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ALFABETIZAÇÃO

E
LETRAMENTO

Virna Mac-Cord
Catão
A cultura escrita e sua
função social desde
a educação infantil
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Analisar a importância do acesso à cultura escrita desde a educação


infantil.
 Identificar importantes formas de aproximação das crianças à cultura
escrita.
 Reconhecer o professor como um importante mediador da função
social da escrita no cotidiano das crianças na escola.

Introdução
A escrita ocupa um lugar essencial na sociedade. Além de registrar e
transmitir uma comunicação não oral, ela sustenta os alicerces de uma
vida cidadã, pois dá ao indivíduo possibilidades autônomas de expor seus
pensamentos e ideias. Assim, escrever é também uma atitude política,
um modo de se posicionar perante o mundo.
Além disso, a escrita é um processo de construção de conhecimento,
por isso desde muito cedo as crianças entram em contato com o letra-
mento. Mesmo antes de ingressar na escola, elas utilizam a escrita, ainda
que de forma não convencional.
Neste texto, você vai ver a importância do acesso à cultura escrita
desde a educação infantil, identificando as formas como as crianças se
apropriam dela. Além disso, você vai verificar como o professor é um
importante mediador da função social no cotidiano das crianças na escola.
2 A cultura escrita e sua função social desde a educação infantil

A importância do acesso à cultura escrita


na educação infantil
A educação infantil é a primeira etapa da educação básica. Ela tem como
objetivo, de acordo com o art. 29 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
(BRASIL, 1996), o pleno desenvolvimento do educando nos aspectos físico,
psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da
comunidade. A educação infantil abrange as creches, cujo atendimento é
de 0 a 3 anos, e a pré-escola, de 4 a 5 anos, como você pode observar na
Figura 1, a seguir.

Figura 1. Estrutura da educação básica.

O reconhecimento da educação infantil como primeira etapa da educa-


ção básica no sistema educativo é um marco legal de extrema importância,
legitimado na LDB. Até então, a educação infantil estava atrelada à noção
de um espaço em que se cuidava de crianças sem o auxílio de profissionais
formados; ela era vista como um “depósito de crianças”. A partir do momento
em que passou a ser encarada como uma etapa da educação básica, surgiu uma
preocupação com relação aos princípios educativos. Assim, a oferta de vagas e
a relação dialógica entre ensino e aprendizagem passaram a ser consideradas.
A concepção de criança hoje vigente, essencialmente baseada numa visão
histórico-cultural de sujeito, fundamentada em Vygotsky (2005), é aquela
marcada pelo meio social. Mas, ao mesmo tempo, entende-se que as crianças
possuem uma natureza singular, são sujeitos que têm seus modos próprios
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de ver, pensar e agir no mundo (Figura 2). Elas se manifestam de diferentes


formas, recriando e potencializando a linguagem, que, no sentido vygotsky-
niano, desempenha um papel fundamental nas relações humanas.

Figura 2. Crianças e suas formas de ver o mundo.


Fonte: Lyudmyla Kharlamova/Shutterstock.com.

Quer conhecer mais sobre essa visão histórico-cultural


fundamentada nas pesquisas de Vygostsky? Acesse, no
link ou código a seguir, uma reportagem da revista Nova
Escola que contextualiza a teoria desse autor, além de
trazer sua biografia.

https://goo.gl/GmwrrL

Nesse sentido, em 1998, o Ministério da Educação publicou um documento


intitulado Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. De acordo
com esse documento, a educação infantil deve propiciar às crianças o acesso a
elementos culturais que enriqueçam o seu desenvolvimento e possam garantir
a sua inserção social (BRASIL, 1998). Para que isso aconteça, a criança ne-
cessita compreender as diferentes formas em que esses elementos culturais
se manifestam nos espaços que circulam. Assim, as interações com os pares,
com a cultura e com as linguagens são necessárias para que a inserção social
aconteça, potencializando as diferentes formas de (res)significar o mundo.
Tratando-se das linguagens, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Infantil são uma referência importante, pois, por ser uma resolução,
4 A cultura escrita e sua função social desde a educação infantil

esse documento tem caráter legislativo. No oitavo artigo dessa resolução, há


um direcionamento às propostas institucionais, afirmando que:

[...] a proposta pedagógica das instituições de Educação Infantil deve ter como
objetivo garantir à criança acesso a processos de apropriação, renovação e
articulação de conhecimentos e aprendizagens de diferentes linguagens, as-
sim como o direito à proteção, à saúde, à liberdade, à confiança, ao respeito,
à dignidade, à brincadeira, à convivência e à interação com outras crianças
(BRASIL, 2010, documento on-line).

O art. 9, por sua vez, trata da linguagem escrita, afirmando que deve-se
garantir “[...] experiências de narrativas, de apreciação e interação com a lin-
guagem oral e escrita, e convívio com diferentes suportes e gêneros textuais
orais e escritos” (BRASIL, 2009, documento on-line). Aqui há uma questão
crucial acerca da leitura e da escrita na educação infantil: garantir experiências
é muito diferente de ensinar a ler e a escrever. Portanto, é necessária uma
prática pedagógica direcionada ao letramento e não à alfabetização.
Tal questão é ratificada na Base Nacional Comum Curricular (BNCC)
aprovada em 2017. Esse documento substitui o termo “eixos” por “campos de
experiência” e afirma que deve ocorrer o uso social da escrita, pois:

[...] desde cedo, a criança manifesta curiosidade com relação à cultura escrita:
ao ouvir e acompanhar a leitura de textos, ao observar os muitos textos que
circulam no contexto familiar, comunitário e escolar, ela vai construindo sua
concepção de língua escrita, reconhecendo diferentes usos sociais da escrita,
dos gêneros, suportes e portadores (BRASIL, 2017, p. 40).

Uma prática pedagógica pautada no “campo da experiência” promove


ações que levam as crianças a participarem de atividades que se aproximam
do cotidiano, usando os sentidos. Nessas situações, a criança escuta, tem
uma fala ativa, expõe seu pensamento, aflora sua imaginação, enfim, ela tem
participação ativa nas situações planejadas.

Formas de aproximação com a cultura escrita


A linguagem faz com que pensamentos e emoções de um sujeito possam habitar
outro. Nas relações homem-mundo-homem são produzidos sentidos construídos
a partir das significações de mundo dadas pelo outro. Para Vygotsky (2005),
há uma estreita relação entre pensamento e fala. O autor postula que, a partir
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do momento em que a criança usa a linguagem oral para se comunicar, a fala


passa a ser conceitual e o pensamento, verbal. Pensamento e fala tornam-se,
assim, indissociáveis.
A relação entre o homem e o mundo passa pela mediação do discurso. O
sujeito recebe a palavra do mundo sobre si mesmo e funda sua própria palavra.
Por isso é tão importante desenvolver a oralidade na educação infantil. A partir
do momento em que a criança usa a linguagem oral e entende o objetivo da
fala, outras formas de se comunicar com as pessoas e com o mundo passam
a compor o seu repertório.
Por que a linguagem escrita é importante na educação escolar e, conse-
quentemente, na educação infantil? Você já deve saber que a escrita, inventada
na Antiguidade, foi criada, justamente, para registrar os pensamentos e as
ideias. Símbolos foram criados, dos mais rústicos, como desenhos combinados
para expressar uma ideia, até a convenção atual, que é o alfabeto. O homem
demonstrou de forma evolutiva que, a partir da linguagem oral, outros regis-
tros são possíveis, passando por diversas formas de representação gráfica.
O mesmo sistema evolutivo acontece com as crianças, o que já demonstrava
Emília Ferreiro com sua teoria da psicogênese da língua escrita: a criança
passa por etapas evolutivas, que vão dos rabiscos e desenhos à escrita com
letras de forma combinadas.

Você já deve ter ouvido falar na pesquisadora Emilia Fer-


reiro, certo? Que tal assistir a um vídeo em que ela fala
sobre leitura e escrita na educação infantil? É só acessar
o link ou o código a seguir.

https://goo.gl/C2oeJh

A criança se relaciona com o mundo e com as linguagens, que, associadas,


demonstram suas ideias sobre esse mundo. Assim, as linguagens não podem
ser trabalhadas na educação infantil de forma dissociada. Uma linguagem leva
a outra linguagem: são as cem linguagens da criança, discussão de Malaguzzi
(1999) que fundamenta as práticas pedagógicas da escola-modelo italiana
Reggio Emilia. A seguir, você pode ver um poema de Malaguzzi (1999) que
vai auxiliá-lo na sua reflexão.
6 A cultura escrita e sua função social desde a educação infantil

A criança é feita de cem.


A criança tem cem mãos cem pensamentos
cem modos de pensar de jogar e de falar.
Cem sempre cem modos de escutar as maravilhas de amar.
Cem alegrias para cantar e compreender.
Cem mundos para descobrir.
Cem mundos para inventar.
Cem mundos para sonhar.
A criança tem cem linguagens (e depois cem cem cem) mas roubaram-
-lhe noventa e nove.
A escola e a cultura lhe separam a cabeça do corpo.
Dizem-lhe: de pensar sem as mãos
de fazer sem a cabeça
de escutar e de não falar
de compreender sem alegrias
de amar e de maravilhar-se só na Páscoa e no Natal.
Dizem-lhe: de descobrir um mundo que já existe
e de cem roubaram-lhe noventa e nove.
Dizem-lhe: que o jogo e o trabalho
a realidade e a fantasia
a ciência e a imaginação
o céu e a terra
a razão e o sonho
são coisas que não estão juntas.
Dizem-lhe enfim: que as cem não existem.
A criança diz: ao contrário, as cem existem.

Você já ouviu falar sobre a escola referência Reggio Emilia,


na Itália? Saiba mais sobre ela lendo a reportagem dispo-
nível no link a seguir.

https://goo.gl/pdreEv
A cultura escrita e sua função social desde a educação infantil 7

Aproximar a criança da escrita significa fomentar práticas que se relacio-


nem ao seu cotidiano, assim como propor situações em que ela experimente
as múltiplas linguagens que estão no mundo. Essas situações, assim como
afirmam as DCNs, devem estar organizadas em dois eixos: interação e brin-
cadeiras. A criança, ao brincar de ler e escrever palavras, vai sendo inserida no
mundo social. Ao participar dessas interações, ela passa a compreender o uso
da escrita e, consequentemente, a usá-la como mais uma forma de expressar
seus pensamentos.
Assim, práticas diárias de leitura e escrita devem fazer parte do planeja-
mento do professor. Ler todos os dias para as crianças, livros de histórias ou
não, faz com que ela perceba alguns pequenos gestos necessários para essa ação.
Esses são os chamados “gestos de leitura”, que a criança tende a reproduzir e
que incluem segurar um livro, fingir que está contando uma história, virar as
páginas na progressão da leitura, etc. Manusear diferentes suportes de textos
(verbais ou não verbais) é importante, assim como observar uma carteira de
identidade, uma receita, até mesmo uma placa de trânsito (Figura 3).

Figura 3. Linguagem não verbal.


Fonte: J5M/Shutterstock.com.

Atividades como recontar uma história, ditar uma carta, um bilhete, dar
um recado e expressar-se oralmente seguindo “modelos” de linguagem são
essenciais, mas não adianta apenas tê-las disponibilizadas pela sala. É a
mediação do educador que faz a diferença e qualifica o diálogo da criança
em suas possibilidades de expressão oral, leitura e escrita.
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O papel mediador do professor


Possibilitar a leitura e a escrita na sala de aula vai além de criar um ambiente
organizado com inúmeros materiais escritos no mundo, desde o alfabetário
a livros. De que adianta expor e não produzir experiências com esses ma-
teriais? A informação por si só não faz sentido. Ela só é transformada em
conhecimento quando é movimentada nas relações instituídas com o mundo,
com a cultura, com o outro. Assim, o outro assume o papel de constituir
a criança esteticamente, dando-lhe a possibilidade de pensar e oferecer
retorno nas diferentes formas de linguagem. Assim, o outro precisa estar
presente para que a troca aconteça, isso Vygotsky (2005) chamou de Zona
de Desenvolvimento Proximal (ZDP) (Figura 4), que é a distância entre o
nível real e o potencial de desenvolvimento.

Figura 4. ZDP.
Fonte: Adaptado de Virna Catão.

A zona real de desenvolvimento é aquilo que a criança já internalizou


e de que faz uso, já a zona potencial é onde ela pode chegar. No caminho,
ocorre a zona de desenvolvimento proximal, em que a criança se relaciona
com o mundo, com a cultura, com os outros. No caso da instituição escolar
e, especificamente, do ensino, o professor é esse outro que vai aproximar a
criança do mundo e das coisas que estão nele, assumindo o papel de mediador.
A cultura escrita e sua função social desde a educação infantil 9

O mediador não é aquele que transmite o conhecimento, como no modelo


tradicional, e sim o que colabora, dirige, encaminha, provoca, desafia o aluno
para que progressivamente constitua o seu “estar no mundo”.
Nesse sentido, o trabalho com a oralidade, a leitura e a escrita não é um ato
solitário, e sim solidário. Ele é entendido como processo, como experiência
socialmente construída e explorada em toda a sua complexidade, possibilitando
às crianças o direito de acesso à cultura humana por meio da fala, da leitura
e da escrita nas instituições de educação infantil.

BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Resolução nº 05, de 17 de dezembro de 2009. Fixa


as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. 2009. Disponível em: <http://
portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=2296-
-cne-resolucao005-2009-pdf&Itemid=30192>. Acesso em: 11 jun. 2018.
BRASIL. Lei nº. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional. 1996. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
L9394.htm>. Acesso em: 12 jun. 2018.
BRASIL. Ministério da Educação. Base nacional comum curricular: educação é a base.
Brasília: MEC, 2017. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_
docman&view=download&alias=79601-anexo-texto-bncc-reexportado-pdf-
-2&category_slug=dezembro-2017-pdf&Itemid=30192>. Acesso em: 11 jun. 2018.
BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes curriculares nacionais para a educação in-
fantil. Brasília: MEC, 2010. Disponível em: <http://ndi.ufsc.br/files/2012/02/Diretrizes-
-Curriculares-para-a-E-I.pdf>. Acesso em: 11 jun. 2018.
BRASIL. Ministério de Educação e do Desporto. Referencial curricular nacional para
educação infantil. Brasília: MEC, 1998. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/
arquivos/pdf/rcnei_vol1.pdf>. Acesso em: 11 jun. 2018.
MALAGUZZI, L. Ao contrário, as cem existem. In: EDWARDS, C.; GANDINI, L.; FORMAN,
G. As cem linguagens da criança: a abordagem de Reggio Emilia na educação da
primeira infância. Porto Alegre: Artmed, 1999.
VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
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Leituras recomendadas
ESCOLA LOURENÇO CASTANHO. Reggio Emilia: uma experiência transformadora.
Estadão, dez. 2015. Disponível em: <https://educacao.estadao.com.br/blogs/lourenco-
-castanho/reggio-emilia-uma-experiencia-transformadora/>. Acesso em: 12 jun. 2018.
FERRARI, M. Lev Vygotsky, o teórico do ensino como processo social. Nova escola,
out. 2008. Disponível em: <https://novaescola.org.br/conteudo/382/lev-vygotsky-o-
-teorico-do-ensino-como-processo-social>. Acesso em: 12 jun. 2018.
FERREIRO, E. Reflexões sobre alfabetização. 24. ed. São Paulo: Cortez, 2001.
NOVA ESCOLA. Emilia Ferreiro: leitura e escrita na educação infantil. Youtube, 18 jun.
2013. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=0YY7D5p97w4>. Acesso
em: 12 jun. 2018.
SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica,
2000.
Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para
esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual
da Instituição, você encontra a obra na íntegra.

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