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2018-19
A tese principal do filósofo americano Arthur Danto no seu célebre artigo "The
artworld"1, apresenta uma condição necessária para a existência da arte: aquilo que ele
chama de "mundo da arte", composto por dois importantes elementos:
(i) uma atmosfera de teoria artística ;
(ii) um conhecimento da história da arte .
Certamente, o ponto fundamental do seu artigo intitulado “O mundo da arte” é a alusão
a teorias artísticas como sendo necessárias para a constituição de algo como arte. Afinal
de contas, o que é que vem primeiro: a arte ou a teoria? Ou seja, torna-se necessário que
alguma coisa ultrapasse as fronteiras do visível que uma obra de arte possui. No fundo é
preciso também uma “atmosfera de teoria artística” e um conhecimento de “história da
arte”. Ou dito de uma outra maneira, é preciso um “mundo da arte”.
O que afinal faz a diferença entre uma caixa Brillo e uma obra de arte que consiste
numa caixa Brillo entendida como obra de arte é uma certa “teoria da arte”. As teorias
artísticas, embora possam também ser alimentadas por teorias filosóficas no sentido
forte, desenvolvem-se nos círculos próximos do artista - no ateliê, nas galerias, nos
museus ou na crítica.
Se a arte consiste na criação de realidade, não há nada que impeça que um objecto como
uma cama efectiva seja oferecido como uma obra de arte, tanto mais se se exigir do
espectador apenas que o contemple. Afinal, como é possível distinguir a realidade do
objecto funcional "cama" da obra de arte “Bed” de Robert Rauschenberg ou de uma
escultura como uma pá ou um alfinete bebé de Oldenburg? Isto, de acordo com Danto,
equivaleria a perguntar o que faz dessas camas ou dessas caixas Brillo obras de arte.
Afirma Danto que confundir uma obra de arte com um objecto real não é uma grande
proeza, sobretudo quando uma obra de arte é o objecto real com o qual foi confundido.
O problema é como evitar tais erros, uma vez que foram cometidos. A obra de arte é
uma cama e não uma ilusão-de-cama ou um urinol e não uma ilusão-de-urinol; desse
1
Referência ao célebre artigo do filósofo, crítico e professor americano Arthur Danto (1924-2013) escrito
em 1964, intitulado “Artworld”, que teve desde essa altura até hoje uma enorme repercussão não só junto
dos meios artísticos como também no seio de instituições académicas e da crítica de arte mais
especializada.
1
modo, não há nada como o encontro traumático contra uma superfície plana que deixou
claro para os pássaros de Zêuxis que eles haviam sido enganados. Essa superfície plana
tanto pode ser uma parede como um tela onde o pintor representa uma cortina, um
cacho de uvas ou uma maçã. Danto falava no seu texto sobre o mundo da arte usando o
termo indiscerníveis para se referir a um determinado tipo de objectos difíceis de
distinguir em certos contextos. O que ele queria dizer com o termo “indiscernível”, cuja
tradução literal significa, “aquilo que não se pode distinguir”, serviu para ele estabelecer
a diferença entre obras de arte e objectos comuns ou reais.
2
institucional e corporativo enraizado na sociedade e nos seus valores, neste caso
estéticos e até políticos.
Quando Danto fala de dois objectos indistinguíveis em que um deles é uma obra de arte
e o outro é um mero objecto real, ele está a referir-se, neste caso, a uma experiência
estética face a dois objectos idênticos: o urinol de Duchamp enquanto ready made2 e o
urinol que serve para urinar; a Brillo Box de Warhol entendida como obra de arte e uma
caixa de esfregões da marca Brillo posta à venda num supermercado. Parece que
estamos confrontados com a parábola do objecto bom e do objecto mau com duas
interpretações diferentes, em que a primeira corresponde ao que alguns filósofos
chamariam de realismo naïf e a segunda uma forma de reconhecermos que tal objecto é
de facto uma obra de arte.
O mundo da arte é constituído por diversos tipos de instituições tais como museus,
galerias de arte, auditórios, universidades, bibliotecas, espaços públicos, teatros e
cinemas além dos artistas, críticos, curadores, coleccionadores, historiadores e o
público. Em 1969, num artigo intitulado "Defining art"3, o filósofo George Dickie
desenvolve a noção de "mundo da arte" a partir da que foi apresentada por Danto, em
1964, e que resultaria nas várias versões da chamada Teoria Institucional da Arte. A este
propósito diz Dickie: "Ver alguma coisa como arte exige algo que o olho não pode
perceber - uma atmosfera de teoria artística, um conhecimento da história da arte: um
mundo da arte". O que o olho não pode perceber é uma complexa característica não
manifesta dos artefactos em questão. A "atmosfera" da qual Danto fala é difícil de
apreender, mas ela tem um conteúdo substancial. Talvez esse conteúdo possa ser
capturado numa definição. Uma obra de arte no sentido descritivo é (1) um artefacto (2)
ao qual a sociedade ou algum subgrupo da sociedade conferiu o estatuto de “candidato à
apreciação”. É nestes termos que Dickie procura definir a sua Teoria Institucional da
Arte.
Segundo George Dickie todas as teorias tradicionais partem do princípio de que a obra
de arte é um artefacto, ou seja, um objecto feito pelo homem, especialmente tendo em
vista um uso posterior. Os artefactos não têm de ser todos objectos físicos, visto que um
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O “ready-made” é manifestação radical da intenção do artista francês Marcel Duchamp de romper com
o lado artesanal da operação artística, uma vez que se trata de apropriar-se de algo que já está feito: o
artista escolhe, por isso, produtos industriais, realizados com uma finalidade prática e não artística (urinol
de louça, pá, roda de bicicleta), e eleva-os à categoria de obra de arte.
3
DICKIE, George. Defining art. In: American philosophical quarterly, vol. 6, n. 3, jul. 1969, p. 253-256.
3
poema, por exemplo, não sendo um objecto físico é, mesmo assim, um artefacto. Os
espectáculos de dança e os concertos de música são feitos pelo homem e nesse sentido
também são artefactos. Todavia, segundo George Dickie, há um problema em relação à
artefactualidade de determinadas obras de arte mais recentes como é o caso do “ready
made” ou do “objet trouvé”4.
Há por isso quem negue que muitos artefactos sejam arte porque, segundo afirmam, não
são artefactos feitos pelos artistas. George Dickie tem um critério de definição da obra
de arte que passa pela atribuição de estatuto de arte a um objecto de modo a saber-se se
ele é arte ou não. Neste sentido qualquer objecto por mais banal que seja, é candidato a
um critério de apreciação para se saber se ele pode ser considerado ou não uma obra de
arte. Dickie menciona o acto de um rei que confere um título de nobreza ou um padre
que declara um casal como marido e mulher, como exemplos em que uma pessoa que
representa uma instituição (o Estado ou a Igreja) concede um estatuto jurídico. Quando
o júri numa universidade decide atribuir um grau académico concede, enquanto pessoa
colectiva, um estatuto extrajurídico a alguém. Podemos igualmente interrogarmo-nos se
o mesmo não acontece relativamente uma obra de arte, quando alguém representativo
do mundo da arte decide atribuir o estatuto de obra de arte a um urinol ou a uma caixa
Brillo. Por outras palavras, um pedaço de madeira, um sofá velho, um fogão de cozinha,
garrafas de plástico ou pneus de automóvel, sem terem sofrido qualquer alteração por
mãos humanas, podem tornar-se artefactos ao serem expostos num museu. Deste modo,
fica claro que a noção de artefacto introduzida por Dickie é suficiente para não excluir
qualquer objecto que seja apresentado como potencial a obra de arte.
É dentro deste contexto que Dickie procura indagar como é que alguém confere
estatuto de candidato à apreciação de uma obra de arte:
“Um artefacto pendurado na parede de um museu como parte de uma exposição ou um
espectáculo num auditório são sinais claros de que o estatuto foi conferido. Deste modo
uma pessoa singular ou colectiva confere estatuto de obra de arte a um artefacto no
interior do mundo da arte”.
4
“Objet trouvé” (objecto encontrado em português) é a designação francesa para um objecto encontrado
ou colectado aleatoriamente e considerado esteticamente agradável como acontece com pedaços de
madeira, seixos e conchas encontrados por acaso numa praia ou os objectos industriais deitados num
contentor. Alguns destes “objets trouvés” são levados pelo artista para serem depois expostos, tal como
foram encontrados, num museu ou numa galeria de arte.
4
Pode-se concluir que a artefactualidade pode ser conferida por alguém que seja
reconhecido do mundo da arte (crítico, director de um museu, galerista, historiador de
arte, coleccionador, artista consagrado) ou pode ser trabalhada pelo artista. Podemos
falar igualmente em conversão para nos referirmos ao destino que alguns artefactos
vieram a conhecer ao longo da história da arte do século XX. Se Marcel Duchamp pode
converter um urinol, uma roda de bicicleta, uma pá de neve ou um seca garrafas, em
obras de arte, não poderão os artefactos naturais e artificiais, como pedaços de madeira,
conchas da praia, fogões de cozinhas ou peças de automóveis, tornarem-se igualmente
obras de arte? A este propósito convém lembrar o que diz Dickie: “Tenha-se em mente
que o facto de algo se tornar uma obra de arte no sentido classificativo não implica que
esse objecto tenha efectivamente valor. (…) No caso de objectos como os ready made
de Duchamp, como a Fonte, confere-se artefactualidade artística a um artefacto
sanitário, que se torna duplamente artefacto”.
Talvez a arte seja indefinível, assim como as obras e os artistas a ela ligados, porque a
arte quer ir sempre mais além do pensamento e da realidade procurando ultrapassar a
história e o tempo presente.