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EAD

O Esboço e o Estudo como


Elementos da Percepção
e da Expressão
Bidimensional
2
1. OBJETIVO
• Identificar e compreender a importância dos esboços e
dos estudos preliminares na elaboração de uma obra de
arte.

2. CONTEÚDO
• Importância dos esboços e dos estudos para realização de
obras de arte.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


1) Fique atento às duas maneiras diferentes de desenhar:
o esboço e o estudo. Dessa maneira, você aprenderá
a identificar as características de um e de outro, pois,
quando for desenhar, certamente usará esses novos co-
nhecimentos adquiridos.
2) É importante que você estude um pouco da parte histó-
rica, a fim de poder identificar em que período o dese-
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nho ganhou autonomia, deixando de ser visto simples-


mente como a primeira etapa de uma pintura, e passa a
ser considerado uma autêntica linguagem. Observe que
isso, no entanto, não quer dizer que na Idade Média não
tenha havido nenhuma investigação teórica acerca do
desenho. Para tanto, dê uma olhada na teoria das pro-
porções a partir das observações de Panowsky.

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Nesta segunda unidade, estudaremos duas maneiras de uti-
lização do desenho: como esboço e como estudo. Veremos em
qual situação os artistas utilizavam o esboço e em qual situação
necessitavam de um estudo mais elaborado. Enfim, veremos quais
são as diferenças entre um e outro.
Bons estudos!

5. ESBOÇOS E ESTUDOS

Teoria das proporções


De acordo com Hauser (2000), os aspectos considerados
próprios da arte medieval – o desejo de simplificação e estilização,
a renúncia à profundidade espacial e à perspectiva, o tratamento
arbitrário das proporções e funções corporais – são, na verdade,
características da fase inicial da Idade Média. O único elemento
que, de fato, perpassa toda a Idade Média é uma concepção trans-
cendental do mundo, ou seja, uma cosmovisão assente em bases
metafísicas.
À primeira vista, pode-se ter a impressão de que não houve
preocupação com questões teóricas voltadas ao desenho, em fun-
ção da forte presença de uma concepção metafísica do mundo, ou
seja, por causa da ideia de que Deus era o centro de tudo.
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No entanto, os artistas da Idade Média adotaram, inicial-


mente, a teoria das proporções, uma teoria pautada a partir do
princípio de esquematização planimétrica – em outras palavras,
aceitavam o fato de que as partes do corpo se realçavam pela sua
própria natureza, utilizando, para isso, o sistema de módulo ou de
unidade.
Nesse contexto, Panofsky (1979, p. 110) afirma:
As dimensões do corpo como aparecem num plano – tudo o que
estivesse fora do plano não era levado em conta – eram expressas
em comprimentos de cabeças, ou, mais exatamente, de face [...].
Assim, segundo o Manual do pintor do Monte Atos, uma unidade
era destinada ao rosto, três ao torso, estimada em 1 1/3 unidades.

De acordo com as observações de Panofsky (1979), a teoria


das proporções ocupou-se em determinar as medidas das cabeças
em termos de um sistema de módulos, tomando como medida-
-padrão o comprimento do nariz.
Assim, o comprimento do nariz é igual à altura da testa e da
parte inferior da cabeça; é igual à altura da parte superior da cabe-
ça; é igual à distância entre a ponta do nariz e o canto dos olhos;
e, finalmente, ao comprimento total do pescoço. Por conseguinte,
os artistas desse período não se preocupavam tanto com rigorosas
leis matemáticas.

O desenho ganha autonomia


Na verdade, o desenho na Idade Média não tinha autono-
mia, ou seja, ele era visto simplesmente como a primeira etapa de
uma pintura. Cennino Cennini, por exemplo, em seu Livro de Arte,
postulou que era impossível aprender a pintar em pouco tempo e
que, inicialmente, o aprendiz deveria estudar o desenho pelo me-
nos por um ano e, só então, procurar um mestre que dominasse
todas as etapas da pintura (CENINNI, 1922).
Apesar de sugerir a escolha dos melhores mestres para guiar
os passos dos aspirantes a pintores, Cennino Cennini (1922) de-

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fendia a ideia de que para o bom aluno desenhar, deveria voltar-


-se primeiro para a natureza, pois ela é o melhor guia. Observe a
Figura 1.

Fonte: Panofsky (1979, p. 117).


Figura 1 Esquema de três círculos da arte bizantina e bizantinesca.

Mais tarde, com o Renascimento, o desenho passou a ser


valorizado como uma produção independente, como uma verda-
deira obra de arte. No entanto, não podemos nos esquecer de que
o Renascimento foi um vasto e profundo movimento cultural, ri-
quíssimo de motivos e correntes, que aprofundou suas raízes nos
séculos 13 e 14, e floresceu nos séculos 15 e 16. Certamente, a va-
lorização do desenho como linguagem autônoma não ocorre logo
a partir do século 13.
Um bom exemplo disso é Piero della Francesca, um artista
do Quattrocento, e suas anotações sobre a perspectiva. Quattro-
cento é um procedimento habitual entre os historiadores e divide
o Renascimento italiano em três fases, cada qual correspondente
ao período de um século: o Trecento (século 14), o Quattrocento
(século 15) e o Cinquecento (século 16) (SEVCENKO, 1988, p. 48).
A palavra “perspectiva” deriva do verbo perspicere (ver cla-
ramente), “[...] que é o equivalente do termo grego οπτιχ, óptica.
Assim, pois, originariamente, perspectiva se refere ao estudo dos
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fenômenos da visão, ao funcionamento do olho na percepção vi-


sual” (GUALIS, 1984, p. 205).
Portanto, perspectiva nada tinha a ver com representações
espaciais, tendo por base o rigor da matemática. Ainda mais que,
tomando como ponto de partida a observação de Poincaré (1988),
a terceira dimensão somente surge pelo esforço de acomodação e
pela convergência dos olhos.
A visão, segundo ele, nos permite avaliar distâncias e, con-
sequentemente, perceber uma terceira dimensão. Logo, o esforço
de acomodação e a convergência dos olhos, que são essenciais à
percepção nítida dos objetos, são sensações musculares bem dife-
rentes das sensações visuais que nos fazem perceber duas dimen-
sões.
Ou seja, perceber objetos em três dimensões requer esforço
físico, ao passo que perceber objetos em duas dimensões, não.
Ainda para Poincaré (1988, p. 56): “A terceira dimensão não nos
aparecerá como exercendo o mesmo papel que as outras duas".
A característica básica da perspectiva linear é dar a impres-
são de que, ao olhar para uma tela, se está olhando por meio de
uma janela, uma vez que a imagem passa a ser uma projeção ma-
temática da cena tridimensional sobre uma superfície bidimensio-
nal.
Com tal método, os artistas acreditavam ter encontrado uma
maneira precisa de simular aquilo que o olho efetivamente vê. A
chave da questão pode ser resumida da seguinte maneira: uma
imagem em perspectiva é construída a partir de um ponto de vista
único.
Para Piero della Francesca, a perspectiva era uma extensão
da Ciência. De acordo com Field (2005), a prova da perspectiva
como "ciência legítima" é a mesma para provar que se trata de
uma extensão intelectual legítima, ou seja, uma construção com
responsabilidade intelectual.

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O olho, nessas circunstâncias, não se move de maneira al-


guma, ele espalha seus raios de modo que forme um cone visual
cujo ângulo vertical é um ângulo reto. A perspectiva, portanto, lida
com a geometria de um único ponto de vista. "Acreditava-se que
os dois olhos combinavam suas informações antes da mente pro-
cessá-la" (FIELD, 2005, p. 152). Para que você possa compreender
melhor, observe a Figura 2.

Figura 2 De Prospectiva Pingendi, Piero della Francesca, livro 1, proposição 30, p. 17. In:
Piero della Francesca, A Mathematician’s Art.

Um fato interessante é que os textos de Piero eram acompa-


nhados de desenhos ilustrativos de suas proposições. Na Figura 2,
por exemplo, o ponto "A" indica o posicionamento do olho e, como
podemos perceber, encontra-se localizado no centro do quadrado.
Para Field (2005), a característica de Piero é introduzir pro-
vas a partir de instruções por meio de desenhos, e o resultado final
passa a ser verdadeiro à medida que for interpretado como uma
representação exata em três dimensões.
Uma obra que expressa a correta maneira de utilização da
perspectiva é A flagelação de Cristo, de Piero della Francesca, apre-
sentado na Figura 3. Field (2005) diz tratar-se não de um exemplo
de perspectiva correta, mas de "o" exemplo de perspectiva corre-
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ta. Observe que a parte da pintura que foi matematicamente orga-


nizada de maneira mais visível é a arquitetura.

Figura 3 A flagelação de Cristo, Piero della Francesca, c. 1412-1492 (Galleria Nazionale


delle Marche, Urbino).

Field (2005) observa que o fato de De prospectiva Pigendi


explicar, em tese, como utilizar a perspectiva de maneira correta
não garante que o leitor não tivesse de estudar longas séries de
instruções que acabariam intimidando o interessado.
Venturi (1954), em um estudo biográfico e crítico sobre Pie-
ro, diz que à sua época o conhecimento da realidade era o resul-
tado não de uma revelação de Deus, como na Idade Média, mas
de um estudo perspectivo da natureza. Sobretudo, para Piero, a
perspectiva era vista como um problema estritamente da pintura
e não como um problema científico (FOCILLON, 1991).
No entanto, embora muito importante para Piero della Fran-
cesca, a representação perspectiva não era um elemento primor-
dial em sua pintura, pois ela não deveria absorver a imagem hu-
mana.
As cenas se desenrolam sempre diante do espaço criado pela
perspectiva, e jamais dentro desse espaço, ou melhor, a perspectiva
se insere na relação entre as personagens de uma multidão, dando
assim o sentimento de profundidade à massa, mas ela não enforma
jamais as figuras (VENTURI, 1954, p. 15).

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Portanto, ao mesmo tempo em que Piero demonstrava ex-


trema habilidade na utilização da perspectiva, ele não ficava à
mercê dela.
Field (2005) relata que nos afrescos (técnica de pintura que
consiste em revestir de argamassa uma parede e, em seguida, pin-
tar sobre a massa ainda fresca) de Piero há indicações de trans-
ferência de desenhos preliminares, e a uniformidade encontrada
entre elementos repetidos, como cabeças, demonstra que havia
padronização de alguns elementos. Com isso, o ponto de vista era
determinado somente depois que a forma perfeita do objeto fosse
completada.
Nesse sentido, se com Piero della Francesca, no Quattrocen-
to, os desenhos foram utilizados como ilustrações para suas obser-
vações artísticas (o que iria acontecer mais tarde, também, com
Leonardo da Vinci); no Cinquecento, vemos o desenho não como
um elemento autônomo, mas, sim, como um recurso de organiza-
ção dos elementos visuais.

Esboços
Embora possamos falar que o desenho assume importância
capital no Renascimento, o grande Rafael Sanzio, mestre da pintu-
ra e da arquitetura da escola de Florença durante o Renascimen-
to italiano, celebrado pela perfeição e suavidade de suas obras,
valia-se de vários esboços antes de finalizá-las. É o que podemos
observar em um de seus cadernos de esboços, que contém quatro
estudos para a elaboração da obra Virgem do Prado (1505).
Para Gombrich (1985), as figuras de Rafael foram admiravel-
mente bem desenhadas, com a expressão inesquecível da Virgem,
na obra Virgem do Prado, pousando suavemente os olhos nas duas
crianças. Além disso, a partir dos esboços é possível percebermos
que o grande Rafael buscava a melhor composição possível.
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Gombrich (1985, p. 14) destaca que: “O que Rafael procurou


repetidamente conseguir foi o equilíbrio correto entre as figuras,
uma relação certa que culminasse no todo mais harmonioso". Para
que você possa compreender melhor, observe nas Figuras 4 e 5
algumas de suas obras.

Figura 4 Virgem do Prado.

Fonte: Gombrich (1985, p. 16).


Figura 5 Esboço para a Virgem do Prado.

Assim, ao admirarmos essa verdadeira obra de arte, dispos-


ta na Figura 4, não imaginamos os desenhos que foram feitos até
chegar ao resultado final. O senso comum acredita que os gênios
da pintura simplesmente pintavam, esperavam a inspiração, algo
quase divino, e criavam a obra-prima.
Mas, como vemos, as coisas não são bem assim. Tudo de-
pende de um elaborado estudo, de uma composição (no caso de
Rafael, triangular), da utilização harmoniosa das cores etc.

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Outro exemplo que podemos utilizar é o esboço que Rafael


fez para Madonna e a criança (1503) nas Figuras 6 e 7. Observe
como os traços são próximos.

Figura 6 Madonna e a criança, 1503.

Figura 7 Esboço para Madonna e a criança.

Podemos constatar que quando Rafael usa o desenho ape-


nas com a finalidade de organização, ele se vale de desenhos fei-
tos, digamos, com menos detalhes. Assim, é possível afirmar que
o desenho assume importância (não que os esboços não sejam
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importantes) quando a finalidade primeira do desenho deixa de


ser a organização e passa a ser o estudo.

Os estudos
Para que você possa compreender melhor, observe a seguir
alguns estudos feitos por Rafael e compare-os com os esboços da
Virgem do Prado e da Madonna com a Criança, dispostos nas Figu-
ras 4 e 6. Vejamos o que eles trazem de importância por si mesmos.

Figura 8 Esboço para A deposição de Cristo.

O desenho disposto na Figura 8 preserva o modelo do grupo


da esquerda na obra A deposição de Cristo. Esse, na verdade, é o
último estudo para criação dessa obra, cuja maior parte da compo-
sição final foi preservada.
Os quadrados que vemos, que eram em escala menor, ser-
viriam para que o desenho fosse facilmente transferido para uma
área maior. Uma informação interessante, e que vale a pena ser
destacada, está relacionada à referência para o desenvolvimento
da obra. Clark (1987) observa que para dar conta do braço esquer-
do de Cristo, Rafael praticamente copiou a mesma postura de Cris-
to de Michelangelo.

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Comparemos a obra A deposição de Cristo (Figura 10) com a


escultura de Michelangelo na Figura 9.

Figura 9 Pieta (1498-99), Michelangelo.

Figura 10 A deposição de Cristo, 1507, de Rafael.


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Observe que no estudo para a obra A deposição de Cristo


(Figura 10) já é possível antever o resultado final, ou seja, Rafael
não representou a dor de Cristo de uma maneira violenta; ele
preocupou-se em transmitir um tipo de resignação dolorosa.
Aí está uma das diferenças entre um esboço e um estudo.
O estudo já traz as marcas da intenção do artista, ao passo que
o esboço, como já foi dito, serve para organizar. Na realidade,
podemos dizer que o esboço é um estudo também, porém com
finalidades diferentes.
Observe mais alguns estudos apresentados nas Figuras 11,
12, 13 e 14.

Figura 11 Cabeças e mãos dos apóstolos, s.d.

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Figura 12 Estudo para a cabeça de um poeta, 1511.

Figura 13 Mulher nua ajoelhada, 1518.


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Figura 14 Psiquê oferecendo água a Styx, 1517.

Veja nos estudos demonstrados anteriormente que a


plasticidade das figuras passa a ser a grande preocupação de
Rafael. Podemos observar com certa facilidade a presença de
partes mais claras e partes mais escuras, ou seja, a presença de luz
e sombra. No caso da obra A deposição de Cristo, Rafael utiliza as
hachuras – linhas que cruzadas dão o efeito de sombra à figura –
para criar o volume.
Outro artista que podemos citar é Salvador Dalí. Apesar
de saltarmos dos desenhos de um artista do século 16 para os
desenhos de um artista do século 20, as características, no geral,
permanecem praticamente as mesmas.
Uma pessoa que não conheça nenhuma obra de Salvador
Dali – o que é praticamente impossível, pois seus quadros foram
abundantemente reproduzidos –, olhando para alguns esboços,
não terá a dimensão exata de seu talento para o desenho. Vejamos
dois esboços que ele fez: o primeiro, para a obra Descoberta da
América por Cristóvão Colombo (Figura 15), e o segundo, para
Atleta cósmico (Figura 16).

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Figura 15 Estudo para a Descoberta da América por Cristóvão Colombo, 1958.

Figura 16 Estudo para Atleta Cósmico, 1968.

Como podemos observar, os dois desenhos foram feitos


muito rapidamente. Acredita-se que a intenção foi a mesma que
a de Rafael: estudar somente a composição, pois o que vemos são
silhuetas. A característica dos esboços de Dali é a circularidade, ou
seja, ele desenhava fazendo várias curvas. Vejamos, nas Figuras 17
e 18, dois desenhos que Dali fez de Sigmund Freud.
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Figura 17 Retrato de Sigmund Freud – morfologia do crânio de Sigmund Freud, 1938.

Figura 18 Retrato de Sigmund Freud, 1938.

Nesses dois retratos, embora ainda sem muitas definições,


já é possível notar que os desenhos foram feitos, digamos, com
"menos pressa". Ainda podemos ver a circularidade das linhas com
mais detalhes. É interessante observar, também, que os desenhos,
principalmente os primeiros, já apresentam mais elaboração
plástica. Vamos passar, agora, para estudos mais elaborados
e constatar o extraordinário desenhista que foi o mestre do
Surrealismo.
Não só os quadros, mas também os desenhos podem ser
analisados de acordo com o instrumental da psicanálise. Em Leda
Atômica, por exemplo, Dali transforma o voo em símbolo do
desejo de ereção. No entanto, para entender melhor essa relação,
teríamos de entrar no campo da psicanálise, o que nos afastaria de
nosso propósito.

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Portanto, voltando ao desenho como estudo, principalmente


no segundo, vemos com que leveza Dali foi trabalhando o claro e
o escuro no rosto de Gala, e também na sombra projetada pela
madeira que está flutuando. Observe as Figuras 19 e 20.

Figura 19 Estudo 1 para Leda Atômica, 1947.

Figura 20 Estudo 2 para Leda Atômica, 1947.

Salvador Dali é um artista "clássico", ou seja, a composição de


seus quadros segue regras que foram aplicadas por pintores do Re-
nascimento como Piero della Francesca e Leonardo da Vinci.
No estudo de Dali, podemos observar que Leda Atômica (Fi-
gura 21) está inscrita em uma estrela, que forma um pentágono e
que, por sua vez, está inscrito em um círculo. Contudo, a compo-
sição toda foi organizada dentro de um retângulo áureo, ou seja,
matematicamente elaborado.
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Figura 21 Leda Atômica, 1949.

Vejamos mais um exemplo, uma obra-prima de seu período


religioso, o Cristo de São João da Cruz. O estudo que Dali realizou
para essa obra (Figura 22) é simplesmente fantástico, tão fantásti-
co quanto a obra acabada (Figura 23).
Dali nos apresenta Cristo de um ponto de vista totalmente
inusitado: de cima. O ponto de fuga está no chão, enquanto Cristo
levita sobre as nuvens. Observando atentamente, podemos nos
arriscar a dizer que, simbolicamente, Dali, colocando o ponto de
fuga no solo, representa a antítese entre o terreno e o espiritual.

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Figura 22 Desenho para O Cristo de São João da Cruz, Salvador Dali, 1950.

Figura 23 Cristo de São João da Cruz, 1951.

Enfim, poderíamos citar vários outros artistas para mostrar


a diferença, na utilização, entre um esboço e um estudo. Acredita-
mos que o desenho assume importância (não que os esboços não
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sejam importantes), quando a finalidade primeira do desenho dei-


xa de ser a organização e passa a ser o estudo, que praticamente
já é a obra em si.
Em outras palavras, os personagens que aparecem nos
estudos feitos pelos artistas já trazem grande força expressiva e
qualidades plásticas que podem ser consideradas verdadeiras
obras-primas. Os desenhos, diferentemente dos desenhos da
Idade Média, não são mais a primeira etapa de uma pintura, mas
a própria obra.
Aparentemente, Michelangelo Merisi da Caravaggio não fazia
nem esboços nem estudos para suas obras e, mesmo assim, nos
legou obras de valor incalculável. Como não há nenhum registro de
desenho feito por Caravaggio, tudo indica que ele pintasse muito
rápido e diretamente na tela.
No entanto, Moir (1989) observa que como os esboços eram
feitos, provavelmente, em pedaços de papel e descartados assim
que serviam aos seus propósitos (também porque Caravaggio não
teve nenhum assistente para apanhar tais papéis e guardá-los),
não temos registro de nenhum de seus desenhos.
Caso isso tenha acontecido ou não, o que nos surpreende é
a possibilidade de um pintor conseguir realizar obras-primas sem
fazer um esboço sequer! Observe, na Figura 24, uma das telas de
Caravaggio e imagine se isso seria possível.

Figura 24 A incredulidade de São Tomé, 1601-1602.

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Agora pense: seria possível um artista organizar os elemen-


tos à medida que fosse cobrindo a tela de tinta? Bem, isso seria
assunto para uma próxima oportunidade!

6. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:
1) O que você entende por teoria das proporções?

2) Quando o desenho ganha autonomia em relação à pintura?

3) Quais são as principais características da perspectiva?

4) Quais foram as contribuições de Piero della Francesca em nossos estudos


sobre o desenho?

5) Qual a diferença entre um esboço e um estudo?

7. CONSIDERAÇÕES
Nesta unidade, abordamos o desenho a partir de duas con-
cepções: como esboço e como estudo. Para tanto, analisamos em
quais situações é mais interessante fazer um esboço ou um dese-
nho mais elaborado (um estudo).
Na Unidade 3, estudaremos dois conceitos que julgamos es-
senciais para o entendimento do desenho como expressão: o pic-
tórico e o linear.
Esperamos por você!

8. E-REFERÊNCIAS
Lista de figuras
Figura 2 De Prospectiva Pingendi, Piero della Francesca, livro 1, proposição 30, p. 17.
In: Piero della Francesca, A Mathematician’s Art. Disponível em: <http://www.wga.hu/
frames-e.html?/html/p/piero/francesc/index.html>. Acesso em: 3 set. 2008.
© U2 - O Esboço e o Estudo como Elementos da Percepção e da Expressão Bidimensional 99

Figura 3 A flagelação de Cristo, Piero della Francesca, c. 1412-1492 (Galleria Nazionale


delle Marche, Urbino). Disponível em: <http://www.cienciaviva.pt/projectos/
inventions2003/marrocos9.jpg>. Acesso em: 30 ago. 2012.
Figura 4 Virgem do Prado. Disponível em: <http://2.bp.blogspot.com/-uXkaIsccw2A/
TxzGkH3k1YI/AAAAAAAAAE4/3vgd6Qh8LEQ/s400/Virgem+do+Prado+-+Rafael+1505-6.
jpg>. Acesso em: 30 ago. 2012.
Figura 6 Madonna e a criança, 1503. Disponível em: <http://www.galeria.cluny.com.
br/d/3519-4/04+Madona+e+a+Crian__a.jpg>. Acesso em: 30 ago. 2012.
Figura 7 Esboço para Madonna e a criança. Disponível em: <http://www.wga.hu/art/r/
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Figura 8 Esboço para A deposição de Cristo. Disponível em: <http://www.wga.hu/art/r/
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Figura 9 Pieta (1498-99), Michelangelo. Disponível em: <http://www.gardenofpraise.
com/images/pieta4.jpg>. Acesso em: 30 ago. 2012
Figura 10 A deposição de Cristo, 1507. Disponível em: <http://www.oraetlabora.com.br/
siteantigo/teste/painel/fotos/8cec1bf8901a1547c088c277d0619196.jpg>. Acesso em:
30 ago. 2012.
Figura 11 Cabeças e mãos dos apóstolos, s.d. Disponível em: <http://www.wga.hu/art/r/
raphael/7drawing/1/30study.jpg>. Acesso em: 30 ago. 2012.
Figura 12 Estudo para a cabeça de um poeta, 1511. Disponível em: <http://www.wga.hu/
art/r/raphael/7drawing/2/3parnas1.jpg>. Acesso em: 30 ago. 2012.
Figura 13 Mulher nua ajoelhada, 1518. Disponível em: <http://www.wga.hu/art/r/
raphael/7drawing/1/26study.jpg>. Acesso em: 30 ago. 2012.
Figura 14 Psiquê oferecendo água a Styx, 1517. Disponível em: <http://www.wga.hu/
art/r/raphael/7drawing/1/27study.jpg>. Acesso em: 30 ago. 2012.
Figura 15 Estudo para a Descoberta da América por Cristóvão Colombo, 1958. Disponível
em: <http://www.dali-gallery.com/images/thumb/_1958_18.jpg>. Acesso em: 30 ago.
2012.
Figura 16 Estudo para Atleta Cósmico, 1968. Disponível em: <http://www.dali-gallery.
com/images/thumb/_1968_09.jpg>. Acesso em: 30 ago. 2012.
Figura 17 Retrato de Sigmund Freud – morfologia do crânio de Sigmund Freud, 1938.
Disponível em: <http://www.dali-gallery.com/images/thumb/_1938_15.jpg>. Acesso
em: 30 ago. 2012.
Figura 18 Retrato de Sigmund Freud, 1938. Disponível em: <http://www.dali-gallery.
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Figura 19 Estudo 1 para Leda Atômica, 1947. Disponível em: <http://www.dali-gallery.
com/images/thumb/_1947_18.jpg>. Acesso em: 30 ago. 2012.
Figura 20 Estudo 2 para Leda Atômica, 1947. Disponível em: <http://www.dali-gallery.
com/images/thumb/_1947_08.jpg>. Acesso em: 30 ago. 2012.
Figura 21 Leda Atômica, 1949. Disponível em: <http://cache2.allpostersimages.com/p/
LRG/21/2148/LD1CD00Z/posters/dali-salvador-leda-atomica.jpg>. Acesso em: 30 ago.
2012.

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Figura 22 Desenho para O Cristo de São João da Cruz, Salvador Dali, 1950. Disponível
em: <http://www.imageenvision.com/poster/0001-0602-0415-1545.html>. Acesso em:
22 jun. 2012.
Figura 23 Cristo de São João da Cruz, 1951. Disponível em: <http://www.dali-gallery.
com/images/thumb/_1951_01.jpg>. Acesso em: 30 ago. 2012.
Figura 24 A incredulidade de São Tomé, 1601-1602. Disponível em: <http://www.
catolicismo.com.br/assets/imagens/Fevereiro1993/saintthoma.jpg>. Acesso em: 30 ago.
2012.

Site pesquisado
CENNINI, C. The Book of the Art: a contemporary practical treatise on Quattrocento
painting. Translated from the Italian, with notes on Mediæval Art Methods by Christiana
J. Herringham – George Allen & Unwin, Ltd., 1922. (Second Impression). Disponível em:
<http://www.archive.org/details/bookofartofcenni00cennuoft>. Acesso em: 22 jun.
2012.

9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CENNINI, C. The Book of the Art: a contemporary practical treatise on Quattrocento
painting. Translated from the italian, with notes on Mediæval Art Methods by Christiana
J. Herringham – George Allen & Unwin, Ltd., 1922. (Second Impression).
CLARK, K. El Desnudo: un estudo de la forma ideal. Versión españla de Francisco Torres
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FIELD, J. V. Piero della Francesca: a mathamatician’s art. Yale University Press: New Haven
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FOCILON, H. Piero della Francesca. Presses Pocket: Baltrusaïtis, 1991.
GOMBRICH, E. H. (1978). A História da Arte. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro
Zahar Editores, 1985.
HAUSER, A. (1953). História Social da Literatura e da Arte. Tradução de Álvaro Cabral. São
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PANOFSKY, E. Significado nas Artes Visuais. Tradução de Editora Perspectiva. São Paulo:
Perspectiva, 1979.

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