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2019/20

“Teorias da Arte”

Elisa Matos

P. Cézanne, Mont Sainte-Victoire.

Teoria da Arte: Formalista

Escola Secundária Dr. Joaquim de Carvalho


“Teorias da Arte” 2019/20

Texto 1 (contextualização)

À imagem da teoria expressionista da arte, o formalismo surgiu como reação às


teorias representativistas. E, tal como a teoria expressionista, foram grandes
mudanças nas práticas artísticas que motivaram o seu aparecimento.
As práticas artísticas mais relevantes para a emergência do formalismo foram as
inovações na pintura e na escultura que ficaram conhecidas como modernismo ou
arte moderna. Englobando o impressionismo, pós-impressionismo, cubismo e o
minimalismo, esta arte caminha na direção da abstração. Os artistas modernos
desprezam a ilustração pictórica, compondo muitas vezes quadros a partir de formas
não representacionais e manchas de cor. O seu propósito não era captar o aspeto
percetível do mundo, mas tornar as imagens dignas de nota pela sua organização
visual, pela sua forma e pela sua configuração cativante.
Uma causa importante para o desenvolvimento deste tipo de arte moderna foi, sem
dúvida, o advento da fotografia. A fotografia facilitava a produção automática e a
baixo custo de imagens de grande verosimilhança. Em finais do século XIX, princípios
do século XX, parece que a fotografia iria acabar com o negócio da pintura como
imitação. Os artistas tinham de encontrar uma nova ocupação ou, pelo menos, um
novo estilo, para sobreviverem.
A abstração foi uma das maneiras que encontraram para se adaptar às novas
circunstâncias. Do virar do século em diante, cada vez mais pintores passaram a
dedicar-se à criação de pinturas não objetivas, cuja principal finalidade era a
composição na superfície do quadro e não a referência à «natureza». Em vez de
tratarem o quadro como um vidro – um espelho ou uma janela aberta para o mundo
– os pintores começaram a explorar a própria textura do vidro. Deixaram de olhar
através dele, passaram a olhar para ele. Isto era pintura pela pintura – pintura que
experimentava as possibilidades da forma, da linha e da cor –, não era pintura para
mostrar o mundo.
A evolução para a arte moderna aconteceu gradualmente. Primeiro, os
impressionistas «dissolveram» a solidez da superfície pictórica, apesar de ainda ser
possível reconhecer os objetos nos seus quadros. Mas, se virmos de perto uma tela
impressionista, ela torna-se uma superfície pura, na qual as core4s se conjugam de
uma forma maravilhosa. Depois, Cézanne levou a experimentação mais longe,
reduzindo os objetos às suas formas geométricas, como quadrados, esferas e cubos,
até que as naturezas-mortas compostas por frutos reconhecíveis mostrassem a sua
estrutura visual básica. O cubismo não tardaria. E com o cubismo nasceu a era da arte
abstrata, que dominou grande parte da pintura do século XX. A arte moderna
precisava, por tanto, de um novo tipo de teoria para que pudesse ser legitimada como
arte.
Carroll N., Filosofia da Arte, Edições texto&grafia, 2015. Pp.127-128.

O início do século XX foi um período de grande revolução nas artes: surgiu a pintura
moderna, que rejeita frequentemente a figuração e a própria ideia de representação.

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“Teorias da Arte” 2019/20

Representar o mundo exterior era uma coisa que a fotografia fazia perfeitamente, pelo
que alguns pintores consideraram mais fecundo procurar novos caminhos e abandonar
a representação. Um dos caminhos foi explorar as possibilidades de composição, por
meio da organização puramente visual de cores, linhas e formas. A pintura abstrata
começou a impor-se, e com ela também a ideia da «pintura pela pintura», daí
resultando um conjunto de obras completamente diferente do que era habitual.

Assim, ao passo que quer a teoria representacionista quer a teoria expressivista se


focavam sobretudo em elementos intrínsecos à obra propriamente dita,
respetivamente, na realidade exterior representada e na experiência interior do
artista, a teoria formalista (a última das três teorias essencialistas da arte) vai focar-se
exclusivamente na obra e nas suas respetivas qualidades formais.

Foi neste contexto que Clive Bell (1881-1964) defendeu a teoria formalista da arte.

Texto 2

«Ou todas as obras de arte visual têm alguma propriedade comum ou então, quando
falamos de “obra de arte”, dizemos tolices. Todos falamos de “arte” operando uma
classificação mental pela qual distinguimos a classe das “obras de arte” de todas as
outras classes. O que justifica esta classificação? Qual é a propriedade comum e
particular a todos os membros desta classe? Sela ela qual for, não há dúvida de que se
encontra muitas vezes acompanhas por outras caraterísticas; mas essas são acidentais
– esta é essencial. Tem de haver uma determinada propriedade sem a qual uma obra
de arte não existe: na posse da qual nenhuma obra é, no mínimo, destituída de valor.
Que propriedade é essa? Que propriedade é partilhada por todos os objetos que nos
causam emoções estéticas? (…) Só uma resposta parece possível – forma significante.
São, em cada um dos casos, as linhas e cores combinadas de um modo particular,
certas formas e relações de formas, que suscitam as nossas emoções estéticas. A
estas relações e combinações de linhas e cores, a estas formas esteticamente
tocantes, chamo «Forma Significante», e a «Forma Significante» é a tal propriedade
comum a todas as obras de arte visual.»
Bell C., Arte, Edições texto&grafia, Coleção Pilares, Lisboa, 2009, p. 23

Texto 3

A minha intenção será mostrar que a forma significante é a única propriedade


exclusiva de e comum a todas as obras de arte visual 1 que me emocionam. (…) Para os
fins da estética não temos o direito, nem a necessidade, de espreitar atrás do objeto o
estado mental de quem o criou. (…) Para uma discussão sobre estética, apenas tem de
haver concordância quanto ao facto de que formas 2 dispostas e combinadas segundo

1
O formalismo encontrou na pintura o seu território natural.
2
Clive Bell não se esquece da cor e a sua «forma significante» incluía combinações de linhas e de cores.

2
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leis3, desconhecidas e misteriosas, nos emocionam de um modo particular, e que é


tarefa do artista dispô-las e combiná-las de maneira a que nos emocionem. A estas
ordenações e combinações tocantes chamei, (…) «forma significante».
Bell C., Arte, Edições texto&grafia, Coleção Pilares, Lisboa, 2009, pp. 24-25

Texto 4

A hipótese de que a forma significante é a qualidade essencial de uma obra de arte


tem pelo menos um mérito que é negado a muitas outras, mais famosas e atraentes:
ajuda a explicar as coisas. Todos conhecemos pinturas que suscitam o nosso interesse
e despertam a nossa admiração, mas não nos emocionam enquanto obras de arte. A
esta classe pertence aquilo que designo “Pintura Descritiva”, isto é, a pintura em que
as formas são usadas, não como objetos de emoção, mas como meios para sugerir
emoção ou veicular informação. Pertencem a esta classe retratos de valor psicológico
e histórico, obras topográficas, pinturas que contam histórias e sugerem situações, e
toda a espécie de ilustrações. (…) Claro que muitas pinturas descritivas possuem,
entre outras qualidades, significado formal, sendo, portanto, obras de arte; mas há
muitas que não possuem. Elas interessam-nos; e também nos podem emocionar de
muitas maneiras, mas não nos emocionam esteticamente. De acordo com a minha
hipótese, não são obras de arte, não afetam as nossas emoções estéticas, porque não
são as suas formas. Mas as ideias ou a informação sugeridas ou veiculadas pelas suas
formas, que nos afetam.
Bell C., Arte, Edições texto&grafia, Coleção Pilares, Lisboa, 2009, pp. 27

Bell não pode dizer simplesmente que a arte é forma, porque, de certa maneira, tudo
o que nos rodeia – seja uma mesa, uma cadeira, um sapato, etc. – tem forma.

Daí Bell ter recorrido à expressão «forma significante».

Mas o que é isso a que Bell chama de «forma significante»?

Segundo Bell, não podemos compreender a noção de forma significante sem


entendermos primeiro aquilo que designa de «emoção estética». Bell parece
pressupor que existe um tipo particular de emoção que todas as pessoas sensíveis
experienciam quando estão perante obras de arte. É esse tipo particular de emoção
que Bell designa de «emoção estética». Com base neste pressuposto, Bell sugere que
se encontrarmos aquilo que está na origem desta emoção teremos encontrado a
No entanto, para ele a «distinção entre forma e cor é ilusória – não se pode conceber uma linha
descolorida ou um espaço desprovido de cor; da mesma forma que não se pode conceber uma relação
de cores destituída de forma. Num desenho a preto e branco, os espaços são todos brancos delimitados
por linhas pretas; na maioria dos quadros a óleo, os espaços são multicolores, tal como os limites; e não
é possível imaginar um limite sem conteúdo, nem um conteúdo sem limite».
3
Consiste na disposição de linhas, cores, formas, volumes, vetores e espaço (espaço bidimensional,
espaço tridimensional e a interação de ambos).

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caraterística distintiva da arte, a sua essência, aquela propriedade que todas as obras
de arte e só elas têm em comum. Mas que propriedade pode ser essa?

A emoção estética é uma emoção provocada por certas configurações de linhas, cores,
formas e espaços, e não pela compreensão do conteúdo, do tema ou da narrativa da
obra. Bell dá o nome de forma significante a esse tipo de configurações formais e
considera que é precisamente isso que todas as obras de arte e só as obras de arte têm
em comum. Neste sentido, dizer que algo é uma obra de arte é afirmar que as suas
linhas, cores, formas e espaços têm a capacidade de gerar uma emoção estética nos
espetadores, que é o mesmo que afirmar que esse objeto tem forma significante.
Resta acrescentar que, segundo Bell, embora a beleza natural também tenha, por
vezes, a capacidade de nos emocionar, essa emoção não se identifica com a emoção
estética. Esta última apenas pode ser produzida por produções humanas, ou
artefactos.

Deste modo, podemos sintetizar o núcleo da argumentação de Bell conforme se segue:

(1) Todas as obras de arte visual têm alguma propriedade comum, ou quando
falamos de «arte dizemos coisas sem sentido.
(2) É falso que quando falamos de «artes» nos limitamos a dizer coisas sem
sentido.
(3) Todas as obras de arte visual têm alguma propriedade em comum. (DE 1 e 2,
por silogismo disjuntivo)
(4) A propriedade comum a todas as obras de arte é a forma significante, ou é
outra propriedade que não a forma significante, como a representação ou a
expressão de emoções.
(5) A representação e a expressão de emoções são propriedades acidentais de
algumas obras de arte e não propriedades essenciais comuns a todas elas.
(6) Logo, a propriedade comum a todas as obras de arte é a forma significante. (De
4 e 5, por silogismo disjuntivo)

A tese central da sua teoria:

Algo é uma obra de arte se, e só se, algo tem forma significante.

A premissa 1 coloca-nos perante um dilema: há uma propriedade comum a todas as


obras de arte – a essência da arte, ou essa propriedade comum não existe e, portanto,
o termo «arte» não designa coisa alguma, é um termo vazio e sem sentido.

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A premissa 2 estabelece que o termo «arte» não é um termo vazio e sem sentido. Por
exemplo, utilizamos esse termo para distinguir uma determinada classe de objetos: as
obras de arte.

De 1 e 2 segue-se, por silogismo disjuntivo, que existe uma propriedade comum a


todas as obras de arte, uma essência de arte.

A premissa 4 procura elencar as principais alternativas ao nosso dispor quando


pretendemos encontrar uma propriedade comum a todas as obras de arte (a
representação e a expressão são as únicas alternativas que ele considera dignas de ser
mencionadas).

Na premissa 5 afirma-se que a representação e a expressão de emoções não passam


de propriedades acidentais de algumas obras de arte, não sendo, por isso,
propriedades essenciais, comuns a todas elas.

Por fim, na linha 6, conclui-se que a propriedade comum a todas as obras de arte é a
forma significante.

Mas por que razão nem a representação nem a expressão de emoções podem ser
consideradas propriedades essenciais da arte? Ou seja, qual a justificação da premissa
5?

Bell descarta a representação e a expressão de emoções como condições suficientes


para a arte, pois estas visam apenas descrever uma realidade factual e objetiva, ou
uma realidade emocional subjetiva. Contudo, na medida em que subjugam a forma a
este tipo de propósito, estas obras revelam-se muitas vezes incapazes de desligar o
espetador das emoções da vida e, por isso, incapazes de provocar uma genuína
emoção estética.

As emoções da vida são emoções que sentimos perante acontecimentos, pessoas,


objetos e situações do nosso quotidiano e não a emoção que sentimos perante a
contemplação de certas estruturas formais. Deste modo, Bell conclui que, apesar do
seu conteúdo representativo ou expressivo, estas obras não chegam, muitas vezes, a
ter uma forma significante e, por conseguinte, nem sempre são arte. Ora, se há obras
com conteúdo representacional ou expressivo que não são obras de arte, então essas
propriedades não são condições suficientes para a arte.

Além disso, Bell defende que a representação e a expressão de emoções não são
sequer condições necessárias para a arte. Segundo Bell, quer o co0nteúdo
representacional, quer o conteúdo expressivo são inteiramente irrelevantes para o
estatuto de uma pintura enquanto obra de arte. Ora, se existem obras de arte sem
conteúdo representativo ou expressivo, então essas propriedades não são condições
necessárias para a arte.

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Deste modo, excluídas as principais alternativas dignas de consideração, Bell julga


poder concluir com segurança que a única propriedade simultaneamente necessária e
suficiente para a arte é a forma significante.

Uma vez que abandona os requisitos representacionistas e expressivistas das teorias


anteriores, a teoria formalista facilmente resiste a alguns contraexemplos que essas
perspetivas enfrentam, mas enfrenta outros.

Contraexemplos

Texto 5

“Passei muitos quarenta minutos a deslindar os episódios fascinantes que o


compõem, forjando para cada um deles um passado imaginário e um futuro
improvável. Todavia, embora seja certo que a obra-prima de Frith, ou reproduções da
mesma, proporcionaram a milhares de pessoas muitas meias horas de um prazer
intrigado e fantasista, não é menos certo que ninguém experimentou frente a ela
meio segundo que fosse de êxtase estético, e isto não obstante o quadro conter belas
passagens de cor e não estar mesmo nada mal pintado. A Estação de Paddington não
é uma obra de arte; é um documento interessante e divertido, no qual a linha e cor
são usados para contar historietas, sugerir ideias e apontar os hábitos e costumes de
uma época, e não provocar emoção estética. As formas e as relações entre as formas
não eram, para Frith, objetos de emoção, mas meios para sugerir emoção e transmitir
ideias.
As ideias e a informação transmitidas por A Estação de Paddington são tão divertidas
e tão bem-apresentadas, que o quadro tem um valor considerável e bem merece ser
preservado, todavia, a perfeição dos processos fotográficos e do cinema está a tornar
supérfluo este tipo de quadros.”

Bell C., Arte, Edições texto&grafia, Coleção Pilares, Lisboa, 2009, pp 27-28.

A Estação de Paddington (1866), de William Powell FRITH (1819-1909)

De acordo com Bell, este tipo de pintura não é arte, pois nela «linha e cor servem para relatar
historietas, sugerir ideias e mostrar os costumes da época – não são usadas para provocar
emoção estética».

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Esta obra ready-made de Marcel Duchamp, intitulada In


Advance of the Broken Arm (1915) é uma pá de limpar
neve igual a outras fabricadas na mesma altura e no
mesmo sítio.
Se esta é considerada uma obra de arte, por que razão as
outras com a mesmíssima forma não o são?

Objeções:

A argumentação de C. Bell assenta num falso dilema

Bell argumenta que tem de haver uma propriedade intrínseca comum a todas as obras
de arte, contudo, alguns filósofos da arte julgam que, embora não seja possível
encontrar uma propriedade comum pode haver propriedades relacionais e contextuais
às quais podemos apelar para distinguir as obras de arte de outros tipos de objetos. E,
assim sendo, parece que a argumentação de Bell assenta num falso dilema.

A definição de forma significante é viciosamente circular

Bell define a noção de forma significante como configuração de linhas, cores, formas e
espaços que tem a capacidade de provocar uma emoção estética no espetador, mas
simultaneamente define emoção estética como o tipo de emoção que sentimos
quando estamos perante certas configurações de linhas, cores e formas, ou seja,
quando estamos perante uma forma significante. Assim, esta definição é viciosamente
circular e pouco informativa (uma obra de arte tem forma significante por que nos
provoca emoções estéticas e temos emoções estéticas por que a obra de arte tem
forma significante.

Há obras de arte com formas indistinguíveis de objetos comuns

Existem muitas obras de arte que têm exatamente as mesmas propriedades formais de
certos objetos aos quais não é reconhecido esse estatuto, como acontece, por
exemplo, com os ready-made, como o contraexemplo apontado, de Marcel Duchamp e
outros exemplos da chamada found art (arte concetual).

Se a única coisa relevante para o estatuto de um objeto enquanto obra de arte fosse,
efetivamente, as suas propriedades formais, então não poderia haver obras de arte
com as mesmas propriedades formais que certos objetos comuns, aos quais não é
reconhecido esse estatuto. Portanto, as propriedades formais de um objeto não são a
única coisa relevante para o seu estatuto enquanto obra de arte.

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O conteúdo pode ser relevante para o estatuto de uma obra enquanto obra de arte

Ao contrário do que é defendido por Bell, é muitas vezes impossível apreciar o valor de
uma obra de arte concentrando-nos apenas nas suas propriedades formais e
ignorando inteiramente o seu conteúdo representativo ou expressivo. O que há de
apelativo em muitas formas é justamente o modo cativante como dão corpo a
determinados conteúdos. Nesses casos, forma e conteúdo tornam-se inseparáveis a
ponto de ser impossível sustentar que o conteúdo é irrelevante para a apreciação da
obra.

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