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Habitar em Desenhos e pinturas “O corpo tem necessidade do lugar, pois não se pode

– Helena Almeida conceber um corpo sem o lugar que ocupa; ele muda na sua
natureza; as suas mudanças só são possíveis no tempo e
por um movimento da natureza; as partes do corpo não
podem ser unidas sem harmonia.”
Hermes Trimegisto, Fragments des livres d’Hèrmes à
Ammon.

Sem.tit.1968. Tela.habitada.1976 Tela habitada. 1976


“Passei para a fotografia
através do desenho. Foi o
desenho dos fios
(colagens de fios de
crina) que me obrigou à
necessidade de ser
fotografada. Queria pegar
no fio com os dedos, para
demonstrar que a linha
no papel se tinha tornado
sólida, se tinha libertado
do papel, podia ser
sentida com os dedos,
entrava por nós, pelas
nossas casas, e só
através das fotos isso
podia ser exprimido e
representado.”

Sente-me.1979
“Creio que o que me fez sair do suporte, através de volumes, fios e de muitas outras formas,
foi sempre uma grande insatisfação em relação aos problemas do espaço. Quer enfrentando-
os, quer negando-os, eles têm sido a verdadeira constante de todos os meus trabalhos. Creio
estar perto da verdade se disser que pinto a pintura e desenho o desenho. Não se expõem,
mas expõem, podendo assim denunciar com mais ênfase o carácter ideológico da arte,
aceitando-o para melhor o negar.
Agora e através destas fotografias com desenhos a mesma negação é feita de várias
maneiras.
O que aqui exponho não são as impressões ou as marcas de “artista”, mas sim a
representação da renúncia a essa espécie de registos.
Mas essa renúncia é reencontrar outro espaço e cair noutra armadilha poética. Pois ao
colocar-me como “artista” no espaço real e ao espectador no espaço virtual, ele troca de lugar
com o suporte, tornando-se ele próprio espaço imaginário.
Ser uma irrealidade. Ser um apelo à possessão de alegrias íntimas. Ser o repouso
desenhado. Viver o interior quente duma linha curva. Reencontrar a paz num desenho
habitado.” Helena Almeida, 1976.
O desenho.1999
Em termos de uma antropologia filosófica e de
uma antropologia do corpo institui uma
acepção egóica da identidade pessoal que se
consubstancializa no tempo, no espaço, em si.
Em termos de uma sociologia arquitectónica,
designadamente, que concebe os parâmetros
comuns para uma convivência curial e
responsável.
Em termos psico-afectivos reside na
configuração do eu, na transposicionalidade
para os outros, na múltipla interpelação
narcísica.
Em termos culturais coincide em
convencionalismos epocais, denotativos de
uma praxis, de uma operatividade interferida
por factores idiossincráticos, de um
equacionamento localizado.
Em termos artísticos concretiza-se através de
diferentes mecanismos, procedimentos,
técnicas e estratégias que se adequam a
propósitos comunicacionais, que servem e
criam linguagens – plásticas ou performativas -
concretas.
Em termos estéticos permite uma
vivencialidade, uma experienciação, por parte,
quer de um eu que concebe, quer por parte de desenho habitado.1975
todos aqueles que, disponíveis, permeáveis,
recebem.
Mão atravessada por uma caixa interior.1980
Experiência do Lugar. 2001
Recapitulando: habitar situa-se, explicita-se, torna-se paradigma. Na arte portuguesa
habitar realiza-se como categoria estética privilegiada na obra de Helena Almeida.
Uma autora que, desde os anos 70, se apresenta em várias exposições individuais,
nomeadamente no Porto, ligada à Galeria Módulo.
O teor singular do seu trabalho imagético, implica a intervenção da pintura sobre a
fotografia, e desenrola-se em diferentes séries de intensa dramaticidade individual,
marcada pela concepção desmitificadora do suporte pictórico e pela capacidade de
transfigurar a imagem fotográfica, tomada na sua acepção hermenêutica: habitar é
permeável a diferentes apropriações imagéticas, decorrentes da visibilização do real
para se cumprir em formatos vários, em exigências várias, numa complementaridade
desejada que conjugasse o plano interior e o plano exterior para a desocultamento de
uma experienciação estética, de fundamento antropológico.

“Olhando um dia para os meus quadros nos quais esta dialéctica do dentro e do fora era mais viva,
essas duas forças apareceram-me bruscamente como duas formas equivalentes de inércia.”[1]

[1] Helena Almeida citada por José Ernesto de Sousa, Ser moderno...hoje, “Helena Almeida”.
Estudo para Dois Espaços. (4 fotografias a p/b), 1977
O âmbito epistemológico de habitar verifica-se magnificamente complexo, incongruente,
quase paradoxal, por vezes. Aborda uma pluralidade de campos ontológicos
circunstanciados, componentes localizadas em termos de pensamento e acção – que lhe
subjaz.
Habitar o desenho e/ou habitar a pintura é uma ideia, é uma acção e é uma obra; habitar
como actuação deliberada de um sujeito que cria algo.
Habitar é a prova da existência da autora, pois ninguém habita do mesmo modo um
desenho, uma pintura. Helena Almeida está lá. Habitar é estar lá, é ser lá – Dasein.
Habitar é ser, é estar, é existir. Habitar implica agir. Implica uma deliberação e uma
cumplicidade entre os materiais e a identidade.
Habitar pode ser um acto de afirmação ou um acto de negação. “Negar uma coisa é também
afirmá-la, e de certo modo confirmá-la.”[1]

[1] José Ernesto de Sousa, Ser moderno...em Portugal, “Helena Almeida e o vazio habitado”.

Estudo para Dois Espaços. (3 fotografias a p/b), 1977


Pintura habitada. 1977
A identidade pessoal da autora é a matriz de
todo esta experimentação que assumiu Dentro de mim. 1988
proporções notáveis de assunção
antropológica, sem se exaurir numa mera
sedução egóica ou numa encenação
maneirista, isenta de conteúdo existencialista.
Na sequência do ocorrido com outros autores
na arte contemporânea, a tridimensionalidade
exercida na obra bidimensionalizadora, é
vivenciada com valor experimental – no plano
afectivo, tomada a artista como sujeito
constitutivo de exploração artística — como
modelo e como substância para a fotografia. O
seu trabalho encontra pontos de associação,
em termos de procedimentos afins, com Cindy
Sherman que encena a sua incorporação nas
figuras simbólicas revisitadas. Não se trata da
fabricação de auto-retratos. Trata-se da
presentificação de um corpo próprio que
experimenta a pintura, o desnho, a
tridimensionalidade; que nelas mergulha e
nelas se institui obra. A título de confronto:
enquanto que o “corpo próprio” de Cindy
Sherman se impregna da assunção estética
autobiográfica, no caso de Helena Almeida, o
corpo revela-se, no seu âmago, tema e meio
artístico: local de encenações, elaboração
compósita que visa concretizar-se como
produto tridimensional para registo e pesquisa
imagética — de ordem conceptual - Body Art e
performance.
Biombo.1987 Rodapé.1988
Helena Almeida debruça-se, portanto, sobre o sítio de habitação da própria pintura; o
modo de habitar e de ser habitado; interroga o que é habitado pela pintura, o que é
habitado pelo desenho, o que é habitado pelo objectual; questiona o que é habitado e o que
– quem – habita:
Habitar: pinturas, objectos; Ser habitado: pinturas, objectos – simultaneamente.
O “habitar” significava na pintura, implicava na pintura a representação, a captação da
representação. Com as mutações flagrantes na história da arte do século XX europeu os
desígnios de habitar, analisados no domínio das artes plásticas, sofreram uma mutação
identificatória, colocando a definição estética do conceito, num plano não necessariamente
objectualizador.
Habitar não exige mais a paridade com os termos convencionais de uma linguagem
académica, mas tampouco exige a consentaneidade com qualquer afinidade
representacional de matriz figurativa. Passa a expandir-se na consignação de planos
epistemológicos superiores, passa a ser activado pelas determinações auto-críticas, afectas
a uma motivação intrínseca, passando pela situação do autor, passando pela consciência
dos espectadores.
A intencionalidade formalizada através da qual Helena Almeida se posiciona perante a
polissemia de “habitar” não deixa de constituir em si, também, um modelo configurável, a
partir do facto, do evento, de sua concretização. Em 1967, foram mostradas as pinturas-
objectos. O princípio subjacente nessas obras consistia, muito claramente, em interrogar a
relação entre aquilo que pertencia (ainda) à ordem da representação, isto é, ao espaço
interior – que a tela, utilizada como mero elemento, desde logo conotava – e aquilo que se
situava no domínio do espaço exterior, procurando fluir um no outro, numa coincidência
radicalizada entre arte e vida.
Corrimão.1988
“Tentar abrir um espaço, sair custe o que custar, é um sentimento muito forte nos meus
trabalhos. Passou a ser uma questão de condenação e de sobrevivência.
Sinto-me quási sempre no limiar onde esses dois espaços se encontram, esperam,
hesitam e vibram. É uma tentação aí ficar e assistir ao meu próprio processo, vivendo
um sonho com duas direcções. Mas isso é intolerável e com urgência, qualquer coisa
se liberta em mim como se quisesse sair para a frente de mim própria.
De toda a maneira já consegui sair pela ponta dos meus dedos.” Helena Almeida -
Galeria Módulo, Porto, 1978.
Frisos.1987
Da objectualidade passou à instalação, de cariz
cenográfico e o quadro remanescente foi
antropoformizado. A acentuação desta
antropomorfização foi assumida pelo corpo da
própria pintora.[1]

[1] Rui Mário Gonçalves, Arte portuguesa 1992, p.153

Noiva. 1969
Sente-me.1979.detalhe
Dentro de Mim, 2000
“Mas agora já não há essa saída
delicada e quase ritual “pela ponta dos
meus dedos”. Nestes trabalhos quis dar
a sentir, por intermédio do meu corpo, o
percurso e as marcas da saída rasgada
dum ser misto, metade-corpo, metade-
coisa, corpo-coisa, corpo-coisa negra,
viajando e confundindo-se com o espaço,
sendo ele próprio espaço e assim
inutilizando a Forma. (...) Quis registá-lo
emergindo dum involúcro, a sua antiga
habitação que abandona, misturando-se
com alegria no negro, formando um todo
sem Forma, vibrante e ofensivo, um
espaço que é. Ele move-se deslocando o
espaço consigo numa alquimia secreta,
com um prazer quase sonoro, deixando
no seu rastro uma sinfonia aguda de dois
espaços.” Helena Almeida, 1981.

Sem título. 1994.95


Eu Estou Aqui (2005).
a série fotográfica
1. Corpo – local de culto:

Pintura Habitada.1975
saída negra.1980
2. Corpo aurático:

Negro agudo.1981
2. Corpo aurático:

Sem. tit,1996
3. Corpo exploratório & por exemplo a cadeira…

Dos Espaços (C). 2006


3. Corpo exploratório & por
exemplo a cadeira…

Experiência do Lugar II.2004 Sem.tit.1970


3. Corpo exploratório & por exemplo a cadeira…

[Dos Espaços (B). 2006] e [Pina Bausch, Café Muller. 1978, 40 minutos]
4. Corpo real, corpo abstracto:

A experiência do lugar.2001
2 espaços, 2006.1 2 espaços, 2006.2
the hug.2007
5. Corpo agrilhoado:

Ouve-me. 1979

Ouve-me.1980
ouve-me.1979
estudo para 2 espaços.1977.1,2,3,4 estudo para 2 espaços.1977.5,6,7,8
6. Corpo-espaço:

Pintura habitada.1976
pintura habitada.1976.1,2
pintura habitada.1976.3,4,5,6,7
7. Corpo – forma e figura:

Dentro de mim. 2001

A casa.1984
a.casa.1983 a.casa.1983
a.casa.1983
8. Corpo-síntese:

Tela Rosa para vestir, 1969 Tela.habitada.1977


9. Corpo-obra(-de-arte):

Desenho.1999 Dentro de mim.1998


9. Corpo-obra(-de-arte):

dias quase tranquilos, 1990


10. Corpo trimensionalizado:

Ponto de fuga.1982 O atelier.1983


11. Corpos-representação:

Sem Título (18 fotografias a p/b), 1996-97


11. Corpos-representação:

dentro de mim.2000
11. Corpos-representação:

Sem.tit. 1994.95.
20 fotgs.220x110
12. Corpo conclusivo:

Dias quase tranquilos.1985


negro agudo.1983.1,2
negro agudo.1983.3,4
13. Corpo simbólico:

Rodapé. 1999 Dentro de mim.1998


13. Corpo simbólico:

a casa.1981
14. Corpo mítico:

seduzir.2001
14. Corpo mítico:

Voar. 2001

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