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2019/20

Elisa Matos
“Teorias da Arte”

RAUSCHENBERG, Robert, Monogram, 1955, in Modern Museet, Stockholm.

Texto de Contextualização

Teoria da Arte: Institucionalista.

Escola Secundária Dr. Joaquim de Carvalho


“Teorias da Arte” 2019/20

Texto 1 (contextualização)

«Ao longo do século XX, fomos confrontados com uma variedade de tipos de arte
inédita e espantosa. Por um lado, surgiram as mais diversas criações vanguardistas
que, do romantismo em diante, com o seu afastamento radical das práticas
convencionais, desafiaram as ideias fossilizadas sobre a arte, e tornou-se difícil
distinguir a arte da não arte.
Identificar a arte transformou-se numa questão premente, saber se algo é ou não arte
pode determinar se é ou não um candidato a um prémio numa instituição
governamental ligada às artes ou se a sua venda e importação deve ser objeto de
imposto. Determinar se algo é ou não arte não é apenas importante para resolver
questões práticas e políticas. Conseguir identificar se uma coisa deve ser ou não
classificada como arte é crucial para apurar como devemos a ela reagir. Devemos
interpretá-la? Devemos procurar nela propriedades estéticas? Devemos tentar
compreender a sua configuração? Este tipo de questões começa a ter resposta
quando sabemos que uma coisa é arte.
Por exemplo, imaginemos que deparamos (como poderia suceder numa feira de
velharias) com uma cabra angorá embalsamada, que tem à sua volta um pneu de
automóvel usado e que está em cima de uma tela. Deveremos avaliar isto como uma
aglomeração aleatória de objetos, supondo que o proprietário não tinha mais onde
colocar o pneu, ou deveremos interpretar esta composição – perguntando o que
significa e por que motivo esta acumulação de objetos tem esse significado particular?
É claro que se identificarmos esse aglomerado de objetos como uma obra de arte – a
peça Monogram, de Robert Ranschenberg, para ser preciso –, isso é exatamente o
que devemos fazer: procurar interpretá-lo. De outra forma, ele parece exatamente o
oposto, um monte de coisas esquecidas no canto de um sótão, tão irrelevante como
qualquer outro monte de tralha. Identificar algo como arte é, então, indispensável
para as nossas práticas artísticas.
O facto de uma coisa ser arte assinala como e quando devemos reagir a ela de forma
interpretativa, estética e apreciativa. Se não tivermos maneira de classificar a arte – se
não tivermos meios de determinar se uma coisa pertence ou não à categoria de coisas
que justificam reações à arte – as nossas práticas artísticas desmoronar-se-ão. A
filosofia da arte no século XX reflete essa situação. À medida que a questão da
identificação da arte se tornava progressivamente mais complicada, a solução do
problema parecia óbvia: criar uma definição explícita da arte. Se as velhas formas
implícitas de identificar obras de arte já não funcionavam, havia que definir
explicitamente o conceito de arte, para que abrangesse todos os casos.»
Carroll N., Filosofia da Arte, Edições texto&grafia, 2015, pp231-233.

Na década de 1950, o filósofo da arte Morriz Weitz (1916-1981) sustenta que o


fracasso das teorias essencialistas da arte se deve ao facto de todas elas assumirem
erradamente que existe um conjunto de condições necessárias e suficientes para a
arte.
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Weitz considerava que não devemos procurar uma caraterística que seja partilhada
por todos os objetos artísticos, não devemos procurar a essência da arte, pois não só
isso não se verifica, como teria uma implicação indesejável caso se verificasse: estaria a
impor limites a uma atividade que se carateriza justamente pela sua abertura à
mudança, à expansão e à inovação, teria um efeito castrador da criatividade.

Assim sendo, Weitz rejeita qualquer definição essencialista e a sua posição ficou
conhecida como «antiessencialismo».

Contudo, o facto de não ser possível fornecer uma definição essencialista da arte não
se segue necessariamente que nenhuma definição de arte possa ser encontrada. Uma
definição de arte que assente não em propriedades intrínsecas e manifestas dos
objetos artísticos, mas sim em propriedades extrínsecas e relacionais, isto é, que não
sejam inerentes ao próprio objeto em si mesmo considerado, mas que dependam
fundamentalmente do tipo de relações que este estabelece com outras realidades
(conceito aberto)1.

É justamente este tipo de sugestão que Arthur Danto (1924-2013) apresenta no


conceito «Mundo da Arte». Danto analisa a obra Caixa de Brillo, de Andy Warhol, e
conclui que aquilo que distingue a obra de Warhol dos seus semelhantes não são as
suas caraterísticas formais, nem quaisquer outras caraterísticas que lhe sejam
intrínsecas, mas sim o facto de esta se inserir no contexto de uma prática social
instituída – o mundo da arte. Assim, Danto chamou a atenção para a natureza
institucional da arte e o filósofo George Dickie formulou de modo articulado a primeira
teoria institucional da arte.

De acordo com esta teoria:

Algo é uma obra de arte, no sentido classificativo, se, e só se algo é um artefacto que
possui um conjunto de caraterísticas ao qual foi atribuído o estatuto de candidato a
apreciação por uma ou várias pessoas que atuam em nome de determinada instituição
social: o mundo da arte.

Esta definição estabelece duas condições necessárias e conjuntamente suficientes para


que algo seja arte.

A primeira condição é a da artefactualidade – artefacto (condição necessária para a


própria criatividade) é utilizado num sentido lato e considera que, para além dos
1
A ideia de que a arte – a prática da arte – está sempre aberta a mudanças revolucionárias é defendida
por Weitz. No seu argumento do conceito aberto formula as coisas da seguinte forma: “A «arte», em si,
é um conceito aberto. Têm surgido constantemente novas condições (casos) e, sem dúvida, continuarão
a surgir de forma incessante; emergirão novas formas de arte, novos movimentos, que irão exigir
decisões por parte de todos os interessados, quanto à questão de saber se o conceito deve ou não ser
alargado. (…) O que defendo, assim, é que a índole da arte, bastante expansiva e aventureira, as suas
constantes mudanças e as suas novas criações, tornam logicamente impossível assegurar um conjunto
de propriedades definitivas.
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objetos materiais concretos produzidos ou transformados pelos seres humanos,


também os movimentos de uma coreografia, ou as notas musicais numa dada melodia,
por exemplo, são artefactos.

A segunda condição imposta pela teoria institucional diz-nos que para que um
artefacto seja uma obra de arte é necessário que uma pessoa (ou várias pessoas) que
atua (ou atuam) em nome do mundo da arte atribua (ou atribuam) o estatuto de
candidato a apreciação a um conjunto das suas caraterísticas. Mas o significa isto?

Comecemos por perceber em que consiste o ato de atribuir estatuto em nome do


mundo da arte.

Segundo Dickie, o mundo da arte é uma instituição social e na sua opinião:

Texto 2

«O núcleo fundamental do mundo da arte é um conjunto vagamente organizado (…)


que inclui artistas (…), produtores, diretores de museus, visitantes de museus,
espetadores de teatro, jornalistas, críticos de todos os tipos de publicações,
historiadores da arte, teóricos da arte, filósofos da arte, permitindo assim a
continuidade da sua existência. (…) Todos estes papéis estão institucionalizados e têm
de ser aprendidos, de uma forma ou de outra, pelos participantes.
G. Dickie, «O que é a Arte?» in O que é a arte?, organizado por Carmo D´Orey, Dinalivro, 2007, pp. 104

Dickie considera que que a found art é, em grande medida, responsável por chamar a
atenção para o ato de conferir o estatuto de arte, pois alguns artistas conferiam o
estatuto de arte a objetos vulgares formalmente indistinguíveis de outros objetos aos
quais esse estatuto não foi conferido. Essas atribuições ocorrerem no contexto de uma
prática social instituída à qual damos o nome de «mundo da arte».

Ou seja,

Texto 3

“O mundo da arte consiste num feixe de sistemas – teatro, pintura, escultura,


literatura, música, etc. –, cada um dos quais proporciona um contexto institucional
para a atribuição do estatuto a objetos pertencentes ao seu domínio. Não se podem
pôr limites ao número de sistema passíveis de serem incluídos na conceção genérica
de arte, e cada um dos principais sistemas engloba subsistemas. Estas características
do mundo da arte fornecem a elasticidade 2 que permite albergar toda a criatividade,
incluindo a mais radical.
Tendo descrito, de forma breve, o mundo da arte, estou agora em condições de
especificar uma definição de «obra de arte». A definição será dada em termos de

2
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artefactualidade e da atribuição de estatuto de arte ou, de forma mais rigorosa, da


atribuição do estatuto de candidato a apreciação. Uma vez formulada a definição será
necessário clarifica-la: uma obra de arte no sentido classificativo é 1) um artefacto 2) a
um conjunto de cujas características foi atribuído o estatuto de candidato de
apreciação por uma ou várias pessoas, que atuam em nome de determinada
instituição social (o mundo da arte).
A segunda condição da definição utiliza quatro noções diversamente interligadas: 1)
agir em nome de uma instituição, 2) atribuir estatuto, 3) ser candidato e 4) avaliação.
G. Dickie, “O que é a Arte?”, em C. D´Orey (org.), O que é a arte? – Perspectiva Analítica, Dinalivro,
2007, pp. 104-105.

Assim sendo, o mundo da arte é uma instituição social no seio da qual há lugar para
atribuições de estatuto, por parte dos seus representantes. Contudo, embora sejam
precisas várias pessoas para constituir a instituição social do mundo da arte, uma vez
constituída basta que um dos seus membros, muitas vezes o próprio artista, atue como
representante da mesma e atribua o estatuto de candidato à apreciação a um
determinado artefacto. Quando isso acontece, esse artefacto passa ser considerado
obra de arte no sentido classificativo, mas fica em aberto a questão de saber se se
trata de uma obra de arte no sentido valorativo.

De acordo com esta teoria, uma obra de arte no sentido valorativo (isto é, uma boa
obra de arte) é um candidato à apreciação que efetivamente chega a ser apreciado
pelo público do mundo da arte, ao contrário do que acontece com a má arte, que é
apresentada como candidata à apreciação, mas não chega a ser apreciada pelo
público. Neste sentido, atribuir o estatuto de candidato à apreciação de um artefacto
acarreta uma certa responsabilidade, pois caso ninguém o venha a apreciar, a pessoa
que fez essa atribuição pode perder credibilidade no mundo da arte.

Assim, ao contrário das teorias anteriores, a teoria institucional oferece uma definição
processual, e não uma definição funcional de arte, acabando por defender que aquilo
que faz com que algo seja uma obra de arte não são as suas propriedades manifestas,
como os seus efeitos ou as suas funções, mas sim o modo como é tratada por quem a
criou, por quem a expõe e por quem a aprecia.

Exemplos
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“há um movimento no domínio da pintura e da escultura – o dadaísmo – que nos


permite compreender (…) a essência institucional da arte. Duchamp e os seus amigos
conferiram o estatuto de arte a ready-made (urinóis, um bengaleiro, pás de neve e
objetos do mesmo género) e, quando refletimos nisso apercebemo-nos de um tipo de
ação humana que até agora tinha passado despercebida: a ação de conferir o estatuto
de arte. É claro que desde sempre que os pintores e os escultores se empenham na
ação de conferir este estatuto aos objetos que criam. Porém, enquanto os objetos
criados foram convencionais, dados os paradigmas de cada época, eram os próprios
objetos e as suas propriedades fascinantes que constituíam o centro das atenções,
não só de espetadores e críticos, mas também dos filósofos da arte. (…)
Os filósofos da arte só prestavam atenção a algumas das propriedades que os objetos
criados adquiriam (…), como por exemplo as suas caraterísticas figurativas ou
expressivas. Ignoravam completamente a propriedade não exibida do estatuto. No
entanto, quando os objetos são bizarros, como são os objetos dos dadaístas, a nossa
atenção é obrigada a desviar-se das propriedades óbvias para uma consideração dos
objetos no seu contexto social. Como obras de arte, os ready-mades de Duchamp
podem não valer grande coisa, mas como exemplos de arte são extremamente
valiosos para a teoria da arte. Não pretendo sustentar que Duchamp e os seus amigos
inventaram a atribuição do estatuto da arte, limitaram-se a utilizar de forma invulgar
um mecanismo institucional – o mundo da arte – já existente.
G. Dickie, «O que é a Arte?» in O que é a arte?, organizado por Carmo D´Orey, Dinalivro, 2007, pp. 103-104.

Objeções

Oferece uma definição viciosamente circular de arte

A teoria institucional parece viciosamente circular, visto que sustenta que o estatuto de obra
de arte é atribuído por representantes do mundo da arte e, por sua vez, o mundo da arte é
definido como o conjunto daqueles que têm o poder de fazer essas atribuições. Ora, dado que
para saber o que é uma obra de arte temos de saber o que é o mundo da arte e para saber o
que é o mundo da arte temos de saber o que são obras de arte, a definição parece andar em
círculos sem nunca esclarecer devidamente o significado dos seus termos.

Torna a definição de arte inútil

A teoria institucional sustenta que qualquer coisa pode tornar-se arte, desde que esse estatuto
lhe seja atribuído por um representante do mundo da arte. Muitos autores veem aqui uma
razão para rejeitar esta teoria, pois parece admitir demasiadas coisas como obras de arte. Se
qualquer coisa pode ser uma obra de arte, então aparentemente não temos boas razões para
nos preocuparmos com a distinção entre arte e não arte e, por conseguinte, qualquer
definição de arte tornar-se-ia pouco informativa, inoperacional e inútil. O defensor da teoria
institucional vê-se assim perante um difícil dilema: ou aceita que um representante do mundo
da arte pode tornar qualquer coisa uma obra de arte ou considera que um representante do
mundo da arte não pode tornar qualquer coisa uma obra de arte.
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A definição institucionalista de Dickie enfrenta, além disso, o problema de excluir a


figura do artista isolado, que cria obras de arte fora dos circuitos institucionais e até
fora de qualquer contexto social. As Cartas Portuguesas alegadamente escritas pela
Soror Mariana Alcoforado não seriam obras literárias, dado a sua autora as ter escrito
em segredo na sua reclusão religiosa e as ter guardado para si própria, tendo sido
descobertas muito tempo após a sua morte, o que é uma conclusão manifestamente
contraintuitiva, se não mesmo revisionista. Na melhor das hipóteses, tornar-se-iam
obras literárias apenas quando alguém as descobrisse e as propusesse para apreciação,
o que não é menos implausível. Um problema adicional, relacionado com este, é ter
havido realmente algo semelhante a um mundo da arte antes da emergência do
sistema das belas-artes na Europa do século XVIII. Caso a resposta seja negativa,
deixaria de ser possível falar de arte medieval, clássica e paleolítica, já que muito
provavelmente não haveria instituição no seio da qual um objeto viesse a adquirir o
estatuto de candidato a apreciação. A ser assim, o institucionalismo só conseguirá
evitar o indesejável revisionismo introduzindo algumas qualificações Uma objeção
mais geral, e simultaneamente mais poderosa – dado que põe em causa a própria
3
A Hungria rende sua eterna gratidão a um escritor desconhecido. Aquele que, no anonimato e a serviço
do rei Bela III, contou a mais bela história sobre os húngaros, o Gesta Hungarorum, um manuscrito
publicado por volta de 1200, que relata a história primitiva do país. Descrevendo-se apenas como um
“servo fiel do rei”, o escritor desconhecido virou mito e estátua no Parque da Cidade de Budapeste,
onde está sentado solenemente, envolto numa túnica que cobre seu rosto, segurando um lápis na mão.
Mas, quem é ele? Como vivia? Como era seu rosto? Sua voz? Quem amou? Ninguém sabe. Fiel ao seu
ofício, jamais permitiu que sua identidade fosse revelada.
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utilidade da definição, sem visar algum aspeto particular –, consiste em confrontar a


definição com o seguinte dilema: ou quem propõe um dado objeto para ser apreciado
pelo público do mundo da arte tem razões para o fazer, ou simplesmente decide fazê-
lo sem que haja qualquer razão que justifique a sua decisão; se houver razões, então é
a explicitação dessas razões que deve figurar na definição de arte, e não o próprio
facto de o objeto ser proposto para apreciação do público do mundo da arte; mas se
não houver quaisquer razões que o justifiquem, então classificar um objeto como obra
de arte é uma questão arbitrária e a definição é vazia (Wollheim 1980). Se este for um
genuíno dilema para a definição institucionalista de Dickie, ela nada de relevante terá a
dizer sobre a arte nem sobre o que torna afinal correto o uso do conceito de arte. A
definição será, por isso, desinteressante. No sentido de preservar o carácter
convencional das definições institucionalistas, Stock (2003) insiste que as obras de arte
têm em comum o serem assim classificadas pelos especialistas da área (…). Sustenta,
todavia, que os especialistas se baseiam, de facto, em razões suficientemente
inteligíveis, mas que tais razões não são nem têm de ser conclusivas.

Almeida, A., Definição de Arte, 2014, em Compêndio em Linha de Problemas de Filosofia Analítica, in
http://compendioemlinha.letras.ulisboa.pt/wpcontent/uploads/2015/04/
almeida_definicao_arte_artio.pdf

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