não tendo espaço para o estudo e ou qualificação
desse sujeito pós privado de liberdade.
Ainda referindo a prática da educação nas prisões, a educação não escolar, destacamos
a importância de investigar as aprendizagens relacionadas a experiências nesse contexto.
52

Ireland (2011, p. 26), aponta existir um tripé educativo, onde a educação formal é uma perna e
a informalidade outra, como proposto na introdução desta dissertação, o autor afirma que:

é comum serem incluídas atividades de “aprendizagem profissional” que são de


importância fundamental para o público privado de liberdade e precisam ser
entendidas e dimensionadas como parte do processo educativo. A terceira perna do
tripé educativo é a educação informal, que se baseia na percepção da experiência
como uma rica fonte de aprendizagem: aprendemos em muitos espaços e de
múltiplas formas, dos quais escapam as atividades que possuem objetivos
educacionais.

A experiência da prisão é marcada por aprendizagens, também ocorridas pela


informalidade e que influenciará a evolução e formação da pessoa privada de liberdade nesse
contexto. Ela se desenrola num local considerado violento pela própria condição de
convivência desses pares, que ali estão por suas transgressões. A qualidade das relações
sociais no interior da prisão é também um indicador da educação que nela é vivida, ela
permite um prognóstico sobre o que acontecerá após a libertação, aponta ao autor.
“A educação na prisão não é, portanto, apenas a educação dos prisioneiros, mas um
processo comum de socialização, de aprendizagem do reconhecimento do outro, quem quer
que seja”. Logo, “educar é trabalhar sobre a identidade; é reconhecer a identidade do
indivíduo e não a pessoa do delinquente” (DE MAEYER, 2011, p. 54 - 55).
A experiência da prisão deixará marcas permanentes na construção da identidade do
aprendiz conforme aponta (MAYER, 2011, p.50), que continua:

A educação na prisão jamais parte do nada, ela terá de reconhecer os saberes e os


conhecimentos anteriores dos detentos, sem obrigatoriamente aprová-los. A
validação ou pelo menos considerar-se as experiências adquiridas é importante.
Todos os detentos têm alguma experiência de vida, às vezes na escola,
frequentemente de fracasso, às vezes de revolta, muitas vezes de incompreensão.
Têm experiências de sobrevivência, de relações familiares e sociais, de economia
informal, de estratégias de abordagens sociais, de fracasso...

Podemos assim dizer, que na rua, o contato com o ambiente escolar é marcado pelo
capital cultural que carrega, seja pela história de vida quiçá marcada por uma vida no campo,
sem acesso a esse serviço e direito, outro momento, por que precisou ser inserido no mercado
de trabalho de forma precoce, para manter seu próprio sustento ou da família, seja por
dificuldades de aprendizagens que apresentara enfim, no presídio lhe é ofertado a
oportunidade de estudar, isso quando a Comissão Técnica de Classificação (CTC), conseguiu
realizar a triagem para, ou seja, verificar se a pessoa manifesta perfil (não apresentar
periculosidade nas avaliações multidisciplinar) e se há vaga para isso.
53

De maneira geral este autor faz observação sobre as aprendizagens das prisões
advindas das regras oficiais (da instituição) e não oficiais (dos próprios presos), que não
advém dos currículos, ou seja, da escola na prisão, comentando que algumas dessas regras se
sobreponham umas às outras (DE MAEYER, 2013, p. 42), que explica:

A educação na prisão constitui-se, por sua vez, como os saberes advindos dos
processos de ensino e aprendizagem que NÃO são característicos das prisões. Trata-
se de uma educação que transcende o espaço prisional, pois a educação escolar se
configura como educação na prisão e como tal deve servir à emancipação de seus
alunos. De maneira resumida, a educação do cárcere visa a adaptação dos sujeitos às
normas do sistema prisional, enquanto que a educação no cárcere é uma ferramenta
para a libertação dos oprimidos. Sem ignorar que a cultura escolar na prisão é
atravessada pela cultura da prisão, é importante destacar que o processo de
aprendizagens não pode se restringir à sobrevivência neste espaço; (...) é necessário,
então, que a prisão ensine algo de diferente da própria prisão. (DE MAEYER, 2013,
p. 44)

A cultura escolar na prisão é atravessada pela cultura da própria prisão como afirma o
autor, em outras palavras, a rotina da sala do aluno é perpassada por regras que os próprios
presos impõe de comportamento, de valores, de aceitação, punição dentre outros. Apesar
dessas regras não serem necessariamente direcionada a sala de aula, mas a todos o contexto
prisional, como por exemplo, a permissão da entrada e uso de certas drogas no presídio ou
não.
Grupos ligados a religião dentro da unidade prisional estão mais sujeitos a impor essas
regras de forma mais acentuada, como leitura bíblica diária, jejuns frequentes, cultos
religiosos, abstinências de álcool e entorpecentes dentre outros. As facções são outro grupo
forte, quando não predominante e prediletor de regras nas prisões. O transgressor que ousou
não segui-las de alguma maneira é punido por seus pares, de diversas formas, como ficar sem
alimento, ter seus mantimentos distribuídos entre os colegas, agressões físicas, torturas,
extorsões e assim por diante, caracterizando tais aprendizagens frutos da educação da prisão.
Assim a experiência da pessoa privada de liberdade e dos sentidos que faz de suas
aprendizagens alimenta um processo contínuo de formação, que foge de ser educativa,
contudo se torna de sobrevivência.
De outra maneira, as aprendizagens informais construídas pela população carcerária
visa também estabelecer ordem e uma convivência harmônica entre si, visto o aglomerado de
pessoas num misero espaço físico, com hábitos, valores, atitudes diferentes, e contudo está
refém também do crime organizado, facções no ambiente penal, como venda de drogas, uso
de celulares dentre outros.
54

Entender como esta relação entre cultura(s) e educação carcerária acontecem no


cotidiano escolar favorece a construção de novos fazeres na escola da prisão que
contribuam, de maneira mais efetiva, para a inclusão dos sujeitos privados de
liberdade no meio social. O desafio está lançado, pois procuramos entender um
processo de recuperação, através da educação, que exclui para incluir. (VIEIRA,
2013, p. 110)

Em outras linhas, a pessoa privada de liberdade que tem sua subjetividade sequestrada
nesse contexto, a identidade remodelada pelo encarceramento, com o novo oficio que lhe é
imposto, no qual faz sentido suas escolhas em prol da adaptação em seu novo campo de
atuação, se tornando alvo fácil de adestramento e manipulação dos mais fortes, de maneira
geral um corpo como objeto fácil de alvo e de poder, não o imposto pela vier normativo
oficial da unidade estruturante penitenciaria, mas pelo processo experiencial que prevalece
dentro do sistema, marcado por pela própria criminalidade, muitas vezes por perversidade,
violação diversas de direitos, insalubridade, depersonificação dentre outras mazelas
inaceitáveis ao ser humano.
Enfim, de maneira geral a educação em espaços de privação de liberdade deve estar
pautada nos ideais precisa ser estimulada para a educação popular, que tem o homem e a vida
como centro do processo educativo, e em que o aprender a ler, escrever e interpretar perpasse
esse movimento de (re)construção da cidadania e de humanização das pessoas, como refere-se
Onofre (2015, p. 247), “(...) o maior desafio, no entanto, é implantar ações educativas
significativas, uma vez que a instituição penal, por um lado, institucionaliza e retira a
autonomia e a educação, que, por outro lado, liberta e humaniza as pessoas.”
O desafios começam pela superlotação das unidades penitenciárias que de forma
precária comportam os custodiados nas celas disponíveis, melhor dizendo, indisponíveis, às
vezes por mal conseguirem comportar os próprios colchões. O obstáculo se estende na
implementação da escola dentro da unidade, falta espaço físico, recursos materiais para
construção de salas de aula, incluindo aí orçamento dos cofres púbicos para esse fim. Existe
deficiência de profissionais, tanto professores como próprio agente de segurança que realiza a
vigilância e proteção da pessoa privada de liberdade, bem como a segurança do mesmo
educador. Dos que ali se encontram, a ausência de capacitação e formação desses
profissionais para atuarem desse contexto ainda é presente.
Diante desse contexto, encontra-se uma série de barreiras para enfrentar o baixo nível de
escolaridade no interior das unidades prisionais do país, contudo, só teremos uma sociedade
harmônica, à medida que ela for olhada de forma crítica e reflexiva por inteira, inclusive para
a população que ela insiste em segregar e excluir, como a privada de liberdade, que continua
55

muito bem “ativa” nessa sociedade, as taxas de violência estão ai para evidenciar. Assim, se
faz fundamental a educação, a ela destinada seja pela currículo cuja aprendizagens e formação
perdeu seu espaço, força, sentido, enquanto ferramenta de enfrentamento a criminalidade e
violência, bem como a educação ali constituída, na informalidade, que tem contribuído para
propagação das mazelas sociais.

1.1.1 A Educação no Contexto Penitenciário: uma Perspectiva de Paulo Freire

A Constituição Federal (Art. 205) estabelece que a educação é um direito de todos


visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho (BRASIL, 1988). Dialogar sobre a educação da pessoa privada de
liberdade, com vistas a (re)socialização, é apoiar-se nos ideais de humanização, libertação e
emancipação do ser humano, e fazer esse movimento na companhia de Paulo Freire (1999)
torna-se imprescindível, pelas inúmeras referencias destinadas a Educação de Jovens e
Adultos (EJA) que seu legado deixou.
No livro Pedagogia da Autonomia, partindo da convicção freiriana, a prefacionista
Edna Oliveira, “adverte-nos para a necessidade de assumirmos uma postura vigilante contra
todas as práticas de desumanização” (1997, p. 05). Práticas familiares ao ambiente de sistema
prisional de (re)socialização de maneira geral, dos "condenados da Terra", o dos excluídos
(FREIRE, 1997, p. 07).
A população privada de liberdade enfrenta uma série de barreiras para enfrentar o
baixo nível de escolaridade no interior das unidades prisionais do país. O olhar da sociedade
ainda reflete uma visão antiga, excludente e de caráter punitivo, onde aquelas pessoas
privadas de liberdade não merecem ser inseridas nas políticas públicas desenvolvidas pelos
governos. Entretanto, tal visão está equivocada, tendo em vista que o objetivo do
encarceramento no Brasil não é simplesmente a exclusão social, mas fundamentalmente a
recuperação e inserção social desse indivíduo.
O livro em especial Pedagogia do Oprimido, dedicado aos esfarrapados do mundo
como argumenta Freire (1987, p. 12) e “aos que neles se descobrem e, assim descobrindo-se,
com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles lutam” apresenta sua preocupação com o
oprimido, em especial deste conquistar a liberdade, sendo esta prisioneira de uma sociedade
na qual os privilégios de uns impedem que a maioria usufrua dos bens produzidos. A ideia de
56

liberdade para ele é a forma de se concretizar a vocação humana de ser mais por meio da
educação.
Freire, sobre a educação, tinha como reflexão a questão da inconclusão do ser humano,
referindo-se “sua inserção num permanente movimento de procura, que rediscuto a
curiosidade ingênua e a crítica, virando epistemológica. É nesse sentido que reinsisto em que
formar é muito mais do que puramente treinar o educando no desempenho de destrezas (...)”
(1997, p. 06). O autor instiga o leitor a mergulhar na essência do educando e no que faz
sentido para ele aprender, permeados pela curiosidade, pela crítica, ruma ao saber e nesse
processo se formar enquanto ser no mundo.
A ideia de “autonomia” é o conceito chave para construir a Educação para Paulo
Freire, independente do contexto, defendendo a valorização e respeito a cultura e
experiências junto à individualidade do educando. Freire, afirmava a esse respeito, que “à
dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder
uns aos outros. (...), considerando “a possibilidade do desvio ético não pode receber outra
designação senão a de transgressão.” (FREIRE 1999, p. 25).
Nesse sentido, o educador criticava permanentemente a ideologia dominante, na
qual considerava fatalista, e ainda afirmava:

Daí o tom de raiva, legítima raiva, que envolve o meu discurso quando me refiro às
injustiças a que são submetidos os esfarrapados do mundo. Daí o meu nenhum
interesse de, não importa que ordem, assumir um ar de observador imparcial,
objetivo, seguro, dos fatos e dos acontecimentos. Em tempo algum pude ser um
observador "acinzentadamente" imparcial, o que, porém, jamais me afastou de uma
posição rigorosamente ética. (FREIRE, 1999, p. 6-7).

O educador defendia sobre “o saber, que ensinar não é transferir conhecimento, mas
criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção.” (FREIRE 1999, p.
21). Logo que aprender não é acumular conhecimentos, dados, fatos dentre outros, mas
aprender a pensar e não reproduzir pensamentos, valorizando a autonomia do educando, sua
subjetividade, valores, crenças, história de vida, ser o caminho eficaz para a formação
educativa crítica, emancipatória e libertadora, caso contrário:

(...) o que desrespeita a curiosidade do educando, o seu gosto estético, a sua


inquietude, a sua linguagem, mais precisamente, a sua sintaxe e a sua prosódia; que
ironiza o aluno, que o minimiza, que manda que “ele se ponha em seu lugar” ao
mais tênue sinal de sua rebeldia legítima, tanto quanto o que se exime do
cumprimento de seu dever de propor limites à liberdade do aluno, que se furta ao
dever de ensinar, de estar respeitosamente presente à experiência formadora do
educando, transgride os princípios fundamentalmente éticos de nossa existência.
(FREIRE, 1999, p. 21)
57

Assim sendo, argumentava que é neste sentido também que a dialogicidade


verdadeira, em que os sujeitos dialógicos aprendem e crescem na diferença, sobretudo, no
respeito a ela, é a forma de estar sendo coerentemente exigida por seres que, inacabados,
assumindo-se como tais, se tornam radicalmente éticos.
Comentando que é preciso deixar claro que a transgressão da eticidade jamais pode
ser vista ou entendida como virtude, mas como ruptura com o que ele mesmo afirmou ser da
“decência”. (...) “O que quero dizer é o seguinte: que alguém se torne machista, racista,
classista, sei lá o quê, mas se assume como transgressor da natureza humana” (FREIRE 1999,
p. 26).
O educador é categórico sob o ponto de vista que trata a educação, dos "condenados da
Terra", o dos excluídos, enfatizando a eticidade como “base de toda natureza da prática
educativa, enquanto prática formadora”, (FREIRE, 1999, p. 07) conforme explica:

Da ética que condena o cinismo do discurso citado acima, que condena a exploração
da força de trabalho do ser humano, que condena acusar por ouvir dizer, afirmar que
alguém falou A sabendo que foi dito B, falsear a verdade, iludir o incauto, golpear o
fraco e indefeso, soterrar o sonho e a utopia, prometer sabendo que não cumprirá a
promessa, testemunhar mentirosamente, falar mal dos outros pelo gosto de falar mal.
A ética de que falo é a que se sabe traída e negada nos comportamentos
grosseiramente imorais como na perversão hipócrita da pureza em puritanismo. A
ética de que falo é a que se sabe afrontada na manifestação discriminatória de raça,
de gênero, de classe. É por esta ética inseparável da prática, jovens ou com adultos,
que devemos lutar. E a melhor maneira de por ela lutar é vive-la em nossa prática, é
testemunhá-la, vivaz, aos educandos em nossas relações com eles (FREIRE, 1999,
p. 07-08).

Nesse sentido, a natureza ética da prática educativa, nada mais é do que a


caracterização como prática especificamente humana, de respeito com os outro e suas
diferenças, que colabora para o exercício da cidadania, dos direitos e dignidade humana. Essa
prática sim é para uma aprendizagem socializadora, e (re)socializadora que infelizmente,
pelas estudos e constatações evidenciados nesse estudo anteriormente, evidencia a falha,
fragilidade e desafios do sistema punitivo de nossas políticas públicas de inserção social.
Como afirma Paulo Freire: “não podemos nos assumir como sujeitos da procura, da decisão,
da ruptura, da opção, como sujeitos históricos, transformadores, a não ser assumindo-nos
como sujeitos éticos” (FREIRE, 1999, p. 08).
Onde se daria esse diálogo no sistema prisional? Em todas as situações que promovam
a humanização da pessoa com restrição e privada de liberdade, seja na escola que ele
frequenta, nos cursos profissionalizantes, nos projetos de (re)socialização, desde que esse
educando seja ouvido, respeitado e considerado em suas singularidades, em sua história de
58

vida, como o próprio Freire argumentou, o diálogo como própria forma de amor e “um ato de
coragem, nunca de medo, o amor é compromisso com os seres humanos(...)”. Continua “onde
quer que estejam estes, oprimidos, o ato de amor está em comprometer-se com sua causa. A
causa de libertação. Mas, este compromisso, porque é amoroso é dialógico” (FREIRE, 1987,
p. 80).
Para o autor “não há diálogo verdadeiro se não há nos seus sujeitos um pensar
verdadeiro. Pensar crítico. Pensar que, não aceitando a dicotomia mundo-homens, reconhece
entre eles uma inquebrantável solidariedade” (FREIRE 1987, p. 47). Assim, faz se necessária
uma concepção educacional que privilegie e ajude a pessoa com restrição e privação de
liberdade, em desenvolver potencialidades e competências, que favoreça sua mobilidade
social e estimule a enfrentar os obstáculos que serão encontrados na relação social.

1.2 CARACTERIZAÇÃO DA POPULAÇÃO PRISIONAL DE MATO GROSSO E DE UM


CENTRO DE RESSOCIALIZAÇÃO

O rio que tudo destrói chamam de violento,


mas ninguém chama de violentas as margens que o aprisionam.

Bertolt Brecht

Neste item se evidenciam dados estatísticos que justificam a problematização dessa


pesquisa e sua relevância social, tornando o objeto de discussão não somente científica, mas
de políticas públicas, jurídicas, de saúde coletiva, educacionais, sociológicas dentre outras.
Para contextualizar a população privada de liberdade do Estado de Mato Grosso,
referenciamos no Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias do Sistema de
Informação Penitenciária (INFOPEN), realizado pelo Ministério da Justiça no ano de 2016 e
divulgado apenas em 2017, pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN).
O Relatório apontou que em Mato Grosso a população penitenciária chegou a
10.362 (dez mil, trezentas e sessenta e duas) pessoas em dezembro de 2016. Do total, 52,5%
(5.436 cinco mil, quatrocentas e sessenta e duas) pessoas se encontram de maneira provisória
no sistema penitenciário, seja aguardando julgamento, conclusão de inquérito, dentre outros.
O levantamento trouxe informações sobre o perfil socioeconômico dessas pessoas,
informando ser a maioria jovens, negros, de baixa escolaridade, que respondem judicialmente
(sendo processados) e foram condenados na maioria das vezes por crime de tráfico de drogas,
roubo, furto e homicídio.
59

Ainda apresenta como grave problema dos estabelecimentos penais a superlotação


existentes no Estado, da capacidade 6.369 (seis mil, trezentas e sessenta e nove vagas),
constatou-se um déficit de 3.993 (três mil, novecentas e noventa e três) pessoas
aproximadamente a mais que a capacidade das unidades comportam.
A baixa escolaridade é outro problema que se destaca: 35% das pessoas privadas de
liberdade declararam ter o ensino fundamental incompleto. Entre aqueles que têm ensino
médio completo o percentual é de 11% e ensino superior completo é de 1%. O relatório
mostra que no Estado apenas 21%, ou seja, 2.145 (dois mil, cento e quarenta e cinco mil)
pessoas privadas de liberdade, estavam matriculadas na escola da prisão.
Referente à raça, um percentual de 74% da população prisional se autodeclarou negra,
26% branca, não havendo registros dos demais, indígenas e amarelos. Quanto à idade 55%
dos presos do Estado são jovens entre 18 e 29 anos, 19% tem entre 30 a 34 anos e 25%
possuem 35 anos ou mais.
O mesmo levantamento do INFOPEN realizado pelo Ministério da Justiça no ano de
2014 e divulgado apenas em 2016, informa que em Mato Grosso a maioria da população
carcerária é do sexo masculino, cerca de 9.570 (nove mil, quinhentos e setenta) homens contra
568 (quinhentos e sessenta e oito) mulheres, com registros em destaque de condenações por
crimes de drogas, seja por associação e/ao tráfico. A realidade, portanto, é preocupante, não
somente em Mato Grosso.
Em nível nacional, segundo o INFOPEN de 2005, havia 381.402 (trezentos e oitenta e
um mil, quatrocentas e dois) privados de liberdade nos 1021 (mil e vinte e um)
estabelecimentos cadastrados no sistema penitenciário e nas instâncias policiais do país. Em
junho de 2016, esse número subiu para uma população prisional de 726.712 (setecentos e
vinte e seis mil e setecentos e doze) pessoas.
Em 11 anos, 345.310 (trezentas e quarenta e cinco mil e trezentas e dez) pessoas a
mais, encontra-se privadas de sua liberdade no Brasil. Em 2016, o déficit de vagas chegou a
358.663 (trezentos e cinquenta e oito mil e seissentas e sessenta e três) pessoas a mais que o
estabelecimento penal comporta.
A população prisional vive em situações adversas de violação de direitos humanos, de
aprendizagens e processos formativos entre outros, que contribuem com os problemas de
segurança pública no país. Ela está distribuída: em estabelecimentos administrados pelas
Secretarias Estaduais de Administração Prisional e Justiça, o Sistema Penitenciário Estadual;
pessoas custodiadas em Carceragens de Delegacias ou outros espaços de custódia
60

administrados pelas Secretarias de Segurança Pública; e nas unidades do Sistema


Penitenciário Federal, administradas pelo Departamento Penitenciário Federal.
Na Lei Complementar nº 612, de 28 de janeiro de 2019, sancionada pelo Governo
Estadual de Mato Grosso, extinguiu-se a Secretaria Estadual de Justiça e Direitos Humanos,
cuja administração do Sistema Penitenciário passou a Secretaria de Estado de Segurança
Pública — SESP, no ano de 2019.
A situação das prisões no Brasil é de tal maneira grave que um dos maiores estudiosos
sobre a temática, Loïc Wacquant (2001), chama a atenção para o sistema carcerário brasileiro,
referindo-se a uma “verdadeira ditadura sobre os pobres”. Diz ele: “(...) É o estado apavorante
das prisões do país, que se parecem mais com campos de concentração para pobres, ou com
empresas públicas de depósito industrial dos dejetos sociais, do que com instituições
judiciárias que servem para uma função penalógica (...)” (WACQUANT 2001, p. 35).
Mato Grosso reflete essa realidade, segundo dados do Setor de Inteligência da
Secretaria de Administração Penitenciária de Mato Grosso (SAAP)7 atualizados até junho de
2018, verifica-se que a população prisional do Estado possui um quantitativo maior de
pessoas acolhidas no sistema prisional que sua capacidade sustenta.
Os dados apontam que há 5.602 (cinco mil, seiscentas e duas pessoas) a mais que a
capacidade da unidade penitenciária, deixando evidente o déficit das vagas. Diante dessa
constatação indagamos: em que condições essas pessoas vivem? Com se veem nesse
contexto? O que contam sobre seu cotidiano, privado de liberdade? Suas respostas podem nos
levar à compreensão dos mecanismos ligados ao fenômeno da violência e criminalidade, mais
adiante no capítulo 4, abordaremos essas questões.
No entanto, adiantamos a esse respeito, elucida-se um outro dado, tão quão alarmante,
que pode nos dar pistas sobre como anda a educação não formal dentro no contexto
penitenciário. Quem nos conta é o jornal A Gazeta (Cuiabá, 2018), com a seguinte manchete
de 16 de fevereiro de 2018 – MT possui 7,4 mil membros em duas facções criminosas. As
informações partiram da “Superintendência da Polícia Federal de Mato Grosso”, referindo-se
ainda que “[...] Deste total, 7 mil são membros do Comando Vermelho de Mato Grosso
(CVMT), responsável pela atuação em diversas áreas, inclusive com abrangência
internacional. O restante é membro do Primeiro Comando da Capital (PCC)” (RODRIGUES,
2018, p. 1B).
A matéria informa ainda, segundo o setor de “Investigação e Combate ao Crime
7
Dados coletados pela autora no I Seminário Integrado em Saúde Mental do Sistema Penitenciário realizado
pela SEJUDH em parceria com Tribunal de Justiça de Mato Grosso em 30 maio de 2018 em Cuiabá-MT.
61

Organizado”, que esses grupos se especializam em tudo que possa gerar capitalização rápida,
como assalto a banco, tráfico de drogas e sequestros. Declara que “suas estratégias de ações
mudam constantemente, bem como suas lideranças que costumam ter uma baixa expectativa
de vida” idem, (2018, p. 1B)
A droga é uma forma rápida de levantar esse capital, conforme dados do mesmo setor,
ilustrando que no ano de 2017, em Mato Grosso foram apreendidas 4,5 toneladas de cocaína,
sendo que nos primeiros seis meses de 2018, a quantidade já superou a 4, 6 toneladas. As
estatísticas revelam o crescimento alarmante dessa realidade que atinge de forma direta a
sociedade, com o aumento dos roubos, dependência química nos lares, latrocínios e outros
danos.
Dentre os desafios para diluir as facções estão na dificuldade no acesso a dinâmica de
funcionamento dos grupos, que mutações constantes e carência de recursos humanos, agentes
e policiais. Na mesma linha, a matéria comenta que convênios entre a Polícia Militar de Mato
Grosso e Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos, assim como outros agentes
estaduais, e federais foram implementados convênios, como troca de informações e outras
ações, somando forças, para o enfrentamento do crime organizado.
De antemão, em nome da ordem e da Justiça, a implementação de medidas que não
têm contribuído para amenizar ou inibir o grave problema da criminalidade, por parte do
Estado têm demonstrado a contribuição para os altos índices de reincidência, como a falaciosa
“crença na punição através das penas de prisão sendo cada vez mais reforçada” (DEPEN,
2007, p. 36).
Nesse sentido, o sistema penitenciário e todos os seus envolvidos ficam expostos a
inúmeras situações, desde a superlotação dentro das celas, a dificuldade dos próprios agentes
de segurança em realizar seu trabalho, uma vez que laboram em número reduzido de
profissionais, ficando divididos entre atender as demandas da pessoa privada de liberdade,
como alimentá-los, levá-los ao médico, as audiências, administrar conflitos internos, vigiá-los,
protegê-los dentre outros e realizar a própria tarefa da segurança, de si, da unidade e da
sociedade.
Por outro lado, uma forma de combater essa realidade, algumas unidades
penitenciárias de Mato Grosso têm realizado parcerias com entidade privada, no quesito
qualificação e atualização profissional via educação a distância – EAD, pautadas pela Lei da
Remissão de Pena por estudo – Lei nº 12.433/2011.
62

Um desses centros de ressocialização de Mato Grosso, que aderiu a este sistema EAD,
exige que o familiar, ou advogado, seja o Defensor Público, solicite formalmente a
autorização da pessoa privada de liberdade para a realização do curso no interior da unidade à
Direção, que poderá ter anuência ou não do pedido.
A matrícula e pagamento do curso fica a cargo desses mesmo solicitantes, enquanto a
equipe dos profissionais do sistema peniteniário, cabe fiscalizar a apostila que chega pelos
correios e a situação do aluno perante a realização do curso: se está ativo; desistiu; teve o
curso suspenso etc. O feito para controlar também a remissão de pena. Um dos critérios
utilizados para a realização do curso, é a apresentação de bom comportamento na unidade da
pessoa privada de liberdade.
Entre os cursos oferecidos a distância são:direito administrativo; direito penal; direito
constitucional; direito da família; gestão de pessoas; gestão ambiental; saúde bucal; segurança
do trabalho, higiene e ergonomia; auxiliar de pedreiro; auxiliar de cozinha; auxiliar de
pedreiro; cuidador de idosos; formação para garçon; formação para eletricista dentre outros.
Todos os cursos são certificados e possui carga horária aproximadamente de 120 a 180 horas.
Os valores são em média por curso de R$ 140,00.8
A avaliação final do curso ocorre por meio de uma prova escrita obrigatória, cuja
média de aprovação é de 60% do total da pontuação da avaliação. A prova é realizada no
estabelecimento prisional em que o custodiado se encontrar. A avaliação é encaminhada a
instituição de ensino, que fará as correções, atingindo as metas, será gerado o certificado e
encaminhado a própria unidade penal.
A iniciativa é recente em Mato Grosso, e depende muito a sua adesão da equipe
dirigente da unidade penal em que se encontra a população carcerária, assim como da
anuência de outras esferas administrativas penais, como do Ministério Público, magistrados
dentre outros. Os cursos EAD dentro da unidade penal é regulamentado pela DEPEN.
A carreira do agente penitenciário em Mato Grosso, outro tema que merece ser
destacado nesse estudo. Nas últimas décadas, tem apresentado melhorias no quadro efetivo de
profissionais, como: estabelecimento de plano de carreira, elevação do seu nível escolar de
ingresso, de ensino médio para superior, como visto na seleção do último concurso público
realizado em 2018. Atendendo a política do DEPEN, normatização do porte de armas pela
polícia federal, e atuação da escola penitenciaria do Estado, esses profissionais tem recebido

8
Esses dados foram retirados do panfleto comercial de um Centro Educacional EAD, em que a unidade penal
possui alunos nessa empresa. Por motivos de propaganda comercial, não citaremos o nome da empresa, nem
dados da fonte. Os cursos são regulamentados pelo MEC.
63

formação desde quando foram aderidas e implementadas, sofrendo avanços em particular na


última década, o que vem auxiliado no controle da rebeliões, motins e até mesmo na
diminuição de morte de presos dentro das unidades penais, contudo esses avanços não
chegaram nas taxas de diminuição da violência e criminalidade.
Dados relacionados a essa reincidência, são relevantes para a discussão da presente
pesquisa que investiga que tipos de experiências e aprendizagem essas pessoas com restrição
e privadas de liberdade podem estar passando nesse período de encarceramento, bem como
sua relação com a educação e formação nesse contexto.
O estigma é um elemento essencial na compreensão de sua identidade, com
consequências severas para a pessoa privada de liberdade e sociedade de maneira geral, ao
contribuir como ferramenta para fortalecimento da reincidência da criminalidade. A tabela a
seguir refere-se a população carcerária de um Centro de Ressocialização do Estado de Mato
Grosso, a partir do qual foi realizado o recorte dos participantes desta pesquisa.

Tabela 1: População Carcerária do Centro de Ressocialização em que se encontram os


participantes da pesquisa

Nacionalidade

Brasileira 741
Estrangeiro (Uruguai) 1
Não informado 52
Total 794

Idade

Entre 18 e 34 anos 128


Entre 25 e 29 anos 181
Entre 30 e 34 anos 176
Entre 35 e 45 anos 219
Entre 46 e 60 anos 64
Acima de 60 anos 21
Não informado 5
Total 794

Escolaridade

Analfabeto 4
Alfabetizado 68
Não Alfabetizado 15
64

Ensino Fundamental Incompleto 333

Ensino Fundamental Completo 50

Ensino Médio Incompleto 158


Ensino Médio Completo 110
Ensino Superior Incompleto 13
Ensino Superior Completo 9
Não informado 34
Total 794

Estado Civil

Solteiro 389
Amasiado 231
União estável 21
Casado 87
Divorciado 13
Viúvo 9
Não informado 44
Total 794

Cor de Pele

Branca 35
Morena 63
Negra 61
Parda 79
Não informado 556
Total 794

Religião

Católico 273
Cristão 12
Evangélico 323
Espirita 8
Messiânica 1
Mórmon 1
Candomblé 1
Umbandista 2
Ateu 3
Não possui 67
Não informado 103
Total 794

Regime Prisional

Condenado 274
65

Provisório 460
Total 794
Fonte: INFOPEN 2017.

A população privada de liberdade investigada refere-se à lotação de um Centro de


Detenção Provisória do Estado de Mato Grosso, de modo geral que seus dados acompanham a
realidade estadual e nacional, apresentada na anterior discussão do relatório INFOPEN de
2005 e 2014. A população apresenta 99% (noventa e nove) de nacionalidade brasileira, do
gênero masculino, com idade de trabalho ainda ativo, se aproximando de 50% (cinquenta)
deste público, entre 18 e 34 anos jovens adultos privados de liberdade.
A escolaridade, aproximando dos 40% (quarenta) 333 (trezentas e trinta e três)
pessoas declararam possuir o ensino fundamental incompleto, o que confirma discussões
ainda a fragilidade da educação formal a esse público. Considerando que a educação na prisão
inclui, uma formação permanente, pode-se realizar um presságio sobre as adversidades que
essa população após receber alvará de soltura sofrerá.
A educação na prisão não é, portanto, apenas a educação dos prisioneiros, mas um
processo comum de socialização, de aprendizagem do reconhecimento do outro, quem quer
que seja”. Logo, “educar é trabalhar sobre a identidade; é reconhecer a identidade do
indivíduo e não a pessoa do delinquente” (DE MAEYER, 2011, p. 54-55).
Assim, o autor destaca ainda a relevância de considerar toda equipe dirigente como
protagonistas nesse processo, pois só se fará educação na prisão se administradores, guardas,
pessoal de apoio estiverem engajados no movimento de tentar transformar progressivamente a
prisão em um ambiente educativo. Tal feito, acima que qualquer atividade (de higiene, saúde,
alimentação, visitas, lazer) poderia ser uma oportunidade de trocas, de aprendizagem positiva,
conhecimento e reconhecimento dos outros, de implicação valorizadora (DE MAEYER,
2011).
Sobre os vínculos afetivos, 389 (trezentas e trinta e nove) pessoas em restrição e
privadas de liberdade se declarou solteira, outro item importante no papel na discussão da
reincidência, uma vez que a fragilidade de vínculos afetivos, familiares e grupais, impactam
de forma negativa na (re)socialização do sujeito.
Alusivo a cor de pele, 556 (quinhentas e cinquenta e seis) pessoas privadas de
liberdade desta amostragem não declararam. Geralmente as pessoas negras costumam
omitirem a cor, considerando o processo histórico de estigmatização dessa classe.
66

No quesito religião, cristãos caracterizam o ambiente penal, com prevalência dos


evangélicos sobre os católicos. Houve baixa incidência de outras denominações.
Nesse contexto, um dado em especial para a pesquisa se destaca, o fato de 460
(quatrocentas) pessoas encontram-se privada de liberdade sob forma provisória, ou seja,
aguardando julgamento e outras 274 (duzentos e setenta e quatro) foram condenadas,
encontram-se cumprindo pena. A prevalência das pessoas privadas de liberdade de forma
provisória em relação as sentenciadas, esses dado evidencia a pertinência da problematização
dessa pesquisa e justifica sua relevância social, cujo objetivo é compreender como as pessoas
privadas de liberdade dão sentidos as suas experiências aprendidas pela educação, com ênfase
as aprendizagens construídas fora do ambiente escolar no contexto penitenciário e como estas
interferem em sua (re)socialização. Tornando como objeto de discussão essas experiências, a
investigação qualifica a penalização pela privação de liberdade no estado de Mato Grosso.
No Brasil não existe na sua política jurídica/penal de penalização, pautada na prisão
perpétua, ou seja, as pessoas que ali se encontra, poderão retornarem ao convívio da
sociedade, muitas vezes de uma maneira pior do que entrou. Um sistema falho, carente de
intervenção, coerência em suas políticas públicas, merece toda nossa atenção, se acreditarmos
e defendermos um estado democrático e quisermos estar realmente livres e seguros em nossos
sistemas e contextos.
Narrativas dos participantes da pesquisa vem ao encontro com esses dados,
confirmando a dificuldade de inserção da pessoa privada de liberdade, quando em liberdade
na sociedade, principalmente no mercado de trabalho. Um dos motivos que se destacaram
para essa situação é o vínculo fragilizado, quiçá rompido com a família, potencializando seu
desamparo frente as demandas sociais e reforçando o acolhimento pelo crime organizado a
estas pessoas. Assim construindo o ciclo da criminalidade, em que a pessoa saí da prisão, mas
a prisão não da mesma.
Outro dado relevante deste Centro de Ressocialização, caracteriza-se em ser esta
unidade, a única no Estado a possuir uma ala específica para a população Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis, Transgêneros (LGBT), por eles chamada de Arco-íris. Referente a esse
público trago uma nota9 publicada recentemente no site do Conselho de Federal de Psicologia
que diz respeito ao seu tratamento, destacando a importância de travestis e transexuais serem
colocadas em celas masculinas, caso contrário que devem ser transferidas a estabelecimentos
prisionais compatíveis com sua identidade de gênero. Com o mesmo objetivo a Associação
9
CFP. Disponível em: https://site.cfp.org.br/pessoas-trans-devem-cumprir-pena-em-presidios-de-acordo-com-o-
genero. Acesso em: 17 de outubro de 2018.
67

Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos


(ABGLT), protocolou em junho de 2018, uma petição junto ao Supremo Tribunal Federal em
caráter de urgência, como combate ao desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa
humana, constante na Constituição Federal, afirmando que “é temerária a manutenção das
travestis e das transexuais em estabelecimentos prisionais masculinos” (CFP, 2018). Ainda a
reportagem informa que existem padrões de acolhimento para a população LGBT privada de
liberdade no Brasil, segundo consta:

A Resolução administrativa conjunta nº 01, de 15 de abril de 2014, firmada entre o


Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) e o Conselho
Nacional de Combate à Discriminação (CNCD/LGBT), trata do acolhimento de
pessoas LGBT em privação de liberdade no Brasil e estabelece, entre outros direitos,
que a pessoa travesti ou transexual deve ser chamada pelo seu nome social, contar
com espaços de vivência específicos, usar roupas femininas ou masculinas,
conforme o gênero, e manter os cabelos compridos e demais características de
acordo com sua identidade de gênero. A resolução também garante o direito à visita
íntima. (CFP, 2018, p. 1)

Tocante a essa discussão, ao descrever a composição de sentidos, no próximo


capitulo a participante da pesquisa, que pertence a esse grupo faz referência ao antes e depois
da implementação da ala Arco-íris na unidade prisional, o que torna significativo para
compreensão do público LGBT no ambiente prisional.
De forma geral, este trabalho chama atenção de aspectos importantes do contexto
penitenciário, a partir das experiências da pessoa privada de liberdade, suas aprendizagens e
vivencias imergidas nas regras instituídas pela instituição total formalmente administrada,
pelos próprios presos, pelas facções, igrejas ali instituídas e até mesma a lei estabelecida pelo
mais forte, dependendo da contingência, como o preso mais antigo, ou que apresenta maior
posse de drogas ou influência, poder econômico assim por diante, aprendizagens que se
tornam formativas a medida que impactam na (re)socialização da pessoa privada de liberdade.
Diante desse contexto, o sistema penitenciário não enfrenta como principal problema à
superlotação ou o baixo nível de escolaridade no interior das unidades prisionais do país,
contudo algo mais profundo e complexo que é a justamente sua aprendizagem informal
intramuros, que consolida sua formação não de cidadão, com direitos e deveres, mas de
pessoas estigmatizadas, subalternizadas, marcadas por distinção e rejeição. A própria mídia
tem estimulado o clima de insegurança social, segundo prediz as Diretrizes:

A mídia tem se ocupado, principalmente, em fazer dos fatos ligados à violência e à


criminalidade um grande espetáculo. Não se trata de impedir a veiculação dessas
notícias, pois esse é o seu papel, mas de questionar o grande espaço destinado às
matérias dessa natureza nos jornais e na televisão, que estimulam a produção do
68

medo, a vingança social e os estereótipos que só reforçam a exclusão moral e


estigmatizam os sujeitos integrantes(...) mídia e estigma. (DEPEN, 2007, p. 125).

Uma das alternativas eficaz para mudar essa realidade seria desmitificar a ideia de
que a pena de prisão é a resposta mais eficaz para a redução da criminalidade, essa função a
mídia não faz, banalizando a crença de que a criminalidade é resposta de uma comportamento
individual, de uma escolha amoral feita, consolidada novamente pelo discurso jurídico como
anunciamos no início dessa discussão. A essa discussão é pertinente um apontamento, pelo
mesmo material, que afirma:

A situação agravou-se tanto que chegou a limites insuportáveis. A chamada


“organização criminosa” não nasceu do nada; certamente, num primeiro momento,
surgiu como estratégia de sobrevivência e enfrentamento ao ambiente hostil, às
submissões e coerções entre presos e funcionários. Na medida em que aumenta o
descaso e, fora dos muros, agrava-se a disputa pelos territórios geográficos das
drogas, a organização cresce, toma força e transborda os muros da prisão,
favorecendo o acontecimento de uma série de tragédias com proporções
descomunais. Portanto, os aspectos desumanos do encarceramento e da segregação
social têm um preço e podem ser previsíveis e imprevisíveis. (DEPEN, 2007, p. 126)

O poder das facções impõem regras, por vezes, desviantes das do poder oficial. “[...]
Segui-las, no entanto, pode determinar a sobrevivência, em diversos sentidos, inclusive
material, dos sujeitos na prisão, visto que nem sempre as famílias ou o Estado oferecem
subsídios aos mesmos” (VIEIRA, 2013, p. 99). Essa realidade evidencia a complexidade
envolvida na compreensão do fenômeno da violência e criminalidade no Brasil e em Mato
Grosso.
A pessoa com restrição e privação de liberdade, nesse estudo se usará ora o termo
privados de liberdade, pois todos os participantes tem seu delito julgado e condenado,
cumprindo pena no caso. Em outros momentos se usará o termo em restrição e privação de
liberdade quando se referir a população carcerária em geral, que possui grande parte de seu
público aguardando julgamento.
Para além das numerosas pesquisas sobre o sistema penitenciário, em especial
relacionados a educação propostos por De Maeyer (2006; 2011; 2013), Onofre (2007; 2011;
2013; 2014; 2015), Julião (2011; 2013; 2016), Vieira (2013), os problemas relacionados a
esse público e sua (re)socialização ainda são gritantes e podem ser facilmente observados pelo
leitor nos noticiários da mídias sociais, que destacam nas estatísticas apontadas anteriormente,
as ações constantes da violência e criminalidade advindas desse contexto penitenciário e
facções de crimes organizados perante a sociedade e seus dispositivos.
69

Fazendo uma alegoria com Sigmund Freud (1856-1939), que ao tratar do que somos,
inclui também aquilo que não temos consciência, diz “(...) não somos apenas o que pensamos
ser. Somos mais: somos também o que lembramos e aquilo de que nos esquecemos; somos as
palavras que trocamos, os enganos que cometemos, os impulsos a que cedemos”10, somos
mais do que vemos, pensamos, ouvimos e sentimos, todo esse movimento como rebento da
experiência, nos convida a pensar esses sistemas, educação, prisão e (re)socialização para
além das políticas e práticas pedagógicas, mas um emaranhado de experiências e
aprendizagens adquiridas na informalidade das relações humanas nesse contexto e seus
significados, que:

Deste modo, as atividades diárias devem ser consideradas e valorizadas, pois


permitem o encontro com as experiências, em que o diferente muitas vezes está
presente; permite-nos transformar e ser transformados, no embate constante com as
circunstâncias. A transformação implica perceber certo espaço do não saber, em que
saberes podem ser constituídos em meio à experiência, numa dinâmica entre
instituído e instituinte que não cessa, nem pressupõe vencedores ou vencidos. Não se
trata de simplesmente negar a educação em sua vertente de formação do cidadão, da
cultura a ser transmitida de geração a geração porém, enxergar além do fato dado,
estabelecido e buscar nos meandros dos fazeres diários, desses sujeitos que se
reinventam cotidianamente, uma possibilidade de educação capaz de lidar com o
contingente, com a inconstância de processos e procedimentos, em um espaço
diferenciado como a escola no cárcere, em que formação e transformação não se
contradizem ou excluem, mas convivem, interagem, dialogam. (VIEIRA, 2013,
p.106).

O desafio está lançado, do olhar crítico e reflexivo deste singular a esse plural de nós
que também faz parte a população privada de liberdade e os “esfarrapados do mundo”, um
olhar de “respeito a autonomia e individualidade ao indivíduo”, que ao longo da vida é
educando, como defendido por Paulo Freire, na esperança de uma sociedade melhor, justa,
democrática e igualitária.

10
FREUD, Sigmund. Não somos apenas o que pensamos ser. Disponível em:
https://www.pensador.com/frase/MjQ1Njg2/. Acesso em: 25 jan. 2019.
70

2 EXPERIÊNCIAS DE VIDA E FORMAÇÃO

A atenção as experiência se fortaleceram ao longo das décadas como uma


possibilidade filosófica e pedagógica para pensar os processos formativos atuais, bem
expressados na filosofia da educação deweyana. O teórico rompe com o educação escolar
tradicional da época e coloca a experiência numa relação próxima entre o homem e o meio
ambiente que vive, entre sua dimensão física e a social. Dewey (1959b), ousa na elaboração
de um ensaio que delimita uma ressignificação conceitual de experiência enquanto
aprendizado, apresentando-a numa dinâmica relacional e como possibilidade da construção de
novas situações e novos indivíduos sociais. Inaugurando essa discussão busquemos
primeiramente as bases filosóficas que pensaram a experiência como conhecimento e sua
relação entre indivíduo e sociedade, após retornamos as considerações em John Dewey.

2.1 EXPERIÊNCIA: REFLEXÕES SOBRE O CAMINHO TRILHADO

A filosofia é o berço de todas as ciências e como fonte de conhecimento será abordada


aqui na compreensão da experiência, cujo tema há anos se ocupada a reflexão dos filósofos,
sociólogos, psicólogos assim como pelos educadores. A gama de conceito é imensa, vem
tomando forma, elasticidade ao longo do tempo, momento histórico, cultura, remetendo-nos a
importância de se ilustrar seu percurso enquanto fonte de conhecimento do homem e convívio
social, para entender a trajetória da experiência até chegar a educação e de como o meio
interfere em nossa construção singular e plural, individual e social.
De que conceito estamos falando? Que tempo histórico da experiência? Como vem ela
se constituindo e se construindo no campo do conhecimento? No campo da Educação? Qual a
importância de estudá-la no sistema penitenciário? Que diálogo podemos fazer nesse
contexto? Como essa experiência produz aprendizagem na pessoa privada de liberdade?
De início remeto ao eterno dilema da filosofia, sobre (a origem do) de onde vem o
conhecimento, inaugurado por Sócrates, anteriormente, representado por Tales de Mileto, a
preocupação dos pensadores se referia a origem do mundo.
Platão, discípulo de Sócrates, traz o primeiro embate do saber ao construir a ideia de
inatismo, (onde o conhecimento advindo da alma “psique”) versus empirismo (conhecimento
abstraído da experiência) criado por seu sucessor Aristóteles. O dilema perdurou, pela
filosofia de Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino na Idade Média, que mais tarde foram
negados pelos iluministas, que elegeram o pensamento como fonte de conhecimento, até
71

ganhar outros contornos teóricos tendo seu apogeu com a filosofia transcendental de
Immanuel Kant (1724-1804), que une as duas fontes de conhecimento, razão e experiência.
Foi em Jonh Dewey, que este conhecimento, fruto da interação entre razão e
experiência, com ênfase no vivido, se destacou a filosofia da educação. Dewey entre os anos
de 1882 e 1884, realizou o seu doutorado em Filosofia, defendendo uma tese sobre a
psicologia do filósofos Kant e Hegel, combinando os estudos ainda com a Biologia, através da
teoria da evolução de Darwin, elaborou o seu primeiro livro em 1887, intitulado Psicologia,
com foco na produção intelectual do indivíduo.
Dewey (1976), sobre as experiências, refere-se a não exclusividade de sua natureza
individual, pessoal, do sujeito, mas a combinação entre essa dimensão do indivíduo e o seu
caráter social, “toda experiência humana é, em última análise, social, isto é, envolve contato e
comunicação” (p. 30). Entende o autor que a experiência precisa trazer em si o potencial de
oferecer condições para que, a partir do momento presente, o indivíduo, ao adquirir o
conhecimento por ela mediada, possa servir de suporte para utilizá-lo, em experiência futura,
de modo criador.
Partindo da trajetória da experiência por meio dos conceitos da corrente filosófica do
empirismo, pretendemos ir construindo a ideia sobre que experiência é essa, que elementos
estão envolvidos no conhecimento extraído das narrativas de vida e formação no contexto
penitenciário. Adotando o livro Filosofando de Aranha e Martins (2003), ilustraremos a
experiência, através de sua doutrina filosófica, o empirismo, que a referencia como teoria do
conhecimento, considerando-a origem de todas as ideias.
O nome empirismo vem do latim: empiria (experiência) e -ismo (sufixo que
determina, entre outras coisas, uma corrente filosófica). Temos, assim, a “doutrina filosófica
da experiência”. Sobre o conceito epistemológico da experiência no empirismo, encontramos
no dicionário de filosofia Abbagnano (2014) a origem da palavra grega empeiría, que designa
“conhecimento ou habilidade obtida por meio da prática”, sendo também a origem da palavra
"experiência", por intermédio do termo latino experientia. De maneira geral os pensadores
dessa corrente se apoiam na experiência sensorial, na percepção pelo tato, pela vista, pelo
ouvido e pelos outros sentidos (percepção que eles concebem como a recepção passiva de
impressões) para fundarem o conhecimento da realidade.
Em voga sigamos com os representantes dessa corrente, a fim de apenas apresentá-los
em suas principais ideias, atento ao aspecto introdutório dessa temática, na complexa
72

discussão da experiência e composição de sentidos das narrativas de vida e formação da


pessoa privada de liberdade no contexto penitenciário.
Aristóteles, como criador dessa corrente consegue desenvolver um sistema filosófico
melindroso e coeso sobre a importância dos sentidos como fonte de conhecimento humano. O
filósofo que é apenas por meio dos sentidos, que se dá aprendizagem das informações sobre
as coisas do mundo, argumentando que se a alma tem “potências”, então entende-se que ela
precisa ter as condições necessárias para se tornar ato, assim como a semente precisa delas
para virar árvore. Faz-se necessário para uma potência da alma ser realizada é a educação que
o indivíduo receberá, pois é ela que dá forma à matéria e desenvolve suas potencialidades.
Santo Tomás de Aquino (apud CAMPOS, 2010), que era aristotélico, que tentou
conciliar a fé católica com a razão filosófica, investiga essas potências, pelo que chamou de
faculdades da alma, afirmando que se o homem tem a capacidade de conhecer, então ele tem
o conhecimento em potência.11 Contudo, este conhecimento não serve para nada se não for
levado a ato pela experiência.
O conceito deste filósofos ao empirismo, vem sendo aprimorado ao longo dos séculos,
por John Locke (1632-1704), ceticismo de Hume (1711-1776) e Kant dentre outros. John
Locke formulou que a experiência forma as ideias em nossa mente, no seu livro Ensaio
acerca do entendimento humano, de 1690, argumentando que somente a experiência preenche
o espírito com ideias. O filósofo, critica o conceito de que já existem ideias em nossa mente,
ora, que são inatas. Ele procura demonstrar que qualquer ideia que temos não nasce conosco,
mas se inicia na experiência que ao nascermos, a nossa mente é como se fosse uma tabula
rasa, que antes de existir no intelecto o conhecimento passou pela percepção em outras
palavras, tudo o que sabemos é adquirido a partir da experiência.
David Hume vai mais longe em sua radicalização do empirismo e aproxima-se do
ceticismo, pois critica os objetivos das relações de causa e efeito, argumentando que as
relações derivam do costume e o conhecimento empírico não pode garantir no fundo a
existência do mundo exterior. Em outras palavras, não temos fundamento racional para nossas
crenças, mas o hábito pode dizer que ela é provável, sendo o grande guia da vida.
Não demorou muito para o surgimento da corrente filosófica que rejeita a passividade
do sujeito na aquisição do conhecimento do objeto, como defendido pelos empiristas,
denominada de Criticismo. Criada por Immanuel Kant, que usou essa corrente para trazer um

11
CAMPOS, Sávio Laet de B. Fé e razão e filosofia e teologia em Santo Tomás de Aquino. Disponível em:
http://www.filosofante.org/filosofante/?mostra=noticia&ver=1&id=216&le=F06&label=Filosofia%20Tomasian
a. Acesso em: 12/03/2019).
73

ponto comum entre empirismo e racionalismo, afirmando que a sensibilidade e o


entendimento são duas faculdades importantes na obtenção do conhecimento, sendo que a
informação captada pelos sentidos vai ser modelada pela razão, como explica “duas coisas
sempre me enchem a alma de crescente admiração e respeito, quanto mais intensa e
frequentemente o pensamento delas se ocupa: o céu estrelado acima de mim e a lei moral
dentro de mim” (KANT, 1988).
Esta célebre explanação convida o leitor a refletir sobre a amplitude dos pensadores
que elegeram a experiência como fonte de conhecimento, seja para a compreensão do mundo
externo, seja para ter acesso a si mesmo. O intuito foi explanar sobre a complexidade de
interpretação da interferência do meio social sobre o comportamento humano, independente
do contexto, de como nossos sentidos, vivencia, percepção e experiência, somados a nossa
condição a priori, seja genética, instintiva, passional, interfere em nossa formação educativa e
humana de maneira geral. Logo, aprofundando sobre o assunto, teremos pela frente menção
sobre os conceitos utilizados da experiência na educação, para compor os sentidos das
narrativas de experiências dos participantes. Sobre o assunto, nos apoiaremos ao filósofo da
educação John Dewey.

2.1.1 Algumas Considerações em John Dewey

Dewey é conhecido pela ciência contemporânea como um dos grandes intelectuais


contemporâneos pela produção cientifica epistemológica, filosófica relacionadas a educação e
embasada no conceito de experiência. Para ele, o aluno ocupa o centro de todo processo
educacional, em que o indivíduo para atingir o conhecimento faz-se necessário estar numa
relação, ou seja, fazer a experiência, prontamente, todo conhecimento humano está fundada
na experiência, alegando a indivisibilidade entre o singular e plural, “a sociedade e os
indivíduos são, entre si, correlativos, formando um todo orgânico” (DEWEY, 1959b, p. 177).
O conceito de experiência deweyana, é pensado a uma totalidade de fatos e
significações orientada a partir da noção de interação, continuidade e inteligência, em que
suas implicações são destinadas ao campo da educação e da formação do homem e sociedade
contemporânea. Para o teórico a experiência é condição de possibilidade para a vida
democrática e para uma educação pautada pela liberdade e emancipação humana.
Quando a educação não se torna possibilidade de experiência, percebe-se o
empobrecimento do espírito e o distanciamento da vida social e das suas problemáticas, uma
74

vez que o autor compreende que o agir humano sempre num contexto público e comum, que o
coloca como base de todo o conhecimento e constituição social do eu:

O fato é que todo o indivíduo se desenvolveu e sempre deverá desenvolver-se em


um meio social. Suas “respostas” tornam-se inteligentes ou adquirem significação
simplesmente porque ele vive e age em um meio de significações e valores
reconhecidos como tais. Pelo intercâmbio social, tomando parte em atividades que
encarnam convicções, ele gradualmente adquire espírito próprio. A concepção de
espírito como uma coisa isolada que o indivíduo possui está polarmente oposta à
verdade. O indivíduo cria o espírito, desenvolve a mente na proporção em que o
conhecimento das coisas se acha corporificado na vida que o cerca; o eu não é um
espírito isolado a criar novos conhecimentos por sua conta própria. (DEWEY, 1959
a, p. 325).

Neste sentido, o homem deve ser compreendido em seu meio relacional, compostos
pelo meio natural, social e cultural que está inserido. Para Dewey “interação do ser vivo com
o ambiente é encontrada na vida vegetal e animal, mas a experiência vivenciada só é humana
e consciente à medida que aquilo que se dá no aqui e agora é ampliado por significados e
valores extraídos do que está ausente na realidade e presente apenas na imaginação”
(DEWEY, 2010, p. 469).
A experiência salienta-se como um processo de interação contínuo entre o indivíduo e
meio, expresso na necessidade constante de adaptação do homem às transformações
contingenciais do ambiente. No mesmo caminho, pode-se dizer que a compreensão da
formação é organizada dentro de um processo de desenvolvimento e crescimento sucessivo,
dado na construção e na reconstrução da experiência pelo viés inteligente, reflexivo e
democrático, logo, “quando experimentamos alguma coisa, agimos sobre ela, fazemos alguma
coisa com ela; em seguida sofremos ou sentimos as consequências” (DEWEY, 1959a, p. 152).
A potencialidade significadora de fazer associações retrospectivas e prospectivas entre
aquilo que se faz e aquilo que se sofre em função do agir, caracteriza-se o princípio da
interação em que Dewey (1976, p. 35) afirma: “qualquer experiência normal é um jogo entre
dois grupos de condições”, as “internas” e as “externas”, sendo que ambas, tomadas em
conjunto, constituem uma “situação”. As condições externas ou objetivas remete aos fatores
ambientais que controlam a experiência individual, enquanto as condições internas dizem
respeito aos traços inerentes da pessoa que passa pela experiência.
Desta maneira, o indivíduo pode se tornar escravo de seus próprios desejos se não der
ênfase a sua participação na formação de propósitos que dirigem suas atividades, no processo
de aprendizagem. Para Dewey (1976, p. 66) “temos de compreender a significação do que
vemos, ouvimos e tocamos. Essa significação consiste nas consequências, que resultam de
nossa ação, em face à luz dos sinais que vemos, ouvimos ou tocamos”. Os sentidos e
75

significados que envolvem a vida do homem e a sociedade, são tratados nesse estudo como
sinônimos.
As significações das vivências, boas ou não são enriquecidas pela associação entre as
experiências do passado e do presente, possibilitando o crescimento dos indivíduos e seu
desenvolvimento na capacidade de refletir, julgar e agir inteligentemente diante de novas
situações. A esse movimento Dewey chamou de continuidade, ressaltando o cuidado que deve
se ter ao sentido construído das experiências presentes, pois estas afetam de qualquer maneira
sempre o futuro.
O intelectual define educação como uma reconstrução ou reorganização da
experiência, que esclarece e aumenta o sentido desta, e também, a nossa aptidão para dirigir o
curso das experiências subsequentes (DEWEY, 1976). Entretanto afirma que nem toda
experiência é educativa, “tudo depende da qualidade da experiência por que se passa” (p. 16).
O critério para julgar a qualidade ou o valor de uma experiência consiste em examinar
o que sucede após a experiência, ou seja, que será de qualidade quando se levar em conta as
experiências futuras, sendo de má qualidade ou deseducativa como chamou, toda experiência
que produza o efeito de parar ou distorcer o crescimento em direção a novas experiências
posteriores, como “dureza, insensibilidade, incapacidade de responder aos apelos da vida e
impedirem o aprendizado do “domínio de si mesmo” (DEWEY, 1976, p. 14-15). Nesse
sentido o valor de uma experiência não pode ser julgado, a não ser pelo seu movimento.
Destaca Dewey (1959a) que a experiência nunca é, em um primeiro momento,
cognitiva, mas uma ação causa e efeito.Assim como homem nenhum vive ou morre para si
mesmo, nenhuma experiência vive ou morre para si mesma, pois seu valor “reside na
percepção das relações ou continuidades” a que ela nos remete (p. 153). Contudo, as relações
ou as continuidades que vão se estabelecendo entre uma ação e outra apontam que a cognição
passa se evidenciar em forma de significações. Deste modo, a qualidade da experiência, com
poder de significação, refere-se à capacidade de pensar a própria experiência dentro de um
universo orgânico, racional e experimental, interligando passado, presente e futuro, em que
“sem um elemento intelectual não é possível nenhuma experiência significativa” (p. 158).
O indivíduo passa a ser governado pela memória, imaginação e comunicação, que lhe
permitem fazer associações de sua existência, uma vez que ele “vive num mundo em que cada
ocorrência é carregada de reminiscência e ressonâncias, em que cada acontecimento é
lembrança de coisas passadas” (DEWEY, 1959 b, p. 29).
76

Para o autor vivemos sempre no tempo em que estamos e não em cada ocasião, de
cada presente experiência, todo o seu sentido, é que nos preparamos par fazer o mesmo no
futuro.” Esta é a única preparação que, ao longo da vida, realmente conta” (DEWEY, 1976, p.
44). Nesta realidade psíquica atemporal que ocorre o desenvolvimento da experiência,
imergido na interação do indivíduo seja interpessoal ou social, moldando a educação num
processo social e grupal, isso inclui o sistema penitenciário.
Nesse contexto, se insere o terceiro princípio envolvido no conceito de experiência
proposto por Dewey (1959, 1976, 2010), a ideia de inteligência, para ele não há crescimento
intelectual sem reconstrução dos impulsos e desejos do indivíduo. A imposição da inibição
externa desses elementos é a repressão da reflexão e julgamento interno do indivíduo. A
respeito, Dewey esclarece:

A velha frase “pare e pense” está certa psicologicamente. Pensar é, com efeito, parar
a primeira manifestação do impulso e buscar pô-la em conexão com outras
tendências possíveis de ação, de modo a se formar plano mais compreensivo e
coerente da ação. Algumas das outras tendências de ação levam ao uso da vista, do
ouvido, da mão para examinar as condições objetivas; outras resultam em recordar o
que sucedeu antes, no passado, como experiências similares. Pensar é, assim, adiar-
se a ação imediata, enquanto a reflexão, pela observação e pela memória, efetua ou
domínio interno do impulso. A união da observação e da memória é o coração da
reflexão. Tudo isto explica o sentido da velha expressão “auto domínio”, domínio de
si mesmo. O fim do ideal da educação é a formação da capacidade de domínio de si
mesmo. (DEWEY, 1976, p. 63-64)

Ao discorrer sobre o conceito de “reflexão” na experiência, Dewey (p. 109- 110)


associa a uma “experiência singular”, de maneira que é “integrada e demarcada no fluxo geral
da experiência proveniente de outras experiências”. A educação como a aprendizagem de
hábitos de reflexão pode ser entendida como “aprender é aprender a pensar”. (DEWEY,
1959a p. 83.)

Seguindo as proposições de Dewey, podemos dizer que existe uma conexão


orgânica entre experiência e afeto. Uma experiência é algo que vivenciamos no
interior de um processo reflexivo que nos mobiliza para solucionar alguma situação
problemática, indeterminada, no intuito de torna-la clara, definida, determinada; a
solução a que chegamos, no entanto, nunca é final, definitiva. Por isso, o que
confere valor a uma experiência é a sua capacidade de nos tornar mais bem
equipados para experiências futuras. Para que seja assim, nenhuma verdadeira
experiência acontece sem que estejamos, de fato, afetivamente envolvidos por um
problema. (CUNHA, 2015, p. 264)

Somente o clima de liberdade de ser, estimula o indivíduo ao crescimento de suas


individualidades de maneira genuína e continuada, que Dewey concebe a importância da
forma reflexiva e de cooperação em comunidade, salientando que “uma democracia é mais do
que uma forma de governo; é, essencialmente, uma forma de vida associada, de experiência
77

conjunta e mutuamente comunicada” (DEWEY, 1959a, p. 93). O autor refere-se a democracia


como uma das condições para a educação atingir os objetivos da formação cultural, educativa
e humana e da eficiência social e harmônica da vida em sociedade.
A relevância da educação consiste no fato dela ser o meio de proporcionar a todos a
possibilidade de acessarem os benefícios sociais e desenvolverem suas aptidões individuais,
em que cada indivíduo possua a possibilidade de desenvolver sua natureza potencialmente
social, como explica:

A melhor garantia de obter eficiência e poder coletivos está na liberação e no uso


das variadas capacidades individuais de iniciativa, planejamento, previsão, vigor e
paciência. A personalidade há de ser educada, e a personalidade não pode ser
educada caso lhe confinemos as exteriorizações, as realizações, a coisas técnicas e
especializadas, ou às relações menos importantes da vida. A educação integral é
levada a efeito somente quando existe, da parte de cada pessoa, um quinhão de
responsabilidade proporcional às respectivas capacidades, pela formação de ideais e
planos de ação dos grupos sociais. Este fato fixa a importância da democracia.
(DEWEY, 1951, p. 162).

A formação educativa e humana, faz parte do desenvolvimento da pessoa em seu


sentido integral, ou seja, nas dimensões física, psíquica, relacional dentre outras. A partir da
compreensão de indivíduo, a formação passou a significar um processo contínuo de
humanização que implica a relação com o outro e consigo mesmo, bem como um progressivo
despertar e aprofundar de valores, habilidades e competências.
Considerando a porcentagem mínima da população carcerária que atinge a educação
formal dentro da prisão, as experiências associadas à educação informal se torna campo fértil
para investigação, visto que suas aprendizagens são as que mais prevalecem no sistema
prisional, interferindo de certa forma em fenômenos importantes para a compreensão da
criminalidade como (re)socialização e reincidência.
Demonstrar como a pessoa que se encontra nestas condições se vê, o que ela tem para
dizer desse contexto e situação vivida, o que ela sente, o que aprende, age e, acima de tudo, de
como ela lida com esse processo de restrição de liberdade através das suas experiências
abstraídas por suas narrativas de vida e, consequentemente, de formação, caracteriza o
presente estudo.
Após as considerações teóricas sobre a experiência, e o olhar fugaz a esse público
estigmatizado, esquecido, marginalizado, da população prisional, mas que se encontra entre
nós, destacamos a importância de conhecer as experiências relacionadas ao contexto
penitenciário para buscar equilíbrio das mazelas sociais, não os excluindo, ou apenas punindo,
78

mas o conhecendo e intervindo da melhor forma possível, de preferência prevenindo a


criminalidade.

2.2 FORMAÇÃO COMO PROCESSO DE REFLEXÃO CRÍTICA

Exploro neste item sobre a temática da formação, tendo como referências Dominicé
(2014), Finger (2014), Nóvoa (1997, 2012, 2014). Os autores são precursores da valorização
na pesquisa em educação, da história de vida, considerando os processos que caracterização a
formação humana.
Nóvoa (2012, p. 09), salienta que a história de vida e autobiografias nas narrativas de
vida e formação, são relevantes já que “não há aprendizagem sem experiência e sem uma
reflexão pessoal, autobiográfica, sobre a experiência. O que realmente importa não é a
realidade vivida, mas a realidade sentida, pensada e interpretada”.
A relevância da compreensão do saber dessas experiências no desenvolvimento
formativo do indivíduo, aqui caracterizado como restrito e privado de liberdade, se faz
necessária para entender seus processos de (re)socialização. No Capítulo 4, fica municiado o
valor dessas narrativas de vida para a construção do saber da educação e formação dentro do
sistema penitenciário.
Dominicé (2014, p. 77), destaca que “(...) a articulação entre uma aprendizagem, ou
qualquer outro fato imediato derivado de uma atividade educativa, e o processo mais geral por
meio da qual o adulto se formou e continua a formar-se”.
Nessa formação o autor refere-se a importância de todos os envolvidos nesse processo
destacando o peso das relações que a pessoa constrói ao longo da história e a partir das
encruzilhadas da vida como nomeou, seja um familiar, um professor, a formação se modela
por meio de uma socialização inseparável das aquisições escolares ou dos efeitos da formação
contínua. Pais, professores, amigos, mentores, patrões, colegas, companheiros, amantes
marcam a cronologia da narrativa. Aquilo em que cada um se torna é atravessado pela
presença de todos aqueles que se recorda. Na narrativa biográfica, todos os que são citados
fazem parte do processo de formação.
Dominicé (2014), reconhece a interpretação da biografia do educativa, eu seu contexto
social ou relacional, ser um forte indicador da influência que ele exerceu na formação do
indivíduo. As narrativas são reveladoras das categorias de pensamento que define seu
processo de conhecimento, o relato biográfico portanto, explicaria as tomadas de consciência
que estão frequentemente na origem de mudança de direção da sua história de vida.
79

Para Finger (2014), trabalhar com o saber advindo das experiências, o pesquisador
apresenta-se não só como crítico, reflexivo e histórico mas também implica uma investigação
da parte da pessoa, uma pesquisa fundamentalmente formadora, pois está ligada a um
processo de tomada de consciência. Esse movimento tem o objetivo de emancipação das
pessoas para a sociedade pois atribuem sentido ás suas próprias vivências e experiências,
assim como as informações que vêm do exterior.
Abrahão (2010, p. 192), refere-se ás narrativas autobiográficas, de modo geral,
formadoras, em virtude de provocarem no sujeito da narração momentos de reflexão sobre o
vivido, “oportunizando assenhorar-se de suas vivências, que ao serem significadas, adquirem
uma nova posição, a da experiência, da (auto)biografia ou narrativa de vida e da formação,
sustentada por movimento intencional.” A intencionalidade, como base dessa dimensão
formadora da narrativa de vida. Sendo assim as pessoas transformam essas vivências em
experiências de formação.
Deste modo, esse “(...) saber trata-se da construção da primeira preocupação da
pedagogia, pois é esse tipo de saber que as pessoas precisam para elaborar as suas identidades
na sociedade moderna”, é esse tipo de processo de tomada de consciência que as pessoas
devem ativar para se formar (FINGER, 2014, p. 117).
Nesse sentido, falar sobre a pessoa privada de liberdade e suas experiências dentro do
contexto penitenciário, através desta investigação compreender elementos envolvidas desta
formação, com destaque em seus aspectos crítico, reflexivos e mecanismos de potencialização
da (re)socialização desse público.
Nos espaços prisionais é fundamental a escuta dos que ali se encontram, tão
silenciadas pelas doutrinações do sistema penitenciário, se tornando assim as narrativas de
vida e formação o próprio resgate de dignidade e cidadania desses privados, atravessando o
estigma, muitos vezes vinculados a sua identidade pelo delito cometido. As histórias de vida
do Pedro, Antônio, Bere que estão sendo contadas, revividas e refletida e não do Duzentão,
como é apelidado a pessoa que cometeu algum crime de cunho sexual.
As possibilidades de uma formação crítica de adultos começa onde se reconhecem os
limites dos fundamentos epistemológicos aponta Nóvoa (2014), que aparecem no momento
em que se admite que as implicações das tomadas de consciência que “não são
exclusivamente racionais, assim como na altura em que se considera que as implicações
prático-vitais das tomadas de consciência fazem parte integrante do processo de investigação-
formação, aqui em sintonia” (NÓVOA, 2014, p. 119).
80

Os dados das narrativas de história de vida resultam de uma tomada de consciência,


advinda de uma maturidade relacional que permite voltar à infância e adolescência.
Esforçando-se por selecionar no seu passado educativo ele aparece tecido formador na sua
vida, “o sujeito do relato biográfico põe evidência uma dupla dinâmica: a do seu percurso de
vida e a dos significados que lhe atribui; nunca se limita fazer um simples balanço
contabilístico de acontecimentos ou de determinados momentos” (DOMINICÉ, 2014, p. 82).
Nas narrativas coletadas, os dados referente a esse contexto são visíveis quando os
participantes relatam sobre sua infância e os aspectos relacionais quem impactam na
construção de sua formação identitária, muitàs vezes movida pela admiração a essas pessoas,
a identificação de alguma maneira. Como foi o caso da participante transexual, que quando
descobre sua sexualidade, é afetada pela rejeição da família e encontra abrigo no seu próprio
grupo de identificação de gênero, indo morar com travestis.
O papel da família nesse contexto é vital e verificada no impacto direto da formação
educativa de vida da população carcerária, portanto é necessário entender como se deu o
processo formativo de jovens adultos, entendendo a formação no sentido de uma construção
progressiva que se manifesta na história de vida.
O intuito dos autores, Dominicé (2014) e Finger (2014), é atribuir um valor importante
a família e outras vivencias interativas, nas biografias educativas, demonstrando que a história
de vida se constrói no campo relacional e que a promoção está em grande parte ligada ás
soluções adotadas no decurso da vida, para a resolução de conflitos ou detenções relacionais
que se prendem com a dificuldade de conduzir a própria, encontrando uma distância adequada
daqueles que nos estão mais próximos. Assim, a formação:

(...) assemelha-se há um processo de socialização, no decurso do qual os contextos


familiares, escolares e profissionais constituem lugares de regulação de processos
específicos que se enredam uns nos outros, dando uma forma original a cada história
de vida. Na família de origem, na escola, no seio dos grupos profissionais, as
relações marcantes, que ficam na memória, são dominadas por uma bipolaridade de
rejeição e de adesão. A formação passa pelas contrariedades que foi preciso
ultrapassar, pelas aberturas oferecidas. (...)A formação aparece sempre como uma
construção sutil, uma maneira de nos introduzirmos em redes relacionais complexas,
cuja dinâmica nunca é verdadeiramente redutível as categorias usuais das ciências
humanas, quer se trate, por exemplo, da origem social, quer dar identificação
parental (DOMINICÉ, 2014, p.89).

A formação passa pelas relações afetivas, seja ela com a família, escola, no trabalho,
como também no contexto prisional que aponta este estudo, permeada por uma bipolaridade
de estima e aversão que irá moldando o indivíduo, sua identidade no meio social.
81

Diante do que ora foi ilustrado, ponderamos que esta investigação narrativa associada
aos teóricos da formação cinge, num processo de imersão, aos saberes da experiência pela
educação formal e não informal da população carcerária, pois parte do princípio desta mesma
população pensar sobre suas experiências e na sua lida, convidando esse público privado,
restrito e marginalizado a se nomear, se movimentar, se reinventar e dar novos sentidos a sua
vida e formação na própria prática do narrar o vivido, constituindo a pesquisa em si, uma
prática de aprendizagem no contexto prisional.
82

3 A CONSTRUÇÃO METODOLÓGICA GUIADA PELA PESQUISA NARRATIVA:


COMO CAMINHAMOS

A metodologia deste trabalho foi construída a partir das discussões e estudos em que
participei com o Grupo de Estudos e Pesquisas em Política e Formação Docente
(GEPForDoc) do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Mato Grosso. O
grupo possui projeto vinculado e financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPQ).
O GEPForDoc foi criado em 2004, sob a liderança da Profª. Drª. Filomena Maria de
Arruda Monteiro, minha orientadora, que se dedica à formação de professores na perspectiva
teórica da “formação como desenvolvimento profissional docente”, pelo método de
investigação da pesquisa narrativa.
Segundo Monteiro, as narrativas marcam um contexto significativo nas pesquisas
realizadas pelo grupo, em um movimento dinâmico na conexão de dimensões que
possibilitam a compreensão de experiências pessoais, profissionais, em tempos e lugares
específicos, potencializando os processos de aprendizagem profissional da docência
(MONTEIRO; et. al. 2017).
Assim, vi no GEPForDoc um espaço para pensar individual e coletivamente o tema
“educação e prisão”. Nas disciplinas realizadas, na participação de eventos, escritas de
artigos, participações no grupo e orientações recebidas, pudemos reformular o objeto de
estudo. Levamos em conta a minha história de vida, percurso profissional, sem perder de
vista, as motivações iniciais voltadas à reincidência prisional. Logo, optamos pela
investigação das experiências de vida e formação da pessoa privada de liberdade no contexto
penitenciário de (re)socialização de Mato Grosso.
A princípio não foi uma escolha fácil, olhar para as pessoas privadas de liberdade do
gênero masculino e tudo que a privação agrega, situação essa pelos quais me dediquei nos
últimos anos em minha carreira profissional. Um tema delicado, complexo e polêmico. Era
necessário falar sobre o sistema de penitência e tudo que dele vem acompanhado, como,
sofrimento, revolta, injustiça, vingança, desamparo, solidão, culpa, desespero, raiva,
resignação. Ás vezes paz também. Tema esse que acredito ser poucas pessoas a se aventurar.
O estigma relacionado à população prisional é grande. O poder executivo destina
recursos escassos e oferece condições precárias de trabalho aos profissionais dessa área. No
mundo acadêmico, há poucos espaços e grupos de pesquisas para discussão deste assunto.
Represálias podem serem presentes aos pesquisadores, pois tratam de um tema delicado,
83

envolto da violação aos direitos humanos e crime organizado. Estas razões são alguns dos
fatores que justificam os desafios que enfrentam o sistema prisional como um todo, nas
pesquisas, na implementação de políticas como um todo dentre outros.
A intenção de trazer minha experiência profissional às discussões cientificas
acadêmicas, era justamente essa. Isto é, mudar esse olhar e pensar esta realidade prisional a
partir de novas perspectivas. A pesquisa narrativa contemplou essa possibilidade e permitiu
que as pessoas privadas de liberdade do sistema prisional falassem de suas experiências,
tornando-as como fenômeno de investigação.
A formação em psicologia e a proximidade com os relatos, aguçaram minha
curiosidade referente à pesquisa narrativa. O convite para trabalhar as narrativas de vida com
foco nas experiências me fez sentir em casa, pois elas tratam de questões humanas,
existenciais e de comportamento. Práticas muito presentes em minha trajetória profissional,
tendo uma atenção especial em relação ao campo da educação. Questões como essas,
inteiramente ligadas à dinâmica relacional do indivíduo, o que exige uma metodologia de
investigação que mais se aproxima de sua subjetividade e identidade.
Advinda a pesquisa narrativa do campo qualitativo, Lüdke e André (1986), apontam
algumas características que conduzem a investigação qualitativa em educação. O ambiente em
que se realiza a narrativa é levado em conta. A fonte é direta de levantamento dos dados. Os
relatos são descritivos. A preocupação com o processo é maior do que com o resultado. O
significado que as pessoas atribuem às coisas e à sua vida é foco de atenção. A análise dos
dados tende a seguir um processo indutivo. Estas são as principais características, aliás, os
autores comentam ainda sobre a importância da observação, outra ferramenta importante
desta abordagem:

A observação direta permite também que o observador chegue mais perto da


“perspectiva dos sujeitos”, um importante alvo nas abordagens qualitativas. Na
medida em que o observador acompanha in loco as experiências diárias dos sujeitos,
pode tentar aprender a sua visão de mundo, isto é, o significado que eles atribuem à
realidade que os cerca e às suas próprias ações. (LUDKE; ANDRÉ, 1986, p. 26).

Logo, é de suma importância que o pesquisador registre também seus sentimentos e


questionamentos no decorrer do processo de coleta de dados, dos participantes e demais
variáveis em que o ambiente trouxer.
As ferramentas como equipamentos de áudio e vídeo, gravadores, câmeras e próprio
caderno de anotações são utilizados para que os dados colhidos possam ser complementados
84

pelas informações obtidas através do contato em lócus. Sobre o assunto, Bogdan e Bilken
(1994), explicam:

A investigação qualitativa é descritiva: Os dados recolhidos são em forma de


palavras ou imagens, e não de números. Os resultados são baseados nos dados para
ilustrar e dar substância à apresentação. Nos dados incluem transcrição de
entrevistas, notas de campo, fotografias, vídeos, documentos pessoais e outros
registros oficiais. O investigador analisa os dados em toda sua riqueza, respeitando
ao máximo a forma como foram registrados ou transcritos. (BOGDAN; BIKLEN,
1994, p. 48)

No ambiente prisional, o uso desses instrumentos (gravador de áudio, câmeras


fotográficas e multimídias entre outros) apresentam grande resistência por parte tanto dos
dirigentes quanto da própria população carcerária, diante do que vivem. Todo material
advindo desses dispositivos é amparado por questões éticas para manter sua fidedignidade,
validade e objetivo. Sem perder de vista, a segurança dos participantes da pesquisa.
Nesta abordagem, outra característica importante, é o interesse mais pelo processo da
investigação do que no resultado final, como afirma Bogdan e Bilken (1994):

(...)Os investigadores qualitativos tendem a analisar seus dados de forma indutiva: O


investigador não recolhe dados ou provas com o objetivo de confirmar hipóteses
previamente construídas, ao invés disso as abstrações são construídas à medida que
os dados que foram recolhidos vão sendo agrupados. Não se trata de montar um
quebracabeças cuja forma final conhecemos de antemão. (...) O significado é de
importância vital na abordagem qualitativa: Os investigadores que fazem uso desse
tipo de abordagem se interessam pelo modo como diferentes pessoas dão sentido à
vida. Centram-se em questões como: quais os juízos que as pessoas fazem sobre
suas vidas? O que consideram ser “dados adquiridos”? (BOGDAN; BIKLEN, 1994,
p. 50)

Nesse contexto, as narrativas de vida e formação da pessoa privada de liberdade,


vista pelo sentido que os participantes qualificam suas experiências no sistema penitenciário,
não apenas contempla essa abordagem, como refina sua compreensão por meio da modalidade
de pesquisa com foco nas narrativas.
Antes de entramos nestas narrativas, vamos problematizar a narrativa. O que é
narrativa? O que fazem os pesquisadores narrativos? Para responder estas questões e outras
que surgiram em meu perceurso, fui-me ancorar nos estudos de Clandinin e Connelly (1995,
2011). Eles acreditam que a pesquisa narrativa é uma ferramenta teórico-metodológica, não
tendo a intenção de defini-la, mas acrescentam que, “estamos interessados nos termos da
investigação e os espaços que esses termos criam a mesma” (CLANDININ; CONNELLY,
2011, p.64).
85

Os autores consideram a narrative inquiry 12como fenômeno a ser estudado e método


de pesquisa, pois o “pensamento narrativo é uma forma-chave de escrever e pensar sobre
ela”, assim, pesquisar sobre uma experiência é sempre uma forma de experimentá-la, se torna
portanto (...)“fenômeno e também o método das ciências sociais.” (CLANDININ;
CONNELLY, 2011, p. 48).
Para o pesquisador narrativo, o desenrolar desse experienciar, consiste a partir dos
termos que definem e delimitam as investigações narrativas, a demarcação dos fenômenos, o
problematizar o que passa por evidência. Tudo isso para buscar a fidignidade das narrativas.
A visão de Dewey sobre experiência que a pensa referindo-se a situação,
continuidade e interação é embasada da ideia de espaço tridimensional de investigação
narrativa. As “direções” que norteia esta ideia são introspectivo, extrospectivo, retrospectivo,
prospectivo e situado/lugar. Termos estes criados por Clandinin e Connelly (2011, p. 84 e
85), que os definem:

(...) designamos de as quatro direções de qualquer investigação: introspectivo,


extrospectivo, retrospectivo, prospectivo. Por introspectivo, queremos dizer em
direções às condições internas, tais como sentimentos, esperanças, reações, estéticas
e disposições morais. Por extrospectivo, referimo-nos as condições existenciais, isto
é, o meio ambiente. Por retrospectivo e prospectivo, referimo-nos à temporalidade –
passado, presente e futuro.

O pesquisador narrativo quando se posiciona num desses espaços da investigação,


elabora indagações, coleta notas de campo, concebe interpretações e escreve um texto de
pesquisa. Este movimento contempla questões pessoais e sociais com vistas nos elementos
internos e externos dos envolvidos, respeitando à temporalidade de em que se inserem, sem
deixar de olhar para seu passado e projeções futura.
Por outro lado, Clandinin e Connelly (2011) fazem ressalvas quanto ao uso desses
termos, ponderando sobre a existência de uma linha tênue entre os sentidos construídos a
partirda investigação narrativa, enfatizando a“despertabilidade”13; e os “reducionismos de
suas histórias a um conjunto de compreensões” (CLANDININ; CONNELLY, 2011, p. 90). A
partir disso, estes autores orientam:

Para converter o uso dos termos mais em direção de suas origens experienciais,
poderíamos pensar neles não tanto como geradores de uma lista de compreensões
obtidas pelas análises das histórias, mas sim como indicadores que questionamentos,

12
Indagação e/ou pesquisa narrativa (tradução nossa ao português).
13
Termo utilizado pelos autores D. Jean Clandinin e F. Michael Connelly (1999), prefácio, referindo-se ao
propósito da pesquisa narrativa – manutenção da despertabilidade.
86

enigmas, trabalho de campo e textos de campo de diferentes tipos adequados


diferentes aspectos da pesquisa.

Em complemento, Clandinin e Connelly (2011) comentam sobre a complexidade,


as dificuldades e as incertezas associadas a esse fazer da pesquisa narrrativa, ressaltando, que
o sentido desta pesquisa só pode ser compreendida a partir da finalização da mesma.
Sobre a pesquisa narrativa Carvalho (2017, p. 49), descreve que:

(...) surge no final dos anos 1980 como contraponto aos estudos dos fenômenos
educacionais realizados tradicionalmente por meio de metodologias quantitativasque
deixavam de lado as experiências vivenciadas pelos professores no cotidiano
escolar. Ao considerar que os educadores são pessoas interessadas na aprendizagem,
no ensino e em comoesse processo se realiza, Clandinin e Connelly (2011) afirmam
que eles devem ter muito a dizer, muito a contar sobre as experiências que
vivenciam, uma vez que lidam com alunos diferentes, com valores, atitudes, crenças
diferentes, lidam com diferentes sistemas sociais e institucionais, que influenciam e
interferem em suas vidas.

Dessa forma, a investigação se baseia principalmente na dinâmica relacional dos


envolvidos para considerar as dimensões de espaço, tempo e características pessoais
imergidas na esfera social. Esses elementos, espaço, tempo, aspectos individuais e sociais
formam o que os autores chamaram de espaço tridimensional, locus. É neste lugar em que as
pessoas vão dando sentido as suas experiências ao longo do tempo, bem como as historiando.
A metodologia com foco nas narrativas possibilita a construção e a reconstrução dos
significados não só das experiências e práticas, como também dos sentimentos, valores e
crenças. Estas resultam em compreensões coletivas sobre os processos e os percursos
formativos significativos da pessoa privada de liberdade, marcados por contextos de
possibilidades, desafios, confrontos e complexidades, como argumenta (MONTEIRO, 2017).
A construção e a interpretação das narrativas orais e escritas objetivam levar seus
narradores a refletirem sobre suas histórias de vida, as condições e os contextos em que se
desenvolveram. O diálogo entre o individual e o sócio- cultural põe “em evidência o modo
como cada pessoa mobiliza os seus conhecimentos, os seus valores, as suas energias, para ir
dando forma a sua identidade, num diálogo com seus contextos” (MOITA, 2014 p. 116).
A experiência ocupa um lugar relevante nessa modalidade de pesquisa, porque
considerada a própria narrativa como síntese da experiência humana. Assim, o narrar torna-
se condição essencial do ser humano, pois nele organiza e estrutura a forma de se pensar,
construir juízos e sentidos sobre as experiencias vividas. Em linhas gerais, a indagação
narrativa é por si só uma experiência relacional, sendo o lugar ocupado por cada participante
da experiência (contexto) e como o sente pautados em suas crenças, valores, subjetividade.
87

A narrativa, portanto, constitui-se como um ciclo em que envolve contar, viver,


recontar e reviver, permitindo assim significar e ressignificar as experiências nas relações. A
composição de relatos, ao serem conscientizados, podem apontar outros sentidos e
significados. É neste mesmo movimento que vai se construindo as identidades.
O uso das narrativas na pesquisa e no ensino-aprendizagem pressupõe a construção e
desconstrução das experiências vividas pelos envolvidos, sendo que ao registrar os fatos o
indivíduo relata a representação que faz dele, podendo proporcionar uma transformação
daquela realidade através de uma experiência reflexiva (CUNHA, 1997 apud ABRAHÃO,
2016).
Conhecida também como (auto)biográfica, a história de vida, enfatiza a dinâmica
relacional humana, como destaca Pineau (1983 apud MOITA, 1995, p. 113) e acrescenta:
“compreender como cada pessoa se formou é encontrar as relações entre as pluralidades que
atravessa a vida”. Assim, a formação é entendida não só como uma atividade de
aprendizagem situada em tempo e espaço limitado e preciso, mas também como a ação vital
de construção de si próprio, conforme explica Moita:

(...) Só uma história de vida põe em evidencia o modo como cada pessoa mobiliza
aos seus conhecimentos, aos seus valores, as suas energias, para ir dado forma a sua
identidade, num diálogo com seus contextos. Numa história de vida podem
identificar-se as continuidades e as ruturas, as coincidências no tempo e no espaço,
as transferências de preocupações e de interesses, as quadros de referência presentes
nos vários espaços do cotidiano (MOITA, 1995, p. 113).

Após as considerações da história de vida que parte da pesquisa narrativa, ressalto a


importância de como os participantes desta e a própria pesquisadora olham para si próprios,
para suas histórias pessoais e experiências. Tudo isso vai construindo sentido sobre as ex-
periências do vivido e que ainda vivenciam, nos movimentos introspectivo, extrospectivo,
retrospectivo e prospectivo do espaço tridimensional da pesquisa narrativa. O intuito é de
refletir sobre a forma como organizam, problematizam e interpretam suas experiências, de
maneira que ganham significação, tornam-se significativas e consolidam-se em processos
formativos. No caso da população prisional, a metodologia se faz importante, pois pouco se
sabe da experiência e como vivem as pessoas de privação de liberdade a partir do olhar dos
que ali experienciam.
88

3.1 CARACTERÍSTICAS DO LUGAR

A pesquisa foi desenvolvida num Centro de Ressocialização do Estado de Mato


Grosso. A escolha do lugar se pautou no grau de acessibilidade à instituição, pois outras
unidades penitenciárias pleiteadas apresentaram sistemas rígidos de acesso e indisponibilidade
para esse tipo de atividade.
O primeiro contato com o Centro de Ressocialização ocorreu com a Direção em torno
da anuência para realização desta pesquisa na unidade penitenciária. O Centro, na ocasião
passava por um momento crítico, devido à apuração de denúncias relacionadas à violação de
direitos de sua população carcerária.
A Direção informou a pesquisadora que solicitasse autorização do Gestor de Estado da
SEJUDH para realização da pesquisa. Considerando a autonomia da equipe local frente às
normas da segurança da unidade, insisti no pedido anterior. Após algumas visitas na unidade,
em diálogo com a Direção, respondendo as dúvidas e esclarecendo os objetivos da pesquisa,
esta finalmente foi autorizada.
Próximo passo, foi a submissão14à Plataforma Brasil15, regulado pelo Comitê de Ética
Humanidades da UFMT. Depois de seis meses entre ajustes e atualizações do projeto para
atender as resoluções, obtive aprovação e pude seguir a campo.
O Centro de Ressocialização foi um dos primeiros constituído em Mato Grosso, sendo
fundado em 1970. A ideia de (re)socialização acontece no ano de 2005, inspirada na gestão
penitenciária do Estado de São Paulo, que tratava algumas unidades como Centro de
Ressocialização. Esta nomenclatura foi adotada no mesmo ano pela administração
penitenciária da época.
Apesar de inúmeras reformas desde sua criação até o momento da pesquisa, a
capacidade de abrigo do Centro de Ressocialização é em média para 400 (quatrocentas)
pessoas, exclusivas do gênero masculino e maiores de 18 (dezoito) anos. Entretanto, até o
início da coleta de dados havia 794 (setecentas e noventa e quatro) pessoas privadas de
liberdade neste local.

14
Submetido, registrado e aprovado na Plataforma Brasil segundo Registro CAAE: 86135617.5.00005690.
15
Plataforma Brasil é uma base nacional e unificada de registros de pesquisas envolvendo seres humanos para
todo o sistema CEP — Comitê de Ética de Pesquisa. Ela permite que as pesquisas sejam acompanhadas em seus
diferentes estágios — desde sua submissão até a aprovação final pelo CEP, quando necessário — possibilitando
inclusive o acompanhamento da fase de campo, o envio de relatórios parciais e dos relatórios finais das
pesquisas (quando concluídas). Disponível em: http://aplicacao.saude.gov.br/plataformabrasil/login.jsf. Acesso
em: 20 de outubro de 2018.
89

Foi no ano de 2005, em que houve a inserção do ensino público nesta unidade
prisisonal, visando a alfabetização e (re)socialização dos custodiados. Primeira a funcionar ali
foi Escola Municipal de Educação Básica, mantida pela Prefeitura da cidade e objetivou
atender alunos da Educação de Jovens e Adultos do 1º Segmento. A segunda foi a Escola
Estadual Nova Chance, mantida pelo Governo do Estado, que prestava serviços na unidade
para atender especificamente alunos do ensino fundamental e médio regulares. Porém, no ano
de 2015, a escola municipal deixou de atuar dentro da unidade e as atividades de ensino ficou
de total responsabilidade da Escola Nova Chance, na modalidade da EJA, com 1º (primeiro) e
2º (segundo) seguimento, além do ensino médio regular. Atualmente esta escola conta com
doze professores contratados que ministram aula nos três períodos (matutino, vespertino e
noturno) e com uma coordenadora pedagógica na unidade.
O setor de educação do Centro de Ressocialização administra cursos
profissionalizantes voltados à geração de trabalho, emprego e renda da pessoa privada de
liberdade. Cursos estes ofertados pelo sistemas do Serviço Nacional da Indústria (SENAI),
Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC), Secretaria de Estado de Ciência,
Tecnologia e Inovação do Mato Grosso (SECITEC). Nos últimos meses, os cursos eram mais
voltados à área da construção civil e à manutenção de computadores, com carga horária de
160 (cento e sessenta) horas.
Na unidade penitenciária, funcionam serviços de psicologia e serviço social, além da
presença de uma unidade básica de saúde composta por médico(a), enfermeiro(a), dentista,
técnico(a) de enfermagem. O serviço psicossocial é estendido aos familiares da pessoa
privada de liberdade, com acompanhamento de visita sociais, visita domiciliares em
determinados casos. Além das atribuições e competências de cada área, as providências da
aréa do serviço social são destinadas ora à documentação pessoal, ora ao atendimento
psicológico realizado claro pelo profissional de psicologia. Este atua em grupos terapêuticos
para a população carcerária com dependência química e dá apoio às pessoas privadas de
liberdade, com delitos relacionados à violência doméstica.
A unidade básica de saúde presta serviço como consulta médica, pequenos
procedimentos curativos e principalmente preventivos, aplicando testes rápidos de doenças
sexualmente transmissíveis, tuberculose, hanseníase dentre outros. Acompanha pessoas
privadas de liberdade com doenças crônicas, com diagnóstico de hipertensão, diabetes,
doença mental e outras demandas.
90

A estrutura física está dividida desta forma: direção; cartório penal (onde é
armazenado a vida administrativa da pessoa privada de liberdade, formulário de identificação,
certidões, nota de culpa, cópias documento pessoal etc;); salas da psicologia, do serviço
social, do advogado(a) da unidade; parlatório (onde funciona o atendimento dos(as)
advogados(as) aos custodiados); revisoria (sala em que os agentes de segurança registram
entrada e saída de presos, seus familiares, visitantes e público externo em geral); sala de
revistas, destinada a vistorias dos (as) visitantes; marcenaria, onde é confeccionado materiais
de artesanato e pequenos móveis, cadeira, mesa pequena porte dentre outros; isolamento,
destinado à aqueles que não cumpriram com disciplina, bem como outros setores que
obtivemos informações.
A carceragem onde se encontra recolhida a população carcerária é distribuída
geralmente pelo delito praticado, grau de periculosidade ou afinidade religiosa. Alguns
exemplos de alas. Ala denominada “seguro” é destinada às pessoas que praticaram crimes
sexuais, ou de maior periculosidade. Ala “convívio” se encontram os que cometeram crimes
de roubo, tráfico e porte de drogas, homicídio. Ala “arco íris” fica a população LGBT, mais
especificamente os transgêneros. Ala “fraca” são para as pessoas privadas de liberdade que
possuem crença religiosa e estas são 100% (cem) cristãs.
A entrada na unidade penitenciária com o gravador de áudio foi outro desafio
enfrentado junto à Direção, principalmente, com os próprios participantes. Houve por parte de
um destes a desistência de ser colaborador durante a coleta de dados. Nesse período, a
unidade passou por situações adversas, por exemplo, tentativas de fugas e outras peripécias.
Ressaltamos que o diálogo com custodiado, seja com quem for, até com a universidade,
poderia ser uma ameaça aos envolvidos.
Uma dessas circunstâncias aconteceu no terceiro mês da pesquisadora em campo.
Nesta ocasião foi interrompido a coleta de dados devido à instalação de dinamites (por
desconhecidos) na parte externa do Centro de Ressocialização. O Exército Brasileiro foi
acionado para intervenção, umas das doze dinamites encontrada foi explodida e ficou evidente
o seu potencial destrutivo.
A partir desse fato a unidade passou por algumas mundanças em seu funcionamento.
Houve medidas rígidas tomadas pela gestão da unidade prisional, por exemplo, cancelar todas
atividades externas das pessoas privadas de liberdade que laboravam ou estudavam, matendo-
as reclusas na carceragem. Medidas estas que foram motivadas por denúncias de que haveria
91

motim e/ou rebelião, que segundo as narrativas dos participantes, a expressão era de que a
cadeia iria virar, e alguns presos buscavam a oportunidade de ter reféns.16
Passei um período, do início de setembro de 2018, sem ir ao presídio, recomendado
pelos próprios profissionais da unidade durante esse momento de identificação dos
explosivos. Tudo fora afetado na rotina dessa unidade. As disciplinas aplicadas à população
carcerária, as investigações realizadas, o aumento de tensão no ambiente. Isso era muito
perceptível no gesto e na fala dos agentes de segurança e servidores em geral.
Essa situação interferiu nas entrevistas, pois os participantes demonstraram encontrar-
se alterados com os acontecimentos. Um deles chegou a narrar que “se essa bomba explodisse
ia morrer muita gente, eu que fico do outro lado daquele muro senti minha parede tremer
quando a polícia explodiu uma dinamite, imagina as dez explodindo como disseram que tinha
lá, ia morrer muita gente”(Participante 03, junho de 2018).
De maneira geral, considero um desafio ao pesquisador e como a qualquer pessoa que
realize atividade laboral ou não, o vínculo com o sistema penitenciário, devido as suas
intercorrências, destacando-se em comparação a outra instituição pública ou privada. Pelo
contexto, decidimos manter sigilosas outras formas de identificação da unidade prisional em
questão.
Uma fato comum disso, diz respeito ao próprio atendimento direcionado à pessoa
privada da liberdade. Segundo as normatizações do Procedimento Operacional Padrão
(POP)17 de Mato Grosso, para tratamento da pessoa privada de liberdade, em vistas às regras
de segurança mínima, o preso deve se apresentar ao profissional com algemas (corrente nas
mãos) e/ou com marca-passo (corrente nos pés). Salvo, aquelas que se encontram nas alas dos
trabalhadores e religiosos. Porém, em situações de saída destes da unidade para audiências,
atendimento médico em policlínica etc; há necessidade do uso de algemas e marca-passo.
De certa forma, o contexto prisional contempla uma série de elementos, com serviços
de saúde, educação, lazer (jogos futebol no banho de sol, por exemplo). Contudo, o espectro
ameaçador da segurança pública prevalece, colocando em risco a própria unidade, a
sociedade, a pessoa privada de liberdade e o próprio pesquisador. Cenário esse que não
apenas desconfigura seu papel de ressocializador como estigmatiza sua população
inclausurada.

16
Reféns numa rebelião pode se tornar moeda de troca, chantagem entre pessoas privadas de liberdade e
policiais/negociadores.
17
Manual de Procedimento Padrão Operacional do Sistema Penitenciário de Mato Grosso, regulamentado pela
Instrução Normativa n° 02/GAB/SEJUDH de 16 de julho de 2014.
92

A segurança do participante foi prioridade no andamento da pesquisa. Houve


momentos em que optei por não entrevistar os participantes, conforme a interação que tinha
com a equipe dirigente do dia, os servidores desta unidade e outras pessoas privadas de
liberdade. A educação da prisão traz regras rígidas como voto de silêncio de fatos que vêm a
ocorrer dentro da carceragem, sofrível de represálias, incluindo a perca da própria vida, caso
seja descumprida.
Nas interações da pessoa privada de liberdade e o público externo no contexto
prisional, existem particularidades que precisam ser consideradas. Daí a necessidade por parte
da equipe de segurança pelo uso das algemas ao custodiado, partindo da possibilidade de seu
interlocutor vir a ser objeto valioso de troca num conflito. É nesse sentido, em que a pessoa
privada de liberdade pode ser considerada uma ameaça, até mesmo as pessoas que ela possua
um bom vínculo. Não que seja seu interesse fazer mal alguém, mas ela pode ser coagida ou
ameaçada por seu grupo, tornando-se uma ameaça em potencial. Isso exige todo cuidado ao
menor contato.
De modo geral, o contexto penitenciário em sua complexidade, particularidade e
periculosidade exige um critério de investigação singular. Ao mesmo tempo, ele é marcado
por pluralidades decorrentes de experiências em comum desse público. A psicopatia de alguns
pode gerar a estigmatização de seus pares, por exemplo. A esse respeito justifico a escolha
dos participantes no próximo item.

3.2 CARACTERÍSTICAS DOS PARTICIPANTES

O prenúncio da conjuntura descrita anteriormente, embasada por minha vivência


laborativa no contexto narrado, serviram de motivação para escolha dos participantes em
função daqueles realizavam alguma atividade laborativa e/ou em processo de (re)socialização.
Contamos no início da pesquisa de campo com quatro participantes, porém no desenrolar da
investigação, um dos colaboradores foi hospitalizado e precisou deixar a pesquisa,
finalizando-a com três participantes.
Os critérios utilizados na escolha dos participantes foram: pessoas privadas de
liberdade sentenciadas; com no mínimo dois anos da última detenção; maiores de 18 anos e
do sexo masculino. Assim, visamos pessoas que experimentaram os espaços e os serviços da
unidade de forma abrangente. A saber, saúde; educação; psicologia;serviço social; os que
tinha participados de algum curso profissionalizante; que receberam atenção religiosa; alguns
recebendo visitas dos familiares outros não; que foram assistidos pela setor jurídico, privado
93

e/ou público através da Defensoria; de classe econômica, escolaridade; estado civil;


orientação religiosa e gênero diversificadas. A questão de étnica racial não foi considerada
como quesito na escolha. Contudo, houve a predominância exclusiva das cores parda e negra
dos participantes. Os delitos também não interferiram na seleção.
Dos delitos sentenciados aos participantes, destacam-se os artigos do Código Penal
Brasileiro (lei nº 33, 217, 121). Existem em alguns casos associados a prática de mais de um
crime pelos participantes. O Artigo nº 33 da Lei dos Tóxicos de nº 11.343 de 23 de agosto de
2006, define:

Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender,
expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar,
prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente,
sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: pena -
reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil
e quinhentos) dias-multa.

Incluído no Código Penal pela Lei nº 12.015, de 2009, refere-se o Artigo nº 217-A.
“Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos”. Pena
- reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. O Artigo nº 121 remete ao ato de “Matar alguém”,
sendo caracterizado de Homicídio Simples, ora Qualificado, como menciona o parágrafo
segundo do Código, o Homicídio Qualificado é cometido:

I - mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;II - por


motivo futil;III - com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro
meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum;IV - à traição, de
emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne
impossível a defesa do ofendido;V - para assegurar a execução, a ocultação, a
impunidade ou vantagem de outro crime: Pena - reclusão, de doze a trinta anos.

De forma geral, todos chegaram à unidade, passaram por procedimentos padrões


exigidos no ingresso, como utilização de uniformes, distribuição nas celas, conforme o delito.
A reclusão foi na modalidade apenas fechado, ou seja, o convívio com os colegas de cela só
era interrompido nos dias de visita familiar e quando no banho de sol. É neste momento em
que se tem acesso à área de céu aberto, mesmo com restrições (grades de ferro no teto).
No banho de sol, eles podem ter acesso a outros grupos de celas distintas. Logo, por
apresentarem bom comportamento com o tempo e passarem pela Comissão Técnica de
Avaliação, com parecer positivo da equipe de avaliação, podem acessar o restante dos
serviços oferecidos. Ser matriculado na escola, por exemplo, que é um direito garantido por
lei de toda pessoa privada de liberdade, no contexto penitenciário, acaba sendo considerado
regalia, por apenas uma parcela mínima da população carcerária conseguir usufruir. A essa
94

altura, após cursar uma trajetória que nem todos que ali conseguem trilhar, incluindo a
mudança de cela, do “convívio”, para ala dos “trabalhadores”, o risco de fuga da pessoa
privada de liberdade se torna baixo.
Entre as atividades realizadas se observavam: a limpeza local; auxílio no momento de
distribuição das refeições; jardinagem; marcenaria e outras demandas corriqueiras. A
Fundação Nova Chance, através de convênios com a prefeitura, por exemplo, oferta algumas
vagas de trabalho remunerado a população carcerária da unidade penal, caracterizando como
trabalho extramuros, ou seja, fora do Centro.
A delimitação dos participantes da pesquisa não foi uma tarefa fácil, diante do rol de
pessoas privadas de liberdade que laboravam. Isso me faz buscar referências junto aos colegas
da psicologia que me auxiliaram na escolha, sugerindo na população carcerária, pessoas que
apresentavam características importantes para realização de uma pesquisa narrativa. Sendo
uma delas, a pré disposição ao diálogo. Assim, fui chegando um a um dos participantes.
Habilidade de comunicação, poderia ter sido para nós um quesito importante para
participação da pesquisa, porém fazia necessário o outro lado, o interesse, a motivação e a
condição da pessoa privada de liberdade para isso. Nas primeiras tentativas, um dos
convidados, entre o primeiro contato da pesquisadora e a realização das entrevistas narrativas,
precisou ser substituído, por haver recebido alvará de soltura nesse intervalo. Outro convidado
informou encontrar-se atarefado com seus afazeres laborais e não gostaria de contrariar sua
responsável imediata, funcionária da unidade penal.
Muitos fatores estão associados à resistência na participação da pesquisa. Existe na
população prisional um pacto de silêncio desse público, motivado pela constante vigilância do
preso, seja por parte da equipe dirigente, seja por parte de seus próprios pares.
Diante do ambiente repressivo, atitudes que estimulam a expressão de pensamentos,
valores, sentimentos, partilha de histórias de vida, escolhas ou qualquer tipo de informações
pessoais se tornam elemento ameaçador ao seu interlocutor. A pessoa privada de liberdade
apresenta dificuldade de ser ele mesmo, pois existe o receio de sofrer represálias seja pela
própria unidade penitenciária, seja pelos seus colegas de cela, seja por outros.
Onofre (2011), descreve a sociedade dos cativos, em alusão ao sistema prisional, ser
seus custodiados, físico e psicologicamente reprimidos, o que estimula a esse público um
comportamento peculiar de autodefesa. Isso possibilita no cotidiano resistências e
permanência da socialidade, bem como “(...) a máscara e a duplicidade como meios de
proteção contra todas as formas de absolutização, permitindo que a vida cotidiana seja aceita,
95

sem que haja, para isso, grande dispêndio de energia no combate aos poderes constituídos”
(ONOFRE, 2011, p. 276-277).
Nessas circunstâncias, falar de si, num movimento introspectivo e extrospectivo,
retrospectivo e prospectivo, tornar-se difícil e arriscado no contexto penitenciário. Situação
como esta pode ter contribuído pela desistência de um dos colaboradores, que trazia em seus
relatos com frequência, que lembrar de suas experiências na prisão era pesar ainda mais a
cadeia, referindo-se ao ambiente penal como de experiências de violência e sofrimento.
Desta maneira, a execução da pesquisa exige maior tato por parte da pesquisadora a
campo. Precisei identificar riscos, estimular o fortalecimento de vínculo, a confiabilidade e a
segurança com os participantes. Por outro lado, a pessoa privada de liberdade interessada na
participação da pesquisa, pode ser desestimulado por seus pares, caso se sintam ameaçados,
como presos que possuam vínculo com o crime organizado.
Contextualizado o espaço tridimensional da ivestigação, o lugar, a temporalidade,
contingência e outros elementos envolvidos no trabalho de campo, prossegui com a pesquisa
narrativa.
Os textos de campo foram produzidos pela entrevista narrativa com ênfase nas
experiências de vida e formação humana, educativa, profissional e da prisão que marcaram a
pessoa privada de liberdade. Foram realizadas no interior da unidade prisional, contando com
a minha presença e a do participante apenas, em salas destinadas ao serviço de psicologia,
sendo esta conversa inteiramente gravada em áudio. Conversas informais foram realizadas
com os participantes no corredor desse setor, onde funcionava outros serviços, como cartório
penal, Direção, serviço social entre outros. Na maioria das vezes, aguardei na mesma sala a
disponibilidade dos participantes, que algumas vezes por algum motivo não poderam
participar da entrevista.
Devido às contigências que marcam a rotina no funcionamento da unidade, as
entrevistas não foram previamente agendadas com os participantes ou com os profissionais
que disponibilizavam as salas. A começar pelo plantão dos agentes de segurança, que muda a
cada 24 (vinte e quatro) horas de equipe. Como outras situações. A visita do defensor
público, advogados em gerais para atender seus clientes ali recolhidos. O dia de visita dos
familiares e recolhimento de mantimentos trazidos por eles. Tudo isso fez com que a
execução das entrevistas adaptasse a cada uma destas situações.
Havia dias em que os agentes realizavam vistorias nas celas, a procura de celulares,
drogas, túnel de fuga e equivalentes, impossibilitando a saída da pessoa privada de liberdade
96

para outras atividades intra e extramuros. A vistoria ocorria por ameaça de motim ou
geralmente motivado por denúncia.
Nesse contexto, ocorreu o contato com os participantes, que quando possível foram
realizadas as entrevistas, marcadas por situações adversas: trazidas, em referência ao convívio
entre seus pares, privados de liberdade; informações obtidas por familiares, como membro
familiar doente; desavença com colega de cela. Além dos próprios dilemas particulares, como
crises existenciais, projeções de vida no futuro, doenças etc. Este contexto, sendo equilibrado
com a adaptação dos envolvidos aos estímulos do recinto, seja por parte dos participantes,
seja pela pesquisadora, seja pelas pessoas que ali se encontram no contexto.
A permanência no espaço prisional de maneira geral requer uma atenção vigilante, o
menor barulho não familiar, o silêncio permanente, tudo isso é motivo de cautela. O convívio
com os agentes, munidos de armamento, pistola, fuzil, colete a prova de bala, reforça o clima
de certa tensão. Isso muito é característico do espaço prisional que não escolhe condenado,
nem visitante, nem profissional, atingindo aos que ali se encontram.
A dinâmica relacional entre participantes e pesquisadora se construiu por sentimentos
compartilhados, ora pela vigilância dos agentes prisionais, ora de outras pessoas privadas de
liberdade. A equipe administrativa também fazia parte do contexto onde se realizava as
entrevistas.
Sobre olhares de curiosidade e estranhamento destes, perante aquilo que não era
familiar neste ambiente, o vínculo entre pesquisadora e participantes foi se estabelecendo a
cada encontro, diálogo empreendido, dúvidas esclarecidas, proposta de trabalho justificada,
entrevista realizada e o sigilo do material colhido.
As entrevistas foram realizadas em sala climatizada e sob vigilância indireta dos
agentes de segurança e outros servidores (porta fechada ora parcialmente aberta, com uma
parte coberta com vidro transparente). Assim, fortaleceu o ambiente de confiança na
efetivação da pesquisa.
Dada a importância do sigilo quanto à identidade do participante, além da assinatura
do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, estes puderam dar nomes fictícios durante a
pesquisa. Não foi utilizado roteiro de entrevista, quando necessário, foram auxiliados a
retomar as experiencias de vida e formação nos contextos distribuidos, nos contextos de
familia, escola e prisão. Tudo isso para visar os sentidos e os significados a serem
(re)construídos.
97

Foram realizadas de 4 a 5 entrevistas com cada participante, no período de junho à


outubro de 2018. A duração era de aproximadamente 40 (quarenta minutos) a 1h30 (uma hora
e trinta minutos). As entrevistas de áudio gravadas foram integralmente transcritas e
textualizadas.

Tabela nº 2 -Caracterização dos Participantes da Pesquisa

Quesitos Caracterização Distruibuição dos


Participantes
Faixa Etária 30 à 40 anos 04
Tempo de Prisão atual 02 à 04 anos 03
16 anos 01
Fundamental Incompleto 03
Escolaridade inicial
Superior completo 01

Estado Civil Separado/Solteiro 02


União estável 02
Delito Principal Art. 33 01
Art. 121 01
Art. 200 02
Tempo Condenação 12 a 15 anos 03
Aproximado 116 anos 01
Reincidência Sim 03
Não 01
Cor Pardo 03
Negro 01
Raça Negra 04
Histórico de dependência Sim 03
química
Não 01
Estudou na escola da Sim 03
unidade penal
Não 01
Filhos 01 02
04 01
Nenhum 01
Fonte: Elaborada pela pesquisadora baseado nos textos de campo, ano 2018.
Dos dados apresentados, algumas características não foram contemplados na tabela,
contudo se revelaram importantes no trilhar da história de cada um dos participantes,
98

influenciando suas escolhas de forma significativa ao longo da vida e percurso de formação.


Dentre os elementos narrados destaco: a homossexualidade de um dos participantes, que se
revelou travesti ainda na adolescência; outro colaborador possui parte da família portadora do
soro positivo do Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV), com casos de óbito, incluindo
pós entrevistas, em que a ex-esposa, veio a falecer desta enfermidade; outro participante é
liderança religiosa, com número significativo de seguidores; e outro participante ter residido
fora do país no continente europeu. Por último, a partir do registro em caderno de campo,
compartilho algumas situações e impressões subjetivas diante das entrevistas desses
participantes.
O participante 1, desde a primeira entrevista narrativa, apresentou-se receptivo,
colaborativo, espontâneo, com humor levemente lábil. Verbalizou poucas perguntas referente
a metodologia deste trabalho, correspondeu a cada entrevista com riqueza de detalhes de suas
experiências de vida e formação. Demonstrou sentimentos de confiança na atividade proposta,
necessidade de falar e ser ouvido de alguma maneira. Foi participante assíduo de um grupo
psicoterapêutico pelo período aproximadamente de um ano. Na data das entrevistas, exercia
atividade laboral junto ao setor de obras da unidade penal, sendo priorizado o trabalho em
relação à entrevista. Contudo, não atrapalhou suas contribuições no processo de investigação
pelo teor de sua autenticidade e entrega à pesquisa. O participante é de cor parda,
apresentando queimaduras do sol, tipo magro, de fala articulada, coerente e pensamento
reflexivo. Manifestou-se choroso algumas vezes durante a entrevista, queixando de conflitos
existenciais, muitas delas ligada ao delito que havia cometido no seio familiar. A
transgressão, qualifica ser a principal fonte de seu sofrimento, mais do que a privação de sua
liberdade. Informa receber visita de seus pais e irmão – eles se revezam para me ver
(Participante 1, junho de 2018). O colaborador apresenta histórico de dependência química
desde seus quatroze anos de idade, consumindo pasta base e outras drogas, bem como abuso
de álcool. Interrompeu o uso dessas substâncias apenas quando foi preso por esta última
infração. Histórico de prisões provisórias foram mencionadas também, todas relacionadas aos
conflitos familiares, como violência doméstica. O participante não conluiu o estudo do
segundo grau e desistiu de estudar na escola da unidade, atribuindo a desistência na bagunça
dos presos em sala de aula e o tempo dispensado ao estudo (noturno), ser o horário para
“organizar suas coisas”, lavar roupa, limpar a cela, “produções” de fonte de renda com
artesanatos.
99

O participante 2 apresentou características divergentes da maioria da população


carcerária informada no capítulo um deste estudo, por apresentar escolaridade de nível
superior, ter residido em outros países e falar razoavelmente uma língua estrangeira. Porém,
faz parte do público privado de liberdade, sentenciado, custodiado há dois anos e cinco meses
aproximadamente. Demonstrou-se receptivo a pesquisadora, empático, de humor alegre,
contudo, ao processo da gravação das entrevistas manifestou cautela e insegurança durante o
procedimento. No seu discurso, verbalizou com frequência a palavra “eles”, referindo-se a
pessoa privada de liberdade. Comentou que sofreu muito no início da sua estadia no ambiente,
referindo-se não ter lutado tanto na vida para parar naquele ambiente. Entretanto, ao longo
do tempo, foi conquistando o espaço e confiança dos agentes de segurança e demais
funcionários. Até o momento da entrevista atividade, ele realizava atividade laboral de
auxiliar administrativo. Possui nível superior- tecnólogo, não impedindo de realizar a
aprendizagem no interior da unidade no quesito profissionalizante a distância, utilizando os
correios como mediador. Recebe visitas da sua família, mãe e irmãos. Este é pardo, de
estatura mediana, é divorciado, possui um filho deste relacionamento.
O participante 3 aqui me referirei “A” participante, por fazer parte de uma população
carcerária considerada especial dentro do sistema prisional, a LGBT, por ser travesti. Ela está
na sua quinta prisão aproximadamente respondendo na maioria delas por tráfico de drogas. A
participante já contribuiu dentro da unidade com outros serviços externos, refere-se ter dado
entrevistas há um projeto social sobre a comunidade LGBT sobre a ala Arco-íris18, na qual faz
moradia. Demonstrou interesse em ser ouvida chegando em alguns momentos a mandar
recados para a população LGBT durante a gravação da entrevista. Foi receptiva,
comunicativa, colaborativa, apresentando senso de humor durante a atividade, mesmo
queixando-se de problemas internos como desavença com colegas. Uma única entrevista teve
dificuldade em falar de si, repetindo as informações já compartilhadas, contudo não durou
muito tempo, retomou sua espontaneidade. A participante mantém uma união estável com
seu companheiro do corredor da cela. Durante a entrevista se apresentava produzida,
pontando brincos grandes na orelha, sobrancelhas pintadas, os cabelos soltos e longos que
cobriam toda costa. A entrevista na maioria das vezes soou em tom de confidência das suas
atividades diárias. A participante possui histórico de dependência química desde seus 14 anos
idade aproximadamente, fazendo uso de pasta base e outras drogas. Em relação a isso, refere-
se à interrupção do uso – estou limpa, desde que construiu um veículo afetivo com seu atual

18
Única ala prisional no Estado destinada à população LGBT.
100

marido como nomeia, há um ano aproximadamente na unidade prisional. Até a data das
entrevistas, não frequentava a escola, referindo-se a necessidade de dar atenção ao marido,
sendo esse o período disponível para estudar. Em contrapartida, ocupa-se com a confecção de
artesanato no interior da cela e outras atividades, quando solicitada pela equipe de agentes de
segurança no interior da unidade. Refere-se a um desgosto com a equipe administrativa
referente ao estudo, porque frequentou a sala de aula por um tempo e não sabe qual disciplina
foi aprovada e em qual série está. Só sabe que ainda não concluiu o ensino médio e
desconhece o tempo que falta para terminar este período estudantil. Atribui este
descontentamento como a causa da desistência escolar. A participante não recebe visita
familiar. Informa ser o genitor vivo, sua mãe é falecida, possui irmãos que moram próximo da
unidade, recebe informações destes às vezes por visitantes de outros presos. A participante é
parda, não possui filhos e está em sua segunda união estável.
Participante 4, apresentarei algumas características deste participantes, contudo seus
relatos não serão apresentados no próximo capítulo, devido ao mesmo não ter assinado o
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que é exigido por essa pesquisa. Sua
identidade, assim como as dos outros participantes, será mantida em sigilo. Devido sua
desistência ser um dado relevante a discussão da própria pesquisa no sistema prisional, realizo
alguns apontamentos sobre a não conclusão de sua participação. Este apresentou-se surpreso
com o convite para a participação da pesquisa, referindo-se aos aos mais de quinze anos de
recolhimento na prisão, em várias unidades penais, incluindo as interestaduais, ainda não
haver recebido tal convite. Entre a entrevista inicial e as seguintes houve alterações na
posturas do colaborar, oscilando entre seu interesse na participação da pesquisa e a labuta por
dividir suas experiências, que re referiu ter se tornado “pesado”, durante as entrevistas –
lembrar do passado faz a cadeia ficar pesada para mim. No movimento retrospectivo e
prospectivo, ao narrar seu passado, revivia no presente uma vida de sofrimento na qual quer
esquecer. Pelo corpo, traz cicatrizes de arma de fogo e perfurações de faca adquiridas na vida
louca que vivia, como se refere, à “vida das transgressões e do crime”, que há anos havia
abandonado, quando converteu-se à vida cristã e religiosa. Casou-se algumas vezes antes e
durante a prisão, sendo seu estado civil durante as entrevistas, solteiro. Desses
relacionamentos diferentes teve filhos, comenta ter bom vínculo com eles. Informa que alguns
ter concluído ou fazendo faculdade. Comenta ter se separado dos pais ainda na infância, vindo
da zona rural para urbana a fim de estudar. Teve um histórico de maus tratos nesse período
pela família em que o abrigava. O genitor teve morte precoce. Serviu o exército brasileiro
101

quando alcancou a maioridade. Qualifica a entrada no mundo do crime por influência de


colegas. Relata que vieram a óbito muitos deles e outros que conheceu nesta mesma vida, o
que o motivou tentar sair várias vezes da criminalidade. Pelo vínculo que possuía com o
crime, como proteção de si e seus familiares enfrentou dificuldades, pertencendo ao passado a
vida de transgressões. Na unidade recebeu visita regular de sua genitora, irmã e filhos.
Comenta sobre o sonho de fazer a faculdade de Direito e quem sabe um mestrado. O
colaborador era apresentável durante a entrevista, usando camisa social em vez de camisetas.
Nas últimas entrevistas comentava não sentir-se bem em falar de si, da pessoa que era, com os
maus hábitos que possuiu e que agora não apresenta mais. Chegava atrasado na entrevista,
relatando estar atarefado, em outros momentos não comparecendo pelos mesmos motivos,
solicitando que outro preso informasse a sua ausência. Numa dessas situações, por recado
comunicou a pesquisadora que não poderia mais participar das entrevistas por que se
encontrava doente. A informação foi confirmada pela equipe de profissionais, que o mesmo
passaria por uma cirurgia. Em atendimento ao cronograma da pesquisa e encerramento da
investigação de campo, sua participação foi encerrada. O colaborador narra experiências de
vida e formação que recebeu ao longo dos anos no interior de unidades prisionais. Esta
menção refere-se à educação da prisão que recebeu, as aprendizagens adquiridas na
informalidade da sociedade dos cativos, o fruto de experiências vividas e sobrevividas, além
da resistência (pelo tempo dedicado ao crime e ainda manter-se vivo).
Ao longo desse estudo me convençi de que muitas respostas que a sociedade procura
para entender os fenômenos ligados à segurança pública, encontram-se principalmente em
pessoas que sobreviveram às adversidades, desbravaram o mundo dos excluídos, romperam
com os direitos humanos e tiveram seus direitos também rompidos em alguns momentos por
parte dos dispositivos responsáveis pelo seu resguardo. Contudo, essas mesmas pessoas
privadas de liberdade almejam por uma (re)socialização digna e pela reconquista da
cidadania.
Onofre (2011, p. 283), vai ao encontro disso: “a liberdade é a grande expectativa de
vida, objetivo, sonho e motivação maior para sua existência. Tudo gira em torno dela: estudo,
trabalho, oração, aceitação das grades.” Em consonância a esta citação, Freire (1987) também
diz que a liberdade é a única forma de emancipação humana.
O desafio é se libertar não apenas das grades da prisão, mas daqueles que escravizam
nossas verdades, sequestram nossa subjetividade, alienam a nossa identidade e tiram a nossa
autonomia. É na promoção de diálogos com sociedade dos cativos, que conseguimos
102

transformar este silêncio em vozes, obstinação para uma sociedade justa e democrática, em
que todos queiram pertencer.
Após estes apontamentos, sigo enfim com a própria narrativa dos participantes, como
se percebem e como olham o sistema penitenciário, em que sentido e significado concebem ao
experienciado.
103

4 NARRATIVAS DE VIDA E FORMAÇÃO COMPONDO SENTIDOS DAS


EXPERIÊNCIAS
Quando eu saí em direção ao portão que me levaria à liberdade,
eu sabia que, se eu não deixasse minha amargura
e meu ódio para trás, eu ainda estaria na prisão.

Nelson Mandela

Destino este capítulo à composição de sentidos que acredito partirem das experiências
centrais da pessoa privada de liberdade no decorrer de sua formação humana. Baseado na
ideia de experiências de Dewey (1959, 1979), tendo-a como ação do indivíduo que, afetado
por seu meio se posiciona diante dele e a educação, o processo de reconstrução, reorganização
dessa experiência, ampliando-lhe o sentido e dirigindo o seu curso subsequente.
A experiência tem caráter tanto de continuidade quanto de interação para este autor,
afirmando que os novos acontecimentos devem estar relacionados com os das experiências
anteriores, o que significa avanço a partir da articulação feita entre fatos e ideias. Logo, toda
experiência é individual e social que prepara a pessoa para outras experiências mais
profundas.
Assim, esse material foca neste educando privado de liberdade, um ser incompleto,
inacabado e inconcluso, como bem expressou Freire (1988), que encontra-se em constante
formação ao longo da vida.
Dada as fundamentações, considerando os objetivos do presente trabalho, priorizamos
os relatos que remetem a experiências e formação da pessoa privada de liberdade de um
centro de (re)socialização e os sentidos atribuídos e (re)construídos na e por essas
experiências, em atenção à concepção de ser humano que se delineia em suas narrativas.
Nesta perspectiva, Onofre (2011, p. 275, grifos do autor) comenta que

pouco se tem ouvido ou dado importância, ao que os aprisionados têm a dizer sobre
as instituições, pois no seu interior, sempre estiveram em desvantagem: estão
destituídos de qualquer forma de diálogo; é sempre em torno deles que as pesquisas
e as propostas são pensadas e não com eles.

Nesses termos, conduzindo metodologicamente nossos estudos pela investigação


narrativa dos participantes privados de liberdade, destaca-se o fator colaborativo de produção
de conhecimento e de busca de alternativas a uma educação e (re)socialização emancipadora.
Dominicé (2014, p. 182) já apontava a necessidade da descentralização na visão da educação
reduzida ao ensino, elencando como foco de compreensão a formação que se dá ao longo da
104

vida através das “interações, articulações e equilíbrios”, que “se desenha, ao sabor de um dado
percurso da vida, aquilo em cada um se torna”. Explica:

A história de vida é outra maneira de considerar a educação. Já não se trata de


aproximar a educação da vida como espaço da educação. A história de vida passa
pela família, pela escola. Orienta-se para uma formação profissional, e em
consequência, beneficia-se de tempos de formação contínua. A educação é assim
feita de momentos que só adquirem o seu sentido na história de uma vida. Esse
recurso biográfico não é proposto para ir contra uma suposta objetividade. Não se
opõe do silêncio do sujeito. É mais destinado a compreender o que sucede à
educação nos processos de formação de adultos, e, em consequência, a acrescentar
momentos educativos ao contexto histórico mais vasto de seu significado.
(DOMINICÉ, 2014, p. 188-189)

Pautando-nos nesses teóricos que nos permitiu dar sentido no que agora construímos
pelo olhar interpretativo reflexivo, “para contar as experiências historiadas pelos participantes
e representar suas vozes, e ao mesmo tempo tentar criar um texto de pesquisa que falará e
refletirá as vozes do público", (CLANDININ; CONNELLY, 2011, p. 195). Para esses autores,
esse é o objetivo do textos de campo: falar pelas múltiplas vozes, seja do pesquisador, do
participante e outros pesquisadores para que um texto fale à audiência do texto, como
denominaram.
As vidas historiadas no texto da pesquisa, moldadas pela experiência, permite que a
memória tenha um papel significativo nesse contexto, sinalizando essas experiências no
espaço tridimensional, bem como transformando-a em contato com o texto da pesquisa, num
movimento constante de aprendizado e formação, como seres inacabados que somos.
Essas narrativas se isentam de pretensões de verdades absolutas, pelo fato de serem
“fundamentalmente um texto temporal – a respeito do que tem sido o que é agora, e o que está
se tornando” (CLANDININ; CONNELLY, 2011, p. 193).
Em consideração, “o movimento de construção das narrativas de uma experiência
envolve uma relação reflexiva entre o viver, o contar, o recontar e o reviver a história vivida”
(MARIANI, 2016, p. 137) e “a relação de pessoa e lugar, que contextualiza o presente, frente
ao passado e futuro” (CLANDININ; CONNELLY, 2011, p. 194), temos o espaço
tridimensional que se materializa a pesquisa.
Para compreensão, em sua temporalidade, socialidade e lugar, situado na perspectiva
do sistema penitenciário, seguimos com as narrativas dos participantes desta investigação e a
composição de sentidos das experiências, distribuídas nos seguintes eixos: sentido da família,
sentido da escola e sentido da prisão.
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Os participantes, com uma única exceção, autorizaram a publicação de seus nomes,


contudo, na tentativa de preservá-los de qualquer inconveniente que possa ocorrer,
escolhemos pela não divulgação de suas assinaturas nos narrados, por conta de se seguirem
privados de liberdade até a publicação deste material. Optamos também pela preservação de
suas narrativas na íntegra. Vamos aos contextos.

4.1 O SENTIDO DA FAMÍLIA

Inicio este item com informações relacionados aos sentidos relacionados a família dos
participantes, de que contextos vieram, dinâmica familiar, valores e relacionamento
adquiridos com seu primeiro grupo de socialização, sua família e como percebem a partir dele
os demais contextos ao longo das narrativas.
Trazemos aqui tanto informações relacionados a convivência familiar dos participante
como também suas impressões e projeções sobre si e suas relações. Este item trás informações
relacionadas às dimensões de temporalidade, de socialidade e lugar em um movimento que
envolve passado, presente e futuro das narrativas referente a família. Compartilhamos a forma
como se apresentam primeiramente:

Meu nome é X, sou gêmeo (idêntico) com X e tenho uma irmã e um irmão mais velhos.
Eu nasci em 1985, eu morava na cidade, depois fomos morar num sítio. (Participante
01,07/08/18). Eu e meu irmão (gêmeo), nós sempre fomos muito unido, sempre,
desde o primário, nós sempre tá junto, ia jogar, ia pescar que a gente pescava
muito... Minha irma sempre estava meu lado, cuidando e protegendo. (...) Quando
meu pai conheceu minha mãe meu pai tinha 32 e minha mãe x, ele conheceu ela,
namorou assim só de pegar na mão, casou na igreja, casou no cartório, aí que foram
morar junto, aí que tiveram filhos lógico, né! (Participante 01, agosto de 2018).
Eu tenho 37 anos, tô aqui pra contar um pouco da minha vida aí, minha história de
vida pra vocês. Venho de uma família de quatro irmãos, eu e mais três. Sou o
caçula. Na verdade, a minha mãe e o meu pai já tinha vindo de um primeiro
casamento, né? Que também teve quatro filhos (o pai) e esses quatro filhos a minha
mãe ajudou criar. Total, né, de oito contando com a gente. Fui bem assistido, bem
acompanhado até 13, 14 anos com a presença do meu pai e a minha mãe. Com a
separação dos dois, né, meu pai separou, ficamos com minha mãe. (Participante 02,
agosto de 2018).

Meu nome é X, estou preso há cinco anos e alguns mesinhos, mas ano que vem em
nome de Jesus (tô indo) embora. Vou contar minha história, começar com meus 12
anos (que por ser) homossexual, tinha muita piadinha, entendeu? Eu vim muito
cedo pros mundo das drogas, vim presa, com 21 anos tive minha primeira cadeia
com tráfico de drogas lá na Mata Grande. Não sofria abuso sexual lá. Estudo eu não
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estudava, mas eu vim depois pra cá, fui presa de novo, tô no arco-íris há cinco anos,
né, agora. Sou a mais velha de lá, estudava, parei de estudar também porque eu
chego cansada da rua, né? E sou casada com um rapaz de 26 ano, fui casada em
2015, separei (depois de 2 anos). (...) Eu sou o filho mais novo de sete que meus pais
tiveram. Fui criado mais com as pessoas de fora, não fui criado com meu pai e nem
com a minha mãe. Por que eles trabalhava, minha mãe no hospital (limpeza) e meu
pai numa empresa de construção (serviços gerias empresa de asfalto). E eu passava
muito tempo na rua com os filho dos outros, fui criada na casa dos outros, meus
irmãos não ligava pra mim, eles saía pra rua também. Fui criada com os amigos,
criada assim por Deus. (...) Eu via ele (pai) chegar, mas não via eles (pais) sair.
Tinha vez que eu não via nem ele chegar porque ele chegava tarde, né? Minha mãe de
plantão de limpeza (auxiliar) lá, então tinha vezes que eu nem via eles. Com eles eu
tinha comida, entendeu? Como fala? Uma vida maravilhosa, mas eu não tenho nada
à reclamar dos meus pais, por mais que... eles caçava dinheiro pra dar o melhor pra
mim, o errado fui de desandar na vida. Meus pais não teve culpa, por causa a vida
de primeiro era mais difícil, não tinha tanta oportunidade (Participante 03, agosto de
2018).

Os participantes embora em situação de privação de liberdade, vieram de distintos


contextos, no entanto se aproxima em suas falas o momento “de desandar na vida”, no
período da infância e início da adolescência. O participante número 2, diverge de outros
participantes, no quesito separação dos pais, escolaridade ser de nível superior e ter contato
cultural diversificado ao residir na Europa, anterior situação do cárcere, por motivo de
trabalho. Sobre relacionamento dos pais, participante 1 conta a respeito:

Meus pais brigava muito, por que meu pai tinha voltado a beber. Eu presenciei
minha mãe agredir meu pai por várias vezes, um certo dia minha mãe tentou beber
veneno, depois que eles tinham brigado bastante. Um dia meu pai levantou de
madrugada escondido e foi embora, levando todo dinheiro que estava na conta do
banco, de uma casa que eles tinham vendido. Eu lembro que minha mãe chorava
muito e procurava meu pai por toda parte. Chegamos a ir num programa de rádio.
Enfim não conseguimos encontrar ele em lugar nenhum. Um certo dia nós estávamos
na escola, a minha mãe dando aula e nós filhos estudando e de repente chegou meu
tio X, irmão da minha mãe, ele disse que meu pai tinha voltado e estava lá em casa.
Nós todos corremos para a casa, chegando lá foi só choro, por que nós estávamos
com muita saudade, ele tinha dito que tinha ido para São Paulo e tinha gastado todo
o dinheiro, gastou com bebidas e prostitutas, ele perguntou para minha mãe se ela
perdoava ele, e se aceitava ele de volta, minha mãe aceitou e disse que perdoava ele.
Continuamos morando ali por vários anos (sítio). (Participante 01, agosto de 2018).
(..) O meu pai ele fazia biscoito caseiro, broinha de polvilho, essas coisas e ele saía
nessas repartição do governo com as sacolas cheias assim de manhã e ele enquanto
não vendia tudo, não voltava. Então eu ficava admirado de ver o meu pai sair com
aquelas sacolona de biscoito e ele voltava sem nada, entendeu? E ele já chegou pra
mim e falou assim “rapaz, aquela época eu vendia biscoito às vezes pouco, pensava
que em casa tinha as crianças que precisava daquele dinheiro, eu não podia
107

desinteirar nada” porque nós tava contando com ele, né? E ele com um deslize dele
ele perdeu a casa, encheu a cara na bebida, foi pra prostituição, ele fugiu de
madrugada, com todo o dinheiro. Hoje não tem mais isso, (...), só que passou esse
período aí meu pai demonstrou quem verdadeiramente ele era. Ele mostrou...(...)Ele
voltou e mostrou que ele era um homem guerreiro, que ele gostava da família, ele
lutou por nós mesmo, se arrependeu, pediu perdão. (Participante 01, agosto de 2018).

Os pais do participante 1 teve papel significativo em sua formação ao longo da


narrativa. Seu pai com a dependência química -etanol e os comportamentos inconstantes que
possuía, e os tios por parte de mãe que influenciaram muito na identidade deste. A classe
econômica era baixa, morando sua infância num sitio longe da cidade e escola
aproximadamente 5 km, e na adolescência num cubículo de duas peças com seus pais e 3
irmãos, como relata adiante.
Em outras palavras, vejo nos relatos momentos de proteção, de pertencimento com a
família na infância, advindas de família “estruturada”, como denominou o participante 1, de
uma criação ortodoxa cristã, de família tradicional nuclear, que não deixou de apresentar
problemas de relacionamento. Das relações conflituosas, cada uma tinha uma maneira de lidar
com os problemas, o pai recorrendo no alcoolismo e literalmente do próprio espaço
geográfico que se encontrava, a mãe reagindo com agressividade. No entanto, a família é
afetiva, possui vínculo satisfatório entre si, que faz prevalecer o perdão frente as desavenças
da vida e a união mesma nas diferenças, sem ao menos deixar sequelas, nas crianças
principalmente que estão em fase de formação.
Considerando a experiência relacional que o indivíduo singular construirá sua
realidade interna, por meio de representações que sofrerão mudanças ao longo da história, os
sentidos adquiridos do mundo, cultura e de si ainda na infância, faz desse período essencial
para assimilar a dinâmicas de suas relações sociais, para a partir disso interagir e modificar o
meio que a cerca.
Assim, o participante 3, quando fala que os pais precisam se ausentar por conta do
trabalho e o 1, quando narra a traição do pai a família, ao mesmo tempo que o redime, pois no
final mostrou o pai amoroso que era. Ambas situações traz algo em comum, a vulnerabilidade
da criança, frente a vida, as situações, a si mesmos, podem ter deixado registros de
desproteção, desvalor e baixa estima nos participantes, o que ajudaria a compreender vários
de seus comportamentos ainda na adolescência e vida adulta.
Uma experiência narrada pelo participantes 03, mostra bem esse vivivo ao longo das
narrativas:
108

Meu primo, o meu primo teve, ele manteve relação sexual comigo, entendeu? Acho
que era criança ainda, você entendeu? Adolescente mais ou menos. Ele começou a
esfregar o pinto dele em mim... ah não lembro direito, lembro que ele começou a
esfregar o pinto em mim, entendeu? E mandou eu chupar o pinto dele, foi nessa
época assim. Aí eu fui descobrir... ser homossexual. Aí eu comecei a brincar de
boneca, comecei a brincar de casinha com a minha sobrinha, cuidava da minha
sobrinha também, brincava com minhas boneca, na minha vida, aí virei o que sou,
uma homossexual (Participante 03, agosto de 2018).

A experiência traumática do abuso sexual do participante 3, gerou significações


oriundas do vivido, Dewey (1976) chamou de continuidade, ressaltando o sentido construído
das experiências presentes, pois estas afetam de qualquer maneira sempre o futuro. Embora
não aparece no relato acima, essa experiência relacional ocorrida com aproximadamente seus
07 anos de idade, como narra em outra ocasião, adquiriu proporções ao longo da vida da
participante:

Minha construção de mulher foi a partir do momento que saí das casas dos meus
pais, com 12 anos como falei e fui para a casa das bichas e lá tinha um travesti.
Lembro até hoje a roupa que vesti, foi uma sainha de babadinho, e uma mini- blusa,
um topinho. Meu cabelo já estava chanelzinho já. Meu irmão me olhou de costas e
achou que eu era uma menina. Quando ele me viu ficou louco, querendo dá (bater)
em mim. Porque estava vestida de mulher. Vestida de mulher, eu me vi diferente, eu
vi eu mesma! Eu olhava no espelho e não me via, cabelo curto.. assim. Não me
adaptava a espelho. Como fala.. Eu nasci no corpo errado! Tenho alma feminina mas
num corpo errado. Mesma coisa que você chegasse agora aqui e perguntasse:
“Eduarda você aceitaria fazer uma cirurgia agora, nesse exato momento? Completo,
rancar seu órgão genital ((tirar))? Por um peito?”Ah mulher! Cadê o papel para eu
assinar?! O que me incomoda é o pinto. Por mais que muitas usam ele, eu não uso.
Minha identidade é feminina não masculina. (...) Meu modo de agir com as pessoas,
mas tem certas pessoas que tenho que agir dura. Se você falar um muito mansa ela
que montar em cima da gente. O modo de andar, dialogar com as pessoas (...) Se acha
bonita, maquiar, fazer uma sombra, passar um lápis, um batom, colocar um brinco,
andar cheirosa. (Participante 03, agosto de 2018).

Pelo vinculo fragilizado da participante com a família durante a vida, em especial na


infância, marcados por certa ausência dos pais, que passavam o dia fora de casa enquanto
trabalhavam, somado a questão de ser ela mesma minha identidade é feminina não masculina,
e o preconceito por parte da família, pelas represálias sofridas frente a escolha de identidade
de gênero, podemos dizer que esse emaranhado facilitou a entrada da drogadição na vida da
participante e tudo que dela engendra, como a dependência química, tráfico de drogas,
encarceramento, e as diversas formas de deteriorização humana como descreve:
109

(Choro) Eu tinha família, mas minha família não me aceitava do jeito que eu era e
mesmo assim, eles não me aceitando, eles me ajudavam, entendeu? O meu pai me
ajudava e minha mãe, eles queria que eu fosse embora pra lá, mas meus irmãos não
me aceitava o que eu era meu irmão não me aceitava, ele batia em mim, puxava meu
cabelo. Eles sabia, mas fingia que não sabia, entendeu? Que era homossexual, mas
fingia que não sabia, eu morava junto com duas travesti, ele sabia que era veado. E
eles ia me ajudar, mas eu não gostava de pedir as coisas pra eles, eu não queria
depender deles, eu queria ter força de vontade e conseguir o que era meu. entendeu?
E um pouco das piadinhas.. (...) Eu acho que usei muita droga, fez eu esquecer o
passado um pouco. (...) A droga entrou na sua vida com meus 12 pra 13 anos, elas
que me deram a droga, nós vendia, elas usava droga, mas não me dava. Quem me
deu droga foi outra que morava em outra casa, um belo dia ela me chamou pra sair
com ela e me chamou pra fumar lá na hora da festa, ela me chamou, me chamou pra
fumar, eu tava bêbada já, entendeu? E comecei a fumar droga com ela, ali eu
comecei com a desgraça na minha vida.
(...) Eu fiquei um bom tempo usando pasta base, eu parava e depois voltava (...) Mas
eu voltava de novo, eu era seca, parecia um – que Deus me perdoe – parecia que eu
tinha AIDS de tão seca que eu tava, um tempo minha mãe perguntou pra mim se eu
tava doente que eu tava seca. Por causa da pasta base que eu perdi minha vida, eu
perdi meus dentes de cima e trouxe pra cadeia várias vezes. Não, não fui mais pra
escola... (Participante 03, agosto de 2018).

A qualidade ou o valor de uma experiência consiste em examinar o que sucede após


ela, ou seja, que será de qualidade quando se levar em conta as experiências futuras, sendo de
má qualidade ou deseducativa como atribuiu as experiência que produza o efeito de parar ou
distorcer o crescimento em direção a novas experiências posteriores.
Nesse sentido as experiências relacionadas a negligencia afetiva familiar de alguma
maneira, junto a outras relações construídas pelos participantes, marcadas pelo estigma por
exemplo e tudo que deles agregam, poderia ter contribuído para o abuso de entorpecentes
ainda na adolescência e vida adulta, bem como relacionados de alguma maneira, em 2 dos 3
participantes com o delito praticado.
Por outro lado, as significações das experiências, boas ou não, são enriquecidas pela
associação entre as experiências do passado e do presente, possibilitando o crescimento dos
indivíduos e seu desenvolvimento na capacidade de refletir, julgar e agir inteligentemente
diante de novas situações.

Teve uma fase, nessa fase eu passei muita necessidade, quando eu saí de dentro da
minha casa, né? Tanto que quem me ajudou dessa vez foi meus pais mesmo. Que
meu irmão chegou lá e era um barraco de tábua onde que nós morava, ele viu a
gente com pouca comida, só arroz e beterraba. Aí ele pegou, foi lá na casa do meu
pai e falou pro meu pai, entendeu? meu pai pegou e mandou me chamar lá em casa,
aí ele tinha feito uma compra na caixa e tirou alimento. Eu tinha meus 15 anos, 14
110

anos mais ou menos, mas por mais que eu trabalhava na casa dos outros não era o
suficiente, nós era em três entendeu, não dava para mim. Aí meu irmão chegou lá
com as compras e disse: pra você! E não é pra você passar fome. É isso. (Choro)
(Participante 03, agosto de 2018).

De qualquer maneira, mesmo não aceitando sua nova identidade –travesi e escolhas, o
cuidados da família era presente, mesmo que distante, e continuava ligado principalmente na
segurança básica biológica de prover alimentação, como diz seu irmão – não é para você
passar fome. Essa lembrança marcada pelo sentimento de pertencimento, cuidado, proteção,
fez com a participante a reviver a história narrada se emocionasse (choro). O amor dos pais e
família foram registrados pelo participante, que se emociona ao relatar a situação acima
narrada, o que contribui futuramente para fortalece-lo diante das adversidades da vida.
Sobre a figura paterna o participante 1 narra:

Quando minha irmã precisou estudar a noite, por que não tinha aula durante o dia
nas escolas onde estudávamos, o meu pai resolveu mudar para a cidade, ele
conseguiu um terreno em Várzea Grande. Com muita dificuldade meu pai vinha
todos os dias de bicicleta para a cidade. Meu pai vinha e voltava todos os dias para
casa, construiu duas peças e nós mudamos para lá. Foi uma época bem difícil, era
um bairro novo na região de grilo, não tinha agua encanada, energia passava longe,
mas nós não tínhamos outra escolha. Nessa época eu passei a frequentar a casa do
meu tio X (materno), meu irmão (gêmeo) e eu íamos todos os finais de semana na
casa dele. Nessa época eu tive meu primeiro contato com bebida alcoólica, junto com
meu irmão X (gêmeo), o tio XX (outro tio materno) e o tio XXX. Fomos para o bar
que era vizinho do tio X, jogamos sinuca até tarde da noite, bebíamos cerveja,
conhaque e outras bebidas. Era apenas curtição, no nosso ponto de vista é lógico.
Tudo parecia normal, mas meu tio X e sua esposa, minha tinha Xx eram soro
positivo, e minha tia Xx nunca aceitou que era doente e nunca aceitou tratamento. O
tio XX fazia certinho, mas ela não. Tia Xx adoeceu muito, foi internada e não resistiu.
Tia Xx faleceu e tio XX entrou em depressão, foi então que ele voltou a usar drogas.
Ele perdeu toda a sua responsabilidade com a vida. Não tinha mais compromisso
com nada. Meu irmão (gêmeo) nessa época estava morando com ele, e ficou com a
responsabilidade de tudo. Ele abria a bicicletaria (que o tio tinha) cedo, ele pagava
as contas, fazia compras, enfim, ele tentava tomar conta de tudo, nós tinha mais ou
menos 17 anos nessa época. O tio XX afundou nas drogas, vendei a casa com a
bicicletaria, pegou uma entrada e parcelou o restante. (...) Minha avó mãe da minha
mãe, estava morando ao lado da nossa casa (pais), comprou um lote com um
barraco de tabua, em frente a nossa casa e trouxe o tio XX para morar ali, perto
dela e para ela cuidar dele. (Participante 01, agosto de 2018).

Proporcionar o estudo aos filhos, sempre foi uma prioridade para esta família, que
apesar de não ter condições financeiras, não faltou coragem para lutar diante das adversidades
para que continuassem estudando. O genitor do participante, após conseguir um pedaço de
111

terra, evadiu-se da zona rural em direção a cidade grande, que apesar de possui a escola
maior, seu bairro de moradia, onde possuía a escola para que a filha pudesse seguir com os
estudos, ainda não podia proporcionar outros serviços comunitários – não tinha agua
encanada, energia passava longe, mas nós não tínhamos outra escolha, abrindo mão de
tudo que construíram anteriormente para lançar-se ao novo por vir.
Com o passar do tempo, mesmo com a presença e cuidado da figura paterna, outros
vínculos familiares começaram ganhar importância na vida do participante, desta vez de uma
forma mais intensa. O contato com o álcool e outras drogas veio acompanhada dessas
relações, e da maneira como lidavam com atribulações da vida, que em compensação eram
regadas de cuidado e pertencimento, como pode ser visto no relacionamento de seu irmão
com o tio, depois da avó diante do filho em sofrimento. O participante narra ainda as
experiências de atividades laborativas, concomitante ao início da drogadição:

Eu e meu irmão (gêmeo) começamos a trabalhar em uma bicicletaria em Cuiabá.


Íamos todos os dias de bicicleta e voltávamos (Várzea Grande à Cuiabá). Então
resolvi trabalhar no bar mesmo ali no bairro (bar vizinho onde era a casa do tio XX),
ele abriu duas distribuidoras e uma eu tomava conta para ele. Um certo dia eu
comprei duas caixas de cerveja para nós bebermos no final de semana e nós
estávamos bebendo lá em casa, meu irmão (gêmeo), meu tio XX e meu tio XXX,
derrepente meu tio XX chamou o XXX e eu para irmos no barraco dele. Nós fomos,
chegando lá ele (XX) começou a usar drogas, até ai tudo normal, por que nós
tínhamos visto ele usar várias vezes, mas nunca tinha a coragem de experimentar.
Mas o tio XX, usou e colocou outra porção da droga no cachimbo e falou para mim
fumar. Eu recusei, ele ficou nervoso, começou a ficar alterado e mandando eu
fumar aquela droga, eu também fiquei nervoso, eu recursei várias vezes, cheguei a
dizer para ele que “se ele quiser usar o problema era dele”, mas eu não queria. Foi
então que meu outro tio XXX disse: “X eu experimentei e eu gostei”! Nessa hora eu
parei e perguntei para ele, qual era a sensação e ele disse para mim –“boa, legal”!
O XXX era como um irmão para mim, nós temos a mesma idade, eu sempre me
espelhei nele, porque ele sempre se dava bem em tudo, no trabalho, com as meninas.
Enfim, eu experimentei foi quando passou todo efeito da bebida, passou todo o
cansaço do serviço, foi “mágico”. Foi uma experiência diferente, eu gostei muito.
(...) Eu voltei a trabalhar na bicicletaria em Cuiabá, e influenciei meu irmão a
experimentar a droga também. Quando nós vinhamos do serviço, nós já parávamos
na casa do tio XX, para fazer uso de drogas. A minha mãe percebeu a nossa
mudança de comportamento, certo dia ela me chamou para conversar, ela
perguntou se eu e meu irmão estávamos fazendo uso de droga, eu neguei, disse que
nunca tinha experimentado. (Participante 01, agosto de 2018).

O período da adolescência, em que o jovem começa a ter um pouco mais de


independência, poder sair, trabalhar, ter seu próprio recurso, se deslocar pela cidade, trouxe
também os emaranhados da vida adulta. O ambiente onde se encontra, as relações que
112

constrói nessa fase, são fundamentais para a formação do indivíduo, impactando de maneira
direta na forma de significação do mundo.
Conviver com a droga em entorno, pode ter contribuído para que ela seja familiar,
como pode ser visto em seu relato ao falar do tio XX, começou a usar drogas, até ai tudo
normal, mesmo acompanhando de toda destruição que seu uso acarreta. Contudo, essas
pessoas, apesar do vício, principalmente esse tio XX, não deixou de ser amado por sua família
e o tio XXX, sem deixar de ser admirado pelo participante. Mas cabe um questionamento?
Onde está a escola nesse momento? Por que os mecanismos de socialização que se encontra
na sociedade, não se destaca aqui, como as ações ligados a esporte, lazer, entretenimento? O
participante se aloca na parte laborativa, porém o que acontece que outros setores tornam
insignificativos a ponto da “viagem” da droga, ser o caminho que se destaca para o “bem
estar” deste participante. Será que realmente ele faz parte dessa sociedade? Está inserido
nela?! O que garante isso?!
O assunto, pensado a respeito do contexto prisional, nos remete ao que Wacquant
(2001), de quesito classe econômica, referindo-se o sistema prisional brasileiro, ser uma
verdadeira ditadura sobre os pobres, comentando sobre o estado apavorante das prisões do
país, que para ele se parecem mais com campos de concentração para pobres, ou com
empresas públicas de depósito industrial dos dejetos sociais, do que com instituições
judiciárias que servem para uma função penalógica.
Retomando a questão da família, um dado é importante para compreender a formação
do participante 1 ao longo de suas escolhas na vida, seu relacionamento amoroso. Na análise
narrativa, o movimento introspectivo e extrospectivo se destaca, ao contar sobre suas
angústias, insegurança e hostilidades sentidas diante do vivido no ambiente que se encontrava:

O fato quando eu conheci a [mãe da minha filha], ela me traiu com meu irmão
[gêmeo] e isso gerou minha filha e eu não sei até hoje, se é minha, se é do meu
irmão ou se é de outra pessoa, porque tinha um vizinho nosso que não saia lá de
casa. Eu trabalhava viajando, com carga e descarga de caminhão. Minha mãe já viu
ele saindo de casa era 2 horas da manhã (...) nesse período ela me traiu com meu
irmão e apareceu grávida. Ai eu peguei e me afastei dela, fiquei muito revoltado e
irado, por que assim eu não maltratava ela, tratava muito bem, era sempre
carinhoso com ela. Eu trabalhava. Fazia tudo para não prejudicar ela em nada
entendeu. Eu tinha meu vício e nem droga eu usava na casa dela, usava na casa da
minha mãe quando queria usar, tentava segurar as pontas, me esforçava bastante. E
ela pegou e fez isso, ficou com meu irmão, engravidou, disse para mim que não sabia
quem era o pai. Isso ai eu guardei essa revolta. Ela escondeu de mim acho que uns
quatro anos ou mais, que era soro positivo, eu convivendo com ela e sem saber
entendeu, correndo risco de ser contaminado também. Parecia que ela fazia de
113

propósito para me deixar irado, fazia parecer que ela estava me traindo, num tem!
Mesmo quando eu não estava na droga, por que quando a gente está na droga a gente
fica naquela paranóia. Parece que todo mundo está fazendo alguma coisa para te
prejudicar. Parece que sua mulher estava conversando com outro homem no celular,
fica aquela paranoia na cabeça da pessoa. Eu já tinha passado por isso, já ficava
preocupado. Quando usava droga já ficava de olho nela com o celular, o que ela
estava fazendo, com quem ela estava conversando. Ficava monitorando ela.
(Participante 01, setembro de 2018).

O relacionamento com mãe de sua filha, em outro momento da narrativa, conta ser
marcado por muitos conflitos e violência doméstica ao longo dos 10 anos de convivência, que
nem mesmo, quando privado de liberdade, foi interrompido, pois a mãe da filha ia visitá-lo e
me humilhava muito, refere-se o paciente no relato adiante. Uma relação marcada por
sentimentos de ambivalência, como mesmo narra acima e consequências para todos que
estavam ao entorno. Todavia, mais uma vez o afeto e valores relacionados a família se
destacam, o participante dirigindo sua ira a mae da filha e demonstrando isentar o irmão
(gêmeo) pelo feito, a traição e ainda com dúvida assume a paternidade da qual considera ser
sua única filha.
A cerca do relacionamento familiar, o participante 2 ao relatar revela sentidos
múltiplos envolvendo passado, presente e futuro:

E ela (esposa) ia administrando isso (finanças). E no meu retorno (ao Brasil),


quando eu havia já adquirido casa, já tava bem estabilizado, juntando no momento,
o que era o suficiente (recusos), até mesmo pra tá perto do meu filho, ver seu
crescimento, acompanhá-lo. E de lá pra cá vivi muita turbulência, né, depois disso
em cima da mãe do meu filho aprontou comigo. (...) Tudo que aconteceu assim na
minha vida, eu fui crescendo, eu foquei em mim, portas se abriram, eu fui crescendo
na vida profissional, contrário de mim pra ela não, né? Ela não conseguiu ingressar
mais, nada, nisso vieram as crises dentro de casa e tal. Uma coisa que eu tinha
muito, muito medo e que eu tinha vivido na vida era isso, né, a separação, o fato de
eu ter vivido isso lá atrás na minha infância, né? Eu não queria, jamais eu pensava
que ia acontecer um dia isso na minha vida e até mesmo pelo meu filho. Enfim, veio
a acontecer, não por causa minha, mas sim por outras circunstancias, que se acertou
e cada um seguir seu caminho, né? (separação conjugal do participante). (...) Essa
turbulência de ela querer que eu deixe os bens, briga judicial, né? Com bens que a
gente havia adquirido, para pagar as pensões, né, valores que eu não tinha
condições de pagar. Com isso veio toda essa tribulação, né? Eu estou aqui também
por um fato que vem ligado a isso também. Esse período aqui na minha vida pelo fato
de ela não aceitar as definições como nós colocamos. E ela sempre querendo mais,
querendo que eu abro mão das casas, coisas que a gente adquiriu, não dividir nada.
Sempre deixou bem claro, tanto pra mim quanto pra família, que ela atribuiu a mim
tudo de ruim. Atribui a mim e ela carrega essa mágoa, não sei o porquê, de nada ter
dado certo (trabalho) depois da situação... (...). Enquanto não visse eu, né, na
dificuldade, na sarjeta... Por que não tinha condições de eu tá aqui. Paguei a pensão
114

pro meu filho. Tudo mais difícil, né? Que aí tem minha vida que eu tenho que retomar
ela, né? A vida não é mais a mesma, aquela coisa de você ter o que você tinha, junto
em casa, você já não tem mais. Então meu filho, por exemplo, ele estudava na escola
particular logo no primeiro ano que ele ficou, depois a gente já não conseguiu pagar
mais então já teve que sair da escola particular. Então ele sofreu muito com isso
também, o baque grande pra ele, né? Num período, num momento que ele tava ali
formando o seu caráter. Ali precisando da presença do pai e aconteceu o que houve
comigo lá atrás também. Eu com 13 anos, né, o meu pai saiu de casa e aí nisso
aconteceu com o meu filho também. Ele não teve como segurar... E aí as coisas não
foram mais iguais. Aí vem a decadência com certeza. Mas assim tudo que eu pude
assistir ao meu filho, a dar... tipo, um plano de saúde eu consegui continuar pagando.
Mas escola não, escola ele já teve que ir pra rede pública que é mais difícil, ele
sempre estudou numa escola particular e teve que do nada ir pra rede pública. O
impacto é grande pra ele, com isso, como ela sempre ela atribuiu tudo que aconteceu
na vida dela atribui a mim até hoje, ela deixou bem claro que enquanto não visse eu
aqui, na situação que eu me encontro hoje, ela não ia ficar sossegada. Todo tempo
ela com aquela ganância, aquela coisa, aquele coração ruim, foi buscando os meios
que ela pôde pra fazer isso. E eu tô aqui pagando uma situação, né? Que ela
colocou, atribuiu a mim, não houve, porém. A lei hoje não tem um respaldo (para o
homem). Totalmente a lei. Não tem materialidade nos fatos que ela colocou, mas pelo
fato de ter uma denúncia que eu tô aqui junto com as pessoas que ela me denunciou
eu tô aqui ainda hoje. Tentando solucionar... (Participante 02, agosto de 2018).

O participante narra seu relacionamento familiar marcado por lutas, afinal foram 4
anos de relacionamento a distância, que ao atingindo seus objetivos, ligados a questões
materiais, sofre a turbulência como denomina da separação conjugal, carregados de conflitos
e frustações, para ele, sentida como uma cilada para prejudicá-lo, criada pela ex-mulher e sua
família, para chegar onde se encontra durante a entrevista, privado de liberdade.
Os elementos do espaço tridimensional da pesquisa narrativa podem ser vistos de
forma: introspectiva, quando narra seus anseios de trabalhador fora do país, anseios
relacionados à criação do filho, medos da repetição do vivido no passado; extrospectiva, a
situação da esposa administrar as finanças por exemplo; retrospectiva e prospectiva referindo-
se ao vivido na infância, adolescência, à vida profissional de um presente recente e à
separação conjugal conflituosa que teve e como tem anspirado solucionar a situação.
O participante não vê responsabilidade nesse contexto no delito de crime sexual, que
apesar de não estar no relato acima, foi acusado de praticar contra sobrinha da ex mulher, pelo
qual foi julgado e condenado, pelo contrário, sente-se (re)vitimizado duplamente, pelos danos
sofridos com o fim do casamento, com a divisão dos bens e agora sem sua liberdade,
alimentando seu sentimento de injustiçado.
O fato veio acompanhado também de um drama familiar vivido anteriormente pelo
participante, ocorrido para separação de seus pais, que agora seu filho experiência de seu
115

divórcio. Os medos do participante de materializaram e sua expectativa de conviver com o


filho após período de ausência foi marcado pela frustração da separação pela prisão.
Sobre o relacionamento familiar, os relatos se configuram na direção introspectiva e
extrospectiva do espaço tridimensional da pesquisa narrativa. O participante 3 revive cenas
dessa convivência, conta seus anseios, esperanças ao mesmo tempo que realiza projeções do
seu futuro:

Eu quero mudança de vida, muito. Não pretendo voltar mais no mundo das drogas,
tanto que eu não quero voltar pra onde que eu morava, e não tenho um lugar pra
morar, por causa que eu não vou morar com os meus parente. Minhas irmãs são
todas casadas, as casas delas são pequenas, mal cabe eles dentro, eu não tenho casa
então esse vai ser um desafio muito grande pra mim por causa que se eu tivesse
como fazer um plano Minha Casa Minha Vida19, eu pudesse ganhar essa casa Minha
Casa Minha Vida, ter uma segurança que “aqui é meu, daqui ninguém me tira,
daqui eu vou construir o que é pra mim” é isso, mesmo sendo convidada para mora
na casa da minha sogra, né? Mas morar na casa de sogra não é a mesma coisa, hoje
a sogra tá de boa, amanhã ela já não tá de boa e eu também já sou bipolar também,
no mesmo tempo que eu tô de boa, não tô mais. (Participante 03, agosto de 2018).

A preocupação com o futuro é constante pela pessoa privada de liberdade, sobre o


retorno a sociedade, apesar dos vínculos que construiu em sua estadia na unidade prisional,
não são suficientes para sua segurança afetiva e de moradia quando em liberdade. A ausência
ou fragilidade de políticas públicas que acompanhem a população carcerária, quando em
situação de liberdade
Onofre e Julião (2011, p. 59), analisam esse o processo de socialização ou
(re)socialização em que “são quase nulas e potencializam as fragilidades já existentes, como
os vínculos com a família, os valores da vida e a participação social. (...) A exclusão é global:
exclusão da escola, do trabalho, da integração social, do emprego, dos laços familiares e com
ausência de relacionamentos”.
A educação escolar, é uma ferramenta de enfretamento a essa realidade por ser “um
processo global porque recolhe pedaços dispersos da vida: dá significado ao passado, oferece
ferramentas para formular projetos individuais no presente, e ressignifica as perspectivas de
futuro” (ONOFRE; JULIÃO, 2011, p. 65).

19
O Programa Minha Casa, Minha Vida foi lançado em março de 2009 pelo Governo Federal. Subsidia a
aquisição da casa ou apartamento próprio para famílias com renda até 1,8 mil reais e facilita as condições de
acesso ao imóvel para famílias com renda até de 4 mil. Fonte:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Minha_Casa,_Minha_Vida. Acesso em: 21/01/2019.
116

A esse por vir, num movimento introspectivo e extrospectivo, narra a seguinte


preocupação o participante 1 referindo-se a filha de 09 anos que ficou aos cuidados da mãe20 ,
após sua prisão:

É uma coisa que falar para a senhora que eu nem consigo acreditar que eles
conseguem viver na situação daquela, é interessante de se ver, eu acho que é algo
diabólico mesmo, coisa do inimigo, por que é muito difícil acreditar que a pessoa
convive, sobrevive num lugar daquele. Quantas vezes eu pegava ela para fazer
comida e estava cheia daquelas larvas, comidas estragadas, aí passava agua quente
ali, aquele monte de panelas debaixo da pia, é uma coisa estranha assim. A minha
mãe falava para mim: “Por que você fica nesse lugar, porque você não saí daí, você
não consegue sair desse lugar”. Por que eu vivia só na droga, eu não importava
com aquilo por que não parava lá. Então tipo na hora, que eu queria parar com a
droga, que eu queria um descanso um refúgio eu tinha ai. Quando eu tava na droga
eu não me importava com isso tá fora do mundo da realidade todo momento. Por
mim tanto faz como tanto fez. Eu que puxava eu que lavava as roupas. Eu puxava
água do poço. Foi uma fase assim que tanto eu perdi como ela perdeu também. Eu
busquei igreja, uma libertação várias vezes, chamava ela para conversar comigo, até
chorava sentado na cama conversando com ela, pedindo para mudarmos de vida.
(...). Falava ‘ajuda eu, pelo amor de Deus! Eu não aguento chegar em casa às vezes,
cansado, quero comer e não tinha comida, queria trabalhar o uniforme estava sujo, é
difícil para mim poxa! Eu não quero uma empregada, quero uma amiga, por que
quando eu sai da casa da minha mãe e vim para cá, tipo você o lugar da minha mãe,
as coisas que minha mãe fazia para mim eu acho que você pode fazer agora né!’ Tá
certo que ela não era empregada doméstica, mas podia me ajudar. Chorava às vezes
conversando com ela, pedir ajuda. Ela até tentava no começo assim, mas depois
desanimava. O que ela usava muito, não sei se é isso, não posso julgar, se é isso
mesmo ou ela usa de estratégia, é porque ela é portadora do vírus do HIV. Então
tipo assim, ela falava que não dava conta, que não sei mas o que. Isso agora, de um
tempo prá cá eu entendo, que ela tá fraca né, tá debilitada, mas naquela época não,
ela estava forte, aparentemente saudável, ela tinha mais energia. Agora não, ela está
bem fraca, a gente tem que entender, mas foi uma fase de 10 anos bem complicado
também para mim, e que assim gerou uma certa revolta assim, mas hoje graças a
Deus eu já não tenho mais nada com ela, mas ficou nossa filha. (Participante 01,
09/08/18). A mãe da minha filha não tem muito anseio para cuidar da minha filha,
ela não tem nem peça íntima. Eu sabia que isso estava acontecendo e falei para
minha mãe: “Vai lá mãe e pega minha filha!” Daí minha mãe foi lá e pegou ela. Não
tinha roupa par ela vestir, ela mandou roupa suja, fedida, encardida, um pouquinho
que tinha lá a verdade. Minha mãe chegou e falou isso para mim, fiquei com o
coração partido. Puxa, minha filha né, está nessa situação, já está ficando mocinha,
está com nove anos. Tô triste, porque quando acabar o ano letivo ela irá voltar para
a casa da mãe dela, e ela não cuida bem da minha filha. Aí ela vai ficar jogadinha de
novo, vai acabar com a roupa que tem, vai voltar aquela situação tudo de novo. Eu
falei para meu pai, tô feliz dela estar lá por enquanto, mas que ficará naquela vida
tudo de novo, por que lá não tem regra, não tem hora para dormir, as vezes ninguém

20
Com o fim da pesquisa de campo da pesquisadora, soube pelos profissionais da unidade penitenciária, que esta
senhora faleceu, devido a intercorrências da doença. A situação acima mencionada advinha de uma de suas
internações hospitalares. A filha tem mais três irmãos mais velhos de outros relacionamentos de sua genitora.
117

faz comida. Se a senhora entrar naquela casa verá que ali não tem condições de um
ser humano morar naquele lugar. Parece uma casa abandonada, é muito feio, tudo
sujo, lixo jogado por todo lado, vazo cheio de fezes, isso que estou relatando para a
senhora é a mais pura verdade. Não tem nada de mentira. Se a senhora pegar o
endereço e chegar qualquer hora de surpresa irá ver que não estou acrescentando
nada. Quando eu estava na droga eu não me importava com isso, eu quase não
parava em casa, ficava fora do mundo da realidade, mas quando um período assim 5
e 6 meses sem usar droga, eu pegava no pé muito, a gente discutia muito por causa
disso aí. Minha mãe é muito asseada, tudo limpinho, e ela está fazendo minha filha
aprender isso aí. Minha filha não toma banho, está naquele ritmo ainda da casa da
mãe dela. (Participante 01, agosto de 2018).

Diante do narrado se evidencia a mais completa situação de vulnerabilidade social,


econômica, afetiva, financeira, emocional desta família, onde se constitui um lar do
participante. A descrição da casa, a impressão que se dá é que esta ela se encontra destituída
de sociabilidade, de referências de (auto) cuidado, higienização, amor próprio, no sentido de
serem e/ou vivessem de forma invisível pela sociedade, separados do mundo, ausente de
regras e normatizações, da falta do olhar do outro e de si mesmos. Apesar do participantes
narrar que quando eu estava na droga eu não me importava com isso, eu quase não parava
em casa, ficava fora do mundo da realidade, todavia e quem não estava na droga? Ora, que
tipo de ações essa criança poderá apresentar na vida adulta?
Neste campo, salientando que partir do meio em que ela se insere, se constitui como
um ser singular e social. Através de seus vínculos, afetos, desejos frente à vida, se constitui
como parte atuante na sociedade, em que de forma relacional e dialética, também a afeta. Um
ambiente sem um mínimo de estrutura, organização, que atenda às necessidades da criança em
sua integralidade, é uma potente ameaça a sua constituição biológica, psicológica, moral e
social de desenvolvimento trazendo impactos a ela ao longo da vida. A respeito, Freire (2000,
p. 29), frente a ausência de regras neste contexto comenta, “a mim me dá pena e preocupação
quando convivo com famílias que experimentam a “tirania da liberdade” em que as crianças
podem tudo”.
Situações descritas pelo participante 01, eram corriqueiras na minha atividade
profissional, intervindo junto as famílias do Programa Bolsa Família no CRAS, cujas
características de vulnerabilidades sociais diversas se aproximaram consideravelmente. As
memórias que trouxe de sua família e estilo de vida, remeteram a demandas para o Conselho
Tutelar, Ministério Público, para Agente de Saúde, o CRAS e outros dispositivos sociais,
inclusive espaço para inserção da drogadição, criminalidade com o própria delito praticado
pelo participante, em sua família.
118

Felizmente este pai, longe das drogas, pode ser ele mesmo expressar seus reais valores
morais, afetivos e éticos, e delegar a sua mãe os cuidados a sua prole. Quando a genitora traz
informações de sua filha ainda nesse contexto, que ele deixou antes de vir para o
encarceramento, fiquei com o coração partido, demonstra o bom vínculo que possui com esta
filha e pais, afirmando tô, feliz por ela estar lá, com os genitores em que confia.
“Protegida”, ou seja, amparada por um lar que dará condições mínimas para
sobrevivência e socialização, está criança também precisa lidar com o mundo fora do seu seio
familiar, que reage a situação que apresenta, aos hábitos que demonstra ter, do ambiente que
advém, e é (re)vitimizada pela instituição que deveria protege-la também, refletido no
comportamento da professora da escola que não encontrava vaga para estudar como cita a
seguir:

Minha irmã foi até a escola para conseguir vaga lá na escola, a professora achou
ruim minha irmã fazer isso, falou que ia ficar de olho na minha filha para
denunciar no conselho tutelar. (Participante 01, setembro de 2018).

A marginalização da pobreza faz-se presente na própria fragilizada formativa educativa


dos professores, que nem sempre encontra-se preparados para lidar como situações como
essas e acabam por reproduzir atitudes estereotipados pautados em seus próprios valores.
Sobre a escola, debateremos a seguir.

4.2 O SENTIDO DO PROCESSO FORMATIVO

Neste item trago referências as primeiras experiências educacionais e profissionais, e


outros contextos que pelos participantes foram considerados relevantes na vida, numa
pespectiva retrospectiva:

Quando eu tinha sete anos minha tia que me matriculou na escola que ela
trabalhava na escola, eu ia pra lá que e ficava na cozinha junto com ela, né? Aí meu
apelido era até pinto molhado. Por causa que eu ficava num cantinho, lá eu ficava,
levava as coisas pra mim comer eu ficava naquele cantinho o dia todinho naquele
cantinho encolhida, entendeu? Aí minha tia me matriculou no pré, aí comecei a
estudar no pré, aí foi passando, passando. Eu gostava de aprender... Estudei até a
sétima série porque eu quis mesmo, entendeu? Ia pra escola, tinha vezes que eu não
ia, tinha umas piadinha na sala de aula que eu não gostava de brincar de jogar
futebol. (...) Eu era motivo de chacota na sala de aula (Participante 03, agosto de
2018).
119

Nas suas narrativas, as experiências relacionadas a escola trazem fortes vivencias


relacionadas ao estigma. Referindo-se a sexualidade, no caso da travesti, que tem na escola o
início de sua transição de gênero (masculino para o feminino) e é marcado pela violência,
deboche, que o acompanha na vida adulta, inclusive no ambiente escolar prisional visto mais
adiante. Sobre a experiência escolar, Dominicé (2014, p. 207), aponta que “revela-se
socioafetiva. O sucesso exige condições escolares favoráveis. Esta de certo ligado
ocasionadas pelo meio familiar”. Contudo, “(...) os aspectos que se revelam determinante é de
ordem afetiva”. Meio familiar estes que também foram marcados na vida do participante pelo
preconceito, que se tornou constante como relembra:

Foi um dia, eu brigando com um menino na escola ele acertou meus testículos. Aí
eu caí chorando de dor, ele já sabia que eu era bicha, aí ele perguntou pra mim
“uai você não tem coco, pensava que você tinha outra coisa?! Zuando com a minha
cara, entendeu? Essa é uma situação também que eu alembro. Eu tava o que? Na
minha quinta... na quarta série, é, ficava zuando com a gente. Enquanto eu não me
assumisse de verdade eu tinha vergonha de mim mesma. (Participante 03, agosto de
2018).

Os conflitos eram constantes com os colegas, que apesar de não se declarar


homossexual, demonstrava no dia a dia sinais a respeito, provocando reações por parte dos
colegas de zueria como relata. Entretanto, percebeu que essa situação estava interferindo em
sua aceitação pessoal e valoração de estima, como narra, eu tinha vergonha de mim mesma.
O bullying a acompanhou na vida escolar, contribuindo por sua evasão, afirmando perdurou a
seguir:
Estudei até a sétima série porque eu quis mesmo, entendeu? Ia pra escola, tinha
vezes que eu não ia, tinha umas piadinha na sala de aula que eu não gostava de
brincar de jogar futebol, essas coisas masculinas, eu não jogava isso, eu brincada
de queimada, pular elástico, amarelinha, entendeu? E isso ali era motivo de
chacota na sala de aula. (Participante 03, agosto de 2018).

Algumas brincadeiras infantis estão muito associadas a questões de gênero, como


bem explica a participante, que ao escolher aquelas associadas ao sexo feminino, sendo do
sexo masculino, teve como reflexo de suas ações as piadinhas e chacotas sofridas. Sobre o
tema, o conceito de estigma trazido por Goffman (1988, p. 6), descreve com detalhes como a
pessoa muda sua posição no mundo social, afirmando que:

Com base nisso, fazemos vários tipos de discriminações, através das quais
efetivamente, e muitas vezes sem pensar, reduzimos suas chances de vida:
Construímos uma teoria do estigma; uma ideologia para explicar a sua inferioridade
e dar conta do perigo que ela representa.
120

O participante 2 narra que teve uma satisfatória experiência na primeira infância,


conta orgulhoso:

Tive uma oportunidade de estudar em escola uma das melhores escolas dentro do
estado sobre dar uma educação pros filhos. (Participante 02, agosto de 2018).

Embora não apareça neste relato, informa em outra ocasião que a referida escola era
privada e formou também seus outros irmãos, por parte de pai e mãe. Na vida adulto, conclui
o curso tecnólogo em logística, que menciona ser equivalente ao nível superior. Durante a
prisão o participante 02, conta realizar cursos profissionalizantes, via sistema EAD e correios.
Outro participante inicia sua trajetória escolar ao lado da avó materna e genitora nos anos
iniciais, como suas professoras, que nos conta:

Tava na primeira série, a minha vó era minha professora e assim a gente era bem
cobrado, né? Então assim eu sofri um pouco com a minha vó porque eu sou canhoto e
ela é destra, né, pra mim aprender a escrever foi uma dificuldade e assim ela brigava
muito comigo, passei, muita vergonha na frente dos colegas, né? Eu sempre passei
muita vergonha porque brigava muito com a gente na frente dos amiguinhos, né?
Então a gente passava, mas assim elas sempre incentivaram ao estudo, né? Até uma
vez que minha mãe pegou pesado com a gente (gêmeos), muitas vezes a gente tava até
certo e passava por errado por ser filho, de apanhar por causa disso e os menino
abusava da ocasião por que sabia que sobrava pra nós, né? Então, mesmo os outros
tá errado, sempre a gente levava a culpa. (Participante 01, agosto de 2018).

A principal alfabetizadora deste participante foi sua avó materna, depois sua mãe,
mesmo elas “não tendo escolaridade suficiente”, como relatou em outra ocasião, por só terem
o magistério. Eram contratadas para dar aulas as crianças na zona rural, onde residiam. A
respeito dessa formação, memorou ter sido rígida, e abusiva em outros momentos, pelo fato
de negligenciá-lo em suas particularidades, sendo injusta –vai sobrar para nós (irmãos)
algumas vezes frente aos seus colegas. Assim, pela proximidade dos laços
mãe/alfabetizadora, sentiu que o ingresso no nível fundamental ocorrido na cidade, de fato
tinha caráter de ingresso escolar institucional. Relata a respeito numa perspectiva
introspectiva, extrospectiva e retrospectiva como conta:

A primeira escola que eu fui estudar de verdade foi na quinta série. A primeira vez
que eu fui estudar fora de casa assim na verdade, né? (...) Atravessava o rio,
121

caminhava em torno de uns três a quatro quilômetros, tinha que sair bem mais cedo
de casa, né? E como a gente era novato na escola sempre tem aquela confusãozinha.
Então por ser gêmeos eu nunca aceitei alguém provocar o meu irmão e eles
descobriram nosso ponto fraco, né? E lá (na escola), nós apanhamos várias vezes na
escola, várias e várias. Judiavam muito de nós porque apesar de nós ser velho nós era
baixinho, né? Então com 11 anos eu era bem pequenininho então na escola... e
quando a gente se metia em confusão a professora procurava os meus pais, a gente
sempre apanhava mesmo estando certo e eu ficava revoltado com isso, entendeu? Eu
não esqueço, o menino tava batendo no meu irmão, ele era bem maior que ele, caiu
por cima de mim, eu bati o rosto no chão, ficou bem inchado assim, eu achei uma
pedra no chão, bati a pedra na costa dele. (...) Eu sempre era no meu canto eu e meu
irmão, nós era do sítio, criança boba, mas mexia com a gente, não tinha como, não
passava. Até hoje ele tem uma cicatriz enorme na boca e eu era pra ter vários, vários
e várias reclamações lá pra professora, né, que era pra ela corrigir a gente na forma
que ela achasse necessário, tipo, colocou a gente como errado (os pais) de uma vez,
né? Revoltado com a minha mãe por causa disso, porque a gente sempre falou pra
ela que era os menino que procurava confusão, né? E eu não tinha aquela paciência
de deixar pra lá, né? Porque eu via judiando, aceitava e aí eles começaram a bater
muito em nós lá na escola, que foi o que chegou ao ponto de agressão mesmo, de
ficar sério. (Participante 01, agosto de 2018).

A estrutura física da escola, trouxe outros significados ao participante, que o fez sentir
de verdade, inserido num ambiente escolar, porque até então ele estava fora de casa. Num
relato anterior, informou que o espaço que sua avó realizava as lições, era cedido por sua
bisavó.
Inserido em outro contexto escolar, veio os contratempos, ligados a percurso de sua
casa e a escola. O que podemos imaginar de alguém que sai de casa, atravessa rio, caminhar
alguns quilômetros para chegar a sala de aula? Evidentemente que os gêmeos não eram
mesmos quando saíram de casa, ao menos na apresentação e como disse, as relações com os
colegas eram marcadas por confusãozinha, que mais tarde chegou ao ponto de agressão
mesmo, de ficar sério.
O participante reconta as peripécias, registradas para ele como violentas, no sentido
duplo, por um momento os colegas mexiam com eles, porque vinham do sitio, calados e
depois, por “passarem por errados”, para a mãe, que autorizava a professora a os corrigir. Essa
sensação desvalor, desamparo e injustiça, se repetiam da infância, em que a mãe tinha mesma
postura, de responsabilizá-los, por coisas que não havia feito, ficando revoltado com a minha
mãe por causa disso.
A união com irmão gêmeo tinha lá suas vantagens e desvantagens, permeadas suas
experiências de aventuras, brigas, desafetos, repetição escolar dentre outros. A separação do
irmão na escola, somados a amizade pautada pela escolha de gênero, como mesmo conta -
122

enturmei com as meninas, trouxe uma trégua para as desavenças. Foi atravessando esse
período, marcada por essas experiências que o participante ingressa no mercado de trabalho,
mesmo informal, numa bicicletaria, com o novo oficio veio também a dificuldade para estudar
- chegava na escola eu dormia na sala de aula à noite, como narra:

No primeiro dia de aula. Meu irmão brigamos por causa de um palavrão, né,
ofendendo a minha mãe, né? Pulamos o muro, saímos pra fora e fomos pra casa, os
meninos tomou raiva da gente porque ele passou vergonha dentro da sala de aula, e
já tinha alguns anos que estudava lá então ele já tinha a turminha dele, né? E a gente
só vivia escondido, correndo deles, todo dia na saída da escola batendo em nós, nós
tinha que correr todos os dias. Nós na estrada saindo da escola não conseguia ver
ninguém provocando o meu irmão, mexia com o meu irmão parece que tava
batendo em mim, eu não conseguia ver meu irmão ali. A gente tava com 14 anos eu
acho, meu irmão reprovou e eu não, sempre tirando nota boa, sozinho eu estudava,
não procurava confusão, não aceitava confusão de ninguém e procurava andar com
as meninas, né? Porque com as meninas não arrumava problema, né? Então
enturmei com as meninas. Aí na hora do recreio a gente tava ali conversando e tal,
era bem estudiosas mesmo e eu arrumei amizade. Quando eu fiz 17 anos apareceu
uma oportunidade de emprego, né, pra mim e eu fui trabalhar em uma bicicletaria,
foi quando, chegava na escola eu dormia na sala de aula à noite... (Participante 01,
setembro de 2018).

No ambiente escolar refere-se a situações de bullying, por ser baixinho, que o


incomodava muito, se definindo como nervoso, irado, explosivo, impaciente no decorrer de
suas narrativas, como conta:

Eu assim, eu procuro sempre tratar as pessoas bem, entendeu? Falar “por favor”. Eu
não sei se é um mal dia dele ou não, mas a gente vê a pessoa nem sempre, devo
trabalhar nisso aí. Eu tenho essa dificuldade, não vou mentir não, eu fico nervoso.
Dependendo do que a pessoa fala pra mim então já dá aquela ira, né? Hoje eu
aprendi a controlar muito isso, mas eu já fui muito explosivo. Por isso que na escola
eu nunca consegui me dar bem com os colegas quando eles me provocavam. Porque
se eu aceitasse a provocação, uma hora eles iam enjoar de me provocar e eu não iria
brigar. Acho que eu me sentia um pouco inferior, parece que eles estavam
demonstrando aquilo, que eu era inferior e eu não queria aceitar, entendeu? Uma
porque eu morava no sítio, né? Por ser baixinho, né? Sofria apelido...Eu sou
baixinho, né, 33 anos, tem gente... o meu irmão caçula é um pouco maior do que eu.
Eu com 11 anos eu acho que... eu não sei nem que tamanho que eu tinha, eu era bem
pequeno mesmo com 11 anos. E já sofri muito assim negócio de apelido, com isso
porque eu me sentia inferior porque parece que eles transmitiam aquilo pra mim,
entendeu? Era pequinês, era um monte de apelido assim que eu ficava irado. Eu
sempre revidava, né? Mas tinha pra brigar... (Participante 01, setembro de 2018).
123

O participante narra ainda situações equivalentes provocadas também por seus


educadores, como o racismo sofrido na escola provocado pelo professor do PROERD
(Programa Educacional de Resistência às Drogas)21 na escola, somado a negligencia da
diretora da escola quando assiste o ocorrido e se silencia, conta:

Teve uma situação na minha escola, que eu andando de bicicleta onde a faxineira
limpou, não tinha visto isso, o professor do PROERD me bateu. Ele segurou no
guidão da minha bicicleta, e era alto assim a altura do desnível, me falou- “Vire e
volta pelo caminho que você veio!” Ele me jogou longe, cai e bati meu testículo no
guidão. Ele me colocou contra a parede e começou a bater em meus testículos. Aí
meu colega falou – “Oh cara não faz isso não, ele estava estudando até agora.” Ele
me chamando de neguinho a todo tempo – “Ah, seu neguinho!” Ai ele falou – “E
você seu negão, encosta aqui. Vou revistar você também!” Foi revistar ele. Chutou
o joelho dele, trincou o joelho dele. Machucou ele, machucou eu. Ele era branco.
Ai comecei a chorar, fiquei revoltado com aquilo, cheguei em casa não conseguia
falar de nervoso, tremendo. Peguei o telefone que tinha lá em casa fixo e minha mãe
nem sabia para onde eu estava ligando. Liguei para o disque denúncia, ai na hora
de tanto nervoso que eu tava não conseguia falar, comecei a chorar. Ai minha mãe
falou o que está acontecendo, eu falei – “O policial bateu em nós lá na escola!” –
Tava eu e meu colega. Ele com dor no joelho, mas não sabia que estava trincado
ainda. Ai eu peguei e liguei para o “Cadeia Neles” (programa jornalístico de
televisão local). Eu tinha 14anos nessa época, a reportagem foi lá em casa, filmou
tudo, fez entrevista, fomos para OAB (Ordens dos Advogados, escritório local). Só
que isso nunca virou nada, não aconteceu nada com o policial. Disque a juíza que
estava cuidando do caso estava de férias, para São Paulo, estava de licença médica
eu acho e arquivou o processo, nunca deu andamento. Tenho uma revolta com
aquilo. O professor do PROERD, que era para dar exemplo, e tratava com
violência. Ele era branco. Me chamou de neguinho o tempo todo e o outro era
moreno, chamava de negão. Eu fiz errado de andar de bicicleta no corredor, mas
isso não era motivo dele me agredir, destratar a cor da minha pele, agir da forma
como ele agiu. (...) Parece que usou do poder dele, para fazer p que fez com alguém
indefeso, eu era uma criança 14 anos bem dizer, um moleque indefeso, nunca tinha
participado de nada errado, nunca tinha roubado ninguém, apesar de nem quando
estava na droga eu tive coragem de roubar. Mas me senti humilhado, foi dentro da
escola, na frente de todo mundo, tinha acabado a aula tava todo mundo ainda no
pátio, saindo para irmos embora e voltamos para trás, ainda tinha gente na escola.
Ele me bateu e a diretoria viu e não fez nada, não falou nada para ele, só ficou
vendo ele me bater. Aquilo lá me deu uma revolta muito grande. Quem me viu e
quis me defender foi a própria faxineira, que ficou do meu lado e falou – “Não,
para com isso, não faz isso com o menino não. Eu vou limpar de novo, pode deixar,
não precisa fazer isso.” Eu ficava revoltado com isso, porque muitas vezes apanhava

21
O PROERD é desenvolvido nas escolas públicas e particulares, no 5º e 7º ano do Ensino Fundamental, na
educação infantil (PROERD Kids) e para adultos. O programa é realizado, por policiais militares treinados e
preparados para desenvolver o lúdico através de metodologia especialmente voltada para crianças, adolescentes e
adultos. O objetivo é transmitir uma mensagem de valoriz
ação à vida, e da importância de manter-se longe das drogas e da violência. Informações retiradas de
https://pt.wikipedia.org/wiki/Programa_Educacional_de_Resist%C3%AAncia_%C3%A0s_Drogas_e_%C3%A0
_Viol%C3%AAncia. Acesso em: 23 de janeiro de 2019.
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na rua e na escola, chegava em casa e meus pais falava que parecia estar certo, que
tínhamos que apanhar mesmo, muitas vezes sem merecer. Fui crescendo revoltado,
explosivo, nervoso. (Participante 01, agosto de 2018).

A situação mobilizou de forma intensa no participante aspectos introspectivos ligados


a estigma e rejeição e, como consequência, afirma — Fui crescendo revoltado, explosivo,
nervoso (...). Por ironia do destino, mais tarde, esse mesmo aluno que sofreu violência por
parte do professor policial de um programa preventivo ao uso de drogas, não muito distante
daquela experiência, elucidou a fragilidade de sua atuação, com o (ab)uso de entorpecentes
por parte deste. Os relações de ensino e aprendizagem precisam ser marcadas por respeito e
autonomia ao aluno e não amargá-la com racismo, estigma e marginalização como se relatou
o participante. Assim, concordamos com o que afirma Freire (1957), sobre a forma de
combater situação como essa:

Nos círculos, à medida que os pais se vão inteirando dos problemas da escola, das
suas dificuldades – o comportamento é imprescindível a um trabalho com -, deve a
escola a começar a convidá-los a fazer visitas as suas dependências em períodos de
atividades. Mostrando a eles como é “na vida” diária, tendo sempre em vista a
identificação do pai com os problemas e dificuldades da escola. Neste sentido é que
os Círculos de Pais e Professores não podem quedar-se teóricos e acadêmicos. Por
isso é que eles têm de, pelo debate, levar o grupo dos pais à crítica e análise dos
problemas escolares, dando-lhes condições de mudança de antigos hábitos em
hábitos novos. Hábitos antigos de passividade em hábitos novos de participação. (...)
Participando, intervindo, colaborando o homem constrói novas atitudes, muda
outras, elabora e reelabora experiências, educa-se. (FREIRE, 1957 apud GADOTTI
et al, 1996, p. 96).

Os pais tem responsabilidade para a família moderna ocidental na educação dos filhos,
isso inclui acompanha-los em seu espaço formativo, considerado o escolar. De certa maneira,
o participante sentia-se com frequência sem a proteção desses pais toda vez que havia
desavenças fora do ambiente familiar, o que potencializa sentimento de inferioridade e
desvalor por parte dos filhos.
O início da atividade laborativa é outro marco importante das experiências vividas
pelo participantes e uma preparação constante quanto a inserção no mercado de trabalho pós
prisão, como relatado a seguir:

Selecionava sujeira, os grãos, entendeu? Limpando as máquina. Ali foi um serviço


suado e compensado, muito. Eu me sinto um orgulho de ter trabalhado ali, o povo
fala “ah serviço de homem” eu falo assim “pode ser de homem, mas eu me senti
orgulho” eu me senti à vontade com os outros, por mais que eles via que eu era
diferente, mas não falava nada, né, que eu vestia de homem. Me respeitava. Eles só
falava assim “você tem a vozinha fina, né? Você é diferente”. Você tava vestido de
125

homem? Eu não importava, eu queria saber que eu queria ganhar meu dinheiro ali,
tava ganhando meu dinheiro. Eu não fazia mais programa. (Participante 03,
09/08/18). Eu trabalhava de doméstica, por muitos anos, ia e voltava, ia e votava. Um
dia a patroa colocou as vasilhas tudo de novo pra mim lavar, aquele dia foi pra me
matar, ela uma vez meteu a mão na minha cara, fiquei louca com ela. Outro dia tudo
de novo, eu queria droga então eu ia. O marido dela também de vez em quando que
ele queria ter relação e eu não queria, eu falava pra ela e ela achava que era mentira.
Ela me mandava embora, depois ia lá e me chamava de novo, tudo por causa da
droga (aceitava retornar). (Participante 03, agosto de 2018).

Uma coisa que meus pais me ensinaram desde pequeno que era para eu não abrir
mão de arrumar emprego, não que a pessoa tem menos valor (sem), né? Isso não faz
sentido, mas assim, se tiver uma profissão, um estudo, uma profissão eu vou
trabalhar melhor, num ambiente melhor, vou ter um melhor salário. (Participante 01,
setembro de 2018).

O período na minha vida profissional, tive uma oportunidade de fazer uma viagem
pra buscar melhoria, no trabalho, por um período de quatro anos, que eu passei na
Europa, né? Nesse período o meu filho e a mãe do meu filho ficaram aqui e eu fui pra
trabalhar e arrumar uma forma de levá-los e seguir a vida lá. Só que eu não consegui
levar eles. E aí nós decidimos que eu retornasse pra gente ficar aqui. (...)Conheci
vários países lá, conheci a Espanha, conheci a França também. Tive um período que
eu fui na Bélgica, em Bruxelas, ali eu só conheci, não cheguei morar. Sempre à
trabalho, buscando melhorias. Adquiri bastante coisa nesse período que eu estive lá
e direcionava todo o meu ganho lá pra investir aqui. (Brasil). (Participante 02, agosto
de 2018).

Nas narrativas dos participantes, experiências ligadas a aspectos extrospectivos, com a


atividade laborativa, apresentam-se de formas diversificadas. A primeira, do participante 03,
dentre suas atividades remunerativas, destacou ter sido garota de programa, doméstica e
selecionador de grãos (soja). Nesta última atividade, evidencia com clareza a satisfação do
reconhecimento do trabalho digno, sem ao menos esconder o preconceito e repressão
relacionado a sua orientação. Num segundo momento, traz a si própria numa condição de
subordinação, motivado pelo interesse na droga e marcada pela objetivação de seu corpo,
como narrado. A condição de vulnerabilidade desta participante provocada pela dependência
química principalmente, a colocou na condição do que Freire (1987) chamou de esfarrapados
do mundo, pela exclusão que esse público, travestis, sofrem em nossa sociedade.
Sobre o preconceito de gênero, as experiências relacionadas a escola, trazem
experiências ligadas a estigma. Silva e Monteiro (2017), sobre educação e sistema
penitenciário afirmam ainda que a pessoa privada de liberdade possui uma relação com o
estudo antes do seu processo de cautelamento. Ele é um indivíduo que traz em sua
126

subjetividade uma série de valores, crenças, expectativas, desejos, frustrações, entre outros,
que deve ser considerado e respeitado no processo de aprendizagem.
O participante 2 elucida bem o que as autores propõe, quando refere-se aos valores
que os pais passaram ao trabalho, em suas narrativas seguintes, comenta que apesar da droga
nunca deixou de trabalhar. Sendo que o participante 3 foi muito mais além através do elo
empregatício, no intuito de oportunizá-lo melhorias, teve a chance de morar na Europa, e
conhecer outras línguas, costumes, cultura, criar novas habilidades, profissionais, de relações,
estabelecer novos vínculos dentre outros. Desse vivido, em contrapartida a condição de
encarceramento, choca-o consideravelmente na convivência com seus pares, que mais adiante
afirmará ser de baixíssima escolaridade e de outras classes sociais, econômicas e culturais.
Nessas circunstâncias, situando-os no ambiente carcerário, a respeito do que Onofre,
(2011, p. 280), descreve sobre o aprisionado diz:

O isolamento promove também, um sentimento de desatualização e a sensação de


perdas pessoais. Isso os leva a afirmar que a escola os manterá atualizados e
informados, em relação às mudanças que ocorrem no mundo externo, e que por ela,
ao ampliar seus conhecimentos, pode haver uma maneira de resistir ao processo de
perdas que a prisão os submete.

De forma fragilizada relatam ver na educação uma forma de melhorar de vida,


contudo, logo perdem o sentido desse objetivo, prevalecendo o interesse apenas na remissão
de pena. Na mesma direção, o desejo de estudar muitas vezes é interrompido pela dinâmica
institucional da instituição e sua cultura de desvalorização da pratica educativa:

Eu ia pra mim aprender, por que que meu sonho era ser advogada, entendeu?! Que
quando eu era pequeno imaginava assim: uma travesti entrar dentro de um
Tribunal pra defender um réu e tirar o réu de lá, ia ser uma polêmica no mundo,
entendeu?! Porque eu nunca vi uma travesti sendo advogada. E isso era meu
pensamento, estudar pra ser direito, fazer Direito, mas depois que eu vim presa já aí
eu falei “ah, não adianta mais ser direito não que eu nunca vou pegar a
carteirinha da OAB” já desisti desse pensamento de advogada, agora quero fazer
uma faculdade “Agrônimo” (fala do próprio participante) essas coisas, entendeu?
Eu tenho meu primo, (...) mexe com essas coisas do ramo (Agronomia) que dá
dinheiro também. (Participante 03, agosto de 2018).

A participante numa dinâmica prospectiva, manifesta o desejo de ascensão


profissional, prestígio, entretanto, precisa lidar com a frustração de conviver com vício, a
ficha criminal, a inconclusão nos estudos, logo, a possibilidade da realização do sonho ganha
outras projeções. Acerca dessas circunstâncias como essas as Diretrizes Nacionais (2007),
pontua algumas considerações, na qual compartilhamos:
127

O distanciamento entre as categorias sociais e a política que privilegia o sistema


financeiro promove o desequilíbrio social. O respeito aos direitos é condição básica
para a prevenção do tão temido marginal, contexto esse que insere um grande
contingente de jovens vitimizados pelas desigualdades, cujas carências passam a
implicar o grave incremento do sintoma social e, mediante a realidade imposta,
passam a se defender, com as ferramentas disponíveis para a sua sobrevivência, de
valores e regras distintas, daí muitos acabam se inserindo no território da
criminalidade. Isso não é afirmar que ser pobre é ser criminoso, mas que os fatores
que geram miséria para muitos e grande concentração de renda para uma minoria
contribuem para o direcionamento à ação criminal (DEPEN, 2007, p. 127).

A discussão da pobreza é muito grave nessa conjuntura, por que de fato, veremos que
aquele que possui um pouco mais de recurso financeiro e informação fará o possível para
reverter o quadro da privação da liberdade por exemplo, diferentemente daqueles que mal os
familiares conseguem ter acesso ao presídio para realizar a visita semanal ou levar
mantimentos aos entes que ali se encontram privados de da liberdade, por ausência de
recursos financeiros.
O tema da educação é outro complexo moderador desse sistema que pune para
educar. Dessas contradições passemos a palavra aos participantes para que narrem os sentidos
dado a respeito:

Eu me matriculei (na última prisão), dois anos consecutivos e eu insisti para


estudar, né? (...) Mandei bilhetinho com o meu nome falando ali que eu queria
estudar, que eu estudei até o primeiro ano do segundo grau, queria retomar os meus
estudos. Nunca, nunca tinha oportunidade pra estudar, dois anos seguidos. Veio
esses dias, mas aí comecei a trabalhar... (...) ás vezes, esses bilhetes não chegou,
falta de interesse de quem pega o bilhete da gente e entregar (ao setor responsável).
(...) As pessoas foram embora, foi renovando os alunos, né? Então cada ano é
diferente, mas naquela época foi muito bom estudar aqui (prisão anterior), nossa
era gostoso demais. Tinham um (professor) que ele prende a atenção da gente, ele
saber conversar, ele sabe... inclusive eu não sei o nome dele, é um professor alto, de
óculos, ele leciona muito bem. Era bom essa época que eu estudei em 2014, mas saí e
voltei, né? Ganhei liberdade e voltei, aí não consegui mais estudar, consegui agora
aí, mas aí eu já não quis mais também de terminar meu estudo, eu investi no sonho
meu. (Participante 01, agosto de 2018).

O sonho de ser direito e fazer Direito, foi avalassado no ingresso ao sistema, em que a
autonomia do indivíduo é o principal alvo, que passar por mortificações civis do eu diversas,
incluindo aqui o do participante 01. Na mesma direção, do ambiente punitivo, repressor e
estigmatizador que caracteriza o penitenciário, expressados pelos seus dirigentes formais (da
instituição) e informais (das lideranças religiosas e outras formas de poder), a eterna dúvida
pode pairar frente a solicitação do participante 01, será que esse bilhete realmente chegou ao
seu destino e não há vagas para estudar? Ou foi banido por terceiros? Até o momento da
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pesquisa de campo, não já fazia mais diferença ao participante, ele percebeu que o trabalho
era mais rentável.
Dialogar com a educação nesse contexto significa repensar a instituição prisão como
uma comunidade de aprendizagens que envolve todos os seus atores, no sentido de:

Pensar o universo da educação significa ir além do processo educativo


institucionalizado, também denominado educação formal ou escolar, somando-se a
ela as experiências educativas que ocorrem no cotidiano das pessoas, através do
relacionamento com outras pessoas e com o seu ambiente. (ONOFRE; JULIÃO,
2013, p. 52)

Logo essa vontade é substituída pela ânsia de ir embora, diminuir os dias do regime
fechado e abater nos dias remidos pelo estudo. A visão da escola e educação vindo dela é
fragilizada enquanto alternativa para (re)socialização, segundo consta:

Aqui na cadeia, eu estudei tantos anos e não sei nem quanto tempo eu tenho de
remissão de escola, nunca vi, já perguntei pra eles lá em cima da educação pra mim
ver quantas matérias falta pra mim fechar, eles nunca falaram pra mim e eu só chego
cansada, né? Falei “não, não quero mais estudar não”. Eu não sei nem quanto tempo
já tenho de escola, tanto tempo tô estudando aqui, cinco anos eu tô estudando (... )
(Participante 03, agosto de 2018).

É o único momento que eu tenho pra mim fazer o meu tapete (ao anoitecer), pra mim
ter para fazer meu extra não ia ficar pesando assim no bolso da minha família, né?
Porque a minha mãe ela é doméstica e ela foi dispensada da prefeitura com uma mão
na frente e outra atrás, ela e minha vó, não tem direito a nada, eram contratadas, né?
O meu pai agora que ele conseguiu uma aposentadoria, mas ele não era aposentado
antes, minha família, minha mãe doente, meu pai já de idade sendo que eu ia tá aqui
na sombra e água fresca, né? Eu falei “eu tenho que aprender” fazer tapete, o
momento que eu tenho eu trabalho o dia inteiro, aí eu chego... que nem, às vezes o
horário de parar é quatro e meia, cinco horas, às vezes excede um pouco. Aí eu chego
cansado, tomo um banho, aí eu pego a linha pra fazer o tapete, quando é seis e
pouquinho já chama pra escola, aí vai voltar só nove horas, é um período de três
horas, três horas eu já fiz muita coisa, entendeu? (Participante 01, setembro de 2018).

O participante refere-se a evasão escolar no sistema referindo-se a necessidade de


atividade laborativa rentável, como a confecção de artesanato, a remissão ou os cuidados
domésticos serem mais importantes que o estudo nesse contexto, o extrospectivo. A respeito
da educação escolar na unidade penitenciária, faz se prioridade, a sua não restrição apenas ao
ensino, mas efetivamente a “uma oportunidade para que os internos decodifiquem sua
realidade e entendam as causas e consequências de seus atos que os levaram à prisão” (DE
MAEYER, 2006, p. 22).
129

Por meio da narrativa do participante, o professor parece não contribuir com essa
situação, contudo existe admiração por este profissional, como descreve abaixo:

Eu vejo, a gente aprende, os professor tem força de vontade de ensinar a gente.


Muito eu tiro o chapéu pros professor só por eles ter coragem de vim dentro do
presídio pra ensinar um reeducando que tem um artigo feio, um artigo horroroso,
que eu já falo isso que é o de estupro, matou a mãe, machucou a irmã, entendeu? As
professoras só de vim aqui num lugar desse elas são muito corajosas, são muito
esforçada, a gente não aprende porque a gente não quer. (Participante 03, agosto de
2018).

A gente não aprende, porque a gente não quer. Por que? Será que não é isso que o
sistema, de políticas públicas em geral, gostaria que os presos pensasse? Pelas considerações
acima, muitas vezes nem o educador do cárcere sabe de seu real papel na prisão. “Educar para
a vida”, como aponta De Maeyer (2006, 2011, 2013), não apenas ensinar o conteúdo dos
currículos, até mesmo, pelo aluno que não consegue se alfabetizar, fica fácil responsabilizá-lo
pela má escolha que realiza. Será que essa escolha é consciente? Passa pela reflexão, critica e
reflexiva? Se ela não contribui para a emancipação do indivíduo, tem algo errado que precisa
ser (des)coberto.
Sobre a relação com o educador, a pessoa privada de liberdade, “o aprisionado aponta
a escola como um espaço onde se sente mais livre, onde conversa com os colegas de todos os
pavilhões e com os professores, em quem confia” (ONOFRE, 2011, p. 280).
Por outro lado, pela particularidade que sua situação de encarceramento o coloca, pode
desenvolver uma relação aluno e professor que foge proposta educativa, como narra a seguir a
participante em relação ao seu vínculo com os educadores:

Os professores pergunta pra mim se eu quero estudar, veio fazer matricula, tudinho.
Eu faço matrícula, sabe por quê? Os professor precisa trabalhar, os professor vem
dar aula aqui eles precisa, eles têm família lá na rua pra pagar, tem família lá pra
sustentar, eles precisam então eu vou estudar, mostro pra eles que eu quero estudar e
com o tempo, pego e desisto. Eu desanimo. (Participante 03, agosto de 2018).

Os valores aqui estão invertidos, são os professores que precisam do aluno e não o
aluno do professor ou do estudo? Que tipo de aprendizagem educativa temos aqui? Que
contribuições essa sala de aula, esses professores ou alunos estão tendo no processo de
(re)socialização dos envolvidos? O mais incoerente de tudo isso, acontece quando os
envolvidos se congratulam dessa situação, ao menos nas narrativas, não aparece queixas
130

relacionadas ao professor. Usando da ironia, será que o leitor já viu algum noticiário, em que
a população prisional está fazendo rebelião, cuja reinvindicação é a escola e o professor na
unidade penitenciária? Será que alguém se perguntou a respeito, porque isso não acontece? Se
punir educasse para a (re)integração social, talvez não teríamos tantas reincidências.
Algumas considerações a respeito temos em De Maeyer (2006), que referindo-se a
educação na prisão com ênfase na emancipação da pessoa privada de liberdade, para vida em
sociedade, salienta que deva proporcionar, “momento de aprendizagem, de experiências bem
sucedidas, de encontros que não sejam relações de força, momentos de reconstrução da
própria história, espaço para expressar emoção e realizar projetos” (DE MAEYER, 2006, p.
03).
E esses professores, que momentos eles tem para expressar emoção e realizar
projetos, repensar sua prática no contexto penal e suas lógicas? Em Mato Grosso ao menos,
esses educadores do cárcere possuem vinculo de trabalho temporário, o que dificulta ainda
mais uma educação formativa escolar de sua pratica profissional, concordando com Menotti e
Onofre (2014, p. 125) sobre seus conflitos:

(...) estão em grande parte relacionados à perda da autoestima docente e a


dificuldade que os/as educadores/as possuem de perceber algum reconhecimento por
parte da sociedade. Além disso, os próprios educadores não valorizam sua profissão,
aumentando assim a percepção negativa da docência.

Em linhas gerais, na educação de jovens e adultos os participantes não trazem queixas


relacionadas aos professores, demonstram uma frágil quando não deturpada
autoconscientização relacionada a importância do estudo, porém tem dificuldades de fazer
sentido esse processo de aprendizagem para sua vida, com as demandas imediatas que
apresentam. Veem o estudo apenas como possibilidade de remissão de pena, como será
apresentada nas próximas narrativas.

(...) Não, não sei como está a minha remissão, eu falo pra ele ‘eu quero minhas
remissão, eu quero ver minhas matérias, qual tá fechada, qual não tá’ eles não dão
pra mim, significa que não tá ligando pra mim, pelo que eu pergunto. O que
percebo: se eu chegar, você é diretora, eu chego assim ó ‘eu quero saber minhas
matérias, eu quero ver minhas remissão’. (Participante 03, agosto de 2018).

Um alternativa de modificar essa realidade está pautada no diálogo, entre os


envolvidos nesse processo de ensinar, educar e (re)socializar, possibilitando aos privados de
131

liberdade, o protagonismo na transformação de sua realidade. Na perspectiva de prática da


liberdade, Freire (1987), argumenta que:

Através do diálogo, refletindo juntos sobre o que sabemos e não sabemos, podemos,
a seguir, atuar criticamente para transformar a realidade. Ao nos comunicarmos, no
processo de conhecimento da realidade que transformamos, comunicamos e 125
sabemos socialmente, apesar de o processo de comunicação, de conhecimento, de
mudança, ter uma dimensão individual. Mas o aspecto individual não é suficiente
para explicar o processo. Conhecer é um evento social, ainda que com dimensões
individuais. O que é o diálogo, neste momento de comunicação, de conhecimento e
de transformação social? O diálogo sela o relacionamento entre os sujeitos
cognitivos, podemos, a seguir, atuar criticamente para transformar a realidade.
(FREIRE, 1987, p. 65)

A falta dessa comunicação elucida uma ausência de crítica relacionada a educação


como emancipadora e (re)socializadora, no sentido faz nessarios estímulos em que tanto o
aluno como educador aprisionado possa “buscar a sua identidade e o diálogo, reconstruir a
sua história e valorizar em muitos momentos a aprendizagem” (ONOFRE, 2011 b, p. 289).
Assim, a prisão numa dinâmica prospectiva do espaço tridimensional, pode ser um
espaço de resgate desse processo de aprender que foi rompido ao longo de sua história de vida
por diversos motivos, contudo não se pode negar o vínculo que este possui com a escola,
antes da prisão, muitas vezes fragilizado ou rompido com a educação por anos a fio, antes de
passar pelo processo de encarceramento.
Ainda a respeito dos professores, conta:

Tipo assim, tem a professora Neia22, ela é tipo psicóloga, ela tem a maior paciência
do mundo. A Eglena também, nossa, um dia eu vi Railson meter a mão na cara de
Augustinho na frente da professora Eglena, ela só olhou e fingiu que não tava
acontecendo nada, eu falei “misericórdia, como ela conseguiu ser tão fria assim?”
Que eu tirei o chapéu pra ela pela atitude que ela teve porque se fosse outro tinha
saído se descabelando pra fora, ela agiu naturalmente, deu a aula dela
naturalmente, ela foi super educada, eu admiro elas por essa atitude que elas têm.
Professora... como fala? Ih, atrapalhou o nome ela é tipo uma psicóloga, ela
conversava tranquila. Nossa, várias vezes chorei pra ela, várias vezes. (Participante
03, agosto de 2018).

Alguns conflitos da população privada de liberdade, acabam sendo banalizados entre


si, pela frequência e modo que o ocorrem, se tornando familiar na prisão e também da escola
do cárcere. Destes, não apenas os aprisionados incorporam, como também o professor da
prisão também, como visto no relato. As relações de poder com o professor ganha tom

22
Todos os nomes aqui descritos são fictícios.
132

familiar, de maneira que os alunos sintam proximidade com esses profissionais e têm espaço
para expor suas fraquezas e subjetividade, como conta, várias vezes chorei pra ela.
O fato do aluno ser marcado pelo estigma e estar em estado de penitencia no
encarceramento, requer na maioria das vezes do professor habilidades especificas que não
obteve em sua formação acadêmica, pois a escola na prisão é “por muitos entendida como
espaço de fracassos e fracassados, de excluídos e desacreditados” (VIEIRA, 2013, p. 94).
Requer ética e compromisso, para lidar com seu aluno e com o fato deste ser em potencial
alguém que pode possuir algum distúrbio e psicopatia por exemplo.
Freire (1987) sobre a relação de ensinar e aprender aponta que:

Falar da realidade como algo parado, estático, compartimentado e bem comportado,


quando não falar ou dissertar sobre algo completamente alheio à experiência
existencial dos educandos vem sendo, a suprema inquietação desta educação. A sua
irrefreada ânsia. Nela o educador aparece como seu indiscutível agente, como o seu
real sujeito, cuja tarefa inclinável é “encher” os educandos dos conteúdos de sua
narração. Conteúdos que são retalhos da realidade desconectados da totalidade em
que se engendram e em cuja visão ganhariam significação (FREIRE, 1987, p. 33).

Nessa direção faz-se relevante que o educador do sistema penitenciário é chamar


atenção para as relações que ali se constroem, no sentido de não colocar na “posição
irresponsável de quem faz o jogo do faz-de-conta” (FREIRE, 1997b, p. 40), mas que atue de
forma crítica e reflexiva, frente as adversidades que o próprio ambiente impõe, como a
possibilidade de se tornar refém numa situação de rebelião dentre outros.
Na convivência com seus alunos:

A troca de experiências com o professor e com os outros alunos leva-os a um


convívio que não é movido pelo ódio, vingança ou rejeição. A escola é um espaço
onde as tensões se mostram aliviadas, o que justifica sua existência e seu papel na
(re)socialização do aprisionado. (...) Embora esteja em um espaço repressivo, o
professor mantém na sala de aula a valorização da dimensão social e afetiva no
relacionamento com os alunos, uma vez que a riqueza da relação pedagógica baseia-
se, independente do espaço em que a escola esteja inserida, nas “formas dialógicas
de interação” (ONOFRE, 2011, p. 287)

Quanto ao relacionamento com os colegas de sala de aula, é marcada por relações


interpessoais de diferenças de comportamento, cada um com sua subjetividade permeadas
pela trajeto de vida, de valores, crenças, frustações, expectativas, interesses, complexos e
limitações. Contudo no ambiente carcerário essa diferença tende a se potencializar, pois existe
a intolerância frente aos delitos pelos quais foram encarcerados, ora julgados, bem como a
cultura da separação da convivência em grupos por afinidade dos mesmos delitos. Preso por
homicídio por exemplo, tem resistência ao convívio com apenados por crimes sexuais e isso
133

também traz impactos para aprendizagem individual e coletiva, bem como na atuação do
educador, proporcionado situação como essa:

Porque tem muitos que vai pra bagunçar, entendeu? Fazer corre de droga. Eu falo
isso por mim do tempo que eu era muito louca, que eu fazia corre louco, e mentindo:
todo mundo da direção todos sabia disso, meus professores sabia. Muitos vai pra
escola... vai porquê... pra ganhar remissão. Mas os professor são esforçados pra
ensinar a gente. (Participante 03, agosto de 2018).

Sendo assim, a escola também se tornou alvo fácil para atividades, que sob vigilância
a pessoa com restrição e privada de liberdade não faria, justificando a ação descrita pela
participante como o uso de entorpecentes durante as aulas.
Sobre o assunto, Silva e Monteiro (2017, p. 367), apontam que a escola dentro da
unidade se torna na cultura da instituição, muitas vezes mais uma tarefa para esse mesmo
servidor ter que dar conta, pois precisa acompanhá-lo na sala de aula junto com seu educador
e nem sempre estes entendem como uma tarefa positiva. Dentre os motivos estão número
insuficiente dos agentes de segurança para dar conta das demandas da população prisional,
como por exemplo, o processo de revistá-lo, algemá-lo, encaminhá-lo a sala de aula,
acompanhá-lo, garantindo a segurança dos educadores, da unidade, dos próprios agentes e
custodiados, fazer todo procedimento de revista novamente para armazená-lo em seu local de
origem, cela de convívio, com o intuito de inibir a entrada de qualquer tipo de material ilícito
ou de risco aos próprios envolvidos no sistema.
Se “a educação é um processo global porque recolhe pedaços dispersos da vida: dá
significado ao passado, oferece ferramentas para formular projetos individuais no presente, e
ressignifica as perspectivas de futuro” (ONOFRE; JULIÃO, 2013, p. 65), o que acontece
quando o aluno privado de liberdade não consegue ver essa educação da maneira como
descreve a autora? Será que o educador do cárcere sabe de seu real papel? Ou será que a
equipe dirigente consegue ver desta maneira? Ou o poder legislativo e operadores da justiça
criminal ou penal? Um exemplo típico da ausência desta consciência crítica deste aluno é
expressada pelo participante 1 ao ser avaliado pelo Exame Nacional do Ensino Médio
(ENEM):

É, eu senti uma motivação grande quando saiu... quando falou que ia ter no aqui. Só
que assim eu não sei, sabe que eu sou uma pessoa acho que muito ansiosa. Quando
eu tava fazendo, vi que a prova é muito demorada, né, são muitas questões e pro
finalzinho da prova eu fui só no chutômetro. Entendeu? No começo até um certo
134

ponto da prova eu tava bem atento, lendo tudinho, procurando assim e parava pra
refletir qual seria a resposta certa, aí eu fui ficando desmotivado, o tempo foi
passando, a hora foi acabando e eu falei “o que? Ah, tá chato já”. ((risos)) E peguei
e fui colocando lá só Xzinho onde eu achava que devia pôr e terminei a prova.
((risos)) (Participante 01, setembro de 2018).

A prova do ENEM, não é pensada no contexto em que essas pessoas estão quando se
refere a avaliação externa, pois esta é feita para ser aplicada em um contexto único e com
conhecimento também pensado para um tipo de aluno ideal, que encontra-se inserido na
sociedade, e não excluído dela. O tempo da escola na prisão, no sentido de carga horaria e
dinâmica é diferente dos que se encontra fora da prisão, o que atravessa muitas vezes na
postura desse aluno também no resultado de atividades como desta avaliação.
O aluno não sustenta sua escolha, e na primeira oportunidade desiste de concentrar e
atentar a realização da prova, ou ao menos ao impacto de sua realização na sua
(re)socialização. Esse contexto demonstra a fragilidade da educação escolar no sistema
penitenciário, marcados por uma política educacional inautêntica, que existe com o objetivo
apenas de fazer cumprir a legislação vigente, e amenizar as dores do que clamam pelos
direitos humanos neste contexto. A educação crítica, reflexiva e emancipadora se faz o
ausente nessa conjuntura, a respeito Onofre (2011), afirma:

Uma educação humanizadora requer um processo educativo capaz de compreender


que as pessoas são mediadas pelas realidades que apreendem e que, ao apreendê-las,
elas atingem um nível de consciência, de ação e de reflexão. Desse modo, elas
refazem e reconstroem sua realidade, evidenciando outras possibilidades de marcar
suas presenças no e com o mundo (ONOFRE, 2011b, p. 293).

Por outro lado, aos que conseguem acessar a sala de aula, ou que almejam:

Ler e escrever é fundamental para eles, pois não ter essas habilidades implica
dependência do companheiro. É com esses conhecimentos que podem escrever e ler
cartas, bilhetes e acompanhar o desenrolar dos seus processos criminais, e isto
significa, ter mais liberdade, autonomia e privacidade, até porque quem não sabe,
pede; e quem pede, deve. Na prisão, até favor é dívida, e dívida é risco de vida
(LEITE, APUD, ONOFRE, 2011, p. 281).

O fato da parcela interessada em estudar, ter dificuldades pra alcançar seu objetivo,
diga-se que de passagem, está na função das diversas variáveis aqui apresentadas, o que torna
a educação de jovens e adultos na prisão mais desafiadora. Na contramão, a educação
informal ganha tal proporção que os índices de reincidência da criminalidade são altíssimos
independe do estado federativo, da unidade penitenciária, da gestão.
135

4.3 SENTIDO DA PRISÃO

As experiências atrás das grades são diversificadas e vividas talvez intensamente pela
pessoa em restrição e privada de liberdade. No relato extrospectivo da prisão, se inicia pela
acomodação do indivíduo num mísero espaço físico compartilhado. Pessoas advindas de
diversos contextos, culturas, personalidades, valores entre outros, se afetam de maneira
diferente, conforme a particularidade de cada um; porém, a maneira que respondem aos
mesmos estímulos recebidos tendem a se aproximarem. Partiremos das narrativas que
socializam os sentidos dados a entrada da unidade penitenciária, como relatam os
participantes:

Foi presa em 2014. Já tinha cabelo grande, tinha peito já, entendeu? Eu já me
hormonizava (fazia uso de hormônios femininos para suavizar a voz, diminuir
crescimento dos pelos do rosto principalmente, auxiliar no crescimento dos mamilos).
(...) eu falava ‘ah o povo vai me estuprar lá dentro’ meu pensamento foi esse. Mas
não aconteceu nada, me respeitaram, fizeram reunião lá dentro eu fui pra dentro do
convívio23 (morar). (...) Todo mundo sabia o que eu era, mas eu vestia de homem lá
“P3, por mais que você seja um travesti, mas que você veste de homem, bermuda,
camiseta” entendeu? E assim eu andava, cabelo preso, de vez em quando soltava o
cabelo, entendeu? As mulheres conversava comigo, todo mundo, até as visita sabia
que eu era homossexual. Eu fazia chapéu, eu fazia tapete... (Participante 03, agosto de
2018). (...) Quando eu voltei da outra vez. Eu cheguei aqui não tinha o Arco-Íris,
não existia Arco-Íris, era igreja, só Universal, né? E Deus É Amor e outra
assembleia. Cortaram o meu cabelo no toco. Tava no meio das costas meu cabelo,
cortaram no toco mesmo, passaram maquininha no meu cabelo, mandaram vesti de
homem, entendeu? (...) P: Qual que foi a sua reação? - Ah, chorar, fiquei muito
revoltada, espraguejava todo mundo (dentro) do presídio. Espragueja todo mundo
mentalmente, xingava até...(...) Não podia falar verbalmente, né? Então, olhava
assim, "esse maldito, desgraçado, cortou meu cabelo". Tantos anos, fizeram isso
comigo sem precisão. Mas era regra do presídio, né? (...) A tristeza do travesti é o
cabelo dela. Cortou o cabelo da bicha, tira totalmente o prazer da bicha.
(Participante 03, setembro de 2018).

A participante narra sua constituição de sujeito, ser no mundo, orientado por sua
identidade de gênero, travestida, em que nasceu homem porém, com alma de mulher.
Insatisfeita com sua condição biológica, subverte os padrões sociais de gêneros e se apropria
do universo feminino, de falar, vestir, andar, mudar o tom do voz e somada a essa condição,

23
Cela onde se encontra pessoas privadas de liberdade que cometeram delito de roubo, furto, homicídio, tráfico
de drogas etc. Pessoas com delito de crimes sexuais, violência doméstica ficam em celas separadas do
“convívio”, para evitar de sofrerem represálias dos colegas em restrição de liberdade. Atualmente Mato Grosso
conta com apenas uma unidade penitenciária com cela especial para receber público “travestis”.
136

necessita de fazer uso de medicamentos. Assim se constitui sua individualidade, sua


particularidade, sua autonomia enquanto pessoa no mundo e sociedade.
Na contramão, quando perde seus direitos de ir e vir, com a privação da liberdade, se vê
subjulgada aos padrões deste mesmo estabelecimento e suas regras, o sistema penitenciário.
Na adentrada de umas da prisões que passou, aprende que não apenas perdeu sua liberdade de
locomoção, mas de expressão, cuidado, escolha e autonomia.
De modo geral, ao chegar à prisão, o sentenciado traz uma concepção de si mesmo
formada ao longo de sua vivência no mundo doméstico que nesse momento:

ele é despido de seu referencial e o processo de admissão o leva a outras perdas


significativas em relação ao seu pertencimento à sociedade. Ao despir sua roupa e
vestir o uniforme da instituição, o indivíduo começa a perder suas identificações
anteriores para sujeitar-se aos parâmetros Ditados pelas regras institucionais”
(ONOFRE; JULIÃO, 2011, p.55).

Nesse sentido, a prática sofrida e por descrita, nos remete a ideia de transgressões a ela
comedida, por violência institucional, gênero, psicológica dentre outros, regulamentadas pela
própria legislação brasileira.
Na mesma linha, a Resolução nº 01/2014 (CNCD/LGBT), estabelece no Art. 1, IV ,
serem os travestis ou transexual, “pessoas que pertencem ao sexo masculino na dimensão
fisiológica, mas que socialmente se apresentam no gênero feminino, sem rejeitar o sexo
biológico”, que quando em privação de liberdade, pelo Art. 5º, a estes “ facultados o uso de
roupas femininas ou masculinas, conforme o gênero, e a manutenção de cabelos compridos,
se o tiver, garantindo seus caracteres secundários de acordo com sua identidade de gênero.
Pelas narrativas, o processo de maior violência sofrida ocorreu anteriormente a
implementação da ala Arco-íris na unidade penal em questão. De qualquer maneira apenas
uma unidade prisional no Estado de Mato grosso até a presente data possui ala especifica a
esse público.
Nesta perspectiva, o participante 1 narra instrospectivamente, sua experiência
relacionada a chegada de outro custodiado a unidade e evidencia com rigor os detalhes dessa
chegada:

O rapaz chegou muito alterado, nervoso, tinha acabado de chegar da rua, estava
naquela raiva de estar preso de novo e tal. Quando a pessoa chega até ela conformar,
fica meio assim, nervoso, alterado e tava falando bobagem demais e o dirigente da
ala falou: ‘Oh mano, melhor você ficar de boa aí, por que aqui é o seguinte — ‘Se
você vir manso, nós vai manso, se vir bravo nós vai bravo também, a gente quebra
no pau, não sei o que!’ Ele era terrível esse dirigente, gostava de ver o círculo pegar
137

fogo. Ele (recém chegado) ficou mais nervoso ainda. O dirigente falou se você ficar
falando muito vou chamar o pastor para você. Ele (recém chegado) falou, –“Que
nada rapaz, eu falo mesmo!” Dirigente falou, se ele continuasse iria chamar o
pastor. Daí ele (recém chegado), respondeu –“Quem é esse pastor!?” E difamou o
pastor. Era tudo que o dirigente queria, ele foi lá e chamou o pastor. O pastor chegou
e falou –‘Você me conhece da onde vagabundo, sem vergonha?!’ E começou a dar
porrada “nele” (no recém chegado). Eu fiquei assombrado com aquilo, ele (pastor),
deu monte de murro, na boca, no rosto dele, na boca, chegou dando um monte de
murro, ele (recém chegado), caiu sentado. Daí o dirigente chegou, baita de um
“guarda-roupa” mesmo (estatura grande e forte), meu Deus do céu e começou a
bater, bater, bater e bater, e deu um chute no rosto “dele” assim, (recém chegado).
Ele caiu, bateu a cabeça e começou a ter convulsão, eu achei que ele ia morrer,
virou o olho assim e começou a ter convulsão. Ele começou a se debater assim e
sangue escorrendo para todo lado no chão. Quando vi aquilo fiquei assustado, meu
Deus do céu, se o pastor fazendo isso imagina os outros aí né, por que eu não
conhecia cadeia direito ainda. Aí o pastor falou – ‘Joga água nesse vagabundo, aí’!
Jogaram água, aí ele foi voltando, voltando, voltou. Aí eu fiquei olhando, eu era
obreiro já, senhor, um pastor fazendo isso com o irmão que era para ele ajudar, mas
fiquei quieto, para não apanhar junto também. Fiquei quieto só olhando aquilo, fui
peguei o remédio, ele estava com queixa que a cabeça começou a doer, ele começou
a chorar e chorar, sentou num canto e ficou oprimido lá, tudo molhado, cabeça
sangrando. Ai dei um remédio para ele, uma camiseta seca pra ele (recém chegado)
vestir. Eu fiquei com medo de conversar com ele os irmãos achar que eu estou unido
com o cara ali, e fui conversando outras coisas. Mas eu já vi cenas assim, não foi só
essa não, de obreiros bateno* (fala do participante) no rapaz. Eu vi várias cenas.
Hoje graças a Deus mudou bastante, não está podemos mais não, antigamente era
aquela história — escreveu não leu o pau comeu! (Participante 01, setembro de
2018).

A violência tomou conta da recepção, que de penalizado pelo estado pelo delito
“quiçá” praticado, (por que nem todos que ali se encontram já foram julgados e condenados,
alguns estão sendo processados e aguardando sentença), passa a condição de penalizados
duplamente, desta vez para servir a regra dita na informalidade do contexto penitenciário.
Goffman (1976, p. 56), a respeito, comenta sobre a tendência que a pessoa privada tem
de desenvolver o sentido de injustiça e amargura contra a sociedade, o que “assinala um
movimento importante na carreira moral do internado”, que complementa:

Depois de um delinqüente ter sido submetido a castigo injusto ou excessivo, bem


como a tratamento mais degradante do que o prescrito pela lei, passa a justificar o
seu ato - o que não podia fazer quando o cometeu. Decide "descontar" o tratamento
injusto na prisão, e a vingar-se, na primeira oportunidade, através de outros crimes.
Com essa decisão, torna-se um criminoso. (GOFFMAN, 1974, p. 56).

Vale destacar que o participante 01 também enfatiza que tal atitude de violência hoje
não é mais permitida, ou seja, mudou, as denúncias são mais frequentes. Ressalta ainda que
138

aprendeu a ficar quieto e a saber o que falar para que os outros não pensassem que ele estava
se aliando, isto é uma aprendizagem relacional.
O participante 2 conta o sentido introspectivo e extrospectivo que dá respeito:

Mas aí na religião deixa a desejar muito porque aí a pessoa (pega) o patamar de


superior, de um líder, uma liderança, porém com a ignorância, eu falo ignorância
porque não é preparado, não é uma pessoa preparada pra liderar, né? E aí lidera da
forma que acha que é correto, faz o que acha que deve ser feito, toma as decisões de
qualquer forma, entra em conflito, né? Em vez de ser um líder religioso, orientador,
apaziguador é o contrário, né? É uma pessoa que impõe (uma situação) na maneira
que ele enxerga que é correto e em vez de apaziguar primeiro fazer os conflitos
internos ali entre os outros demais. (Participante 02, outubro de 2018).

As relações de poder no contexto penitenciário ocorre de diversas maneiras portanto,


mas com um conteúdo que se destaca, o despreparo das pessoas que são tanto submetidas a
essas relações, marcadas por regras e padrões de comportamento dada por seus pares também,
como precursores da mesma. Sobre essa liderança, pode ser adquirida de outras maneiras
como tempo de cadeia percorrido pelo custodiado, pelo status do crime praticado, pelo
vínculo que apresenta com a equipe administrativa ou as facões criminosas, até meramente
por controlar o possível cúbico no qual se faz de moradia.
Esclarecendo que nem sempre essa liderança é pública, o preso pode ser pastor numa
ala religiosa, contudo, nem por isso ele é o líder efetivo daquela ala, que pode escolher
manter-se oculto para exercer seu poder, longe de represálias, ou ser meramente incomodado.
Por vezes essa liderança é exercida apenas no cubículo que se encontra determinando grupo
da população carcerária. Uma situação típica, presenciou um participante, em que a liderança
determina:
Referente essas regras são provenientes para nós da educação não formal propagadas
na e pela experiências da população privada de liberdade, como conta o participante 2, a
maneira que são estabelecidas:

Tem as normas e regras sim, quando ele chega numa ala (evangélica)(...) Tem que ter
hora pra dormir, hora pra ele ler, ele falar da religião, né? Tem hora pra ele
trabalhar. Regras interna entre eles mesmo, os próprios reeducando. Então coloca-se
ali umas normas e regras. Então ele tem que andar acima disso. (...) Aqui dentro, ele é
obrigado a fazer, ou ele faz por bem ou ele faz por mal. (Participante 02, agosto de
2018).
139

Um dos objetivos das regras para o participante é:

Se não colocar normas e regras assim, geral que misture todo mundo, todo mundo ali
é igual, e trato do jeito que eu quero, como... como se diz o palavreado “é vagabundo,
é sem vergonha e tem que ser tratado assim”. (Participante 02, agosto de 2018). Porque
cada um falando de uma forma e achando, não chega a lugar nenhum. Então até
mesmo pra ter o respeito um do outro, pra cobrar, respeitar o espaço um do outro, tem
que ter essas normas e regras “isso aí é pro nosso convívio diário, eu não trouxe você,
você não trouxe eu preso, eu não te conheço, você não me conhece, mas o respeito
tem que existir, se você acha que não tem respeito, porque quando você entrou lá na
sua casa e bateu na sua própria mãe você não respeitou a sua própria mãe, aqui nós
não vamos aceitar isso nunca”. Mesmo que seja todos tenham crime, todos tenham lá
alguma situação que estão aqui pagando, mas eles, assim mesmo entre eles, eles
colocam normas e regras pra um respeitar o espaço do outro, pra ter um convívio
melhor, melhorado um pouco mais. Então é isso aí, e tentar viver um pouco mais com
em harmonia, que é o difícil, né? Viver em harmonia. (Participante 02, agosto de 2018).

Diante do fluxo da rotatividade de funcionários, que trabalham por plantões, a maioria,


somados a própria movimentação de entrada e saída da população carcerária, a superlotação
dos presídios, baixo efetivo dos agentes para atender toda demanda do sistema, fez-se
necessários que este público gerisse por si próprio também suas mazelas, com a
implementação das próprias regras, penalidades e tribunais. Como participante mesmo disse -
pro nosso convívio diário, eu não trouxe você, você não trouxe eu preso, eu não te conheço,
você não me conhece, mas o respeito tem que existir, pelo contrário, todo mundo é sem
vergonha e tem que ser tratado assim, com violência como relatado anteriormente. Esses
dados estão vinculados ao população carcerária em geral, o grande agravante que são
construídas por:
Aí põe uma pessoa pra fazer essa regra, essa norma que ela não tem nem capacidade
de olhar pra ela mesmo, né? Não tem instrução nenhum, ou seja, é perceptível isso e aí
acha que é com aquela regra, a partir daquele momento aquela nova regra que vai
mudar aquela pessoa, em vez dela estar instruindo, tá conversando, tá mostrando uma
oportunidade, um caminho diferenciado pra percorrer, não, “não, aqui comigo é
assim e assim que vai ser, eu que mando aqui”. (Participante 02, agosto de 2018).

A liderança segundo o participante é despreparada, não saberem ao menos cuidar de si


mesmos, quanto mais com o outro. Assim, o participante faz uma análise introspectiva de que
elas provocam ou ajudam a propagar os conflitos muitas vezes, cuja forma de administrar é na
ignorância e violência, como relatam os participantes anteriormente, gerando mais violência.
Nesse contexto, quando retornam as ruas, a pessoa privada de liberdade tende por:
140

Ele faz o que ele quer, a hora que ele quer, do jeito que ele bem entende, né? Então
acho que isso muda bastante. E aí uma nova oportunidade, uma chance que ele tem
de sair, um retorno pro braço familiar, aí ele vai buscar isso, em vez dele continuar
com essas regras, tentar colocar no dia a dia dele lá na rua, ele (termina) buscar
outras coisas porque não tem ninguém mandando, não tem ninguém impondo, não
tem ninguém obrigando ele fazer. (Participante 02, outubro de 2018).

Pois:

Acho que termina assim, porque a pessoa quando faz algo com amor, com prazer, com
vontade, com dedicação é mais fácil, mais prazeroso do que ele fazer obrigado, né? A
partir do momento que você pega algo pra você fazer, executar que você tá sendo
obrigado, que você é forçado, você tá vendo que é algo errado, que não é daquela
maneira, mas você é obrigado a fazer, acha que (ele tem que virar referência) Fica
desgastante, fica ruim, fica maçante, né? Se ele tá todo dia ali fazendo algo que você
não quer, que você não acha certo. (Participante 02, outubro de 2018).
Todo ensino e aprendizado de caráter educativo decorrente de posturas autoritárias e
hostis está vedado ao fracasso, quanto a expectativa de socialização. O participante explicita
isso, quando afirma que as regras foram impostas ao indivíduo e que este pode mantê-las
quando em liberdade e voltar para o braço familiar, que não ocorre.
A respeito do sentido do participante frente as regras oriundas do cárcere, Vieira (2013,
p. 99), contextualiza:

Embora, seja possível perceber o detento adaptado às regras da prisão, é fato de que
há o desenvolvimento, em paralelo, de uma cultura que lhe é própria, ali construída,
denominada cultura informal em contraposição à cultura formal determinada pelo
sistema carcerário. A cultura informal carcerária matizada pelo poder das facções,
negocia com os responsáveis oficiais pela prisão. Elabora códigos e estabelece
condutas; ratifica valores e promove mudanças. Enfim, o ambiente prisional
apresenta-se carregado por regras e faz o indivíduo, na maioria das vezes, cooperar
com esquemas coletivos, nem sempre de acordo com os caminhos que possam
proporcionar a recuperação para convivência dentro dos padrões legais da sociedade
extramuros.

Assim, consideramos que por mais boas intenções que essas lideranças possuam de
equilibrar o sistema e as relações que nele se construí, nem toda aprendizagem oriunda na
informalidade será educativa na emancipação do sujeito, por que precisaria do dado
intelectual reflexivo a respeito. Por lado as represálias sofridas por seu não cumprimento,
advindas do vivido, na e pela experiências são transformadoras de hábitos e comportamento
141

humano, no sentido de submissão a essas como manutenção da sobrevivência em meio


ambiente hostil.
Nesse movimento, “quando experimentamos alguma coisa, agimos sobre ela, fazemos
alguma coisa com ela; em seguida sofremos ou sentimos as consequências” (DEWEY, 1959a,
p. 152). Na dinâmica contínua de sair de si ou agir e, ao mesmo tempo, voltar-se para si ou
viver a reação da ação é que a vivencia ganha a qualidade de experiência, ou seja,
desencadeia-se uma potencialidade significadora de fazer associações retrospectivas e
prospectivas entre aquilo que se faz e aquilo que se sofre em função do agir.
O não cumprimento dessas regras, proporciona aos transgressões situações de penúria,
como conta a participante:

Dentro da igreja, eu orava, jejuava, se não fizesse isso, era disciplinado, era
castigado. Mudava de ala. Tirava eu de uma ala, mandava pra outra. A gente trocava
tudo de amigos, tudo novamente, começava do zero. Se eu tivesse de cama, eu descia
da cama, voltava para porta do banheiro. É o pior lugar é a porta do banheiro. Que os
outros pulam em você, urina no banheiro, urina em você. O lugar de esquecimento é
a porta do banheiro. E é o lugar de quem chega. Vai pra porta do banheiro. A
discriminação, não é em todo lugar que a gente vê, né? Em toda ala. A gente chega
num lugar, a gente é diferente, isso aí pra gente é tudo esquisito. As pessoas ficam
olhando, entendeu? Vai fazer novas amizades, é difícil. É assim. Não é fácil.
(Participante 03, setembro de 2018).

As regras vem acompanhada de disciplina, quando quebradas pelo transgressor. Para o


participante, o castigado dado de mudar de cela, era marcado por experiências relacionais e de
adaptações adversas, como trocar de amigos, trocar de cama, o lugar da cama, como muito
difícil para pessoa privada de liberdade, não só a que sofre castigo, mas principalmente para
aquele “novo” que chega na cela, ferindo os princípios da dignidade humana.
O contexto de maneira geral, proporcionam experiência, que poderá ser marcadas
pelos sentimentos de medo, rejeição, raiva, desespero, desamparo, solidão, sofrimento,
contudo, de muito afeto, seja eles bons ou ruins. Porém, “para proteger-se, o indivíduo
assume posturas e discursos que dele se esperam – ele expressa conformismo às imposições
do sistema” (ONOFRE; JULIÃO, 2011, p. 58)
Assim, um dos primeiros aprendizados que a pessoa privada de liberdade experiencia
logo a sua adentrada no sistema penitenciário, é que não pode ser ele mesmo, como bem
aponta Onofre, (2011, p. 278), “a sobrevivência da pessoa privada de liberdade na prisão,
depende de sua capacidade de dissimular, mentir e conter-se. Por isso, são comuns em suas
falas, avaliações positivas do trabalho, das atividades de que participa e da própria escola”.
142

A privação de liberdade, tende a provocar uma certa retração ao uso da palavra, por
meio das:

(...) condições emocionais, contextuais, históricas e pessoais – gera uma. O


indivíduo perde a voz em todos os sentidos – ele é silenciado, ao perder a palavra
como componente de sua identidade, como direito a dizer o que pensa, sente, vê e
escuta. Deixa de dialogar, de resolver conflitos e de fazer acordos, passando a viver
em um clima de desconfiança, de egocentrismo e de agressividade” (ONOFRE;
JULIÃO, 2011, p.57).

Não seria diferente na instituição igreja instituída ali dentro, em que uma parcela da
população carcerária, provida de transtorno antissocial, ou seja, psicopatia, caraterizado pela
ausência de culpa a provocação de um dano a alguém, mal caráter, e outras formas de
manifestação e reprodução de violência, como o masoquismo, sadismo se escondem atrás da
religião, para ter uma certa condição de poder entre os pares, ou dar um “tempo” no crime,
motivado por algum desafeto e receio de represália.
Assim, mesmo houve enfrentamento das vítimas, aquelas que possuíam algum contato
extramuros significativo, como familiares, advogados dentre outros, sendo aqueles sem
família, as maiores vítimas. A respeito narra o participante:

As pessoas começaram não tolerar mais isso, por que a igreja ela tem um domínio
sobre o povo querendo ou não a igreja domina essa população carcerária aqui
dentro. Então, para direção isso é um ponto positivo, porque quanto mais a igreja
domina menos trabalho a direção tem, né! Então assim, quando eles resolviam por
lá, o problema era deles, só que começou a gerar muito problema esses
espancamentos, aí começou as famílias irem no Fórum, começou a levar camiseta
suja de sangue, do reeducando que foi espancado, começou a ter que fazer boletim
de ocorrência. Então, por ser um centro de (re)socializaçãonão tem que existir essas
coisas. Existe mas são fatos isolados, uma vez ou outra, demonstra que não está
funcionando a (re)socializaçãoaqui dentro, está sendo só uma fachada, então a
direção começou a combater isso ai. (Participante 01, agosto de 2018).

Aqui na prisão que eu falo que tive um aprendizado de vida, né? A situação. Você
analisa sua vida lá, toda sua trajetória de vida e aí você tá... você chegar num ponto
onde você chegou hoje, né? Não fiz uma caminhada, não desejei isso, pra vim pra cá
dessa maneira. E vim de um sistema aonde eu mesmo me apresentei, eu sou o maior
interessado em resolver essa situação, retomar a minha vida, né? Fui na justiça
atrás disso, de resolver e colocar que não foi bem isso, não é nada disso que
colocaram ali, enfim, você olha para trás, você tem um período para passar você sabe
que começa aqui (prisão) e não tem mais para onde ir. Então você pega para você se
refletir, né? O que você fez lá atrás de falhas, o que que você poderia fazer diferente
as decisões que você tomou. No contexto geral da sua vida. É um momento que você
tá sozinho, que você tá privado da sua liberdade, né? De trabalhar, almeja algo
maior, cargos e planeja pra isso e de repente você vem parar num lugar desse aqui
que não te ampara em nada, né? Nunca fui do mundo do crime, nunca vivi nisso aí
143

e aí você chega aqui e automaticamente da noite pro dia você tem que viver nesse
meio, né? De pessoas que vivem disso, do mundo crime, que lidam muito bem assim,
mesmo estando aqui não valoriza aquele momento, aquela vida lá fora e assim
buscam e continuam até mesmo praticando o crime dentro do sistema, né!
(Participante 02, agosto de 2018).

A narrativa do participante direciona o estar na prisão para um aprendizado de vida,


perpassado pelas indagações de suas escolhas, reconstituição de sua história pessoal e
relacional, momento de solidão, com destaque a convivência com os considera diferentes -
Nunca fui do mundo do crime, nunca vivi nisso aí e aí você chega aqui e automaticamente
da noite pro dia você tem que viver nesse meio. Fatores que exemplificam bem o caráter
instrospectivo de seus sentimentos e extrospectivo do ambiente.
Por outro lado, o aprendizado vem associado ao que Goffman (1988), evidencia como
estigma, não apenas da sociedade, nos grupos comunitários, mas na própria pessoa privada de
liberdade, quando no usufruto dela. A próxima narrativa é um exemplo típico do movimento
restrospectivo e prospectivo de sua sociealidade na prisão:

Eu me preocupei muito, muito com a imagem, né? Depois de tudo isso aqui, como que
as pessoas vão me olhar, o fato que tá acontecendo comigo, pessoas que vieram até
aqui, vieram até mim, foram até meus familiares e me apoiaram de uma forma ou
outra, né? Tem gente que acredita, “que conhece a índole, conhece o caráter da pessoa
e sei que não é isso. Fala que “já na hora que ele sair pode ter certeza que pode
procurar que ele vai trabalhar comigo, é um profissional excelente” então, mesmo
assim nesse momento ao qual eu me encontro aqui é importante a gente ouvir isso e
ter esse abraço das pessoas, né? Hoje eu me preocupo como que eu vou sair lá fora,
de que maneira o mercado vai me tratar. Hoje se eu for pegar um emprego nas
empresas, eu sempre trabalhei em empresas multinacionais, né? Vão pedir lista de
documentos e tal, a empresa já vai ver um nada consta, né? Caso tenha uma coisa suja
ali, uma ficha suja, né? Quem me conhece pode até ser que “não, mas eu conheço”, a
empresa em si como ela é uma rede, um segmento, ela não conhece pessoa, ela
conhece o funcionário, né? Uma coisa falando que ela não aceita antecedentes
criminais, é ética da empresa, né, pela visão, pela missão da empresa. (...) Eu acredito
que tinha que ter um trabalho diferenciado, o Estado tinha que fazer “sai daqui e você
vai trabalhar em tal lugar”, um lugar já direcionado pra trabalhar, tem a nova
chance, mas eu acho que não funciona com tornozeleira, como que as pessoas vai
pedi um emprego ali?! (Participante 02, setembro de 2018).

Ao mesmo tempo que o participante divide sua angustia do presente, refletido no


futuro, destaca a importância de receber apoio moral, de aceitação a sua pessoa na condição
de privado de liberdade – “na hora que ele sair (...), ele vai trabalhar comigo, é um
profissional excelente” (...), é importante a gente ouvir isso e ter esse abraço das pessoas.
144

Assim pode recuperar sua autoestima, auto confiança e dirigir-se ao mercado de trabalho,
sabendo que não algumas pessoas podem olhar para ele, além do delito condenado, mas
também como um excelente profissional que apresenta ser.
Julião (2009), aponta que o indivíduo em situação de privação de liberdade traz, como
memória, vivências por vezes negativas, de situações pelas quais passou antes e durante sua
carreira delinquencial. Em suas expectativas de futuro estão o desejo de começar uma nova
vida, na qual possa trabalhar, voltar a estudar e construir uma família. Os estudos sobre a
reincidência criminal apontam que suas expectativas acabam, na maioria das vezes, frustradas
pelos rótulos, pelo despreparo em assumir atividades profissionais, por distorções de visão de
mundo que fatalmente adquirem na sociedade dos cativos.
Na compreensão desse fenômeno, a forma como o pessoa privada de liberdade se sente
nesse contexto, já diz bastante sobre sua (re)socialização, como conta o participante 2:

Existe assim, uma parte assim, muito complicada de você tá relembrando. (...)
Analisar o que você fez tudo na sua vida, sua trajetória. Mas assim, existe também
uma tensão maior que é o momento que você vive. Sempre angustiado, buscando
passar o dia logo, passar os dias que virão pra que tudo se acabe, né? Ou seja, parece
assim, um pesadelo e você quer acordar desse pesadelo. Você nunca esperava chegar
numa situação dessa na minha vida. Então você fica constantemente aqui, dia a dia.
Sob pressão. E tudo é uma tensão enorme por você tá num lugar desse aqui, né? Tem
momento de angústia, momento de... noites e noites que você passa sem dormir. Tem aí
dois anos e um mês vai fazer agora que eu tô nesse... nesse local, eu não sei o que que é
colocar a minha cabeça no travesseiro e dormir tranquilamente, né? Não tem isso.
Realmente a realidade é essa, não tem igual. Então assim, você vai chegando uma
hora que você não sabe pra onde que você vai, que caminho você vai percorrer pra
resolver, né? (sair da prisão) (...) Coloca você como pessoa, como ser humano você
buscando constantemente, ser exemplo. Tomando atitude positiva e de repente você se
cai. Um tropeço, você cai num local desse, assim, você é humilhado, como se diz, não
tem apoio de nada. Todo mundo Te olha com indiferença. Não te olha, você não tem
direito, quer dizer - “você não é um cidadão. Você não tem direito de falar nada, como
se diz “você é um preso, né? Você é lixo, você não é nada, você é ninguém!” A
maioria das vezes constantemente eu me sinto assim. (Participante 02, agosto de 2018).

Para além da angústia da perca da liberdade e do mundo que a pertencia, referindo-se


ao seu passado, o participante enfatiza, a angústia de estar na prisão, ou seja, existe o
momento presente e ele é carregado de tensão, num ambiente estando sob pressão. O
participante conta que é humilhado, que as pessoas quando o vê, emitem olhar com
indiferença, (...) “você é um preso, né? Você é lixo, você não é nada, você é ninguém!”
145

Ao relatar como se sente, o participante demonstra o sentimento de desvalor e tantos


outros comuns compartilhados por seus pares, em que a pessoa privada de liberdade, vê-se
com freqüência, insatisfeita, angustiada, deprimida, injustiçada, revoltada, culpada e
principalmente ansiosa, ao ter seu o menor de seu desejo não realizado, frustrado.
Nesse contexto, a situação de encarceramento propicia o desenvolvimento de
transtornos mentais, seja ele depressivo, de ansiedade, de insônia, estresse e adaptação, desvio
de conduta dentre outros, além de estimular doenças como hipertensão, cardíacas, distúrbio de
peso etc.
O impacto social também é observado com a fragilizarão de vínculos, principalmente
familiar do população carcerária, reforçando o sentimento de solidão, desamparo e
desesperança, dificultando e retardando portanto a (re)socialização deste ao convívio
novamente da sociedade.
Os gestores, equipe técnica das unidades penitenciárias bem como operadores do
direito, tem como desafio, criar junto ao ambiente descrito e pessoas envolvidas com a
violência, caminhos em que esta não venha ao encontro. Potencializar discursos, escolhas,
sentimento de valorização/auto estima, criar possibilidades de reintegração social, resgate de
cidadania, fortalecimento de vínculo sociais e familiar, com foco primordialmente em na
saúde mental.
A forma como procura lidar com sua angústia que encarceramento provoca, faz com
que se consolarem com a família, aqueles que possuem, e na mesma proporção, os dotados de
recursos financeiros procurando o advogado, na tentativa de abreviar a penalização.
A intervenção do advogado para este público é muito significativa, traz possibilidades
de esperança, gera expectativa na amenização dos danos do encarceramento e principalmente
a possibilidade de liberdade. Por outro lado, pode aumentar a ansiedade do participante,
quando suas aspirações não são alcançadas. O participante sabe bem o que é essa situação e
narra sobre os aspectos envolvidos:

Chega um momento a gente pensa “poxa, parece que eu tô esquecido, né?” Pelo fato
de tá aqui, as coisas não acontecem, você não tem notícia, né? Do seu processo. Me
sinto assim às vezes, através dessa situação no início, né? Todo mundo ficou meio
que... todos os meus familiares que me apoiam, né? Então nós (família) fomos buscar
primeiramente um advogado renomeado, pra que ele exercesse um bom trabalho, né?
Uma pessoa que tinha experiência e conhecimento no que tava acontecendo pra que
a gente tivesse um respaldo maior, né? E aí hoje sinto que fizemos uma escolha boa,
todo mundo que a gente conversou dou boas informações do profissional, porém, tudo
que foi feito nada foi positivo até agora, né? Em termos de justiça, né?!
146

O que você buscou, toda a sua história lá atrás, hoje se transforma em nada porque
tudo que você... tá lá na lei que você favorece isso e isso, a pessoa quer assim, assim, aí
você buscar é negado, né? Tem aquela coisa que o juiz vê que não, né? Não tem fato
que não tem materialidade pra tanto, aí você se vê numa situação que você não sabe o
que que você faz, pra quem recorrer, o que você... se você acredita na justiça ou não,
né? (Participante 02, agosto de 2018).

A figura do advogado, defensor público, juiz e demais operadores do Direito, se


destacam nessa tentativa de burlar o sofrimento causado pela privação. Não obstante um dado
se destaca nas narrativas dos participantes, o colaborador 2, recorreu a esse tipo de auxílio,
não havendo registro no relato de outros participantes procura desse serviço. Elencamos ainda
a situação econômica subalterna destes participantes a esses tipo de serviço privado. Contudo,
mesmo oferecido pelo serviço público através das Defensorias Públicas, não houve registro de
demanda jurídica por parte do restante dos participantes, levando-nos a pensar em certo
conformismo com a situação por parte desses colaboradores.
Para o participante 2, a família tem um valor fundamental de apoio emocional e
logístico, tanto na presença, se submetendo as vistorias constrangedoras das unidades penais,
trazendo alimentação que a cárcere não fornece, dentro dos que estão autorizados para entrar
na unidade, como também de buscar meios para que esse “processo judicial”, tome outros
rumos, outras proporções e interpretações que não prejudique a pessoa privada de liberdade,
mais do que ele já se sente e é prejudicado. Pela condição que vive, na vida diária
formalmente administrada que é a de um presídio, além de seus anseios, sonhos, negócios,
seus projetos, de maneira geral, por sua liberdade.
A lógica da justiça seja ela criminal, penal é carregada de muitas falhas e desníveis
podemos assim dizer, um fato pode ser danoso numa determinada ação, cuja em outro
contexto, nem tanto, pelo caráter subjetivo dos que interpretaram os fatos. A interpretação de
um fato, neste caso, para este participante foi manipulado, tornou-se nociva sua penalização,
gerando a revolta. Nem por isso o participante, se abstém da adaptação ao meio em que se
encontra, contando que apesar de tudo, sente que é um vitorioso dentro da unidade, pois:

Hoje eu tenho aqui dentro da unidade, dentro do sistema eu tenho o meu local
conquistado, através do meu trabalho, através da pessoa que a gente é. Pessoas
diferenciadas (servidores) que analisam meu perfil, a minha conduta no dia a dia, né?
E aí colocaram pra trabalhar o pessoal do administrativo. Então assim, é uma outra
linha pessoas, diferente do que você encontra aí dentro. (Participante 02, 04/10/2018).
(...) Que são pessoas de... de um grau educação elevada, melhor, que tem uma visão
diferenciada. Visão de humanização. Então com isso você termina aprendendo e o dia
147

vai passando melhor. O tipo de assuntos, o convívio do dia a dia, dos setores de
trabalho, você se ocupa a sua mente, com coisas produtivas. Coisas positivas.
(Participante 02, agosto de 2018).

O participante descreve o relacionamento com os profissionais do sistema penitenciário


do setor administrativo ser incomparável com os colegas privados de liberdade. Nesse sentido
podemos supor que a forma de se vestir, falar, agir e estar com pessoas com quem
compartilha dos valores, visão de mundo, uma forma relativamente satisfatória de adaptação,
que se distancia do público privado de liberdade que não deixa de conviver, pois está
apenado, sem contudo perder de vista esta condição, como conta anteriormente sua
insatisfação.
A distinção dada na convivência e servidores do sistema penitenciário, o significado que
dá aos seus pares, privados de liberdade, caracteriza-se pelo fato deste apresentarem:

Nível da educação baixíssimo, né! Pessoa de todos e todos os tipos. Criminosos!


Pessoas que vêm do mundo do crime, crimes bárbaros. Assim, você escuta todo tipo de
história que não condiz com a sua, que você buscou, que você escreveu uma parte e
gostaria de tá continuando escrevendo uma outra... a outra (história sua de vida).
Um lugar que tá todo tipo de gente ali, o nível da educação baixíssima ou algum nem
tem, pessoas que não leu, outro não escreve... não lê ou não escreve. Para aquele tipo
de ser ignorante, (...) Você vê que são totalmente pessoas despreparadas pra realmente
viver na sociedade lá fora, né? Porque aqui dentro é um querendo tomar o espaço do
outro, um querendo ser mais que o outro. Entram em conflitos, conflitos verbais,
corporais. Braçal. Então é um nível assim, sem lei. Existe regras e normas, mas a lei
ali é pagar com a sua própria vida, né? (Você olha) você fala “meu Deus”! Então isso
me marcou muito assim. (Participante 02, agosto de 2018).

Evidencia-se pelo sentido que o participante da a divergência dos valores desta


população dos seus próprio, mesmo que tenham em comum a prática do delito e condenação,
existe um distanciamento quantos aos interesses, de maneira que este participante possui
perspectivas de vida divergentes dos seus pares a ponto de manifestado estranhamento quanto
ambiente penal. O que temos que concordar em partes, por sua história de vida e formação
educativa destoarem principalmente no quesito baixa escolaridade.
Na perspectiva da educação no sentido humano e escolar de seus pares, no qual
qualificou de baixíssima qualidade, não temos dúvidas que se referia a fragilidade na
escolaridade da população prisional. O Ministério da Justiça no Levantamento Nacional de
Informações Penitenciárias (2016), referindo-se o perfil da população prisional no Brasil,
afirma ser predominantemente composta de jovens e negros e de baixa escolaridade. O
148

relatório aponta que 75% da população prisional brasileira não chegou a cursar o ensino
médio. Entre essa parcela majoritária, estão os 51% que não chegaram a concluir o ensino
fundamental, os 6% alfabetizados que não frequentaram a escola e os 4% analfabetos. 24%
têm como escolaridade o Ensino Médio incompleto ou completo, somadas. Apenas 1% dos
presos chegaram a iniciar ou concluir o ensino superior.
Uma forma de enfrentamento a essa realidade segundo pesquisadores de educação e
prisão é:

No dizer de Scarfò (2006), a Educação em Direitos Humanos é uma perspectiva


pedagógica indispensável e prioritária, quando se pensa a educação em
estabelecimentos prisionais, pois consiste em desenvolver uma educação em valores,
liberdade, integridade pessoal, igualdade entre as pessoas, tolerância, participação,
justiça, solidariedade, respeito aos acordos, escuta ao outro, expressão sem agressão,
exercício da crítica construtiva e reflexão sobre a vida cotidiana (ONOFRE;
JULIÃO, 2011, p. 64-65).

Somente por meio dessa postura, poderemos ter uma educação que vá para além dos
currículos escolhas e políticas públicas, mas para a vida, pautadas no direitos humanos e
igualdade social.
Essa igualdade vivia no interior das sociedade dos cativos, em contrapartida, ao sentido
dado pelas relações interpessoais do participante anterior, a participante 03 revive essa
experiência de convivência com seus pares numa outra perspectiva, de camaradagem,
amizade, companheirismo, proteção, paqueras, que se estendia dos limites da prisão. O
vínculo construídos com estes no contexto penitenciário se ampliava quando em liberdade aos
familiares destes, como narra a seguir situações vividas alguns anos atrás numa outra unidade
penal, com a ela a palavra:

Eu entrei pra dentro, todo mundo sabia que eu era uma travesti, eu era homossexual.
Mas eu entrei sabendo que lá não podia se vestir de mulher, era de homem, calça,
camisa... bermuda, camiseta, como todos os presos. (...) Cabelo no meio das costas, de
vez em quando lavava e soltava ele pra dar um close, né? Nunca fui maltratado. Pelo
contrário, claro que eu olhava assim pra alguns, eu via que eles tavam muito me
olhando, eu me sentia desejada! ((risos)) (...) Eles me respeitavam (presos). As visitas,
nem se fala. Tanto que quando eu saí de Mata Grande e fui pro semiaberto, as visitas
chegavam com as coisas, tinha muita coisa que não entrava pra dentro, então já
pegava uma caixona grandona que eu tinha de papelão na porta do presídio, né? Na
Mata Grande, e aí ficava ajudando as visitas, ia com criança, pegava a criança, lá na
fila na frente, levava as crianças no colo, aquele trajeto. As coisas que não entravam
elas me davam pra mim. (...) Pelo jeito que elas me tratavam lá dento, eu me achei no
direito de ajudar elas lá fora também, né? Eu tava no semiaberto, semiaberto era pra
fora, né? Chegava as visita com criança de colo, sacolaiada pesada, entendeu? Ô
149

mulher que gosta de levar comida pro presídio era naquela Mata Grande. E criança,
nossa! (...) Povo de dentro, agradecia eu por ajudar as meninas. Tinha vez que eles
mandavam droga pra mim lá de dentro, pra rua, pra mim, entregar pra mim, né? Que
tinha vezes que as meninas chegavam lá, "ah, não entrou tal coisa. P3 olha pra mim?
Que não entrou", "tá bom, olho, na hora que elas saíam eu tava lá na porta do
presídio já com as coisas delas tudo dentro na caixa. Eu não cobrava delas, tinha vez
que elas me davam as coisas. E assim eu levei a minha vida lá, super bem. Hoje em
dia as meninas... até hoje se eu ver as meninas, elas me tratam bem.( Participante 03,
outubro de 2018).

A reunião que se refere é muito comum no interior da unidade, realizada pelos presos
como tentativa de equilibrar os conflitos possivelmente entres eles que possa haver, seja por
rixa da rua ainda, desavenças internas, e no caso convivência com uma travesti. Logo, bem
aceita, adaptou-se de maneira satisfatória, de acordo com seus interesses em comum, em que
muitas vezes a droga fazia parte de certa maneira.
Mesmo em liberdade, a participantes não conseguiu se desvincular do ambiente
prisional, se alocar mercado do trabalho ou fazer outros tipos de amizades, o espaço e sua
rotina continuava fazendo parte do que caracterizava de lar. Ampliou seus contatos de
amizades com os familiares dos detentos, estabelecendo laços de confiança, parcerias,
contatos, de onde extraía seu sustento e ser recompensava por suas feitorias.
Observa-se um dado importante nessa narrativa, a afetividade que a participante
procurava estabelecer com esses “familiares” estranhos e familiares ao mesmo tempo,
expressados por suas ações e convivência, como - “Ah, não entrou tal coisa. P3, olha pra
mim?”; eu ajudava elas, pegava uma criança. Eu não cobrava delas. Essas atitudes nos
fazem pensar na compensação do seu relacionamento familiar com essas pessoas, que a essa
altura já era fragilizado, contudo a necessidade básica de afeto e pertencimento faz -se
presente de alguma maneira. Que de forma fragilizada também era suprida, quando suprida, o
que potencializa, numa narrativa anterior da mesma participante, a fuga de seus problemas no
uso de drogas, como conta - Aí eles ligavam pra mim agradecendo né, pelo meu serviço.
Mandavam uns presentinhos pra mim também aqui dentro, né? Eu usava droga naquele
tempo. E vivi a vida.
Uma narrativa do participante 2 elucida com destreza, a socialidade desse
relacionamento familiar, diante da prisão e drogas, que poderá proporcionar ao leitor algumas
considerações a respeito:
150

Muita família até desiste da pessoa, do filho, do esposo, do marido que cai aqui
dentro porque as vezes não é a primeira vez, já veio, duas, três, quatro vezes, a família
já sofreu muito com a situação dele lá fora, né? Na vida... no mundo do crime e aí cai
aqui e às vezes é um alívio pra família, né? Eu já ouvi relatos de mães falando que
“nossa, pra mim eu prefiro meu filho aqui dentro desse local do que lá na rua porque
lá na rua ou ele chegava drogado, ou ele me batia, ele roubava minha televisão, meu
botijão de gás e acabava, não tinha vida, eu já não podia dormir tranquila, eu já
não... quando ele tá em casa eu tenho medo porque tá sempre... quando ele mexe com
droga, ele se altera e tal. Aqui eu sei que ele tá aqui, eu venho visita-lo, vejo que ele tá
na igreja e.né?! (...) É doído você ouvir uma mãe falar que o filho tá bem aqui nesse
lugar, numa prisão, num sistema falho do jeito que é. (Participante 02, agosto de
2018).

A subversão dos valores de socialização, no depoimento dessa mãe, demonstra a


vulnerabilidade da família, da pessoa privada de liberdade e complexidade ligada a
compreensão desses casos, em que a pessoa precisa estar presa para a mãe se sentir livre.
Todavia, nas relações construídas dentro da unidade como fora, havia um significativo
componente de preconceito, sofrido pela participante na condição do “ser travesti”, como
lembra:

Assim, tinha alguns barracos que eram preconceituosos, que eu bebia nesse copo, se
eu bebesse café aqui, desse pra alguém, tinha uns que já não bebiam, mas tinha uns
que bebiam, conversavam comigo, entendeu? Tanto que uma vez... eu fumava
maconha, de primeiro eu fumava maconha, né, no barraco que eu morava. Nós
távamos fumando um brown na quadra e tinha outro menino novato, aí foi passar
pra ele, eu fumei o brown e fui passar pra ele o brown, ele falou assim, "ah, não, não
sei onde você colocou essa boca sua", eu olhei pra ele assim, entendeu? Eu fiquei sem
graça, e os meninos viram que eu fiquei sem graça, meu patrão (traficante custodiado)
também ficou sem graça, ele falou assim, “você acha que ela colocou o pau na onde?
Em mim? Porque ela mora comigo. Se você não quer fumar, problema é seu. Eu não
vou tirar a bicha que mora comigo por causa de um malandro igual você. Ela é mais
homem do que você. Então com licença". Aí ele falou assim, "mas como vocês tão
tirando eu por causa de um viado?", ele respondeu assim, "ele é um viado, mas ele é
mais homem do que você". "Então a P3 fica e você sai porque quem chegou aqui foi
você, não foi ele. Ela já tava quando você chegou". E aí eu senti assim que tinha
alguém por mim ali, né? Aí me senti mais à vontade ainda, aí eu brincava com os
outros, outros fazia piadinha comigo, entendeu? Eu respondia, mas sem brigar... E
assim eu levei a vida, na esportiva mesmo esses tempos, com todo mundo. Todo
mundo gostava de mim. Até hoje, quem tá lá do meu tempo, que foi e voltou, lembra de
mim. Uma vez mesmo eu encontrei um cara, aí ele falou assim, "ah, eu vim da Mata
Grande", eu falei, "olha, você ouviu falar de uma tal de P3?", ele falou, "ah, ouvi sim,
uma travesti do sistema, né?", falei, "é. Você ouviu falar bem dela?", "ouvi, mas eu não
acredito que uma travesti puxou no sistema prisional da Mata Grande", falei, "então
151

essa travesti sou eu", "você?", falei, "é, sou eu.", "pô". Eu me senti elogiada, por
mais que seja em um presídio, mas me senti elogiada, sabe por quê? Pelo
comportamento da gente, pelo modo de se tratar as pessoas. Não era ignorante,
arrogante, nojenta, insuportável, ninguém gostava de mim então. (Participante 03,
outubro de 2018).

As filiações vão se moldando no interior da unidade penal, nas relações de afinidades e


aversão também, geradas pela incompatibilidade de preceitos de cada um. A preocupação por
parte do colega, sobre onde a participante “coloca a boca,” revela o caráter estigmatizante de
sua conduta, direcionado ao público LGBT. Essas atitudes gera danos ao “indivíduo
estigmatizado, o sentimento introspectivo de insegurança em relação a maneira como os
normais o identificarão e receberão” (GOFFMAN, 1988, p. 23). Neste caso, o comentário
realizado pelo “recém chegado”, foi banido pelo patrão da participante que saiu em sua
defesa, empoderando-a por ser mais homem que muitos homens por suas condutas.
Na mesma linha, a participante salienta atitudes de ignorante, arrogante, nojenta,
insuportável, não continuem para seus relacionamento interpessoal. Por apresentar ações
contrarias as referidas, além de conviver num espaço massificamente masculino, foi
reconhecida por sua coragem e popularidade, ganhando status de elogiada por isso.
Saliento que a esta participante, são direcionados mais de um estigma ao longo de suas
narrativas de vida e formação, sendo a de travesti, presidiária e drogada. Esta reflexão diz
respeito apenas o primeiro, considerando que outros qualificadores são compartilhados por
seus pares, que também fazem uso de drogas e estão privados de liberdade. Esses dados são
relevantes para pensarmos a respeito de sua (re)socialização, como já abordada interiormente
não obteve avanço enquanto uma expectativa de alocação no mercado de trabalho, moradia e
estabelecimento de vínculos afetivos sólidos, concordando com Baratta (2002):

A maior parte da população carcerária é composta por pessoas pertencentes a grupos


excluídos econômica, social e culturalmente. A exclusão social não se refere apenas
à condição de pobreza, mas a características étnico-raciais, valores e costumes, que
são alvo de discriminação e intolerância social. Ser excluído socialmente é a
primeira característica do indivíduo autor de delito; estar preso é a segunda
experiência de exclusão social (BARATTA, 2002, p. 70).

Nesse atravessamento que se destaca entre os dois participantes, de serem excluídos,


apesar de apenas o primeiro trazer o discurso de sentir angústia perante esse dado, frente a
sociedade fora da prisão, e o segundo apresentar boa adaptação a prisão, apareceu interessante
a ser discutido, que tipo de qualidade de vida essas relações podem trazer a participante em
processo de (re)socialização, a respeito ela mesma informa:
152

Quando eu saí dessa vez agora, fui embora dessa vez, eu vou falar bem sincero, se eu
ver um amigo meu que eu conheci aqui dentro do presídio bem vestido, eu posso até
conversar com ele, mas se eu ver que ele tá desandado, eu for fazer o possível pra nem
conversar com ele. Eu fui usuário de droga, então tenho que me afastar daquele que
usa droga, por causa que é ele que vai me levar pro mundo das drogas de volta. Se eu
ver vou dar conselho, "larga dessa vida, tal", Fica longe dele. Porque eu sei que isso
vai acontecer, vou sair pra rua, amigo na rua. Lá no centro principalmente tá cheio,
os presos tão tudo no centro, minhas amigas aqui do presídio, tá tudo no centro
fumando base. Isso é dolorido pra mim, ver a pessoa como que ela é lá na rua,
desandada. (Participante 03, setembro de 2018).

Pelo conteúdo narrado, fica evidente a fragilidade de vínculos afetivos da participante,


que por fim neste processo de recomeçar a vida pós prisão e longe do crime está sozinha, pelo
contrário, se não quiser permanecer sozinha, continuará no crime, seguindo sua trajetória de
reincidência constante que descreve adiante. No crime e na droga, pois não deixou de ser uma
dependente química até então.
A participante demonstra estratégias para lidar com isso, não se aproximando de
amizades também com dependência química, ao mesmo tempo que se sensibiliza com a
realidade delas, de que tá tudo no centro (bairro) fumando base (pasta base). Isso é dolorido
pra mim, ver a pessoa como que ela é lá na rua, desandada.
Este aspecto é digno de análise, em grande parte das narrativas dos participantes, há
marcas da drogadição, tanto em liberdade como na própria prisão, como narra
retrospectivamente a participante:

(...) 21 anos eu puxei dois anos, e com 26 anos que eu caí eu fiquei um ano e seis
meses, fui embora, depois voltei de novo, fiquei mais uns meses, mais nove meses,
entendeu? Aí depois eu fui embora, com esse um ano e meio, eu fui embora, eu voltei,
aí eu fui embora de novo e aí voltei e fiquei presa. Eu voltei com 160 cabeça de pasta
base eu voltei, aí eu fui embora de novo e voltei com 24 cabeça de novo, aí fiquei
presa e resumiu tudo e deu uma ripada só, 17 anos. Mas caiu dois anos da minha
cadeia, aí ficou pra 15. (Participante 03, agosto de 2018).

Este dados, referente a droga e reincidência, são comprometedores do o sistema


penitenciário no Brasil, cujas taxas sobem alarmantemente. No comparativo realizado ao
longo das décadas, levantado pelo Depen (2007), revela que:

(...) no início do século XX, o predomínio absoluto de crimes contra a pessoa,


enquanto, em 1985, as estatísticas do IBGE indicam que 57,8% foram condenados
por crimes contra o patrimônio, delito que começa a aparecer a partir do anuário de
153

1943. Já o problema do tráfico e do uso de drogas tem início na década de 60, e, no


período entre 1965 e 1985, o número de condenados por esses delitos triplicou,
explodindo, mesmo, a partir do ano 2000. (BRASIL, DEPEN, 2007, p. 34)

O participante continua relatando sua experiência a respeito:

Comecei a usar droga, fui preso pela droga. Era de maior, minha primeira cadeia eu
tinha 21 pra 22 anos lá na Mata Grande. Caí por tráfico de droga. Acho que foi com
24 cabeças que cai e um ano semiaberto. Aí eu vinha pra Cuiabá, já lá dentro da
Mata Grande eu usava droga, lá tinha muita droga. Era tempo da pasta base, aí eu
saía, usava na rua, aí vim embora pra Cuiabá. (...) Aí foi indo a vida, vendendo
droga, usando, mas eu sempre tive meu barraquinho de tábua, né, minhas coisinhas
dentro. As pessoas me admiravam por eu usar tanta droga e eu ter de tudo dentro da
minha casa: fogão, geladeira, cama, televisão. Na minha casa tinha de tudo, mas eu
usava droga, entendeu? Ali era compra de roubo, né, as coisas, né? Chegava noiado
com uma televisão e comprava, chegava com bojão e comprava, revendia. Eu fazia,
como fala? Trambique, era trambiqueira demais, comprava um revendia, tirava pra
mim comprar o meu uso e pra mim traficar, entendeu? (...) Acabava com o dinheiro
lá no boqueiro, lá que me vendia fiado que ele sabia que eu tinha capacidade de
pagar ele. (...) Na rua eu usava droga, eu fiquei limpa depois que eu vim presa.
Agora, tem o que? Um ano que eu não uso droga. O ano passado, depois... nesse
meu segundo casamento eu decidi parar de usar droga. No primeiro casamento eu
era muito desandada e meu marido não teve paciência de me esperar eu parar,
entendeu? Foi um ano e três meses lutando pra mim parar e não conseguia parar,
ele não teve paciência e largou de mim. Aí eu larguei dele, ele largou de mim, casou
de novo, aí depois eu casei de volta e parei por conta própria “não, não quero mais
usar droga” e pronto, acabou. Hoje sou gorda, minhas roupinha de primeiro não
serve mais em mim, entendeu? É assim. (...) A droga, a prisão gera “psico”
(alterações psicológicas)... prisão pra gente, “pena” ( condenação) pelo que a gente
fez. Você vai cair em decadência, eu não tive controle comigo, eu caí no mundo das
drogas de novo que eu quase morri. Eu tomava remédio, eu puxava droga,
entendeu? Eu fiquei um monstro, fiquei transtornada, fiquei horrível, entendeu? Não
se importava com nada, se banhar banhou, se não banhar não banhou. A cama fica
fedendo. De vez em quando eu olho assim alguém assim eu imagino assim: “Senhor
amado, eu era desse jeito, tava desse jeito”, olha o que que a droga faz e a gente não
vê. Porque a gente não vê os efeitos na gente. (Participante 03, agosto de 2018).

A participante narra a experiência do (us)abuso de drogas associada a criminalidade,


reincidência na prisão e perca de vínculos afetivos, tão significativos enquanto privado de
liberdade. Seu primeiro casamento foi um deles, ocorreu dentro do sistema penitenciário,
durou um ano como narra, todavia, não conseguiu nesse relacionamento se ver livre do vício.
Ressaltando aqui que apenas o fato da privação da liberdade não garantir a interrupção do uso
das drogas, como mencionadas pelas narrativas do participante, de certa maneira, pode
154

contribuir para isso pela dificuldade de acesso ser maior que na rua. Desse último
relacionamento, frustrado, marcado pelo uso da droga, a participante pode ressignifcar suas
experiências passadas, e agir de forma diferente no relacionamento amoroso contado na
narrativa, de modo que a droga não teve espaço mais na sua vida até então.
A condição das experiências vividas com a droga ao longo do relato da participante
evidencia a forma como vem construindo sua identidade, formação humana, educativa e
profissional, como descreve, Nóvoa:

O adulto em situação de formação é portador de uma história de vida e de uma


experiência profissional; as suas vivencias e os contextos sociais, culturais e
institucionais em que as realizou são fundamentais para perceber o seu processo de
formação. Mais importante do que pensar em formar esse adulto é refletir sobre o
modo como ele próprio se forma, isto é, o modo como se apropria de seu patrimônio
vivencial por meio de uma dinâmica de “compreensão retrospectiva (NÓVOA,
2014, p. 172).

Distante das drogas, a participante poderá “atuar, operar, transformar a realidade”


(FREIRE, 2014, p. 17). Os vínculos afetivos são importantes nesse processo, auxiliando o
indivíduo nessa postura crítica, reflexiva e de autonomização, em que novas escolhas poderão
ser feitas na projeção de um futuro promissor. A participante lembra a respeito:

Pra mim era normal, mas depois que acordei pra vida... Lady, eu agradeço muito
àquela bicha, hein? Aquela bicha eu e ela saímos nos tapa de vez em quando, mas
agradeço muito ela porque ela falou um dia pra mim, eu lembro até hoje “olha pro
espelho, enquanto você tiver com essa cara de monstro sua você nunca mais vai
sair. Vai se arrumar, passar uma maquiagem na cara, olha pra vida, você é bonita,
se arruma. Acorda pra vida, vai limpar sua cama, vai ocupar a mente” porque eu
não ocupava a mente com nada, meu negócio era usar droga. (...)Só pra droga,
droga, droga. Nem aqui embaixo eu não vinha mais pra conversar com psicólogo,
eu ficava enfiada naquele contêiner que não saía por nada, lavava roupa e sentava
na droga. (...) Todo dinheiro que entrava era pra usar droga. Eu vendia salgado lá
em cima (própria unidade penal), eu vendia pastel, quebrei, vendia rissole, eu
quebrei por causa da droga. Eu me humilhava muito, os outros me humilhava
muito. (Participante 03, agosto de 2018).

O uso da droga gera um condição de mortificação do eu civil das mais degradantes,


marcadas por uma identidade deteriorada como aponta Goffman (1988) e despersonificada.
Não existe mais o desejo do indivíduo, seu sonho, o amor próprio, auto cuidado, além das
relações interpessoais serem voltadas em torno droga, de quem usa, de quem vende. Não
155

havia relacionamento familiares e amorosos sólidos, existia apenas a compulsão pela droga e
toda autodestruição que dela se engendra.
A dependência química é uma doença que precisa ser tratada, com especialistas,
médicos, psicólogos, terapeutas diversos, medicações se for o caso, mas contudo com amor,
laços afetivos consistentes, que transmitam pertencimento, proteção, segurança, confiança,
autoconhecimento e domínio de si dentre outros. Caso contrário o ciclo da reincidência desta
participantes ao sistema penitenciário continuará ativo. A respeito conta:

Falta melhoria, falta uma oportunidade assim do próprio Estado, tirar eles daqui e
dá um norte pra essas pessoas, né? Buscar, pegar essas pessoas, vamos colocar num
trabalho, a falta do dinheiro, a falta do emprego acho que tudo leva. Porque poxa,
eu acho que todos têm o sonho de “ah, eu quero ter minha casa, eu quero trabalhar”
todo mundo precisa ter seu dinheiro e tal. Chega lá fora ele vai pedir emprego, não
tem emprego. E se ele quer, pode até ser que um deles quer trabalhar, quer mudar
de vida, nenhuma empresa privada vai dar emprego pra essa pessoa, a pessoa sai
“ah, vai lá... “eu sou um ex-presidiário” ou “eu tô aqui com uma tornozeleira
eletrônica”, né? É difícil chegar alguém e falar- “ah, não tem empresa, mas tem uma
obra, tem alguma coisa que eu vou trabalhar ali.” Às vezes até pergunta, “ah, sou ex-
presidiário”(responde), “ah, esse cara é ex-presidiário, então nem quero.” Então
assim, eu acredito que o estado ele teria que ter um acompanhamento diferenciado
pra tratar essas pessoas (de alvará), né? Hoje, como que eu vou me reestabilizar, no
trabalho e tudo mais, né? (...) O que eu observo é o seguinte: o índice de pessoas que
entram, que saem e entram ou que entram e ficam, você percebe que as pessoas, a
grande maioria, entra num lugar desse, ela com começa a falar um palavreado, aqui
a gente fala “poxa... ele tem isso aqui como endereço dele”. É normal, pra você que
vive, sempre viveu do crime ir ali, vivem, muitos assim. (...) Não tem aquele
sentimento de “poxa, eu tô voltando”, porque sofrem, dentro de humilhações, né! A
pessoa chega aqui, às vezes vem, passa um período aqui e saem, tem a liberdade de
volta, né! E chega lá eu não sei se eles não buscam mudar, ou não tem mesmo a
oportunidade de mudar de vida. Porque aqui dentro o sistema não muda ninguém, o
sistema ele foi criado pra só ter esse título. (...) A direção buscar por num trabalho,
busca pôr numa escola, buscar pôr num curso, busca... só que as pessoas têm que
querer, né, olhar por si próprio e querer mudar, querer pegar esse momento e
aproveitar. (...) Atribuo isso à dificuldade, atribuo isso à lá atrás, não sei o estilo, à
facilidade. Que volta pro mundo do crime pra ter nome, título, hoje tem esse negócio
de Comando Vermelho aí que é muito “ah eu sou irmão” quem fala que é irmão são
muitos e eu vejo muito. Poxa, eu fico muito contente e feliz, né, quando cheguei há
dois anos atrás e eu vejo ele indo embora, né? Eu já vi vários acontecer de ir embora,
só quando eu fico muito triste quando passa 30, 40 dias, uma semana a pessoa volta
por algo novo ou até mesmo pelo mesmo crime que ele cometeu, volta assim como
normal, pô, chega rindo “voltei, pô, e aí? Você tá aqui ainda?” Não volta com
aquela coisa... aquele sentimento de derrota, com aquela coisa de “poxa, tô de novo
nesse lugar”. É familiar pra ele, não tem família... Muita gente fala assim “ah...”
uns tão saindo e outros falam, os próprios colegas, logo tá de volta. Os agentes que
já têm tempo no sistema, né? Fala “não, esse aqui não...” mais três, quatro dias você
tá aí com a gente de novo. É comum, escutar isso. E é fato, é fato que acontece porque
156

a pessoa sai, uma semana na rua, volta pro crime e agorinha tá aqui de novo, e
agorinha muito rápido mesmo. (Participante 02, setembro de 2018).

A reincidência da pessoa privada de liberdade no sistema penitenciário no Brasil, é


alarmante. O relato do participante traz alguns sentidos dados a essa evidencia estatística,
como apresentado anteriormente no capitulo 1, dentre eles, refere-se a princípio a tendência
da pessoa privada de liberdade falar um palavreado, típico de cadeia. A população carcerária
assim como as regras, possui também seu próprio código de comunicação, substituindo
palavras do dia a dia por outras que apenas quem é do “mundo do crime” consegue decifrar,
com isso, ele conseguem menos interferência em seus negócios e transações pela equipe
formalmente administrada.
Ilustraremos alguns exemplos típicos24: “bereu” referindo-se a bilhetes; “boi”, para o
buraco que fazem as necessidades fisiológicas; “cagüete” para aquele que denuncia, passa
informação; “bagulho”, quer dizer maconha; ir de “bonde”, transferiu-se de unidade; “tatu”,
buraco da parede, no chão, esconderijo; “casinha”, armadilha, “emboscada”, dentre outros
linguagem que fazem parte do mundo do crime. Nas alas evangélicas é proibida utilização
destes vocabulários, do mundo do crime ou da cadeia.
Outro sentido adquirido pela experiência deste participante refere-se a atitude de
normalidade para quem sempre viveu do crime, retornarem e prisão e o que indaga não terem
aquele sentimento de derrota, com aquela coisa de “poxa, tô de novo nesse lugar”, para o
reincidente, a prisão (...) É familiar pra ele, em seguida o participante associa esta conduta
aos que não tem família.
Dois pontos chaves em sua narrativa se destaca para compreendermos o fenômeno da
reincidência, uma diz respeito aos referenciais da pessoa privada de liberdade, direcionada
para o que lhe é familiar como conta o participante, o mundo do crime, não havendo
estranhamento para aquele contexto, regado a penitências e benefícios também, como um
título, um status, reconhecimento de seus feitos dentre outros. Outro aspecto, é a condição da
ausência da família, de uma família, que podemos dizer: ser pautado na fragilidade dos
vínculos iniciados ainda na infância e adolescência, como exemplificado anteriormente, com
o relato do participante 3; ora pelo rompimento desse vínculo decorrer da criminalidade
pessoa privada de liberdade, ou pelo uso do entorpecente, que são coisas diferentes, apesar de
andarem muitas vezes conjuntamente na vida do dependente químico; seja também quando a
24
Apesar de não aparecer nas narrativas desses participantes, todos os vocabulários citados, são relatos a partir
da experiência da pesquisadora, em atender pessoas restritas e privadas de liberdade no sistema penitenciário.
157

família está unida também no crime, pode ser desvinculada pelo mesmo viés, principalmente
quando marido e mulher, desmoronam juntos, caem na prisão por exemplo.
Sobre esse processo formativo no crime o participante 2 relata sobre as condições
extrospectivas e prospectivas da socialidade na prisão:

(...) A pessoa vem de fora com um crime ali, aconteceu a primeira vez, foi lá roubar
com um colega que convidou, uma pessoa, foi assaltar, não deu certo, sei lá o que
que deu de errado lá veio preso, chega aqui cru, cru, não tem a malícia de nada, cai
num lugar desse, numa cela que tem pessoas que têm história aí no crime. De todas
as maneiras, vai ficar preso aí sei lá, mais 10 anos aqui dentro, ele tem que formar
os braços dele lá fora, né! Aí ele já põe a pessoa pra participar de alguma coisa, pra
vestir a camisa, pra batizar a pessoa como se ele fosse do comando, da facção, né! E
aqui dentro mesmo ele já começa a aprender novas formas, novos jeitos que eles já
aprendem pra tá roubando, assaltando. Aqui dentro mesmo vem ver questão de fazer
(benção tia). (...) Benção tia é o que eles fazem por telefone aqui dentro, assalto,
fazendo roubo lá, fala que assaltou, que sequestrou uma pessoa, liga pra um
número qualquer, não sei como que eles conseguem o número e a pessoa atende e de
repente fala “ah, tô com a sua filha, assaltei com... sequestrei, você tem que me dar 3
mil, 5 mil, deposita na conta pra mim liberar ela” é aquelas situações que a
sociedade também conhece que tem isso aí lá fora. A pessoa cai, começa a aprender
fazer isso aí, daqui seis meses, sei lá, um ano, ele vai embora, dois anos, ele vai tá
aperfeiçoando, ele aperfeiçoou o crime pra tá fazendo, executando lá fora. Ou seja,
saiu daqui como se diz “formado”, né! Porque chegou não sabia nada, aí num
sistema que era pra ser blindado contra isso aí e contra drogas você encontra aqui
mesmo, aqui dentro mesmo você encontra drogas ilícita, né! Cocaína, maconha,
assim, como se... livremente. (Participante 02, setembro de 2018).

O participante narra com rigor de detalhes, o que ele chama de formação -“formado”,
relacionado as formas de aprendizagem que a pessoa passa em sua estadia no “sistema
penitenciário”, que pra ele o sistema ele foi criado pra só ter esse título. Considerando que
mesmo que (...) A direção buscar por num trabalho, busca pôr numa escola, buscar pôr
num curso, busca... para a pessoa privada de liberdade, só funcionara se a pessoa realmente
tiver interesse, como diz -só que as pessoas têm que querer, para haver a mudança na
conduta criminosa. No relato do participante, elucida a questão do sentido que a pessoa
privada de liberdade, emite para o mundo do crime, mesmo sofrendo humilhações como
descreveu, e outras situações que acarreta. A formação educativa escolar que recebeu
evidencia sua fragilidade nesse contexto, fazendo mais sentido para ele o mundo crime, frente
a que sociedade oferece. Essas pessoas demonstram sentirem o pertencimento e proteção
social, na filiação por esses grupos de organizações criminosas, seja - pra ter nome, título,
como referindo-se a esse negócio de Comando Vermelho aí, que diz serem irmãos, é muito
“ah eu sou irmão” quem fala que é irmão são muitos e eu vejo muito esse comportamento
158

na prisão, do que sentirem esse pertencimento em liberdade, seja na vida familiar,


comunitária, ligadas ao trabalho, na vida em sociedade.

Quem é traficante e tem o poder de comprar essa droga, pôr aqui dentro, eu não sei
como, mas chega pra ele e ele distribui vendendo aqui dentro mesmo pras pessoas e
as pessoas que não têm começa a fazer esse tipo de trabalho de benção tia, estorno,
palavreado deles que é um trabalho que eles titulam como trabalho aqui dentro da
cadeia que é um trabalho pra... pra fortalecer no crime, né! (..) Se ele é viciado? Ele
vai ter que conseguir dinheiro, se ele tá preso de alguma maneira ele vai conseguir
dinheiro porque não tem trabalho, aqui não tem profissão, não é remunerado, não é
assim que funciona, não são todos. (...) Então essa pessoa fica o dia inteiro aqui, eles
fica só bolando meios de ter dinheiro, conquistar dinheiro pra pagar drogas.
(...)(...)Matar polícia, roubar, vários roubos tipo... roubar banco, roubar, ah, passar
uma carreta pra Bolívia pra trazer droga pro comando, o cara vai e da conta, vai lá
executa e volta, acontece, né! Traz o lucro positivo do jeito que eles planejou. Esses
ai tem.. (...)é respeitado” como diz o outro, esse cara tem cama, ele não dorme no
chão, ele dorme na cama, se tiver algum outro lá que não é igual a ele, “sai da
cama, vai pro chão que ele chegou hoje ele vai pra...”, o cara tá ali três anos, mas
sai porque esse cara é ponta firme, né? Um traficante forte, né? Então tudo isso, é
assim que começa. (Participante 02, outubro de 2018).

No relato evidencia outro problema relacionado ao mundo do crime, a dependência


química, que viram um capital humano para agregar recrutas ao mesmo tempo que
movimenta o recurso financeiro da droga. Por que assim como se movimentam dentro do
presidio, quando em liberdade também poderá fazer qualquer coisa para alimentar o vício,
comprar a droga, inclusive roubar.
O mundo do crime tem sua hierarquia, traz suas punições e compensações,
recompensas pelos feitos realizado, como conta o participante - Matar polícia, roubar banco,
o criminoso tem seu reconhecimento por parte daqueles que dividem os sentidos construídos e
reconstruídos introspecto e extrospectivamente ao mundo do crime.
Pautada nessas diferenças de sentidos relacionais no contexto penitenciário em
comparação a outras narrativas, constata que nem todos que se encontram privados de
liberdade, apesar de seguirem as mesmas regras impostas entre si, compartilham desses
sentidos, sentimentos, crenças e valores. Daqueles que se veem submetidos a serem conivente
com a imposição da situação, boa ou ruim, como relato pelo participante por exemplo - o cara
tá ali três anos, mas sai (cama) porque esse cara é “ponta firme”, forte no crime, forte no
tráfico e merece todo reconhecimento e regalias por parte de seus pares.
Com essa característica baixíssima de escolaridade, como anteriormente descreveu,
consegue se alocar no mercado de trabalho e satisfazer suas necessidades de sobrevivência,
159

como alimentação, moradia, acessos a serviços comunitários, saúde, educação, assistência


social dentre outros? Segundo as narrativas anteriores dos participantes de vida e formação,
não, o usufruto desses serviços foram fragilizados no decorrer dos relatos e ainda são muito
presente suas demandas, de moradia e trabalho como conta o participante 2.
Os presos fazem parte da população dos:

empobrecidos, produzidos por modelos econômicos excludentes e privados dos seus


direitos fundamentais de vida. Ideologicamente, como os “pobres”, aqueles são
jogados em um conflito entre as necessidades básicas vitais e os centros de poder e
decisão que as negam. São, com certeza, produtos da segregação e do desajuste
social, da miséria e das drogas, do egoísmo e da perda de valores humanitários. Por
sua condição de presos, seu lugar na pirâmide social é reduzido à categoria de
“marginais”, “bandidos”, duplamente excluídos, massacrados, odiados (ONOFRE,
2007, p. 12).

Infelizmente, no Brasil para se conquistar algo relevante na vida, ou meramente uma


ascensão social digna, a pessoa, incluindo a privada de liberdade, dependerá passar pelo viés
do ambiente que veio, se construiu e formou-se pessoa, sua cor de pele e classe econômica.
Como foi abordado aqui de outras maneiras, a população advindas da pobreza, são as mais
atingidas.
As Diretrizes Nacionais (2007) nessa perspectiva chama a atenção a esse respeito a:
A permanência do preso em qualquer circunstância é transitória e de permanente
aprendizado, portanto, se o trabalho não for realizado com respeito à dignidade
humana, o resultado estará de acordo com as perspectivas previsíveis, e podem até
ser cruéis e impiedosos. Os espaços que atuam em nome da Justiça, como
mecanismos de promoção de normalidade social precisam ser combatidos em seus
descalabros e em seus efeitos perversos; as mudanças são prementes, novos tempos
exigem novos horizontes (BRASIL, DEPEN, 2007, p. 128).

Desta maneira, além das armadilhas estas circunstancias oferecem, marginalizadas por
outras esferas sociais, a pessoa privada de liberdade, justamente e ainda bem, precisa lidar
com as consequências de sua escolha. Uma escolha que precisa ser realizado dentro de um
ambiente crítico e reflexivo, que nem todos os delinquentes são capazes de fazerem. Assim,
temos a narrativa dessas consequências praticadas no ambiente intrafamiliar:

Eu não tô mais com ela não, ah, eu pedi para ela não vir mais né (visitá-lo), porque
o meu problema, de eu estar preso aqui, foi com a filha dela, meu problema, e
grande problema na minha vida foi com a filha dela. Então, às vezes ela vinha, não
sei se é impressão minha, eu tô nervoso, porque não sei, acho que vou falando, vou
ficando... e ela (ex-mulher), me maltratava (durante as visitas) muito sabe. Eu
reconheço, que eu fui muito errado, reconheço tudo que eu fiz, não nego nada, me
arrependo muito, não pela cadeia, mas pelo erro que eu cometi. Eu reconheço que
sou errado entendeu, que ser humano nenhum merece passar o que ela (vítima do
160

processo) passou comigo né. Isso, tanto que, eu amo minha filha e morro de medo
que aconteça alguma coisa com ela. Assim, eu mesmo chorei muito falei para [a
psicóloga da unidade penal]: ‘será que sou um monstro?! Será que sou um
psicopata?!’ –Ficava com esse medo, mas assim, eu me arrependo do que eu fiz, me
arrependendo muito, entendeu. (Participante 01, setembro de 2018).

A prisão pode se tornar para alguns um dano secundário, em que a pessoa privada de
liberdade precisa lidar introspectivamente com sua culpa e remorso pelo que aconteceu e os
diversas consequências que o crime desencadeou. O comportamento violento nem sempre
está associado a um transtorno de personalidade, como antissocial, psicopatia, marcado pela
conduta violenta sem culpa e remorso, não sendo o caso do participante, que demonstra
contrição e sofrimento pelo ocorrido. Além do arrependimento que manifestou o participante:

Eu me arrependo de coração mesmo o que estou sofrendo de estar recluso, longe da


família, privado de sair entendeu. Mas eu paro assim, como ser humano e penso, eu
não acredito no que aconteceu, que eu tive coragem de fazer aquilo entendeu. Eu
fico pensando assim se eu conseguisse, voltar no tempo para desfazer, tudo o que eu
fiz. Eu fiz muita coisa errada, mas isso ai foi o cumulo. (...) Esse lugar aqui, de certa
forma me ajudou muito, por que aprendi não por estar recluso, mas pelo que eu fiz.
Eu tinha dificuldades de resolver meus problemas. Quando eu entrei na droga eu
tinha dezessete anos, eu era novo ainda, um moleque, então não amadureci em
nada. Eu não sabia lidar com meus problemas, dificuldades do dia a dia. Assim, eu
era muito agressivo, nervoso, explosivo, acho que era tudo revolta, daquela época,
da escola (...) Não prejudiquem só (parte/vítima) pelo que eu fiz, eu prejudiquei a
mãe dela emocionalmente porque ela ficou acabada quase que ela entrou em
depressão. (...)Aí ela passou não respeitar de verdade a mãe ela já não respeitava
muito e acabou de desandar tudo. Ela foi morar sozinha com 15 anos de idade
começou a trabalhar numa lanchonete perto de casa alugou uma casinha para morar
sozinha. (...) Arrumou um namorado e o cara meio mala trocou de namorado, por
final arrumou o menino começou morar com menino, casou com 16 anos engravidou.
Ele roubou a mãe dela, roubou o cartão quando ficou internada, era o cartão do
benefício. Ela é pensionista o marido dela morreu atropelado e ela recebe uma
pensão. E aí o genro dela entrou na casa quando não tinha ninguém pegou o cartão
dela, sabe a senha sacou todo dinheiro dela e gastou todo o dinheiro. Quando ela saiu
do hospital foi pegar o dinheiro dela e o cara falou –“Não, a Senhora não tem mais
nada aqui, já sacaram seu dinheiro Aí ela fez BO (boletim de ocorrência) tudo para o
show na câmara (ver as filmagens do banco) ela conseguiu as imagens e a sorte que
descobriram que a sorte foi ele. Ela (a parte) separou e agora ela tá grávida de 7
meses, eu acho, solteira. Bom eu acho que pode ser uma conscidência ela tá grávida
então mas eu me sinto culpado por várias coisas que aconteceu com ela. Eu gosto
muito dos filhos dela (ex mulher), os meninos são pretinho igual eu e todo mundo
achava que eram meu filho, quem não sabia, quem não nos conheceu antes, falava
que era meus filhos, eles são bem moreninho, eu gosto muito deles. Eles já sofreram
não tem pai.A (parte) é soropositivo também as outros três deles, que não são
soropositivo. Eu acho que minha filha não é porque eu acompanhei a gestação, tava
todo aquele cuidado, não amamentou, tomava depakene xarope, todinho, fez exame e
161

não tá. O problema é agora, a mãe (ex mulher) ela tá com tuberculose. (Participante
01, setembro de 2018).

O participante vive a angústia da culpa, por ter ferido pessoas que fazem parte de seu
vínculo familiar, e também não souberam lidar com ocorrido, e o as consequências da
dinâmica que vinham se construindo essas suas relações, como o abuso de drogas. Em suas
narrativas, o dado de ser nervoso, explosivo, irado, aparece com frequência, junto com o fato
da dependência química. No espaço tridimensional precisa ser ressignificado, enquanto
sujeito no mundo, nas relações, em sua identidade, no sentido ter discernimento e
autoconhecimento para distinguir aquilo que ainda pode extrospectiva e prospectivamente se
modificar e aquilo que não mais. Esse movimento de reflexão do passado e presente, pode
estimular a projeção de um futuro que as mazelas anteriores não voltem a se repetirem.
Por outro lado, esse movimento de conscientização do impacto do delito praticado, é
também carregado de vazio, incoerência e inconsistência pelo processo de encarceramento.
Cumprindo o papel nada mais e nada menos que alimentar o sistema do crime, recrutando
jovens e adultos a servir o crime organizado e tudo que nele agrega, cuja moeda de pagamento
é a própria droga, como bem comenta o participante 02:

O dependente de drogas ele vai pro setor da igreja, certo? A igreja não permite, não
aceita que ele tenha contato com isso aí, com o vício dele que é cigarro, drogas,
enfim, né? Coisas ilícitas e o próprio cigarro também. Então se ele passar um período
de um ano, seis meses, ele fica ali, as pessoas de olho, não tem aquilo então pra ele
fica... ele não usa, não utiliza. E eu acredito que isso quando ele sai lá fora que ele
vê tudo à vontade, que ele pode ter acesso, ele busca. (...) Ele não busca aquilo
(igreja) porque ele não tem jeito, as pessoas estão se segurando. Então não é ele
próprio, não é ele, consigo mesmo que fala “ó, eu não quero a droga, não vou
buscar, não vou atrás”. Então eu vejo muito isso então volta, volta sim muito rápido
mesmo, não é questão de não tem tempo. Ele não faz planejamento “poxa, saí daqui,
vou buscar outros meios, vou andar em outro lugar, vou mudar de bairro, vou
mudar de colegas”. (Participante 02, setembro de 2018).

A pessoa que não tem nada a perder, o que vier é lucro. O indivíduo responde ao seus
meio, reage a ele em tudo que o afeta, assim se referia a teoria deweyana da experiência,
pode-se dizer então que se a pessoa privada de liberdade está vinculada ao sistema
penitenciário e o que dele engendra, reproduzindo-o. Para mudar essa realidade o indivíduo
precisa conecta-se com outras coisas, que as direcione para outra perspectiva. Como
socializar-se a determinada cultura se não tenho acesso aos elementos que constitui essa
162

cultura, como seus hábitos, costumes, vestimentas, linguajar, formas de comunicar, relacionar
dentre outros. Consideramos aqui a mesma lógica em relação a trilogia, pessoa privada de
liberdade, sociedade e prisão, reguladas não apenas pelas educação escolar, mas
principalmente pelas aprendizagens advindas da educação não escolar, constituída na
informalidade desses dispositivos de suas relações.

Eu morei na igreja um ano, na igreja chorava de raiva sozinho, mas eu fui


aprendendo a lidar com essa explosão que eu tinha com esse nervosismo. Não vou
falar que eu nunca tive um momento assim, de raiva, duas vezes eu não consegui me
controlar e falei bobagem aqui na cadeia, nesses 2 anos e 2 meses. Uma vez
aconteceu que houve discussão, a pessoa viu que estava errada me pediu perdão, eu
perdi perdão para ele e ficou feio para nós dois quando a gente discutiu, porque aqui
na cadeia assim, mesmo a pessoa não sendo, eles têm em agressão verbal e eles
chamam de tarado, sem vergonha. Na hora provoca muito, ainda chamou uma, duas,
três vezes aí eu queria partir para ignorância com ele. Ele ficou ofendido verbalmente
e assim chamei ele mesmo para porrada porque fiquei muito irado. Aí, depois eu
peguei, abaixei a cabeça, ajoelhei na hora eu vi que eu fiz de errado, fui orar.Aí ele
foi pegou e me chamou. -“Desculpa por agir assim, me perdoa por agir assim eu tava
errado!” Agora amanhã cedo, pastor me manda trocar de cela. Amanheceu, antes da
pregação do pastor, o menino veio falando -X não tava errado, errado era eu que
ofendi primeiro.- Não pastor, mas eu tinha que colocar no meu lugar como dirigente
manter acalma, ignorar. Daí o pastor por falou –“Você já resolveu o que você
aquele seu problema? Tá tudo certo? Eu disse –“Sim, sim senhor!” “Então tá certo
meu filho, você que é o dirigente lá, você é o que criou o problema mas resolveu, para
mim tá tudo bem. Mas se você deixasse para mim resolver o problema ai eu teria
tomado minhas atitudes”. Ai ficou por isso mesmo, morreu o problema ali. Eu pedi
para os irmãos evitar de ficar contando piadinha, para não voltar tudo de novo. Mas
eu aprendi muito a lidar comigo mesmo assim nesse lugar (prisão). (...)Uma coisa
que a doutora (psicóloga) falou para mim, eu fiz e deu certo foi que, se uma pessoa te
ofender e falar ´”Você é filha de uma, você é aquilo, simplesmente. Você fala: “Eu
sou o que você quiser! Eu não vou me importar com que você acha que eu sou ou
deixo de ser. Não me importo com isso”. A questão é não aceitar a ofensa, porque se
a pessoa falar você é filho da e eu tomar aquilo como ofensa então eu tô aceitando o
palavrão, tô aceitando que minha mãe é aquilo. Então eu já fiz isso e deu certo, o
menino começou a xingar. Eu falei: “Moço, eu sou o que o senhor quiser, o que
quiser que eu seja eu sou nesse momento”! Aí ele ficou sem graça, porque eu não
revidei né, na altura que ele queria. (Participante 01, setembro de 2018).

Situações como essa contextualizam a educação não formal na prisão, advindas das
situações mais corriqueiras do dia a dia, como recém chegar no ambiente por exemplo e
adaptar-se a ele, no sentido de sobrevivência. Onde a pessoa privada de liberdade fica à mercê
das contingências, ora emitidas por seu comportamento, e seus pares reagirem a isso de
acordo o que é permitido ou lhe convém, de outra maneira, a que lógica relação de poder
163

responde, ao que equipe dirigente formal permite, logo dos profissionais da unidade ou a
informal, formada por outros presos, constituídos de liderança.
Silva e Monteiro (2018), refere-se o privado de liberdade, sofrido, sujeito pacificado,
que sofre as mortificações diversas do eu com o intuito de controle e vigilância, dessa
instituição total fechada e formalmente administrada, por outro lado, um educando, que não
deixa de aprender independe do contexto que se encontra, um ser inacabado, em construção,
contudo com a autonomia empobrecida pelos quesito acima justificados.
Na mesma linha, a educação não escolar pode advir de outros profissionais do sistema
penitenciário que não o professor, como o da psicologia, relatado pelo participante, que bem
aprendeu uma faceta de administrar as possíveis desavenças dentro da unidade. O psicólogo
tem esse papel, ao estimular o autoconhecimento da pessoa privada de liberdade, proporciona
o auto controle e o empodera diante das adversidades e neuroses.

4.4 DAS EXPERIÊNCIAS ÀS APRENDIZAGENS

As experiência vividas na prisão se tornam formativas, pela forma que os aprisionados


vão agindo e reagindo introspectiva e extrospectivamente diante das situações. O indivíduo
traz particularidades em sua subjetividade, como afetos, valores, crenças, adquiridas anterior a
prisão, que por meio de suas novas experiências na prisão, problematizará novos sentidos e
significações a sua identidade. Nessa perspectiva, na prisão ele tenderá a buscar referenciais
que se aproximem de sua realidade social fora da prisão a princípio, que pode mudar com o
tempo sob a influência das novas relações (re)construídas na/pela prisão.
O relato do participante refere-se ao caráter da experiência relacional da pessoa
privada de liberdade, pela narrativa contando exemplo típico, de uma pessoa com conduta de
psicopatia25 ou seja, a prática de agressões e dano a alguém, sem manifestar culpa, como
conta:

25
Também conhecido pelo Código Internacional de Transtornos Mentais e de Comportamento- CID 10: F60.2,
como Transtorno de Personalidade Antissocial- Transtorno de personalidade, usualmente vindo de atenção por
uma disparidade flagrante entre o comportamento e as normas sociais predominantes, e caracterizado por: (a)
indiferença insensível pelos sentimentos alheios; (b) atitude flagrante e persistente de irresponsabilidade e
desrespeito por normas, regras e obrigações sociais; (c) incapacidade de manter relacionamentos, embora não
haja dificuldade em estabelecê-los; (d) muito baixa tolerância à frustração e um baixo limiar para descarga de
agressão, incluindo a violência; (e) incapacidade de experimentar culpa ou de aprender com e a experiência,
particularmente punição; 4 (f) propensão marcante para culpar os outros ou para oferecer racionalizações
plausíveis para o comportamento que levou o paciente a conflito com a sociedade.
164

(...) Pega esse cara, quebra ele no pau direto, saíram com a cabeça rachada do cara,
para o pronto-socorro, a cabeça enfaixada. Chegava de amarrar o cara, dá choque,
choque mesmo, um cara na bigorna. Pega o fio de luz e dá choque no cara. Em
2016, logo quando eu cheguei aqui, o obreiro dirigente do cubículo que eu estava,
provocou a overdose de uma e tanto remédio. Eu fiquei mais de hora segurando a
língua do dele, ele estava mordendo a língua, quase cortou a língua, eu tive que abrir
a boca dele e segurar, e ele gritando, tipo uma overdose. O SAMU (Serviço de
Atendimento Móvel de Urgência) veio, o comentário que ele estava usando droga,
mas não era droga eu “não falei” (que havia sido o dirigente que tinha feito aquela
situação), por que eu tinha medo, eu morava junto com o camarada “dirigente”, eu
tava enrolado, a minha vontade era falar mas eu tinha medo. Ele (dirigente),
colocou um monte de remédio nessa garrafinha de leite, dessa que vem da dieta, que
ele tinha alimentação separada e dopou o rapaz. Dopou outro menino, no dia de
visita, o menino ficou se retorcendo, por que os remédios eram muito fortes tava com
o pescoço torto. Não morreu. Eu falei sangue de Jesus tem poder, essa cara vai matar
alguém aqui uma hora. (...) Ele fazia por pura curtição, prazer, ver a pessoa
sofrendo, ele tinha prazer nisso. Ele dopava e depois ficava rindo. Se o primeiro
menino tivesse morrido nós teríamos que denunciar, todo mundo sabia o que tinha
acontecido. (Participante 01, setembro de 2018).

As aprendizagem da prisão portanto são marcados pelo medo, pela repressão, pela
violência, submissão antes de tudo, pelo desamparo que essas pessoas, que vieram ao sistema
por romper com os direitos humanos de alguém, que sob outro ponto de vista, romperam com
os seus próprios, por ferir alguém é ferir a si próprio, como se evidencia nos sentidos dados a
essas narrativas.
A respeito de pessoas com essa conduta de psicopatia, é visto pelos colegas como:

Agora aquele que “ah, quanto você quer pra matar fulano? Tô com raiva dele” “ah
me dá...” vai lá e mata, esse cara aí, não tem um que vai ter confiança das pessoas
lá dentro. (...)Por dinheiro, contrata uma pessoa pra matar outra, esse cara que
trabalha dessa forma (contratado), ele não tem muita voz no crime, porque ele pode
matar qualquer um, né! Então as pessoas não passam confiança pra esse cara.
(Participante 2, outubro de 2018).

Como relata o participante, esse tipo de pessoa não tem poder dentro da unidade penal,
por que não demonstra confiança e pode matar qualquer um como narra.
Em contrapartida, dependendo das relações interpessoais que a pessoa privada de
liberdade construí no contexto que encontra inserido, ele pode ter proteção diante das
adversidades, seja pela equipe de dirigente informal derivada de seus pares, como da equipe
formal, formada pelos profissionais da unidade, como narra o participante:
165

Hoje se acontecer uma situação dessa, eu sei me defender, naquela época não sabia.
Não preciso de uma agressão física. Eu sei que apesar de eu tá preso eu tenho algum
direito aqui dentro, sei onde ir. Eu tenho um pouco mais de “acesso” (a direção e
funcionários) por que trabalho aqui dentro, e antes não. Para quem está lá “dentro”
(carceragem) é mais difícil, vê as coisas acontecendo e não pode fazer nada, as vezes
é coparticipante né, por que viu e não fez nada. E vai fazer como também né?! Se
falasse ia sofrer represálias. As vezes falava para meu pai, o que estava acontecendo,
escondido na hora da visita. (...) Sempre quando está acontecendo essas coisas, eles
ficavam em cima da gente. Quando estava acontecendo essa história de dopar os
irmãos lá dentro pelo dirigente, no dia da visita. Então toda hora ele ia lá, com
desculpinha de falar com meu pai, que meu pai é evangélico, por amizade, mas ele
não queria sair de perto de mim, para não dar espaço para eu falar para o meu pai e
prejudicar ele, mas graças a Deus não precisou falar nada, o menino não morreu,
voltou, só que ele ficou uns par de dias com sequela. Ele ficou não comia, nós tinha
que caminhar com ele no pátio, ele não comia, só espumando a boca, todo duro na
cama, não falava, ele não tinha família. Ai que tá, eles geralmente sabe com quem
fazer né, que não vai dar nada. Mas graças a Deus... eu sofri bastante nesse lugar,
para algumas pessoas parecem pouco tempo, nesses 2 anos e 6 meses mas esse tempo
que eu estou aqui, eu vi muita coisa, passei bastante coisa, de certa forma
contribuiu para minha vida sim, não só pelo fato de estar penalizado, sem a minha
liberdade, sem poder fazer o que eu quero, onde eu quero mais, por aprender a
conviver com as diferenças, com pessoas diferentes da minha criação. Respeitar o
espaço do outro. Saber que tudo tem sua hora seu momento e tem um jeito certo de
acontecer né! Ainda sou ansioso, não vou mentir para senhora, só um pouco ainda,
tento me controlar. O nervoso, não vou deixar de ser nervoso, mas aprendi a
controlar isso. (Participante 01, setembro de 2018).

E qual é o papel da educação escolar que não seja esse, respeitar o espaço do outro,
aprender a lidar com as diferenças, viver democraticamente. Para isso é necessário coragem,
como nos conta Freire:

Antes de tudo, reconhecemos que sentir medo é manifestação de que estamos vivos.
Não tenho que esconder meus temores. Mas, o que não posso permitir é que meu
medo me imobilize. Daí, a necessidade de comandar meu medo, de educar meu
medo, de que nasce finalmente minha coragem. (FREIRE, 1997b, p. 39).

A descrição, direcionada a pessoa privada de liberdade, destina-se a todos envolvidos


nesse contexto, desde os agentes de segurança, educadores, psicólogas(os), assistentes sociais
e outros profissionais, gestores, operadores do instâncias jurídicas, familiares etc.
O participante 02, narra com detalhes os sentidos dados as experiências, logo,
resultantes da educação não formal da experiência, que tanto para ele como também afirmou o
participantes anterior, terem sido marcada por atitudes de respeito com o próximo:

Então se você tá respeitando o próximo e tendo a humildade você entra e sai em


qualquer lugar de cabaça erguida. Então assim, desde o dia que eu entrei eu tive
166

essa percepção de ser bem aceito nos ambientes por onde eu passei. De tá somando,
e tá sempre disponível, disposto ali e tá ajudando, a tá buscando, apoiando um
irmão ou outro, né! De lá de cela, do convívio. Do dia a dia, o que eu puder fazer pra
ajudar eu estava ali somando mesmo. Então com isso você vai adquirindo, o seu
espaço, você vai conquistando o respeito das pessoas, né! Através do respeito dado,
imposto. E aí eu acredito que foi isso, e aí uma oportunidade da direção ou que os
agente vê. Você percebe que você passa uma certa confiança, né! Só de você
comportar, sua forma de andar, de conduzir, de tá ali apaziguando situações. As
pessoas já confiam, já te olham diferente. E aí foi aonde me passaram, eu acho que
analisaram minha ficha, perfil de pessoa lá fora, cidadão e com isso vieram dar
oportunidade e atribuir a confiança assim dada a mim hoje, né? Pra tá junto deles
aqui na frente. (Participante 02, agosto de 2018).

Proveniente desse comportamento de altruísmo, ajuda mútua, respeito principalmente


com que falhou a respeito com o próximo de alguma maneira, que para De Maeyer (2011, p.
43), são valores fundamentais de se chegar a uma educação formativa emancipatória
libertadora, na mesma linha que “o vigor democrático de um Estado também é medido pelo
nível de respeito aos direitos humanos para com os cidadãos que não respeitam esses mesmos
direitos.”
Como o próprio participante conta terem sido construídos, fruto dos sentidos dado a
suas experiências:

Olha, pra mim chegar nesse espaço hoje onde as pessoas têm uma cultura melhor,
né! Foi um trabalho da minha caminhada, do meu ser mesmo, do meu eu, né! Do
meu dia a dia. Respeitando, devagar conquistando, e as pessoas que têm um olhar
mais clínico percebem, né! E aí eu acredito que foi através disso aí, ver o perfil de
pessoa. O perfil do ser humano. Você respeitando o que tá falando do seu colega.
Respeitando o colega, respeitando as normas e regras imposta, mesmo que eu via
que não fazia sentido, porém com humildade... (Participante 02, agosto de 2018).

A virtude do respeito o ao outro, se destaca no relato do participante, como a base de


uma experiência relacional saudável e principalmente de sobrevivência no contexto que se
apresenta o penitenciário. Resguardar o direto humana do outro, ser o que é, mesmo aquele
que rompeu com esse direito fora de prisão e continua rompendo dentro da prisão, é o segredo
das relações dentro desse cenário, mesmo que para o participante não fazia sentido, porém o
fez com humildade. No relato afirma colher frutos de atitudes como essa, chegar nesse
espaço hoje onde as pessoas têm uma cultura melhor. Saber lidar com as diferenças
humanas e suas relações é prática da educação de maneira geral, escolar ou não escolar, desde
que desempenhe:
167

(...) responsabilidade e mais solidariedade, na aceitação de nossas diferenças de


natureza espiritual e cultural. Ao permitir que todos tenham acesso ao
conhecimento, a educação desempenha um papel bem concreto na plena realização
desta tarefa universal: ajudar a compreender o mundo e o outro, a fim de que cada
um adquira maior compreensão de si mesmo (DE MAEYER, 2011, p. 45).

As aprendizagens que os participantes relatam ao longo das narrativas de vida e


formação, principalmente nesse contexto da prisão, pode apontar retrospectivamente que
foram construídos principalmente, a partir de uma educação não escolar.
Nessa direção, temos o aprendizado do artesanato, pela pratica laboral, que surge do
próprio conhecimento da população carcerária em sua maioria. Visto que vem se destacando,
como atividade laborativa dentro da unidade penal, possui múltiplas finalidades,
principalmente, sendo um poderoso recurso de enfretamento as mazelas do encarceramento e
fortalecimento de (re)integração social.
Caracterizado pelo trabalho manual, auxilia na distração da pessoa privada de
liberdade, atua como hobby, lazer, trabalho, pois o custodiado ocupa-se no procedimento da
confecção da peça, evita pensamentos negativos, auxiliar o tempo passar mais rápido, diminui
os dias de encarceramento aos condenados.
Reforça a auto estima na atividade de criar, moldar e multiplicar peças artesanais, bem
como na capacidade criativa da pessoa privada de liberdade. Aumenta o sentimento de
utilidade, valor e estimula inclusão produtiva de emprego e renda na reinserção social do
mesmo. A produção do artesanato pela pessoa privada de liberdade, ajuda na geração de renda
do familiar deste, que comercializa as peças fora da unidade, pode promover auxílio
financeiro nas despesas domestica familiar, dentre outros, como memora o participante:

Eu fazia alguns artesanatos pra mim ter o meu (dinheiro). Hoje em dia eu pinto, tava
até pintando, você vê, tá toda pintada, ó, eu tava pintando. Eu pinto telha, aprendi a
pintar telha, a professora me ensinou bastante artesanato. (Participante 03, agosto de
2018).

O artesanato na unidade tem o objetivo prospectivo de: terapia ocupacional; remissão


de pena; inclusão produtiva do população carcerária através da geração de renda a família
deste; fortalecimento da identidade e auto estima; promoção de cidadania; e (re)socialização.
Entre as peças se destacam os advindos da linha seja de algodão, nylon, e a técnica do
crochê, em que os artesãos confeccionam o tapete em suas diversas variáveis, como jogo de
banheiro, cozinha, acessórios como pulseiras, utilitários, bonés dentre outros.
168

Silva (2015), na implementação da Carteira profissional do Artesão numa unidade


penitenciaria em Mato Grosso, avalia de forma positiva o interesse do artesão restrito e
privado de liberdade, pela grande procura pelo serviço. A possibilidade de poder distrair-se,
aprender um novo oficio, ocupar o tempo livre, presentear os familiares com materiais de
utilidade doméstica e decorativa, somado a remissão de pena, foi um grande motivador para o
trabalho interno.
Por outro lado, como qualquer projeto de (re)integração social, a implantação da
carteirinha encontrou desafios, de início na entrada de materiais para confeccionar o
artesanato, que passava por procedimentos de vistorias pelos agentes de segurança,
manifestando posturas rígidas nos procedimentos. Um exemplo típico foi que na unidade
penitenciária era proibido a entrada de qualquer visitante de roupa com cor preta, para
distinção num possível confronto entre servidores, civis e presos, nesse contexto, também não
poderia entrar material, ou seja linha, de cor preta na unidade para realizar artesanato.
Silva (2015) informou ainda, referente ao impacto do projeto aos familiares dos
artesãos privados de liberdade verbalizarem sua contribuição financeira no orçamento da casa
com a comercialização das peças fabricadas pelo mesmo. Uma genitora informou uma vez
que o filho, que se encontrava preso, estava pagando a parcela da moto financiada com a
venda dos artesanatos que o mesmo fabricava dentro da unidade, que este tinha muita
encomenda e que não estava dando conta de fabricar todo o produto com o número limitado
de material que autorizado para entrada. Nos atendimentos pela equipe técnica houve um
impacto significativo, pela diminuição de bilhetes para agendamentos de consulta médica
clínico e avaliações especializadas. O psiquiatra da unidade prescreveu menos psicotrópicos
para as queixas de ansiedade e insônia.
Sobre a (re)integração social, o empreendedorismo por meio do artesanato é pouco
buscado pós encarceramento, pelo caráter autônomo de renda, sendo a temática do trabalho,
como inserção formal no mercado, por meio de carteira assinada, aparecer como um desafio
prospectivo na (re)socialização, como desabafa o participante:

Vai ser meu pior desafio, vai ser esse, eu sair daqui. Arrumar trabalho, saio pra
trabalho, né? Mas um salário mínimo, como fala? É dinheiro, mas ainda é pouco pra
uma pessoa. Água, luz, ainda alimento, comida um 1 mil e 200 o nosso salário, né? É
pouco reais. Tem mercado, tem tudo. Isso se a gente arrumar um emprego ainda, né?
Tem essa ainda. (Participante 03, 09/08/18). Muitas pessoas voltam pra cadeia é por
causa de falta de oportunidade. Hoje em dia tem muita oportunidade, entendeu? Uma
nova chance, mas muitos não procuram, né? Muitos procuram esse tipo. É o que eu
falo pra você, na rua os traficantes tão todos com antena ligada. Se eu sair daqui e
169

voltar e não arrumar um emprego, as coisas vão apertar pra mim. (...) Eu não moro
com a minha família, mora sozinho. Então significa o quê? O boqueiro vai sair de lá
da casa dele, vai lá na minha casa. E falar - "Quer trabalhar pra mim, P3, vendendo
droga? Só hoje. Ah, vai fazer um dinheiro, você não tem nada aí. Olha lá a sua
prateleira lá, não tem nada. Nem pra você comer não tem direito". Se eu não tenho
emprego, o que que eu vou fazer? Vou vender droga. Por causa... o mundo das
travestis, por mais que fale em preconceito, mas... que tá acabando o preconceito,
mas existe muito preconceito no mundo hoje em dia por causa das travestis. Pra eles
todo travesti é como fala? É extrapolada, é abusada, é bagunceira, entendeu? Faz
bagunça. Evita pegar travesti pra trabalhar. Porque, chega numa loja hoje, se eu
não tiver um boa aparência, quando você chega sem dente, eles já não pegam. Eles
querem de dente bonito, entendeu? Bem vestido. É assim a vida. É cruel. Não é fácil
pra gente não. Pra gente ser uma travesti, a gente tem que ser muito travesti mesmo,
assumir o que é. Batalha, enfrentar pessoas, xingamento, preconceito
principalmente. É muito difícil. (Participante 03, setembro de 2018).

Esse desafio vem associado a ideia de estigma mais uma vez que precisa ser
ressiginificado na história de vida desta participante, com eles os problemas de
socioeconômicos, com de alimentação, moradia, trabalho, narrando que pessoas voltam pra
cadeia é por causa de falta de oportunidade de inserção na sociedade, enquanto a do crime,
está oferecendo trabalho - "Quer trabalhar pra mim, (...) vendendo droga? Só hoje. Ah, vai
fazer um dinheiro, você não tem nada aí. Olha lá a sua prateleira lá, não tem nada. Nem
pra você comer não tem direito". Sua vulnerabilidade econômica, a faz alvo fácil do
traficante, como conta –“Se eu não tenho emprego, o que que eu vou fazer? Vou vender
droga.” Fazemos um adendo aqui em relação a narrativa de outro participante que relata não
ficar sem trabalho apesar da droga, evidente que a inserção no mercado de trabalho diz
respeito a várias situações, destacando o apoio da família ser fundamental nesse recomeço, em
que pode ser visto no participante 1 e 2 contudo não no 3, que o vínculo demonstra ser
fragilizado pelas narrativas.
Todavia o participante traz um fator novo pra discussão, referindo-se a inserção no
mercado de trabalho, a questão da estética - se eu não tiver um boa aparência, quando você
chega sem dente, eles já não pegam. Eles querem de dente bonito, entendeu! Bem vestido.
Além da questão de ser travesti, e ninguém quer contratar com se refere, o mercado para ela
exige a boa aparência, que associa com mais um obstáculo para encontrar um emprego.
Ainda em relação a importância da família como enfretamento a reincidência ao
sistema penitenciário, temos nesse grupo:

a dimensão afetiva acompanha todos os tempos fortes da existência. È reconhecida


como decisiva a valorização por parte do meio familiar. A escolha profissional
170

aparece como resultante das experiências afetivas mais fortes (DOMINICÉ, 2014, p.
208).

Logo, sua inserção no mercado de trabalho está associada também ao estabelecimentos


de vínculos afetivos sólidos, sendo ele restabelecido com família a origem ou que irá
constituir, pautada na ideia de que “toda decisão é mergulhada na sua carga emotiva e, muitas
vezes, é provocada por um raciocino frequentemente retomado” (DOMINICÉ, 2014, p. 209).
Desta maneira, os participantes, apontaram boas perspectiva de futuro nesse retorno:

Hoje eu vejo que tenho muita coisa para viver, quero criar minha filha, quero ver
ela crescer, quero poder dar um estudo para ela, dar uma vida mais digna porque
assim eu amo muito minha filha. Quero muito cuidar dela, só tenho ela não tem
outro filho e assim.. Quero me dedicar para ela mesmo que ela tiver com a mãe, que
eu esteja com outra mulher (...). Que morar comigo eu acho que está fora de
cogitação por causa do meu crime, eu acho que nenhum juiz aceita em juízo.
Mesmo, que não esteja morando comigo eu quero dar uma qualidade de vida para
ela. Na verdade eu desejo muito ser feliz de verdade, passei muito tempo na droga
fosse muitos anos parado no tempo eu tenho desejo ainda de ter uma vida normal,
como todo mundo tem uma vida tranquila. Tem um veículo para mim, um emprego,
ter uma vida normal como qualquer pessoa e lutar para isso porque graças a Deus
ficar sem trabalhar nunca fiquei mesmo quando estava na droga. Então assim, eu
vou correr atrás. (Participante 01, outubro de 2018).

Extrospectivamente, a sensação de tempo perdido na prisão é muito comum, ainda


mais quando o participante se conscientiza não apenas do encarceramento físico, estrutural,
judicial, mas aquele enraizado em dependência química, como narra o participante, que se
encontrava ao longo dos anos. Num estado considerável despersonalização ao longo dos
últimos anos, com a subjetividade sequestrada pela fissura pela droga e isolamento em seu
mundo singular e plural ao mesmo tempo, imerso na dinâmica familiar doente pelas drogas e
carregada de afeto entre si.
O rótulo pelo crime sexual cometido é outro dilema que o participante convive, desta
vez ligada ao relacionamento com a filha, que precisará segundo conta ser permeado pela
autorização da justiça, que mesmo desacreditado de ter a guarda da filha, não deixa de
manifestar seu interesse na responsabilidade de cuidado com a mesma.
Não obstante, sentida de maneira diferente, a família também sofre preconceito pelo
delito que o familiar cometeu. Numa outra ocasião, esse mesmo participante relata que seu
irmão gêmeo havia frequentando residência de um familiar, que o ameaçou caso tivesse
algum contato com sua filha, motivado segundo o participante, pela sua situação de
encarceramento.
171

De qualquer maneira, a conduta do participante 1 sobre a paternidade, manifesta


amadurecimento por parte do participante a respeito de sua paternidade.
Nesta linha, alguns os autores congratulam sobre educação na prisão:

Ela lida com pessoas dentro de um contexto singular e deve ser uma oportunidade
para que as pessoas decodifiquem sua realidade e entendam causas e consequências
dos atos que as levaram à prisão. A educação é nesse sentido, o caminho para a
compreensão da vida, para decodificar e reconstruir com outras ferramentas –
desconstrução/reconstrução as suas ações e seus comportamentos. Reeducação nada
tem a ver com educação – não se trata de quebrar sua personalidade ruim e através
de ações específicas, construir um indivíduo que consiga se adequar às regras para
um bom convívio (ONOFRE; JULIÃO, 2011, p. 60).

A sentido da experiência a seguir, relata satisfatoriamente essa máxima, que trouxe


impacto direto na vida de um dos participantes e está relacionado ao seu relacionamento
amoroso, como conta:

uma coisa que eu nunca vou esquecer foi meu casamento. Casar de noiva, é uma
coisa que eu sonhava, mas eu nunca imaginava de casar dentro do presídio. Isso
paralisou muito a travesti, muito, eu sei que teve muita polêmica, saiu muita polêmica,
saiu muita coisa na mídia, muita gente foi contra, entendeu? Mas foi realizado um
sonho. Foi um sonho. (Participante 03, agosto de 2018).

A experiência trazida na/pela prisão, ganhou proporções que superaram a expectativa da


participante perante sua vida e escolhas extra muros. Casar de vestido de noiva, branco e no
civil estava longe de ter sentido fora da prisão e ainda mais de uma ambiente hostil como o
penitenciário. Contudo, encheu-a de significações, que pode recuperar seu gosto pela vida e
tudo que dela possa oferecer. Como bem descreve sua vida anteriormente e numa postura
reflexiva se posiciona diante dela:

O psicólogo mesmo ele me conhece, eu não escondo nada dele, quando eu usava eu
falava “não doutor, tô usando droga, uso droga, fumo maconha, cheiro cocaína” eu
falava pro nosso psicólogo. E ele via mudança, eles viram minha mudança, eu parei
de usar droga, eu engordei, entendeu! Eu sosseguei, não era mais baforenta que tinha,
que parava mais aqui embaixo, que lá em cima, xingava meio mundo, não tava nem aí
pra bagaça, falava que ia vim buscar droga aqui embaixo vinha e buscava droga
mesmo, desacreditada. Hoje em dia eu não preciso mais disso, casei com um homem
que me respeita, que me dá de tudo, me faz feliz e eu me sinto feliz com ele, e isso que
me mudou: o amor. A gente precisa ter o amor ou um companheirismo que a gente se
sinta bem, ele faz me sentir bem, por mais que eu possa estar toda descabelada, ele tem
capacidade de chegar “nossa, tá tão bonita” eu falo “você tá debochando da minha
cara?” né! Mas não, ele quer me levantar meu astral. E isso que faz bem pra gente: é
172

o amor, não importa que seja de um parceiro, seja de um amigo, é o amor que faz a
gente se sentir bem. (Participante 03, agosto de 2018).

A pessoa privada de liberdade passa por transformações físicas e emocionais, no seu


contexto de encarceramento. O interno dependente químico por exemplo, ao dar entrada na
unidade, longe das drogas e dentro de uma instituição com a vida formalmente administrada,
pode se alimentar melhor, cuidar da saúde através dos serviços, pode auxilia-lo no
restabelecendo a saúde física. Em contrapartida, estar na prisão não é suficiente para que se
rompa com a dependência química.
O participante 03 narra, suas experiências de vida e formação, iniciando pela
adolescência, em que vai definindo sua sexualidade, de orientação homossexual, que se
reconhece como travesti. Nesse contexto, o prelúdio do (ab)uso de drogas e o ingresso na
criminalidade como vendedor de entorpecentes, o encaminharam para o sistema prisional.
Mas algo aconteceu de diferente nesse contexto de penitência que enquanto em
situação de privação de liberdade a participante não havia experimentado, ele encontrou o
amor, seu marido e casou, na rua, era apenas amante, narra em outra ocasião. Dentro da prisão
ela conhece o amor, comenta através do marido, que a aceita do jeito que é.
Porém o amor próprio ainda não havia conquistado, continuava fazendo uso de drogas
na cadeia, logo o relacionamento se desgastou e houve a separação. Através da dor da perda, a
participante aprendeu que para se ter um relacionamento amoroso sólido e duradouro, nas
suas condições, fazia-se necessário o rompimento com a droga, e foi assim que ela ingressou
em seu segundo matrimônio onde se encontra até hoje e limpa, como se refere-se, ou seja,
sem usar entorpecentes.
Silva e Monteiro (2017b, p. 365), analisam essa formação intramuros com a vida
privada e particular de cada um de nós cidadãos e destacam a relevância de abordar esse tema
para entender o processo de (re)socializaçãono sistema penitenciário. Argumentam que:

(...) esse mesmo ser humano, não só o privado de liberdade, poderá reorganizar suas
mazelas e emaranhados, resignificar sua história e dar novo sentido a ela, a medida
que essa violência não venha ao encontro, a partir da reflexão de suas escolhas e
experiências, bordando em um novo processo de sua formação enquanto pessoa no
mundo.

Foi neste resgate e estabelecimento desse vínculo afetivo, o amoroso, de amar e ser
amada, construído com o ex e ressignificado com o atual marido, a tem feito se manter longe
das drogas e ansiar por uma vida digna pautada na cidadania.
173

Nas palavras de Dewey (1959a, p. 158), “sem um elemento intelectual não é possível
nenhuma experiência significativa”. Enquanto, o participante não experienciou a significação
de seus atos, que espirrou em diversos contextos e pessoas envolvidas, em seu sentido, mais
sagrado de família, então pode (trans)formar-se, para além daquilo que tinha se formado ao
longo da vida: dependente químico, nervoso, amoroso, ciumento, explosivo, agressivo e
amado, pois sua família continuava ali, visitando-o na cadeia, amparando-o, com toda
característica de relacionamento abusivo que nela permeava, nem mesma a ex mulher o
abandonou.
Assim, esse processo formativo vivido no singular poderá refletir de forma positiva,
em outras esferas da vida do participante, como Dominicé explica:

A afirmação do eu, no sentido de uma autonomização construída no confronto com a


sujeição do meio ambiente, sobressai muito claramente como processo central do
curso da vida. Cada um deixa aí sua pele ou fabrica ai sua identidade. Esse processo
pode assim ser considerado comum à nossa população e, ao mesmo tempo,
totalmente singular na transformação individual (DOMINICÉ, 2014, p. 209).

No mesmo movimento, ocorreu com o participante 3, que pelo contrário do 1, em que


o elemento intelectual ter-lê afetado num registro traumático e culposo. Esse qualificador só
foi possível devido aos valores dirigidos a questão familiar. O participante 2 aparenta ter se
(trans)formado perante a dependência química, a partir das significações relacionados ao
amor e as relações construídas a partir dele, seja amorosa quando narra sobre seus
casamentos, de amizade, quando fala da amiga companheira de cela, que revive de certa
maneira o sentido de ser amada ainda na infância, pelos próprios pais e famílias.
O participante 2, o sentido foi construído a partir de relações interpessoais pautadas
em valores de altruísmo, respeito, humildade e convivência harmônica com seus pares e
funcionários da unidade penitenciaria, que somados proporcionou benefício de estar
exercendo atividade laborativa que ameniza os impactos da prisão em seu cotidiano. Na
contramão, devido ao tempo da pesquisa em campo, talvez não serem suficientes para atingir
outros elementos significadores, dentre outras variáveis como grau de confiabilidade na
pesquisador, interesse na pesquisa, as narrativas a respeito de sua vida e formação foram
menores que a do restante dos participantes, mesmo sendo a pessoa que mais a pesquisadora
interagiu durante a pesquisa de campo. Vimos aqui, que a pessoa privada de liberdade tem
tendência a postura de submissão diante de algumas circunstancias e modelamento de seus
reais interesses. Além do mais, que o próprio participante narrou estar em processo de
174

compreensão, pois não entende porque se encontra privado de liberdade com tudo que lutou e
conquistou ao longo do vivivo.
Nessa perspectiva, ponderamos que não é o fato da penalização frente ao sistema
penitenciário que educa, forma, (re)socializa, modifica a pessoa privada de liberdade, mas
dele que oportuniza e abstrai as experiências diversas de aprendizagem fruto das experiências
da educação escolar e não escolar, carregado de significações, dão sentido à vida da pessoa
privada de liberdade na mesma proporção que as acima narradas. Porém, foram explicitadas
aquelas aceitas socialmente, que um juízo de valor não faria rejeição, e os sentidos e
significados direcionados para a vingança, a pratica de delito, ao abuso de drogas novamente,
a criminalização? Pois eles existem, estão apenas esperando oportunidade de se manifestarem.
Nesta direção, trago um recado que a participante pediu para registrar, direcionada a
suas colegas travestis, com ela a palavra:

Quero deixar um recado para as travesti, elas não deixar ser levada por... pela/uma
decaída de qualquer coisa, lutar, por causa que a gente trabalha, a gente é lutadora.
Se a gente ter capacidade de sair pra rua pra fazer programa, a gente tem
capacidade de enfrentar o mundo, o preconceito. Luta pelo emprego dela, não
desiste! Lavar, bacia (vasilha) pros outros não é feio, feio é roubar aonde a gente
trabalha. Então ela precisa dar valor no serviço delas. Nada como um outro dia a
gente poder trabalhar e no outro dia a gente saber que a gente vai trabalhar e ter o
garantido do que a gente sair pra rua, fazer programa e não saber se vai voltar
porque a gente vai fazer programa a gente não sabe se a gente vai voltar. É isso meu
recado pra elas. (Participante 03, outubro de 2018).

A participante aprende com suas experiências que o crime não compensa, juntamente
com a prostituição, como mesmo disse, é maneira tão perigosa de levantar capital, a ponto de
pagar com a própria vida. Atribui o serviço digno, mesmo que não valorizado pelo outro, um
motivo para lutar. Portanto, pode se considerar que o crime é uma ilusão, e a principal vítima,
não é a sociedade, terceiros ou família, é a própria pessoa, inserida na tridimensionalidade do
tempo, em que sua ação, vem/será acompanhada de uma reação, numa dialética relacional
singular e plural da dimensão humana e social do viver.
A intepretação introspectiva, extrospectiva, retrospectiva e prospectiva reflexiva desse
movimento relacional pode ser um dado (trans)formador desse público privado de liberdade,
como Freire (1979b, p. 7), “a primeira condição para que um ser possa assumir um ato
comprometido está em ser capaz de agir e refletir”.
A enfrentamento a reincidência é um viés de mão dupla, em que ambos são
(trans)formadores da realidade, tanto o indivíduo como o meio onde se encontra. Entretanto, a
175

partir das experiências, faz-se necessário que o ambiente invista de maneira mais ampla
possível em espaços para que essas significações sejam produtivas, que valorizem a expressão
da subjetividade, fortalecimento da autonomia com foco no autoconhecimento, na auto
estima, na dignidade humana e cidadania.
176

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A investigação objetivou compreender como as pessoas privadas de liberdade dão


sentidos as suas experiências de vida e formação, com ênfase as aprendizagens construídas no
contexto penitenciário e como estas podem interferir em sua (re)socialização. O intuito é
responder a problemática: “que tipos de experiências estão envolvidas na aprendizagem
informal da pessoa privada de liberdade, como elas interagem com a reincidência e
(re)socialização?”
Partindo de minhas narrativas de vida e formação, emergidas no campo da pesquisa
nas/pelas experiencias historiadas dos participantes em seus relatos, sem dúvida fez rever
minhas “verdades”. Os novos sentidos (re)construídos me porporcionaram novos olhares e
outras aprendizagens sobre meu objeto de investigação para além dos que tive contato
enquanto psicóloga no sistema penitenciário. As aprendizagens advindas do movimento de
(re)construção das experiências do vivido, contado, recontado, revivido das vidas historiadas
neste estudo as definem como cerne da pesquisa narrativa.
Realizar a pesquisa foi um momento de reflexão e de desenvolvimento profissional
auspicioso e tenso também, na lida direta com as mazelas sociais ligadas à violência, à
drogadição e criminalidade para além da minha prática profissional.
As aprendizagens construídas junto às experiências historiadas dos participantes e
diálogos com os autores estabelecidos, num movimento introspectivo, extrospectivo,
retrospectivo e prospectivo do espaço tridimencional da pesquisa narrativa, fez com que me
ampliasse o olhar a respeito da violência e drogadição. Neste caso, para além da prisão e do
fenômeno da dependência química, mas direcionando também a outros contextos sociais e
pessoas envolvidas nesse cenário.
As aprendizagens ratificaram a responsabilidade que temos enquanto profissionais,
representantes do Estado, pesquisadora, cidadã e ser humano que somos nessas vidas
historiadas e outras anônimas que nos deparamos em nossa sociedade e que a primeira vista
pode nos provocar temor.
Considerado aqui a prisão, esse sistema de penitência, pela diversidade de
contradições e mazelas que apresenta, como superlotação dentro das celas, baixo nível de
escolaridade de sua população, perpetuação da criminalidade e violência, violação dos direitos
humanos, fragilidade e desafios na implementação da educação escolar dentro da prisão etc.
Visto que a educação formal aparece como suporte para a (re)socialização da população
carcerária e enfrentamento das adversidades sociais, todavia, dentro do contexto penitenciário
177

ocorrem processos formativos diversos que muitas vezes afasta da proposta de (re)inserção
social do próprio sistema.
O campo legal vigente é contraditório, por um viés ele responsabiliza o indivíduo
que cometeu o delito, aplicando como uma das penalizações a privação de sua liberdade, em
contrapartida, contribui para um sistema subversivo de controle, em que outras formas de
regras e de disciplinas se constroem, consolidam e legislaliza, enquanto educação não formal
dentro do contexto penitenciário, interferindo de maneira direta na sociedade, com o retorno
na criminalidade, propagação das drogas e aumento da violência.
Se a educação escolar tem objetivo de emancipar o ser humano para exercício da
cidadania, respeito, exercício da liberdade e enfrentamento das adversidades, doravante,
sendo suporte para (re) integração social da pessoa privada de liberdade, na mesma direção,
ao sistema penitenciário o papel de (re)socializá-lo, na prática suas facetas fogem desse
princípio, tendo como resultado a produção de estigmatização, marginalização e segregação
social.
As estatísticas da reincidência da população carcerária no sistema penitenciário
brasileiro, evidencia sua fragilidade enquanto sistema de socialização, demonstrando em suas
políticas públicas, em especial da penalização. Estas carecem de novos horizontes de conduta,
pois o retorno a sociedade da pessoa privada de liberdade, tem acontecido de maneira mais
fragilizada, seja, emocionalmente, socialmente, as vezes fisicamente, financeiramente dentre
outros, de quando este adentrou-se no sistema.
As experiências e as aprendizagens como temos visto no pensamento deweyano
consistem nas contingências das interações entre o indivíduo, e o grupo social que encontra-se
inserido. As interações são construídas e entrelaçadas no cotidiano por meio de movimentos
ações e reações, que envolvem, propósitos, necessidades, emoções e cognições, um ir e vir
contínuo do indivíduo no tempo e inter-relacionando passado, presente e futuro. À medida
que a experiência em suas relações, da continuidade, diante do vivido gera oportunidade de
novas aprendizagens, conhecimentos e processos reflexivos dotados de sentidos e
significações individuais e coletivas, evidencia-se seu caráter educativo.
Nessa perspectiva, todo processo vivido tem sido um aprendizado que nos
potencializa enquanto humano, pois narrar oferece possibilidades múltiplas de reflexão,
indagação e redefinição de modos de ser e agir, que vão evidenciando novos processos de
aprendizagens e dão suporte a compreensão a discussão dessa temática. Logo, a qualidade das
relações sociais no interior da prisão é também um indicador da educação que nela é vivida,
178

permitindo um prognóstico sobre o que acontecerá após a libertação da pessoa privada de


liberdade.
A maneira que encontramos para guiar nossa pesquisa, se amparou nos pressupostos
metodológicos da pesquisa narrativa, em que o relato se constitui de um ciclo que envolve
viver, contar, recontar e reviver as experiências, de maneira que possamos significar e
ressignificá-las nessa relação, uma vez que problematizadas, apontem outros sentidos e
significados a identidade do indivíduo.
As análises interpretativas dos contextos proporcionaram os sentidos (re)construídos
possíveis neste momento, devido a amplitude de possibilidades de novos sentidos e
significações a cada novo olhar aos textos dessa pesquisa, assim, os que aqui se engendram,
não se limita a uma única verdade que as significarão, a respeito das narrativas, que ao serem
recontadas poderão oportunizar outras formas de aprendizagens.
Nas narrativas de vida e formação, os sentidos (re)construídos pela família, os
participantes embora em situação de privação de liberdade, vieram de distintos contextos e
realidades, e se aproximaram em seus relatos o momento “de desandar na vida”, no período
da infância à adolescência, seja na saída de casa, outro de envolvimentos com as drogas. Um
dos participantes refere-se a esse período a separação conjugal dos pais, apesar de salientar
seu sofrimento pelo ocorrido, não aprofunda sobre de que forma interferiu o acontecido sobre
sua vida. Nos relatos também ilustrou-se momentos de preconceito devido a identidade de
gênero, bem como situações positivas aos participantes, marcadas por proteção, afeto, cuidado
e pertencimento a família.
Os sentidos (re)construídos pelo processos formativos, as narrativas foram
marcadas pelos sentimento de exclusão e bullying, pois narraram episódios em que no
contexto escolar apareceram conflitos entre colegas, agressões verbais e físicas, com
cicatrizes, negligência por parte do professor/diretor. Por outro lado, estímulos por parte dos
pais referente a escola e educação dos filhos foram relatados. O relacionamento com o
trabalho e interferência nos estudos também foram observadas nas narrativas, que um dos
participantes dizia trabalhar durante o dia e a noite dormir durante as aulas. Em relação ao
trabalho, apenas um participante em sua narrativa demonstrou realização profissional e
angústia relacionados ao impacto negativo da prisão em seu currículo. Outro participante traz
preocupações na forma como irá garantir sua sobrevivência, de alimentação e moradia pós
prisão, ao mesmo tempo que afirma a importância de manter-se num trabalho digno,
independente da atividade laboral exercida. Um dos participantes relata apenas a iniciativa de
179

trabalhar, mas não associa com nenhuma função específica. Nesse subitem uma situação se
destacou como notória interferência no percurso formativo dos participantes, o (ab)uso de
entorpecentes. Já instaurada a dependência química, os participantes conforme narraram,
atribuiram grande parte de suas escolhas na vida terem ocorridas em função das drogas e das
consequências dessa escolha/dependência, incluindo o ingresso no sistema prisional.
Os sentidos (re)construídos pela prisão, as experiências relatadas do sistema
prisional, são das mais diversificadas, principalmente marcadas pelas mortificações do eu
civil, retalhamento da autonomia e qualquer ação que expresse a subjetividade, da pessoa
privada de liberdade, cuja expressão individual é marcada pela repressão.
A partir do conhecimento das regras que geram essas significações, as experiências
interferiram de diversas maneiras na pessoa privada de liberdade. Primeiro por que dizem
respeito a forma como cada indivíduo administrou seus problemas, tanto na vida em
sociedade como na sociedade dentro da prisão. Segundo por que existem situações específicas
que demandam a todos comportamentos iguais, por exemplo, submissão as regras tanto
ditadas pela equipe dirigente formal, ou seja o Estado, os agentes de segurança, como ditadas
pelo dirigentes não formais, logo, pelos líderes de cela, os líderes religiosos, um traficante ou
ladrão “forte”, que tenha status no mundo do crime e pelas próprias facções – manda quem
pode, obedece quem tem juízo.
Os sentidos (re)construídos da experiência às aprendizagens, de certa maneira, as
vividas na prisão se tornaram aprendizado pela forma que os aprisionados vão agindo e
reagindo diante das situações. Os participantes que estavam fazendo uso contínuo de drogas
na rua, por exemplo, quando privados de liberdade, forçosamente precisaram conviver com a
ausência ou dificuldade de acesso a substância química. Assim puderam recuperar em partes
sua subjetividade, particularidades, que a droga havia sequestrado, deixado a pessoa numa
situação de despersonalização, com consciência crítica reflexiva e de certa maneira a
autonomia também prejudicada.
O dependente químico, cuja identidade fica a tal ponto “desprezada”, pode tornar-se
uma pessoa irreconhecível pelos seus familiares, amigos, por si próprio e pelo outro também.
O que existe é a fissura pela droga, não mais a identidade do dependente. Distante da droga,
somado a outros fatores de expressão da subjetividade, a pessoa privada de liberdade pode
recuperar seu desejo, autonomia e agir conforme seus princípios, crenças, valores etc.
Para a participante transexual, a transformação de gênero, e uso de entorpecentes,
interferiu de forma negativa no relacionamento com a família. Em seguida, impactou de
180

forma direta também em suas escolhas interpessoais, trouxe prejuízos na construção de laços
afetivos sólidos ao longo das narrativas e contribuiu para o rompimento do seu primeiro
casamento. Com o sofrimento, e outros sentimentos que experimentou ao lado do ex
“companheiro”, e agora com o “atual”, pode se fortalecer enquanto pessoa em suas
particularidades e seguir sem a dependência química.
Outro fator que se destacou na pesquisa, foi a relação dessas aprendizagens com as
facções criminosas. Estas, para angariar recursos financeiros na prisão, conforme apareceu
nos relatos, utiliza-se também da oferta e vício de drogas da pessoa privada de liberdade. Na
ausência desse recurso, principalmente aqueles que vierem a desenvolver dependência,
realizam pequenos delitos na própria prisão como extorsão dos pares, golpes a terceiros pelo
telefone, como simulação de sequestros etc.
O indivíduo que possui vínculo familiar fragilizado ou rompido, quando não,
apresente uma condição mais vulnerável, seja socialmente, psicologicamente,
financeiramente, culturalmente, tem mais tendência de ser “batizado” – e acolhido, pelas
organizações criminosas. Um momento de raiva, frustração, decepção em determinado
contexto, como “estar preso”, também poderá dar oportunidade ao “batismo”.
Nos relatos, se destacaram preocupações com o estigma gerado no/pelo
encarceramento, diante do mundo externo. Nessa linha, pensando a reincidência e
(re)socialização, elucidamos um exemplo - a pessoa inserida no mercado de trabalho, possui
família e tem vínculo de afeto com esta, possui considerável amor próprio, inserida em grupos
produtivos socialmente, quando privado de liberdade, tende a ter maior estranhamento a
dinâmica de aprisionamento, as suas normativas, podendo potencializar seu sofrimento e
exigir maior habilidade ao convívio com o outro. Dentro da prisão ele tenderá a buscar
referenciais que se aproximem de sua realidade social fora da prisão. As narrativas do
participante 1 encaixou bem nesse perfil.
Por outro lado, a pessoa que já vem de um contexto de fragilizações de vínculos
diversos, seja familiar, grupal, comunitário, sociais, expressadas em situações como: fora da
escola; desempregada; sem perspectiva de vida, futuro; desamparadas e desassistidas pelos
mecanismos sociais que geram cidadania. Essas pessoas podem encontrar na prisão um campo
fértil para “se vincular”, quando já não está vinculado com marginalização e criminalização,
por meio de um familiar, amizades e também por seus valores e princípios pessoais de
delinquência.
181

Assim, chegamos a compreensão de que as experiência vividas na prisão se tornam


aprendizado pela forma que os aprisionados vão agindo e reagindo diante das situações. O
indivíduo traz particularidades em sua subjetividade, como afetos, valores, crenças, adquiridas
anterior a prisão, que por meio de suas novas experiências na prisão, problematizará novos
sentidos e significações a sua identidade.
Nessa perspectiva, na prisão ele tenderá a buscar referenciais que se aproximem de sua
realidade social fora da prisão a princípio, que pode mudar com o tempo sob a influência das
novas relações (re)construídas na/pela prisão. Agora, se as experiências da prisão, gerará
aprendizagens ou não, para sua vida, no sentido de valorizar ainda mais a liberdade, suas
conquistas, as relações afetivas, as profissionais, os elos comunitários, as trabalhistas dentre
outros, dependerá dessas particularidades.
Na mesma proporção que o aprisionado significará os “benefícios” que o mundo do
crime poderá trazer, se assim fizer sentido para ele, como ter poder, ter status, adquirir
recursos materiais, entre outros que valoriza. Mesmo que o preço das transgressões seja a
privação de sua liberdade ou a perca da própria vida. Essa é outra compreensão da pesquisa, o
aprisionado quando realiza um dano a alguém, a um patrimônio ou a sociedade, realiza de
forma direta ou indireta um infortúnio a si próprio.
De qualquer maneira, nem sempre a população privada de liberdade se encaixaria nas
situações exemplificadas acima, considerando que a complexidade de discutir sobre as
variáveis e contingências a respeito é ampla. A pessoa pode ter um elo comunitário muito
forte, familiar que seja, mesmo assim se identificar com a dinâmica e relações do mundo da
criminalidade. Por outro lado, pode estar bem “alocada” na vida, com posse de bens
materiais, moradia, acesso a alimentação, a educação, a locomoção digno, inserido
social/grupalmente e mesmo assim, as aspirar por mais capital, ligado a materialidade ou não,
que o mundo do crime poderá trazer. Da mesma forma, que já estando inserida nas
organizações criminosas, ter dificuldade de sair de suas peripécias: por dívidas; pelo grau de
vinculação que possui; armazenando informações privilegiadas a respeito do crime; contato
com pessoas e lideranças desse meio, entre outros. Estas pessoas podem continuar
alimentando o elo com o crime por uma questão de sobrevivência.
Todas essas apreensões, a partir da investigação realizada, estão envolvidas as
perspectivas introspectiva, extrospectiva e prospectiva no fenômeno da reincidência da pessoa
privada de liberdade. O contexto penitenciário tem um peso maior porquê, ao avaliarmos a
182

partir dos relatos, aquelas pessoas que já se encontram uma linha de vulnerabilidade social
antes de cairem na prisão poderão ser os mais atingidos pela criminalidade e reprodução dela.
Nessa perspectiva, destacamos a importância de separar, dentro do que é possível e
sabido, na prisão, as pessoas que cometeram crimes, daqueles que vivem do crime. Separar os
reincidentes da prisão, daqueles que foram recolhidos pela primeira vez seria um começo. A
alternativa é uma estratégia de enfretamento aos grupos do crime organizado que recrutam
novos membros na prisão, a cada membro que se perde (morre) fora dela.
Independente do grupo que se encaixaria, existe algo em comum que foi observado
nesta população privada de liberdade, ao narrarem os sentidos construídos a partir das
experiências que vivenciam no sistema penitenciário, chegaram a uma aprendizagem em
comum, a relacional. Seja o qual for o contexto em que vieram, a formação educativa que
receberam, as aprendizagens das relações interpessoais se destacaram nessas experiências.
A pessoa privada de liberdade precisa conviver e lidar com o outro, sendo este
diferente ou não de seus princípios da ordem dos valores, da classe econômica, de crime
cometido, da étnica, de raça, da religião, da identidade de gênero etc. Forçadamente ou não,
precisam aprender a se relacionarem, criando habilidades e competências para administrar as
diferenças e adversidades do cotidiano, caso contrário, aquele que pode, usa da violência para
prevalecer as regras pré estabelecidas entre os pares.
A população privada de liberdade se aproximam ou se expelem por afinidades e
vínculos. Em outras palavras, podem ocorrer elos afetivos de fundo amoroso, como aconteceu
com um dos participantes. Refere-se ela ter conhecido o “amor” na prisão, em vez da rua,
quando em liberdade, que era apenas “amante” de seus parceiros. O amor caracterizado por
ela, está associado a condição de fidelidade, segurança, respeito e cuidado.
Obviamente a prevalência da homossexualidade não se destaca dentro do sistema
penitenciário, porém se evidencia como fator de aprendizado, por elucidar um dos principais
elementos associados a (re)socialização efetiva, o vínculo afetivo da pessoa privada de
liberdade, que não possui ou apresente elo fragilizado com família, como potencializador da
prevenção ao crime. Aquele que possui uma ligação de afeto, sólido, está mais propenso para
retomar a vida em sociedade, exercendo a cidadania e rompendo com criminalidade.
Considerando aqui, a presença da família que também não está associada ao mundo da
criminalidade.
Outro fator importante nesse movimento é apoio logístico pós prisão as pessoas
privadas de liberdade, de moradia, de oferta de trabalho, de capacitação dentre outros. Se o
183

Estado não acolhê-los de alguma forma o mundo do crime irá, e como instrumentos da
criminalidade trará prejuízos para a sociedade de certa maneira, seja roubando, traficando,
prejudicando o outro e desestabilizando a harmonia social de forma geral.
Essa investigação procurou contribuir prospectivamente com a produção de
conhecimentos a partir da experiência dos participantes privados de liberdade, indivíduos
adultos em formação, suas complexidades, problematizações, sentidos e significados.
A formação humana, educativa, emancipatória para a liberdade, se concretiza no
movimento reflexivo crítico do indivíduo, quando se conscientiza de si, suas escolhas, crenças
e de suas aprendizagens adquiridas pelas experiências, quando vive, simultaneamente, os
papéis de ator e investigador da sua própria história. Os participantes demonstram essa
conduta, refletindo sobre sua passado e experiências que os marcaram, o presente, a condição
que se encontram, privados de liberdade e a partir dos elementos desse presente se projetaram
no futuro, mesmo recheado de incertezas. O sistema penitenciário poderia contribuir com esse
desenvolvimento e formação humana emancipatória, para libertação do indivíduo, investindo
na educação escolar da prisão, na realidade socioeconômica, cultural, de seus custodiados,
oportunizando espaços de diálogos e perspectivas de vida, por meio de projetos e programas
que visem essas mesmas perspectivas de forma concreta (a começar por uma refeição digna e
saborosa). Finalizando essa investigação, ciente que os sentidos produzidos aqui não
abrangem a globalidade dos aspectos relacionais e outras problemáticas envolvidos nesse
sistema, da mesma maneira que os sentidos dados. A medida que rotamos as leituras desse
material sem ampliam, nos remetendo a diversidade de assunto que é estudar o tema, nos
dando a sensação de que ele poderia avançar muito mais, em suas discussões.
Indicamos que essas aprendizagens relacionais que ocorrem no contexto penitenciário
necessitam de aprofundamento de pesquisa. A pergunta que fica é qual é a “necessidade” da
pessoa privada de liberdade? Que caraterística tem essa carência? Está relacionado a trabalho,
afeto, reconhecimento, justiça? Qual é a urgência da pessoa privada de liberdade? De que
forma o sistema penitenciário poderá auxiliá-lo? Faz se preciso que suas vozes, sejam
escutadas e consideradas, o olhar para esse público seja para além dos delitos do que foram
julgados. Para isso, exige-se sensibilização e capacitações aos envolvidos de maneira direta
ou não com esse público, a começar pelos profissionais, que com eles labutam diariamente, no
sentido de que todos são educadores, todos tem o que contribuir para que essa (re)socialização
seja de fato uma socialização. A sociedade ofertando trabalho digno, oportunizando situações
de inserção social.
184

As contribuições desse estudo, de outras maneiras, chamam atenção para a realização de


uma política de penalização e (re)socialização contextualizada. Uma das formas seria, o
sistema (re)pensar a distribuição dos aprisionados nas celas. No sentido de que, a pessoa que
praticou delito de roubo ou tráfico, não deva ficar na mesa cela, daqueles que possuam delitos
diferentes e específicos, como o colega que tenha praticado um único delito de homicídio
enão possua antecedentes com a criminalidade. Na mesma linha, separar as pessoas com
condenação alta daquelas que foram detidas uma única vez, ou seja, não são reincidentes. Por
mais que a LEP preconize a individualização da pena, ações de gestão precisam intervir a esse
respeito, para além das demandas individuais. O estudo apontou para aprofundamento de
pesquisa a respeito dos sentidos dados a essas relações interpessoais construídas no contexto
penitenciário, que tipo de filiação almejam e significam, como se constroem, consolidam e
mantém essas relações, bem como pesquisas nas aprendizagens relacionadas a drogadição e
como contribuem para o ciclo da violência, problemas de saúde e segurança pública, evasão e
conflitos escolares, uma vez que muitos dos crimes dos aprisionados, suas relações, sua saúde
mental, recursos humanos e financeiros giram em torno da droga.
Outra sugestão que indicamos com esse estudo, é a de que os cursos e capacitações, por
meio do correio e mesmo, sob controle rígido, os da educação a distância (EAD), ganhem
maior espaço na unidade penal, cujo conhecimento poderão ser utilizados no mercado de
trabalho quando em liberdade. Assim, além de investir na carreira, o aprisionado se prepara,
em sua subjetividade, estima, autoconfiança, segurança para esse retorno a sociedade. Em
outras linhas, que o olhar precisa ser dirigido para de onde veio esse indivíduo que agora
privado de liberdade e que logo, num futuro distante ou não, retornará a sociedade. O foco
precisa ser a pessoa privada de liberdade em sua integralidade e não apenas em seu delito.
A dinâmica relacional do sistema penitenciário, precisa ser voltada para o futuro da
pessoa privada de liberdade, o passado todos já sabem o que aconteceram em partes, a
privação de liberdade esta aí para evidenciar isso. O presente é agora, o que se pode fazer para
esse futuro, de retorno a sociedade, que seja para contribuir com ela, junto com as crianças de
hoje. Visto que este retorno, só uma questão de tempo, e quando não puderem a curto prazo,
mandarão representantes, como evidenciou os relatos.
Nesse sentidos (re)construídos, concluo com a reflexão de que “a injustiça que se faz a
um é a ameaça que se faz a todos” e a injustiça que permitimos em nós, são as verdadeiras
prisões que nos impede de viver plenamente.
185

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