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Arthur Danto
O abuso da beleza
Prefácio
É curioso o fato de que minha filosofia da arte, mesmo aspirando ao tipo de atemporalidade
que a filosofia em geral tem como alvo, seja a tal ponto um produto de seu momento
histórico, que ela possa com facilidade ser considerada como algo que tem relevância
especificamente para a arte que a ocasionou. A própria arte era o produto de vários
movimentos artísticos de vanguarda do início dos anos 1960, sobretudo na cidade de Nova
York ou em torno dela. Além disso, a maior parte dessa arte dificilmente poderia ter sido feita
numa data anterior. Considere-se a celebrada Brillo Box, de Andy Warhol, que passou a ter
tanto destaque no meu pensamento e nos meus escritos. Ela foi feita e exibida em 1964,
apropriando-se do formato de uma embalagem comercial para remessa que só passou a existir
pouco mais de um ano antes da obra. O designer da embalagem, ele próprio um artista,
baseou-se nos paradigmas estilísticos da pintura abstrata contemporânea. “Brillo”, por sua
eficiente em dar brilho a utensílios de alumínio. O produto tinha sido introduzido no mercado
americano apenas alguns anos antes. A Brillo Box dificilmente poderia ser anterior àquilo que
lhe deu seu significado. É possível imaginar que, um século antes, poderia ter surgido um
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objeto que se assemelhasse exatamente a ela, embora ele não pudesse comportar os
significados associados que deram vida à Brillo Box enquanto uma obra de arte. Não só o
mesmo objeto não poderia ter sido a mesma obra de arte que foi em 1964, mas é difícil ver
como, em 1864, ele poderia chegar a ser uma obra de arte. Já foi suficientemente difícil para
muitos, mesmo em 1964, aceitá-lo como arte, mas naquele momento tinha se aberto um
espaço para que pelo menos um certo segmento do mundo da arte o aceitasse sem hesitação
como arte. E a questão que me concerniu inicialmente, enquanto filósofo, foi a de saber o que
tornava possível o fato de algo ser uma obra de arte num dado momento histórico já que
aquilo não poderia ter tido o mesmo status num momento anterior. No mínimo, isso indicava
o problema, no nível filosófico mais geral, de saber em que medida a situação histórica de um
como os objetos da ocupação filosófica são, eles mesmos, pensados como sendo atemporais.
Mas sempre achei filosoficamente instrutivo imaginar certos objetos, que se encontram presos
a seu momento histórico, como a Brillo Box, transportados para uma época bem anterior, do
mesmo modo que Mark Twain imaginou um ianque de Connecticut levado para a corte do
Rei Arthur. Para a capa de meu livro Além da Brillo Box, o engenhoso pintor Russel Conner
substitui o cadáver no famoso quadro Lição de anatomia, de Rembrandt, pela Brillo Box,
dando assim a impressão de que os homens no auditório do século dezessete, ávidos pelas
explicações do Dr. Tulp, ouviam um discurso sobre a arte de vanguarda de meados do século
vinte. Estamos acostumados à ideia, nos museus enciclopédicos dos nossos dias, de passar da
galeria devotada à arte holandesa do século dezessete para uma outra, dedicada à arte
“comunicação” entre elas, como os curadores gostam de dizer. No entanto, aqueles para os
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quais Rembrandt pintava não teriam nenhum modo de acomodar a Brillo Box a seu conceito
efetivamente um urinol – numa exposição que não teria júri algum, mas na qual ele foi
rejeitado pelo comitê responsável, com base no argumento explícito de que aquilo não era
arte. Havia setores do mundo da arte de 1917 receptivos aos ready-mades de Duchamp, mas o
pertencia a tais setores. Mais ou menos da mesma maneira, havia uma grande parte do mundo
da arte de 1964 para a qual a Brillo Box não era arte. Contudo, não havia e não poderia haver
Brillo Box poderia se encaixar. É verdade, evidentemente, que o conceito de arte estava
começando a se afrouxar o suficiente para que o Almoço na relva de Manet fosse aceito como
arte em 1864, embora o quadro constituísse uma perversão da própria ideia de arte para
muitos dos que o viram no Salon des refuses daquele ano. Heinrich Wollflin escreveu que
nem tudo é possível em qualquer época. Nesse sentido de impossibilidade histórica, a Brillo
Box, mesmo possível enquanto um objeto, não era possível enquanto arte muito antes do
momento em que foi realizada. (É bom lembrar que a Brillo Box era feita de compensado
industrial de madeira, que não devia existir em 1864, quanto menos em 1664, e era pintada
com tinta silkscreeen, que certamente não existia. Filósofos são excessivamente descuidados
Brillo Box consiste poderia ter suscitado espanto, do mesmo modo que cascas de coco quando
FIGURA 1 Russel Conner, Imagem de capa para Além da Brillo Box. O conteúdo pode se
mas também, de um modo mais imediato, põem em questão de que modo as obras de arte
devem ser abordadas do ponto de vista crítico e estético. Pode ser uma suposição do
Formalismo, enquanto abordagem crítica, que tudo de relevante para tratar de uma obra de
arte precisa estar presente e acessível a qualquer momento da existência da obra. Há, por
assim dizer, uma posição na filosofia da arte análoga ao Internalismo na filosofia da mente e
físico, algumas delas de modo radical – pigmentos se apagam, estátuas perdem membros
obra às vezes são simplesmente esquecidas: não sabemos mais a identidade de pessoas em
velhos retratos; os indivíduos que conheciam as chaves para ler certos signos e símbolos
morreram sem passar adiante seu conhecimento. Simplesmente não sabemos como ler as
alguns deles, podiam fazer. Há palavras cuja única ocorrência conhecida na língua inglesa se
encontra em uma das peças de Shakespeare, de modo que, caso o manuscrito tivesse se
perdido, mesmo os especialistas não teriam nenhuma chance de saber quais palavras estavam
não se trata de uma identidade estrita. Assim, as mudanças pelas quais as obras de arte passam
são, de fato, meramente contingentes. É à obra de arte, na medida em que se pode distingui-la
do objeto físico, que fazem referência quando dizem que nada fora dela é relevante para seu
relevante para apreciá-la está idealmente disponível ao olhar do crítico a qualquer momento, e
nada que vá além disso é relevante para experimentar a arte como arte.
É a obra de arte nesse sentido curioso, como algo distinto do objeto físico, que estou
imaginando transferida para algum momento histórico anterior – Brillo Box como um tipo de
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design formal. Mas o que terá se perdido nessa transposição imaginária é aquilo de que falei
aqui como sendo os significados que dão vida à obra. Pois o significado se baseia na conexão
da arte com o mundo, e as relações entre o design e o mundo são históricas. O nome “Brillo”,
por exemplo, designa um produto familiar, inventado e patenteado numa certa época. Antes
disso, era um barulho ou um desenho de letras escritas, ou então, na melhor das hipóteses,
uma palavra em alguma forma de latim canino. Na Brillo Box, há uma marca que consiste
num círculo com um “u” inscrito no centro. Trata-se de um logotipo usado para significar que
estabelecida depois do surgimento do Estado de Israel. Brillo era kosher em 1964, entretanto
deixou de ser, e por isso os pacotes de Brillo nos supermercados não têm mais permissão para
mostrar o logotipo. Então o logotipo é parte do design ou não? Isso é algo que vou deixar para
como já foi afirmado, a Brillo Box em si mesma, como obra, encontra-se numa relação de
“apropriação de” com os pacotes nos quais Brillo era remetido das fábricas para os
distribuidores e dali para os supermercados, desde meados dos anos sessenta até o final dos
anos 1990, quando o design dos pacotes mudou. No entanto, ainda é mais relevante do que
isso o fato de que o interesse e a importância da Brillo Box são estritamente vinculados a
atitudes diante da arte que prevaleceram no campo artístico no início e até o meio da década
de 1960, especialmente em Manhattan. Parte do que tornou possível que aquela obra fosse
arte, na época, foi o fato de essa atmosfera de história e teoria definir aquilo que era
expressão – meu pensamento era que, para ver Brillo Box como arte, era necessário conhecer
algo da história e algo da teoria que definia o mundo da arte relevante daquele momento.
Havia muitos mundos da arte, mesmo em Nova York, naquele momento em particular. Não
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quero relativizar a arte a mundos da arte, apenas enfatizar neste caso que o status da Brillo
Box como arte dependia de fatores externos que não estavam em jogo muito antes de 1964.
Quero dizer algo sobre o grau em que essas considerações históricas pertencem ao
conceito de arte, mas seria melhor abrir um parêntesis com algumas palavras sobre o próprio
conceito do conceito. Com frequência se faz a observação de que os gregos, com os quais a
filosofia da arte teve início no Ocidente, não tinham uma palavra para arte no seu vocabulário.
No entanto, eles certamente tinham um conceito de arte que incluía, em sua abrangência, uma
grande parte dos mesmos tipos de objetos que nós consideramos obras de arte hoje em dia.
Uma definição de arte que excluísse a escultura grega ou o drama grego seria ipso facto
características de tais objetos, não faziam parte do conceito de arte, mesmo que estivessem
acreditava-se que a estatuária grega fosse semelhante a seus objetos, mais ou menos da
mesma maneira que as tragédias gregas eram semelhantes a certos episódios históricos nas
vidas de seus heróis. A técnica da semelhança de fato definiu uma história progressiva nas
principais artes miméticas que chegaram a nós – escultura e drama. Foi um progresso definido
na direção da similitude da vida, desde as figuras arcaicas de Apolo até figuras tão próximas
da aparência de seres humanos, que passou a haver a possibilidade genuína da ilusão. Essa
possibilidade deve ter desempenhado um papel importante nas formas de vida gregas,
especialmente no culto religioso, em que estátuas de deuses e deusas eram tão convincentes,
que a pessoa devia sentir-se na presença das próprias divindades, especialmente em meio à
atmosfera escura e esfumaçada dos interiores de templos. Segundo a descrição que Nietzsche
que o ator central estava realmente possuído por um deus, de tal modo que o coro podia sentir
que Dioniso, por exemplo, estava ali com eles. Não é implausível supor que se podia acreditar
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em algo assim no caso das estátuas de deuses, nos templos dedicados a seus cultos. Afinal, “a
presença mística do santo em seu ícone” foi amplamente sustentada pela Igreja Ortodoxa
inconoclásticas do século oito bizantino. Não havia nenhuma implicação de que a qualidade
sentimento de que Ésquilo fosse inferior a Eurípides. Assim, Sócrates foi capaz, em sua
famosa polêmica, de concluir que a similitude em relação à vida não era parte do conceito de
arte, embora fosse amplamente louvada em sua época. Era, contudo, central para o conceito
grego o fato de que a arte deveria representar coisas. Mas graus de similitude em relação à
vida na representação mimética eram questões relativas, em parte ao gosto, em parte à função,
e era claro para Platão que havia modos de representação diferentes da mímesis, seja qual
fosse o seu grau de similitude em relação à vida. A noção de representação que eles tinham
era bastante abstrata e geral. E a minha também é, evidentemente, desde quando propus a
se podia distinguir, como sendo arte, algo que se assemelhava profundamente a uma coisa que
não era de modo algum arte. Minha preocupação foi ocasionada pela arte dos anos 1960, mas
Aqui está outro exemplo. Desde o século dezoito até o início do século vinte, a
suposição era a de que a arte deveria possuir beleza. Era tanto esse o caso, que a beleza teria
sido uma das primeiras coisas em que as pessoas iriam pensar em conexão com – bem – as
beaux-arts. Quando Roger Fry organizou sua grande exposição de arte pós-impressionista na
Galeria Grafton, em Londres, em 1910 e 1912, o público ficou ultrajado não só pela
desconsideração da similitude em relação à vida, algo que caracterizou uma parcela tão
grande do movimento modernista, como também pela palpável ausência da beleza. Em sua
defesa, Fry argumentou que a nova arte seria vista como feia até que fosse vista como bela.
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Para vê-la como sendo bela, ele afirmava, requeria-se educação estética, e a beleza seria vista
no decorrer do tempo. Sem dúvida, algumas vezes chegamos a ver uma beleza que nos
escapou inicialmente – mas e se não chegarmos? Será por que somos cegos para a beleza? Ou
será por que nos equivocamos ao tomarmos como algo garantido que a arte precisa ser bela?
Aquilo que vou considerar neste livro como a Vanguarda Intratável abjurou a beleza. Refiro-
gratificação daqueles que eram considerados responsáveis pela Grande Guerra. Em seus
Diálogos com Cabanne, Duchamp desdenha de toda a ideia do que ele chama de “o frisson
retiniano” que a arte, desde Courbet, deveria induzir nos espectadores. Ele se entusiasmava
com uma arte intelectual, sem qualquer gratificação sensorial. Considero que a Vanguarda
Intratável deu um imenso passo filosófico para a frente. Ela ajudou a mostrar que a beleza não
era parte do conceito de arte, que a beleza podia estar presente ou não em algo, e aquilo
continuava a ser arte. O conceito de arte pode requerer a presença de um ou outro dalguns
dentre uma série de traços, que incluem a beleza, mas também incluem vários outros, como a
sublimidade, para usar outro traço muito discutido no século dezoito. Por enquanto, vou
chamar esses traços de pragmáticos, para contrastar com os semânticos, exemplificados pela
mímesis, tomando esse vocabulário emprestado da Teoria dos Signos de Charles Morris, que
pragmáticas visam a dispor uma audiência a ter sentimentos de certo tipo ou de outro, em
relação ao que a obra de arte representa. Como Morris diz de passagem, aquilo que ele chama
de pragmatismo era chamado de retórico em épocas anteriores, e a retórica era uma das
disciplinas decisivas do período clássico. Pode ser a função pragmática da beleza despertar
amor em relação àquilo que uma obra de arte mostra, enquanto a função da sublimidade seria
O círculo dos traços pragmáticos é bem mais amplo do que qualquer coisa realmente
circunscrita ao cânone dos escritos sobre estética, assim como o círculo dos traços semânticos
inclui bem mais do que representações miméticas. Mas minha preocupação aqui é
simplesmente a de pinçar alguns poucos dos componentes que figuram, ou poderiam figurar,
na análise conceitual da arte, e tornar claro como foi restrita a explicação desse conceito na
literatura filosófica e crítica dedicada à arte. Uma definição filosófica da arte deve ser dada
nos termos mais gerais, a fim de que ela dê conta de tido possa abranger tudo aquilo que já foi
ou que venha a ser uma obra de arte. Ela deve ser suficientemente geral para tornar-se imune
formulação que preenche tal condição, foi isso o que governou desde o início a minha
filosofia da arte como uma tarefa. Mas é precisamente isso que lidar com a arte de meados
dos anos sessenta tornou possível. Pois trata-se de um período no qual uma grande parte do
que antes era percebido como parte do conceito de arte deixou inteiramente de ser levado em
consideração. Não apenas a beleza e a mímesis, mas quase tudo o que figurava na vida da arte
foi apagado. A definição de arte teria que ser construída nas ruínas do que, em discursos
anteriores, era pensado como o conceito de arte. Isso me traz de volta a meu paradigma.
O tema que me concernia imediatamente em conexão com a Brillo Box não era
simplesmente o que fazia dela arte, mas como, se ela era uma obra de arte, objetos exatamente
para o transporte de sabonetes Brillo. Sem dúvida faz parte da interpretação desse segmento
da obra de Warhol o fato de que ela usa logotipos da arte comercial para fins artísticos. Mas,
na verdade, Warhol poderia ter feito arte a partir de qualquer coisa, contanto que a coisa a
partir da qual ele fizesse arte pertencesse ao domínio dos objetos que não eram obras de arte.
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Em 1964 ele usou, por exemplo, fotografias policiais dos criminosos “mais procurados”,
algo que podemos chamar de “estilo” de Warhol e que determinava quais, entre o vasto
número de coisas a partira das quais ele poderia fazer arte, ele realmente usou para fazer arte.
Entretanto, tudo o que eu exigia da arte dele era que deveriam existir exemplos de coisas que
não eram arte, contanto que elas e a arte tivessem tanto semelhança quanto a Brillo Box e as
caixas ordinárias de Brillo. Isso me deu a ideia dos pares indiscerníveis, sendo um dos objetos
uma obra de arte e o outro não, de modo que eu pudesse então perguntar qual o fundamento
para que um, no par, fosse uma obra de arte, e o outro apenas uma coisa. Isso acabou sendo
uma ferramenta poderosa para a pesquisa conceitual de que eu precisava. Mas ela dificilmente
se mostraria como uma ferramenta muito antes de a possibilidade realmente existir na prática
artística.
Agora, a verdade é que eu podia ter encontrado exemplos desses pares por toda parte
no mundo da arte dos anos 1960. Fluxus, por exemplo, usou comida como arte. Minimalistas
usaram seções de construções pré-fabricadas e outros produtos industriais. Artistas Pop como
como pinturas. O conceitualista Dennis Oppenheim cavou um buraco numa montanha perto
de Oakland, na Califórnia, e o ofereceu como uma escultura que não podia ser transportada
para um museu. Por volta de 1969, os conceitualistas estavam prontos para considerar
qualquer coisa como arte, e estavam preparados para considerar qualquer pessoa um artista,
mais ou menos do mesmo modo que Joseph Beuys estava prestes a propor. Exemplos podiam
ser encontrados na dança, especialmente no Judson Group, onde era possível que uma dança
distinção entre sons musicais e não musicais. A vanguarda dos anos sessenta estava
interessada em superar o fosso entre vida e arte. Ela estava interessada em apagar a distinção
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entre belas artes e arte naïf [fine and vernacular art]. Contudo, quando a década chegou ao
final, restava muito pouco do que qualquer um teria pensado antes como parte do conceito de
arte. Foi um período de espetacular reacerto filosófico. Felicidade era estar vivo naquele
alvorecer!1
Não há dúvida de que minha filosofia era em grande medida, ela mesma, parte daquele
momento, embora eu conhecesse apenas de uma parcela do que estava acontecendo, e além
disso o caso é que ninguém no mundo da arte – ou na série de mundos da arte sobrepostos
anos. Mas as estruturas com as quais eu estava trabalhando eram em grande medida aquelas
1964, e as ideias desse livro influíram no modo como eu pensava sobre qualquer coisa. Nesse
livro, por exemplo, eu argumentei, por meio de um tipo de análise da condição de verdade,
que os significados de eventos históricos são invisíveis para aqueles que os vivem. Trata-se
do tipo de tese externalista que eu seguia na análise do conceito de uma obra de arte – a tese
segundo a qual o que faz um objeto uma obra de arte é externo a ele.
alguém reflete sobre o que tornou aquele momento tão único, duas coisas têm de ficar clara. A
primeira é que, desde quando se vê que qualquer coisa pode ser uma obra de arte, não faz
muito sentido perguntar se isso ou aquilo pode ser uma obra de arte, uma vez que a resposta
sempre vai ser sim. Aquelas coisas talvez não sejam obras de arte, mas elas podem ser.
Assim, a segunda coisa a ficar clara é que se tornou urgente agora a questão de saber qual
deve ser o caso, se elas se destinam a ser obras de arte. Isso significa que uma teoria da arte
de repente é algo imperativo, de um modo que ela nunca pareceu ser antes. É evidente, além
1
citação de um verso de William Wordsworth em poema sobre a Revolução Francesa.
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disso, que nenhuma teoria prévia da arte poderia ajudar muito, porque nenhuma tinha sido
formulada no tipo de situação que definiu o mundo da arte dos anos 1960, a saber, aquela na
qual qualquer coisa, por mais banal, podia ser uma obra de arte. Só era possível alcançar o
grau de generalidade exigido pela filosofia diante da extrema amplitude que os anos sessenta
tornaram vívida. Então era uma ótima época para ser um filósofo da arte!
Meu próprio trabalho nesse campo maravilhoso foi inspirado por dois pensamentos de
pode começar propriamente quando essa forma de vida envelheceu: “Quando a filosofia a
pinta cinza sobre cinza, então uma forma de vida envelheceu”, ele escreve de modo elegíaco
em A filosofia do direito. Penso que apenas quando a história da arte chega a seu fim a
filosofia da arte pode começar plenamente. Ela pode fazer isso porque até então a filosofia
não tinha todas as peças de que necessitava para construir a teoria. Mas isso se conecta com a
segunda ideia que tenho, baseada de algum modo na obra-prima de Hegel, A fenomenologia
do espírito. Esse livro tem, como sugeriu uma vez o filósofo americano Josiah Royce, a
denomina seu tema, passa ao longo do livro pela educação por meio da qual chega a descobrir
sua própria identidade. Essa era o tipo de Bildung com a qual Hegel ocupava, e com a qual
todos nós nos ocupamos para chegar a aprender, por meio da experiência, o que realmente
somos. Gosto de pensar na história da arte como um Bildungsroman assim também, no qual
Kunst [arte] descobre pouco a pouco sua própria identidade. A filosofia é a consciência
cambiante dessa história, no sentido de que a cada estágio emerge uma peça do quebra-cabeça
que a filosofia supõe ser o que Kunst é. Mas, assim como na Fenomenologia, isso é com
frequência algo parcial e algo errado. Não se trata de um progresso fácil. As aventuras, as
casualidades e as desventuras de Kunst constituem não a história da arte, que tem sido a
província da história artística enquanto disciplina, mas a história filosófica da arte, que é
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efetivamente a história da filosofia da arte. Essa história chegou a um novo nível nos anos
1960, quando finalmente ficou claro que qualquer coisa podia ser arte. O fim da arte, como
usei a frase, significa isso. Agora é possível dar uma resposta para a questão da identidade de
Kunst que temos a convicção de que não pode ser descartada pela história da arte
Neste prefácio, mencionei duas condições que ajudam a especificar aquela identidade.
Uma delas é a de que, para ser arte, ela precisa representar algo, ou seja, ela precisa ter
alguma propriedade semântica. Uma boa parcela do meu livro Transfiguração do lugar
comum é dedicada a estabelecer isso. Eu gostaria de dizer que ter alguns dos traços que
chamei aqui de pragmáticos é uma segunda condição, mas não estou certo que isso seria
verdade. Não estou porque não tenho certeza de que papel propriedades pragmáticas
resposta para a questão, caso alguém a formulasse, de qual era o sentido da arte.
Se sou do meu próprio momento histórico, isso explicaria por que deixei de formular,
quanto mais de tentar responder essa questão, e o fato de eu ter raramente, na análise da arte,
isso deve ser explicado pelas circunstâncias históricas nas quais minha filosofia da arte se
originou: a arte de vanguarda dos anos 1960 voltou as costas para a estética de modo quase
tão resoluto quanto a filosofia de vanguarda daquele período voltou suas costas para o
aperfeiçoamento moral [edification]. Ambas aspiravam a ser “cool”. Penso que isso foi, na
filosofia da arte, um gesto saudável. Ajudou a separar a filosofia da arte da estética, o que foi
sempre uma tamanha confusão. Penso que agora obtivemos imunidade suficiente, de modo
que podemos considerar novamente o que, afinal, torna a arte tão significativa para a vida
humana, e esta é minha pauta [agenda] atual. Protegido por aquilo que aprendi, posso
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começar uma vez mais a pinçar, com o longo fórceps da filosofia analítica, tais propriedades
explicar por que a beleza foi o paradigma da propriedade pragmática na história da arte, e seu
entrincheiramento no discurso mais do que justifica a ênfase que lhe atribuirei neste livro.
da arte se encontrava dominada por duas teses principais: a de que nenhuma definição desse
tipo era possível e a de que nenhuma definição desse tipo era necessária. A segunda era, em
grande parte, uma resposta wittgensteiniana à primeira. Mas, como acontece tantas vezes com
por um termo dado – nesta instância “obra de arte” –, de modo que se poderia esperar dos
casos. A posição anterior, por sua vez, era baseada no imenso pluralismo que estava
começando a prevalecer na arte: tantas coisa se tornaram possíveis como obras de arte, que
começando a ser ameaçado quase no momento em que ela era enunciada. O que sabemos
agora é que, apenas quando o pluralismo radical foi registrado na consciência, finalmente se
tornou possível uma definição. Ela precisa consistir em propriedades que têm de estar sempre
presentes, por mais variadas que se mostrem as classes de obras de arte – como na Bienal
Whitney de 2002, por exemplo. Esse pluralismo evidentemente não era discernível mesmo
quando a filosofia de Wittgenstein começou a ser aplicada por seus seguidores à filosofia da
filosofia da arte de um modo trans-histórico. Assim, pode-se enfim ter como objetivo uma
filosofia da arte atemporal apenas num momento como o atual, que é, afinal, único na história
da arte. Apenas prestando o máximo de atenção à arte do meu momento histórico fui capaz de
ter a expectativa de uma filosofia da arte válida para todos os momentos históricos.
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Isso me leva a um terceiro pensamento de Hegel. Todos nós somos filhos de nosso
tempo, ele escreveu – mas a tarefa dos filósofos é compreender seu tempo como pensamento.
Desde os anos 1960, e compulsivamente desde os anos 1980, tentei converter em filosofia
minhas experiências no mundo da arte. Só se pode fazer isso quando se vive o tempo em
questão, e isso torna este livro mais pessoal e confessional do que se espera que a filosofia
seja, e mais abstrato do que as confissões costumam ser. Há uma tradição da confissão
meditativa na literatura filosófica, mas o principal é que ninguém deve encarar este livro
como tendo a pretensão de nenhum tipo de autoridade erudita. Sua autoriadade, se é que tem
alguma, está em outro lugar. Dispensei as notas de rodapé, que constituem, exceto na escrita
mais erudita sobre arte, uma façade de pretensa autoridade. Leiam-no como uma história de
aventuras, com alguns poucos argumentos e distinções filosóficos, como troféus trazidos de
ARTHUR C. DANTO