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Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto

Estética II — 2009 — Sumários desenvolvidos


Docente: Helder Gomes

Arthur C. Danto: O devir-conceito da obra de arte

1) Entre a Arte, a Filosofia da Arte e a Crítica:


Arthur C. Danto —pensador norte-americano, nascido em 1924— surge-nos como um
autor invulgarmente sugestivo, pois reúne num mesmo sujeito diferentes facetas: a par com o
início da sua actividade como filósofo, os anos 50 assistiram ao desenvolvimento de uma
carreira artística no interior do Expressionismo Abstracto de cariz gestualista, carreira de que
viria a abdicar em favor da investigação filosófica; por outro lado, já nos anos 80, e após um
vasto conjunto de publicações de carácter filosófico, Danto inicia uma actividade regular de
crítico de arte, congregando aí, de um modo prático, os seus dois interesses assumidos. O
abandono da carreira artística, motivado pela dificuldade de a conciliar interiormente com a
investigação filosófica, traduz a existência de tensões internas que só se terão resolvido com a
reflexão ao nível da filosofia da arte. Esta particular convergência de interesses entre produção
artística, reflexão filosófica e crítica de arte projectar-se-á de modo particularmente enriquecedor
na sua filosofia da arte, uma vez que nesta convergem uma experiência interior da criação
artística, uma compreensão conceptual da natureza da arte e uma consciência das aporias
próprias da actividade da crítica.
Naquilo que constitui uma espécie de reflexo invertido do seu percurso biográfico, durante
longos anos a reflexão filosófica relativa à arte não parece merecer particular atenção por parte
de Danto. Só a partir de The Transfiguration of the Commonplace: A Philosophy of Art, obra
publicada em 1981, mas que integra a reformulação de alguns textos publicados nas duas
décadas anteriores é que as suas preocupações filosóficas se orientam definitivamente para a
teoria da arte. Mas esta aparentemente tardia conversão a uma problemática de índole estética,
não deve esconder a marca persistente deixada no autor pela sua formação inicial enquanto
artista plástico:

1
Eu comecei como pintor e, quando em vez disso me tornei filósofo, trouxe comigo,
como escritor, o critério da arte, como se eu tivesse transitado de um meio artístico para
outro —desejando-o, no mínimo 1 .
A formação artística de Danto —uma actividade que ele abandonará em favor da
investigação filosófica, mas que condicionará todas as suas posteriores preocupações ao nível
da teoria da arte— faz-se em pleno fulgor do Expressionismo Abstracto da Escola de Nova
Iorque. Do ponto de vista teórico, este é um período dominado pela figura tutelar de Clement
Greenberg e do seu modelo formalista, baseado numa transformação progressiva e linear da
história da arte. Vivendo entre dois mundos, o da arte e o da filosofia, Danto sente dificuldade em
conciliar as exigências específicas de cada um deles, tanto mais que funcionam em esferas
separadas, não se reflectindo, por exemplo, no seu trabalho artístico as suas preocupações
filosóficas. O agudizar das tensões internas entre a sua actividade como filósofo e como artista
ditará o abandono da carreira artística e uma opção clara pela investigação filosófica 2 . Isto será
seguido de perto por uma ruptura com o formalismo modernista de Greenberg e por uma tomada
de consciência da historicidade inerente às formas artísticas. Onde o modernismo, na versão
radicalizada de Clement Greenberg, afirma o desenvolvimento linear da história da arte, em
direcção a uma atemporal identidade da arte consigo mesma, Danto entrevê uma arte
profundamente implicada com a sua historicidade. Isto é, Danto parte da sua inicial formação
como artista plástico para, articulando-a com a sua formação filosófica, interrogar a arte. Por
outro lado, a descoberta da Pop Art nos primeiros anos da década de 60 veio abalar ainda mais
a sua confiança no modelo linear de história da arte inerente à estética modernista. Trabalhos
como os de Roy Lichtenstein vinham desmentir a necessidade e o determinismo históricos que
estavam associados ao modelo de desenvolvimento histórico do paradigma artístico do
Expressionismo Abstracto. Se, contra a predeterminação histórica implícita à identificação do
Expressionismo Abstracto como o culminar do desenvolvimento da arte moderna —e já não
apenas da arte moderna, da arte na sua mais vasta acepção—, era possível produzir arte que
aberta e voluntariamente recusava tais princípios, então era toda a narrativa modernista que
resultava questionada 3 .
No contexto da surpresa constituída pela descoberta da Pop Art, o momento da revelação
ocorrerá, para Danto, em Abril de 1964 com a visita à exposição das Brillo Box de Andy Warhol,

1 Arthur C. Danto, The Body / Body Problem, p. 17-18.


2 Veja-se Arthur C. Danto, Philosophizing Art: Selected Essays, p. 176-177.
3 Veja-se Arthur C. Danto, After the End of Art: Contemporary Art and the Pale of History, p. 123.

2
na Stable Gallery, em Nova Iorque 4 . Como adiante teremos oportunidade de desenvolver, as
Brillo Box de Warhol serão desde então a maior referência artística de Danto e o principal índice
empírico da sua filosofia da arte. À sua formação esteticamente marcada pela Escola de Nova
Iorque, e teórica e filosoficamente com o esteticismo de George Santayana, Clement Greenberg
ou Hilton Kramer, sucede-se a necessidade de conferir um fundamento estético e filosófico à arte
que emerge no pós Expressionismo Abstracto. Esta necessidade de conferir legitimação
filosófica à Pop Art é também a tentativa de legitimar a redescoberta do valor estético do
quotidiano urbano, que ele mesmo havia até então repudiado como esteticamente impuro 5 . Do
ponto de vista do purismo estético da estética modernista, tal como a definida por Greenberg, as
obras da Pop Art incorriam na mais acrítica ofensa aos critérios de gosto. A impossibilidade de
pensar essas obras no interior dos quadros conceptuais fornecidos pelas teorias da arte
tradicionais, e em particular pelas que definiram a estética modernista, conduz Danto à tentativa
de conceber um quadro teórico capaz de as explicar e lhes conferir fundamento teórico. O artigo
“The Art World” 6 , do mesmo ano, é a primeira e decisiva formulação da sua teoria da arte, e
contém em esboço os traços principais daquilo que irá desenvolver nas décadas seguintes,
remetendo desde logo a questão de uma compreensão filosófica da arte para o âmbito da
ontologia da obra de arte. Mas esta é uma ontologia que incorpora de um modo fundamental a
dimensão do contexto histórico e cultural como parte integrante da realidade das obras de arte.

Quando em 1984 assumiu o lugar de crítico de arte da revista The Nation —lugar que
antes pertencera a Clement Greenberg—, Danto adquiriu um grau de exposição pública anormal
para um filósofo da arte: quase se poderia dizer que toda a sua produção teórica se encontra
desde então posta à prova pela sua capacidade ou incapacidade de fornecer os instrumentos
conceptuais necessários ao trabalho da crítica.
A filosofia e a crítica da arte que devem redefinir-se, elas mesmas devem ser objecto de
um questionamento. A necessidade sentida por Danto de reequacionar o papel e o valor da
crítica corresponde, antes do mais, a uma tentativa de resposta às transformações sofridas ao
longo do século XX pela própria arte. Ao processo de questionamento que percorreu a criação
artística deve corresponder por parte da crítica a capacidade de também ela se reinventar:

4Para um relato na primeira pessoa do espanto produzido no autor por esta exposição, veja-se, entre outros,
Arthur C. Danto,
After the End of Art: Contemporary Art and the Pale of History, p. 123-124.
5 Veja-se Arthur C. Danto, Beyond the Brillo Box: The Visual Arts in Post-Historical Perspective, p. 139-140.
6 «The Art World », in Journal of Philosophy, 61, n.º 19, 1964, p. 571-584. Este artigo de Danto será objecto de

várias reedições, nomeadamente a da sua decisiva inclusão por George, Dickie e Richard J. Scalfani em Aesthetics:
A Critical Anthology. Parte importante da teses do artigo será retomada pelo autor na obra The Transfiguration of the
Commonplace: A Philosophy of Art, de 1981.

3
Se todas as regras e modelos se desfazem, o que é que acontece ao desenho, à
composição, aos materiais artísticos e a tudo isso? Isto implica, naturalmente, uma crise para a
própria crítica de arte: como é que se pode ajuizar, quais são as respostas apropriadas, onde é
que se encontram os modelos, como é que se avalia? 7
Uma vez que todo o quadro de referência de âmbito conceptual, técnico e narrativo que
fornecera o contexto de legitimação e inteligibilidade para a produção e recepção da arte,
segundo os modelos clássicos, se encontra abalado pelo questionamento prático protagonizado
pelos trabalhos de Duchamp e —modelarmente, para Danto— de Warhol, é a própria crítica de
arte que se que vê destituída de critérios de avaliação.
Segundo Danto, a crítica de arte não deverá tomar partido estético, —pois isso seria
remeter a questão para o âmbito do juízo de gosto e alimentar a suspeita de pretender
universalizar uma impressão estritamente individual—, mas agir no âmbito de uma compreensão
alargada das obras. A prática de Danto enquanto crítico orienta-se, nas suas palavras 8 , por uma
tentativa de pensar a arte num contexto mais vasto do que o proporcionado apenas pelo mundo
da arte, isto é, não se restringindo àquilo que numa obra de arte diz respeito a predicados
estritamente artísticos. Tal como a entende e pratica, a crítica de arte não se esgota, nem é
preferencialmente da ordem da interpretação e avaliação das obras enquanto realidades
culturais de natureza artística, mas da ordem da análise dos conteúdos semânticos, na tentativa
de articular as questões mais imediatamente artísticas com o mundo da vida quotidiana.
Segundo Danto, a obra de arte adquire a sua especificidade enquanto é a corporização ou
materialização de um conteúdo semântico, conteúdo este que não é dissociável do processo
artístico de corporização 9 . Será a capacidade individual de cada artista, época ou estilo, para
corporizar materialmente o sentido da obra que determinará quer a sua riqueza semântica, quer
o seu valor artístico. Enquanto cada obra será entendida como expressão simbólica que
corporiza um determinado sentido, a tarefa da crítica consistirá em identificar esses sentidos e
compreender o modo como eles são corporizados pela obra. A crítica é aqui entendida como um
discurso articulado de princípios e razões que tem por objecto a relação entre os conteúdos
semânticos e os seus continentes formais.
O trabalho de questionamento interior de que a arte foi objecto ao longo do último século
teria, para Danto, conduzido à desvinculação entre a obra de arte e a necessidade de
prossecução de uma finalidade de ordem meta-narrativa. A narrativa modernista teria dado lugar
a um regime de pluralismo estético onde não mais seria possível referir o valor ou o sentido das

7 Arthur C. Danto, Encounters and Reflexions: Art in the Historical Present, p. 7.


8 Veja-se Arthur C. Danto, Playing With the Edge: The Fotographic Achievement of Robert Mapplethorpe, p.2.
9 Veja-se Arthur C. Danto, Encounters and Reflexions: Art in the Historical Present, p. 41.

4
obras ao lugar por elas ocupado no interior de determinada estrutura narrativa. Segundo Danto,
na ausência de um modelo narrativo estruturado, activamente válido e reconhecido pelos
agentes, a história da arte ganha uma importância acrescida: caber-lhe-á a tarefa, partilhada
com a crítica de arte, de fornecer ao espectador a contextualização histórica e os instrumentos
que lhe permitam aceder à significação das obras 10 . Ora, como a identidade das obras já não é
função da sua imediata inserção num determinado contexto histórico, a crítica de arte —que,
diversamente da história da arte, não pode agir protegida pelo distanciamento histórico— corre o
risco de, no limite, ter como único referente a própria obra que é objecto de análise crítica. O
caso radical é fornecido pela tela monocromática; não sendo possível extrair dela indícios
formais de conteúdos semânticos capazes de sustentar uma interpretação, a única interpretação
válida será a de procurar aferir a adequação da obra ao estrito programa que determinou a sua
existência enquanto obra de arte:
Cada pintura monocromática tem de ser dirigida aos seus próprios termos, e entendida
como um sucesso ou um fracasso na medida da sua capacidade de adequação à corporização do
sentido pretendido. 11
A noção de crítica que aqui está implícita é a de um processo informado de recepção das
obras por referência preferencial ou exclusiva às narrativas particulares de cada obra. Estas
narrativas seriam susceptíveis de, homorreferencialmente, legitimarem e conferirem significação
a cada obra individualmente considerada. A remissão do sentido da obra para a sua história
particular —pois é esse o único índice capaz de diferenciar duas superfícies monocromáticas,
em que só uma possa ser entendida como obra de arte— transforma a crítica de arte num
processo historiográfico de contextualização de particulares. Uma contextualização que obedece
sobretudo às exigências que para si mesma a obra define ou supõe. A recepção crítica deverá
fazer-se por referência ao conteúdo de sentido intencionalmente investido na obra e a
capacidade do artista para o corporizar. O critério de sucesso será, então, o do grau de
adequação entre o programa do artista e a obra concreta; isto é, entre o programa
intencionalmente definido pelo autor e o conteúdo expresso. Ora, não apenas não é claro como
seria possível generalizar este modelo de crítica de arte —pois ele exige um perfeito acesso às
determinações intencionais que orientaram o artista—, como estamos perante a formulação de
parâmetros de recepção crítica em absoluto homorreferenciais: o sucesso ou insucesso das
obras só seria aferível pela adequação das mesmas aos seus próprios termos, isto é, aos

10 Veja-se Arthur C. Danto, The Transfiguration of the Commonplace: A Philosophy of Art, p. 173-174.
11 Arthur C. Danto, After the End of Art: Contemporary Art and the Pale of History, p.170.

5
critérios por si mesmas implicitamente definidos. A identidade da obra consigo mesma
transformar-se-ia no único critério de recepção crítica.

2) O “Fim da Arte”, o devir-conceito da obra de arte


Em numerosos escritos, Danto exprime a decisiva importância de que se revestiu para si a
visita à exposição das Brillo Boxes de Warhol, em 1964 12 : esta visita, que é contemporânea da
sua tomada de consciência quer do interesse filosófico da arte enquanto objecto de investigação,
quer da pertinência, para a própria arte, da investigação filosófica, revela-se determinante para a
formulação de uma via autónoma de investigação na filosofia da arte. É neste contexto que
Warhol se apresenta como significativo: as suas obras poriam a nu a relação de intrínseca
dependência entre a investigação filosófica e a prática artística, ao apresentarem-se, enquanto
obras limite e segundo a interpretação proposta por Danto, como um processo de
questionamento experimental da noção de arte.
Apesar de, diante de uma qualquer obra, rara e dificilmente Andy Warhol exprimir uma
reacção crítica que fosse para além da simples interjeição de admiração ou desaprovação,
Danto confere-lhe uma importância filosófica que ultrapassa a de qualquer outro artista do século
XX 13 . Não se trata, para Danto, de considerar esta importância filosófica como do âmbito da
capacidade de produzir um discurso crítico, de âmbito lógico-verbal, exterior à sua produção
plástica, tal como o fizeram, entre muitos outros, Kandinsky, Malevich ou Mondrian. Nestes
artistas, quaisquer que fossem as implicações ou repercussões plásticas da sua reflexão crítica,
esta permanecia exterior ao trabalho especificamente artístico. Ora, a importância filosófica
atribuída por Danto a Warhol não diz respeito à capacidade de formular verbalmente uma
reflexão exterior ou paralela à obra e capaz de elucidar o seu sentido ou fundamentar os seus
pressupostos estéticos: trata-se, antes, de pensar esse trabalho de reflexão como interior à
produção plástica e expresso na própria obra. É precisamente nos trabalhos de Warhol
visualmente de mais fácil apreensão, quando não de gosto duvidoso, e completamente despidos
da carga metafísica inerente ao Expressionismo Abstracto que as precedeu cronologicamente,
que Danto reconhece uma profundidade filosófica que abala os limites da definição filosófica de
arte. Aquilo que, segundo Danto, Warhol teria conseguido de um modo particularmente feliz seria
a corporização pela própria obra de arte da problemática de âmbito filosófico, enquanto conteúdo
de significação interior à obra. Esta corporização do conteúdo de significação como traço

12 Veja-se, por exemplo, Arthur C. Danto, Encounters and Reflexions: Art in the Historical Present, p. 6.
13 Veja-se Arthur C. Danto, Philosophizing Art: Selected Essays, p. 9.

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ontológico distintivo da obra de arte permite a Danto pensar a actividade de criação artística
como uma espécie de reflexão prática que define em si mesma um questionamento experimental
da sua identidade.
A grande questão filosófica que, para Danto, se coloca à reflexão ao nível da filosofia da
arte é a da distinção ontológica entre a arte e o real; Danto substitui a questão o que é a arte?, o
que é o belo?, ou mesmo quando há arte? —segundo a formulação de Nelson Goodman 14 —
como questões centrais da filosofia da arte, pela tentativa de definir um critério de distinção
ontológica entre as obras de arte e o real. Isto passa, segundo Danto, por demonstrar que as
obras de arte visual não podem ser definidas em termos exclusivamente visuais. É a revelação
do carácter não exclusiva nem intrinsecamente visual das artes visuais que Danto deve a Warhol
e em particular às Brillo Boxes; esta obra, que é composta por reproduções à escala de um para
um de simples caixas de sabão, mostra como duas realidades visualmente indistinguíveis —a
caixa original e a obra de arte— podem, no entanto, constituir duas realidades distintas. Se o
critério visual já não é suficiente para distinguir uma obra de arte de uma realidade comum, a
própria essência daquilo a que chamamos obra de arte visual deveria situar-se em outro âmbito
que não o estritamente visual 15 .
É à luz dos seus próprios interesses filosóficos que Danto percepciona o papel
desempenhado pela obra de Warhol: ao violar as exigências tidas por necessárias para a
existência de uma obra de arte, Warhol teria colocado a filosofia diante da necessidade de
determinar reflexivamente qual a essência da arte, uma essência já despida dos condicionantes
formais de estilo ou tradição, e reduzida à sua mais elementar essência filosófica. Tal como a
generalidade das obras produzidas no âmbito da Pop Art —de James Rosenquist a Roy
Lichtenstein, ou Claes Oldenburg— a arte de Warhol parece imergir da banalidade do quotidiano
para a ela voltar voluntária e reiteradamente, produzindo não uma visão exterior, o
distanciamento do comentário crítico, mas a sua exacta duplicação. A apresentação do banal
como resultado da representação do banal abre a questão da realidade específica da
representação e da identidade ontológica da própria arte:
Para mim, o mais interessante traço distintivo da obra Brillo Box foi o facto de se apropriar
da questão filosófica da relação entre arte e realidade, incorporando-as na própria obra e
interrogando-se porquê, se elas são arte, as caixas de Brillo no supermercado, em relação às
quais não diferem perceptivamente em nenhum aspecto importante, não o são. No mínimo, a obra

14 Veja-se Nelson Goodman, Modos de Fazer Mundos, p. 103-118.


15 Veja-se Arthur C. Danto, Philosophizing Art: Selected Essays, p. 50.

7
Brillo Box torna claro que já não podemos procurar distinguir a arte da realidade a partir de
critérios de ordem visual, pois esses critérios foram invalidados 16 .
Partindo implicitamente da dicotomia entre a representação e a realidade representada
como condição da verosimilhança da representação e da realidade do representado, Danto
afirma que, não sendo possível distinguir segundo critérios estritamente visuais se uma dada
realidade pertencia ou não ao universo das artes visuais, ou se mais não era do que uma
simples realidade indiferenciada, ficaria demonstrado que a distinção entre uma obra de arte e a
realidade não pode ser fundada em critérios de ordem estritamente visual. A realidade da obra
de arte visual não poderá, a partir daqui, ser pensada como assente em predicados visualmente
apreensíveis. As Brillo Boxes não vieram, segundo Danto, efectuar ou introduzir um corte na
relação das artes visuais com a sua própria essência visual: não se tratou de separar o que
estava unido, mas de revelar em termos experimentais uma disjunção essencial: a realidade das
artes visuais é de ordem essencialmente conceptual, e não visual.
Embora sem recusar que a interpretação da Pop Art enquanto reapropriação simbólica
das representações do quotidiano caracterize genericamente o movimento, ela não traduz,
segundo Danto, a principal questão artística que a Pop coloca e que é, de um modo central, a de
Warhol. Mais do que pretender questionar a distinção entre cultura popular e cultura erudita, a
questão de Warhol é a de pensar a relação entre a arte —popular ou erudita— e a realidade,
uma questão que, desde Platão, atravessa a filosofia ocidental. Mas ao fazê-lo vem, segundo
Danto, pôr a descoberto o erro em que teriam incorrido mais de dois milénios de metafísica. Este
erro não teria sido propriamente o de produzir respostas incorrectas; a incorrecção das respostas
seria a consequência inevitável da incorrecção básica na formulação da pergunta: esta não
poderá ser, como a tradição metafísica a formulou, o que é a arte?, ou o que é o belo?, mas
simplesmente qual a distinção entre arte e real?.
Importa sublinhar que, deste ponto de vista e qualquer que seja o mérito individual
atribuído a Warhol, para Danto, o trabalho artístico deste é antes do mais consequência da sua
capacidade para explorar uma possibilidade que lhe foi oferecida pela história, da sua
perspicácia para penetrar ou forçar uma porta que a própria história lhe teria entreaberto.
Encontramos aqui a dimensão de condicionamento histórico inerente a todas as análises de
Danto: a ruptura protagonizada por Warhol só teria sido possível porque o desenvolvimento
diegético da história da arte teria tornado possível actualizar esta possibilidade. O trajecto
narrativo da história da arte tornara possível que a réplica exacta de uma embalagem de
detergentes pudesse ser transformada e apreendida como arte. Segundo Danto, as Brillo Boxes

16 Arthur C. Danto, Philosophizing Art: Selected Essays, p. 65.

8
surgem, assim, não apenas como o fruto possível de um encadeamento histórico de ordem
narrativa, mas como o desenvolvimento necessário dessa mesma narrativa 17 . Mais tarde ou
mais cedo, tal gesto iria ocorrer; se não fosse com Warhol e as Brillo Boxes seria com outro
artista e outra obra, o gesto em si é apresentado como historicamente necessário, isto é, como
historicamente inevitável.
Partindo de uma análise empírica e perspectivada da arte do século XX, Danto afirma
existirem no modo de desenvolvimento da arte ao longo do século indícios factuais que
legitimam uma leitura da história da arte a partir do modelo hegeliano. Desde logo, e embora não
fosse o lugar da revelação definitiva da essência conceptual da arte, a obra de Duchamp
constituiria quase a confirmação empírica da teoria hegeliana da arte. Segundo Danto, as
questões filosóficas e conceptuais suscitadas pelo trabalho artístico de Duchamp não relevam de
um discurso exterior à obra, mas de uma interrogação de índole filosófica que é intrínseca à
obra:
A assombrosa visão filosófica da história proposta por Hegel obtém, ou quase obtém, uma
espantosa confirmação no trabalho de Duchamp, o qual levanta a questão da natureza filosófica
da arte a partir do seu interior, implicando isso que a arte é já filosofia de um modo actual, e que
se libertou agora da sua missão espiritual, através da revelação da sua essência filosófica. 18
A estrutura narrativa através da qual Danto perspectiva a arte ocidental é de nítido perfil
hegeliano: em consequência de um longo processo de mediação que atravessou a história da
arte desde o Renascimento, a interiorização da sua própria natureza conceptual por parte do
trabalho artístico de Duchamp, —e posteriormente de um modo definitivo por Warhol— é lida
como o sintoma maior de que, tendo cumprido a sua missão histórica, a arte deveria dar lugar à
filosofia. Esta passagem do questionamento conceptual da sua própria natureza do âmbito da
arte para o âmbito da filosofia realizaria o fim da arte, o fim do período histórico da arte,
enquanto movimento narrativo de cariz especulativo.
A este propósito, o século XX é, segundo o autor, particularmente rico em indícios da
profunda relação de implicação da realidade da arte e da filosofia, num percurso de
convergência, a partir do qual a arte teria encontrado as condições para um desenvolvimento
autónomo. Este momento coincidiria com o do fim narrativo da história da arte. Segundo um
modelo hegeliano, este fim marcaria o momento em que a arte interiorizou a sua própria
identidade conceptual:

17 Veja-se Arthur C. Danto, The Transfiguration of the Commonplace: A Philosophy of Art, p. 208.
18 Arthur C. Danto, The Philosophical Disenfranchisement of Art, p. 16.

9
Quando a arte interioriza a sua própria história, quando ela se torna auto-consciente da sua
história como sucede na nossa época, a ponto dessa consciência formar parte da sua natureza, é
talvez inevitável que ela acabe por se transformar em filosofia. E quando isso acontece, é possível
afirmar que, em larga medida, a arte chegou ao seu fim. 19
O momento de auto-revelação da identidade conceptual da arte coincide com o da perda
do fio condutor narrativo que havia estruturado ao longo dos séculos o seu movimento de
investigação. O culminar deste processo seria o momento em que as questões de ordem
conceptual deveriam ser conduzidas para a sua sede própria, a filosofia. Esta passagem de nível
assinalaria a morte da arte, pelo menos enquanto processo de desenvolvimento diegético. Nesta
acepção, a arte transformar-se-ia de algum modo em filosofia, alcançando a sua revelação
última, após o que não deixaria realmente de existir como actividade humana, mas teria de se
colocar em outros termos. É, pois, este processo que Danto designa de emancipatório da arte.
Tal tomada de consciência de si mesma por parte da arte seria historicamente identificável neste
século a partir de Duchamp e de quantos prosseguiram directa ou indirectamente as vias de
investigação por si abertas. As consequências do trabalho de Duchamp —ele mesmo a
consequência natural e necessária do processo de constituição reflexiva e conceptual da própria
arte— são, segundo Danto, reveladoras de uma relação da arte consigo mesma caracterizada
por um excesso de ambição conceptual que ainda hoje estaria mal resolvida. Encontrar-nos-
iamos na actualidade diante de do espectáculo vertiginoso de uma concepção de arte cujas
ambições conceptuais ultrapassariam largamente os seus meios de lhes responder. Isto é, a arte
ver-se-ia hoje confrontada como os seus limites: o gesto desmedido de pretender conquistar a
sua própria problematização conceptual tê-la-ia conduzido a uma situação terminal 20 . Notemos
que este modelo de análise é sugestivo enquanto fornece um modelo de compreensão para a
forma como a vertigem niilista introduzida pelas vanguardas modernistas caminha a par com um
imenso trabalho produtivo de investigação artística e conceptual. Por outro lado, e qualquer que
seja a operatividade analítica deste modelo, ele acentua a dependência ou a menoridade lógica
da arte face à filosofia.
Afirmar o fim da história da arte em sentido narrativo não significa, pois, e segundo
Danto 21 , afirmar o termo absoluto do percurso, mas o culminar das possibilidades de
desenvolvimento abertas pelo movimento diegético em que se integrava. Tratar-se-ia hoje, e
face aos dados aportados pela arte da últimas quatro décadas do século XX, de assinalar o
esgotamento de uma estrutura narrativa que teria atingido os seus limites naturais. Tal como o

19 Arthur C. Danto, The Philosophical Disenfranchisement of Art, p. 17.


20 Veja-se Arthur C. Danto, The Philosophical Disenfranchisement of Art, p. 34-35.
21 Veja-se Arthur C. Danto, Beyond the Brillo Box: The Visual Arts in Post-Historical Perspective, p. 246-247.

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estilo de um artista possui potencialidades de desenvolvimento que não poderão ser
ultrapassadas, a não ser pela mudança de estilo —o que se traduziria em termos de projecção
diegética por um outro encadeamento narrativo—, do mesmo modo a história da arte ocidental,
com todos os seus diferentes momentos de continuidade, diferenciação e ruptura,
correspondendo a diferentes estilos particulares a partir dos quais cada artista se individualizava,
poderia ser entendida como o desenvolvimento narrativo dos pressupostos contidos numa dada
noção de arte, e cujo esgotamento corresponderia ao fim da arte numa acepção narrativa:
O facto importante é que a arte é morta pela arte, e a questão que se coloca é a de saber
porque é que isto acontece.
E se supusermos que todos estes movimentos não são senão momentos de um
extremamente longo estilo que se iniciou algures no século XIII, tendo ficado plenamente
estabelecido no século XVI, momento em que os artistas se tomaram a si mesmos como parte de
uma narrativa que avançava através da permanente reinvenção do modo de pintar? 22
Definindo como critério de progresso o grau de similitude da representação face ao real, é
possível afirmar o carácter progressivo da arte: a sua evolução responde por um desejo de
adequação que a teria conduzido à possibilidade da produção de representações absolutamente
coincidentes, ou pelo menos perfeitos equivalentes perceptuais da realidade. Nesta acepção, a
história da arte teria terminado com a conclusão, pela coincidência, do movimento de
identificação entre representação e real, coincidência que definiria o limiar máximo de evolução
em arte:
(...) é possível falar em fim da arte, pelo menos enquanto disciplina progressiva. Quando,
para cada domínio perceptivo R, pudesse ser tecnicamente possível elaborar um equivalente, a
história da arte teria terminado, tal como a ciência terminaria quando, e como se pensou no século
XIX constituir uma verdadeira possibilidade, tudo estivesse conhecido. 23
O período da história da arte narrativamente dimensionado pelas suas rupturas
revolucionárias estaria, pois, terminado. Pelo menos, esta concepção de história da arte estaria
terminada. A história moderna da arte, assente na sua capacidade para instaurar
revolucionariamente o novo, ter-se-ia esgotado, e seria em vão que hoje olharíamos em volta, no
actual panorama das artes plásticas, em busca de formulações artísticas plástica ou
conceptualmente revolucionárias: o período da história da arte internamente articulado pelo
modelo das rupturas revolucionárias estaria inexoravelmente ultrapassado; a necessidade
histórica que prendia os artistas à lógica do novo teria dado lugar a um período de liberdade sem
precedentes:

22 Arthur C. Danto, Beyond the Brillo Box: The Visual Arts in Post-Historical Perspective, p. 247.
23 Arthur C. Danto, The Philosophical Disenfranchisement of Art, p. 97.

11
Uma vez que os artistas estão libertos da tarefa de procurar a essência da arte (...), eles
estão também libertos da história, dando entrada num período de liberdade. A arte não termina
com o fim da história. O que acontece é que um conjunto de imperativos foi retirado da sua prática,
ao entrar no que eu acredito ser a sua fase pós-histórica. 24
Aquilo que termina é um determinado encadeamento narrativo que condicionava o
desenvolvimento da história da arte. Com este fim, teria desaparecido a necessidade histórica
que impelia a arte a uma busca da sua identidade conceptual. O assinalar do fim do percurso
histórico abriria um novo espaço de liberdade: a necessidade do movimento de identificação
reflexiva que conduzia univocamente o desenvolvimento da arte cede lugar a uma criação
artística livre de condicionamentos históricos. Eis porque, como Danto recorda com frequência 25 ,
a afirmação do fim da arte pretende constituir uma simples constatação, que não envolve em si
mesmo qualquer juízo crítico relativo ao valor específico da arte contemporânea. Não será a
partir da presença ou da ausência de inovação formal ou conceptual que o valor da arte
contemporânea deverá ser aferido: tal corresponderia à manutenção do paradigma moderno da
inovação como critério privilegiado de recepção crítica. Ora, a liberdade recém adquirida pelos
artistas desobrigá-los-ia de se subordinarem aos imperativos da individuação por diferenciação
revolucionária e absoluta.
Este processo de libertação da arte agiria pela desobrigação do artista em prosseguir uma
orientação artística que lhe fosse exteriormente ditada pela história da arte, pela necessidade de
adequar a sua produção pessoal, os seus valores e as suas expectativas, àquilo que a
orientação narrativa definia em cada momento como artisticamente necessário. Neste sentido, o
fim da história da arte surge estritamente como o fim do seu encadeamento narrativo. O fim da
arte, tal como o seu princípio 26 , não dirá respeito à existência ou não de criação artística, de
obras de arte ou de experiências de recepção dessas obras, mas antes ao assinalar de um limite
inultrapassável numa determinada estrutura diegética: aquela que estruturou um período da arte
que teve início no Renascimento.
No entanto, a resolução narrativa do percurso histórico da arte não poderá de modo algum
ser entendida como a perda da relevância artística das obras que lhe são cronologicamente
posteriores. É significativa, a esse propósito, a avaliação comparativa que Danto efectua da arte
da década de 70, precisamente aquela que na sua versão sobrevem de um modo mais imediato
ao fim narrativo da história:

24 Arthur C. Danto, Encounters and Reflexions: Art in the Historical Present, p. 344.
25 Veja-se, por exemplo, Arthur C. Danto, After the End of Art: Contemporary Art and the Pale of History, p. 4.
26 Veja-se Arthur C. Danto, Beyond the Brillo Box: The Visual Arts in Post-Historical Perspective, p. 8.

12
(...) eu estou cada vez mais convencido disso, os anos setenta foram, artisticamente, a mais
importante década do século. Foi na década de setenta que objectivamente as estruturas
pluralísticas do mundo da arte começaram a apresentar-se como algo de distinto. Foi na década
de setenta que um vasto conjunto de vias de investigação começou a surgir aos artistas como
viável, alheio a qualquer possibilidade de se apresentar como a direcção historicamente
necessária para a arte. 27
Mais do que qualquer avaliação da importância artística desta ou de outra década, o que
torna relevante a valorização da década de 70 é que ela vem demonstrar o verdadeiro
significado que o fim da arte assume em Danto. Não apenas não se trata de afirmar o fim literal
da arte enquanto actividade cultural específica, mas o do encadeamento narrativo que conduziu
a arte ao longo dos últimos séculos. E não se trata, também, de assinalar o fim de um percurso
narrativo pela abertura de um outro; trata-se de, pelo menos ao nível da arte, condenar
definitivamente o modo narrativo enquanto modelo de fundamentação das práticas particulares.
Nota-se que a questão do fim da arte, enquanto fim de um modelo narrativo de
compreensão da história da arte, é, na últimas décadas do século XX, uma questão premente. A
comprová-lo, e para além das reflexões de Danto, está o aparecimento de vários autores que
colocam quase nos mesmos termos a tentativa de compreensão da arte contemporânea. Por
exemplo, em 1981 —na sequência de uma performance realizada em 1979 no Centro G.
Pompidou, em Paris— o artista Hervé Fischer publica a obra L’Histoire de L’Art Est Terminée,
onde sustenta a noção do fim da arte enquanto história. O conceito de historicidade da arte que
havia permitido a definição das vanguardas artísticas é condenado menos por esgotamento
criativo destas do que pelo esgotamento da noção de história que as suportava. Os anos setenta
marcariam, para Fischer, o fim da organização historicamente progressista da arte; em seu lugar
restaria não o corpo morto do que fora a arte, um cadáver condenado a desaparecer, mas a
necessidade de redefinir a identidade da arte em outros moldes 28 . Esta é uma concepção de fim
da arte muito próxima da defendida por Danto, relativamente à qual é, aliás, cronologicamente
anterior. No mesmo sentido de afirmar o fim da fundamentação narrativa da história da arte
caminha Hans Belting. Na sua obra Das Ende der Kunstgeschichte?, de 1983, Belting questiona
também ele o modelo narrativo de estrutura linear e unidireccional da história da arte. Para este
autor, aquilo que deve ser questionado é a pretensão da arte em se desenvolver de um modo
narrativo, através de um percurso cujo progresso fosse aferível pela sucessão estilística: na
actualidade, ao artista já não bastaria inscrever o seu nome no interior da narrativa de contornos
definidos mas ainda não escrita, ser-lhe-ia hoje necessário uma permanente reinvenção da
27 Arthur C. Danto, Playing With the Edge: The Fotographic Achievement of Robert Mapplethorpe, p. 21.
28 Veja-se Hervé Fischer, L’Histoire de L’Art Est Terminée, p. 89.

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natureza da sua actividade. Em vez da sucessão estilística legitimada pela prossecução de um
desígnio histórico, a história da arte deveria ser pensada como a história das propostas de
resolução para problemas artísticos sempre renovados 29 . A história da arte e a produção
artística contemporâneas teriam chegado a um momento em que já não seria possível sustentar
pretensões holísticas de sistematicidade absoluta; em substituição das grandes narrativas
unitárias e unificadoras, encontrar-nos-iamos diante da necessidade de formular modelos de
compreensão provisórios e fragmentários. A complexidade crescente da noção de obra de arte,
e de todo o conjunto de questões que a partir dela se definem, tornaria cada vez mais
insustentável procurar unificar a pluralidade dos fenómenos artísticos, oriundos de contextos
históricos e culturais muito distintos, sob a perspectiva de uma “história universal” 30 .

Independentemente da pertinência desta questão, parece legítimo questionarmos a


validade das teses de Danto. A principal fragilidade que se lhe poderá apontar, e da qual
decorrem várias aporias, é o facto de Danto identificar a história da arte com um muito particular
e restrito encadeamento narrativo: a sua firme opção por um modelo narrativo fechado para
história da arte condu-lo a anunciar o fim de uma história sem se dar conta de que essa história
pode ser contada de muitas maneiras; isto é, sem se dar conta de que não é possível reduzir
toda a diversidade artística, histórica e cultural ao enunciado unívoco de uma história da arte:
Danto parece ignorar voluntariamente que, nesta como em qualquer outra história, é sempre
possível contar a história de outra maneira, porque a história, a arte e a cultura são, por
natureza, abertas.

3) A noção de Pluralismo Artístico


O pluralismo é, segundo Danto, o modelo estético que nasce depois no período pós-
histórico da arte. Segundo ele, em nenhuma outra época da história teria sido possível a
multiplicação de propostas estéticas a que assistimos nas últimas décadas. Libertos da
obrigação de seguirem um fio narrativo que se lhes impunha como obrigatório, os artistas
desfrutariam hoje de uma liberdade criativa sem precedentes. A inexistência de modelos
canónicos —ou a sua multiplicação indefinida que quase redunda no questionamento da sua
validade e operacionalidade— confere a este pluralismo simultaneamente um carácter libertador

29 Veja-se Hans Belting, L’Histoire de L’Art Est-Elle Finie?, p. 6.


30 Veja-se Hans Belting, L’Histoire de L’Art Est-Elle Finie?, p. 43.

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e aporético. Aporético porque, como mostrámos, a proliferação de categorias e critérios ameaça
fazer mergulhar a experiência artística no mais radical relativismo, produzindo o questionamento
da própria validade e pertinência cultural da arte contemporânea; libertadora porque, a partir do
momento em que não existem modelos formais e estilísticos a que as obras de arte devam
obedecer, ter-se-ia aberto uma época de liberdade criativa sem precedentes.
Segundo Danto, liberta da estrita determinação unívoca do modelo progressista, a
contemporaneidade abre à arte uma época de pluralismo estético: deixaria de existir qualquer
obrigação de prossecução de um modelo de arte indexado a um dado estilo ou tentativa de
determinação prospectiva da arte. É o modelo teleológico inerente à arte desde o Renascimento
o que resulta afectado; não propriamente o modelo teleológico enquanto instância de legitimação
filosófica e histórica, mas, segundo Danto —e como em qualquer teleologia historicamente
viável—, o modelo teleológico da história da arte é vítima do seu próprio sucesso. Alcançado o
objectivo que havia orientado o seu percurso histórico ao longo dos últimos cinco séculos,
esgota-se ao mesmo tempo o imperativo metodológico e estrutural de pensar teleologicamente a
história, libertando a arte de um modelo determinista. À necessidade interna própria dos modelos
teleológicos de fundamentação —de que o modernismo é, segundo Danto, um exemplo
privilegiado— suceder-se-ia a liberdade absoluta do período pós-histórico da arte:
A narrativa tinha chegado a um fim. Mas isto era, de facto, uma ideia libertadora, ou pelo
menos eu entendia que poderia sê-lo. Libertava os artistas de terem de prosseguir a “a correcta
linha histórica”. Significava que qualquer coisa poderia ser arte, no sentido em que já nada poderia
ser excluído.(...) Tudo era permitido, uma vez que já nada era historicamente necessário. Chamo a
isto o Período Pós-histórico da Arte, e não há razão para que algum dia venha a terminar. A arte
pode ser externamente determinada, em termos de moda ou de política, mas o determinismo
interno ditado pela sua história é agora uma coisa do passado. 31
Este período pós-histórico surge aqui na acepção restrita de pós-narrativo, e confinado
ainda a uma narrativa particular, a da história da arte ocidental. A este fim narrativo —que
significa o fim de um encadeamento diegético em que a individuação se faz por uma exigência
de diferenciação absoluta— não sobreviria a eterna repetição do mesmo por ausência de devir
ou transformação histórica, mas, hegelianamente, uma época de liberdade artística, uma época
em que o pluralismo é elevado à condição de estrutura fundadora da própria transformação
histórica.
Se no período histórico da arte a validade artística de uma dada obra poderia ser medida
pela sua capacidade de se adequar àquilo que era entendido como historicamente correcto, no

31 Arthur C. Danto, Beyond the Brillo Box: The Visual Arts in Post-Historical Perspective, p. 9.

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período pós-histórico deixaria de existir a exigência de vincular o trabalho do artista a quaisquer
exigências que lhe fossem impostas pela própria história. abrir-se-ia um período de liberdade
criativa, uma época de pluralismo artístico. O pluralismo aberto pelo fim da história significa que
uma obra de arte pode adquirir qualquer configuração formal, pois nem o seu valor, nem o seu
estatuto ontológico dependerão dessa configuração:
O sentido em que tudo era possível é aquele segundo o qual não existem a priori limites acerca
de como uma obra de arte pode parecer, pelo que tudo o que é visível pode constituir uma obra de
arte visual. Isto é parte do que realmente significa viver no fim da história. 32
Se no período histórico ou narrativo o valor de uma obra poderia ser aferido pela sua
concordância ou pela sua inserção relativa no interior da narrativa —por exemplo, se era
coerente com ela, ou se estaria desfasada; se significava um avanço em termos narrativos, ou
se era conservadora; ou, simplesmente, se era pertinente ou se estaria destituída de relevância
por não ser narrativamente pensável ou relevante—, no período pós-histórico a recepção crítica
das obras teria de ser efectuada por referência a outros parâmetros que não a estrita
concordância com as exigências da narrativa 33 . Segundo Danto, de então em diante, ter-se-ia
aberto à criação artística uma época de liberdade, não estando já cada artista ou cada época
sujeitos aos constrangimentos de terem de obedecer a um modelo histórico linear. Os diferentes
recursos estilísticos passam a constituir não um imperativo histórico, mas um lote de linguagens
e modelos formais aos quais o artista pode ou não recorrer, tendo como único critério de opção
as suas próprias exigências expressivas.
Afirmar que tudo é possível não significa, segundo Danto, sustentar a absoluta
descontextualização histórica ou cultural da criação artística: a possibilidade de apropriação de
um vasto conjunto de linguagens desenvolvidas no passado não conduz à criação de pastichos
de formas de arte desses períodos ou culturas porque exige que a relação com esses recursos
estilísticos se faça a partir de uma perspectiva assumidamente contemporânea. É à
contemporaneidade que devem ser referidos essas eventuais apropriações; isto é, a obra de
arte, mesmo no que Danto designa como período pós-histórico da arte, permanece
historicamente situada e a sua identidade é sempre condicionada pela sua posição relativa no
interior de um dado contexto histórico e cultural.

32 Arthur C. Danto, After the End of Art: Contemporary Art and the Pale of History, p. 198.
33 Veja-se Arthur C. Danto, Beyond the Brillo Box: The Visual Arts in Post-Historical Perspective, p. 10.

16
4) A noção de “mundo da arte”
Como mostrámos, a aproximação de Danto à filosofia da arte é catalisada pelo choque
vivencial constituído em 1964 pela visita à exposição das Caixas Brillo, de Andy Warhol, na
Stable Gallery, em Nova Iorque 34 . O impacto filosófico desta exposição é tal que estas obras
constituirão de ora em diante a principal referência artística da sua filosofia e o primeiro índice
empírico daquilo que Danto designará como o período pós-histórico da arte. Num primeiro
momento, a questão que os trabalhos de Warhol suscitam a Danto não é tanto de ordem
ontológica —dando lugar a uma tentativa de identificar o que é que faria daquelas realidades
obras de arte—, mas de ordem histórica: como poderia ser historicamente possível que aqueles
artefactos pudessem aspirar ao estatuto de obras de arte, dado que teria sido uma
impossibilidade histórica que eles pudessem, num período anterior da história da arte, ser
entendidos como arte. Como vimos, para Danto, a admissão de tais artefactos como obras de
arte decorria e era consequência da transformação da história da arte, ao mesmo tempo que
exigia desta uma transformação suplementar: algumas das categorias que haviam sustentado o
desenvolvimento da história da arte desde o Renascimento já não permitiam pensar
comensuravelmente tais realidades, pelo que um novo conjunto de categorias artísticas era por
elas exigido. Ao mesmo tempo, estas obras eram o resultado e exigiam a reformulação das
categorias segundo as quais tinham sido produzidas. Ora, para que tal transformação tivesse
sido possível não era suficiente a simples realização e apresentação pública de tais objectos; o
seu reconhecimento como obras de arte põe em evidência que a identificação de uma realidade
como obra de arte exige a existência de um determinado contexto histórico-cultural que torne um
acto criativo não apenas possível, mas significante. É este contexto que Danto designa como o
mundo da arte.
A exigência de uma atmosfera cultural e artística de índole conceptual que possibilite a
existência de determinadas realidades como arte não é, evidentemente, específica das Caixas
Brillo ou da arte contemporânea em geral; mas residiria precisamente aqui a importância
filosófica dos trabalhos de Warhol: por não ser compreensível à luz das categorias herdadas do
Renascimento, ou mesmo das categorias do Modernismo, a produção de duplicados exactos de
objectos do quotidiano teria colocado em evidência a dependência de todas as formas de arte
face a um vasto conjunto de requisitos de ordem conceptual. Isto é, —e esta é a revelação
pessoal que Danto recolhe dos trabalhos de Warhol— as obras de arte exigem como condição
da sua existência um suporte implícito de estruturas teóricas, sem as quais não apenas não são

34 Para além de todas as referências que anteriormente indicámos, veja-se também, por exemplo, Arthur C.
Danto, Beyond the Brillo Box: The Visual Arts in Post-Historical Perspective, p. 5 e seguintes.

17
dotadas de sentido, como simplesmente não têm existência enquanto tal: a identidade ontológica
e semântica daquilo que designamos como obras de arte é função estrita da existência de um
dado contexto conceptual: só existem obras de arte se existir um contexto cultural e teórico —
consciente ou não conscientemente assumido pelos diferentes intervenientes— que suporte a
sua existência.
Aquilo que, antes de mais, a noção de mundo da arte coloca em evidência é a exigência
de um conjunto de factores de ordem institucional —numa acepção muito lata— como condição
de produção e recepção de obras de arte. A resposta à questão o que é a arte? implica e exige a
consideração de um contexto social, cultural e histórico, sem o qual a realidade cultural que é
designada como arte não possuirá nem pertinência semântica, nem a mesma identidade
ontológica. Esta posição de Danto virá abrir as portas à Teoria Institucional da Arte, de George
Dickie. Mas mais do que uma simples teoria institucionalista, a noção de mundo da arte implica e
supõe uma noção representacionista de homem e de mundo: a experiência do homem, como por
exemplo a organização do tempo em história, opera pela mediação de representações. Serão os
distintos modos como estas representações —ou razões, como Danto também as designa 35 —
se institucionalizam que conferem especificidade às diferentes culturas e que, ao nível específico
da arte, individualizam os diferentes mundos da arte.
A noção de mundo da arte não possui, assim, uma estrita acepção sociológica; tal como é
pensado por Danto, o mundo da arte não deve ser entendido como uma simples estrutura
institucional, formal ou informalmente composta por um conjunto de peritos —quaisquer que
fossem os requisitos ou os rituais de admissão—, mas como uma realidade histórica e cultural
que potencia a existência de uma ordem de razões e princípios teóricos face aos quais uma
entidade cultural designada como obra de arte existe como realidade dotada de sentido. Nesta
acepção, pertencer ao mundo da arte é partilhar, explícita ou implicitamente, um conjunto de
princípios de ordem teórica que agem como constituintes e condições de significação das obras
de arte:
Ver alguma coisa como arte requer algo que o olho não pode percepcionar — uma atmosfera de
teoria artística, um conhecimento da história da arte: um mundo da arte. 36
A percepção de uma realidade como obra de arte não é nem intuitiva, nem imediata, mas
antes o resultado da capacidade do receptor para integrar essa realidade num dado contexto de
ordem histórica e teórica, isto é, implica uma mediação conceptual 37 :

35 Veja-se Arthur C. Danto, Beyond the Brillo Box: The Visual Arts in Post-Historical Perspective, p. 11.
36 Arthur C. Danto, «The Artistic Enfranchisement of Real Objects: The Artwordl », p. 29.
37 Veja-se The Transfiguration of the Commonplace: A Philosophy of Art, p. 91.

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Aquilo que afinal faz a diferença entre uma caixa Brillo e uma obra de arte que consiste numa
Caixa Brillo é a existência de uma certa teoria da arte. É essa teoria que a transporta para o
mundo da arte e a impede de se reduzir ao objecto real que é (numa acepção do é diferente da da
identificação artística). Naturalmente que, sem esta teoria, seria inverosímil vê-la como arte, e para
que a vejamos como parte do mundo da arte é necessário que tenhamos apreendido um vasto
conjunto de teorias artísticas, tal como um conjunto considerável de dados relativos à história
recente da pintura em Nova Iorque. 38
A obra de arte não o é nem por natureza, nem como resultado de um qualquer conjunto
de predicados de ordem formal ou estilística, mas apenas em resposta a uma dada ordem de
razões: para que se identifique uma dada realidade como sendo obra de arte é necessário estar
na posse dos elementos que nos permitam dominar uma dada linguagem artística e teórica.
Aquilo que confere o estatuto de obra de arte a uma realidade cultural é, assim, o discurso
de razões e de princípios que constitui o mundo da arte. De um ponto de vista institucional, são
as posições relativas que os diferentes indivíduos assumem no interior deste discurso de razões
que definem a sua identidade particular e que configuram no seu todo a instituição mundo da
arte. É por isso que, mais importante do que uma análise puramente institucional deste mundo
da arte, importa uma análise da ordem de razões que o funda e o constitui. E esta é uma análise
de cariz ontológico: as obras de arte existem como tal, ou não existem, pela sua capacidade de
se inscreverem no mundo da arte e de se apropriarem desta ordem de razões, um conjunto de
princípios teóricos explícitos ou implícitos que constitutivamente as funda e institucionalmente
lhes confere o estatuto de obras de arte:
O mundo da arte é o discurso de razões institucionalizado, e ser membro do mundo da arte é,
correspondentemente, ter aprendido o que significa participar no discurso de razões de uma
cultura. Em certo sentido, o discurso de razões de uma dada cultura é uma espécie de jogo de
linguagem, governado por regras de jogo e por razões similares àquelas que sustentam a ideia de
que só onde há jogos há vitórias, derrotas e jogadores, assim, apenas existe arte onde existe um
mundo da arte. 39
O mundo da arte é, pois, uma estrutura informal institucionalizada —isto é, organizada
segundo um conjunto de princípios internos— cujas regras de articulação podem ser entendidas
como da ordem de um jogo de linguagem; o mundo da arte é entendido como uma comunidade
de linguagem e pertencer-lhe significará dominar as regras e participar nesse jogo de linguagem:
trata-se, afinal, de partilhar uma dada representação de mundo articulada por um conjunto de
regras dotadas da capacidade de conferir um dado estatuto a uma realidade designada por arte.

38 Arthur C. Danto, «The Artistic Enfranchisement of Real Objects: The Artwordl », p. 33.
39 Arthur C. Danto, Beyond the Brillo Box: The Visual Arts in Post-Historical Perspective, p. 46.

19
O mundo da arte é, assim, e para além de quaisquer considerações de ordem
institucional, o conjunto de princípios teóricos e estruturas conceptuais que garantem a
especificidade semântica e ontológica das expressões simbólicas que corporizam o seu
conteúdo semântico: as obras de arte.
Em face disto, no interior de cada mundo da arte, o valor e a significação das obras serão
definidos mediante procedimentos discursivos tendentes a consensualizar valores ou a redefinir
as regras que regem esse mundo da arte. Se, segundo Danto, para aceder a uma obra de arte é
necessário dominar todo um conjunto de pressupostos de ordem cultural, e de algum modo
partilhar com a obra os códigos culturais que a tornam uma realidade significante, o receptor
deverá dominar ou pelo menos ter acesso às regras e representações de mundo inerentes à
obra. Daqui deriva a importância da crítica ou da história da arte: trata-se de dar a ver a obra, de
formar e informar o espectador, no sentido de permitir o acesso a um conjunto de códigos e
representações sem os quais a obra é destituída de sentido 40 , ao mesmo tempo que se definem
e se consensualizam regras e valores.

5) A “teoria da implicação”
Já vimos a importância fundadora de que o texto “The Artworld” se reveste na filosofia da
arte de Danto: ele traduz não apenas uma primeira e decisiva tomada de consciência das
questões específicas que a contemporaneidade artística coloca, como define já o campo de uma
resposta sistemática a essas questões. Há, no entanto, uma questão decisiva tematizada por
Danto nesse texto e que ainda não abordámos: trata-se da formulação do que Danto designa por
matriz estilística e que supõe a existência de uma relação de implicação de carácter prospectivo
e retrospectivo entre as obras de distintos períodos históricos, passível de fundar uma
compreensão relacional das mesmas.
O modelo que Danto aqui avança assenta sobre a ideia de que é possível, no interior de
um mesmo universo cultural, identificar um conjunto de relações de implicação entre cada uma e
o todo das obras e categorias que constituem um mundo da arte; relações de implicação estas
que não estão dependentes da existência de uma qualquer relação de implicação causal, mas
que, independentemente da inexistência de relações mais ou mesmo imediatas de precedência,
contemporaneidade ou outras, agem de um modo constituinte da identidade ontológica e
semântica das obras particulares.

40 Veja-se The Transfiguration of the Commonplace: A Philosophy of Art, p. 174.

20
Através daquilo que podemos designar por teoria da implicação, Danto propõe um modelo
de inserção das obras particulares no interior do mundo da arte que exige que este seja
holisticamente pensado como uma totalidade orgânica: cada um dos elementos do mundo da
arte está em relação com todos os outros elementos desse mundo e os predicados em cada
momento tidos por pertinentes para a produção e recepção crítica das obras não podem nunca
ser tidos por definitivos, estando em cada momento sujeitos a revisão, uma vez que a
identificação de um qualquer outro predicado tido por artisticamente pertinente afectará todas as
obras e categorias que formam esse universo ou mundo da arte. Partindo da tese segundo a
qual a definição de uma realidade como obra de arte não depende da simples existência de
atributos formais, mas sua da inscrição no interior de um discurso de razões, Danto mostra que,
para que uma dada realidade se inscreva nesse discurso de razões e pertença à categoria das
obras de arte, é exigível que possua pelo menos um dos predicados que, no interior de um dado
mundo da arte, definem a obra de arte como tal. Ora, ao possuir pelo menos um desses
predicados, e sendo reconhecida como parte integrante do mundo da arte, os predicados para
ela tidos por pertinentes não serão já apenas aquele ou aqueles que lhe garantiram a inclusão
no interior do mundo da arte, mas —e ainda que de um modo negativo, isto é, pela sua
ausência— todos os predicados tidos por pertinentes para todas e cada uma das realidades
reconhecidas como obras de arte.
Nesta medida, os diferentes predicados pertinentes para a recepção crítica da arte
poderiam, segundo Danto, articular-se através de um modelo análogo ao de uma tabela matricial
em que a inserção de um novo predicado implicaria que ele se tornasse pertinente para todos os
membros da mesma classe, ainda que a pertinência de tal predicado se revelasse de um modo
estritamente negativo, pela sua ausência:
Tomemos F e não-F como um par de predicados artisticamente pertinentes opostos. Pode
acontecer que, durante todo um período de tempo, todas as obras de arte sejam não-F. Mas, até
que surja uma realidade que seja uma obra de arte e possua como pertinente o predicado F, pode
acontecer que ninguém identifique o predicado não-F como artisticamente pertinente. (...)
Tomemos o predicado G como “representacional” e o predicado F como “expressionista”.
Suponhamos que, num dado momento, estes e os seus opostos poderiam, ao nível da crítica, ser
os únicos predicados tidos por artisticamente pertinentes. Se atribuirmos o valor de ‘+’ a um dado
predicado P e o de ‘-‘ ao seu oposto não-P, poderemos construir a seguinte matriz:
F G
+ +
+ -
- +

21
- -
As entradas determinam os estilos disponíveis no interior de um dado vocabulário crítico:
representação expressionista (por exemplo, Fauvismo); representação não expressionista (Ingres);
expressionismo não representacional (Expressionismo Abstracto); não representacional e não
expressionista (abstracção geométrica). 41
Ou seja, os predicados que são pertinentes para a recepção de uma obra de arte não
constituem uma categoria fechada —por exemplo, os definidos pelo autor e pela sua época—,
mas estão permanentemente abertos à introdução de novos predicados. Em consequência, e de
um ponto de vista histórico, a transformação artística pode ser entendida na acepção restrita da
transformação do conjunto de predicados que cada época tem por pertinentes: uma dada época
pode privilegiar um determinado conjunto de predicados e desprezar ou ignorar outros, mas isso
não coloca as obras de arte nela produzidas ao abrigo de serem legitimamente apreendidas à
luz de predicados que só posteriormente são revelados ou admitidos como pertinentes. Se,
segundo um modelo evolutivo da história da arte, se entendesse a transformação artística como
progresso, então estaríamos diante de um movimento de revelação histórica da natureza da arte,
através da descoberta de novos predicados até então tidos por não pertencentes à natureza da
arte; consistiriam nisto as revoluções artísticas: no acrescentar à matriz de uma nova coluna, de
um outro predicado pertinente para a natureza da arte, quer pela descoberta de um novo, quer
pela revelação de um predicado até então latente, mas que só em determinado momento pode
ser reconhecido como pertinente:
Não é, naturalmente, fácil antever quais os predicados que vão ser acrescentados ou
substituídos, mas suponha-se que um dado artista determina que H será de ora em diante
artisticamente relevante para as suas pinturas. Então, de facto, tanto H como não-H se tornam
artisticamente pertinentes para todas as suas pinturas, e se a sua pintura é a primeira pintura que
possui o predicado H, então qualquer outra pintura que exista se torna não-H, e toda a
comunidade de pinturas é enriquecida com a duplicação das possibilidades estilísticas disponíveis.
É este processo de enriquecimento retroactivo das entidades no mundo da arte que torna possível
discutir simultaneamente Rafael e De Kooning, ou Lichtenstein e Miguel Angelo. Quanto maior é a
variedade de predicados artisticamente pertinentes, mais complexos se tornam os membros
individuais do mundo da arte; quanto mais nós conhecemos toda a população do mundo da arte,
mais rica é a nossa experiência de qualquer um dos seus membros. 42
A relação entre obras de arte e os predicados que possuem e segundo os quais é
pertinente proceder à sua recepção crítica apresenta-se, assim, como uma relação de implicação

41 Arthur C. Danto, «The Artistic Enfranchisement of Real Objects: The Artwordl» p. 34.
42 Arthur C. Danto, «The Artistic Enfranchisement of Real Objects: The Artwordl» p. 34-35.

22
de carácter holístico: a simples existência de um predicado tido por pertinente condiciona de um
modo retrospectivo e prospectivo toda a história da arte, nem que seja de um modo estritamente
negativo. O facto de, num dado momento da história da arte, um predicado ser reconhecido
como pertinente não vai afectar apenas as obras que lhe são contemporâneas ou posteriores;
retrospectivamente, todas as obras são passíveis de serem colocadas diante dele, ainda que
esta relação se processe apenas de um modo negativo, o que não significa que esse predicado
não seja artisticamente pertinente para essa obra, mas sim que ela não o possui.
Por exemplo, a produção de obras de arte de carácter não figurativo veio revelar o
predicado figurativo como pertinente para a noção de arte. A revelação do não figurativo como
uma possibilidade estilística veio revelar que todas as obras até então realizadas possuíam o
predicado figurativo, não como uma necessidade ditada pela natureza da arte, mas como uma
possibilidade que, em face de uma dada tradição pictórica, foi privilegiada. Isto significa,
também, que o predicado não-figurativo se torna pertinente, ainda que de um modo negativo,
pela sua ausência, para todas as obras de arte anteriormente realizadas: todas as obras de
carácter figurativo serão passíveis de uma percepção que tenha em conta a sua implícita não
não-figuratividade. Este modelo de compreensão das relações entre as obras e os predicados
passíveis de constituírem critérios pertinentes de recepção crítica introduz uma solução de
continuidade numa história da arte que ao longo do último século foi concebida em termos de
rupturas radicais —as vanguardas—; uma solução de continuidade que não apenas torna
histórica e esteticamente compossíveis os diferentes critérios de aferição da arte ao longo de um
vasto período histórico, como permite um enriquecimento retroactivo das obras de arte do
passado: as novas obras e a descoberta de novas categorias revelam aqueles que são novos
predicados pertinentes para a recepção crítica da arte no seu todo. Deste modo, torna-se
possível identificar um conjunto de propriedades comuns a todas as obras que fazem parte de
um dado mundo da arte —ainda que, para algumas obras, esses predicados se possam definir
de um modo simplesmente negativo—,o que permite pensar o mundo da arte como um todo
definido por princípios e categorias comuns.
Como Danto reconhece 43 , embora sem o mesmo desenvolvimento, esta questão surge já,
nas suas principais linhas, na reflexão de T. S. Eliot, mais propriamente no ensaio “Tradition and
the Individual Talent” de 1919. Sem pretendermos efectuar uma abordagem sistemática do
pensamento crítico de T: S. Eliot, é importante que nos detenhamos nele.

43 Veja-se Arthur C. Danto, After the End of Art: Contemporary Art and the Pale of History, p. 163-164.

23
A tese genérica de Eliot 44 é a de que o sentido e o valor de uma dada obra de arte só
poderão ser definidos pela integração da obra no interior de um contexto orgânico que a potencia
e condiciona na mesma medida em que, de um modo reversível, é por ela condicionado.
Segundo Eliot, embora a recepção crítica das obras de arte tenda a valorizar em determinado
autor aquilo que de um modo mais particular o distingue dos outros —isto é, aquilo que possa
ser entendido como expressão de uma irredutível individualidade do autor—, tal não traduz que
essa singularidade assente numa natureza irredutivelmente não relacional das obras e dos
autores. Pelo contrário, a tentativa de individualizar o autor implica só por si que a definição da
identidade das obras se efectue de um modo relacional: quer a individualidade se marque pela
diferença face a autores que lhe são anteriores, quer se faça pela partilha de traços comuns,
estamos diante uma recepção das obras que obedece sempre ao imperativo de uma
permanente remissão para um contexto histórico abrangente: a tradição; isto é, o conjunto
orgânico e mutável de realizações e princípios artísticos interiores a um universo cultural.
Enquanto condição de formulação e individuação das obras particulares, esta tradição não deve
ser entendida como um dado imediatamente acessível ao autor ou à recepção crítica, sendo
antes fruto de um complexo processo de apreensão e de integração que, de um modo
abrangente, podemos designar por formação. É este processo de formação que permite a
aquisição daquilo que Eliot designa por sentido histórico: uma percepção não apenas daquilo
que no passado é passado, mas também daquilo que do passado persiste de um modo actual 45 .
Esta noção de sentido histórico permite integrar de um modo orgânico a produção individual no
interior de um todo formado pela tradição em que se insere. A referência à tradição comporta a
dupla dimensão do intemporal e do transitório: tanto a inscrição do intemporal no transitório,
como do transitório no intemporal. Estamos diante de uma relação de permanente remissão do
todo para o particular e do particular para o todo. O sentido de uma dada obra ou do trabalho de
um dado autor só é definido em função da sua integração numa relação de remissão implícita ou
explícita para o conjunto da tradição cultural em que se insere:
Nenhum poeta, nenhum artista de qualquer forma de arte, possui só por si um completo
sentido. A sua significação e o seu valor são função da sua relação com os poetas e artistas
mortos. Não é possível avaliá-lo só por si; é necessário colocá-lo, para comparação e contraste,
por entre os mortos. Entendo isto como um princípio a que deve obedecer tanto a historiografia
como a crítica de arte. 46

44 Veja-se T. S. Eliot, «Tradition and the Individual Talent», in Selected Essays, p. 13-22.
45 Veja-se T. S. Eliot, «Tradition and the Individual Talent», in Selected Essays, p. 14.
46 T. S. Eliot, «Tradition and the Individual Talent», in Selected Essays, p. 15.

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Assim, uma vez que nenhuma obra nem nenhum autor comporta só por si e por inteiro as
condições segundo as quais o seu sentido e o seu valor se definem, essa significação e valor
são sempre função da sua integração no interior de uma tradição; nesta medida, a recepção
crítica de uma obra ou de um autor implicará um exercício de articulação com todas as outras
obras e autores que formam uma dada tradição. Repare-se que não estamos diante da
dependência unívoca do novo face à tradição ou do particular face ao todo; trata-se, sim, de uma
relação reversível: não apenas a significação e o valor do particular são função da sua relação
face ao todo heterogéneo da tradição, mas também a significação e o valor desta é susceptível
de transformações induzidas pela introdução de um elemento particular. A introdução de uma
nova obra implica um reordenamento retroactivo das significações e valores das obras do
passado que de algum modo estejam em relação com a nova obra: escapa-se, assim, quer ao
modelo de tradição como instância exclusiva de determinação de cânones artísticos, quer ao
modelo do novo como uma ruptura necessária com a tradição. A reversibilidade desta relação de
implicação permite que este modelo de tradição não se esgote na imposição de uma ordem
prévia simultaneamente condição e limite prospectivo de toda a transformação, nem que o novo
só o seja ao preço da negação da alteridade constituída pela tradição. Ao invés de ser entendida
como um estrito todo homorreferencial, universal e fundamento da significação e do valor das
partes, a tradição surge como um todo organicamente mutável e heterogéneo que é susceptível
de ser questionado e reconfigurado pelo particular:
Aquilo que acontece quando uma nova obra de arte é criada é algo que acontece
simultaneamente a todas as obras de arte que a precederam. Os monumentos existentes formam
entre si uma ordem ideal, a qual é modificada pela introdução no seu seio da nova (quando
realmente nova) obra de arte. 47
Estamos diante de uma noção de tradição que é entendida como uma totalidade orgânica
em permanente construção e reformulação, cuja identidade é simultaneamente questionada e
reforçada pela introdução de novas obras. Afirmar que, em termos de recepção crítica, existe
uma relação de implicação entre as obras do passado e as novas obras não significa que estas
sejam julgadas de acordo com os critérios definidos ou aplicáveis às primeiras. Eliot apresenta a
relação de comparação como modelo do juízo que, referido à tradição, percepciona criticamente
a obra. Esta não é uma relação em que um dos termos —a tradição— funcionaria como o
referente supra-relacional, capaz de se constituir como termo de aferição do valor dos
particulares, mas de uma relação de comparação em que ambos os termos estão implicados e
em que ambos se colocam à prova: se a tradição fornece à partida as condições de significação

47 T. S. Eliot, «Tradition and the Individual Talent», in Selected Essays, p. 15.

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e avaliação das novas obras, ela não está ao abrigo de ser questionada por estas, podendo o
seu sentido e o seu valor —ou de quaisquer obras particulares que no passado a constituíram e
nela se inscreveram— serem igualmente objecto de transformação.
A existência de um conjunto de critérios veiculados pela tradição não implica a
subordinação das novas obras a esses critérios; não se trata de medir ou avaliar um dos termos
usando o outro como parâmetro supra-relacional, mas de estabelecer uma relação de risco em
que ambos os termos —novo e tradição— operam como termos de aferição recíproca do valor
do outro, sujeitando-se, nessa relação, ao questionamento da sua própria identidade e valor.
Repare-se que inerente a este modelo de recepção crítica está a noção de que, ao nível da
relação de judicação estética, a validade de um determinado juízo de valor é função da
competência do receptor para, de um modo o mais alargado possível, colocar a obra em relação
com o todo das obras que a precederam. Tanto ao nível da recepção como ao nível da
produção, isto exige um processo de formação que é simultaneamente de natureza individual e
de natureza latamente cultural: exige a constituição de uma tradição, do mesmo modo que
implica a apropriação e inscrição do individual no interior do todo e a redefinição deste face ao
particular. O mesmo processo de formação está implicado na definição da identidade do artista
enquanto tal: a sua constituição como artista age simultaneamente por um movimento de
inscrição do particular no interior do todo e de diferenciação face a esse todo. O sentido ou o
valor da obra não são, pois, independentes da posição relativa por ela ocupada no interior de um
contexto latamente cultural do qual o artista constitui apenas a instância mais imediata de
determinação, mas de modo alguma a única. Neste sentido, o artista é entendido como o
elemento catalisador da obra, uma entidade que deve proporcionar o aparecimento da obra, ao
mesmo tempo que a conserva independente da sua própria identidade, pelo que o objecto e o
referente da recepção crítica deverá ser não o autor —ou o conteúdo intencional por si
definido—, mas a obra.

Aquilo que nos interessa no pensamento de Eliot e de Danto é, aqui, ideia de que todos os
elementos do universo constituído por um dado mundo da arte estão numa intrínseca e mútua
relação de dependência ontológica, semântica e axiológica. Trata-se de afirmar uma relação de
implicação entre uma dada obra e todo um conjunto de pressupostos culturais decorrentes do
contexto em que se inserem:

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A população das obras de arte é um sistema de objectos mutuamente auto-enriquecedor, no
qual qualquer membro é consideravelmente mais rico devido à existência de outras obras de arte
do que aquilo seria se apenas ele existisse. 48
O auto-enriquecimento mútuo potenciado pela integração de cada obra particular num
mundo da arte articulado por uma relação de implicação interna produz um acréscimo de
significação que se repercute na própria realidade individual das obras. Cada um dos elementos
particulares deste sistema relacional seria permanentemente enriquecido pela transformação do
próprio mundo da arte, uma transformação devida à inclusão de novas obras que revelariam
como artisticamente pertinente predicados até então ignorados ou não admitidos como
relevantes. O movimento de retroacção que indicamos —e segundo o qual esta relação de
implicação não assume uma dimensão apenas sincrónica ou prospectiva, mas supõe a
possibilidade do seu carácter retroactivo— é apenas a extrapolação para a dimensão
cronológica da relação de implicação que estrutura o mundo da arte.
Esta constituição mutuamente relativa das realidades históricas mostra-se, assim,
particularmente adequada para pensar a inserção das obras de arte na história. Sublinhe-se, no
entanto, que estamos diante de uma muito particular concepção de história: contra a noção
história: segundo Danto, a arte do século XX demonstra que o passado não pode ser entendido
como imutável, a noção do passado como algo de imutável foi ao longo do último século
experimentalmente questionada pela transformação das práticas artísticas:
O passado foi outrora pensado como imutável. (...) Mas o incessante progresso e a essência
revolucionária da arte ocidental implicou um grau de permanente instabilidade nas obras já
realizadas, impedindo-as de se cristalizarem numa imutável identidade. Não apenas o seu valor,
mas a sua estrutura e o seu sentido se deslocam e transformam retrospectivamente através das
perspectivas abertas pelos sucessivos movimentos de criação artística. Tal como ao longo deste
século o ritmo da sucessão se acelerou, o próprio passado demonstrou uma abertura e um grau
de incerteza que outrora se pensava ser apenas propriedade do futuro. Ao refazerem o presente
artístico, os artistas refizeram o passado de tal modo que os seus predecessores se
transformaram virtualmente em seus contemporâneos. 49
Ao procederem de um modo sistemático a um trabalho de reavaliação da identidade da
noção de arte e das próprias obras de arte do passado, os artistas —de um modo consciente e
assumido ao longo do último século, mas numa relação que é extensível a toda a articulação da
história da arte enquanto narrativa— não operaram apenas uma revisão do valor ou do sentido
das obras, mas de toda a realidade dessas obras. É toda a significação e estrutura ontológica

48 Arthur C. Danto, Beyond the Brillo Box: The Visual Arts in Post-Historical Perspective, p. 90-91.
49 Arthur C. Danto, Beyond the Brillo Box: The Visual Arts in Post-Historical Perspective, p. 90.

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das obras que é refeita por referência a novos predicados tornados pertinentes pelo olhar
formado nas novas concepções de arte. Tal como interpretamos a relação de implicação, não se
trata apenas de um processo de redescoberta retrospectiva de predicados mantidos latentes nas
obras, trata-se de uma efectiva transformação retroactiva da realidade das obras. O movimento
de retroacção aqui implicado permite sustentar uma noção aberta e relacional das realidades
históricas: o passado da arte deixa de ser entendido como um vasto depósito de estilos
ultrapassados —e, segundo o modelo da modernidade, a rejeitar— para passar a ser entendido
como um lugar de redescoberta de estilos e linguagens passíveis de uma permanente
reactualização e reformulação. Torna-se, assim, operativo pensar a produção artística
contemporânea como exigindo ela mesma e de um modo explícito uma relação de implicação
com o todo do passado.
A operatividade desta relação de implicação do presente com o passado e das partes com
o todo —juntamente com a possibilidade de um movimento de implicação de carácter
retroactivamente constitutivo— para a compreensão da realidade das obras de arte
contemporânea é, aliás, demonstrada pelo modo como o trabalho de produção artística de
Duchamp procedeu por um movimento de reconstrução retroactiva das suas próprias obras:
grande parte da importância artística de alguns dos seus trabalhos emblemáticos reside numa
interpretação que o autor só desenvolveu várias décadas após a sua produção inicial, naquilo
que configura um efectivo trabalho de constituição retrospectiva, não apenas do sentido, mas da
realidade das obras. Cremos que este movimento pode ser alargado ao todo das relações entre
todas as obras integrantes de um dado mundo da arte.
Esta noção alargada da teoria da implicação vai, no entanto ser objecto de reformulação
por parte de Danto: contra a concepção de mundo da arte como um todo orgânico capaz de
conferir às obras particulares uma natureza supra-histórica, Danto contrapõe em textos mais
recentes o carácter historicamente comprometido de toda a relação artística: contra a concepção
de mundo da arte como uma comunidade ideal que congregaria cumulativamente todas as
aquisições anteriores e posteriores —tal como, na sequência da intuição de Eliot, Danto
formulara em 1964—, e que implicaria, segundo Danto, uma concepção de obra de arte e de
critérios estéticos supra-históricos, Danto defende agora o carácter historicamente situado de
toda a produção artística, assim como da percepção estética e dos critérios de avaliação. Isto
exige não apenas um questionamento dos limites e da natureza da relação de implicação, mas
também uma reformulação da própria noção de mundo da arte:
A tese era enunciada deste modo:” Ver alguma coisa como arte requer algo que o olho não
pode percepcionar — uma atmosfera de teoria artística, um conhecimento da história da arte: um

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mundo da arte”. Notar-se-á que nesta formulação está implicada uma remissão das obras para o
todo do mundo da arte. Penso agora que aquilo que eu queria dizer era isto: ver alguma coisa
como arte requer um conhecimento dos outros trabalhos com os quais um dado trabalho possui
afinidades, um conhecimento dos outros trabalhos que o tornaram possível. 50
Isto é, não estaríamos diante de um processo de implicação efectivo entre todas as obras
de uma dado mundo da arte, segundo um movimento que se alargaria e enriqueceria no tempo e
na história, mas apenas diante de um processo de revelação de propriedades que já se
encontravam latentes nas obras de arte:
Qualquer que seja o seu significado, ou como quer que tenham sido percepcionadas e
experienciadas pelos seus contemporâneos, as obras de arte estão preenchidas por propriedades
latentes que apenas mais tarde serão reveladas e apreciadas, através de formas de consciência
que os seus contemporâneos nunca poderiam ter antecipado. 51
Esta é, segundo cremos, uma interpretação empobrecedora das potencialidades teóricas
da noção de implicação tal como ela surge nos textos de Eliot e nos primeiros textos de Danto.
Será mais rico admitirmos a noção de história da arte inerente à teoria da implicação: com esta,
a relação entre o passado e o presente, ou entre este e o futuro, abre-se a um interminável
movimento de implicação capaz de potenciar uma noção de obra de arte que, se está mais
exposta ao perigo da transformação histórica, está também —se for capaz de corresponder às
exigências induzidas pela alteração do contexto— mais capaz de se manter como estética e
culturalmente viva ao logo dessa transformação.

Bibliografia:

— DANTO, Arthur C., «The Artistic Enfranchisement of Real Objects: The Artworld », (Journal of
Philosophy, 61, n.º 19, 1964, p. 571-584).
— DANTO, Arthur C., The Transfiguration of the Commonplace: A Philosophy of Art, Harvard
University Press, Cambridge, and Massachusetts, 1981.
— DANTO, Arthur C., Beyond the Brillo Box: The Visual Arts in Post-Historical Perspective,
(1992), University of California Press, Berkeley and Los Angeles, 1998.
— DANTO, Arthur C., After the End of Art: Contemporary Art and the Pale of History, Princeton
University Press, Princeton, New Jersey, 1997.

50 Arthur C. Danto, After the End of Art: Contemporary Art and the Pale of History, p. 165.
51 Arthur C. Danto, Beyond the Brillo Box: The Visual Arts in Post-Historical Perspective, p. 89.

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