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Martins Fontes
São Paulo 1997
Copyright © Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,
São Paulo, 1997, para a presente edição
I a edição
outubro de 1997
Preparação do original
Vadim Valentinovitch Nikitin
R evisão gráfica
Ana Maria de O. Mendes Barbosa
Produção gráfica
Geraldo Alves
Paginação/F otolitos
Studio 3 Desenvolvimento Editorial
Capa
Alexandre M artins Fontes
ISB N 85-336-0763-6
97-4416________________________________________ C D D -415
índices para catálogo sistemático:
I. G ram ática funcional : L inguística 415
Introdução í
Notas 149
Referências bibliográficas 151
Introdução
introdução • 1
denominador comum que pode ser rastreado nas dife
rentes proposições existentes, de tal modo que é possí
vel a caracterização básica do que seja uma teoria fun-
cionalista da linguagem.
Um bom modo de sintetizar o pensamento funda
mental das teorias funcionalistas é lembrar o funciona-
lista Martinet (1978), que aponta como objeto da ver
dadeira lingüística a determinação do modo como as
pessoas conseguem comunicar-se pela língua, e que
afirma (Martinet, 1994, p. 14) que o que “deve cons
tantemente guiar o lingüista” é a “competência comu
nicativa”, já que “toda língua se impõe (...), tanto em
seu funcionamento como em sua evolução, como um
instrumento de comunicação da experiência”, enten
dendo-se como experiência “tudo o que [o homem]
sente, o que ele percebe, o que ele compreende em to
dos os momentos de sua vida”.
Qualquer abordagem funcionalista de uma língua
natural, na verdade, tem como questão básica de inte
resse a verificação de como se obtém a comunicação
com essa língua, isto é, a verificação do modo como os
usuários da língua se comunicam eficientemente. Em
princípio se poderia dizer, pois, que o que o tratamento
funcionalista de uma língua natural põe sob exame é a
competência comunicativa. Isso implica considerar as
estruturas das expressões lingüísticas como configura
ções de funções, sendo cada uma das funções vista co
mo um diferente modo de significação na oração. Ao
lado da noção essencial de que a linguagem é um ins
trumento de comunicação, encontra-se nos funciona
listas um tratamento funcional da própria organização
interna da linguagem.
2 • introdução
Como diz Givón, ao abrir sua obra Funcionalismo
e linguagem (Givón, 1995), todos os funcionalistas assu
mem o postulado da não-autonomia: a língua (e a gra
mática) não pode ser descrita como um sistema autô
nomo, já que a gramática não pode ser entendida sem
referência a parâmetros como cognição e comunicação,
processamento mental, interação social e cultura, mu
dança e variação, aquisição e evolução. A gramática
funcional, aponta Nichols (1984, p. 97), embora anali
se a estrutura gramatical, inclui na análise toda a situa
ção comunicativa: o propósito do evento de fala, seus
participantes e seu contexto discursivo.
Resumindo, com Gebruers (1987, p. 129), pode-se
dizer que o que caracteriza a concepção de linguagem
defendida pela gramática funcional —bem como pela
Escola de Praga —é seu caráter não apenas funcional
como também dinâmico. Ela é funcional porque não
separa o sistema lingüístico e suas peças das funções
que têm de preencher, e é dinâmica porque reconhece,
na instabilidade da relação entre estrutura e função, a
força dinâmica que está por detrás do constante desen
volvimento da linguagem.
A principal tarefa de uma “gramática funcional”,
como acentua de Beaugrande (1993, cap. III), é “fazer
correlações ricas entre forma e significado dentro do con
texto global do discurso” (p. 3).
introdução • 3
Capítulo 1 A questão das funções
da linguagem
capítulo 1 *5
nicação de sua experiência uns aos outros” (Martinet,
1994, p.13).
Diz Dillinger (1991) que , no estudo da linguagem,
não se usa função em seu sentido matemático de uma
relação especial entre dois conjuntos na qual todos os
elem entos de um conjunto (o domínio) têm apenas
um elemento correspondente no outro conjunto (o con-
tradomínio). Pelo contrário, na lingüística o termo fu n
ção se refere aos casos que a álgebra denomina como
relações (Dillinger cita Brainerd, 1971 e Wall, 1972),
casos em que alguns elementos do domínio teriam ne
nhum ou mais de um elemento correspondente no con-
tradomínio. Assim, na lingüística usa-se função no sen
tido de “relação”. E em relação às línguas (Dillinger
cita Garvin, 1 9 7 8 função pode designar as relações:
a) entre uma forma e outra (função interna);
b) entre uma forma e seu significado (função semân
tica);
c) entre o sistema de formas e seu contexto (função
externa).
Assim, da mesma maneira que “formalismo” não
distingue claramente entre “o estudo da forma lingüís
tica” e “o uso de dispositivos formais”, “funcionalismo”
não identifica claramente quais funções ou relações serão
objeto de estudo. Os gerativistas, por exemplo, seriam
“funcionalistas” p a r excellence no sentido de (a), mas
no binômio forma/função o que se privilegia é o tipo (c),
isto é, a função social-comunicativa.
Nichols (1984) distingue cinco sentidos do termo
função —relacionados com cinco diferentes componen
tes da gramática —que são: função/interdependência,
função/propósito, função/contexto, função/relação e fun-
ção/significado. Observa, entretanto, que “a maioria das
6 • capítulo I
obras fúncionalistas usa função apenas nos sentidos de
propósito e de contexto, e não distingue entre os dois”
(p. 101).
Os termos função e funcional são muito correntes
na produção da Escola Lingüística de Praga, mas veri
ficar a interpretação que é dada a esses termos, segun
do Danes (1987, p. 4), não é uma tarefa fácil. Em pri
meiro lugar, há, nessas obras, muito poucas tentativas
de definição dos termos usados; em segundo lugar, o
conceito é aplicado a variados domínios e fenômenos
da linguagem, e, por isso, sofre muitas modificações,
aparecendo com variações nocionais; em terceiro lugar,
há diferenças e vacilações entre os diferentes autores;
em quarto lugar, o termo funcional é usado, em alguns
casos, num sentido muito vago, como uma espécie de
simples rótulo; e, em quinto lugar, os termos função e
funcional não são os únicos relevantes para a interpre
tação da “abordagem fúncionalista”: de um lado, outros
termos provindos da interpretação finalista (teleológica,
teleonômica), como meios, fin s, instrumento, eficiên
cia, necessidades de expressão, servir para evidenciam
a abordagem finalista; de outro lado, essa abordagem
pode estar presente e ser determinável na discussão cien
tífica dos fatos da língua sem o uso explícito de termos
teleonômicos (por exemplo, expressões com adjetivos
como traços distintivos/expressivos/... devem ser inter
pretadas como “traços que têm uma função distinti-
va/expressiva/...”).
Anscombre & Zaccaria (1990) citam as Thèses
(1929) (“la langue est un système d ’expressions appro-
priés à un but”) para afirm ar que, na Escola de Praga, a
“função” de uma entidade lingüística é constituída pelo
capítulo 1 ‘ 7
papel que ela desem penha no processo comunicativo,
afirm ação baseada na concepção da língua com o “có
digo” .
Danes (1987, pp. 4-5) m ostra que a m aioria dos
autores da ELP usou o term o fu n çã o no sentido de “ta
refas” que a linguagem ou seus componentes desem pe
nham, ou “propósito” ao qual eles servem, sentido que
se distingue daquele sentido lógico-m atem ático que o
term o tem nos Prolegomena de Hjelmslev (1943). A
Jakobson, afinal, diz Danes (1987, p. 7), se deveria um
tratam ento do conceito de fu n ç ã o , em Lingüística, den
tro do quadro teórico “finalista” ou “teleológico”. No
quadro geral da teleologia, ou teleonom ia, existe uma
asserção básica: (1) “Um fenômeno jc é um meio para a
realização de um fim F ”. Esse princípio pode ser refor
m ulado de form a m ais breve introduzindo-se a noção
de “função” (teleonômica): (2) Um fenômeno x tem uma
função f ”. Assim, a propriedade “ter a função f ” apare
ce como idêntica à propriedade “servir com o m eio para
o fim (propósito) F ”. Desse m odo, as asserções (1) e
(2) são equivalentes. A noção de “função” inclui o pro
pósito, isto é, os fins, e tam bém o meio, isto é, os porta
dores da função.
Na visão funcionalista, como afirma Halliday (1973a,
p. 104), a noção de “função” não se refere aos papéis que
desem penham as classes de palavras ou os sintagm as
dentro da estrutura das unidades maiores, m as ao papel
que a linguagem desempenha na vida dos indivíduos, ser
vindo a certos tipos universais de demanda, que são mui
tos e variados.
8 • capitulo I
1.2 A proposição de "funções" da linguagem
capitulo l • 9
posição de Bühler. Em geral se esquece, entretanto, que
o termo função nem sempre tem o mesmo sentido e a
mesma abrangência, e que existem diferentes critérios
e diferentes níveis de generalização nas diferentes clas
sificações oferecidas dentro de cada quadro teórico.
Especificamente para a Escola de Praga lembrou-
se, acima, o problema que constitui a interpretação do
termo função. Na proposta de Mathesius (1923, apud
Danes, 1987, pp. 11-12), a função externa da linguagem
apontada como básica é a comunicativa, à qual se segue
(e com a qual se mescla), como secundária, a expressi
va, que se refere à manifestação espontânea das emoções
do falante. Enunciados de caráter puramente comunica
tivo, ocorrentes num discurso científico, são conside
rados casos extremos, e constituem os únicos casos em
relação aos quais Mathesius fala de uma função “de re
presentação”, no sentido de Bühler. A “função comuni
cativa” a que se refere Mathesius, na verdade, cobre a
“representação” e o “apelo” de Bühler, já que a própria
comunicação é vista em duas variedades: a comunica
ção pura e simples (informar ou declarar) e a comuni
cação de um apelo (ordenar ou perguntar).
As Thèses da Escola de Praga, de 1929, como indi
ca Danes (1987, p. 12), estabelecem diferentemente as
funções da linguagem, com evidente inspiração da Es
cola Formalista Russa. O ponto de vista básico se assen
ta no modo como essas funções e seus modos de reali
zação alteram a estrutura fônica, gramatical e léxica da
língua. Em vez de uma classificação de funções, apre
senta-se uma classificação de línguas funcionais, que
traz oposições binárias, como interna/externa, intelec-
tual/emocional, prática/teórica, etc.
10 • capítulo 1
Na verdade, as propostas de conjuntos de funções
da linguagem são diversas, nos diversos autores da Es
cola Lingüística de Praga.
Roman Jakobson adiciona às três funções de Bühler
outras tantas, constituindo uma série de seis funções da
linguagem, cada uma delas mais diretamente ligada a um
dos fatores intervenientes no ato de comunicação verbal:
—ao contexto: função referencial;
—ao remetente: função emotiva;
—ao destinatário: função conativa;
—ao contato: função fática;
—ao código: função metalingüística;
—à mensagem: função poética.
Para Jakobson (1969), em cada mensagem se incor
pora um “feixe” de funções da linguagem; entre os seis
fatores envolvidos no processo de comunicação, um é
destacado num determinado enunciado, outro é enfati
zado noutro enunciado, e assim por diante, configuran
do-se, pois, em cada mensagem, a existência de uma
função primária e outras secundárias, isto é, uma hie
rarquia de funções.
Na escola britânica de John Rupert Firth, Michael
Halliday e seguidores, o conceito de “função”, como
aponta de Beaugrande (1993, cap. I, p. 20), é semelhante
ao dos tchecoslovacos, embora a formação daqueles estu
diosos não tenha sido em línguas eslavas, mas em língua
inglesa e em línguas orientais. Tal conceito derivaria
do grande interesse em “prosódia” ou “entonação”, e
ao compromisso de, nos termos de Firth, “tratar o sig
nificado por meio de uma abordagem completa da dis
ciplina” e “em todos os níveis de análise”. O sistema da
língua continua a ser visto como uma “rede” de opções
capitulo 1 • 11
cujas funções controlam as operações de escolha e ar
ranjo.
Halliday (1973a) afirma que usa o termo função do
mesmo modo que Bühler, embora não se mova na m es
m a teoria, já que o esquema de Bühler tem um ponto de
vista psicológico, pondo sob consideração as funções a
que a linguagem serve na vida do indivíduo. Para Halli
day (1978, p. 48), Bühler tem interesse psicolingüístico,
não buscando explicar a natureza do sistema lingüísti-
co em termos funcionais, mas usando a linguagem para
investigar coisas que estão fora dela. Halliday, diferen
temente, insiste em uma teoria não apenas extrínseca,
mas também intrínseca, das funções da linguagem, uma
teoria segundo a qual a multiplicidade funcional se re
flete na organização interna da língua, e a investigação
da estrutura lingüística revela, de algum modo, as vá
rias necessidades a que a linguagem serve. A pluralida
de funcional se constrói claramente na estrutura lin
güística e forma a base de sua organização semântica e
sintática, ou seja, lexical e gramatical.
Halliday (1970, 1973a, 1973b, 1977) faz uma pro
posição de funções (ou, mais precisamente, de “meta-
funções”) da linguagem que vem sendo invocada, em
geral, nos trabalhos sobre língua e linguagem. Para ele,
a linguagem serve, em primeiro lugar, à expressão do con
teúdo, isto é, tem uma função “ideacional”. Isso corres
ponde ao que comumente se denomina significado cogni
tivo, embora, para Halliday, esse termo seja enganador,
já que existe elemento cognitivo em todas as funções
lingüísticas. É por meio dessa função que o falante e o
ouvinte organizam e incorporam na língua sua experiên
cia dos fenômenos do mundo real, o que inclui sua expe
1 2 * capítulo 1
riência dos fenômenos do mundo interno da própria cons
ciência, ou seja, suas reações, cognições, percepções,
assim como seus atos lingüísticos de falar e de entender.
Dentro dessa função ideacional da linguagem reconhe
cem-se duas subfunções, a “experiencial” e a “lógica”.
Em segundo lugar, a linguagem serve à função “inter
pessoal”, isto é, o falante usa a linguagem como um meio
de participar do evento de fala: ele expressa seu julga
mento pessoal e suas atitudes, assim como as relações
que estabelece entre si próprio e o ouvinte, em particu
lar, o papel comunicativo que assume. Isso significa que
a função interpessoal subsume tanto a função expressi
va como a conativa de Bühler, as quais, como diz Halliday
(1973a), não são realmente distintas no sistema lingüís-
tico. O elemento interpessoal da linguagem, além disso,
vai além das funções retóricas, servindo, num contexto
mais amplo, ao estabelecimento e à manutenção dos pa
péis sociais, que, afinal, são inerentes à linguagem. A
função interpessoal é, pois, interacional e pessoal, cons
tituindo um componente da linguagem que serve para
organizar e expressar tanto o mundo interno como o mun
do externo do indivíduo.
Embora do ponto de vista da abordagem instrumen
tal da linguagem essas duas funções pareçam suficientes,
existe uma terceira função que é, por sua vez, instru
mental para as outras duas. Trata-se da função “textual”,
que diz respeito à criação do texto; por ela, a linguagem
contextualiza as unidades lingüísticas, fazendo-as ope
rar no co-texto e na situação: o discurso se torna possí
vel porque o emissor pode produzir um texto, e o ouvinte
ou leitor pode reconhecê-lo. Assim como a sentença é
uma unidade sintática, o texto é a unidade operacional,
capítulo / • 13
e a função textual não se limita simplesmente ao esta
belecimento de relações entre as frases, referindo-se,
antes, à organização interna da frase, ao seu significa
do como mensagem, tanto em si mesma como na sua re
lação com o contexto.
Diz Halliday (1973a) que, sendo interna à lingua
gem, a função textual não é comumente levada em conta
quando o objeto de investigação é extrínseco. Ela se asso
cia especificamente, entretanto, ao que se diz “funcional”
nos trabalhos dos linguistas da Escola de Praga, que
desenvolveram as idéias de Bühler dentro da teoria lin-
güística.
1 4 * capitulo 1
Capítulo 2 O funcionalismo
em linguística
capitulo 2 * 1 5
Para Prideaux (1987), um aspecto fundamental do
funcionalismo que o opõe ao estruturalismo americano é
exatamente o reconhecimento de que a linguagem não é
um fenômeno isolado, mas, pelo contrário, serve a uma
variedade de propósitos, dos quais “efetuar a comunica
ção” não é o último. Como aponta Camacho (1994, p. 34),
a concepção da linguagem como atividade cooperativa
entre falantes reais constitui o princípio básico que opõe o
funcionalismo ao modelo que Bakhtin (1979) configurou
como objetivismo abstrato, o qual vê a língua como um
sistema estável, objetivo e externo ao indivíduo.
Na verdade, a gramática funcional tem sempre em
consideração o uso das expressões lingüísticas na intera-
ção verbal, o que pressupõe uma~ certa"pfãgmãtização do
componente sintático-semântico dõ modelo lingüístico.
Essa visão funcional é a que se encontra, desde o começo
do século, na Escola Lingüística de Praga, que, para
Dirven e Fried (1987, p. X), foi “sociolingüística avant
la lettre
16 • capitulo 2
fonologia na base e a semântica no topo, as duas inter
mediadas pelo léxico e pela sintaxe. Ainda com a Esco
la de Praga, Halliday, bem como Dik, entende que os itens
que se estruturam nos enunciados_são_multifuncionais,
não podendòEonsidêfar-se esgotada uma descrição de
estrutura que se limite à indicação das funções grama
ticais. Finalmente, como os lingüistas de Praga, Halli
day e Dik buscam construir a teoria no interior do pró-
'pnõsistem a, o que revela, fundamentalmente, uma con
sideração funcional da própria natureza da linguagem.
Escola Lingüística de Praga é a designação que se
dá a um grupo de estudiosos que começou a atuar antes
de 193 O1, para os quais a linguagem, acima de tudo, per
mite ao homem reação e referência à realidade extralin-
güístícã. As frases são vistas como unidades comunica
tivas que veiculam informações, ao mesmo tempo que
estabelecem ligação com a situação de fala e com o pró
prio texto lingüístico. Nesse sentido, o que se analisa são
as frases efetivamente realizadas, para cuja interpretação
se atribui especial importância ao contexto, tanto verbal
como não-verbal. Concebe-se que, mesmo no nível do
enunciado realizado, podem encontrar-se regularidades
que licenciam tentativas de organização e de descrição.
A abordagem da Escola de Praga é caracterizada
como um estruturalismo funcional; é do domínio comum a
afirmação das Thèses (1929) do Círculo Lingüístico de
Praga de que a língua é um sistema funcional, no qual apa
recem, lado a lado, o estrutural (sistêmico) e o funcional.
A aplicação dos termos jimcionalismo e abordagem
funcional, entretanto, como observa Ivir (1987, p. 471),
não se restringe à Escola de Praga; esses termos são usados
em referência a qualquer abordagem ligada aos fins a que
as unidades lingüísticas servem, isto é, ligada às funções
■apitulo 2 • 17
dos meios lingüísticos de expressão. Na verdade, embora o
conceito de funcionalismo em linguística esteja indubita
velmente ligado à Escola Lingüística de Praga, várias ou
tras abordagens “funcionais” surgiram no Ocidente e no
Oriente, e o funcionalismo tomou, depois, vida própria e
independente.
A visão funcional da Escola de Praga está na defi
nição de língua, vista como um “sistema de meios apro
priados a um fim ” (Thèses, 1929; apud Ilari, 1992,
p. 25), e„um “sistema de sistemas” (Ilari, 1992, p. 24),
já que. a cada função corresponde um subsistema. Dife-
rentemente do que se postula nas concepçõesestrutura-
listas em geral, todos esses subsistemas dizemrespeito
à mesma unidade, a frase. Distinguem-se “níveis sintá
ticos” de organização da frase, abrigando-se nesses níveis
a semântica - uma gramática de casos - e a pragmática
- uma gramática da comunicação, definida pela ima
gem do interlocutor. Nessa linha, dedicou-se atenção es
pecial à “perspectiva funcional da frase”, ou seja, à
organização das palavras nas frases, vista na sua fun
ção de organização da informação. A frase é reconheci
da, desse modo, como uma unidade susceptível de aná
lise não apenas nos níveis fonológico, morfológico e
sintático, mas também no nível comunicativo. Essa aná
lise biparte a frase em um elemento comunicativamen-
te estático, o tema, e um elemento comunicativamente di
nâmico, o rema ou comentário. O tema tem baixa infor-
matividade porque tem sua referência já estabelecida
(ou facilmente recuperável), e o rema, nas condições
opostas, tem maior informatividade. Na língua a cuja
análise os estudiosos da Escola de Praga cspccialmente
se dedicavam, o tcheco, a ordem das palavras constitui
o principal fator de organização informativa da frase,
1 8 * capítulo 2
razão pela qual ela foi alvo privilegiado de exame. O
que se buscava, afinal, nessa análise, era a avaliação da
frase efetivamente realizada, com determinação da sua
função no ato de comunicação, e com base no princípio
de não biunivocidade entre formas e funções.
capítulo 2 * 1 9
Nesse modelo, a expressão lingüística é função:
a) da intenção do falante;
b) da informação pragmática do falante;
c) da antecipação que ele faz da interpretação do
destinatário.
E a interpretação do destinatário é função:
a) da expressão lingüística;
b) da informação pragmática do destinatário;
c) da sua conjetura sobre a intenção comunicativa
que o falante tenha tido.
Em qualquer estágio da interação verbal o falante e
o destinatário têm informação pragmática. Quando o fa
lante diz algo a seu destinatário, sua intenção é provocar
alguma modificação na informação pragmática dele.
Para isso, o falante tem de formar alguma espécie de
intenção comunicativa, uma espécie de plano mental con
cernente à modificação particular que ele quer provo
car na informação pragmática do destinatário. O pro
blema do falante é formular sua intenção de tal modo que
tenha alguma chance de levar o destinatário a desejar a
modificação da sua informação pragmática do mesmo
modo como o falante a pretende. O falante, então, tenta
antecipar a interpretação que o destinatário, num deter
minado estado da sua informação pragmática, possi
velmente atribuirá à sua expressão lingüística.
É importante observar que a relação entre a inten
ção do falante e a interpretação do destinatário é me
diada, mas não estabelecida, pela expressão lingüísti
ca. Do ponto de vista do destinatário, isso significa que
a interpretação será apenas em parte baseada na infor
mação contida na expressão lingüística em si; igualmen
te importante é a informação que o destinatário já pos
20 • capitulo 2
sui, e pela qual ele interpreta a informação lingüística.
Do ponto de vista do falante, isso significa que a expres
são lingüística não precisa ser uma verbalização plena
da sua intenção; dada a informação que o falante tem
acerca da informação que o destinatário tem no momen
to da fala, uma verbalização parcial será normalmente
suficiente, sendo que, muitas vezes, uma verbalização
não-direta pode ser mais efetiva do que uma expressão
direta da intenção.
Na formulação de Dik (1989a, p. 3), a interação
verbal - que é a interação iocial estabelecida por .meio
da linguagem - constitui uma forma deatividade coo
perativa estruturada: “estruturada”, porque é governa
da por regras, normas e convenções, e “cooperativa”,
porque necessita de, pelo menos, dois participantes pa
ra atingir seus objetivos. Na interação verbal, os parti
cipantes se utilizam de certos instrumentos, as “expres
sões lingüísticas”. Desse modo, nas palavras de Dik, a
lingüística tem de ocupar-se de dois tipos de sistemas de
regras, as regras semânticas, sintáticas, morfológicas e
fonológicas (que governam a constituição das expres
sões lingüísticas) e as regras pragmáticas (que gover
nam os padrões de interação verbal em que essas expres
sões lingüísticas são usadas).
capitulo 2 • 21
I ' J
22 • capítulo 2
ainda, outros fenômenos que parecem apresentar dis-
funcionalidade, por exemplo, a ocorrência de posposi-
ção em uma língua que não abriga essa ordem.
A ordem das palavras na sentença é vista como o re
flexo da tentativa do falante de trabalhar com vários fa
tores (funcionais, afuncionais e disfuncionais) que podem
operar em paralelo ou podem conflitar um com o outro.
A gramática funcional, na verdade, não confere uma es
trutura sintática inequívoca à sentença, e, com certeza,
não lhe confere uma estrutura representável por meio
de diagramas de árvores, ou de colchetes ou parênteses
rotulados. Isso não significa que na gramática funcio
nal não se faça formalização gramatical. Na verdade,
as formalizações da gramática funcional, diz Mackenzie
(op. cií.), já levaram alguns críticos a entender que ela
se enquadra no “paradigma formal” em lingüística. Na
perspectiva funcionalista, porém, não se considera que
uma descrição da estrutura da sentença seja suficiente
para determinar o som e o significado da expressão lin
güística, entendendo-se que a descrição completa pre
cisa incluir referência ao falante, ao ouvinte e a seus
papéis e seu estatuto dentro da situação de interação de
terminada socioculturalmente.
capítulo 2 • 23
um para estudar fonologia e outro para morfologia, um
para sintaxe, um para semântica e um para pragmáti
ca” (p. 2).
A integração de componentes diversos é uma das
características de qualquer paradigma funcionalista, mes
mo os menos moderados, que estabelecem uma subordi
nação dos demais componentes ao componente pragmá
tico. GisaánX! 984, p. 40) declara o objetivo de fornecer
“um quadro explícito, sistemático e abrangente de sin
taxe, semântica e pragmática unificadas como um todo”
(p. vii). Ele afirma que a gramática não constitui uma
mera lista não-ordenada de domínios funcionais não-
relacionados. Pelo contrário, ela parece ser intemamente
estruturada como um organismo, dentro do qual alguns
subsistemas são mais proximamente relacionados entre
si —tanto em função como em estrutura —do que outros,
e no qual existe uma organização hierárquica. A sinta
xe é vista como a codificação de dois domínios funcio
nais distintos: a semântica (proposicional) e apragmá-
tica (discursiva). Uma sentença que presumivelmente
contenha apenas informação semântica e que não apre
sente função pragmática realmente não existe na comu
nicação, apenas pode representar um segmento artifi
cialmente isolado de seu contexto, para fins de análise.
Apropria transitividade é vista como um metafenômeno
responsável pela codificação sintático-estrutural das fun
ções de caso semântico e pragmático. Como a função
primeira da linguagem é a de estabelecer a comunicação
entre os homens, todas as manifestações lingüísticas de
vem apresentar estrutura temática coerente, estrutura que
é observável tanto no âmbito da frase como no do dis
curso multiproposicional. Em primeiro lugar, deve obser
24 • capitulo 2
var-se a estrutura hierárquica das proposições do dis
curso: se o homem se expressa por meio de discursos
multiproposicionais, é necessário observar-se não ape
nas o modo como se dá a concatenação das proposições
como também as regras textuais a que as proposições de
vem ser submetidas, para que não haja quebra da estru
tura temática e para que haja coesão e coerência na com
posição lingüística. Em segundo lugar, deve-se observar
o sistema de manutenção de caso e o sistema de manu
tenção ou de continuidade de tópico; a codificação sin-
tático-estrutural da língua reflete um sistema de topici-
dade que decorre dos processos de transitividade, sen
do, por exemplo, o sujeito e o objeto dois elementos que
pertencem ao sistema de marcação de caso e que atuam
no sistema de continuidade de tópico: o sujeito, que é o
tópico oracional primário, codifica o tópico discursivo
mais importante, mais recorrente e mais contínuo; o obje
to direto, que é o tópico oracional secundário, codifica
o segundo tópico mais recorrente e contínuo. A partir des
sas noções, Givón estabelece, para as diversas funções de
caso semântico, uma hierarquia de acesso a tópico / a su
jeito, acesso que corresponde ao estabelecimento da fun
ção de caso pragmático.
Mais moderada é a proposta de Dik, cuja gramáti-
ca funcional constitui uma teoria de componentes inte
grados, uma teoria funcional da sintaxe e da semântica,
a qual, entretanto, só pode ter um desenvolvimento sa
tisfatório dentro de uma teoria pragmática, isto é, den
tro de uma teoria da interação verbal. Requer-se dela,
pois; que seja “pragmaticamente adequada” (Dik, 1978,
p. 6), embora se reconheça que a linguagem só pode
funcionar comunicativamente por meio dos arranjos sin-
capítulo 2 * 25
taticamente estruturados (Dik, 1980, p. 2). A especifi
cação gramatical de uma expressão, por outro lado, inclui
a descrição semântica, não se admitindo a existência de
uma sintaxe autônoma (Dik, 1979, p. 2)JDik organiza a
estrutura do predicado (à qualjse reduzem todas ás ex
pressões lingüísticas) com a intervenção de três tipos
de funções:
- semânticas (papéis dos referentes dos termos nos estado-
de-coisas designados pela_predicação): Agente, Meta,
Recebedor, etc.;
- sintáticas (especificação da perspectiva a partir da qual
o estado-de-coisas é apresentado na expressão linguís
tica): Sujeito e Objeto;
- pragmáticas (estatuto informacional de um constituinte
dentro do contexto comunicativo mais amplo em que êle
ocorre): tema, Tópico, Foco, etc.
26 • capítulo 2
J. ' s
capítulo 2 • 27
ção da dimensão temporal, ou a hipotaxe oracional, que,
por sua vez, podem correlacionar-se com determinados
usos, como, por exemplo, o de formas finitas imperfec-
tivas, ou de formas reduzidas de verbos. Ligam-se à no
ção discursiva de figura como plano de maior saliência,
por outro lado, noções gramaticais opostas, como a maior
transitividade, ou a maximização do relacionamento dêi-
tico-temporal, refletida, por exemplo, no uso de formas
finitas perfectivas.
Numa obra coletiva que constitui um marco no mo
vimento pela colocação do discurso como foco na inves
tigação lingüística, Givón (1979b) apresenta a convicção
de que a estrutura da linguagem não pode ser adequa
damente estudada, descrita, compreendida ou explicada
sem referência à função comunicativa. Nos postulados
então expostos - apontados como aceitos, em geral, pe
los participantes do “UCLA Symposium on Discourse
and Syntax”, de 1977, cujos trabalhos se publicam na
obra - rejeita-se a distinção metodológica entre “com
petência” e “atuação”, desconsiderando-se a utilidade
do estudo de orações artificialmente produzidas e des
denhando-se o “formalismo pelo formalismo”. E num
artigo dentro dessa obra coletiva, Givón ( 1979b), ainda
numa posição de funcionalista extremado - embora faça
uma retratação em relação a obras anteriores e declare
que não rejeita a sintaxe - , sugere que as propriedades
sintáticas, como sujeito, voz, orações relativas* subor
dinação, morfologia flexionai, etc., nascem das proprie
dades do discurso.
Admitir determinações discursivas na sintaxe equi
vale a incorporar a pragmática na gramática. Uma indi
cação exemplar é a de Bolinger (1979), para quem “o
28 • capitulo 2
principal erro dos tratamentos formais da pronominali-
zação consistiu em considerar a presença de um prono
me no lugar de um nome como uma espécie de processo
mecânico causado pela presença do nome em uma ou
em outra localização, e não como uma escolha pragmá
tica entre um nominal com um conteúdo semântico mais
rico e um nominal com um conteúdo mais pobre”.
Na afirmação de Du Bois (1993a, p. 8), as relações
entre discurso, ou uso, e gramática assim se equacio
nam: a) a gramática molda o discurso; b) o discurso mol
da a gramática. Ou: “a gramática é feita à imagem do
discurso”; mas:.“o discurso nunca é observado sem a rou~
pagem da gramática” (p. 11).
2 .5 .2 A pragmática na gramática
capitulo 2 • 29
Sem medo de errar, pode-se aceitar o que diz Auwera
(1989) sobre a gramática funcional: que talvez seja o mo
delo gramatical que obteve a maior integração da pragmá
tica na gramática. Para Auwera, funcionalista da linha de
Dik, há três formas possíveis de associação da pragmática
com a Gramática (sendo o termo Gramática, com inicial
maiuscula, usado como designador de uma disciplina que
não se preocupa com uma língua particular, e que é, pois,
um “sinônimo de Gramática Universal”):
(i) A pragmática é uma perspectiva da lingüística como
um todo, e, assim, também, da Gramática. A pragmá
tica constitui uma perspectiva funcional de qualquer
aspecto da língua; é a preocupação do fonologista, do
sintaticista, do sociolingüista ou do neurolingüista, fo
calizando a apropriabilidade ou a adaptabilidade da
língua à sua ambiência.
(ii) A pragmática é um componente da lingüística, mas
não da Gramática. Há uma competência gramatical (o
conhecimento da forma e do significado) e uma com
petência “pragmática” (o conhecimento das condições
e do modo de uso apropriado). A gramática da língua
caracteriza o instrumento, determinando as proprie
dades físicas e semânticas das orações, expressando,
pois, a competência gramatical. A competência prag
mática determina como o instrumento pode ser efeti
vamente posto em uso (cita-se Chomsky, 1980,
p. 224). A diferença entre Chomsky e Leech está
exatamente no fato de que Leech está interessado
no componente pragmático, e Chomsky, não.
(iii) A pragmática é um componente da lingüística e da
Gramática: a pragmática se incorpora na própria Gra
mática (cita-se Dik, 1978).
30 • capitulo 2
Para Auwera (op. cit.), esses três tipos não são tão
diferentes entre si, como se poderia pensar, já que em
todos eles admite-se a existência da Gramática sem a
pragmática, isso principalmente em (i) e em (ii), mas
também em (iii) (devendo notar-se, entretanto, que a afir
mação se baseia na versão de Dik de 1978, que, como
Auwera observa, coloca a pragmática como o compo
nente “último” da Gramática). Por outro lado, o tipo (i)
é subparte de (ii), e, assim, ficam reduzidos a dois os
tipos de pragmática, em ambos posta a pragmática como:
(i) componente da Gramática: lingüística => Gramática
=> pragmática (a pragmática interna à Gramática);
(ii) componente da lingüística, mas não da Gramática:
lingüística => pragmática (a pragmática externa à
Gramática).
Ambas as visões são consideradas corretas: há prag
mática que é interna à Gramática e há pragmática que não
é. Como exemplo de uma pragmática externa à Gramá
tica, cita-se a visão do planejamento da língua na perspec
tiva da sua adaptação ao ambiente (é pragmática mas não
é Gramática). Como exemplo de uma pragmática interna
à Gramática, cita-se a colocação da topicidade (uma ques
tão pragmática) como central na organização da Gramá
tica. Sendo justificáveis ambas as visões, surgem, segun
do Auwera, duas outras perguntas:
a) Como decidir o que é interno e o que é externo à
Gramática (já que nem todas as questões se discrimi
nam tão facilmente como as duas que serviram de
exemplo acima)?
b) O que é mais relevante para o preparo de gramá
ticas (termo que, com inicial minúscula, se refere às
gramáticas de línguas particulares)?
capítulo 2*31
Auwera só responde à segunda pergunta, que con
sidera a mais fácil: não há dúvida de que é a pragmática
interna à Gramática que é a mais interessante para a ta
refa de preparo de gramáticas. Isso equivale a optar pe
lo modelo de “componentes integrados” da gramática
funcional.
Mesmo nas questões colocadas por Auwera como
de pragmática “externa” à “Gramática”, tem-se feito
opção pelo modelo funcional em nome da incorporação
da pragmática na lingüística. O paradigma funcional,
como diz Camacho (1994, p. 19), é uma das alternati
vas relevantes para superar o problema metodológico
resultante da desconsideração do papel do contexto so
cial na interação lingüística.
32 • capítulo 2
mente distintos”). A gramática da oração “expressa” “o
sistema semântico da língua”, o qual, na contraparte,
organiza os acontecimentos da “realidade”. Nas três me-
tafunções (isto é, tipos de função) de Halliday, chamadas
de “textual”, “ideacional” e “interpessoal”, a “oração”
é a “realização simultânea” de três “significados”: uma
“mensagem” (“significado como relevância para o con
texto”), uma “representação” (“significado no sentido
de conteúdo”) e uma “troca” (“significado como forma
de ação”). Enquanto “mensagem”, a oração se compõe
de tema - o ponto de partida da mensagem - e rema, a
mensagem propriamente dita. O tema é geralmente a
peça “recuperável”, ou “dada”, da informação, enquanto
o rema é, em geral, a parte “nova”, a parte que o falante
apresenta como de impossível recuperação, seja no tex
to, seja na situação.
O estudo funcionalista da frase necessariamente con
sidera tokens, não apenas types, no sentido de Lyons
(1977). Qualquer uma das propostas funcionalistas po
de ser invocada para verificar o tratamento da frase en
quanto ato de interação, enquanto peça de comunicação
real. Basta ver as “funções” da frase, de Halliday, as “ca
madas” de Dik (predicação-proposição-cláusula), ou,
além da proposta de De Lancey (1981) sobre as noções
de fluxo de atenção e de ponto de vista, ligadas à orga
nização das frases no discurso. Levando-se em conta estas
duas noções, entende-se que os eventos descritos no dis
curso e as entidades neles envolvidas não têm todas a mes
ma importância comunicativa, dispondo a organização
discursiva de mecanismos capazes de marcar a relevân
cia relativa dos diferentes eventos e entidades que se se
guem no discurso.
capítulo 2 • 33
De Lancey (1981) distingue um fluxo de atenção na
tural, referente às estruturas perceptuais, e um fluxo de
atenção lingüístico, referente aos mecanismos lingüís-
ticos pelos quais esses valores são marcados nas frases;
do fluxo de atenção lingüístico pode-se dizer, por exem
plo, que, seguindo a ordem natural, ele parte de Ori
gem (Agente, Experimentador) para Meta, e que ele se
situa na posição mais à esquerda, na frase. O fluxo de
atenção natural tem como base a ordenação temporal dos
eventos, que deve ser refletida na frase, a não ser que
haja alguma motivação especial - potencialmente liga
da ao próprio ponto de vista - que cause a não-coinci-
dência, e torne marcado o enunciado. Os pontos de vis
ta a partir dos quais se descreve uma cena são dois, o de
um observador externo e o de um dos participantes. En
tende-se que os pontos de vista, valores essencialmente
dêiticos, são especificados nas frases por meio de meca
nismos lingüísticos apropriados que cada língua possui.
O “fluxo de atenção” organiza o fluxo da informa
ção. Este, segundo Chafe (1987), tem menos que ver com
o conteúdo de um enunciado do que com o modo pelo
qual esse conteúdo é “empacotado” e apresentado ao
ouvinte. O fluxo de informação diz respeito, pois, aos
aspectos cognitivos e sociais do “empacotamento” que
as pessoas fazem do conteúdo ideacional, quando falam.
Em outras palavras, mais do que com o conteúdo idea
cional do enunciado, o fluxo de informação tem relação
com a organização que nele obtêm categorias como “tó
pico e comentário”, “sujeito e predicado”, “informação
dada e informação nova”, ou, ainda, “unidades de ento
nação”, “orações”, “frases” e “parágrafos”. As unidades
de informação são unidades de entonação que se suce
34 • capítulo 2
dem aos “jatos”, com contorno particular, com picos en-
tonacionais e delimitados por pausas (Chafe, 1985). Nes
sas unidades se distribuem as porções de informação,
que remetem a representações mentais, e que, portanto,
têm sua definição ligada ao estado de consciência do fa
lante. Çhafe (1976) define informação “dada” como a
que o falante considera que esteja na consciência do seu
ouvinte naquele momento, e informação velha como
aquela da qual o ouvinte toma consciência no momen
to da enunciação. Posteriormente Chafe (1987,1988) re
fina essa proposição, mas sempre vinculando a distri
buição da informação aos processos mentais. É assim
que às peças de informação, vistas como ligadas às re
presentações mentais dos objetos, são atribuídos três
estados, o de atividade, o de semi-atividade e o de ina
tividade, segundo estejam os conceitos, respectivamen
te, no foco de consciência, na consciência periférica ou
na memória de longo termo do falante. Esse diferente
estatuto informacional das diversas porções do texto cor
responde a diferentes modos de codificação e de emissão
(nome ou pronome, forma acentuada ou forma atenua
da, etc.), bem como a modos particulares de organiza
ção linear. O fluxo de informação determina a ordenação
linear dos sintagmas nominais na frase, que se faz na
seqüência que o falante considera adequada para obter
a atenção do ouvinte, mas alterações da ordem podem
atuar no sentido de controlar o fluxo de atenção. Prince
(1980) também coloca em lugar destacado a questão de
princípios e restrições para a colocação das porções de
informação na linha do discurso.
A consideração da relação entre os padrões discur
sivos e os gramaticais tem, na verdade, como um de seus
capítulo 2 • 35
principais parâmetros, o “fluxo de informação” (Du Bois
& Thompson, 1991). Estudando a estrutura argumentai
dos verbos efetivamente realizada numa língua maia, o
sacapulteco, Du Bois (.1987, 1993a, 1993b), conseguiu
estabelecer, tanto na dimensão gramatical quanto na di-
mensão pragmática, com inter-relação entre ambas, aqui-
lo que ele denominou “estrutura argumentai preferida”.
Na dimensão gramatical, o que se verificou foi que se
evita mais de um SN lexical na oração, e que o elemen
to lexical ocupa, de preferência, a posição de objeto. Na
dimensão pragmática, o que se verificou foi que se evita
mais de um argumento novo na oração, e que esse argu
mento novo ocupa, de preferência, a posição de objeto.
Dito de outro modo, a dimensão sintática da estrutura
argumentai preferida diz respeito à presença ou à ausên
cia de sintagmas nominais lexicais nas diferentes posi
ções argumentais, com duas restrições que assim se ex
pressam:
1) preponderam as orações com apenas um argu
mento preenchido por SN lexical pleno;
2) o SN lexical pleno único de uma oração tende a
ocorrer na posição de objeto ou de sujeito de oração in
transitiva, mas não na de sujeito de oração transitiva.
A dimensão pragmática, por sua vez, diz respeito à
distribuição da informação nova pelos termos da predi-
cação, com duas restrições que assim se expressam:
1) as orações preponderantemente contêm apenas
um termo portador de informação nova;
2) esse único termo portador de informação nova
tende a ocorrer nas posições de objeto ou de sujeito de
oração intransitiva, mas não na de sujeito de oração
transitiva.
36 • capitulo 2
Resultados semelhantes foram encontrados por En-
gland & Martin (s/d) para outras línguas maias, por
Kumpf (1992), para o inglês, por Ashby & Bentivoglio
(1993) para o francês e o espanhol, por Bentivoglio (1994)
para o espanhol antigo, e por Dutra (1987) e por Neves
(1994a) para a própria língua portuguesa.
A investigação do fluxo informacional rastreia não
apenas o estado de ativação (dado, acessível, novo), mas
ainda as condições de identificabilidade (identificável,
não-identificável), os meios de identificabilidade (pri
meira pessoa, segunda pessoa, menção no discurso pré
vio, situação discursiva, frame, ancoragem, catáfora), a
genericidade e a referencialidade discursiva.
A investigação da “estrutura argumentai preferida”,
na verdade, diz respeito à verificação da preferência do
falante por um ou outro tipo oracional, considerada não
apenas a dimensão gramatical como também a pragmá
tica, isso porque essa preferência, embora se refira a uma
estrutura sintática, tem determinação discursiva. Na ver
dade, a forma que os argumentos tomam se relaciona com
a codificação de informação nova, ou velha, em padrões
referenciais. Dito de outra maneira, o que se postula é
uma teoria de relação entre gramática e discurso, segun
do a qual os processos de gramaticalização (ver cap. 6)
se devem não apenas à influência da língua como siste
ma gramatical, mas também à influência de fenômenos
discursivos. Entende-se, assim, que o comportamento
sintático-semântico pode ser mais bem explicado den
tro de um esquema que leve em conta a interação de for
ças internas e externas ao sistema.
capítulo 2 • 37
Capítulo 3 As duas grandes correntes
do pensamento lingüístico:
funcionalismo e formalismo
capítulo 3 • 39
sure e, a seguir, Bally e Tesnière, este influenciando Hel-
big e Martinet), a Escola de Praga (com Mathesius e, a
seguir, Trubetskoy, Jakobson, Danes, Firbas, Vachek,
Sgall, etc.), a Escola de Londres (com Firth, e, a seguir,
Halliday), e o Grupo da Holanda (com Reichling e, a
seguir, Dik). Com efeito, segundo os autores, é na Es
cola de Praga, bem como nos modelos de gramática
funcional de Halliday e de Dik, que está mais represen
tado o funcionalismo, que, menos sistematicamente, está
na Escola de Londres e em Reichling, e que apenas
implicitamente está em Saussure. O pólo formalista,
por outro lado, tem seus maiores expoentes no estrutu-
ralismo americano (com Bloomfield, Trager, Bloch, Har-
ris, Fries) e, num sentido menos rigoroso, está também
nos sucessivos modelos de gerativismo, culminando na
teoria padrão de Chomsky, embora em Dik estejam pre
sentes traços do gerativismo (semântica gerativa). No
próprio Chomsky, ainda (fato também apontado por
Danes, 1987, p. 25), estariam alguns elementos da pers
pectiva funcional da frase, como, por exemplo, as no
ções de tópico/comentário (ou tema/rema), e, especial
mente, na semântica gerativa de McCawley, e na gra
mática de casos de Fillmore, podem ver-se, dentro de
um paradigma formalista, tentativas de questionamen
to de proposições básicas da teoria, sob um ângulo se-
mântico-funcionalista.
Uma gramática formalmente orientada, diz Hoffman
(1987, p. 114), trata da estrutura sistemática das for
mas de uma língua, enquanto uma gramática funcio
nalmente orientada analisa a relação sistemática entre
as formas e as funções em uma língua. Nas palavras de
Dillinger (1991), os formalistas - entre eles os gerati-
40 ♦ capítulo 3
vistas - estudam a língua como objeto descontextuali-
zado, preocupando-se com suas características internas
- seus constituintes e as relações entre eles - mas não
com as relações entre os constituintes e seus significa
dos, ou entre a língua e seu meio; chegam, desse modo,
à concepção de língua como “um conjunto de frases”,
“um sistema de sons”, “um sistema de signos”, equipa-
rando, desse modo, a língua à sua gramática. Os fun-
cionalistas, por seu lado, se preocupam com as rela
ções (ou funções) entre a língua como um todo e as di
versas modalidades de interação social, e não tanto com as
características internas da língua; frisam, assim, a impor
tância do papel do contexto, em particular do contexto so
cial, na compreensão da natureza das línguas.
Nas chamadas “gramáticas formais”, diz de Beau-
grande (1993, cap. III, p. 5), as especificações funcio
nais são esparsas e dificilmente ligadas às formas, ten
dendo-se a deixar as especificações mais ricas para o
domínio fluido da semântica, da pragmática, da estilís
tica; as gramáticas explicitamente “funcionais”, em con
traste, abrigam especificações funcionais ricas e empe
nham-se em acomodá-las no esquema, de modo que
uma “descrição gramatical” de um discurso contenha da
dos amplos para auxiliar uma descrição semântica, prag
mática e estilística.
De fato, como aponta de Beaugrande (1993, cap. I,
p. 19), a decisão estruturalista de estudar a “língua em
si mesma e por si mesma” (langue) e de descrever cada
subdomínio (“nível”, “componente”, etc.) por critérios
internos levou a uma ênfase nos dados formais, enquan
to os dados funcionais eram atribuídos ao uso da língua
capitulo 5*41
(parole) ou à interação entre os subdomínios. O funcio
nalismo rejeitou essa atribuição e defendeu uma pers
pectiva mais integrativa na qual todas as unidades e os
padrões da língua seriam compreendidos em termos de
funções. Surgiu um contraste entre dois esquemas, como
se sugere no quadro 1, abaixo. O esquema formalista,
desde Bloomfield, teve seus subdomínios ou “níveis”
definidos pelas unidades da langue - fonemas, morfe-
mas, palavras ou lexemas, e sintagmas ou “sintagme-
mas” sendo que os fonemas compõem a parte que o
investigador encontra mais diretamente “nos” dados lin-
güísticos. Os subdomínios ou “níveis” foram relaciona
dos entre si, ao menos implicitamente, em termos de com
ponentes, com os fonemas constituindo-se em morfemas,
os morfemas em palavras, as palavras em sintagmas:
42 • capítulo 3
mas do fluxo ou “melodia” do texto enunciado. A “gra
mática” não inclui somente os morfemas e as estrutu
ras sintagmáticas, mas o seu embasamento cognitivo no
conhecimento que a comunidade tem de como os pro
cessos e seus participantes são organizados (por exem
plo, se um a Ação tem um Iniciador). E o “discurso” é a
rede total de eventos comunicativos relevantes, incluindo
gestos, expressões faciais, manifestações emocionais e
outros. Estes subdomínios estão relacionados não pelo
tamanho e pela constituição, mas por funções m utua
mente controladoras, como as curvas de entonação que
são típicas de certos padrões gramaticais em certos do
mínios do discurso (por exemplo, discursos políticos).
Dik (1978: 4-5; retomado e explicitado em 1989a:
2-7) analisa as duas grandes correntes, contrapondo o
paradigma formal (PFO) ao paradigma funcional (PFU).
O termo paradigma é proposto para designar cada con
junto de crenças e hipóteses em interação. Nessa contra
posição, a obra de 1978 especifica oito tópicos de con
fronto, e a de 1989 transforma sete desses tópicos em
sete questões, que são:
1 ) 0 que é uma língua natural?
No PFO, a língua é vista como um objeto formal
abstrato, isto é, um conjunto de orações, e a gramática
é concebida primariamente como uma tentativa para
caracterizar esse objeto formal em termos de regras de
sintaxe formal.
No PFU, a língua é um instrumento de interação
social. Não existe, em si e por si, como uma estrutura arbi
trária de alguma espécie, mas existe em virtude de seu uso
para o propósito de interação entre seres humanos.
capitulo 3 • 43
2) Qual é a principal função de uma língua natural?
No PFO, a função primária de uma língua é a ex
pressão dos pensamentos.
No PFU, a principal função de uma língua natural é
o estabelecimento de comunicação entre os usuários.
Comunicação é um padrão interativo dinâmico de ati
vidades através das quais os usuários efetuam certas
mudanças na informação pragmática de seus parceiros.
A comunicação, assim, não é restrita à transmissão e à
recepção de informação factual.
3) Qual é o correlato psicológico de uma língua?
No PFO, o correlato psicológico de uma língua é a
“competência”, vista como a capacidade de produzir,
interpretar e julgar sentenças.
No PFU, o correlato psicológico de uma língua
natural é a “competência comunicativa” do usuário, no
sentido de Hymes (1974): sua habilidade de exercer in
teração social por meio da linguagem. Essa interpreta
ção de “competência” não significa que não se possa
distinguir entre “competência” (conhecimento exigido
para certa atividade) e “atuação” (implementação real
desse conhecimento na atividade). Considera-se, pois,
que a capacidade lingüística do falante compreende não
apenas a habilidade de construir e interpretar expres
sões lingüísticas, mas também a habilidade de usar es
sas expressões de modo apropriado e efetivo, de acordo
com as convenções da interação verbal que prevalecem
numa comunidade lingüística.
4) Qual a relação entre o sistema da língua e seu uso?
No PFO, o estudo da competência tem prioridade
lógica e psicológica sobre o estudo da atuação.
44 • capítulo 3
No PFU, o sistema deve ser estudado dentro do qua
dro das regras, princípios e estratégias que governam
seu uso comunicativo natural. Desse modo, as expres
sões lingüísticas só podem ser compreendidas propria
mente quando consideradas no seu funcionamento nos
contextos, sendo as propriedades deste co-determina-
das pela informação contextual e situacional.
5) Como as crianças adquirem uma língua natural?
No PFO, a criança constrói uma gramática da língua
usando suas propriedades inatas, com base num input
restrito e não-estruturado de dados lingüísticos.
No PFU, a aquisição da linguagem se desenvolve
na interação comunicativa entre a criança e seu am
biente; aos fatores genéticos se atribuem apenas aque
les princípios subjacentes que não podem explicar-se
por essa interação. O processo de aquisição da lingua
gem é fortemente co-determinado por um input alta
mente estruturado de dados lingüísticos, apresentados
à criança em contextos naturais, e adaptados ao nível
de desenvolvimento de sua competência comunicativa.
6) Como podem ser explicados os universais lin
güísticos?
No PFO, os universais lingüísticos devem ser vis
tos como propriedades inatas do organismo humano.
No PFU, os universais lingüísticos devem ser expli
cados em termos das restrições inerentes a: a) os fins da
comunicação; b) as propriedades biológicas e psicológi
cas dos usuários da língua natural; c) os contextos e cir
cunstâncias nos quais a língua é usada para os propósitos
comunicativos.
capítulo 3 • 45
7) Qual a relação entre a pragmática, a semântica e
a sintaxe?
No PFO, a semântica é autônoma com respeito à
sintaxe; a sintaxe e a semântica são autônomas com
respeito à pragmática; as prioridades vão da sintaxe à
pragmática, via semântica.
No PFU, a pragmática é vista como o quadro abran
gente no qual a semântica e a sintaxe devem ser estuda
das. A semântica é instrumental em relação à pragmática
e a sintaxe é instrumental em relação à semântica. Nessa
visão, não há lugar para uma sintaxe autônoma.
O que Dik diz pode sintetizar-se no seguinte: no pa
radigma formal, uma linguagem natural é vista como um
sistema abstrato autônomo em relação aos modos de uso,
enquanto, no paradigma funcional, considera-se que as
expressões lingüísticas não são objetos funcionais arbi
trários, mas têm propriedades sensíveis a, e co-deter-
minadas por, determinantes pragmáticos da interação
verbal humana (Dik, 1987, pp. 81-82). Resumindo:
PA R A D IG M A
PA R A D IG M A F O R M A L
FU N C IO N A L
C om o d efinir Conjunto de orações. Instrumento de interação so
a língua cial.
46 • capítulo 3
L íngua e As orações da língua devem A descrição das expressões
contexto/situação descrever-se independente deve fornecer dados para a
mente do contexto/situação. descrição de seu funciona
mento num dado contexto.
capítulo 3 • 47
• tomar a sintaxe como base da língua (gramática ar
bitrária);
• organizá-la, desse modo, em torno da frase.
As gramáticas funcionais
1) interpretam a língua como uma rede de rela
ções, entrando as estruturas como a realização das rela
ções;
2) tendem a:
• enfatizar variações entre línguas diferentes;
• tomar a semântica como base (gramática natural);
• organizá-la, desse modo, em torno do texto ou dis
curso.
Essas diferenças entre as duas correntes da gramá
tica, como apontadas por Halliday, assim se resumem:
G R A M Á T IC A F O R M A L G R A M Á T IC A F U N C I O N A L
48 • capítulo 3
Referindo-se à “gramática sistêmica” de Halliday,
Christie (1979, p. 257) aponta que a diferença básica
entre essa gramática e a gerativa é a consideração de
que a “gramática profunda”, a base de um enunciado,
não é encontrável em uma estrutura profunda abstrata,
mas nas escolhas que o falante faz quando compõe um
enunciado para um propósito específico. A gramática
sistêmica, assim, não tem nada que ver com a compe
tência abstrata de um falante ou ouvinte ideal em algu
ma comunidade homogênea de fala, que é uma ficção
científica; ela diz respeito, sim, às escolhas reais no
uso da língua, feitas por falantes reais em contextos so
ciais reais.
Leech (1983, cap. 3) critica a adoção de qualquer
uma das duas hipóteses, a formalista e a funcionalista,
exclusivamente, considerando que tanto seria tolo ne
gar que a linguagem é um fenômeno psicológico como
negar que ela é um fenômeno social. Liga as diferenças
entre as duas abordagens, basicamente, a diferentes m o
dos de ver a natureza da linguagem. Desse ponto de vista,
os formalistas (o exemplo é Chomsky) encaram a lin
guagem como fenômeno mental, enquanto os funciona-
listas a vêem como fenômeno primariamente social. Os
universais lingüísticos são explicados, então, pelos for
malistas, como herança lingüística genética comum da
espécie humana, e, pelos funcionalistas, como deriva
ção da universalidade dos usos da linguagem nas socie
dades humanas. Quanto à aquisição da linguagem pela
criança, os formalistas apontam uma capacidade inata
humana para aprender a língua, enquanto os funciona
listas se inclinam para uma explicação da aquisição em
termos de desenvolvimento das necessidades e habili
capítulo 3 • 49
dades comunicativas da criança. Acima de tudo, então,
os formalistas estudam a língua como um sistema autô
nomo, enquanto os funcionalistas a estudam em relação
com sua função social.
Nascimento (1990), a propósito da afirmação de Vo-
tre e Naro (1987) de que a perspectiva funcionalista é
preferível à formalista, afirm a que não cabe considerar
uma ou outra como melhor opção: a comparação não tem
sentido, pelo simples fato de que formalismo e funcio
nalismo têm diferentes objetos de estudo, e, a partir daí,
diferentes pressupostos, objetivos e metodologia. Para
Dillinger (1991), tanto Votre e Naro como Nascimento
deixam de distinguir “fenômeno” de “objeto”, e por aí
acabam chegando a conclusões opostas. Votre e Naro co
locam as duas abordagens como alternativas, mas isso
requerería que as duas tratassem os mesmos fenômenos,
o que não é o caso, já que o funcionalismo se preocupa
com o contexto social, e o formalismo, não. Nascimen
to, por sua vez, considerando que funcionalismo e for
malismo estudam objetos diferentes, não os coloca como
alternativas, mas o que, na verdade, é diferente é ape
nas a maneira de estudar o objeto. Sendo assim, segun
do Dillinger, funcionalismo e formalismo não podem,
mesmo, ser vistos como alternativas, exatamente porque
estudam o mesmo objeto de maneiras diferentes, isto é,
porque estudam um mesmo objeto e fenômenos diferen
tes; assim, um estudo não exclui o outro, sendo ambos
complementares e igualmente necessários. Essa conclu
são é, aliás, a mesma de Nascimento, que afirma que cada
um dos dois modelos de análise lingüística pode contri
buir para o progresso do outro, e ambos podem articular-
50 • capítulo 3
se na explicação da interação entre as representações m en
tais e o processamento lingüístico.
Apresentando as bases do funcionalismo de Cose-
riu, Bechara (1991) contrasta a “gramática estrutural e
funcional” desse teórico, que, como a de Gabelentz, é
analítica (parte da frase para chegar aos elementos m í
nimos da língua), com a “gramática transformacional”,
que é “sintética” (ensina “de que maneira se utilizam os
meios gramaticais para a estruturação do discurso”). A
divergência fundamental entre elas é que a gramática
transformacional tem ignorado e às vezes até negado as
funções idiomáticas, enquanto a gramática estrutural e
funcional parte do pressuposto de que é impossível in
vestigar o funcionamento efetivo de uma língua sem pre
viamente haver estabelecido as funções dessa língua.
Para Bechara, Coseriu não privilegia a gramática estru
tural e funcional em relação à gramática transformacio
nal, mas assinala que, “se pretende descrever a língua co
mo estruturação de conteúdos, como sistema de funções,
a investigação lingüística deve partir do significado es
trutural para a designação — como faz a primeira —e
não, ao contrário, da designação para o significado es
trutural - como faz a segunda”. Também Gabelentz,
diz Bechara, era de opinião que, “embora as duas for
mas da gramática se complementem, é necessário con
siderar as línguas em forma sinótica, atendendo primeiro
a seus meios e depois às suas possibilidades [isto é, ao
que se pode fazer com tais meios]” (p. 3). E isso ocorre
“porque a língua não é somente um conjunto de regras
de constituição sintagmática, imediata ou mediata, mas
também - e principalmente - um conjunto de paradig
mas funcionais, já que no eixo paradigmático da língua
capítulo 3*51
1
52 • capítulo 3
seriu é por ele apontada como uma gramática que se pro
põe estabelecer os significados gramaticais que uma lín
gua distingue, bem como as oposições que estabelece en
tre significados, remetendo para um segundo plano os
tipos de emprego desses mesmos significados, o que im
plica o princípio de que, para qualquer expressão, exis
te, numa língua, um determinado significado unitário, e
implica, também, como conseqüência, a primazia do sig
nificado sobre a expressão. Para Coseriu, segundo Be
chara (1991), “as línguas são essencialmente estrutura
ções semânticas do mundo extralingüístico e, assim, as
identidades e diferenças na expressão não são mais do
que o meio de manifestação das distinções semânticas,
das identidades e diferenças no plano do conteúdo. As
gramáticas do tipo não-funcional, ao contrário, dão pri
mazia às identidades e diferenças na designação, isto é,
ao conteúdo do pensamento, relegando as identidades e
diferenças no significado” (pp. 12-13).
Halliday (1985, p. xxix), ao chamar a atenção para
a polarização que tem havido entre a abordagem forma-
lista e a funcionalista, considera que, na verdade, ambas
se ligam à própria natureza da linguagem, além de se li
garem, pela raiz, ao pensamento ocidental.
capítulo 3 • 53
!
Capítulo 4 Modelos funcionalistas
capítulo 4 • 55
O funcionalismo extremado nega a realidade da estrutu
ra como estrutura, e considera que as regras se baseiam
internamente na função, não havendo, pois, restrições
sintáticas.
Ò funcionalismo de Sandra Thompson (o texto citado
é “That-deletion from a discourse perspective”, de 1987),
bem como o de Paul Hopper (a obra citada é Emergent
Grammar, de 1987) é considerado “extremo” por Van
Valin (1990), que define essa categoria (na qual ele en
quadra também o Givonde On Understanding Grammar,
1979c) como a que nega a validade da concepção saus-
suriana da linguagem como um sistema estrutural e de
fende que a gramática pode_ser reduzida.ao discurso.
No outro extremo, no funcionalismo “conservador”, Van
Valin (1990) enquadra Susumu Kuno (1987), que, se
gundo ele, apresenta uma sintaxe funcional como com
ponente apenas adicional que deve ser acrescentado às
teorias formais existentes. “Moderado” Van Valin con
sidera o funcionalismo de Dik, bem como o de Halliday_
e o seu próprio: é o que, reconhecendo a inadequação de
um formalismo e de um estruturalismo estritos,, propõe
alternativas funcionalistas para a análise; essa corrente
enfatiza a importância da semântica e da pragmatícãpàra
a análise da^estrutura lingüística, mas, admitindo que a
noção de estrutura é central para o entendimento das lím
guas naturais, propõe uma consideração de estrutura
lingüística distinta da proposta pelos formalistas. Van
Valin, na verdade, apresentava, em 1977, uma role-and-
reference grammar (Foley e Van Valin, 1977), na qual
se prevê a intervenção de fatores pragmáticos e de meta-
relações semânticas na especificação da forma sintáti
ca, moderando-se, pois, pela interveniência de fatores
semânticos, a pressão dos fatores externos sobre a for
56 • capítulo 4
ma sintática. Mais moderada é também a proposta das
obras mais recentes de Givón (Givón, 1984; 1990; 1993),
que, enquanto procede a investigações de base funciona-
lista, como, pqrjexemplo, o exame dos aspectos icôni-
cos da gramática, acentua a natureza abstrata eform al
da estrutura sintática.
" Entre os íuncTõnalistas extremados está também Erica
Garcia, que, em Discourse Without Syntax (Garcia, 1979),
defendeu que a caracterização das relações entre forma
e função prescindem de uma teoria que forneça uma es
trutura gramatical. Para ela, ao contrário do que a gra
mática gerativa supõe, “certas características de uma sen
tença podem simplesmente ser conseqüência do dis
curso maior de que ela é parle” (op. cit., p. 24). E, se um
aspecto de uma sentença é a conseqüência de alguma
coisa a partir da qual a sentença pode ser compreendi
da, não se pode estabelecer esse aspecto como um fe
nômeno sintático autônomo. Há que se verificar, então,
quais os fatos da chamada “estrutura da sentença” que
são características arbitrárias dessa estrutura, e reque
rem descrição, pela “sintaxe”, e quais os que são mera
mente o resultado de fatos gerais do discurso. Garcia
(loc. cit.) afirma que a “sentença” se tem mostrado uma
unidade bastante insatisfatória de análise para quem quer
que estefá intéressado na distribuição das unidades gra-
maticais, mesmõ nÕ interior da sentença, e que a restri
ção dãanálise lingüística a sentenças isoladas, com des
consideração do contexto maior no qual elas ocorrem
(contexto tanto lingüístico como extralingüístico) só po
de levar a malogro na busca da estrutura da língua1.
Para Garcia (1979), é inegável que a tarefa do lin-
güista é registrar e estabelecer os fatos arbitrários da lín
gua aos quais o falante tem de conformar-se; entretanto,
capítulo 4 * 57
não se pode ignorar características óbvias da linguagem,
como o fato de que ela é um instrumento de comunica
ção, e é usada por seres humanos. Nessa linha, o objetivo
específico desse seu trabalho é buscar estabelecer se cer
tos aspectos da ordem de palavras do inglês antigo que
têm sido considerados como “fatos arbitrários” dessa lín
gua podem ser elucidados com base em considerações co
municativas.
Uma crítica à posição extremada de Garcia está em
Paprotté e Sinha (1987), que encontram problemas nes
se tipo de consideração. Em primeiro lugar, tais esquemas
classificatórios funcionais tendem a apresentar noções
estáticas e casuísticas de pressões externas contextuais
sobre as estruturas, sem indicar os graus de pressão ou
determinação; além disso, um estudo funcional da lin
guagem requer uma clareza equivalente das noções fun
cionais e estruturais, já que estrutura e função parecem
ser interdependentes.
Para ilustração do pensamento funcionalista mais
corrente se repassarão, a seguir, duas das propostas que
Van Valin (1990) colocou entre as moderadas, a de Si-
mon Dik e a de Michael A. K. Halliday.
58 • capítulo 4
nos anos 20, além da lingüística firthiana da tradição etno
gráfica de Boas-Sapir-Whorf e do funcionalismo da Es
cola de Praga. ^
O modelo de Halliday vem sendo elaborado há mais
de trinta anos. Mathiessep(1989) indica, como primei
ra versão da teonã sistêmrcõ-fimcional, a scale-and-ca-
tegory theory, estabelecida em Halliday (1961), depois,
revista e ampliada, com proposição de uma base para
digmática (Halliday, 1966), e, afinal, completada com
a teoria das metafunções (Halliday, 1967-1968, 1973).
Sistema é usado no sentido firthiano de paradigma
funcional, mas é desenvolvido no construto formal de
umTrede sistêmica, o que configura uma teoria da lín
gua enquanto escolha. À interpretação funcionalista da
lingüística se acopla uma descrição sistêmica, na qual a
gramática toma a forma de uma série de estruturas sis
têmicas, cada estrutura representando as escolhas asso
ciadas com um dado tipo de constituinte (Halliday, 1967,
P-37>- •« -PJf,
Do modelo sistêthico-funcional se pode dizer que ele
se enquadra numa gramática sistêmica que se interpre
ta metafuncionalmente. Como diz de Beaugrande (1993,
cap. I, p. 20), já que toda a lingüística é, afinal, sistêmi
ca, trata-se de uma “lingüística funcional sistêmica” em
contraste com a “lingüística formal sistêmica” de Saus-
sure, Z. S. Harris, Chomsky, etc.
Diz Halliday, em 1963, que a teoria lingüística se or
ganiza com duas possibilidades alternativas, que são a
“cadeia” (o sintagma) e a “escolha” (o plaradígma) (Halli
day, 1963). Como aponta Hudson (1986, p. 809) há dois
tipos de categorias em uma gramática sistêmica, os tra
ços e as funções: o traço é uma categoria paradigmáti-
capítulo 4 • 59
r\
... _ o JO 'y/- - •' -o 1 'O ’s - ■
V.A
< ( ~ l ,
ca, que relaciona um item com outros itens da língua que --
são similares, sob algum aspecto relevante, enquanto a , -V S ^ '
Junção é uma categoria sintagmática. Uma gramática sis- ^
têmica é, acima de tudo, paradigmática, isto é, coloca nas
unidades sintagmáticas apenas a realização^reservaado,
para o nível abstrato e profundo, as relações paradig
máticas. Na verdade, uma rede sistêmica constitui um
conjunto finito de traços, um complexo de interdepen
dências existentes entre os traços de determinados pa
radigmas. Traços significam, ao mesmo tempo, signi
ficado formal e significado semântico (Martin, 1978).
\ \? A consideração do sistêmico implica a consideração de
escolhas entre os termos do paradigma, sob a idéia de
«Kque escolha produz significado. Berry (1977, p. 52)
lembra que é importante compreender que o termo es-
colha, nesse caso, não implica, necessariamente, esco
lha consciente, nem escolha livre, podendo o grau de
consciência variar de uma escolha completamente sub
consciente até a plena e explícita escolha consciente. A__
gramática é, afinal, o mecanismo lingüístico que liga
um asàs outras as seleções significativas que derivam
das várias funções da linguagem, e as realiza numa for
ma estrutural unificada (Halliday, 1973, p. 364). A gra
mática organizaa§.i5p.çõ.es em alguns conjuntos dentro
dos quais o falante faz seleções simultâneas, seja qual
for o uso que esteja fazendo da. língua (Halliday, 1973b,
• . p. 365).
As diferentes redes sistêmicas codificam diferen
tes espécies de significado, ligando-se, pois, às dife
rentes funções da linguagem. Assim, o sistema de tran-
\ f / sitividade, especificando os papéis dos elementos da
oração, como “ator”, “meta”, etc., codifica a experiên-
60 • capítulo 4
t\j
ciado; entre
enunciado e
situação)
capitulo 4 • 61
de operação se repete, levando a escolhas cada vez mais
específicas.
Diz Davidse (1987, p. 46) que o movimento do sis
tema ao texto envolve dois momentos: num primeiro pas
so, há uma seleção dentre o conjunto de traços, e uma
“forma canônica” possível é selecionada para o sintag
ma em questão; num segundo passo, o processo se rea-
liza,Jsto.é,,os traços paradigmáticos se convertem nu-
ma forma sintagmática concreta.
Na Introdução de sua obra An Introduction to Func-
tional Grammar (1985, pp. xiii-xxxv), Halliday apresenta
uma visão geral de sua “gramática funcional”, esclarecen-
^ do que deixa de lado, aí, o aspecto sistêmico da gramá
tica e trata apenas o funcional. Para ele,_uma gramática
funcional é essencialmente uma gramática “natural”,
no sentido de que tudo, nela pode ser expljcado. em últi-
ma instância, com referência a como a língua é usada.
Seus objetivos são, realmente, os usos da língua, já que
são estes que, através das gerações, têm dado forma acy
sistema.
A partir daí, os componentes fundamentais do sig-
nificado na língua são os componentes funcionais. To-
das as Íínguas são organizadas em torno de dois signi
ficados principais: o “ideacional”, ou reflexivo,, e o
“interpessoal”, ou _ativo. Esses componentes, as meta-
funções da teoria de Halliday, são as manifestações, no
sistema lingüístico, dos dois propósitos mais gerais que
fundamentam todos os usos da linguagem: entender o
ambiente (ideacional) e influir sobre os outros (inter
pessoal). Associado a esses, o terceiro componente me-
tafuncional, o “textual”, lhes confere relevância.
62 • capítulo 4
Desse modo, cada elemento, numa língua, é expli-
cado por referência à sua função no sistema lingüístico
lõtãíTNesse sentido, uma gramática funcional é aquela
que constrói todas as unidades de uma língua - suas
orações, suas expressões - como configurações qrgâni-
cas_de funções, e, assim, tem cada parte interpretada co
mojunçional. em relação ao todo.
Dois pontos são básicos: y
(i) a unidade maior de funcionamento é o texto,
(ii) os itens são multifuncionais.**^'
Nessa consideração de que a real unidade em fun
ção é o texto, o que está colocado em exame é a cons
trução de seu sentido. Se a língua é um sistema de pro-
dução desentidos através de enunciados lingüísticos, ela
é um sistema semântico. Õ termo “semântico” implica
todo o sistema de significados de uma língua, os quais
se codificam na organização de itens lexicais e de itens
gramaticais. É a gramática que codifica o significado,
e o faz sem relacionar simplesmente porção a porção,
ou relaçacTarelação, mas provendo o isolamento de va
riáveis e de suas possíveis combinações na consecução de
funções semânticas específicas (Halliday, 1985, p. xx).
A investigação da multifuncionalidade prevê:
(i) a investigação do cumprimento de diferentes fun
ções da linguagem (apesar de sua indissociabilida-
de e implicação mútua);
(ii) a investigação do funcionamento dos itens segundo
diferentes limites de unidade (desde o texto até os
sintagmas menores que a frase: texto —frase, ou ora
ção complexa-oração-sintagma).
Entrecruzam-se, pois, no tratamento, funções e ní
veis de análise. E, considerando que o princípio da mul-
capítulo 4 • 63
tifuncionalidade constitui a chave para uma interpreta
ção funcional da linguagem (Halliday, 1985, p. 52), as
senta-se que muitos dos constituintes de uma construção
entram em mais de uma configuração construcional.
Acresce, ainda, do ponto de vista da função idea-
cional, a configuração de diferentes esferas nas quais
os diferentes itens atuam:
(i) participantes: nomes e pronomes pessoais;
(ii) processos e relações: verbos e certas palavras gra
maticais;
(iii) circunstantes.
Exemplifico, aqui, com as palavras de relação:
" 1. preposição, que atua:
a) no nível do sintagma;
b) no nível da oração (em ambos podendo funcionar
no sistemã~de transitividade; e, no .nível do sintagma,
sendo o elemento que ativa esse sistema);
2. a conjunção subordinativa (com diferença entre
a integrante e a adverbial) e o pronome relativo (com
diferença entre o de oração restritiva e de não-restritiva),
que atuam no nível da oração complexa (de termos
expandidos);
3. os coordenadores, que atuam:
a) fora dos/entre os sintagmas;
b) fora das/entre as orações;
c) fora das/entre as frases.
Então, uma primeira matriz organiza assim as pa
lavras gramaticais de relação:
pronome relativo
64 • capitulo 4
Trago, ainda, o nome como exemplo.
a) Do ponto de vista da função ideacional (Halliday)
ou representativa (Bühler), que põe em exame a língua
enquanto representação da realidade, o nome é, em pri
meiro lugar, um referenciador, remetendo necessaria
mente a uma pessoa ou coisa. Por outro lado, na orga
nização semântica da frase, o nome entra no sistema de
transitividade como participante de processos e rela
ções, e é a partir daí que assume, na estrutura do enun
ciado, uma função sintática. Além disso, alguns subs
tantivos entram de^ outro modo, ainda, na organização
dõ~sístema de transitividade: nomes valenciais (nomes
de processos e relações) acionam o sistema de transiti
vidade como predicadores de outros nomes (partici
pantes), projetando novas estruturas sintáticas.
b) Do ponto de vista da função interãcional ou in
terpessoal, que põe em exame a língua enquanto troca
ou interação, o substantivo constitui uma não-pessoa do
discurso. Sua escolha como sujeito, por exemplo (uma
função “sintática”), implica uma escolha no nível da
interação: implica que não se escolhe nem falante nem
ouvinte para essa posição sintática.
c) Do ponto de vista da fimção textual, o substantivo,
examinado na sua relação com a proeminência sonora e
com a posição do enunciado, é peça da organização da
informação. No nível da frase, tem vocação especial para
tema, ou seja, para ponto de partida da mensagem. No
nível do texto, na organização entre informação nova e in
formação velha, os nomes mapeiam uma rede de recupera
ções, remissões, projeções baseadas nas relações de senti
do, como a sinonímia, a antonímia, a hiperonímia, a hipo-
nímia, ou a colocação em campo semântico comum.
capitulo 4 • 65
Tudo isso se reflete na estrutura do enunciado, na
qual o substantivo, em decorrência do funcionamento
explicitado (referenciador de coisas e pessoas, e parti
cipante de eventos), é elemento nuclear, e impõe restri
ções à organização do sintagma em que ocorre (ques
tão dos determinantes, especificadores, classificadores,
qualificadores).
E desse modo que o exame dos itens de uma clas
se, vistos em seu funcionamento (em sendo multifun
cionais) leva à explicitação dos diversos processos. O
exame dos substantivos exploraria, por exemplo: a se
mântica vocabular (referenciação), a semântica de re
lações (participação em eventos), a sintaxe (posição e
função na estrutura), a pragmática (organização da in
teração, em termos de definição de papéis na interlocu-
ção), a composição textual (a organização da mensa
gem com unidades que, em termos de delimitação e ex
tensão, independem das unidades sintáticas).
A já clássica A n Infroduction to Functional Grammar
(Halliday, 1985) revela, em sua própria organização,
uma condução de exame por níveis: ela coloca a frase,
{sentence, que Halliday identifica com clanse com-
plex), “em certo sentido”, como limite jsuperior (den
tro do qual a oração é a unidade fundamental de orga
nização), lembrando que a gramáticaJradicional pára
nesse limite. Dentro desse limite, a relação típica é cons-
trucional, de partes que formam todos, uma configura
ção orgânica de elementos que têm, cada um, suas fun
ções particulares em relação ao todo. Além desse limi
te, a posição se inverte, e a norma são as formas de
organização não-construcionais. Assim, se na parte I des
66 • capítulo 4
sa obra se estuda a frase (cap. 3: “Clause as message”;
cap. 4: “Clause as exchange”; cap. 5: “Clause as repre-
sentation”), na parte II, por outro lado, se estuda tudo o
que está abaixo da oração (cap. 6: “Below the clause:
groups and phrases”), acima dela (cap. 7: “The clause
complex”), ao lado dela (cap. 8: “Beside the clause:
intonation and rhythm”), em torno dela (cap. 9: “Around
the clause: cohesion and discourse”) e além dela (cap. 10:
“Beyond the clause: metaphorical modes of expression”).
Como exercício de análise, pode-se examinar uma
frase com vistas a considerá-la nas suas diversas fun
ções (Neves, 1989). ^
Fazendo-se uma análise do enunciado lingüístico
enquanto ativação da função ideácional dentro da es
trutura de uma frase, o que fica sob exame são as rela
ções sintático-semânticas que têm, em primeiro lugar,
uma definição lógica ligada à representação da “reali
dade”. Tomemos como exemplo uma situação em que
tenha ocorrido um acidente rodoviário, sobre a qual um
falante construa seu enunciado. Embora a cena seja
complexa, o falante é obrigado, pelo sistema da língua,
a fazer estruturas contíguas que organizem a sua pers
pectiva. Cada vez que faz uma nova frase, ele selecio
na, segundo sua perspectiva, um novo predicador e os
argumentos que devem entrar na relação de predicação.
Assim, por exemplo, em
( 1 )0 motorista dirigia em alta velocidade,
o esquema de predicação parte de um predicado de ação,
que seleciona, necessariamente um agente, definindo-
se um determinado esquema de estruturação sintático-
semântica, enquanto, em
capítulo 4 * 67
(2) O acidentado sentia dores,
pela natureza do processo selecionado, encontra-se ne
cessariamente um expèrimentador, e define-se um outro
esquema estrutural.
Assim, há uma análise a ser feita em cada estrutura
ffasal, embora exista algo maior que se relaciona com a
perspectiva total da cena e sua ativação.
Num segundo aspecto, as mesmas frases podem ser
vistas na função interacional, que representa uma con
figuração resolvida entre modo e resíduo. Nesse ponto
de vista de análise, cada frase tem, dentro do modo, um
sujeito (que consiste de um componente nominal, defi
nido como “ponto de descanso” da predicação) e um ele
mento finito (expresso por um operador verbal, e res
ponsável pelo relacionamento da proposição com o con
texto discursivo, por referência ao tempo da fala ou ao
julgamento do falante). Na verdade, embora o sujeito
seja uma entidade com estatuto gramatical, sintático,
ele é determinado pela função interacional da lingua
gem, já que escolher o sujeito implica determinar se ele
será o falante, o ouvinte, ou nenhum dos dois, como
ocorre em (1) e em (2): o motorista e o acidentado, res
pectivamente. Analisar a escolha do sujeito é, pois,
pensar a frase num outro esquema. Ligada à escolha do
sujeito está, por exemplo, a escolha entre uma frase de-
clarativa, interrogativa ou diretiva.
Mas tem de ser apontado, ainda, um terceiro es
quema, já que a linguagem estruturada em frases tam
bém é mensagem, isto é, em cada frase se fala sobre
algo. Assim, no nível da frase, outro elemento é de-
preensível, o tema, ou seja, aquilo que está sob mira na
organização da estrutura, a entidade sobre a qual se faz
68 • capítulo 4
o comentário (rema). Em cada frase subseqüente se faz
novamente a escolha de um tema (que pode também ser
retomado do rema de uma frase anterior) com o qual se
articula um novo rema, compondo a estrutura temáti
ca, manifestada na ordem dos constituintes.
Ocorre, porém, que a ativação dessas funções aí
implicadas se dá também no nível do texto, onde a com
plexidade, obviamente, é muito maior. No nível da fra
se, a organização semântica se resolve no sistema de
transitividade, enquanto, no nível do texto, tanto os
processos e relações como os argumentos têm uma or
ganização responsável pela coesão, na teia do texto.
Por outro lado, enquanto no nível da frase a análise re
vela uma organização em tema/rema, no nível do texto
o que se vai relacionando são segmentos organizados
entre o que é dado (apresentado pelo falante como re
cuperável no texto ou na situação) e o que é novo (não-
recuperável) no sistema da informação, compondo-se,
por meio de grupos tonais e de focos, uma estrutura de
informação. Nesses dois níveis de organização da mensa
gem (a frase e o texto), as unidades podem até coincidir
em extensão, mas não necessariamente coincidem: não-
marcadamente, o tema é o dado e o rema é o novo, mas
não necessariamente dado e novo têm relação com a
organização intrafrásica em tema e comentário.
Na verdade, seguindo os mesmos passos do exame
das funções no nível da frase, verificamos que o texto
é, ao mesmo tempo, organização da informação, orga
nização da interação e organização semântica.
A questão da organização da informação tem de ser,
realmente, discutida nos dois níveis, o do texto e o da
frase:
capítulo 4 • 69
a) O texto se compõe de unidades informativas que,
em termos de delimitação e extensão, são independen
tes das unidades sintáticas. A entonação compõe blocos
de informação, unidades significativas do discurso rea
lizadas fonologicamente pela tonicidade, organizadas
em tomo de pontos proeminentes - os focos de infor
mação. Os diferentes efeitos que se obtêm na organiza
ção do texto relacionam-se com a sucessão linear dos
blocos de informação e com os diferentes modos pelos
quais, conforme o sistema da língua em questão, se
localizam os focos - principal e secundário(s) - dentro
de cada bloco. A uma proeminência tônica, em cada
unidade entonacional, corresponde, em princípio, uma
informação nova.
b) O texto organiza também intra-oracionalmente
a informação que veicula. Toda oração implica a esco
lha de um tema em torno do qual se assentará o exercí
cio remático. Selecionado por opção do falante para or
ganização da informação na seqüência dos elementos
da oração, o tema é o ponto de partida da oração en
quanto mensagem. Representando aquilo sobre o que o
falante escolheu falar, o tema consiste, basicamente, no
primeiro elemento da oração, o qual é, pois, o tema não-
marcado.
No exame da organização da interação, o que se le
va em conta, em especial, é que através da linguagem se
estabelecem e se mantêm as relações humanas. Os in
divíduos interagem lingüisticamente trocando entre si
os papéis de falante e ouvinte. Enquanto falante, o in
divíduo dirige a inserção dos participantes no circuito
de comunicação, selecionando: a) o modo de seu enun
ciado, e b) o próprio sujeito da estruturação sintática. O
70 • capítulo 4
modo, que é obrigatório nas frases independentes, re
presenta a organização dos participantes na situação de
fala. Por ele, o falante escolhe entre declarar, perguntar,
ordenar, pedir, oferecer, confirmar, pedir confirmação,
persuadir, etc., isto é, por ele, o falante define seu papel
em relação ao interlocutor e à interíocução, todas essas
opções relacionadas com a pretensão de um tipo de re
tomo, por exemplo uma resposta lingüística, ou uma res
posta não-lingüística. Por outro lado, o falante se insere
na situação de fala compondo orações para as quais es
colhe um sujeito que pode ser ele próprio (primeira pes
soa), o ouvinte (segunda pessoa) ou nenhum dos inter
locutores (não-pessoa, “terceira pessoa”).
Na questão da organização semântica, verifica-se
que o texto representa lingüisticamente a experiência
extralingüística, seja do mundo exterior, seja do mundo
interior (pensamentos, percepções, sentimentos).
Na organização do conteúdo cognitivo também são
necessárias opções que, no nível da frase, são refletidas
pela transitividade, e, no nível do texto, se marcam pela
coesão, obtida por meio de recuperações e de projeções
semânticas extrafrásicas. Responsável pela organiza
ção semântica no nível ffasal, a transitividade é o siste
ma que dá conta basicamente da seleção de processos e
relações e de seus participantes, e, assim, da seleção de
funções sintáticas na estrutura da frase. À organização
semântica do texto feita independentemente da estrutu
ra da frase dizem respeito as relações coesivas. A coe
são é aqui entendida, com Halliday & Hasan (1976), co
mo uma relação semântica que se refere à interpretação
de um item em dependência de um outro que integra o
mesmo texto. Um texto se faz como uma teia que se tece
capítulo 4*7]
entre avanços e retomadas. Isso constitui a base de que
se levem em consideração:
—na esfera das relações e processos, as seqüenciações
e junções;
- na esfera dos participantes/argumentos, as repetições
e as referenciações.
Uma visão dos subsistemas de organização do tex
to pode ser assim resumida:
FUN ÇÃ O O R G A N IZ A Ç Ã O S IS T E M A
72 • capítulo 4
ções particulares. Há, pois, formando sintagmas com o
substantivo (sintagmas nominais), elementos: (i) dêiti-
cos, que podem ser definidos ou indefinidos; (ii) nu-
merativos, que podem ser quantificadores ou ordena-
dores; (iii) epítetos, que podem indicar propriedade
objetiva de coisa ou atitude subjetiva do falante; (iv) clas-
sificadores, que instituem subclasses. Por outro lado,
ao se falar da qualificação das coisas já se percebe que
as funções não se excluem mutuamente, já que há, ao
lado da expressão objetiva, a expressão subjetiva de qua
lidades, caso em que se ativa visivelmente a linguagem
como interação; por exemplo, se uma coisa é qualifica
da como “linda”, joga, talvez, muito mais, a função in-
teracional do que a ideacional ou representativa. Outra
questão, ainda no nível do SN, é a consideração do es
quema lógico, no qual se depreende um núcleo (a “coisa”)
e os modificadores, dentro dos quais, recursivamente, po
dem ocorrer novos SNs com núcleo e modificadores.
A questão fundamental, na gramática funcional de
Halliday, é o modo como os significados são expressos,
o que coloca as formas de uma língua como meios para
um fim, não como um fim em si mesmas. Quando diz
que a língua é um sistema semântico, Halliday não se
refere, apenas, ao significado das palavras, mas a todo
o sistema de significados da língua. A linguagem adul
ta construiu estruturas semânticas que permitem “pen
sar sobre” a experiência, isto é, interpretá-la construti
vamente; porque são plausíveis, elas fazem sentido e o
homem pode agir sobre elas. Os sistemas de significa
dos, por sua vez, geram estruturas lcxicogramaticais que
são igualmente plausíveis: há, então, verbos e substan
tivos para enquadrar a análise da experiência em pro
capítulo 4 *73
cessos e participantes. É assim que as crianças são ca
pazes de construir uma gramática: elas podem fazer uma
ligação entre as categorias da gramática e a realidade
que está em seu redor e dentro de sua cabeça, conse
guindo ver o sentido por trás do código.
Se, de um lado, um texto é uma unidade semântica,
e não gramatical, de outro os significados são compreen
didos quando se corporificam em enunciados, e, sem
uma teoria que dê conta de como as palavras codificam
os significados, isto é, sem uma gramática, não há co
mo explicitar uma interpretação do sentido de um texto.
A relação entre a semântica e a gramática é de “inter
pretação”: os enunciados “interpretam”, ou codificam
o significado, e são, por sua vez, “interpretados” pelo
som ou pela escrita. Não é possível perguntar o que ca
da elemento significa isoladamente, e o significado é
codificado no enunciado como um todo integrado: a es
colha de um item pode significar uma coisa; seu lugar
no sintagma, outra; sua combinação com outro elemen
to, outra; sua organização interna, outra, ainda. O que a
gramática faz é separar todas essas variáveis possíveis
e atribuí-las às suas funções semânticas específicas.
Uma gramática funcional destina-se, pois, a reve
lar, pelo estudo das seqüências lingüísticas, os signifi
cados que estão codificados por essas seqüências. O fa
to de ser “funcional” significa que ela está baseada no
significado, mas o fato de ser “gramática” significa que
ela é uma interpretação das formas lingüísticas. A aná
lise lingüística, num primeiro nível, permite mostrar como
e por que o texto significa o que significa, e, num se
gundo nível, permite dizer por que o texto é ou não é um
texto efetivo, pelos propósitos que tem.
74 * capítulo 4
Halliday (1980, apud Davidse, 1987) indica as di
ferentes espécies de padrões, que, na lexicogramática das
frases, bem como na organização do texto, realizam os di
ferentes significados. Os significados lógicos são sempre
realizados por estruturas recursivas, os significados ex-
perienciais por estruturas constituintes, os significados
interpessoais por padrões prosódicos e os significados tex
tuais por padrões cumulativos.
Verifica-se, afinal, que Halliday apresenta um mo
delo altamente elaborado, no qual as diversas noções se
sustentam mutuamente, evitando vazios na proposição
- que é básica - do modo como o significado se codifi
ca nos enunciados efetivos. Merece observação, por exem
plo, o estabelecimento de uma relação sistemática entre
a análise lingüística e o contexto de ocorrência dos enun
ciados, de tal modo que se pode encontrar, já nas pri
meiras propostas de Halliday (Halliday et alii, 1964),
três variáveis situacionais de registro associadas aos três
componentes metafuncionais do sistema lingüístico: o
“campo” do discurso (a atividade social implicada), li
gado ao componente experiencial; o “teor” do discurso
(a distância social entre os participantes), ligado ao com
ponente interpessoal; o “modo” do discurso (o canal entre
os participantes), ligado ao componente textual. Para
Davidse (1987, p. 74), em Halliday as referências à si
tuação e à estrutura social não se fazem ad hoc; pelo
contrário, a teoria proposta relaciona linguagem, situa
ção e cultura, sistematicamente.
capítulo 4*75
teleológico da linguagem, mas, como aponta Gebruers
(1987, p. 104), é difícil dizer até que ponto a sua gra
mática funcional foi influenciada por aquela escola, já
que é evidente uma inspiração na teoria pragmática da
Escola de Oxford, bem como no Interacionismo Sim
bólico de G. H. Mead, com o qual as propostas do mes
tre de Dik, o Prof. Reichling, têm “mais do que uma le
ve semelhança”.
Diz Dik (1989a) que, quando alguém adota um pon
to de vista funcionalista no estudo de uma língua natu
ral, a principal questão de interesse é a seguinte: “Como
‘opera’ o usuário da língua natural (the natural langua-
ge user - NLU)” Em outras palavras: “Como os falan
tes e os destinatários são bem sucedidos comunicando-se
uns com os outros por meio de expressões lingüísticas?”
Ou ainda: “Como lhes é possível, por meios lingüísti-
cos, fazer-se entender mutuamente, ter influência no
estoque de informação (incluindo conhecimento, cren
ças, preconceitos, sentimentos), e, afinal, no comporta
mento prático um do outro?” (p. 1) O que ocorre é que
esse “usuário” é muito mais do que um “animal lingüís-
tico”, estando envolvidas no uso comunicativo da lín
gua muitas funções humanas “mais elevadas” do que a
simples função lingüística. Juntamente com a capaci
dade lingüística (pela qual o usuário é capaz de produ
zir e interpretar corretamente expressões lingüísticas de
grande complexidade estrutural em diferentes situações
comunicativas), atuam:
a) a capacidade epistêmica: o usuário é capaz de
construir, manter e explorar uma base de conhecimento
organizado; ele pode derivar conhecimento de expres
sões lingüísticas, arquivar esse conhecimento de forma
76 • capítulo 4
apropriada e, ainda, recuperá-lo e utilizá-lo interpre
tando expressões lingüísticas ulteriores;
b) a capacidade lógica: munido de determinadas
parcelas de conhecimento, o usuário é capaz de extrair
outras parcelas de conhecimento por meio de regras de
raciocínio, com princípios da lógica dedutiva e proba-
bilística;
c) a capacidade perceptual: o usuário é capaz de
perceber seu ambiente, derivar conhecimento de suas
percepções e usar esse conhecimento perceptualmente
adquirido tanto para produzir como para interpretar
expressões lingüísticas;
d) a capacidade social: o usuário não somente sabe
o que dizer mas também como dizê-lo a um parceiro
comunicativo particular, numa situação comunicativa
particular, para atingir objetivos comunicativos parti
culares.
Essas diferentes capacidades interagem estreitamen
te umas com as outras, produzindo cada uma delas um
output que pode ser essencial para que as demais ope
rem. Exatamente nesse sentido é que a gramática fun
cional é vista como uma teoria geral que diz respeito à
organização gramatical das línguas naturais.
Do ponto de vista funcional, diz Dik (1989a, p. 3),
a lingüística diz respeito a dois tipos de sistemas de
regras:
.' (i) as regras que governam a constituição das expres
sões lingüísticas (regras semânticas, sintáticas, mor-
fológicas e fonológicas);
V (ii)as regras que governam os padrões de interação
verbal nos quais essas expressões lingüísticas são
usadas (regras pragmáticas).
capítulo 4*77
O sistema (i) é um sistema de regras visto como Nas palavras de Dik (1980, p. 1), a teoria funciona-
instrumental em relação às metas e aos propósitos do lista distingue o sistema da língua e o uso da língua,
sistema de regras (ii), já que o requisito básico do para mas evita estudar cada um deles fazendo abstração do
digma funcional é que as expressões lingüísticas de outro. A forma dos enunciados não é entendida, pois,
vem ser descritas e explicadas em termos de um quadro independentemente de sua função: uma descrição com
geral fornecido pelo sistema pragmático de interação pleta inclui referência ao falante, ao ouvinte e a seus
verbal. A gramática funcional pretende ser uma teoria papéis e estatuto dentro da situação de interação deter
que preenche esse requisito do paradigma funcional; isso minada socioculturalmente. De um ponto de vista fun-
significa, entre outras coisas, que, onde seja possível, cionalista, a relação entre a intenção do destinador e a
deve-se tentar aplicar os dois seguintes princípios de interpretação do destinatário, na interação verbal, tem
explicação funcional: a expressão lingüística apenas como mediação.
a) uma teoria da linguagem não deve contentar-se Em lingüística, como em outras ciências, diz Dik
em apresentar as regras e princípios que estão subja
(1989b), há um inter-relacionamento essencial entre aná
centes à construção das expressões lingüísticas, mas
lise de dados e formação de teoria: uma análise ade
deve tentar, dentro do possível, explicar essas regras e
quada dos dados de alguma língua particular é impos
princípios em termos de sua funcionalidade em relação
sível sem uma incursão teórica geral nos princípios que
aos modos de uso das expressões;
estão na base da estrutura e do funcionamento da lín
b) embora em si própria uma teoria das expressões
lingüísticas não seja o mesmo que uma teoria da intera gua em geral; por outro lado, um desenvolvimento ade
ção verbal, é natural exigir que ela seja planejada de tal quado da teoria lingüística geral pressupõe a análise me
modo que possa mais fácil e realisticamente ser incor ticulosa dos fatos das línguas particulares (Dik, 1989b).
porada em uma teoria pragmática mais ampla de inte A inter-relação entre a análise de dados e a formação
ração verbal. de teoria é apresentada por Dik (1989b, p. 36) sob a
O que se propõe, afinal, é que a teoria da gramática forma de uma estrutura piramidal em cuja base estão os
constitui um subcomponente integrado da teoria do “usuá dados lingüísticos concretos das línguas particulares e
rio da língua natural” (NLU). em cujo topo estão os princípios que abrangem a orga
Segundo Bolkestein et alii (1985, p. v), foi Dik nização de todas as línguas. Diferentes camadas inter
(1978) que pela primeira vez colocou a gramática fun mediárias de subpirâmides indicam diferentes níveis de
cional na teoria geral da sistematicidade da linguagem. generalização. O movimento da base para cima (bot-
A partir de então, essa gramática foi trabalhada e refi tom-up) é atingido por meio de indução e generaliza
nada por colaboradores, tanto na Holanda como em ção, a partir do mais concreto para o mais abstrato; o
outros países. movimento do topo para baixo (top-down) envolve dedu-
78 • capítulo 4 capítulo 4 • 79
ção e predição de fatos mais concretos/particulares sobre
a base de princípios mais abstratos/gerais.
Uma teoria geral da gramática pode levar a uma
visão mais adequada da organização de línguas parti
culares, especialmente se essa teoria “tenta atingir um
alto grau de adequação tipológica, buscando determi
nar, para cada fenômeno gramatical, o nível próprio de
generalização e o nível ótimo de abstração” (Dik, 1989b,
p. 54). A adequação tipológica exige que a teoria seja
capaz de prover gramáticas para línguas de qualquer
tipo, ao mesmo tempo que exige que a teoria dê conta,
de um modo sistêmico, de similaridades e de diferen
ças entre as línguas; isso implica que a teoria seja de
senvolvida com base em fatos de uma ampla variedade
de línguas, e que as hipóteses sejam testadas em fatos de
outras línguas ainda (Dik, 1989a, p. 14). E para ajudar
a entender-se a natureza básica da linguagem, a teoria
geral da gramática deve, sempre que possível, integrar
o estudo da forma, do significado e do uso de tal modo
que não somente os traços lingüísticos formais, mas
também os semânticos e os pragmáticos sejam coloca
dos numa perspectiva teórica mais geral.
Assim considerada, uma gramática funcional tem
de apresentar, ao lado da adequação tipológica, dois outros
modelos de adequação explanatória: adequação pragmá
tica e adequação psicológica (Dik, 1978,1989a).
A adequação pragmática diz respeito à integração
da gramática numa teoria pragmática mais ampla da
interação verbal. É desejável, cm particular, que uma
gramática funcional revele as propriedades das expres
sões lingüísticas que são relevantes para o modo como
são usadas, e que isso seja feito de tal modo que essas
80 • capítulo 4
propriedades possam ser relacionadas às regras e aos
princípios que governam a interação verbal; isso signi
fica que as expressões lingüísticas devem ser pensadas
não como objetos isolados, mas como instrumentos que
são usados pelo falante para evocar no ouvinte a inter
pretação que deseja. Butler (1991) aponta que o texto
de Dik (1989a), na verdade, sugere duas diferentes ma
neiras pelas quais se deve entender adequação pragmá
tica, no que se refere à descrição e à explanação das
expressões lingüísticas: a primeira exige um quadro ge
ral fornecido pelo sistema pragmático de interação verbal;
a segunda apenas pede que a gramática seja vista de
modo compatível com alguma (não-especificada, e, pre
sumivelmente ainda não-disponível) teoria da intera
ção verbal.
A adequação psicológica, por sua vez, refere-se ao
relacionamento, tão próximo quanto possível, entre os
modelos psicológicos da competência lingüística e o
comportamento lingüístico. A gramática é vista como
uma construção tripartite, com: (i) um modelo de pro
dução (um “gerador”, em termos computacionais); (ii)
um modelo de interpretação; (iii) um estoque de ele
mentos e princípios usados tanto em (i) como em (ii).
Uma gramática funcional que deseje obter adequa
ção pragmática e psicológica deve refletir, de algum mo
do, uma dicotomia entre produção e compreensão: os
modelos de produção definem como os falantes cons
tróem e formulam as expressões lingüísticas; os mode
los de compreensão definem como os destinatários pro
cessam e interpretam as expressões lingüísticas.
Para Dik (1989a, p. 17), uma teoria de gramática
pode falhar de dois diferentes modos: ela pode ser fra
capítulo 4 • 81
ca demais (concreta demais), de tal modo que se tome
incapaz de produzir descrições adequadas de gramáti
cas de línguas particulares, ou ser forte demais (abstra
ta demais), de modo a definir uma classe de gramática
que exceda amplamente a classe das línguas humanas
reais. Para evitar este último perigo, o poder descritivo
permitido pela teoria deve ser restringido ao máximo, e
isso é obtido, na gramática funcional, de três maneiras:
-evitando transformações, ou operações de mudança
de estrutura: uma vez construída uma estrutura, ela é
mantida em toda a derivação posterior da expressão
lingüística (a derivação é uma questão de expansão
gradual, não uma questão de transformação);
-evitando filtros, que são estratégias descritivas que
conferem excessiva liberdade para a formulação de re
gras gramaticais: as regras devem gerar apenas o con
junto de expressões bem formadas, sem produzir qual
quer expressão que depois deva ser descartada;
-n ão admitindo predicados abstratos: todos os lexemas
básicos de uma língua estão contidos no léxico na forma
em que podem aparecer nas expressões da língua objeto.
No modelo de Dik (1985, p. iii e 1989a, p. 54),
reaímente, todos os itens lexicais de uma língua têm de
ser analisados dentro da predicação, e, no reverso, to
dos os predicados básicos de uma língua compõem o seu
léxico, sendo este, pois, o estoque completo das estru
turas predicativas básicas (predicados e termos da língua).
Todos os predicados são semanticamente interpretados
como designadores de propriedades ou de relações, e
diferentes categorias de predicados se distinguem, de
acordo com suas propriedades formais e funcionais.
82 • capítulo 4
Diz Siewierska (1991) que o que exatamente dis
tingue a gramática funcional de Dik das outras corren
tes funcionalmente orientadas é que ela objetiva dar conta
da estrutura da sentença, desde a representação semân
tica subjacente até a forma fonética de superfície.
Em Dik, a descrição de uma expressão lingüística
começa com a construção de uma predicação subjacen
te que é, então, projetada na forma da expressão por meio
de regras que determinam a forma e a ordem em que os
constituintes da predicação subjacente são realizados.
A predicação subjacente é basicamente formada por meio
da inserção de “termos” (isto é, expressões que podem
ser usadas para referir-se a unidades em um dado mun
do) em “estruturas de predicado” (esquemas que espe
cificam um predicado juntamente com um esqueleto das
estruturas nas quais ele pode aparecer). Os predicados
constituem os blocos de construção mais básicos no ní
vel morfossemântico da organização lingüística. Para a
construção de predicações subjacentes são necessários,
então, pelo menos, um conjunto de estruturas de predi
cado e um conjunto de termos. A esses dois conjuntos
reunidos, Dik (1989a, p. 51 et seq.) chama fundo da
língua. Dentro do “fundo”, está o léxico, que contém as
expressões básicas da língua, isto é, os predicados bási
cos e os termos básicos; cada um desses dois subcon
juntos pode ser estendido por meio de regras sincroni-
camente produtivas, formando, respectivamente, predi
cados derivados e termos derivados. Tanto a formação
de predicado como a formação de termo têm proprieda
des recursivas, e, assim, o “fundo” oferece um estoque
praticamente ilimitado de esquemas de predicado e de
estruturas de termos para a construção de predicações.
capítulo 4 • 83
A construção da estrutura subjacente da cláusula
requer, pois, antes de mais nada, um predicado. O pre
dicado - que designa propriedades ou relações - se aplica
a um certo número de termos - que se referem a entida
des - produzindo umapredicação, que designa um esta-
do-de-coisas, ou seja, uma codificação lingüística (e pos
sivelmente cognitiva) que o falante faz da situação.
E n t id a d e s 1 2 3
P a p e l s e m â n tic o a g e n te o b je to re c e b e d o r
T erm os m e n in o liv ro m e n in a
84 • capítulo 4
um estado-de-coisas: assume-se a existência de um mun
do em que uma pessoa chamada “Pedro” entrega uma
coisa do tipo “livro” a uma pessoa do tipo “menina”.
Sendo algo que pode ocorrer em um determinado mundo,
um estado-de-coisas está sujeito a determinadas opera
ções, isto é, ele pode ser: localizado no espaço e no tem
po; ter uma certa duração; ser visto, ouvido, ou, de algum
modo, percebido.
Desse modo, um operador de tempo, como Passa
do, pode localizar no tempo o estado-de-coisas tomado
aqui como exemplo, e um constituinte como (na rua) po
de localizar esse estado-de-coisas no espaço:
capítulo 4 • 85
Pass[ver (João) (e^)]
ej = Pass {[entregar (Pedro) (o livro) (à menina)] (na
rua)}
86 • capítulo 4
uma proposição encaixada. Na verdade, é em fatos pos
síveis que se pode acreditar, não em estados-de-coisas.
Voltando-se à predicação que serviu de exemplo ini
cial, “Pedro entregou o livro à menina na rua”, resta apon
tar que a sua análise completa não se esgota com as in
dicações já dadas, mas que às proposições são aplicados,
ainda, operadores ilocucionários, como se representa em:
DECL (xt)
x ~ Pass {[entrega (Pedro) (o livro)(à menina)] (na rua)}
capitulo 4 • 87
UNIDADE TIPO DE
ORDEM VARIÁVEL
ESTRUTURAL ENTIDADE
PREDICADO propriedade/relação f- f-
1,, I j , ...
88 • capítulo 4
4. [-din] [-con]: Estado (situação)
• [caracóis escuros] que lhe caíam sobre a testa
(sit, est)
• estava lá Otávio (sit, est)
• Maneco Manivela conserva-se naquela mesma ten
são (sit, est)
Uma subtipologização atribui os traços (concer
nentes a “telicidade”) [+tel] e [—tel] aos estados-de-coi-
sas dinâmicos:
1.1. [+din] [+con] [+tel]: Realização (Evento, Ação)
•Nando lançou um olhar aos companheiros (ev,
ação, real)
• Ramiro esfregou os braços (ev, ação, real)
• a rapariga encolheu-se (ev, ação, real)
1.2. [+din] [+con] [-tel]: Atividade (Evento, Ação)
• Ramiro fitava a porta trêmulo (ev, ação, ativ)
• Otávio o mirava firme (ev, ação, ativ)
• o passarinho e o corcunda caminhavam à frente
do grupo (ev, ação, ativ)
2.1. [+din] [-con] [+tel]: Mudança (Evento, Processo)
• altos muros ruíram em silêncio (ev, proc, mud)
• a campainha entrou na minha prise (ev, proc,
mud)
• você perdeu o show (ev, proc, mud)
capítulo 4 • 89
Uma subtipologização ulterior ainda compartimen
ta os Eventos [+tel] (Realizações e Mudanças) confor
me o traço (concernente a “momentaneidade”) [± mom],
mas a esses subgrupos não se conferem denominações
especiais. O traço [± exp], por seu lado, subcategoriza
todos esses tipos distinguidos por meio dos traços já
considerados, marcando-os segundo haja, ou não, no es-
tado-de-coisas, um ser animado que “perceba, sinta, de
seje, conceba ou, de algum modo, experimente algo”
(DIK, 1989a, p. 98).
A predicação - que constitui o núcleo de uma estru
tura de cláusula subjacente - pode ser descrita segundo
os três níveis:
1) predicação nuclear (nuclear predication): predica
do e seus argumentos (consiste na aplicação a algum pre
dicado de um número apropriado de termos que preen
chem as posições argumentais daquele predicado);
2) predicação central (core predication): predicação
nuclear estendida pelos operadores de predicado (meios
gramaticais que fazem distinções aspectuais, como “im-
perfectivo” ou “perfectivo”, os quais especificam a orga
nização temporal interna dos estados-de-coisas) e satéli
tes de nível 1 (que indicam modo, velocidade, instrumen
to); pode ocorrer de a predicação nuclear e a predicação
central serem iguais, já que a manifestação da perfectivi-
dade ou imperfectividade depende de cada língua, e os
satélites são opcionais;
3) predicação estendida (extendedpredication): pre
dicação central estendida pelos operadores de predicação
(meios gramaticais pelos quais, ficando a estrutura do
predicado intacta, um estado-de-coisas é localizado por
coordenadas temporais e cognitivas, como Passado, ou
90 • capítulo 4
Modalidade Objetiva) e satélites de nível 2; é nesse ní
vel que as funções sintáticas (Sujeito e Objeto), que re
presentam pontos de vista, começam a operar.
A proposição consiste de uma variável de conteú
do proposicional Xj que simboliza um fato possível,
especificado pela predicação estendida, pelos operado
res (modalidade subjetiva, crença, esperança) e pelos
satélites de nível 3 (que nada mudam no estado-de-coi-
sas, apenas restringem o valor que o falante confere ao
conteúdo proposicional). Esses elementos de nível 3
servem para especificar a avaliação que o falante faz
do fato possível definido pela proposição, e seu com
promisso com esse fato possível.
A cláusula consiste de uma variável de ato ilocu-
cionário Ej que simboliza o ato de fala expresso pela cláu
sula, especificado pela proposição, pelos operadores
ilocucionários (Declarativo, Interrogativo, Imperativo)
e pelos satélites ilocucionários de nível 4.
Atribuem-se, então, as funções pragmáticas de Tó
pico e Foco.
Dik (1989a) apresenta, pois, a estrutura subjacente
de cláusula como uma rede estratificada complexa na
qual um grande número de diferentes elementos pode
operar em diferentes níveis, criando toda sorte de depen
dências. As regras de expressão, que medeiam entre
essa rede subjacente e a forma real das expressões lin-
güísticas, também formam uma estrutura complexa.
A gramática funcional é, pois, para Dik, uma teoria
de componentes integrados, e, como diz Auwera (1989),
referindo-se a Dik (1978), inclui a pragmática desde os
seus primeiros trabalhos. A própria função referencial
da linguagem é considerada como uma ação pragmáti-
capitulo 4 • 91
ca, cooperativa: um falante quer levar um destinatário a
deduzir uma mensagem coerente, a partir do conheci
mento dos significados codificados nos signos, do co
nhecimento da situação e do conhecimento do mundo
posto sob consideração, isto é, a partir da informação
pragmática (Dik, 1978, p. 128). A linguagem é concebida,
então, como aquele componente da competência comu
nicativa do homem que o habilita a estabelecer relações
comunicativas por meio das expressões lingüísticas (Dik,
1978, pp. 1-6). Diz Dik (1978, p. 2) que uma teoria da gra
mática não deve contentar-se em expor as regras da língua
como uma finalidade em si, mas deve tentar, o quanto
possível, explicar essas regras em termos de sua fun
cionalidade em relação aos modos como são usadas e
em relação aos propósitos desses usos.
A consideração de “camadas” permite que se exa
mine o enunciado efetivo (no evento da fala) distinguindo
o escopo dos diferentes operadores (meios gramaticais)
e satélites (meios lexicais) que interferem em cada uma
das fases. Com esse aparato, explicam-se, por exemplo,
as relações entre modalidade, de um lado, e tempo e aspec
to de outro, além de se explicarem diferentes instâncias da
própria modalização.
No estudo da modalização fica muito evidente a es
truturação por níveis (Neves, 1994b). Como se obser
vou pela explicitação dos tipos de estados-de-coisas, no
próprio predicado está o aspecto qualificacional (Aktion-
sart), como, por exemplo, o traço [+tel]/[-tel]. Os valo
res desses parâmetros podem alterar-se, porém, por fle-
xões verbais do tipo de perfeito ou imperfeito. No nível
da predicação, a seguir, funcionam as operações que
localizam o estados-de-coisas por ela designado no eixo
92 • capítulo 4
do tempo relativo ao ato de fala (ou a outros estados-
de-coisas): aí atuam os operadores que conferem tempo
(;tempo de ocorrência) e aspecto quantificacional (fre
quência de ocorrência), bem como modalidade objetiva
e polaridade. Dessa maneira, pode-se dizer que aspecto
semelfactivo ou iterativo não modifica a estrutura inter
na de um estado-de-coisas (como ocorre com o aspecto
qualificacional, ou Aktionsart), apenas especifica quan
tas vezes um estado-de-coisas com uma dada estrutura
interna ocorre/ocorreu/ocorrerá. Em seguida, sobre a
proposição (já no nível interpessoal), situa-se a moda
lidade que Hengeveld (1989) chama epistemológica e
que abrange os meios pelos quais o falante expressa seu
compromisso com a verdade da proposição, fazendo uma
avaliação externa ao estado-de-coisas.
Está em Hengeveld (1989) o modelo de uma análi
se da “cláusula” em dois níveis, que pode ser conside
rada como uma certa integração do funcionalismo da
escola da Holanda com o de Halliday:
1) Representacional (relacionado com o evento nar
rado): o enunciatário compreende a que situação (real
ou não) se faz referência.
2) Interpessoal (relacionado com o evento de fala):
o enunciatário reconhece a intenção comunicativa do
enunciador.
No nível representacional estão os estados-de-coi
sas, entidades às quais as sentenças (como “expressões
referenciais”, que ocorrem em algum tempo e lugar) se
referem.
No nível interpessoal há uma estrutura ilocucioná-
ria abstrata, que expressa a relação entre o falante, o des
tinatário e a mensagem, ou conteúdo transmitido.
capítulo 4 • 93
A “cláusula” representa a combinação dos dois even
tos, o narrado e o de fala; nessa análise, a predicação
preenche duas funções:
a) designa o estado-de-coisas no nível representa-
cional (“predicação”);
b) representa o conteúdo do ato de fala no nível
interpessoal (“proposição”).
De um ponto de partida que é a predicação, passa-
se, subseqüentemente: à expressão referencial; à expres
são referente à unidade de informação (ou conteúdo trans
mitido em um ato de fala); finalmente, à fala real.
Ao tratar das “funções pragmáticas”, Dik (1989a)
mostra como uma mesma estrutura subjacente pode le
var a uma série de expressões alternativas, cada uma
delas diferente das outras pela entonação ou pela ordem
dos constituintes, como, por exemplo:
• Aquele fazendeiro matou o patinho.
• Aquele fazendeiro matou o paTINHo.
• Aquele fazendeiro maTOU o patinho.
• AQUEle fazendeiro matou o patinho.
• Aquele fazenDElro matou o patinho.
• O paTINHo aquele fazendeiro matou.
As diversas expressões não são intercambiáveis, já
que cada uma delas - e não as outras - é comunicativa-
mente adequada em uma determinada situação; por exem
plo, a segunda e a última das frases acima não caberíam
como resposta à pergunta “Quem matou o patinho?”,
que poderia, entretanto, ser respondida com a quinta das
frases. Essa diferença na aceitação é determinada pela
atribuição das funções pragmáticas aos constituintes da
estrutura subjacente das frases.
94 • capítulo 4
Funções pragmáticas são funções que especificam
o estatuto informacional dos constituintes em relação à
situação comunicativa em que eles são usados. Os mais
importantes parâmetros que distinguem as funções prag
máticas são “topicidade (que caracteriza “as coisas de
que falamos”) e “focalidade” (que caracteriza “as partes
mais importantes ou salientes daquilo que dizemos so
bre as coisas que são Tópicos”. Quando a língua dá um
tratamento distintivo especial a algum elemento tópico
ou focal, faz-se a atribuição das funções pragmáticas de
Tópico e de Foco, respectivamente.
Além dos constituintes frasais, existem constituintes
extrafrasais, isto é, constituintes que não são parte da frase
propriamente dita, mas se associam frouxamente a ela, po
dendo ser descritos mais adequadamente em termos de
funcionalidade pragmática. São expressões como:
• Bem [Iniciador], que é que você acha disso?
• Senhoras e senhores [Endereçamento], vamos come
çar a sessão?
• Quanto aos estudantes [Tema], eles não foram con
vidados.
• O João era, por assim dizer [Parêntese modal], um
estudante brilhante.
• Está fazendo calor, não esta! [Apêndice, Modifica-
dor ilocucionário].
• Ela é uma boa menina, a sua irmã [Esclarecimento].
Esses constituintes extrafrasais servem a variadas
funções pragmáticas, funções que, em geral, dizem res
peito: (i) ao monitoramento da interação; (ii) a comen
tários sobre o conteúdo da própria frase; (iii) à organiza
ção do conteúdo da expressão relativamente ao contexto
em que ela ocorre.
capítulo 4 • 95
Dik (1989a) não se dedica à explicitação das fun
ções pragmáticas extrafrasais, concentrando-se no estu
do da informação pragmática contida nos constituintes
internos da frase. Divide a informação pragmática em
geral (referente ao mundo, seus traços naturais e cultu
rais, e outros mundos possíveis e imaginários), situacio-
nal (derivada da percepção e da experiência dos partici
pantes da interação) e contextual (derivada das expressões
lingüísticas ocorrentes em qualquer ponto anterior ou
posterior da interação verbal).
Lembre-se o modelo de interação verbal proposto
em Dik (ver, acima, 2.3), segundo o qual o falante or
ganiza suas expressões lingüísticas de acordo com a sua
estimativa de qual seja a informação pragmática do des
tinatário no momento da interação, e com o objetivo geral
de provocar alguma mudança na informação pragmática
do destinatário, partindo, assim, normalmente, de algu
ma porção de informação que presumivelmente o des
tinatário já possua, e construindo, a partir daí, a infor
mação que ele pensa que seja nova para o destinatário e
que leve à modificação da informação pragmática deste.
Desse modo, uma expressão lingüística normalmente
contém alguma informação velha e alguma informação
nova, devendo interpretar-se “dado” e “novo” como sendo
mediados pela avaliação que o falante faz da informa
ção pragmática do destinatário: informação “dada” é a
que está contida na informação pragmática do parceiro
de interação, e informação “nova” é a que não está aí
contida. Pode ocorrer que a avaliação do falante não esteja
completamente correta, isto é, que ela não corresponda
plenamente à real estrutura da informação pragmática
do destinatário, e isso pode causar algum problema no
96 • capitulo 4
processo de comunicação. Entretanto, é a avaliação feita
pelo falante sobre a informação pragmática de seu par
ceiro, e não essa informação em si, que determina o mo
do pelo qual o falante organiza pragmaticamente suas
expressões.
As dimensões de topicidade e de focalidade são par
cialmente correspondentes à distinção “dado”/“novo”: a
topicidade caracteriza as entidades “acerca” das quais
a informação é oferecida ou é requerida no discurso, e a
focalidade se prende àquelas partes da informação que são
as mais importantes ou salientes para as modificações que
o falante deseja obter na informação pragmática do desti
natário, e para o desenvolvimento subseqüente do discur
so. Essas duas dimensões têm certa extensão de sobreposi
ção, podendo certos elementos ser ao mesmo tempo tópi
cos e focais para a comunicação, como mostra o esquema
seguinte (Dik, 1989a, p. 266):
topicidade
focalidade
capítulo 4 *97
A função pragmática de Foco pertence à dimensão
focal do discurso. A informação focal diz respeito às
mudanças que o falante quer trazer à informação prag
mática do destinatário, mudanças que podem tomar di
ferentes formas, como, por exemplo, um acréscimo ou
uma substituição. Tipicamente, então, a informação fo
cal, numa expressão lingüística, pertence à diferença
entre a informação pragmática do falante e a que ele
julga que seja a do ouvinte, sendo a informação focal a
que é apresentada como “nova”, ou como relevante, pa
ra o destinatário.
Verifica-se que, dentro dos princípios gerais de uma
“gramática funcional”, a teoria de Dik, como aponta
Gebruers (1984), tem como propósito oferecer “um qua
dro para a descrição científica da organização lingüís
tica em termos das necessidades pragmáticas da intera
ção verbal, na medida em que isso é possível” (p. 349).
É o próprio Dik que expressa a sua preocupação com
um ajustamento e desenvolvimento da teoria para que
ela possa chegar “a uma concepção funcional adequada
da organização das línguas naturais” (Dik, 1983, p. v).
98 • capítulo 4
Capítulo 5 Gramática funcional
e cognitivismo
capítulo 5 • 99
entre a gramática e a base conceptual existe uma relação
icônica. Entre esses está, por exemplo, Lakoff (1987),
que considera a gramática como uma categoria radial
de construções gramaticais, pela qual se estabelece uma
relação de correspondência entre o modelo cognitivo (que
caracteriza a significação) e os aspectos corresponden
tes da forma lingüística. Num a categoria radial existe um
centro categorial, e membros não-centrais, que se expli
cam como extensão motivada daquele centro. Um exem
plo é o do lexema mãe, cujas extensões (os diversos tipos
de mãe), de um lado, têm correspondência com o lexe
ma “central”, e, de outro, têm correspondência com os
diversos modelos cognitivos que podem estar ligados a
esse centro, como o da gestação (mãe natural), o da cria
ção (mãe de criação), etc. Ao lado dessa rede semânti
ca, postula-se, também, uma rede sintática, na qual de
terminados elementos (como there, no estudo de Lakoff)
deslizam de um tipo de construção (dêitica, por exemplo)
para outro tipo (existencial, por exemplo), que, por sua
vez, se estende motivadamente para outras construções.
Postula-se, assim, que as estruturas frasais não-centrais
se relacionam com estruturas centrais, nas quais a rela
ção entre forma e significado é regular e direta, e delas
derivam a correspondência entre forma e significado que
apresentam.
De Beaugrande (1993, cap. III, p. 5) considera que
o “tipo cognitivo” é um tipo interessante de gramática
“funcional” : é um a gramática que busca enriquecer-se
registrando programaticamente o “conhecimento de mun
do” como uma fonte decisiva de controle tanto para par
ticipação no discurso como para descrição ou explicação
do discurso. De Beaugrande defende, pois, uma gramá-
100 • capitulo 5
tica funcional-cognitiva, que reflete um “modelo de
mundo” do senso comum, não uma análise explícita e
completa da realidade. Dentro de uma gramática deste
tipo a escolha dos “centros de controle” se faz entre um
modelo centrado no “Participante” e um modelo cen
trado no “Processo”, preferindo-se este último por vá
rias razões, entre as quais o fato de que uma orientação
baseada no “processo” ajuda a incorporar o texto e o
discurso como “processos semióticos” dentro da gra
mática. Uma “gramática cognitiva” pode, assim, tratar
a organização de orações e de sintagmas por uma distin
ção inicial entre “processos”, e, a partir daí, entre os seus
“participantes”.
Segundo Givón (1991, p. 84), na consideração da
relação entre gramática e cognição é possível a adoção
de duas posições extremas, que podem ser pensadas co
mo as duas posições alternativas para a tradução de uma
língua em outra. Considere-se o modelo de três linhas da
transcrição lingüística de uma oração:
Linha 1: a oração na língua fonte
Linha 2: a tradução lingüística linear, morfema por mor-
fema
Linha 3: a tradução livre do significado
Numa posição A, a que Givón chama “universalista ex
trema”, a linha 3 constitui a verdadeira tradução da li
nha 1, e é, portanto, a adequada representação do even
to, do ponto de vista cognitivo. Num a posição B, a que
Givón chama “relativista extrema”, a tradução verda
deira da linha 1 é a linha 2, sendo esta, portanto, a ade
quada representação do evento do ponto de vista cogni
tivo. Os universalistas extremos raciocinam, assim, da
tradução para a cognição, enquanto os relativistas extre-
capitulo 5 • 101
mos - na esteira de W horf —raciocinam da gramática
para a cognição.
Givón (1991, p. 119), entretanto, estudando os ver
bos seriais em quatro línguas da Nova Guiné, não se co
loca em nenhuma dessas duas posições extremas: ele con
sidera que a correlação icônica entre o “empacotamento”
temporal e o “empacotamento” cognitivo se apóia tan
to na linguística como na psicologia experimental. Desse
modo, o fato de haver, numa das línguas que Givón es
tuda, eventos que são codificados em orações de multi-
verbos (verbos seriais), enquanto, no inglês, esses mes
mos eventos são codificados em orações de um único
verbo, não reflete, p o r si, diferenças profundas na cog
nição do evento, já que existe interferência dos diferentes
recursos que estão à disposição do falante, para codifi
cação dos eventos, nas diferentes línguas. A conclusão
do trabalho, apontando para o fato de que as constru
ções com verbos seriais não representam um diferente
modo cognitivo de segmentar a realidade, mas consti
tuem um fenômeno “tipológico”, remete para uma po
sição intermédia. Nessa posição, paradoxalmente, res
ponde-se à pergunta “A gramática reflete a cognição?”
com um sim e com um não, conforme qual seja o traço
da gramática levado em consideração. Em muitas áreas da
gramática se encontra uma variedade tipológica, com
diferentes línguas codificando por meios estruturais di
ferentes - embora muitas vezes relacionados - seme
lhantes tarefas do processamento da fala.
Constitui importante parte da investigação das re
lações entre gramática e cognição a questão relativa às
causas do processo de gramaticalização (ver cap. 6). Es
se tipo de investigação é o que fazem, por exemplo, Heine
102» capítulo 5
et alii (1991a: From Cognition to Grammar) e também
Heine et alii (1991b), que afirmam, mesmo, sua pre
sunção de que a gramaticalização “é iniciada por forças
que estão fora da estrutura lingüística” (pp. 23-24).
Liga-se a essa questão o processo da abstratização, ou
metaforização (ver 7.3.), que, desde o início dos anos 80,
vem sendo discutida como fenômeno altamente produ
tivo na linguagem, especialmente no campo das signi
ficações lexicais (Lakoff e Johnson, 1980), constituin
do-se num processo cognitivo básico. A sistematicida-
de da metáfora na linguagem foi acentuada por Lakoff
(1987), que aponta a natureza fundamentalmente meta
fórica do sistema conceptual humano. Martinet (1994,
p. 17), entretanto, chama a atenção para a necessidade
de não confundir a lingüística e o cognitivismo, isto é,
de tomar consciência do que aproxima e do que separa
os dois domínios.
capítulo 5 • 103
tura lingüística, e, de outro lado, a relação das partes na
estrutura daquilo que é significado. Dizendo de outro mo
do: “a estrutura da língua reflete de algum modo a estru
tura da experiência, ou seja, a estrutura do mundo, incluin
do (na maior parte das visões funcionalistas) a perspectiva
imposta sobre o mundo pelo falante” (Croft, 1990, p. 164).
Givón (1995) invoca como “tácita” e como “questão de
fé” para os funcionalistas a hipótese de um princípio de
meta-iconocidade tal como: “As categorias que são estru
turalmente mais marcadas são também substantivamente
mais marcadas.” (p. 58)
Estabelecendo um a analogia com a ciência bioló
gica, Givón (1984) define os princípios de iconicidade
como os “princípios que governam as correlações na
turais entre forma e função” (p. 30).
A consideração de uma motivação icônica para a
forma lingüística implica admitir (em maior ou menor
grau, dependendo do nível de radicalização), por exem
plo, que a extensão ou a complexidade dos elementos
de uma representação lingüística reflete a extensão ou
a complexidade de natureza conceptual.
.Newmeyer (1992) —que pretende, em seu trabalho,
demonstrar que o princípio da iconicidade é compatí
vel com a teoria chomskiana—aponta domínios nos quais
não havería nenhum problema na aceitação da atribui
ção de propriedades icônicas a aspectos do uso lingüís-
tico (por exemplo, o registro que o falante escolhe numa
determinada situação); desse modo, parece facilmente
natural que a assimetria social entre interlocutores pos
sa ser refletida numa assimetria lingüística, mas a idéia
de que a estrutura possa refletir fatores externos é mui
to menos evidente.
104» capítulo 5
Na verdade, uma iconicidade baseada no conceito
de Bolinger de que a linguagem “mantém uma forma para
um significado e um significado para uma forma” (1977,
p. x) não pode ser tomado como geral, como aponta
Haiman (1985), invocado por Givón (1995), por várias
razões, entre as quais a própria sujeição a que se sub
metem, de um lado, o código (erodido no atrito fonoló-
gico) e, de outro, a mensagem (modificada na elaboração
criativa). Os vários aspectos ligados ao caráter marca
do, ou não-marcado, dos enunciados envolvem grande
complexidade e têm de ser examinados independente
mente um do outro, de tal modo que a busca de correla
ção entre eles não invoque matéria de fé - que caracte
rizaria um “iconismo ingênuo” (Givón, 1995, p. 59) —
mas repouse sobre verificação empírica.
Haiman (1980 e 1985b) apresenta dois modos pe
los quais a estrutura conceptual pode aparecer refletida
na estrutura lingüística: o isomorfismo e a motivação,
que Croft (1990, p. 164) define, respectivamente, co
mo correspondência de partes e correspondência de re
lações entre partes.'O isomorfismo, que consiste numa
relação biunívoca entre forma (morfema, palavra ou cons
trução gramatical) e significado, parece bastante difícil
de ser defendido. Basta dizer que tanto homonímia co
mo sinonímia são evidências contra um pretendido iso
morfismo. A relação comumente considerada nos estudos
sobre iconicidade na linguagem diz respeito à motiva
ção icônica, que corresponde ao reflexo, nos elementos
estruturais, de relações análogas existentes na estrutura
semântica.
Toda a obra Syntax, de Givón (Givón, 1984) é uma
tentativa de identificar os princípios gerais que explicam
capitulo 5 • 105
o caráter icônico da linguagem humana, isto é, o cará
ter não-arbitrário da relação entre estrutura e função na
linguagem. Embora o livro se coloque primariamente
no campo da “sintaxe sincrônica” (p. 41), nele se acen
tua que, muito freqüentemente, o caráter natural e não-
arbitrário da relação particular entre uma estrutura e uma
função é derivado da história particular dessa relação,
mais do que de explanações funcionais sincrônicas. Den
tre os três grandes domínios funcionais codificados pela
linguagem humana (semântica lexical, semântica pro-
posicional e pragmática discursiva), Givón (1984, pp.
30-31) distingue o domínio da semântica lexical como
aquele no qual a relação entre o significado lexical e a
forma sonora possui o maior grau de arbitrariedade, em
bora se mantenha um certo grau de iconicidade.
Os estudiosos da iconicidade em geral invocam a
distinção do filósofo Peirce, que separou uma iconici
dade imagética de uma iconicidade diagramática: á pri
m eira constitui uma semelhança sistemática entre um
item e seu referente, com respeito a uma determinada
característica, enquanto a segunda se refere a um arran
jo icônico de signos, nenhum deles se assemelhando
necessariamente a seu referente, sob qualquer aspecto.
O exemplo mais conhecido desta última é a tendência
para a ordem da narrativa seguir a ordem dos eventos
que ela narra. E é a iconicidade desta última natureza
que tem importância em lingüística e que tem entrado
na investigação da organização das línguas, em parti
cular na investigação do fenômeno da gramaticalização
(ver cap. 6).
Vários tipos de iconicidade “diagramática” têm sido
estudados (Haiman, 1983, 1985a; Newmeyer, 1992), a
106 • capítulo 5
maior parte deles licenciada pelo caráter linear do enun
ciado lingüístico. O mais evidente deles é o que se liga
ao princípio da quantidade: um texto m aior deve conter
mais informação do que um texto menor, já que, admi
tida a relação icônica entre forma e organização do con
teúdo, maior quantidade de matéria fônica deve corres
ponder a maior quantidade de informação. Um segundo
tipo é a iconicidade de distância (ou de proximidade),
que se liga ao princípio segundo o qual a distância lin-
güística entre expressões corresponde à distância con-
ceptual existente entre elas; nesse sentido um verbo cau-
sativo, como matar, evidencia uma relação causativa
mais direta do que uma perífrase verbal de causativida-
de, como fa zer morrer.
Croft (1990) assim constrói um universal implicacio-
nal para descrever os fatos tipológicos que sustenta
riam a motivação icônica da distância lingüística: “Se
uma língua tem duas construções quase-sinônimas que
diferem estruturalmente em distância lingüística, elas, de
um modo paralelo, diferirão semanticamente em (entre
outras coisas) distância conceptual.” (p. 175) No cam
po da morfologia, Bybee (1985, pp. 24-25) mostra que
a distância lingüística no interior da palavra correspon
de iconicamente ao grau em que a semântica do afixo
afeta o significado da palavra. Assim, nos verbos, a ordem
da distanciação conceptual refletida na ordenação dos
afixos (e em termos da expressão lexical, derivacional ou
flexionai) é a seguinte: valência < voz < aspecto < tem
po < modo < concordância de pessoa/número. *
Outro tipo é a iconicidade de independência, liga
da ao princípio segundo o qual a separação lingüística de
uma expressão corresponde à independência conceptual
capítulo 5 • 107
do objeto ou evento que a expressão representa; assim,
nomes que se incorporam morfologicamente a outras pa
lavras perdem independência conceptual, comparativa
mente a nomes que não sofrem essa incorporação (Hai-
man, 1983). Outro tipo importante, ainda, é a iconicidade
de ordenação, regida pelo princípio segundo o qual o grau
de importância atribuído aos conteúdos de um texto pelo
falante, numa determinada situação de interação, de
termina a ordenação das formas, seja no nível oracio-
nal, seja no nível de organização do texto; é assim, por
exemplo, que uma oração condicional precede geralmen
te a asserção conclusiva. Outros tipos são a iconicidade
de complexidade (a forma plural é maior que a singular,
a superlativa é maior que a normal, etc.) e a iconicidade
de categorização (sujeitos tendem a correlacionar com
agentes, objetos com pacientes, etc.). (Newmeyer, 1992)
Dentro do estruturalismo clássico, a iconicidade, co
mo qualquer tipo de motivação, não é admitida, já que ela
contradiz a visão da língua como um sistema autôno
mo, visão que se apóia exatamente na arbitrariedade do
signo lingüístico e na concepção de que o valor dos sig
nos não depende absolutamente do mundo exterior, mas,
pelo contrário, se estabelece exclusivamente no interior
do sistema, em relações de oposição no paradigma. A
abordagem estruturalista implica, pois —desde que não
é possível negar-se uma relação entre a língua e seu
uso, abrigada na própria dicotomia langue/parole - , uma
separação bem nítida entre o estudo do sistema da lín
gua - que seria a lingüística propriamente dita - e o es
tudo ligado a fatos concretos do uso da língua, como, por
exemplo, a sociolingüística, a fonética, a etnografia lin
güística, etc.
108* capitulo 5
Para os funcionalistas, diferentemente, a língua não
pode ser vista como absolutamente independente de to
das as forças externas, embora se reconheça a utilidade
de uma distinção entre lingüística interna e lingüística
externa. Du Bois (1985) propõe que as gramáticas sejam
tratadas como sistemas adaptáveis, isto é, como siste
mas parcialmente autônomos (por isso, sistemas) e par
cialmente sensíveis a pressões externas (por isso, adap
táveis). Em oposição à estrutura conceptual dos estrutu-
ralistas, na qual as únicas forças que organizam a língua
são as internas, está a estrutura conceptual ligada a um
funcionalismo que Du Bois denomina transparente (ou
sincrônico), no qual se presume que todos os fatos sin
táticos aparentemente autônomos são realmente resul
tados transparentes dos objetivos funcionais do falante,
e que, portanto, existe uma interação entre as forças exter
nas e as internas. Sua posição, entretanto, é de rejeição
a uma radicalização, já que, para se admitir a língua co
mo sistema, é necessário admitir-se que ela tem uma
continuidade de existência; na verdade, as categorias gra-
maticalizadas ficam no sistema e são reutilizadas “em
uma forma mais, ou menos, cristalizada ou materializa
da” (p. 362). É por isso que, segundo Du Bois (1985), o
funcionalismo “transparente” não consegue construir pro
priamente o mais fundamental aspecto interno da gra
mática, o processo de gramaticalização.
Na verdade, não é fácil sustentar argumentos a favor
da iconicidade, já que a estrutura do que é significado é
alguma coisa ainda não estabelecida, e talvez impossí
vel de estabelecer-se. As dificuldades vão desde a ques
tão da própria relação entre a estrutura da realidade fí
sica e a estrutura da conceptualização dessa realidade pelo
capítulo 5 • 109
homem, até à questão da dificuldade de apreensão de
uma organização conceptual que se faça independente
mente da linguagem. É absolutamente consensual que
não estão disponíveis modelos de mundo de base psi
cológica ou filosófica que não se tenham moldado den
tro da estrutura lingüística, de tal modo que fica difícil
estabelecerem-se evidências de direcionalidade do pro
cesso de organização conceptual.
Examinando problemas desse tipo, Croft (1990) re
verte, porém, o argumento, considerando que “a iconi-
cidade da linguagem hum ana é uma hipótese utilizável
na proposição de hipóteses de estrutura cognitiva que
podem ser testadas e confirmadas ou rejeitadas pela pes
quisa psicológica cognitiva” (p. 172). Para ele, esse é
realmente um modo razoável de proceder, porque a lín
gua oferece a faceta mais explícita e mais facilmente
observável do comportamento cognitivo, e, portanto, pode
ser vista mais facilmente como produtor do que como veri
ficador de hipóteses, com respeito à estrutura cognitiva.
Uma posição intermediária postula a interação de
forças internas e externas, que entram em competição e
que se resolvem no sistema. Afinal, exatamente por cons
tituir uma estrutura cognitiva é que a gramática é sensível
às pressões do uso; ou seja: flexível, porque ajustável
(a partir de centros categoriais, ou núcleos nocionais),
a gramática é passível de acomodação sob pressões de
ordem comunicativa.
A observação dos princípios icônicos que regem a
colocação dos termos no enunciado apresentados por
Haiman (1985a), e lembrados aqui, revela, por exem
plo, um certo conflito: é a informação nova que geral
mente tem maior importância na mente do falante; então,
110* capítulo 5
li
pelo primeiro princípio, ela deve vir depois, no encadea-
mento do enunciado, mas pelo terceiro princípio ela deve
vir antes. Isso significa que as duas motivações entram
em competição na ordenação dos termos. Do mesmo m o
do, podem entrar em competição o segundo princípio e
o terceiro, como observa o próprio Haiman (1985a), já
que constituintes que tendem a ser colocados juntos por
um dos princípios tendem a ser separados pelo outro.
Du Bois (1985) chama metagramática (parte do que
ele denomina ecologia da gramática) à abordagem “pan-
crônica” que descreve e analisa a interação de forças em
conflito em determinados contextos e, afinal, prediz a re
solução da competição.
A competição de motivações internas (fonológicas,
sintáticas, semânticas) é facilmente examinável na lin
güística histórica: na evolução de uma determinada forma
lingüística, por exemplo, uma analogia semântica ba
seada na categoria de número pode motivar certa mudan
ça no alinhamento do paradigma, enquanto uma analo
gia baseada na categoria de pessoa pode motivar outro
tipo de mudança no paradigma, e, nesse caso, as duas for
ças vão competir no governo da forma morfológica. A
competição entre forças puramente externas, por outro
lado, é privilegiadamente observada no campo da ter
minologia, onde a denominação icônica de um objeto,
por exemplo, pode sofrer pressão tanto da sua funcio
nalidade como da sua forma, ou ainda de outras de suas
características. E, afinal, na gramática, em primeiro lu
gar e acima de tudo, entram em competição uma m oti
vação interna e uma externa, ou, ainda, mais de uma,
ao mesmo tempo, e em mais de um domínio. Na expli
cação das gramáticas como “sistemas adaptáveis”, Du
capítulo 5*1 1 1
Bois (1985) diz que forças motivadoras originadas em
fenômenos externos penetram no domínio da língua, onde
se encontram com forças internas; nessa visão, fenômenos
reconhecidos como intrinsecamente lingüísticos são tra
tados como forças dinâmicas, em vez de estruturas fixas,
categorias, ou entidades. Facilmente se observa na lín
gua a competição entre economia e iconicidade, fenô
meno analisado extensamente em Croft (1990). Um
exemplo é a competição entre a motivação econômico-
paradigmática para restringir o vocabulário, e a m oti
vação icônica para dispor-se de uma palavra distinta pa
ra cada conceito distinto, conflito cuja resolução pode
dar origem à polissemia (no caso de predominância da
economia). Nesse sentido se podería explicar também
a impossibilidade da sinonímia, que representaria uma
resolução não-econômica e não-icônica, ao mesmo
tempo.
Pode-se dizer, afinal, recorrendo à distinção entre
léxico e gramática de Talmy (1988), que cabe à gramá
tica configurar o conteúdo cognitivo (que está, basica
mente, no léxico), organizando-o comunicativamente.
Ressalta, ainda, a estreita vinculação entre a com
petição de motivações e o fenômeno da gramaticaliza-
ção, que, segundo Du Bois (1985), equilibra as forças
em competição: “é em grande parte a necessidade de re
solver consistentemente a competição entre diversas m o
tivações externas que leva, em primeiro lugar, à existên
cia - como uma estrutura fixa - da própria gramática”
(p. 360).
112* capitulo 5
Capítulo 6 O processo da
gram aticalização
capítulo 6 * 1 1 3
Condillac explicou as desinências pessoais do verbo pe
la aglutinação de pronomes pessoais, e afirm ou que o
tempo verbal vem da coalescência de um advérbio tempo
ral com o tema verbal. Lehmann (1982) refere-se, ainda,
a John Home Tooke, que, numa obra de etimologia (Epea
Pteroenta, or The Diversions ofPurley; vol. I: 1786; vol.
II: 1805), afirm a que as proposições derivam de nomes
e verbos. Entretanto, ninguém antes de Meillet chegou
tão longe em suas conclusões sobre o processo de gra-
maticalização do que Wilhelm von Humboldt. Hopper &
Traugott (1993, p. 18) também destacam, entre os “pre-
decessores” de Meillet, especialmente Wilhelm von Hum
boldt, que publicou em 1822 uma obra intitulada “So
bre a gênese das formas gramaticais e a influência des
sas formas na evolução das idéias”, onde se sugere que
a estrutura gramatical das línguas humanas foi precedi
da por um estágio evolucionário da língua no qual só as
idéias concretas poderíam ser expressas.
Quanto ao trabalho posterior a Meillet, Hopper &
Traugott (1993, pp. 24-25) apontam apenas o interesse de
alguns indo-europeístas, como Jerzy Kurylowicz e Calvert
Watkins (na década de 60), já que o foco das pesquisas
passou a ser, até os tempos atuais, quase exclusivamente
sincrônico, com a mudança lingüística sendo vista como o
ajustamento entre estágios sincrônicos isolados. Lembram
que Benveniste, em artigo de 1968 sobre mudanças de ca
tegorias lingüísticas, repetiu muito do que Meillet dissera
em 1912 sobre a gramaticalização de verbos auxiliares a
partir de verbos lexicais, usando, mesmo, exemplos de
Meillet, mas, significativamente, não fazendo, em nenhum
momento, referência à sua obra nem usando o termo “gra
maticalização”, ou qualquer equivalente.
114» capítulo 6
Quanto à revivescência do estudo do fenômeno, o
que se aponta, em particular, é a influência do interesse
pela pragmática e pela tipologia, na década de 70, pro
cesso cujo início é atribuído a Givón (1971), que lançou
o slogan: “A morfologia de hoje é a sintaxe de ontem”,
e que mostrou, com a evidência de línguas africanas, que
formas verbais que hoje são radicais com afixos remon
tam a arranjos de pronomes com verbos independentes.
Está em Heine et alii (op. cit., pp. 3 e 148) a “hoje
clássica” definição de gramaticalização, que foi dada por
Kurylowicz ([1965] 1975, p. 52) e que é a que adotam:
“Grammaticalization consists in the increase of the range
o f a morpheme advancing from a lexical to a gramma-
tical or from a less grammatical to a more grammatical
status, e. g. from a derivative formant to a inflectional
one.” A definição de Hopper & Traugott (1993, p. xv)
é bastante semelhante: a gramaticalização é definida co
mo o processo pelo qual itens e construções gramaticais
passam, em determinados contextos lingüísticos, a ser
vir a funções gramaticais, e, uma vez gramaticalizados,
continuam a desenvolver novas funções gramaticais.
Gramaticalização, na verdade, é um termo que não
se define num sentido exatamente igual nos diversos es
tudiosos. Entretanto, segundo Traugott e Heine, que orga
nizaram uma coletânea de vinte e cinco trabalhos sobre
o tema (Traugott e Heine, 1991, vol. I), pode-se dizer
que o termo se refere à parte da teoria da linguagem que
tem por objeto a interdependência entre langue e paro-
le, entre o categorial e o menos categorial, entre o fixo
e o menos fixo na língua. O estudo da gramaticaliza
ção, portanto, põe em evidência a tensão entre a expres
são lexical, relativamente livre de restrições, e a codifi
capítulo (5*115
cação morfossintática, mais sujeita a restrições, salien
tando a indeterminação relativa da língua e o caráter
não-discreto de suas categorias.
Na própria cunhagem do termo que designa esse ti
po de fenômeno há divergências. Observe-se que, nessa
coletânea de Traugott e Heine, que traz o termo gram-
maticalization no seu título e no título de nove dos tra
balhos, ocorrem ainda duas outras variantes: grammati-
cization (usada no título de cinco dos trabalhos) e gram-
matization (usada no título de um dos trabalhos). O termo
que tem a preferência nessa coletânea, grammaticali-
zation, é, também, o termo usado em vários dos mais re
presentativos estudos sobre o tema (Heine et alii, 1991a;
Hopper, 1991; Hopper e Traugott, 1993). Para Traugott
e Heine (1991), pelo menos no que se refere aos traba
lhos que a obra abriga, os termos parecem não ter, en
tretanto, a mesma acepção, já que os que usam o termo
grammaticization tendem a tratar o fenômeno do ponto
de vista sincrônico. Hopper & Traugott (1993) indicam
que uma distinção que se tem notado no uso desses dois
termos é, de fato, a ligação maior de gramaticalização
com a perspectiva histórica e de gramaticização com a
visão sincrônica da mudança contínua de categorias e
significados. Além desses termos, Heine et alii (1991a,
p. 149 e 1991b, p. 3) citam outros termos alternativos que
vêm sendo usados e que, na verdade, designam aspectos
particulares do processo: sintaticização, descoramento
semântico, enfraquecimento semântico, desvanecimen-
to semântico, reanálise, condensação, redução, etc.
A primeira divergência na consideração da gram a
ticalização diz respeito, exatamente, à avaliação do campo
116» capítulo 6
primário no qual o fenômeno tem de ser colocado: dia-
cronia ou sincronia?
Uma questão de grande pertinência nos estudos de
gramática funcional é essa oposição entre sincronia e
diacronia. É óbvio que ver a língua em seu funcionamen
to implica vê-la a serviço das necessidades dos usuários,
e, a partir daí, em constante adaptação. Como diz Mar-
tinet (1994, p. 17) - para quem não se pode confundir
sincronia com estaticidade - , todo estado de língua está
sempre em curso de evolução: uma descrição sincrônica
implica não apenas que sejam marcadas, a cada ponto,
as latitudes de variação não impedidoras do estabeleci
mento da comunicação, mas ainda que o funcionamen
to sincrônico só possa ser destacado e descrito se forem
contrastadas as variações existentes entre as gerações e
as classes sociais em presença. Os fatos de evolução,
então, têm de ser observados “sem outro a priori que a
utilização da língua para comunicar a experiência” (loc.
cit.); a partir daí, não há necessidade de se isolar uma
sociolingüística que coloque os fatos de evolução em de
pendência da estruturação econômico-cultural.
Até 1970, dizem Heine et alii (1991b, pp. 10-11), a
gramaticalização foi vista principalmente como parte da
lingüística diacrônica, como um meio de analisar a evo
lução lingüística e reconstruir a história de uma deter
minada língua ou grupo de línguas, ou, ainda, de relacio
nar as estruturas lingüísticas do momento com os padrões
anteriores do uso lingüístico. Desse modo, um dos prin
cipais méritos dos estudos sobre gramaticalização pos
teriores a 1970 seria a atenção dada ao potencial que eles
oferecem como um parâmetro explanatório para a com
preensão da gramática sincrônica.
capítulo ó • 117
Hopper & Traugott (1993, p. 2) indicam duas “pers
pectivas” de estudo da gramaticalização: a “histórica”,
que estuda as origens das formas gramaticais, bem como
as mudanças típicas que as afetam, e a “mais sincrôni-
ca”, que estuda o fenômeno do ponto de vista de pa
drões fluidos de uso lingüístico.
Heine et alii (op. cit.) tratam a gramaticalização
defendendo que é injustificável e impraticável uma se
paração rígida entre diacronia e sincronia, já que uma
não pode ser entendida independentemente da outra; desse
modo, a gramaticalização pode ser descrita alternativa
mente como um fenômeno diacrônico ou sincrônico.
Uma posição pancrônica, como diz Burridge (1993),
referindo-se a Lichtenberk (1991), acentua a interdepen
dência entre o sistema lingüístico e o uso, e entre a na
tureza fluida da gramática e a importância da história
para a compreensão da gramática sincrônica; ou, como
ainda diz Burridge {op. cit) em referência a Nichols e
Timberlake (1991), enfatiza “a natureza interativa das
forças inovativas e idiomatizantes” (p. 144), rejeitando
a noção de gramaticalização como um processo que vai
para a ossificação, ou idiomatização.
A questão “diacronia” versus “sincronia” liga-se à
questão “caráter gradual” versus “caráter instantâneo”
da gramaticalização. Se considerado do ponto de vista
histórico, o processo é gradual1: o que ocorre é que, em
bora se possa encontrar, num determinado momento, uma
estrutura substituindo completamente outra, por um con
siderável período de tempo coexistem a forma nova e a
velha, que entram em variação, sob diversas condições;
e essa variação encontrada nada mais é do que o refle
xo do caráter gradual da mudança lingüística. Reine &
118» capítulo 6
Reh (1984, p. 15) afirmam que a gramaticalização é um
continuum evolutivo e que qualquer tentativa de segmen
tação de unidades discretas é arbitrária.
Explicando a gramaticalização vista na diacronia,
Givón (1991, p. 122) mostra que uma construção pode
desenvolver-se gradualmente no tempo: por exemplo,
no caso dos verbos seriais, que ele estuda, orações in
dependentes finitas podem chegar a uma gramaticaliza
ção plena, com passagens por estágios diversos. Do ponto
de vista cognitivo, entretanto, segundo Givón (que se
concentra, em particular, nas correlações entre “empa
cotamento” temporal e processamento da informação
nessas construções com verbos seriais), a gramaticali
zação é um processo instantâneo, envolvendo um ato
mental pelo qual uma relação de similaridade é reco
nhecida e é explorada: por exemplo, pode-se dar a um
item primitivamente lexical um uso gramatical, em um
novo contexto; e no momento mesmo em que, num de
terminado esquema, um item lexical está sendo usado
como marca gramatical, ele se gramaticaliza. Nessa se
gunda perspectiva do processo de gramaticalização,
como ainda aponta Givón (loc. c it), deve haver uma
distinção rigorosa entre, de um lado, a semântica e a
pragmática, ligadas à extensão analógica funcional, e,
de outro, a fonologia e a morfossintaxe, ligadas ao ajus
tamento lingüístico estrutural. Na primeira perspectiva
- a mudança diacrônica - , diferentemente, o ajustamen
to estrutural tende a ligar-se a uma reanálise funcional
elaborativo-criativa: o ajustamento no nível do código
vem após - às vezes bem após - alterações anteriores no
nível funcional.
capítulo 6 • 119
É fácil mostrar a existência de palavras funcionais
originadas em palavras de conteúdo lexical e que cons
tituem, pois, o que se poderia considerar como as ins
tâncias prototípicas da “gramaticalização”. São casos, por
exemplo, como o das preposições durante e mediante,
das locuções prepositivas apesar de, a p a r de, a fim de,
a despeito de, das conjunções consoante, conforme, se
gando, apenas, mal e das locuções conjuntivas como vw-
to que, visto como, uma vez que, posto que, se bem que,
a não ser que, de modo que, de maneira que, de form a
que, de sorte que.
A intervenção da pragmática na consideração do pro
cesso de gramaticalização, defendida por Givón (1979,
pp. 208-209), configura a visão do processo como uma
reanálise não apenas do material lexical em material gra
matical, mas também dos padrões discursivos em padrões
gramaticais. A passagem se daria, dessa maneira, no sen
tido do discurso para a manifestação zero, passando su
cessivamente pela sintaxe, pela morfologia e pela mor-
fofonêmica.
Por outro lado, há os que não exigem nem mesmo
um ponto de partida no material lexical, para a conside
ração do processo da gramaticalização, incluindo também
nesse processo o percurso feito a partir de um elemento
já gramatical. Heine etalii (1991b) abrigam sob o termo
gramaticalização tanto o percurso de um morfema do
estatuto lexical para o gramatical, como o percurso do es
tatuto menos gramatical para o mais gramatical. Do
mesmo modo, Lichtenberk (1991, p. 38) afirma que o
fenômeno abriga não apenas a evolução de um morfe
ma lexical para um morfema gramatical, como também
a aquisição de novas propriedades por um elemento já
120» capítulo 6
gramatical. Ainda Hopper (1991, pp. 17-35), rejeitan
do a noção de uma gramática estável, diz que todas as
partes da gramática estão sempre sofrendo mudanças,
e, por isso, os fenômenos gramaticais em geral podem
ser pensados como envolvidos na gramaticalização. Os
casos de itens lexicais que tomam função gramatical são,
entretanto, considerados como os casos prototípicos de
gramaticalização (Genetti, 1991, p. 247).
A unidirecionalidade da gramaticalização é tida co
mo uma característica básica do processo, partindo-se
do princípio de que uma mudança que se dá numa dire
ção específica não pode ser revertida. Heine etalii (1991b)
subespecificam em outras essa característica geral:
a) precedência do desvio funcional (conceptual ou se
mântico), sobre o formal (morfossintático e fonológico);
b) descategorização de categorias lexicais prototí-
picas;
c) possibilidade de recategorização, com restabele
cimento da iconicidade entre forma e significado;
d) perda de autonomia de um elemento (uma pala
vra autônoma passa a clítica, um clítico passa a afixo);
e) erosão ou enfraquecimento formal.
A característica uniderecional da gramaticalização
implica a consideração de uma escala do seguinte tipo
(Hopper & Traugott, p. 7):
- item de significado pleno > palavra gramatical > clí
tico > afixo flexionai.
Heine & Reh (1984) mostram que os três níveis da
estrutura lingüística afetados pela gramaticalização - o
funcional, o morfossintático e o fonético - em geral se
arranjam, na gramaticalização, nessa mesma ordem cro
nológica: os processos funcionais (como dessemantiza-
ção, expansão, simplificação) precedem os morfossintá-
capítulo 6 • 121
ticos (como permutação, composição, cliticização, afi-
xação), que precedem os fonéticos (como adaptação, fu
são, perda). Por outro lado, as alterações num nível se
acompanham de alterações em outro(s); assim, quanto
mais se completa o processo de gramaticalização de
uma unidade lingüística, m ais ocorre:
a) perda na complexidade semântica, na significa
ção funcional, no valor expressivo;
b) perda pragmática com ganho na significação sin
tática;
c) diminuição de m em bros num mesmo paradigma
sintático;
d) diminuição na variabilidade sintática, com maior
fixidez da ordem;
e) obrigatoriedade de uso em determinados contex
tos, com proibição de uso em outros;
f) coalescência sem ântica, morfossintática e foné
tica com outra(s) unidade(s);
g) perda de substância fonética.
Diz Hopper (1991, pp. 19-20) que a definição de
gramaticalização é m ais problemática se se tem como
objeto de investigação um a única língua, vista isolada
mente, e que, de uma perspectiva que leve em conta o
estudo de mais de uma língua, é possível chegar-se a re-
gularidades emergentes que têm potencial para ser ins
tâncias de gramaticalização:
1) Categorias como aspecto, número, tempo e cas
entre outras, ocorrem ffeqüentemente, nas línguas, na
morfologia afixai. Podem, entretanto, ocorrer sob for
mas mais livres, como, por exemplo, elementos adver
biais. Assim, categorias que são comumente morfologi-
zadas em uma língua podem em outra língua ser candida
tas a construções gramaticais emergentes. Um exemplo é
122* capítulo 6
a gramaticalização de parentéticos epistêmicos, como é o
caso da expressão I think, estudada por Thompson e
Mulac (1991, vol. II, pp. 313-330), que, usada como um
evidenciai, assume um estatuto quase gramatical.
2) Certos tipos de itens lexicais evoluem, tipicamen
te, para clíticos gramaticalizados e para afixos. Essas m u
danças são hoje muito ricamente documentadas, e al
guns exemplos são os casos de verbos de cópula e de
verbos de movimento que se tomam morfemas aspec-
tuais, e casos de nomes locativos que se tornam, even
tualmente, afixos casuais. A lista de mudanças desse ti
po em línguas africanas oferecida por Heine e Reh
(1984, pp. 269-281) é de relevância universal.
Essas são generalizações que, obtidas a partir de es
tudos comparativos de mais de uma língua, podem guiar
o estudo da gramaticalização numa língua particular.
6 .2 Princípios e efeitos
capítulo 6 • 123
discriminam entre os processos de mudança que resul
tam em gramaticalização e os que não resultam.
Os cinco princípios de gramaticalização discutidos
por Hopper (loc. cit.) são:
1) Estratificação, que se refere à coexistência de
formas com função similar, que podem, ou não, ser es
táveis: dentro de um amplo domínio funcional, novas
camadas emergem continuamente. As camadas velhas
não são necessariamente descartadas, mas podem coe
xistir e interagir com as novas. Assim: mistress, mrs,
miss representam diferentes graus do que foi origina-
riamente a mesma palavra; são diferentes “camadas”
de termos de tratamento (às quais alguns adicionariam
uma camada posterior, ms [miz]).
2) Divergência, que é um caso particular de estrati
ficação, já que também implica certa coexistência de
formas: quando uma forma lexical se gramaticaliza
passando a um clítico ou um afixo, a forma lexical ori
ginal pode permanecer como um elemento autônomo e
sofrer as mesmas mudanças que os itens lexicais co
muns. Assim: as formas mrs, miss e ms separaram-se
do substantivo original mistress, mas o nome permane
ce, com significado semelhante ao original.
3) Especialização, que se refere à possibilidade de
que um item se torne obrigatório, pela diminuição da
possibilidade de escolha: dentro de um domínio fun
cional é possível uma variedade de formas com dife
rentes nuanças semânticas; quando ocorre gramaticali
zação, essa variedade de escolhas formais se reduz e as
formas selecionadas, em número menor, assumem sig
nificados gramaticais mais gerais. Assim, por exem
plo: embora dados sobre as formas antecedentes de
124* capítulo 6
mistress como um termo de tratamento sejam difíceis
de rastrear, parece provável que em algum tempo m is
tress foi apenas uma dentro de um conjunto de denomi
nações possíveis para mulheres; outras provavelmente
incluíam termos de parentesco como mother, termos
de status como widow e termos familiares como gossip
(god-sib).
4) Persistência, que se refere à permanência de ves
tígios do significado lexical original, muitas vezes refle
tido em restrições sobre o comportamento gramatical do
item: quando uma forma sofre gramaticalização, de uma
função lexical para um função gramatical, enquanto ela
for gramaticalmente viável alguns traços de seus signifi
cados lexicais originais tendem a subsistir, e particulari
dades de sua história lexical podem ser refletidas em res
trições sobre sua distribuição gramatical. Assim, por
exemplo: a restrição da denominação mrs a mulheres
adultas reflete claramente a história do substantivo mis
tress, como uma forma feminina da designação master
(a separação da denominação miss para distinguir mu
lheres jovens ou não-casadas de mulheres casadas data
apenas do século XVIII).
I 5) Descategorização, que se refere a uma diminui
ção do estatuto categorial de itens gramaticalizados, e
conseqüente aparecimento de formas híbridas: ao so
frer gramaticalização, as formas tendem a perder ou
neutralizar os marcadores morfológicos e as caracterís
ticas sintáticas próprias das categorias plenas nome e
verbo, e a assumir atributos característicos de catego
rias secundárias como adjetivo, particípio, preposição,
etc. Assim, por exemplo: os nomes miss, mrs e ms são
descategorizados nesse duplo sentido; eles usualmente
capítulo 6 • 125
não têm a capacidade de receber acessórios morfossin-
táticos opcionais tais como artigos, demonstrativos e
possessivos (uma exceção deve ser feita quando mrs é
recategorizado como um substantivo pleno nas expres
sões “my/your/his m issus” e “the m issus”), e (com a
mesma exceção) eles não podem referir-se sozinhos a
um participante do discurso.
Ao apresentar seus “princípios”, Hopper (1991, p.
21) afirm a que seu objetivo é suplementar a caracteri
zação proposta por Lehmann (1985), na qual se indica
que alguns processos, operando concomitantemente, ca
racterizam a gramaticalização. Segundo Hopper, a carac
terização proposta por Lehmann só dá conta da grama
ticalização que se encontra num estágio bastante avan
çado e que já é inequivocamente reconhecida. O que
Lehmann (1985), na verdade, aponta são tendências. Elas
são as seguintes:
1) paradigmatização: as formas tendem a organi-
zar-se em paradigmas;
2) obrigatorização: as formas tendem a tornar-se
obrigatórias;
3) condensação: as formas tendem a tornar-se mais
curtas;
4) aglutinação/coalescência: as formas adjacentes
tendem a aglutinar-se;
5) fixação: ordens linearmente livres tendem a tor
nar-se fixas.
Na contraparte, a gramaticalização pode ser vista
do ponto de vista de seus efeitos - ou seja, da emergên
cia de novas categorias —mais do que do ponto de vista
do processo em si. As gramáticas das línguas naturais,
afinal, são “produtos de desenvolvimentos históricos,
entre eles a gramaticalização”, afirma Lichtenberk (1991,
1 2 6 » capítulo 6
p. 38), que aponta três conseqüências prototípicas decor
rentes do processo histórico da gramaticalização:
1) emergência de uma nova categoria gramatical;
2) perda de uma categoria existente;
3) mudança no conjunto de membros que perten
cem a uma categoria gramatical.
Esses três tipos são historicamente ligados: quando
elementos lingüísticos adquirem novas propriedades, eles
se tom am membros de novas categorias, isto é, ocorre
uma reanálise categorial; essa reanálise é, necessaria
mente, abrupta, já que um mesmo elemento não pode
ser simultaneamente membro de duas categorias gra
maticais distintas, embora diferentes ocorrências de um
morfema possam exibir propriedades características de
diferentes categorias, isto é, propriedades da categoria
velha e propriedades da categoria nova. Por outro lado
- retomando a explicação do caráter gradual da mu
dança - , uma forma que exibe, por exemplo, proprieda
des de uma categoria lexical pode começar a perder essas
propriedades, não simultaneamente, mas uma após a
outra: a forma nova não expulsa a forma velha imedia
tamente, mas começa a ser usada como variante cada
vez mais freqüente, até a completa substituição da for
ma velha.
Para Haiman (1991, pp. 153-154), duas espécies de
mudança são sempre associadas à gramaticalização: a
redução fonética e o descoloramento semântico. Sweetser
(1988), porém, prefere ver, no processo de gramaticali
zação, uma projeção metafórica, que vai de um domí
nio (que é fonte) para outro (que é meta), e no qual há,
ainda, aquisição de novo significado, o que descartaria
a consideração da existência de dessemantização envol
capítulo 6 • 127
vida no processo. Também Traugott e Kõnig (1991, p.
190) não concordam com a consideração do processo
de gramaticalização como “enfraquecimento” ou como
“descoramento”, que remonta, pelo menos, a Meillet,
porque essa interpretação implica considerar a grama
ticalização como uma espécie de empobrecimento, de
deficiência, de perda de integridade dos itens (<conden
sação, redução).
Ainda no que diz respeito aos efeitos da gramatica
lização, vale ser lembrada a indicação de Lehmann (1991,
p. 493) de que, em um certo sentido, o termo gramati
calização pode ser interpretado como “criação de uma
nova gramática” - o que implica igualar mudança se
mântica e gramaticalização - mas, num sentido mais
restrito, uma variação que afeta uma unidade lingüísti-
ca só é considerada gramaticalização se se faz na dire
ção de uma sujeição m aior dessa unidade às regras da
gramática. Três questões estão aí implicadas, segundo
o autor:
1) há passagem de um elemento menos gramatical
(inicialmente lexical) para um elemento mais gramatical;
2) há perda de substância tanto fonológica como
semântica; as restrições de seleção se afrouxam;
3) há diminuição de liberdade de manipulação do
elemento; ele se integra num paradigma, torna-se cada
vez mais obrigatório em certas construções e ocupa uma
posição (em última análise, morfológica) fixa.
Um exemplo clássico é o da passagem da forma ver
bal latina livre habere para uso em perífrase modal deôn-
tica (laudare habeo, “hei de louvar” = “devo louvar”),
e, a partir daí (no português e em outras línguas româ-
nicas), para uso como morfema temporal {louvar-ei).
128* capítulo 6
Como se ilustra nesse caso e como se pode observar nas
diversas investigações, o processo de regularização gra
matical que caracteriza a chamada gramaticalização é
mais facilmente encontrável no campo da morfologia;
afinal, como diz Craig (1991, p. 455), “a gramaticali
zação é o processo evolutivo pelo qual surgem morfe-
mas gramaticais”. Entretanto, o processo não se restringe
ao campo da morfologia, atingindo, também, a sintaxe.
O termo sintaticização, de Givón (1979c), denomina o
processo envolvido nos casos estudados por Heine e
Reh (1984), semelhantes aos apontados por Lehmann
(Lehmann, 1991, p. 493), no último dos itens arrolados
acima, processos nos quais uma ordem de palavras prag-
maticamente motivada se fixa em construções sintáticas
e em padrões de concordância abrigados na gramática.
O que de mais geral se pode dizer sobre a gramatica
lização é que o processo, dinâmico e histórico na sua es
sência - embora a interpretação possa ser sincrônica - , é
unidirecional, com uma unidade menos gramatical na
ponta de partida e uma unidade mais gramatical na ponta
de chegada, implicando, portanto, necessariamente, codi
ficação nova, e envolvendo, necessariamente, a morfolo
gia. Trata-se da passagem de menor para maior regulari
dade, e de menor para maior previsibilidade; e, afinal, no
percurso de uma regularização, trata-se de uma passagem
que torna o falante, num determinado ponto do enuncia
do, mais sujeito a determinações do sistema, e menos
livre para escolhas nas quais possa exercitar sua criativi
dade. No dizer de Traugott e Heine (1991, p. 4), na gra
maticalização, as duas fórmulas “item lexical > morfema”
e “discurso > morfossintaxe” se combinam na fórmula
“item lexical usado no discurso > morfossintaxe”.
capítulo 6*129
A noção de gramaticalização, afinal, tem relação
direta com a noção de que as gramáticas fornecem os
mecanismos de codificação mais econômicos para aque
las funções da linguagem que os falantes mais freqüen-
temente precisam cumprir. Assim, as gramáticas codi
ficariam melhor aquilo que os falantes mais usam (Du
Bois, 1985, p. 363). A motivação para a gramaticaliza-
ção, por outro lado, está tanto nas necessidades comu
nicativas não satisfeitas pelas formas existentes, como
na existência de conteúdos cognitivos para os quais não
existem designações lingüísticas adequadas, devendo
observar-se, ainda, que novas formas gramaticais podem
desenvolver-se a despeito da existência de estruturas
velhas funcionalmente equivalentes (Heine et alii, 1991,
pp. 29-30); é o caso, por exemplo, da forma portuguesa
de pretérito mais-que-perfeito composto {tinha falado),
ao lado da forma simples falara .
Quanto à questão da mudança semântica que acom
panha a gramaticalização, uma das maneiras de se ten
tar obter a caracterização - que, entretanto, não escla
rece a natureza do processo —é focalizar a transição da
forma fonte para a forma de chegada com base na dis
tinção lógica entre intensão e extensão: na gramaticali
zação, o conteúdo intensional do conceito é reduzido,
enquanto a extensão é ampliada, o que vale dizer que,
comparada com a estrutura de chegada, a estrutura fonte
tem menor intensão e maior extensão (Heine et alii,
1991b, p. 39). Para dar conta da generalização semânti
ca envolvida na gramaticalização, Willet (1988) indica
três hipóteses principais que podem ser depreendidas
das propostas recentemente feitas: a) a hipótese da ex
tensão metafórica (o significado mais concreto de uma
130 • capitulo 6
expressão se aplica a um contexto mais abstrato); b) a
hipótese da inclusão (os significados gramaticais são parte
da estrutura semântica interna presente na origem lexi
cal); c) a hipótese da implicatura (o mecanismo predo
minante para criar significados secundários, que gra
dualmente passam a significados primários, é a conven-
cionalização de implicaturas). Com base na investigação
do comportamento de diferentes línguas, Willet conclui
que a hipótese da extensão metafórica é a mais plausível.
Lembre-se, afinal, que, como apontam Heine et
alii (1991b, p. 29), a mesma finalidade principal, a de
“resolver problemas”, é indicada tanto para a gramati
calização como para a metáfora (Lakoff & Johnson,
1980) e para a mudança semântica (Traugott, 1988).
6 .3 A abstratização. A metáfora
capítulo (5*131
ços distintivos de um conceito, com limitação às carac
terísticas centrais; b) a abstração isoladora (possivel
mente um subtipo especial do tipo anterior), que separa
uma propriedade ou um traço particular que não é ne
cessariamente o “núcleo característico” do conceito; c)
a abstração metafórica (mais complexa e mais difícil
de descrever), que serve para relacionar conceitos “mais
abstratos” a conceitos m ais concretos por meio de do
mínios conceptuais, com os últimos sendo “veículos me
tafóricos” para os primeiros. Este último tipo é consi
derado como o que está na base da gramaticalização.
A gramaticalização já foi, mesmo, apontada como
um “subtipo” da metáfora, considerada como um “des
vio metafórico em direção ao abstrato” (Matisoff, 1991,
p. 384). Entende-se, em geral, porém, que essa vincula-
ção não é necessária, já que a metáfora, embora tenha
sido tradicionalmente vista como central para a mudan
ça semântica, não é o único processo ligado à gramati
calização.
Heine et alii (1991a, p. 150) apontam, como básico
na gramaticalização, o princípio que Werner e Kaplan
(1963, p. 403) denominaram “princípio da exploração
de velhos meios para novas funções” . Por esse princí
pio, conceitos concretos são empregados para enten
der, explicar ou descrever fenômenos menos concretos,
c entidades claramente delineadas/claramente estrutu
radas conceptualizam entidades menos claramente de-
lineadas/menos claramente estruturadas: experiências
não-físicas são entendidas em termos de experiências fí
sicas, tempo em termos de espaço, causa em termos de
tempo, relações em termos de processos cinéticos ou de
relações espaciais, etc. E nesse sentido que a gramatica-
132* capítulo 6
lização é um processo de base metafórica, já que sua fun
ção primária é a conceptualização obtida na expressão
de uma coisa por outra; além disso, como indicam Heine
et alii (1991a, p. 151), a maior parte dos conceitos que
entram nos processos de gramaticalização se referem a
objetos concretos, a processos ou a locações. O que ocor
re é que, necessitando especificar uma nova relação ou
fortalecer uma que já existe mas está enfraquecida, o
falante, na intenção de ser claro, usa o termo mais con
creto possível (Traugott, 1980, p. 54).
É óbvio que, nesse tipo de consideração, entram em
questão não apenas as metáforas “estruturais” (Lakoff,
1980) - casos em que um conceito é estruturado em
termos de outro —mas especialmente as metáforas “orien-
tacionais” —casos em que o conceito emerge de uma
orientação espacial: acima-abaixo, dentro-fora, frente-
trás, fundo-raso, central-periférico.
A base metafórica da gramaticalização pode ser de
preendida também nesta apresentação das tendências
apontadas como caracterizadoras da mudança semânti
ca (Genetti, 1991, p. 248):
1) os significados baseados na situação externa pas
sam a significados baseados na situação interna (avalia-
tiva / perceptual / cognitiva);
2) os significados baseados na situação externa ou
interna passam a significados baseados na situação tex
tual (= coesiva);
3) os significados tendem a tomar-se cada vez
mais baseados na atitude subjetiva do falante diante da
situação.
A análise das mudanças semânticas pode ser feita
numa leitura metafórica, segundo o arranjo linear das cate
capítulo <5*133
gorias conceptuais. Heine etalii (1991a, 1991b) apresen
tam o seguinte arranjo de categorias conceptuais, no qual
cada categoria pode ser conceptualizada por uma das
categorias à sua direita, resultando naquilo que esses
autores chamaram “metáforas categoriais” :
PESSOA > OBJETO > ESPAÇO > TEMPO >
PROCESSO > QUALIDADE.
Essa é uma escala de abstratização, que, num cres
cendo para a direita, governa o processo metafórico.
Indica-se, nesse esquema, que qualquer elemento da
escala pode conceptualizar um elemento à sua direita;
é assim que o nome p é , que se refere a uma parte de
corpo, passa a designar parte de objeto {pé da mesa);
ou perto, que indica posição no espaço, passa a indicar
posição no tempo {perto do Natal). Trabalhando com
duas línguas africanas, Heine et alii (1991a e 1991b)
ilustram o processo com exemplos de gramaticalização
de nomes, principalmente de nomes de partes do cor
po, mostrando, por exemplo, a passagem de um nome
que significa “dorso”, “costas” (o nome megbé, na lín
gua “ewe”), para os significados “atrás”, “depois” e “re
tardado”, evolução que envolve as categorias OBJETO >
ESPAÇO > TEMPO > QUALIDADE. Os problemas que
essas transferências metafóricas trazem para a descri
ção sincrônica são lembrados: em muitas frases, um
mesmo lexema pode ser usado para referir-se a mais de
uma dessas categorias, como ocorre em “é tsí megbé”,
que tanto significa “ele ficou para trás/está atrasado”
(significado temporal), como “ele é mentalmente retar
dado” (significado qualitativo).
134» capitulo 6
Heine et alii (1991a e 1991b), entretanto, não res
tringem a gramaticalização à metaforização, acentuan
do a complementaridade da metáfora e da metonímia
nesse processo, no qual fazem intervir um componente
discreto (de natureza metafórica, e livre de determina
ções pragmáticas) seguido de um componente contínuo
(fortemente dependente do contexto lingüístico e extra-
lingüístico). Esse modelo baseia-se na noção de que a
transição de um conceito de origem para um conceito
de chegada envolve um estágio intermediário no qual
os dois conceitos coexistem. Uma representação gráfi
ca do modelo é constituída por uma série de círculos
representativos de diferentes funções de um morfema,
com zonas de intersecção que representam a coexistên
cia das funções em um determinado momento. A gra-
maticalização é explicada, então, não como uma transi
ção que se faz com entidades discretas, mas como uma
extensão gradual do uso de uma entidade original. Dois
mecanismos estão aí envolvidos: transferência concep-
tual (que é metafórica e se relaciona com diferentes do
mínios cognitivos) e reinterpretação induzida pelo con
texto (que é metonímica e resulta em conceitos inter-
seccionados).
Pode ocorrer, por exemplo, que, dado um determi
nado contexto, conceitos espaciais licenciem implica-
turas temporais. Assim, as preposições de e para, que
têm uma interpretação espacial em “De Colônia a Vie
na são seiscentas milhas”, podem receber uma inter
pretação temporal em “Ele ficou acordado o tempo to
do de Colônia a Viena”, ou em “Para ir a Viena você
viaja da manhã à noite”. A polissemia do inglês going é
analisada (Heine et alii, 1991b), por exemplo, como
capítulo <5*135
uma extensão m etoním ica e pragmática (enraizada no
contexto de interpretação) de um desvio metafórico, que
é psicológico na sua natureza:
a) indicação original (significado “literal”): movimen
to físico (Henry isgoing to town / Henry vai à cidade)',
b) expressão com transferência de indicação (signi
ficado “metafórico”): futuridade (The m in is going to
come / A chuva vai cair).
O significado gram atical temporal que está na se
gunda ocorrência se desenvolveu metaforicamente a par
tir da pressuposição de futuridade que existe no movi
mento espacial expresso na prim eira (que se liga ao
mundo humano e que implica um agente humano e uma
ação humana), e esse significado de futuridade (que não
necessariamente se liga ao mundo humano, nem a ações),
reinterpretado como o significado básico, passa a ser o
único apropriado na segunda construção. Ocorre que,
em determinados contextos, as expressões metafóricas
podem ser entendidas no sentido não-transferido, e o
resultado é uma ambigüidade, ou seja, é a homonímia
entre o significado literal e o transferido, que se ilustra
em c) I am going to work (que em determinados con
textos pragmáticos implica dizer aonde se vai, mas em
outros envolve referência simplesmente a um evento
posterior, implicando futuridade). O mesmo ocorre em
português, em que Vou trabalhar tanto seria resposta
para a pergunta “Aonde você vai?” como para a per
gunta “Que é que você vai fazer?”.
Vê-se, pois, que transferências de sentido como as
que ocorrem entre a) e b) são mais obviamente entendi
das em termos de metáfora, mas há outros fatores inter-
venientes no processo de gramaticalização, entre eles a
136* capítulo 6
metonímia, que é a manipulação pragmático-discursi-
va pela qual os conceitos são sujeitos a fatores contex-
tuais na interpretação do enunciado (Sperber & Wilson,
1986, p. 1).
Concordando com Traugott e Kõnig (1991), Heine
et alii (1991a) afirm am que a mudança semântica de
base m etafórica “se relaciona com o problema da re
presentação”, enquanto a mudança de base metonímica
“se associa com a resolução do problema de ser infor
mativo e relevante na comunicação” (p. 165). Metáfora
e metonímia são, assim, componentes do mesmo pro
cesso (a “gram aticalização”), que leva dos conceitos
gramaticais “concretos” para os “abstratos” : metoni-
micamente, o processo é construído numa escala de
entidades contíguas que são metonimicamente relacio
nadas; metaforicamente, o processo contém categorias
descontínuas, como ESPAÇO, TEM PO ou QUALIDA
DE. Intervém, pois, de um lado, um comportamento con-
ceptual-taxionômico, e, de outro, estratégias pragmáti-
co-textuais. O que se apresenta, afinal, é uma outra es
cala, que estende espaço e tempo para o texto, isto é,
que prevê que elementos espaciais, além de poder pas
sar à expressão de tempo, ainda possam passar à orga
nização do universo do discurso.
Traugott e Kõnig (1991) concentram-se nesse des
vio de indicação temporal e espacial para articulação
textual, ou marcação discursiva, e sugerem que é exata
mente por essa natureza do processo que não se pode
entender a gramaticalização como dessemantização, ou
descoramento semântico, já que nela pode estar envol
vida uma acentuação do significado pragmático, espe
cialmente uma acentuação do envolvimento do falante,
capítulo 6 • 137
uma subjetivizaçao. Têm papel importante as inferên
cias, pelas quais as implicaturas conversacionais se tor
nam explicitamente codificadas e participam do signi
ficado geral. Esse fato também é acentuado em Heine
et alii (1991b), que mostram que, se a gramaticaliza-
çâo, de um lado, pode ser vista como generalização, e,
portanto, como perda de alguns traços semânticos, de
outro envolve algum ganho, com novos itens gramati
cais representando funções não totalmente encontradas
em seus antecessores. Resumindo: traços semânticos
podem não desaparecer, simplesmente, mas ser substi
tuídos por traços pragmáticos.
Sobre a base de uma visão da gramaticalização co
mo processo gradual, a metaforização também é expli
cada no sentido de ampliação de uma categoria, e even
tualmente do próprio protótipo (Givón, 1984). O protó
tipo é o membro que ostenta o maior número das pro
priedades mais caracteristicamente importantes, e todos
os demais membros devem ser classificados de acordo
com o grau de semelhança com o protótipo, ou seja, de
acordo com a distância do “pico prototípico” . A noção
de semelhança ou similaridade rege, pois, a formação
das categorias naturais. E, como diz Givón (1984), é a
vaguidade dos limites das categorias prototípicas que
permite a extensão pela qual membros menos típicos
podem associar-se, por determinação do contexto, do
propósito ou da perspectiva. Dois dos exemplos de Gi
vón podem ser evocados. O primeiro diz respeito a um
enunciado do tipo de Jorge construiu uma parede em
torno de si: se a interpretação do enunciado for metafó
rica, algo no comportamento de Jorge lembra o signifi
cado prototípico literal de “construir parede cm volta”.
138* capítulo 6
Nesse caso, é provável que a analogia se centralize em
duas inferências pragmáticas relativas às metas e con-
seqüências de se construir uma parede em torno de um
objeto: a) meta: paredes são construídas como proteção
de ameaças externas; b) conseqüência: construção de
paredes sempre resulta em isolamento ou falta de con
tato com o exterior. O segundo exemplo refere-se à ex
tensão metafórica do protótipo devida à repetida introdu
ção por metáfora de novos membros dentro da categoria.
Tais mudanças envolvem a redefinição das proprieda
des características e da sua organização relativa, e cons
tituem a maior fonte de mudança diacrônica no léxico,
na morfologia e na sintaxe. Assim, as palavras inglesas
know e can vêm inicialmente da mesma raiz com o sig
nificado de “conhecer, por ser mais velho”. A extensão
de “conhecer” para “ser capaz” surge de uma inferên
cia pragmática não-central, algo como:
“knowledge how to do X” / “better ability to do X”
“conhecimento de como fazer X” / “maior capacidade pa
ra fazer X”
“Capacidade”, entretanto, envolve, além de “co
nhecer como”, outros ingredientes mais centrais, em
particular, “poder para agir”. E quando “poder” se sepa
rou completamente de “saber”, incluindo a diferencia
ção fonológica, o significado “poder para agir” tornou-
se uma propriedade característica mais central para sua
definição, e “saber como” foi rebaixado. Além disso,
“poder” também desenvolveu um significado deôntico de
permissão, presumivelmente pelas inferências pragmá
ticas:
a) “having power to act” / “not being restrained by out-
side interdiction”
capítulo 6 * 1 3 9
“ter poder para agir” / “não ser reprimido por uma
interdição externa”
b) “not being restrained” / “being perm itted”
“não ser interditado” / “ser perm itido”
Finalmente, “poder” foi também desenvolvendo um
sentido epistêmico/probabilístico, presumivelmente por
meio da inferência pragmática:
“being able to act” / “increased probability o f acting”
“ser capaz de agir” / “m aior probabilidade de ação”.
O que ocorre, aí, afinal, é que por um lento proces
so de extensão de m em bros em relação ao velho protó
tipo (menos similares, mas ainda similares) cada novo
sentido é redefinido como protótipo.
O conceito de protótipo liga-se à teoria da catego-
rização, construída por Rosch (1973) dentro da psico
logia cognitiva. Ele resulta de testes experimentais pe
los quais informantes, postos diante de uma categoria
de objetos e de diversos possíveis membros dessa cate
goria, escolheram o que consideraram o representante
exemplar da categoria, o “protótipo”, e, a seguir, classi
ficaram os demais pelo grau de distância desse objeto.
Assim se procedeu, por exemplo, com a categoria “fruto”,
que teve “maçã” escolhida, dentro do elenco oferecido,
como o melhor exemplar da categoria, e “azeitona”, co
mo o membro mais distante do protótipo. A teoria da
categorização postula que as categorias não são com
pletamente homogêneas, já que não há propriedades
comuns a todos os membros que integram cada uma de
las. Os membros de uma categoria têm entre si simili-
tudes parciais, as “semelhanças de família” (Rosch &
Mervis, 1975), sendo que os falantes têm a capacidade
de compará-los com o esquema cognitivo que constitui
140 • capítulo 6
o “protótipo”, aferindo o grau de semelhança que eles
têm com essa representação mental.
Tàylor (1989, p. 59) lembra que, na verdade, há duas
maneiras de entender o termo protótipo. Podemos apli
cá-lo ao membro central, ou a um bloco de membros
centrais de uma categoria, e, assim, um objeto particu
lar será considerado, por exemplo, o protótipo de “xí
cara”. Alternativamente, podemos entender o protótipo
como uma representação esquemática do núcleo con-
ceptual de uma categoria, e, nesse caso, não se diz que
uma entidade particular é o protótipo, mas que ela
exemplifica o protótipo. Conclui Taylor que a concep
ção mais abstrata é a que deve ser adotada, e que, mesmo
no primeiro modo de entender, é necessária uma repre
sentação mental do protótipo, para que o falante seja
capaz de identificá-lo em diferentes ocasiões.
A representação mental que está na base do estabe
lecimento dos protótipos pode ser não-especificada em
relação a certas propriedades de membros da categoria.
Assim, por exemplo, o protótipo de pássaro não é es
pecificado quanto a sexo, mas cada exemplar da cate
goria é necessariamente macho ou fêmea. A represen
tação interna do protótipo, de qualquer modo, é esque
mática.
A proposição de protótipos dentro da lingüística
entende —em ligação com a teoria da categorização hu
mana proposta por Rosch (1973) - que o que determi
na uma categoria natural não é necessariamente um tra
ço particular, mas um bloco de traços característicos:
próximos dos protótipos estão os membros da categoria
que apresentam grande número dos traços característi
cos, e mais distantes estão os membros que apresentam
capítulo 6 • 141
menor número desses traços. Existe uma parte signifi
cativa de elementos que se enquadram facilmente nas
diversas categorias naturais, e uma porção residual que
tem de ser acomodada segundo uma diferenciação fle
xível e dependente do contexto.
A mudança metafórica dos protótipos é, como diz
Givón (1984), a essência da gramaticalização, o pro
cesso pelo qual a morfologia gramatical se desenvolve
a partir de itens lexicais.
142 ■capítulo 6
C a p ítu lo 7 A gramática funcional
e as diversas áreas de
investigação lingüística
capítulo 7*143
pragmático-estilística, ligando-se à “expressividade” e
ao “apelo”. A própria estrutura de informação, como teo
riza Halliday, é encontrada nas unidades fonológicas e
é realizada por meios entonacionais. Davidse (1987, p.
70) indica duas redes de sistemas informacionais inter
pretados por dois diferentes recursos da fonologia não-
segmental: a primeira (realizada pela divisão contínua
do discurso em grupos tonais, que são a realização de
unidades semânticas de nível mais alto, as unidades de
informação) representa as escolhas abertas ao falante
para distribuição da informação entre as unidades co
municativas; a segunda (realizada pela colocação da
sílaba tônica dentro da unidade tonal) modela as esco
lhas do falante quanto à colocação do foco de informa
ção dentro da unidade de informação.
Outra área bastante ligada aos estudos funcionalis-
tas é a psicolingüística. Dirven e Fried (1987, p. ix) li
gam a concepção funcionalista da aquisição da lingua
gem a lingüistas da Escola de Praga, como Dezsõ, Fir-
bas, Sgall Hajicová e Benesová, a representantes do
funcionalismo britânico, como Firth e Halliday, e, fi
nalmente, a autores do funcionalismo americano, co
mo Li, Grossman, San e Vance.
A contraposição entre a abordagem funcionalista e
a abordagem formalista da linguagem leva à observa
ção da importância que assume, na consideração fun-
cionálista, a questão da aquisição da linguagem. For-
malistas e funcionalistas têm duas hipóteses opostas
sobre as origens da gramática na linguagem da criança,
como expõem Bates e MacWhinney (1987). A primei
ra posição acentua a natureza arbitrária do formalismo
gramatical, sugerindo que as línguas podem ser apren
144 • capitulo 7
didas somente porque as crianças têm algum tipo de
conhecimento apriorístico a respeito da estrutura e do
conteúdo de um componente gramatical autônomo e
abstrato. A posição funcionalista acentua as restrições
funcionais sobre a forma gramatical, o “ajuste” natural
entre a estrutura de superfície do enunciado e a função
de comunicação para a qual a gramática está destinada.
Segundo essa segunda posição, as línguas podem ser
aprendidas porque as crianças estão resolvendo o pro
blema da comunicação e descobrindo por si mesmas as
restrições que determinam a forma da gramática.
A consideração chomskiana de que as categorias e
as relações sintáticas são primárias, axiomáticas, opõem
os funcionalistas uma concepção que coloca em posi
ção secundária a gramática, a qual tem suas caracterís
ticas determinadas pelo propósito comunicativo. Desse
modo, a aquisição da gramática pela criança é vista co
mo guiada não por categorias abstratas, mas por estru
turas de comunicação pragmáticas e semânticas, que
interagem com as restrições ligadas à atuação, ou seja,
à emissão da cadeia sonora. Um conceito fundamental
que intervém, como observam Bates e MacWhinney
(1987, p. 211), é o de “competição”, já que é a conver
gência das restrições em competição que determina a
forma da gramática, deixando opaca a relação entre for
ma e função. Assim, quando Halliday (1985) insiste na
questão da multifuncionalidade dos itens, ele está ju s
tamente invocando o fato de que nenhuma forma parti
cular tem motivação direta em nenhuma função particular:
por exemplo, uma posição sintática “sujeito” não cor
responde necessariamente a um papel semântico “agen
te”, nem é necessariamente um “tópico” pragmático, mas
capitulo 7 * 145
a relação entre as diferentes funções é resultado da com
petição que se estabelece, na produção do enunciado.
A noção de uma competição de princípios atuando
tanto dentro de uma mesma língua, bem como entre lín
guas, liga-se a uma aceitação da variabilidade da língua
no espaço e no tempo, isto é, a uma concepção do cará
ter dinâmico das línguas. Nesse particular, Dik (1979,
p. 48) filia, explicitamente, a gramática funcional à Es
cola de Praga, que concebe a língua como um sistema
no qual se distinguem elementos nucleares e elementos
periféricos, e, que, portanto, concebe as regras e os prin
cípios da gramática mais como tendências do que como
regras absolutas com condições “sim/não” de aplicação.
A essa visão se liga a concepção das regras da gra
mática como não-arbitrárias, o que não implica, porém,
que exista um único modo universal de codificação gra
matical de cada função comunicativa particular (Givón,
1993). O estudo da diversidade das línguas, aliás, suge
re o contrário, e uma das marcas do tratamento funcio-
nalista do estudo da linguagem é exatamente a impor
tância dada ao estudo de línguas diversas.
Noções como “motivação”, “propósito comunicati
vo”, “dinamicidade”, “dependência situacional”, “ins-
trumentalidade”, ligadas ao tratamento funcional da lin
guagem, explicam a conveniência e a necessidade de
investigação em diferentes línguas particulares. Sirva
de exemplo a questão da codificação do papel discursivo
de tópico frasal: estudando a gramaticalização de sujei
tos em duas línguas não-acusativas, Mithun (1987) mos
tra como o desenvolvimento da categoria “sujeito” é afe
tada por traços da gramática particular de cada língua,
que podem diminuir a motivação para esse desenvolvi
146 • capitulo 7
mento. O que o estudo quer demonstrar é que, embora
os seres humanos tenham necessidades comunicativas
e estruturas cognitivas similares, as categorias gramati-
calizadas não são sempre as mesmas, já que os siste
mas gramaticais não são universais. As investigações
devem mostrar não apenas quais categorias tendem a
ser gramaticalizadas nas línguas, mas também por que
elas não são gramaticalizadas em todas as línguas. A
gramaticalização, ou não, de uma categoria pode ser afe
tada por diversos fatores, como, por exemplo, preocu
pações culturais: falantes do “karok”, por exemplo, foram
levados a um rico sistema de sufixos locativos particula
res pela orientação espacial dependente do rio Klamath,
referido rotineiramente na fala de todos os dias, en
quanto em outras culturas a orientação por um rio é tão
rara que poderá ser para sempre expressa apenas lexi
calmente (Mithun, 1987, p. 15).
Lembre-se Hopper (1991; ver 6.1), que demonstra
que, de uma perspectiva que leve em conta o estudo de
mais de uma língua, é possível chegar-se a regularida-
des emergentes que têm potencial para ser instâncias de
gramaticalização, mas que a definição desse processo
é mais problemática se se tem como objeto de investi
gação uma única língua.
A gramática funcional pretende-se igualmente apli
cável a todas as línguas e todos os tipos de língua. Na
prática, isso significa uma tentativa de atingir o equilí
brio entre o geral e o particular: as descrições não de
vem ser tão específicas de uma língua que não possam
ser transferíveis para outras línguas, nem podem ser
tão gerais que as peculiaridades das línguas individuais
sejam obscurecidas. Essa busca de adequação tipológi-
capítulo 7 • 147
ca foi operacionalizada em uma interdição de transfor
mações e de filtros, o que, em princípio, opõe as gramá
ticas funcionais às gramáticas formais.
Finalmente, numa avaliação geral da visão fimcio-
nalista da gramática, se deveria lembrar, seguindo Labov
(1987), o perigo que pode representar a tendência de su
perestimar as explicações funcionais das formas lin-
güísticas. Por estudos de mudança e variação lingüística
(mudança fonética, substituição lexical, variação fono-
lógica, alternâncias morfológicas, variação sintática),
ele procura mostrar que essa tendência - representada
por uma convicção de que a linguagem simplesmente
opera pela comunicação de informação representativa
e pela distribuição da informação - pode levar a enga
nos, sendo necessária uma visão mais balanceada do
papel dos fatores funcionais.
1 4 8 * capitulo 7
N o ta s
Capítulo 2
n o ta s • 149
nalidade; 5) capacidade de ação do agente; 6) afetação total do objeto;
7) individuação do objeto. Em qualquer proposta de uma consideração
gradual do fenômeno da transitividade, afinal, a oração prototipicamen-
te transitiva é a que configura uma ação intencional e acabada de um
agente animado individuado que provoca mudança em um objeto tam
bém individuado.
Capítulo 4
1. Garcia observa que essa posição vem sendo cada vez mais difundida, e
cita: Juhasz, 1973; Kuno, 1972 e Williams, 1977.
Capítulo ó
1. Lichtenberk (1991, p. 37) cita mais de uma dezena de autores que, sob
diferentes perspectivas, têm analisado o processo gradual da mudança
sintática.
150 • notas
Referências bibliográficas