Você está na página 1de 16

1

GEORGE KUBLER E OS TEMPOS DA FORMA

Paulo Pereira

“Espacializar o tempo é uma faculdade tanto dos caracóis como dos


historiadores” (George Kubler)

Esta exposição partilha o seu título com um pequeno, mas importantíssimo livro
dedicado à teoria e à metodologia da História de Arte: A Forma do Tempo da autoria de
George Kubler (1912-1996) 1, publicado em 1962 2. Aliás, neste catálogo, o texto de
Claudia Cieri Via evoca justamente esta obra no início do seu belo ensaio, para nos falar
das premissas do autor norte-americano, que nos oferece ali uma nova conceção da
História da Arte.
Antes, porém, de tratar do conteúdo dessa obra convém introduzir como que um
preâmbulo justificativo para esta abordagem.
É que, dá-se o caso de em Portugal e no Brasil, mais talvez do que em quaisquer
outros países, a fortuna crítica de George Kubler ser imensa. Influenciou historiadores
de arte, mas também arquitetos e designers. A razão para esta receção do trabalho de
Kubler ficou a dever-se a outro livro seu. A publicação é de 1972 e intitula-se
Portuguese Plains Architecture. Between Spices and Diamonds (1520-1650) 3 e deixaria
marcas indeléveis, pelo menos no estudo da história da arquitetura portuguesa.
O livro terá uma receção notável e vai inspirar professores do Mestrado em
História da Arte da Universidade Nova (fundado há cerca de quarenta anos), através do
magistério de José Eduardo Horta Correia (hoje jubilado pela Universidade do Algarve),
constituindo-se uma autêntica “escola” da qual fiz parte, como muitos outros colegas
meus.
Esta obra de Kubler foi muito apreciada e, ainda hoje, é debatida com rigor em
universidades e academias, embora com uma postura crítica. No entanto, é curioso
assinalar que, embora se trate uma obra de pura história da arquitetura relativa a um
passado relativamente distante, ainda desperte interesse em discussões que convergem
para a perceção da natureza mais ou menos “portuguesa” da arquitetura contemporânea.
É que o livro constituiu uma semente que permitiu também o debate sobre a estética e
cultura arquitetónica em Portugal (e Brasil) através de exemplos pragmáticos e
metodológicos.
Voltando à Forma do Tempo (The Shape of Time (1962; reed. Portuguesa,
2004).
2

Neste livrinho, que teve uma receção desigual, entre o fascínio e o


esquecimento, mas que foi apesar de tudo discutido nos areópagos da História de Arte,
Kubler procedeu a uma completa revisão das antigas teses formalistas e, em especial das
que provinham do Heinrich Wolfflin (1864-1945).
Relembramos, de forma muito sintética: Wolffllin, um dos mais influentes
historiadores de arte de todos os tempos e importante agente da chamada Escola de
Viena, havia formulado princípios de empatia corporal, que a arquitetura de forma
indireta transmitia. Esse processo iria estendê-lo, de uma forma elástica (mas
especialmente útil para a definição de “estilo”), até ao “objeto”, ao “puro objeto” ou
melhor, até ao vestuário, como algo que determinava a forma como envelope do corpo.
Na obra Conceitos Fundamentais da História da Arte (“Kunsgeschichtliche
Grundbegriffe”) irá, no entanto, e doravante, dar prioridade à “pura visualidade”. Para
tal construiu uma teoria constituída por categorias, definidas por pares de opostos: o
linear e o pictórico; o plano e a profundidade, a forma fechada e a forma aberta, a
pluralidade e a unidade, a clareza e a obscuridade. Ora, Kubler considera estas
conceções demasiado abstratas. E procurou integrá-las numa vivência humana, espácio-
temporal, através de uma modelização que fará apelo não já a estas categorias nem à
visão biológica dos “estilos”, que possuíam como que uma vida própria, com a sua
infância, juventude, período maduro, envelhecimento e esgotamento final. Pretendeu
ultrapassar – mas não refutar por completo -, uma História de Arte baseada nos “estilos”
e num determinismo biológico metafórico.
Note-se, ainda, que Kubler dominava a sua língua materna, mas também o
francês e o alemão, o castelhano e lia bem o português; e possuía uma bagagem cultural
que se espraiava no domínio da ciência - ou das ciências. Assinalo que no livro são
inúmeras as comparações e, aqui e ali, algumas metáforas - que aliás o próprio Kubler
denuncia -, com a Física, a Eletrodinâmica, a Astronomia e a Astrofísica, a Sismologia,
a Matemática pura e a Estatística, a Química, a Linguística e a semiologia, a Genética, a
Biologia (que remédio…), a Geometria das relações, a Ótica, a Paleontologia, a
Demografia e a Geografia Humana. Nem mais. Mas sem alarde de qualquer espécie.
Nem gratuitidade.
Costumo dizer, que amplificando o que o título da obra sugere - e ao qual a
língua portuguesa não pode dar expressão a não ser por desdobramento - , bem que se
poderia dizer que o livro diz respeito à Forma do Tempo, mas também às Formas no
Tempo. E é este o grande contributo de Kubler: incorporar as obras de arte no Tempo; e
integrar o Tempo na invenção e criação das obras de arte. Sem descurar, porém, os
fatores externos à obra, como a técnica, ou os contextos culturais, societais,
antropológicos e individuais.
Há outra chave para o entendimento do livro; esta chave é fundamental: trata-se,
agora, não de dar primazia ao Tempo Absoluto (às datas; ou à data de uma obra de arte),
mas sim ao Tempo Sistemático (o “lugar” ocupado por uma obra de arte no fluxo do
Tempo).
3

A inspiração para esta tomada de posição, que não é, todavia, radical no sentido
em que o respeito de Kubler pelos seus predecessores e colegas é absoluta, vai colhê-la
em Henri Focillon, que foi seu mestre e diretor da respetiva tese de doutoramento.
Assumiu como ponto de partida a obra La Vie des Formes (Focillon 4, (1934), reed.
port. 2022) 5 e algumas das reflexões do historiador francês, ele também intensamente
preocupado com a génese das formas e a sua leitura temporal 6. “Alicerçada em
cantaria, talhada no mármore, fundida em bronze, fixada sobre verniz, gravada no
cobre ou na madeira, a obra de arte apenas aparentemente está imóvel. Exprime um
desejo de imobilidade, é uma suspensão, mas como se fora um momento do passado.
Na realidade, nasce de uma mudança e prepara outra”7.
A obra em apreço encontra-se, também, ligada à experiência de Kubler como
investigador da arte pré-colombiana e à sua familiaridade com a arqueologia, onde
abundam não apenas o que se considera serem obras de arte, mas também artefactos (p.
ex. cerâmicas, ornamentadas ou não) e objetos caracterizados por séries tipológicas e a
sua organização de parentesco; e inclusivamente, as circunstâncias demográficas e
geográficas). Não por acaso é este substrato que o leva a subintitular o livro” on the
history of things”. Perdeu-se na tradução portuguesa, mas podíamos usara expressão
complementar “Observações acerca da história das coisas”. Das coisas.
É esta dimensão artefatual do objeto de arte (que é, no fim de contas, uma
“coisa” no mundo produzida pelo homem) que dará o mote para a sua proposta
metodológica. Os objetos possuiriam uma genealogia formal, e daí procederia como
derivações por um período de tempo mais ou menos longo até que a forma se torne
obsoleta.
Não é fácil resumir a obra, mas o próprio Kubler num fascinante artigo 8 que
escreveu em defesa das suas teses9, oferece-nos o acesso à sinopse perfeita que dela fez
uma das suas mais clarividentes críticas, Priscilla Colt10, que ele qualifica como “um
resumo do livro tão conciso que nele nada tenho que modificar nem eu o faria melhor”
11
. Outro auxiliar é a leitura do índice, embora cada item tenha desenvolvimentos e
particularidades impossíveis de condensar sem uma explicação dos conceitos
fundamentais que a obra contém.
Em termos gerais o livro aborda quatro temas centrais: i) o aparecimento da obra
de arte ou do objeto e respetivas séries subsequentes (seriation); ii) os câmbios,
intercâmbios, ou mudanças e interpenetrações ou ainda mutações da obra de arte e/ou
objeto (change); iii) a dimensão do Tempo, ou a forma como a obra de arte/objeto se
apresenta, é aceite ou refutado e interage no Tempo com outras obras de arte e se
propaga e difunde (time); e as diferente maneiras de entendermos, no Tempo, a sua
duração (duration).
Para apreender esta organização dos temas devemos à partida assumir que
Kubler define a obra de arte/objeto como uma solução para um problema humano, i.e.,
um problema comunicacional, mas também de utensilagem prática. Dá-nos um
exemplo: o “percutor” ou, diríamos hoje, o “martelo”. “Os objectos mais antigos feitos
pelo homem de que temos vestígios são utensílios de pedra. Uma série contínua liga
4

esses utensílios aos objectos de hoje. Esta série ramificou-se muitas vezes, e
frequentemente acabou em becos sem saída. Sequências inteiras com um determinado
trajecto cessaram quando determinadas famílias de artesãos acabaram ou quando
determinadas civilizações ruíram, mas a verdade é que o fluxo dos objectos nunca
esteve completamente parado. Tudo o que se faz agora constitui uma réplica ou uma
variante de algo que foi feito há algum tempo e que, por sua vez, também foi réplica ou
variante de outros objectos, tudo isto num movimento incessante desde o dealbar da
era humana. Esta conexão contínua no tempo tem necessariamente de conter divisões”
12
. Neste parágrafo, ofecerece-nos a chave para o entendimento do livro. Aqui se
incluem todos os aspetos centrais (invenção, réplica, seriação, tempo e duração).
Percebe-se bem. Mas explico com o exemplo, i.e.: do biface paleolítico, resultaram
derivações que passam pelo machado encabado (ou o macete, ou o bate-estacas), ao
martelo de percutor de metal até ao… martelo pneumático ou hidráulico (digo eu…).
Ora, a obra de arte, seja qual for o género (e o objeto ou coisa) nasce, como se
viu, da resolução de um problema colocado muita atrás no tempo; e foi sofrendo
mudanças e mutações, como se possuísse a sua própria autonomia genética. É a esta
“obra-primeira”, à qual Kubler chama prime-object, e que a belíssima versão portuguesa
de José Vieira da Lima traduz por “objecto original” (prefiro a noção de “objeto
primordial” e já direi porquê), face ao seu êxito (que não é exclusivamente derivado da
sua utilidade mecânica, porque numa obra de arte está em causa, antes do mais, a sua
eficácia comunicacional) estará sujeito a imitações sucessivas, repetições, replicas e
mutações. Todos estes fenómenos operam no Tempo. Mas num “Tempo sistemático”
como referi acima – ou seja, “relativo”. Não num tempo fixado por datas, que é o do
“tempo absoluto”.
Aqui entrevê-se a influência da Teoria da Relatividade de Einstein e do espaço-
tempo curvo ou deformado. Na sequência, nem tudo acontece como previsto. Há fatores
que induzem a sua mudança, transformação ou mutação. Como detetar esse “objeto-
primordial”, esse “prime-object”?. Eis a grande tarefa do historiador de arte “não
narrativo” (sendo que o “narrativo” é, para Kubler, o historiador de arte tradicional que
integra as obras num estilo. Entra aqui a noção de ciclo ou ciclicidade em substituição
do “estilo”).
A imagem escolhida por Kubler para explicar este fenómeno – o da invenção do
“prime-object” - é, na minha opinião, particularmente feliz: “Conhecer o passado é uma
tarefa tão surpreendente como conhecer as estrelas. Os astrónomos olham apenas para
velhas luzes. Não podem olhar para outras. Estas velhas luzes de estrelas mortas ou
distantes foram emitidas há muito tempo e só no presente as apercebemos. Muitos
acontecimentos históricos, tal como os corpos astronómicos, ocorrem também muito
antes de aparecerem (…). Por isso, astrónomos e historiadores têm uma característica
em comum: lidam com aparências assinaladas no presente, mas que ocorreram no
passado”13. O prime-object é essa estrela longínqua da qual ainda vemos a emissão
luminosa, mas que provavelmente já não existe. Primordial, portanto. Acrescenta
Kubler: “Tanto os astrónomos como os historiadores coligem sinais antigos e
5

produzem depois teorias categóricas sobre distância e composição. A posição do


astrónomo é a data do historiador; a sua velocidade é a nossa sequência; as órbitas
são como durações; as perturbações são análogas à causalidade. Tanto o astrónomo
como o historiador lidam com acontecimentos passados detectados no presente”14
A eletrodinâmica evidencia, por sua vez, como é que esta sequenciação se vai
dando com maior ou menor intensidade: “O conhecimento histórico consiste de
transmissão em que o emissor, o sinal e o receptor são, todos eles, momentos variáveis
que afectam a estabilidade da mensagem. (…) Cada relé (“relay”) implica a
ocorrência de alguma informação do sinal original. Alguns pormenores parecem
insignificantes e são suprimidos no relé; outros ganham uma importância que lhes é
conferida pela sua relação com acontecimentos que ocorrem no momento do relé” 15
Ora, um dos termos mais enigmáticos usado por Kubler, tem afinal uma
explicação muito simples: refiro-me aos auto-sinais e aos sinais aderentes. E é aqui que
a análise de Kubler se distancia, agora, dos “utensílios”, para penetrar definitivamente
no campo artístico. Com efeito, o auto-sinal consiste no reconhecimento imediato da
utilidade do objeto (o “martelo”, que sabemos intuitivamente para o que serve). Já o
sinal aderente é a emissão comunicacional do objeto artístico (e não já do utensílio).
Não serve para nada, é forma “interior” (isto é, tem uma internalidade que lhe é própria
e exclusiva); e terá uma forma “exterior”, que corresponde ao conteúdo da
comunicação.
Esta é uma das razões pelas quais Kubler se distancia da iconologia enquanto
ciência “do sentido” e “da significação” de base literária ou documental, não excluindo,
porém, tal abordagem ou metodologia. Aliás Erwin Panofsky (1892-1968), o prócere da
iconologia na esteira do seu mestre Aby Warburg (1866-1929) dirá, numa carta que
endereçou a George Kubler acerca de A Forma do Tempo, “que o livro consegue o
aparentemente impossível, que é o de provar que os métodos estritamente históricos
podem ser aplicados a um material que, à primeira vista, parece não ter qualquer
história” 16. Referia-se à arte pré-colombiana, mas não deixa de ser curioso assinalar,
por um lado, o respeito pelas “formas” enquanto conteúdo que se lê na metodologia de
Panofsky e, por outro, o alcance desta observação, que expande o campo da iconologia
17
. O próprio Panofsky irá explorar este filão, ao que creio, num seu divertido (mas
sério!) ensaio, aliás, uma das suas últimas incursões no domínio da iconologia e da sua
relação com o “estilo” – e onde o estilo, no fim de contas se singulariza como síntese de
muitas sínteses em busca de uma espécie de “englishness”: trata-se do ensaio The
ldeological Antecedents of the Rolls-Royce Radiator,18 publicado em Erwin Panofsky,
Three Essays on Style 19. E o próprio Kubler, num das suas mais importantes obras, que
intitulou Building the Escorial 20, fará também incursões pela iconologia.
Naturalmente, que a extensa linhagem das formas consideradas na metodologia
de Kubler implica a sequenciação e a seriação no Tempo. “A definição mais exacta de
uma sequência formal que podemos arriscar agora, consiste em afirmá-la como uma
rede histórica de repetições do mesmo traço, gradualmente alteradas. A sequência
pode, portanto, ser descrita como tendo uma armação. Vista segundo um corte
6

transversal digamos que mostra uma rede, uma malha, ou um grupo d; traços
subordinados; vista segundo um corte em profundidade, tem uma estrutura, semelhante
à da fibra, de fases temporais, todas elas claramente idênticas, apesar de a malha da
sua rede se alterar do princípio ao fim.”21.
Para ilustrar esta inferência de Kubler recorro a um dos mais impressionantes
registos de sequências formais, inscritas no Tempo e no Espaço, e que provem da
arqueologia. Refiro-me à “anforologia”, ou à “ciência das ânforas” se assim lhe
podemos chamar 22. São pelos menos duas as principais tabelas de classificação de
ânforas de vários períodos das culturas europeias e próximo-orientais, sendo seguidas
entre outras, três das principais: a de Heinrich Dressel, a de Nino Lamboglia e a de
Ricardo Pascual Guash 23). São seriações – amplas, imensas, com uma demarcação das
zonas de produção, permitindo estabelecer nexos de circulação e propagação das
formas, mas também dos produtos que as ânforas ou recipientes continham, e que
variavam consoante a tipologia 24. Por aqui se entende também a questão importante: a
da propagação das formas. E a sua obsolescência, já que as formas anfóricas, p. ex.,
foram ultrapassadas técnica e utilitariamente como todos bem sabemos: foram
esquecidas e hoje não se produzem. É, de resto, matéria intimamente relacionada com o
Tempo e com o “funcionamento das séries” de Kubler, embora ele aplique esta
problemática às obras de arte (e da arquitectura) propriamente ditas 25.
Outro termo usado por Kubler e que pode desorientar o leitor é o de indicção
(“indiction”). Está relacionado com o termo “entrada” (“entrance”). A indicção é, na
realidade, a substituição do sistema de gerações que define a atividade do artista: passa-
se antes sim um processo que, em vez dos 30 anos geracionais, se multiplica, no caso da
arte ocidental, através de ciclo de dois segmentos de 60 anos (2 x 60 anos). Quer isto
dizer que a invenção ou inovação (ou renovação técnica que também pode estar em
causa, como a da pintura a têmpora vs. pintura a óleo), demora pelo menos 60 anos
numa primeira fase e repete-se até à sua assimilação nos 60 anos subsequentes,
formando uma série 26. Esta duração não colide com o tempo sistemático, antes o
confirma. O génio do artista é, por sua vez explicado através desta indicção -acaso
esteja na origem de uma mutação ou mesmo de um “objeto original” -em função não da
biografia, mas antes da oportunidade relacional, i.e., da aceitação social da mudança
gerada. O artista poderá, portanto, seguir uma tradição e encontrar-se numa cadeia de
continuidade, como poderá produzir mudança sobre o modelo ou modelos anteriores e
suscitar uma nova série.
O caso mais evidente e aplicado a Portugal devolve-nos ao início deste artigo: a
Arquitetura Chã.
A tradução do título da edição portuguesa (que teve de esperar dezasseis anos),
vinha aliás contida no próprio conceito de “plain architecture” e corresponde à edição
em Portugal: Arquitetura Portuguesa Chã, sabiamente subintitulado “Entre Especiarias
e Diamantes” (1ª edição portuguesa: 198827; última reedição portuguesa: 2005). Aqui,
Kubler deslocava o centro de gravidade da sua investigação para áreas pouco
trabalhadas pela historiografia portuguesa, deixando de lado os períodos tradicionais de
7

grande desenvolvimento artístico, como os de D. Manuel (o “manuelino”) ou D. João V


(o “barroco internacional”) 28: situava-o entre as especiarias e os diamantes, ou seja, no
período em que a riqueza não era abundante (menos especiarias e nenhuns diamantes…)
e quando imperava um pragmatismo austero, a que não eram estranhas, porém,
condicionantes práticas, formativas mas também ideológicas e religiosas. Procede,
assim a uma análise aprofundada da arquitetura “chã” 29 uma arquitetura sem efeitos
retóricos aparentes, que negligenciava a iconografia e o ornamento
“representativo”/”narrativo” (palavras minhas) baseando-se apenas em “formas”, quase
sempre planas e puras30. O termo viria a expandir-se e hoje pode-se falar – mal ou bem,
não interessa por ora – em “estilo chão” da arquitetura portuguesa, situável entre 1560
até cerca de 1680.
Logo no início Kubler adverte: “As várias histórias da arquitectura portuguesa,
como numerosas histórias da arte. são sempre redigidas sob a convicção de que
período, local e estilo são solidário (…) Segundo este venerando sistema, (…) cada
local num período só pode conhecer um «estilo».
“Oposta a esta moção, que vincula a cada território um só estilo, surge um
critério mais recente segundo o qual nenhum estilo ou categoria exclui a possível
convergência simultânea de muitas outras categorias anteriores. Em qualquer lugar e
em qualquer momento, o artista empenha-se em colher os seus materiais do passado,
combinando-os e ajustando-os conforme as suas necessidades e preferências próprias.
“Estas, por sua vez, são continuamente transformadas pelo facto de o artista se
expor às diferentes possibilidades do passado. Durante o período em causa o
arquitectos em Portugal não eram conduzidos a seleccionar e a decidir apenas entre e
exemplo italianos já que se apresentavam igualmente possibilidades da Europa
Setentrional, espanholas, locais e ultramarinas. A arquitectura daí resultante não
permite facilmente uma classificação por mera «influência» ou apenas através da
biografia do monumento. “31
Na realidade, o que Kubler nos apresenta é a existência do objeto arquitetónico
dentro dessa categoria que tão bem expôs no seu livrinho, em substituição da noção de
“estilo”: a da “classe dos objetos”.
Na posse dos elementos atrás explicados percebe-se que Kubler põe aqui em
prática a metodologia que expusera já em A Forma do Tempo. O êxito que acompanhou
esta revolução suscitada pela obra de Kubler iria amplificar-se; e tal aconteceu, mesmo,
até no quadro da arquitetura portuguesa contemporânea 32. Quanto ao estudo da
arquitetura dos séculos XVI a XVII em Portugal o impacte foi duradouro e são
inúmeros os estudos que refletem, mesmo que criticamente, o impulso conferido pela
obra de Kubler 33.
E os relógios, perguntará o leitor?
Pois bem, o tempo mensurável, que começou por ser apenas e tão só os dos
anos, meses e segmentos diários, viria a transformar-se numa medição que se baseia
numa convenção, em horas, minutos e segundos (hoje microssegundos, com o tempo
“atómico” e subatómico, que já atraía a inesgotável curiosidade de Kubler).
8

Naturalmente que não se pode transpor a metodologia de Kubler para a medição


mecânica do tempo. Mas vale apena refletir sobre a ciclicidade, gradualmente mais
estreita da mensurabilidade temporal, que anda, como se sabe, de mãos dadas (e olhos
postos) nos mostradores de relógio e na observação dos corpos astronómicos. A
expansão do Tempo e a contracção ao infinitésimo desse mesmo Tempo constituem
factos que entroncam na metodologia kubleriana; e sem esforço: desde logo através da
técnica, pela pesquisa e invenção dos primeiros relógios solares ou mecânicos - em si
mesmo “prime-objects” - , alguns dos quais perdidos na voragem das transformações
humanas, e que diferem de lugar para lugar, - e que se relativizam, assim se esteja entre
uma comunidade tribal amazónica ou africana, no mundo greco-romano ou na cidade de
Zurique!
Assim se surpreende a ligação, tão prezada por Kubler, entre Ciência e Arte. Os
próprios edifícios portadores de relógios (solares, de ampulheta, hidráulicos ou
mecânicos) e o protagonismo das ”torres do relógio” são inferências notáveis deste
caminhar do “tempo longo” para o “tempo curto”. E do grande relógio monástico (o
chamado “tempo da igreja” segundo Jacques Le Goff) e comunitário (o “tempo da
cidade” ainda segundo Le Goff) faz-se um encaminhamento curioso e paralelo entre a
microscopia, a macroscopia e a telescopia, entre o infinitamente pequeno e o
infinitamente grande, que agora passam a ser visíveis – através do microscópio e do
telescópio: das lentes, das fibras, das emissões radio-astronómicas. E chegamos ao
relógio noturno, depois ao relógio de bolso, e ainda ao relógio digital.
Em suma, se por um lado aconselho a ler livrinho de Kubler a par desse outro
“monumento” histórico que é a obra de Lewis Mumford, Técnica e Civilização (1ª ed.
1934), não posso deixar passar em claro um outro livro, muito mais recente, e que
agitou as águas (a bem dizer, um bocado paradas…) da teoria da história de arte. Trata-
se da produtiva reflexão de Hans Belting, A História da Arte Acabou? Nesse livro, que
atualizou para os anos 80 do século passado o complexo desenvolvimento da disciplina,
Belting diz-nos que a história da arte deve ser entendida como um “processo 34”, mutável
e instável35: assistimos, por fim, a uma adoção do método kubleriano: como uma
antropologia da arte.
Não por acaso, a última palavra desse ensaio é um nome: “Kubler” 36.

BILIOGRAFIA
9

(OBEDECE AO CRITÉRIO DO CATÁLOGO ITALIANO)

1631

Couto 1631
Mateus do Couto (tio), Tractado de Architectura, Que Leo o Mestre, e Archit.o Mattheus do Couto o
velho, No Anno de 1631. Biblioteca Nacional de Portugal (Reservados: COD 946//1 [Microfilmado: F.
7752])

1879

Castilho 1879
Júlio de Castilho, Lisboa Antiga. O Bairro Alto 1ª Edição Lisboa, Livraria de A. M. Pereira, Editor, 1879

1934

Focillon 1934
FOCILLON, Henry, [1934], Vie des Formes suivi de Eloge de la main, Presses Universitaires de France

1942

Kubler 1942
George Kubler, "Population movements in Mexico, 1520-1600." Hispanic American Historical Review,
vol. 22(1942): 606-43

1943

Kubler 1943
George Kubler, "The Cycle of life and death in metropolitan Aztec Culture." Gazette des Beaux Arts,
23(1943): 257-68.

1951

Kubler 1951
George Kubler, The Tovar Calendar (c/ Charles Gibson). Mem. Connecticut Acad. Arts and Sci., vol. 11.
New Haven 1951.
Schapiro, 1953
M. Schapiro, 1953, Anthropology Today, Kroeber, Chicago (cit, por J. Bialostocki, recensão de “La forma
del tempo”, in Art Bulletin 46: 137)

1948

Kubler 1948
George Kubler, Mexican architecture of the sixteenth century. 2 vols. New Haven: Yale University Press
1948.
Kubler 1959
George Kubler e Martin Soria. Art and Architecture in Spain and Portugal and Their American
Dominions, 1500 to 1800. (The Pelican History of Art.) Baltimore, Maryland: Penguin Books, 1959

1961

Kubler 1961
George Kubler,, "Chichen-Itza y Tula." In Estudios de Cultura Maya, 1:(1961) 47-80.

1962

Kubler 1962a
10

George Kubler [1962], The Shape of Time. Remarks on the History of Things, New Haven, Yale
University Press, (trad. it. 2002, La forma del tempo. La storia dell’arte e la storia delle cose [1ª ediz.
1976], Torino, Einaudi).
Kubler 1962b
George Kubler The art and architecture of ancient America: the Mexican, Maya, and Andean Peoples.
New York: Penguin 1962.

1963

Colt 1963
Priscilla Colt, “George Kubler, The Shape of Time“ (recensão) in Art Journal 23, no. 1 (1963), pp.78-79
Willey 1963
Gordon Willey, “Art and Architecture of Ancient America “ (recensão) in American Anthropologist, 65
(1963): 699-704.

1965

Bialostocki 1965
Jan Bialostocki, “George Kubler, The Shape of Time“ (recensão) in Art Bulletin 46, no. 1, (1965), pp.
135-39.

1966

Reinhardt 1966
Ad Reinhardt, "Art vs. History," in Art News, 64, no. 19 (1966), p. 19

1967

Kubler, 1967a
George Kubler, “The lconography of the Art of Teotihuacan” in Studies in Pre-Columhian Art and
Archaeology, no. 4 (Washington, 1967).
Kubler 1967b
George Kubler,, "The iconography of the art of Teotihuacan: the pre-Columbian collection, Dumbarton
Oaks. Studies in Pre-Columbiain Art and Archeologyl, no. 4. Washington, D.C. 1967.
Kubler 1967c
George Kubler,, "Style and the Representation of Historical Time" in Annals of the New York Academy
of Science, 138, part 2, no. 2 (1967): 849-55.

1969

Kubler 1969
George Kubler, “Studies in Classic Maya lconography” in Memoirs of the Connecticut Academy of Arts
and Sciences, vol. 18 (New Haven, 1969);
Kristeller 1969
Paul Kristeller,, “Introduction” in Siegfried Kracauer, History, the Last Things before the Last, New
York,1969.

1972

Kubler 1972
Georges Kubler, Portuguese Plain Architecture , Middletown Wesleyan University Press , s/d .

1973

Chastel 1973
André Chastel, “André Nakov , "Pour un nouvelle méthodologie." ln Formes du temps,” (recensão), Le
Monde, 4 May 1973.
Nakov 1973
André Nakov , "Pour un nouvelle méthodologie." ln Formes du temps, ed.
11

Champlibre (Paris, 1973), pp. 9-19.


Previtali, 1973
Giovanni Previtali, “Introdução” in La Forma del Tempo (Turin, 1973).

1979

Kubler 1979
George Kubler,, "Toward a Reductive Theory of Style," in The Concept of Style, ed. Berel Lang,
Philadelphia, 1979.
Tafuri 1979
Manfredo Tafuri, Teorias e História da Arquitectura, Lisboa, Martim Fontes/ Presença, 1979

1980

Brodsky 1980
Joyce Brodsky, "Continuity and Discontinuity in Style: A Problem in Art Historcal Methodology," in
Journal of Aeathetica and Art Criticism 39, no. 1 (1980): 27-36.
Tafuri 1980
TAFURI, Manfredo, La sfera e il labirinto: Avanguardie e architettura da Piranesi agli anni '70
(Tafuri,), Einaudi editore, Turim

1981

Moreira 1981
Rafael Moreira, " A arquitectura militar do Renascimento em Portugal ", Actas do Simpósio sobre a
introdução da arte da Renascença na Peninsula Ibérica, Coimbra , Epartur , 1981, pp.281-305.

1982

Kubler 1982
George Kubler,, “The Shape of Time. Reconsidered” in Perspecta 19: 112-121.
Kubler 1982
George Kubler, “The Shape of Time Reconsidered” in Perspecta: The Yale Architectural Journal,
Volume 19, 1982
Moreira, 1982
Rafael Moreira, Um tratado português de arquitectura do século XVI (1576-1579), Lisboa, FCSH-UNL,
Tese de Mestrado em História de Arte, 1982

1983

Belting 1983
Hans Belting, Das Ende der Kunstgeschichte?, München, Dt. Kunstverlag, 1983; trad. Francesa,
L’Histoire de l’Arte es elle finie?, 1987; (trad. Portug.: O Fim da História da Arte, São Paulo, Cosac
Naify, 2012)
Moreira 1983
Rafael Moreira, " Arquitectura " , Catálogo da XVII Exposição de Arte Ciência e Cultura do Conselho
da Europa , Arte Antiga - I , Lisboa , 1983 , pp.307-352.

1985

Moreira 1985
Rafael Moreira, “A Escola de Arquitectura do Paço da Ribeira e a Academia de Matemáticas de Madrid”
in Relações Artísticas entre Portugal e Espanha na época dos descobrimentos, Coimbra, UC/Minerva,
1985, pp. 65-77.

1988

Kubler [1988] 2005


12

George Kubler, (1988, 1ª ed. portuguesa), A Arquitectura Portuguesa Chã Entre as Especiarias e os
Diamantes (1521-1706), Vega, 2005

1989

Preziosi 1989
Donald Preziosi, Rethinking Art History, Yale, Yale University Press; 1989

1991

Kubler 1991
George Kubler, Esthetic Recognition of Ancient Amerindian Art, Yale University Press, New Haven,
1991
Horta Correia 1991
J. E. Horta Correia, Arquitectura Portuguesa. Renascimento, Manierismo e Estilo Chão, Lisboa, 1991,
Presença
Moreira 1991
Rafael Moreira, A Arquitectura do Renascimento no Sul de Portugal , Lisboa, 1991.

1994

Moreira 1994
Rafael Moreira, A Arquitectura Militar na Expansão Portuguesa, Porto, CNCDP, 1994.

1995

Panofsky 1995
Erwin Panofsky, “The ldeological Antecedents of the Rolls-Royce Radiator” in Erwin Panofsky Three
Essays on Style, Edited by Irving Lavin With a Memoir by William S. Heckscher, Cambridge,
Massachusetts, The MIT Press, London,
Pereira 1995
Paulo Pereira, "A 'Traça' como único princípio. Reflexão acerca da permanência do gótico na cultura
arquitectónica dos séculos XVI e XVII" , Estudos de Arte e História - Homenagem ao Prof. Artur Nobre
de Gusmão, Lisboa, Vega, 1995, pp. 190-199.

1999

Gomes 1999
Paulo Varela Gomes, Arquitectura e Religião em Portugal no século XVII. A planta centralizada, Porto,
FAUP, 1999
Payne, 1999
Alina A. Payne , “Architectural History and the History of Art: A Suspended Dialogue”, Journal of the
Society of Architectural Historians, vol. 58, No. 3, Architectural History 1999/2000 : University of California
Press (Sep., 1999), pp. 292-299

2006

Ruão 2006
Carlos Ruão, O Eupalinos Moderno: teoria e prática da arquitectura religiosa em Portugal: 1550-1640.,
tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 3 vols.. 2006

2007

Gomes,2007a
13

Paulo Varela Gomes, “Arquitectura não-alinhada” (2001) in 14,5 Ensaios de História e Arquitectura,
Coimbra, Almedina, 2007 pp. 279-283
Gomes 2007b
Paulo Varela Gomes, “Aspectos do classicismo na arquitectura portuguesa dos séculos XVI e XVII ou a
Tradição clássica na arquitectura luso-brasileira” in 14,5 Ensaios de história e arquitectura, Coimbra,
Almedina, 2007, pp. 124-125.

2009

Anker 2009
S. Anker, 2009, “Prime Objects and Body Doubles”, in Art Journal 68, no. 4: 99-104.
Lobo 2009
Rui Lobo, O colégio-universidade do Espírito Santo de Évora. Évora: Chaia-Universidade de Évora,
2009.
Preziosi 2009
Donald Preziosi, The Art of Art History, Oxford, 2009
Soromenho 2009
Miguel Soromenho,, A Arquitectura do Ciclo Filipino, , vol. 10 da col. Arte Portuguesa. Da Pré-história
ao século XX (Dir. Dalila Rodrigues), Porto, FUBU Editores, 2009, pp. 7-10.

2012

Payne 2012
Alina Payne, “Wölfflin, Architecture and the Problem of Stilwandlung “ in Journal of Art Historiography
Number 7 December 2012

2011

Sachetti, 2011
V. Sacchetti,, Q+A: Eduardo Souto de Moura. (consultado10.05.2011, 2011, http://
archpaper.com/news/articles.asp?id=5313.

2013

Rodrigues 2013
RODRIGUES, José Miguel, O Mundo Ordenado e Acessível das Forma da Arquitectura,– Tradição
Clássicas e Movimento Moderno «na Arquitectura Portuguesa- exemplos, Porto, Afrontamento/Fundação
Marques da Silva, 2013

2014

Sousa Santos 2014


SOUSA SANTOS, Eliana, "Portuguese Plain Architecture: A journey since the 1950s to the
present" in Gonçalo Canto Moniz (org.), 74-14 O SAAL e a Arquitectura. 74-14 SAAL and the
Architecture. Coimbra, 2014; SOUSA SANTOS, Eliana, "Portuguese Plain Architecture: A journey since
the 1950s to the present" in Gonçalo Canto Moniz (org.), 74-14 O SAAL e a Arquitectura. 74-14 SAAL
and the Architecture. Coimbra, 2014

2020

Canzian 2020
CANZIAN, Alessandro, “Versi e cose sparse, La forma del tempo – George Kubler”, 12 agosto 201324
giugno 2020(https:// alessandrocanzian. files. wordpress. com /2013/08/kubler_1024_x_768.jpg)
s.d.

S.D.
14

Bianchi s.d.
Enea Bianchi, “ George Kubler o l’arte perenne”, in Ágalma, 29, (www.agalmarivista.org/articoli-
uscite/enea-bianchi-george-kubler-o-larte-perenne/)
Funari s.d.
Pedro Paulo Abreu Funari, A Anforologia — uma nova disciplina arqueológica, Departamento de
História, UNESP (Assis), s.d.
(s.a., La forma…, s.d.)
S.A. La forma del tempo Studia l'attività artistica in relazione all'opera. Semiologia Dell'arte - Appunti
di Semiologia gratis in Studenti.it (https://doc.studenti.it/vedi_tutto/index.php?h=bdaeaf12&pag=1)
1
- George Kubler nasceu na Califórnia em Hollywood (1912). Foi Sterling Professor Emeritus of History of Art, vindo a falecer em Hamden (Connecticut)
com 84 anos. A sua formação decorreu na Europa, num primeiro momento, continuando depois nos EUA. Ingressou na Universidade Yale, chegando a
monitor (instructor), obtendo aí o bacharelato e, logo depois o grau de Doutor em 1938 em tese orientada por Henry Focillon. A lista das suas obras e
artigo mais importantes encontra-se na bibliografia deste artigo. Foi premiado diversas vezes pelas suas obras e pelo desempenho exemplar da sua carreira.
2
- (Kubler, 1962)
3
- (Kubler, 1972),
4
- La Vie des Formes (Focillon (1934), reed. port. 2022)
5
. “Ao conceito de momento convém, pois, acrescentar o de evento, que o tempera e o completa. O que é o evento? Acabámos de o dizer: uma
precipitação eficaz. Tal precipitação pode ser, em si mesma, relativa ou absoluta, contacto e oposição entre dois diferentes desenvolvimentos, ou mutação
interior de um deles. Uma forma pode adquirir uma qualidade inovadora e revolucionária sem ser por si mesmo acontecimento, e pelo simples facto de
ser transposta de um meio rápido para um meio lento, ou inversamente”. Mas pode também ser evento formal sem ao mesmo tempo ser evento histórico.
Entrevemos, assim, um tipo de estrutura móvel do tempo, em que intervêm diversas ordens de relações, segundo a diversidade dos movimentos. No seu
princípio, é análoga à estruturação do espaço, da matéria e do espírito, de que o estudo das formas nos ofereceu numerosos
exemplos e, até, algumas regras gerais”. (Focillon 2022, p. 90)
6
- “Se a obra de arte cria meios formais que intervêm na definição dos meios humanos, se as famílias espirituais possuem uma realidade histórica e
psicológica não menos manifesta que a dos grupos linguísticos e étnicos, ela é igualmente evento, ou seja, estrutura e definição do tempo. Estas famílias,
estes meios, estes eventos precipitados pela vida das formas agem, por seu turno, sobre a vida das formas e sobre a vida histórica. Colaboram com os
momentos da civilização, com os meios naturais e sociais, com as raças humanas. É esta multiplicidade de fatores que se opõe à rigidez do determinismo
e que, fragmentando-o em inumeráveis ações e reações, provoca em todos os sentidos ruturas e discordâncias. Nestes mundos imaginários, em que o
artista é o geómetra, o mecânico, o físico e o químico, o psicólogo e o historiador, a forma, através do jogo das metamorfoses, vai continuamente do seu
constrangimento à sua liberdade” (Focillon, 2022, p. 90-91)
7
- Focillon 2022, p. 15
8
- Constitui, vinte anos volvidos após a publicação de A Forma do Tempo, uma resposta de Kubler elegantíssima às recensões ou introduções (também
elas elegantes) ao livro, produzidas por Colt, 1963; Bialostocki, 1965; Ad Reinhardt , 1966; Nakov, 1973; Previtali, 1973; Chastel, 1973; Brodsky, 1980.
Outros textos mais recentes reavaliam a contribuição de Kubler em termos teóricos, a saber, (Belting, 1983)
Bianchi, s.d, (Anker, 2009), (Gomes, 2007a)
(Canzian, 2020)
9
- Kubler 1982
10
- Colt 1963
11
- Kubler 1982, p. 113. (tradução minha).
12
- Kubler 1962, p. 14
13
- Kubler 1962, p. 34
14
- Kubler 1962, p. 35.
15
- Kubler 1962, p. 37)
16
- Cit. Por Kubler 1982, p. 115-116
17
- A iconologia associou-se sempre aos termos induzidos pela vocação de significados em mudança ou migração e transformação, da arte do humanismo,
reportando-se às heranças clássicas e à sua pervivência até ao século XVIII ou mesmo, até aos nossos dias. O campo da iconologia alargou-se,
naturalmente, ao da arte medieval.
18
Panofsky 1995
19
- Traduzido de Die ideologischen Vorliiufer des Rolls-Royce-Kühlers (Frankfurt/New York: Campus Verlag, 1993). No caso, Panofsky percorre uma
panóplia inaudita de manifestações artísticas, da escultura à iluminura passando, naturalmente, pela arquitetura e pelos jardins, E escolhe alguns próceres
neste percurso, de modo a explicar a génese ideológica – a palavra é talvez a mais importante de todo o excurso – do radiador da famosa prestigiadíssima
marca de automóveis britânica.
20
- KUBLER; George. “A Sixteenth-Century Meaning of the Escorial” in Diogenes 29 (113-114):229-248 (1981). (Kubler 1982b)
21
- Kubler 1962 p. 58
22
- Funari s.d..; v. também http://www.lxconserveira.pt/about2.html
23
- Conhecidas na gíria arqueológica por DRESSEL, LAMBOGLIA e PASCUAL. Outras seriações tipológicas: Pellicer, Beltrán Lloris, Almagro, etc.
24
- Tratando-se de tabelas de tipologias várias de época e cultura/civilizações diferentes, apesentam, porém, uma faceta temporal e espacial que aqui me
interessa salientar, ou não houvesse aqui um eco manifesto da formação antropológica e arqueológica de Kubler.
25
- “O funcionamento das séries - Qualquer sucessão pode ser definida pelas seguintes proposições: (1) no decurso de uma série finita irreversível, o uso
de qualquer posição reduz 0 número das posições restantes; (2) cada posição numa série confere apenas um número limitado de possibilidades de acção;
(3) a escolha de uma acção determina a posição correspondente; (4) a ocupação de uma posição tanto define como reduz o leque de possibilidades na
posição subsequente./ Dito de outro modo: cada nova forma limita as inovações subsequentes na mesma série. Cada forma nova é, ela própria, uma entre
um número finito de possibilidades oferecidas em qualquer situação temporal. Daí que qualquer inovação reduza a duração da sua classe. As fronteiras
de uma classe são fixadas pela presença de um problema que exige soluções encadeadas: as classes podem ser pequenas ou grandes: aqui, interessam-
nos apenas as suas relações internas e não as suas dimensões ou magnitudes.” (Kubler 1962, p. 77)
26
- “No entanto, (…) ilustram o fenómeno da entrada coincidente com um clímax. Tais entradas ocorrem em momentos em que as combinaçoõs e as
permutações de um jogo se tornam perfeitamente classes aos olhos do artista; num momento em que esse jogo já foi jogado o suficiente para lhe permitir
entender todo o seu potencial; num momento em que ele ainda não se sente constrangido _pelo esgotamento das possibilidades do jogo e em que: por isso
mesmo, não adopta nenhuma das posições terminais e extremas desse jogo.” ((Kubler, 1962, p. 62)
27
- Kubler, 1988
28
- “Esquece-se frequentemente de considerar o período compreendido entre a decoração opulenta dos reinados agitados com riqueza da Índia e do Brasil
e que necessita ser estudado pelos seus notáveis méritos próprios. Kubler 1988, p. 5
29
- A palavra que Kubler adaptou com uma acuidade assinalável partiu de uma expressão do olisipógrafo Júlio de Castilho (1840-1919), traduzindo-a
como “plain”= simples/chã”). A pssagem é a seguinte: “Essa feição, revelada talvez no viver pautado, no cumprimento exacto do dever, na caridade
sincera e não ostentosa, na observância dos preceitos religiosos e civis, casava com o estilo chão da arquitectura, que não era certamente aquele
opulento gótico do século xv, que no género de habitações particulares tantas maravilhas produziu lá fora” (sublinhado meu): Castilho 1879, vol. I, p.
144.
30
- O perfil desta arquitetura apresentava-se à luz da inovação e adaptação, do pragmatismo e da importância que os engenheiros militares desempenharam
neste período, dando conta do pioneirismo da cena portuguesa entre, aproximadamente, 1550 e 1680. A tese foi uma novidade total e acima de tudo,
interessou aos arquitetos num primeiro momento, às voltas com a primeira crise das linguagens do “estilo internacional” e antes do advento de uma espécie
de neorracionalismo português, que já acompanhava a obra de arquitetos como Fernando Távora.
31
- Kubler 1988, p.4-5
32
- Esta abordagem mereceu inúmeros contributos. Por exemplo, Eliane Sousa Santos lembra-nos que “ Duarte Cabral de Mello (1941-2013) comparou o
carácter discreto da arquitectura de Vítor Figueiredo (1924-2004) com o carácter essencial da Arquitectura Chã” [Mello, 1979] (…). Como aponta
Eliana Santos “Este tipo de comparações – já que Kubler comparou o estilo “chão” português ao modernismo, e Cabral de Mello comparou-o com os
projetos de Vítor Figueiredo - apresenta um argumento circular onde o modernismo se posiciona no centro, por aparecer relacionado com uma forma
'portuguesa' de edificação e uma qualidade fundamental da arquitetura nacional. Esta tese foi recuperada na década de 1990 em Portugal, não muito
depois da publicação tardia da tradução para o português do livro de Kubler, quando o aquele trabalho ganhou importância entre os académicos de
história da arte portuguesa no programa de pós-graduação da Universidade Nova de Lisboa” (Sousa Santos, 2014)
33
- Horta Correia, 1991; Moreira 1981; Moreira, 1982; Moreira, 1983; Moreira, 1985; Moreira, 1994; Pereira, 1995; Ruão 2006; Gomes, 2007b; Lobo
2009; Soromenho, 2009; Sousa Santos, 2014
34
- Belting 1983, p. 117
35
- “Há manifestamente sequencias da história da arte que são ‘condicionadas pela unidade do problema’. Atingem por fim um estádio em que o
problema se altera, ou as soluções entretanto obtidas, podem engendrar novos problemas (…), se escolhermos, mesmo assim estudar as estruturas
temporais na história das artes visuais e introduzirmos o conceito de processo, teremos que abandonar a ideia de que existe apenas um só processo
possuindo uma direção única (tradução minha)” (Belting 1983, p. 116-117.
36
- “Com efeito, há vários processos muito diferentes entre si que mudam constantemente de direção e toma o lugar uns dos outros. Portanto, na sua
própria sequenciação interna, como na sua sucessão, possuem um certo grau de lógica. Este grau nunca é fixado á partida como um programa, uma vez
que inúmeros fatores exteriores acabam por determinar a duração, a longitude, o ritmo e a direção do processo. Chegamos, assim, ao dealbar de uma
conceção antropológica da produção artística como paradigma da atividade humana. A mais recente exploração desta conceção através de uma teoria
geral da historicidade da arte e dos seus produtos coube a George Kubler”. (Belting 1983, p. 117)

Você também pode gostar