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ARTIGOS

A EXPRESSÃO PELAS LINGUAGENS ORAL E ESCRITA: FUNDAMENTOS DA


TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL PARA A EDUCAÇÃO DE 0 A 3 ANOS
EXPRESSION FOR ORAL AND WRITTEN LANGUAGES: FUNDAMENTALS OF HISTORICAL AND
CULTURAL THEORY FOR EDUCATION FROM 0 TO 3 YEARS

Cyntia Graziella Guizelim Simões Gitotto 1


Ana Laura Ribeiro da Silva 2

Resumo:
Apresentamos nesse texto algumas contribuições da Teoria Histórico-Cultural sobre o desenvolvimento da
linguagem oral nas crianças como forma de expressão humana e algumas possibilidades para a prática
educativa visando esse desenvolvimento. Apontamos como práticas educativas baseadas na liberdade de
expressão da criança as técnicas de Célestin Freinet: roda de conversa, livro da vida, jornal, aulas passeio,
cantos e o registro pela imprensa. No processo de desenvolvimento da oralidade, as interações e a
comunicação entre pessoas — adultos e crianças — formam as bases fundamentais à expressão livre e às
outras qualidades humanas – pensamento, leitura, brincadeira... – que envolvem a colaboração, a
solidariedade, a autonomia e o trabalho conjunto. Nesses movimentos de interação, educador e criança são
essencialmente protagonistas das atividades partilhadas e vivenciadas na escola da infância. Nesses
momentos, a comunicação tem papel mediador entre as possibilidades de expressão e as situações de
aprendizagem. Desta forma, compreendemos que é a partir da intencionalidade sob o planejamento dos
espaços e das propostas feitas pelo educador que acontecerá a “escuta” daquilo que as crianças falam, pensam
e desejam. Constituindo-se, assim, uma prática educativa baseada na expressão da criança como possibilidade
para o avanço de seu desenvolvimento pleno.
Palavras-chave: Linguagem oral e escrita; Teoria Histórico-Cultural; Educação de 0 a 3 anos; Pedagogia
Freinet.

Abstract:
Here is some text that contributions of Historical-Cultural Theory on oral language development in children
as a form of human expression and some possibilities for educational practice aiming at the development. We
point out the educational practices based on the child's freedom of expression techniques Célestin Freinet:
wheel conversation, book of life, newspaper, school tour, singing and recording in the press. In the
development process of orality, interactions and communication between people - adults and children - form
the cornerstones to free expression and other human qualities - thinking, reading, playing - Involving
collaboration, solidarity, autonomy and working together. In these movements of interaction, educator and
child protagonists are essentially shared activities experienced in school and childhood. In those moments,
communication has the potential mediating role between speech and learning situations. Thus, we understand
that it is from the intentionality in the planning of the spaces and the proposals made by the educator who
happen to "hear" what the children speak, think and want. Constituting thus an educational practice based on
the expression of the child as a possibility for the advancement of its full development.
Keywords: Oral and written language; Historical and Cultural Theory; Education 0-3 years Freinet
Pedagogy.

1
INTRODUÇÃO mesmo aquelas que não dominam a leitura e 2a
escrita, fazem uso constante deste tipo linguagem.
Ao nascer, a criança já está inserida numa Como instrumento cultural criado pela
cultura falada e letrada, na qual as pessoas, humanidade a ser apropriado pelas gerações, a
linguagem tem o papel essencial de comunicação

1
Professora do Departamento de Didática da Faculdade de
2
Filosofia e Ciências de Marília (Unesp). E-mail: Professora da Rede Municipal de Ensino em Cubatão e da
cyntia@marilia.unesp.br Faculdade de Bertioga-SP
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de expressões humanas – ideias, sentimentos e de estudo das letras e das famílias silábicas
vivências. apresentados por várias cartilhas (MORTATTI,
Há quase duas décadas, a educação de 0 a 2000).
10 anos vem ganhando destaque, especialmente, Quando pensamos na criança pequena
nos meios de comunicação, devido a sua muitos educadores nos questionam como trabalhar
importância na formação das habilidades e as linguagens oral e escrita. Para tanto retomamos
capacidades físicas, emocionais e psíquicas das um dos pressupostos fundamentais da Teoria
crianças. No entanto, tem-se observado, em Histórico-Cultural, quanto à linguagem: o de que
diferentes pesquisas (RIBEIRO; SASSO, 1999; o desenvolvimento da expressividade é a base da
RIBEIRO, 1999; LIMA, 2001; 2005; COUTO, comunicação humana que caracteriza o Homem
2007; VALIENGO, 2008) e na prática como como ser social e coletivo. Desde que nasce a
professora da infância e supervisora de estágio em criança está exposta à comunicação e à expressão
curso de formação inicial de educadores, bem das pessoas que a cercam. Nesse processo, se
como em nossa atuação na formação continuada apropria das diferentes formas de linguagem que
de professores, duas tendências na educação garantem a comunicação entre as pessoas e passa,
infantil de forma geral: o espontaneísmo das por estas formas de linguagens, a expressar seus
atitudes educacionais e a antecipação da sentimentos, desejos/vontades, a conhecer a si e
escolaridade por atividades mecanizadas. ao outro e a conhecer a experiência humana que
A partir dessas pesquisas e experiências, pode propiciar-lhe os conhecimentos sociais e
percebe-se que a educação das crianças pequenas culturais necessários para a vida em comunidade.
(0 a 3 anos) tem sido norteada pelo Dada essa vital importância às formas de
espontaneísmo, ou seja, espera-se que a criança expressão humanas, vamos aqui nos deter ao
cresça e, por isso, se desenvolva para que lhe desenvolvimento da oralidade e das implicações
ofereçam desafios. Isso acontece devido tanto à do trabalho educativo com as linguagens oral e
concepção de criança como incapaz de aprender escrita para o desenvolvimento da expressividade
enquanto não tiver maturidade ou infantil.
desenvolvimento para tal, como ao estado de
ânimo das educadoras que, muitas vezes, por DESENVOLVIMENTO DA EXPRESSÃO
exemplo, não oferecem brinquedos às crianças NOS PRIMEIROS ANOS DE VIDA
para que não tenham que recolhê-los depois. Esta
falta de intencionalidade vigora porque falta a Considerando a principal tese da Teoria
compreensão tanto do desenvolvimento infantil, Histórico-Cultural de que o homem não nasce
quanto da complexidade do ato educativo. humano, mas se torna humano pela apropriação da
O quadro se modifica na educação das cultura acumulada histórica e socialmente pelas
crianças maiores (3 a 6 anos), que preconiza a gerações precedentes podemos tecer uma série de
aquisição da escrita a qualquer custo. O ensino considerações sobre o trabalho educativo da
prioriza o (re)conhecimento isolado das letras e da expressão oral e escrita realizado na escola da
enumeração mecânica das quantidades e sua infância. Segundo essa concepção, – que foi
representação gráfica, sob a forma de número. explicitada e elaborada, pela primeira vez, por
Nessa etapa, o trabalho com a grafia e o traçado Karl Marx (LEONTIEV, 1978) como a concepção
das letras se sobressai sobre as demais linguagens, da materialidade dos processos psíquicos–, ao
compreendendo a maior parte do trabalho nascer, a criança não traz determinadas
realizado. Envolvida pela mesma ausência de geneticamente habilidades, capacidades e aptidões
compreensão do desenvolvimento da criança e da humanas – pensamento, linguagem, inteligência,
complexidade do processo educativo, acaba-se, aí, personalidade. Essas habilidades humanas serão
por desenvolver a aquisição mecânica da formadas pela atividade que a criança realiza em
linguagem escrita. A prática vivida, ainda hoje, seu convívio com as pessoas e com a cultura
nas salas de Educação Infantil longe de serem humana.
modernas, camuflam o tecnicismo e a A apropriação da cultura humana se dá por
mecanização das práticas tradicionais de meio das relações que a criança vai estabelecendo
silabação. Esta prática não está mais apoiada num com outras pessoas e com os objetos da cultura
livro texto cartilhado (que aliás, no discurso, é aos quais tem acesso – acesso este que também é
abominado), mas baseia-se nos mesmos princípios mediado pelas pessoas. Em outras palavras, à

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medida que aprende a utilizar-se dos objetos – oportunidades de aprendizado e desenvolvimento


instrumentos e signos como as formas de acontecerão em situações mais escassas e serão,
linguagem oral e escrita – criados ao longo da assim, determinantes de sua experiência restrita e
história, ao conviver com os outros homens, “cada de seu desenvolvimento igualmente restrito.
indivíduo aprende a ser um homem” Mukhina (1996, p. 40, grifos da autora)
(LEONTIEV, 1978, p. 267, grifo do autor). lembra que,
Nesse processo de apropriação da cultura
humana, a educação e as condições histórico- as crianças assimilam esse mundo, a
sociais vividas pela criança têm íntima relação cultura humana, assimilam pouco a pouco
com a concepção de criança que têm os adultos as experiências sociais que essa cultura
que a rodeiam. O lugar ocupado pela criança nas contém, os conhecimentos, as aptidões e
as qualidades psíquicas do homem. É essa
relações sociais das quais participa – na família,
a herança social. Sem dúvida, a criança
nas instituições de educação, etc. – tem força não pode se integrar na cultura humana de
motivadora em seu desenvolvimento, uma vez que forma espontânea. Consegue-o com a
estabelece as exigências, as expectativas, enfim, ajuda contínua e a orientação do adulto –
as relações sociais e as possibilidades que são no processo de educação e de ensino.
propostas à criança. Como explícita Leontiev
(1998, p. 63), “o que determina diretamente o Assim, destaca-se dessas concepções a
desenvolvimento da psique de uma criança é sua compreensão de Homem/criança como um ser
própria vida e o desenvolvimento dos processos capaz, ou seja, a compreensão de Homem pela
reais desta vida”, que são proporcionados possibilidade do que ele pode vir a ser e não
inicialmente pelos adultos e parceiros mais somente do que é em determinado momento da
experientes que a cercam. vida.
Segundo Mello (2001, p. 37), Nessa perspectiva, considerando que o
desenvolvimento psíquico da criança se dá como
Quando passamos a observar e prestar processo de assimilação da experiência histórica e
atenção às crianças reais que temos ao social acumulada pelas gerações precedentes,
nosso redor, passamos a perceber crianças como considera Lísina (1987, p. 274),
diferentes em suas culturas e suas
contradições, crianças que sabem pensar,
As crianças pequenas podem assimilar
que saem do anonimato, emergem da
esta experiência somente no curso da
sombra dos preconceitos do mundo
interação com os adultos que os cercam,
dominado pelos adultos e passam a ter
portadores viventes desta experiência; por
liberdade e capacidade de conhecimento,
isso a comunicação com os adultos é a
crianças capazes de relacionar-se,
condição mais importante do
comunicar-se e conhecer-se, de conhecer
desenvolvimento psíquico da criança.
o mundo e de interpretar o que conhecer,
produzindo teorias próprias. Essas teorias
– explicações ou interpretações que a Entre 0 e 6 anos, a criança passa de seu
criança é capaz de dar ao que vê ou estado de ingênua impotência ao da personalidade
vivencia – não são explicações definitivas racional (MUKHINA, 1996). Ao nascer, tem a
dos fenômenos e fatos, mas são a necessidade de sobrevivência (manter a
explicação ou interpretação temporária temperatura do corpo, alimentação, troca e sono).
que a criança é capaz de dar as situações e Quando estas são supridas, passa a orientar-se por
são uma das condições essenciais para o outras necessidades: ver, ouvir, pegar,
desenvolvimento de sua inteligência e movimentar-se pelo espaço circundante e
personalidade.
comunicar-se – que são aprendidas em sua relação
com os adultos.
Assim, podemos dizer que percebendo a
Nas palavras de Mukhina (1996, p. 77-78,
criança como alguém que é capaz de aprender, o
grifos da autora),
educador oferece-lhe maiores oportunidades de
aprendizagem. Por outro lado, se tratada como A particularidade principal do recém-
alguém que apenas é capaz de aprender a partir de nascido é sua capacidade ilimitada para
determinada idade e, por isso, é incapaz de certas assimilar novas experiências e adquirir
aprendizagens até atingir tal idade, as as formas de comportamento que

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caracterizam o homem. Se suas manifestada pela busca e localização deste. A


necessidades orgânicas forem busca do objeto tem o sentido de continuar sua
suficientemente satisfeitas, elas logo relação com o adulto e desencadeia a satisfação e
passam a ser secundárias; se o modo de a alegria pelo contato emocional e pela
vida e a educação forem adequados, a
compreensão da linguagem.
criança experimentará novas
necessidades (obter impressões, mover-se A reação da criança a uma palavra que
e relacionar-se com os adultos), que são nomeia um objeto dependerá do desenvolvimento
a base do desenvolvimento psíquico. de suas possibilidades: “primeiramente só olha
para o objeto; logo depois tratará de aproximar-se
No final do 1º e início do 2º mês, dois dele; e finalmente, entregará o objeto ao adulto ou
momentos representam, segundo Venguer (1976, apontará para ele de certa distância” (VENGUER,
p. 71), a expressão da necessidade de 1976, p. 78). A reação oral à palavra do adulto
comunicação com os adultos pela expressão das ocorre por volta do final do primeiro ano,
sensações emocionais da criança: sorriso, como pronunciando aquelas palavras que constituem a
resposta a concentração visual, a palavras reserva ativa de palavras, especialmente, nomes
carinhosas ou sorrisos dos adultos; complexo de de pessoas próximas (papai, mamãe, nenê e
animação, caracterizado pela concentração da outras). Nomes de brinquedos, objetos, roupas,
criança no rosto humano, sorriso e movimentação pessoas mais distantes e ordens constituem, nesse
dos braços e pernas. momento, a reserva passiva de palavras. A
As manifestações emocionais positivas que aprendizagem da fala tem um caráter ativo e
se formam durante os primeiro meses, através e constitui “um dos meios mais importantes para
sob as influências da comunicação com as pessoas ampliar as possibilidades de contato pessoal entre
circundantes, compreendem: o sorriso, o riso, as a criança e o adulto” (VENGUER, 1976, p. 79).
vocalizações expressivas e excitação motora. Lísina (1987, p. 289), classifica duas formas
Segundo Lísina (1987, p. 288), de comunicação na faixa etária de 0 a 3 anos: a
primeira é a “situacional-pessoal”, que se dá
Os componentes do complexo de entre a criança e o adulto sem a inclusão de
animação servem de base para que o bebê objetos, na qual o adulto é o principal objeto do
comece a diferenciar no meio circundante conhecimento da criança, através de quem o bebê
a pessoa adulta (concentração), realizar a realiza todos os seus vínculos com o mundo
comunicação mímica (sorriso) e circundante. Esta constitui a atividade principal da
especificamente vocal (vocalizações pré- criança no 1º ano de vida. A segunda forma de
linguísticas) com o adulto e atrair
comunicação nesta faixa etária é o que a autora
ativamente o adulto para a comunicação
(excitação motora). chama “situacional de trabalho”, na qual a
relação de comunicação se entrelaça, subordina-se
Esses aspectos serão de extrema e é motivada pela interação com o objeto. “A
importância para o desenvolvimento da linguagem iniciativa antecipadora do adulto” – dar
oral. A comunicação com o adulto cria as bases da brinquedos ou objetos para a criança antes que
capacidade de emitir os sons da linguagem esta tome a iniciativa de buscá-los por si mesma –
humana. O desenvolvimento destas bases se tem papel decisivo para transformar a 1a na 2a
caracteriza por três momentos essenciais: por forma de comunicação (LÍSINA, 1987, p. 291).
volta dos três meses, a criança começa a emitir Desta discussão é importante destacar dois
sons chamados de gorjeios; por volta dos quatro elementos essenciais: o papel do adulto na criação
meses começa a imitar o ritmo dos sons de novas necessidades humanizadoras na criança
pronunciados pelos adultos; e por volta dos seis (ver, ouvir, sentir, experimentar com objetos) e,
meses, balbucia bastante e por longo tempo, o que como consequência disto, a possibilidade de
propicia o aperfeiçoamento do uso dos lábios, da experimentação autônoma da criança a partir de
língua e da respiração. (MUKHINA, 1996; um ambiente intencionalmente organizado para
VENGUER, 1976; LÍSINA, 1987). isso.
Por volta do primeiro ano de vida, a criança Entre o segundo e terceiro ano de vida da
procura compreender a linguagem oral, através da criança, o desenvolvimento da linguagem “inclui
relação diferenciada entre o objeto e seu nome o aperfeiçoamento da compreensão da linguagem
dos adultos e a formação da própria linguagem

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ativa da criança” (VENGUER, 1976, p. 107). A objetos do meio circundante é mediada pelas
atividade com objetos tem grande importância possibilidades de manipulação e manutenção da
neste processo, pois cria a base para a comunicação com o adulto.
compreensão do significado das palavras. Esta Desse modo, a apropriação da linguagem
compreensão das palavras, primeiramente, oral será mediada pelas relações que a criança vai
relaciona-se à situação integral que a envolve – a estabelecendo com os adultos através dos objetos
pessoa que fala e o ambiente. Logo esta relação que vai conhecendo, pois constituirão um elo para
desaparece e a criança começa a compreender a a manutenção da comunicação entre adulto e
palavra independente da situação em que é criança.
utilizada. As ações infantis começam, então, a A linguagem oral possibilita o acesso a
subordinar-se a solicitações verbais do adulto. diferentes realidades por meio das outras diversas
Entre um ano e meio e dois anos a formas de linguagem existentes como uma viagem
linguagem ativa da criança – aquela que ela no mundo fantástico das histórias infantis ou a
pronuncia – evolui mais rapidamente e é, linguagem audiovisual, ao assistir a um filme, por
especialmente, acrescida pela iniciativa de exemplo. Amplia, assim, as possibilidades de
perguntar “o que é isso?”. No início a linguagem acesso a novas informações, a culturas diferentes,
da criança é diferente da linguagem do adulto, o ao uso da imaginação e de novas emoções.
que pode ser constituído por palavras inventadas A relação da criança com o mundo que a
pelos adultos circundantes considerando serem rodeia – e que promove o desenvolvimento das
mais acessíveis à criança – como mamã, papa e funções psíquicas superiores – não é uma relação
etc. –, pela alteração sonora involuntária da direta, mas uma relação mediatizada por sistemas
criança – como “foresta” ao invés de floresta – ou intermediários – os signos, os instrumentos – que
por palavras criadas pela própria criança – como se interpõem nessa relação. Na gênese do
“mode” para referir-se a um bicho de pelúcia. desenvolvimento humano, e na história de cada
Essa diferença é superada pela criança com um criança, o signo é uma marca externa de que lança
processo de educação adequado, no qual o mão para auxiliar em processos psíquicos que
educador – pais ou professores – não imitam seu exigem, por exemplo, a memória, a atenção, o
modo peculiar de falar e falam corretamente controle da conduta.
quando falam com ela. A fala infantilizada do O signo, como elemento de qualquer
adulto para com a criança dá a ela uma referência linguagem – palavra, gesto, código – direta ou
equivocada sobre a maneira correta de pronunciar indiretamente exprime um pensamento. No
as palavras. processo do desenvolvimento da criança, a
No segundo ano de vida, a palavra tem um utilização de marcas externas vai, aos poucos,
caráter excitador: a criança começará, mais dando lugar a representações mentais que
frequentemente, a realizar uma ação sob a substituem os objetos materiais. Os processos
orientação oral do adulto e, com isso, começará a psíquicos superiores têm na linguagem oral o
regular sua conduta pela ordem verbal. Nesse elemento mediador principal da relação do sujeito
momento a criança começa a compreender o com o mundo. O fato de que essa representação
sentido de proibição da palavra não e demonstra mental do mundo objetivo não seja um fato
maior interesse em ouvir e compreender o que lhe individual, mas refira-se a significados
fala o adulto. socialmente construídos, permite a comunicação.
Sob influência da linguagem se A linguagem verbal é o sistema básico que
reestruturam os processos psíquicos da criança – viabiliza esta comunicação.
percepção, pensamento, memória, atenção, Com a palavra, ampliamos nosso
imaginação. O tipo de comunicação com o adulto, conhecimento do mundo. A palavra estabiliza um
entre o segundo e o terceiro ano de vida, significado, organiza o mundo para a criança que
diferencia-se da comunicação do primeiro ano. passa a ver e conhecer a cultura humana e a
Segundo Lísina (1987, p. 290), “a criança na natureza. Desse ponto de vista, a apropriação da
primeira infância passa para a colaboração, na linguagem oral pela criança é fator essencial de
qual os elementos e os episódios da comunicação humanização e deve merecer a atenção e a
estão entrelaçados com a interação objetal, intenção do educador. (MUKHINA, 1996;
subordinados a ela e motivados por ela”. A MELLO, 2001; LÍSINA, 1987).
relação que a criança vai estabelecendo com os

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As atividades diversificadas, mediadas pelo A prática educativa de 0 a 3 anos tem suas


professor/educador, nessa fase, ampliam as peculiaridades voltadas ao desenvolvimento de
possibilidades de aprendizagem da língua, por capacidades especificamente humanas nas
meio de um trabalho que propicie situações crianças. Essas capacidades vão se constituindo
significativas de relatos, contações de histórias, nas vivências e nas oportunidades que a criança
brincadeiras rítmicas, rodas de conversas, dentre concretamente tem para que se desenvolva. Daí a
outras. importância da organização e dos fazeres na
A linguagem oral é um dos elementos que escola da infância serem intencionalmente
constituem a comunicação diária entre adultos e planejadas para oportunizar o desenvolvimento
crianças na Educação Infantil, por meio da relação das capacidades humanas na criança.
com o outro, inseridas em um determinado Considerando que o educador é aqui o
contexto, ela se manifesta com finalidades mediador entre o mundo dos objetos criados ao
diversas: manifestar sentimentos, anseios, ideias, longo da história humana e a criança, seu papel é
compartilhar novidades, a própria realidade, essencialmente compreendido do ponto de vista
pontos de vista, conhecimentos, fantasias, dentre do planejamento das ações educativas e dos
outras. espaços da escola da infância de maneira a
Para as crianças, as situações nas quais as promover o desenvolvimento esperado e
capacidades linguísticas básicas, como falar e mencionado anteriormente.
escutar são praticadas livremente, oportunizam, O desenvolvimento da expressão pela
por meio do diálogo, a construção do linguagem falada é orientado e mediado pelas
conhecimento sobre si mesmo e sobre o outro e a oportunidades dadas à criança para a sua
ampliação das relações interpessoais, além da expressão. Ou seja, pela oportunidade de falar e
própria ampliação dessas capacidades linguísticas. ser ouvida. Nesse sentido, acreditamos que na
As atividades que envolvem a linguagem oral Educação Infantil algumas técnicas de ensino de
podem se tornar significativas à medida que Céletin Freinet cumprem esse papel de dar
exercem uma função em determinado contexto, oportunidades à criança de falar e ser ouvida, uma
seja contar ou criar uma história, compartilhar proposta de prática que respeita a livre expressão,
algum acontecimento, explicar uma brincadeira ou o tateamento experimental e a cooperação como
jogo, pedir uma informação, etc. princípios norteadores do trabalho educativo. A
Do mesmo modo, a linguagem escrita está introdução dessas técnicas na educação de 0 a 3
inserida nas práticas sociais. O contato, a inserção anos é algo gradativo e pode ir ser incorporado
e as práticas que envolvem a leitura e escrita lentamente à medida que o educador oportuniza e
ocorrem antes do ingresso da criança na escola. cria possibilidades para a independência e o
Essas práticas discursivas de leitura e escrita, que desenvolvimento da autonomia das crianças.
envolvem o sistema simbólico e a tecnologia, Entre as técnicas que podem ser
constituem o conhecimento de mundo que a trabalhadas, desde os mais pequeninos, está a
criança leva para a escola e (re)significa a partir roda de conversa. A roda inicial consiste em um
das situações de aprendizagem. momento privilegiado para a expressão da
Para isso, é preciso destacar as situações de criança, é um momento de livre-expressão em que
aprendizagem e experiências que promovam a cada criança tem a oportunidade de manifestar-se
interação entre as crianças a fim de ampliar a mostrando algo que trouxe de casa, o brinquedo, o
comunicação e expressão, o acesso ao mundo livro ou outro objeto que pegou ao chegar na
letrado e a participação em diversas situações e escola, momento de expressar suas ideias,
práticas sociais, envolvendo a modalidade oral e opiniões e sentimentos. Gradualmente, a
escrita como formas de expressão e comunicação. educadora pode ir oportunizando este momento,
Isso é o que procuramos esboçar no próximo item, mesmo que suas crianças ainda não falem, pois
apresentando algumas técnicas da Pedagogia pode ser um momento de exploração sensorial: de
Freinet, articuladoras da possibilidade de tateamento de algum objeto ou de degustação ou
humanização das crianças pequenas. um momento de relaxamento ao som de uma
música, entre outros.
A PRÁTICA EDUCATIVA: AS BASES DA E Conforme as crianças vão desenvolvendo a
NA EXPRESSÃO INFANTIL oralidade a roda se torna momento de efetiva
conversa entre os pares. É a hora na qual se

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planeja o dia: educadora e crianças conversam gradualmente, conforme o grupo de crianças


sobre o que farão e flexibilizam uma rotina a assim o permitir, o educador abre espaço à
partir desta conversa e, assim, vai se tornando participação da criança nas decisões que lhe são
referência temporal que possibilita à criança ir possíveis desde o planejamento das atividades,
percebendo e compreendendo as marcas seu percurso para o conhecimento e sua avaliação
temporais que desencadeiam a rotina escolar. de forma autônoma e cooperativa.
A roda de conversa é, portanto, uma A roda de conversa também ocorre no final
atividade na qual se exercita a expressão oral, e se do dia, quando possibilita a avaliação das
aprende a convivência no grupo, o controle da atividades realizadas. Assim, a roda final é um
própria conduta, o respeito ao outro e, de maneira momento privilegiado para a expressão infantil: as
esplendorosa, se aprende a argumentar e defender crianças podem relatar, ouvir opiniões e sugestões
suas ideias. Nesse momento surgem também os dos colegas e do educador, analisar o que deu
temas para os projetos da turma, as notícias que certo ou não, contar a todos algo que aconteceu e
serão usadas para compor o jornal da turma, os só alguns viram, além de poderem registrar no
combinados da turma, enfim, é um espaço livro da vida essas vivências tendo a educadora no
privilegiado de convívio e exercitação da papel de escriba e a vivência com a escrita em sua
característica humana do diálogo. função social de registro. Com os pequenos pode
A roda também traz o momento mágico de ser um momento de partilha com as famílias e de
ouvir histórias. É fascinante ver os olhinhos reflexão pessoal do educador. Um espaço de
brilhando quando dizemos às crianças que vamos interação entre as crianças e a educadora que pode
ler ou contar uma história. Pode se usar os mais ir conversando com as crianças e revivendo um
variados recursos – um livro com suas ilustrações, aprendizado do dia: rolar sobre uma almofada,
fantoches personagens da história, caixas com abrir uma tampa, enfim, algo que foi observado no
elemento surpresa no final da história, aventais dia e pode ser refeito com a criança naquele
nos quais se fixam os personagens conforme momento.
aparecem na história. O mais importante é que Outra técnica da Pedagogia Freinet que dá
este seja um momento rotineiro, que todos dias as mais argumentação e conteúdo às conversas
crianças ouçam histórias e possam alimentar o infantis é a aula-passeio. Consiste em passeios,
mundo imaginário que se constitui com elas. excursões ou saídas do espaço da escola que
Mesmo quando falamos dos mais pequenos, essa é permitem às crianças um novo olhar e uma nova
uma atitude muito importante que o educador interação com o meio no qual vivem.
precisa alimentar em sua prática. Mesmo quando Especialmente com as crianças pequenas e com os
ainda não consegue compreender o que lhe leem bebês pode ser a exploração de algum ambiente da
os adultos, a criança ri e interage com o adulto, própria escola ou próximo à ela: uma área externa
exatamente pela manutenção desta interação e com vista para a rua, uma sala de outra turma,
desta atenção recebida pelo adulto (VENGUER, uma voltinha na rua com carrinhos ou com
1993). triciclos para os que começam a andar. Para as
Pelas intervenções e expressões das crianças crianças maiores, podem caracterizar-se numa
neste momento de roda, o professor pode visita a um determinado local – um parque da
conhecer melhor a turma, perceber as dificuldades cidade, uma praça próxima à escola ou mesmo
individuais, compreender as necessidades de um uma volta no quarteirão. Tudo o que é visto no
trabalho mais intenso com algum aspecto do passeio pode ser depois comentado e registrado
desenvolvimento infantil, enfim, pode obter os pelas crianças, seja coletiva, seja individualmente,
elementos necessários para tornar a linguagem seja por meio da escrita – quando o professor é o
oral uma aprendizagem significativa, escriba do texto coletivo ou de uma lista daquilo
possibilitando à criança mais a frente fazer que as crianças lembrarem do passeio –, seja por
discussões, formular hipóteses, questionamentos e meio do desenho ou outra linguagem que expresse
reflexões sobre qualquer problema – os aprendizados: é “a vida entrando na sala de
parafraseando Mello (2001), possibilitar à criança aula” (SAMPAIO, 1994, p. 16).
produzir teorias. O educador confirma ou não as Para Freinet todos os momentos devem ter a
hipóteses das crianças, estimula a experimentação, participação das crianças. Assim, especialmente
a reflexão e a argumentação que propiciará, mais com os maiores, do planejamento à organização, a
tarde, o pensamento crítico. Desta forma, aula-passeio se constitui em uma atividade

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coletiva, pois propicia a participação ativa das levando em conta as exigências do código
crianças e possibilita a ampliação das interações escrito.
entre as próprias crianças e suas relações com os É a expressão escolhida pela criança para
adultos. Para Freinet é igualmente importante comunicar seu pensamento que prevalece
mesmo que não corresponda aos critérios
permitir que o grupo de crianças opte por “sair
estéticos e morais do adulto.
simplesmente por prazer, pela curiosidade e
interesse e não pela obrigação estabelecida pelos
A expressão registrada das crianças são
objetivos educacionais da escola” (SAMPAIO,
textos que podem compor o jornal da turma. Essa
1994, p. 181).
técnica é muito apreciada pelas crianças e por seus
Aos poucos, o educador vai estabelecendo o
familiares. Consiste no registro de relatos ou
ritmo e as formas de registro das expressões
opiniões expressas pelas crianças, dos quais um
infantis. Na proposta de Freinet, toda expressão da
por dia é escolhido por votação (onde o voto das
criança precisa ser registrada e para isso a
crianças e o do educador tem o mesmo peso),
imprensa é o instrumento de escrita mais utilizado
impresso e registrado por desenho por cada
nas demais técnicas Freinet. Para Freinet ela é
criança. Ao final do mês (ou outra data escolhida
instrumento que possibilita unir “o pensamento da
pelo coletivo) junta-se todas as notícias
criança ao texto definitivo” (FREINET, 1978, p.
produzidas e estas são levadas para a família. Essa
39). Freinet (apud MELLO, 1992, p. 44),
é uma prática muito peculiar, pois não só registra
relatando sua experiência com a imprensa, destaca
as expressões infantis como utiliza a escrita em
que
sua função social de comunicação. Desta forma,
consiste em um instrumento de socialização e
Através da imprensa na escola, as
crianças começaram a falar na aula, a divulgação da livre expressão. O conteúdo do
exprimir-se, pela palavra, pela caneta, jornal escolar centra-se em “textos livres,
pelo lápis, pela mímica. E esta expressão desenhos livres, relatórios de enquêtes ou de
espontânea tornou-se o eixo essencial de pesquisas, textos cooperativos sobre a vida da
toda a nossa pedagogia. classe, jogos” (ICEM, 1979, p. 12). “Ele é o
É forjando que nos tornamos ferreiros. resultado do trabalho de um grupo de crianças [...]
É falando que aprendemos a falar. que querem comunicar aos leitores as
É escrevendo que aprendemos a escrever. informações, as opiniões, as pesquisas feitas na
É exprimindo-nos que aprendemos a classe” (ICEM, 1979, p. 12, grifos no original).
exprimir-nos, a tomar consciência de nós
Estes textos também podem destinar-se a
mesmos, a afirmar a nossa personalidade.
“coletâneas pessoal da criança, coletâneas da
classe, afixação em mural, correspondência, etc.
Conforme o educador for introduzindo o
[...] pode também gerar outras atividades: debate,
registro em sua prática educativa a imprensa vai
teatro, desenho, música, expressão corporal”
assumindo um papel essencial para a organização
(ICEM, 1979, p. 11). Dessa maneira, integram-se
e a reprodução dos “textos” infantis articulando
à “globalidade da expressão da criança” (ICEM,
diferentes práticas expressivas. Segundo Sampaio
1979, p. 11).
(1994, p. 202), “a imprensa valoriza,
Outra forma de registro que pode ser
principalmente, o registro de pensamento da
incorporada a prática educativa por iniciativa do
criança, desmistificando a tipografia,
educador e, ainda,introduzir a criança de forma
desenvolvendo-lhe o espírito crítico frente aos
natural no universo da linguagem escrita criada é
textos impressos nos livros, revistas e jornais”.
o livro da vida que consiste em um livro de
Segundo o ICEM (1979, p.13, grifos no original),
registro coletivo e diário dos fatos considerados
É uma técnica de vida. importantes pela turma para serem documentados.
É um texto escrito quando a criança Essa pode ser uma técnica na qual o educador, no
deseja, em qualquer lugar e sobre papel de escriba, registra a vida do grupo. Desde
qualquer base. os bebês a educadora pode fazê-lo na perspectiva
É a oportunidade para uma discussão, de refletir sobre a ação educativa e manter um
para um debate, para um dialogo: registro das próprias observações.
atividade que visa ajudar a criança a É um documento vivo sobre a vida da
precisar e a dominar seu pensamento turma. O registro das atividades realizadas, dos

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imprevistos, das inquietações, das conquistas, das As técnicas elaboradas por Freinet não
avaliações e da reflexão de cada um dá a ele um existem separadas de uma nova atitude do
caráter singular que possibilita a expressão de educador em relação às crianças. Por isso, porque
sentimentos num registro diário e coletivo da não existem em si mesmas, mas dentro de um
organização do trabalho educativo. conjunto de concepções que envolvem uma nova
Por meio do livro da vida, as crianças forma de relação entre educador e criança: uma
maiores vão compreendendo o crescimento e o relação baseada na concepção de criança capaz
desenvolvimento da classe como um todo, a que exige do educador uma atitude de escuta das
importância da documentação como fonte de vozes infantis, de propiciador da autonomia e da
memória da vida, ao mesmo tempo em que vai independência como mediador entre elas e o
criando para si a necessidade da escrita, mundo que as cercam.
aprendendo a respeitar a interpretação do outro, Essa relação educador-crianças –
realizando e aprendendo a realizar a produção democrática e profundamente respeitosa com as
coletiva da história da turma, na qual ela é crianças – garante, também por parte das crianças,
também autora e assim se percebe no grupo. atitude respeitosa em relação aos adultos que as
Para a articulação dessa dinâmica que tratam com respeito. Baseada intimamente na
constitui a atividade na Pedagogia Freinet, o ideia de manutenção das relações humanas e
espaço da sala de aula deve ter uma configuração comunicativas e no desenvolvimento da
distinta da sala de aula tradicional, pois deve expressividade da criança, a conduta do educador
promover e favorecer a autonomia e a participação desencadeia uma série de ações de respeito e
das crianças. Para tanto, Freinet foi estruturando compreensão das crianças como seres únicos e
“cantos de trabalho, que comportam um número portadores da vida, como diria Madalena Freire
limitado de alunos” (SAMPAIO, 1994, 187), (1983) “aqui e agora”. Uma concepção de
alguns fixos e outros variáveis. Segundo Sampaio desenvolvimento humano baseada na vivência, na
(1994, p. 187), “o material a ser utilizado em cada emoção e na expressividade de suas ideias e
canto - ateliê ou oficina - deve ficar organizado e ideais. Nessa perspectiva de intensa participação
ao alcance das crianças” de forma que das crianças, importa destacar que o educador não
perde seu papel como coordenador do processo,
Sem a interferência direta dos adultos, a mas deixa de ser mero controlador, fiscal ou dono.
socialização das crianças ganha um ritmo A partir deste princípios promovemos aquilo que
próprio. Essa prática na sala permite uma chamamos de pedagogia da escuta tratando da
vida cooperativa. As crianças têm mais atitude do educador que está ao lado como
opções, o que não significa que tenham
parceiro e não contra suas crianças em seu
sua vontade atendida imediatamente, pois
os cantos comportam um número limitado processo de encontro com a cultura social e
de elementos e é preciso esperar, caso o historicamente acumulada, que as percebe como
canto escolhido estiver lotado alguém capaz de fazer teoria desde que é ainda
(SAMPAIO, 1994, p. 187). muito pequena e, por isso, dá voz a ela no
processo educativo.
Na educação de 0 a 3 anos, podemos pensar
em cantos voltados aos desafios de cada aspecto CONSIDERAÇÕES FINAIS
do desenvolvimento infantil e ter espaços
delimitados que ofereçam às crianças experiências A Teoria Histórico-Cultural nos traz
diferenciadas. Pode-se pensar em espaços com algumas proposições pertinentes para o trabalho
móbiles, espelhos, brinquedos industrializados, educativo de 0 a 3 anos. Entre elas, a concepção
brinquedos produzidos com sucatas, livros de de criança como ser capaz, o desenvolvimento das
pano, plástico ou de páginas duras, enfim, capacidades humanas a partir da relação
possibilidades que promovam ou estimulem as estabelecida com as pessoas ao seu redor e da
diferentes áreas do desenvolvimento infantil. importância da própria expressão para seu
Desse modo, cada canto é um espaço de desenvolvimento. A partir dessa concepção
desenvolvimento único para a criança, no qual ela percebemos nas técnicas Freinet as possibilidades
trabalhará suas vontades e as possibilidades de para o desenvolvimento da expressão na
cooperação e realização dentro do grupo escolar. educação, especialmente, de 0 a 3 anos.

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60 A expressão pelas linguagens oral e escrita: fundamentos da teoria histórico-cultural para a educação de 0 a 3 anos

Ao longo deste texto, apresentamos alguns ______. Infância e Teoria Histórico-Cultural: (des)
apontamentos do o desenvolvimento da encontros da teoria e da prática. 2005, Tese (Doutorado
linguagem oral como forma de expressão humana em Ensino na Educação Brasileira). Faculdade de
e algumas possibilidades para a prática educativa Filosofia e Ciências, UNESP, Marília, 2005.
visando o desenvolvimento da oralidade como LÍSINA, M. La genesis de las formas de comunicación
forma expressão infantil. As práticas educativas en los niños. In: DAVIDOV, V. e SHUARE, M (org.).
apontadas neste texto são baseadas nas técnicas de La Psicologia Evolutiva e Pedagogica en la URSS
Célestin Freinet que são fundamentadas na (Antropologia). Moscou: Editorial Progresso, 1987, p.
liberdade de expressão da criança. 274-298.
Do que anunciamos, no processo de MELLO, R. R. Pedagogia Freinet: Um Caminho para
desenvolvimento da oralidade, as interações e a uma Educação Ativa. 1992, Dissertação (Mestrado em
comunicação entre pessoas — adultos e crianças Educação). Universidade Federal de São Carlos, São
— formam as bases fundamentais à expressão Carlos, 1992.
livre e às outras qualidades humanas – leitura, MELLO, S. A.. Concepção de criança e prática
brincadeira... envolvem a colaboração, a pedagógica: uma reflexão.UNIFAC em Revista,
solidariedade, a autonomia e o trabalho conjunto. Botucatu, v. 1, abr. 2001, p. 35-42.
Nesses movimentos de interação, educador e MORTATTI, M. do R. L. Os sentidos da
criança são essencialmente protagonistas das alfabetização: São Paulo – 1876/1994. São Paulo:
atividades partilhadas e vivenciadas na escola da Editora UNESP; Brasília: MEC/COMPED/INEP,
infância. 2000.
Nesse processo de interação entre as
MUKHINA, V. Psicologia da idade pré-escolar.
crianças e o educador a comunicação tem papel Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes,
mediador entre as possibilidades de expressão e as 1996.
situações de aprendizagem. Assim, é a partir da
intencionalidade da organização do planejamento RIBEIRO, A. L. A educação de 0 a 3 anos:
e dos espaços feita pelo educador que possibilitará influências das diferentes práticas educativas nos
níveis de desenvolvimento efetivo e potencial.
a “escuta” daquilo que as crianças falam, pensam Relatório de pesquisa financiada pela FAPESP,
e desejam. orientada pela Profª. Dra. Suely Amaral Mello,
Dez.1999.
Referências
SAMPAIO, R. M. W. F. Freinet: evolução histórica e
COUTO, N. S. O faz-de-conta como atividade atualidades. 2.ed. São Paulo: Scipione, 1994.
promotora de desenvolvimento infantil e algumas
contribuições acerca de suas implicações para VALIENGO, A. Educação Infantil e Ensino
aprender a ler e escrever. 2007, 192f. Dissertação Fundamental: bases orientadoras à aquisição da
(Mestrado em Ensino na Educação Brasileira) - leitura e da escrita e o problema da antecipação da
Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade escolaridade. 2008.162f. Dissertação (Mestrado em
Estadual Paulista, Marília, 2007. Ensino na Educação Brasileira) – Faculdade de
Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista,
FREINET, É.. Nascimento de uma Pedagogia Marília, 2008.
Popular: os métodos Freinet. Trad. Rosália Cruz.
Lisboa: Editorial Estampa, Lda, 1978. VÉNGUER, L. A. Temas de Psicologia Pré-escolar.
Havana: Editorial Pueblo y Educación. 1976.
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Dossiê Pedagógico da revista L’Educateur. Trad. ______.Actividades inteligentes: jugar em casa com
Ruth Joffily Dias, 1979. nuestros hijos en edad preescolar. Madrid: Visor, 1993.

LEONTIEV, A. N.. “Demarche” histórica no estudo do


psiquismo humano. In: ____. O desenvolvimento do
psiquismo. Lisboa: Livros Horizonte, 1978, p. 261-84.
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2001, Dissertação (Mestrado em Ensino na Educação
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Marília, 2001.

Rev. Teoria e Prática da Educação, v. 17, n.3, p. 51-60, Setembro/Dezembro 2014

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