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Verbetes [ 325 ]

Apropriação

Fernanda Pequeno

O conceito de apropriação se instaura decisivamente no campo artístico


com a operação que Marcel Duchamp empreende em 1913, ao tomar
posse de um objeto de uso cotidiano, uma roda de bicicleta. Até então, as
apropriações diziam respeito à apreensão culta e consciente de uma arte
ou tradição anterior, e não a objetos prosaicos do mundo contemporâneo.
O começo do século XX, entretanto, caracterizou-se pelo confronto com
inúmeros outros referenciais de mundo, o que modificou profundamente os
pensamentos plásticos e os jogos formais desenvolvidos pelos artistas. Mas,
afinal, o que diferiria a apropriação da simples influência?
Segundo Richard Wollheim, a apropriação levaria em consideração não
somente o desejo do artista, como também os espectadores que apreenderiam
tal operação, o que a caracterizaria como algo essencialmente público,
passível de ser compartilhada, portanto, entre artista e observador. O referido
filósofo britânico, na palestra intitulada “Pintura, textualidade, apropriações”,
enuncia que, quando uma apropriação passa a integrar o conteúdo de uma
pintura, alguma parte da obra que foi exposta ou reforçada pelo motivo ou
imagem apropriado deve fazer referências também ao seu contexto original,
e é nesse sentido que uma apropriação deve conter uma descrição da fonte
em sua totalidade (Wollheim, 2002, p. 204). Dessa maneira, a apropriação
não poderia ser confundida com herança ou influência, pois, enquanto essas
seriam diretas, não processadas, a primeira pressuporia uma escolha, uma
intencionalidade, uma opção.
Contudo, se esse tomar de empréstimo determinado motivo ou imagem
de uma arte mais antiga deve passar necessariamente pela consciência do
artista e precisa estar posto de uma maneira mais ou menos objetiva para que o
público apreenda e assimile não somente a fonte original como também o seu
contexto, descaracterizaríamos as manobras de Braque, Picasso e Duchamp,
visto suas apropriações dizerem respeito ao mundo contemporâneo e não
a uma arte anterior? Antes mesmo da referida operação de Duchamp, as
colagens do cubismo sintético utilizaram-se de jornais, rótulos de garrafa e

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caracteres tipográficos como materiais com possibilidades artísticas. Além


disso, Georges Braque e Pablo Picasso apreenderam as máscaras africanas,
passando a utilizá-las formalmente em uma série de trabalhos.
Enquanto as colagens tomam de empréstimo temas e materiais do mundo
contemporâneo – e não de uma arte anterior – a pintura Les demoiseles
d’Avignon (Pablo Picasso, 1907) faz o mesmo com relação às fontes africanas.
Nesse caso, a apropriação se instaura, embora haja recalque dos significados
simbólicos e contextuais das máscaras. O termo a que o presente verbete se
dedica, assim, se aplicaria nos dois casos, embora Wollheim pudesse argumentar
que não. Nesse sentido, a apropriação é efetivada tanto no deslocamento de
materiais do mundo – estopa, cartas de baralho, pedaços de madeira – para a
produção das colagens cubistas quanto na incorporação formal da arte negra
para a realização de pinturas por parte de Braque e Picasso.
E como poderíamos pensar nos ready-mades de Duchamp – que fariam
um elogio do acaso e da impessoalidade pela negação da ideia de gosto – senão
como apropriação? O cálculo do francês, assim como as manobras cubistas,
dessa maneira, são pontos pacíficos, o primeiro tendo inclusive recebido
a nomenclatura de ready-made – objeto feito por máquina, sem pretensão
estética e que fosse indiferente aos olhos –, que viria a caracterizar boa parte
da busca por uma arte não retiniana e, consequentemente, da produção
artística de Duchamp.
Embora sua primeira apropriação tenha sido realizada em 1913 – a
referida Roda de bicicleta pregada de maneira invertida sobre um banco
de cozinha –, a que veio a público primeiramente e já sob o conceito de
ready-made, criado a posteriori, foi A fonte, de 1917: um urinol, datado
e assinado com o pseudônimo R. Mutt, que causou escândalo quando
enviado a um salão de artes americano e foi, obviamente, recusado. Com
seus procedimentos, Duchamp empreende uma crítica tanto formal quanto
conceitual do objeto de arte, colocando uma série de perguntas quanto à
natureza da obra de arte.
O que caracterizaria uma obra como sendo artística? Arte é tudo o que
o artista faz? A escolha ou o encontro com um objeto por parte do artista
e seu deslocamento para o campo artístico se caracteriza como arte? As
indagações de Marcel Duchamp continuam vivas, pois inauguraram um
projeto estético que questiona a arte enquanto produção de formas e fazer
manual, marcando profundamente a cultura moderna, influenciando não
somente a visualidade, como também a música e a dança – vide John Cage.

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Esse legado foi tamanho que, nos anos 1950, Robert Rauschenberg
realizou suas Combine paintings, que são assemblages realizadas pelo acúmulo
de diversos materiais de diferentes procedências. Enquanto isso, seus colegas
da Pop Art, desejando estabelecer uma comunicação direta com o público,
utilizaram elementos retirados diretamente da cultura de massa e da vida
cotidiana. Para tal, se apropriaram usualmente de imagens da publicidade e
do mundo comercial, como fez Andy Warhol, e de histórias em quadrinhos,
como fez Liechtenstein.
No Brasil, Hélio Oiticica desenvolveu sua Mesa de bilhar, d’après O café
noturno de Van Gogh em 1966 e a apresentou na mostra Opinião 66, no Museu
de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Além do referido ambiente, o artista
carioca utilizou o princípio da apropriação em seus bólides, caracterizados
por ele como transobjetos: objetos e materiais de uso cotidiano – cubas de
vidro, bacias, garrafas, latas, luminárias, caixas d’água – deslocados para o
campo da arte. Ainda no país, o mecanismo foi largamente aplicado por
Nelson Leirner, Farnese de Andrade e outros.
Ao enviar seu ready-made para a Exposição dos Independentes (Nova
Iorque, 1917), embora Marcel Duchamp não esperasse a aceitação do
mictório como obra e desejasse polemizar, não poderia prever o amplo alcance
que sua manobra alcançaria. Dessa maneira, não foi em vão que os editores
da revista October lançaram o livro O efeito Duchamp (Buskirk e Nixon,
1996),1 nem que o teórico Thierry De Duve (1989) indagou, anteriormente,
sobre as ressonâncias do ready-made. Assim, as modificações causadas pelo
procedimento da apropriação foram extremamente profundas, já que essa,
enquanto operação artística, coloca indagações quanto à originalidade, à
autenticidade e à autoria da obra de arte, questionando, a um só tempo, a
instituição-arte e a própria dificuldade enfrentada na tentativa de definição
do que viria a ser a própria arte.

Referências
BUSKIRK, Martha e NIXON, Mignon. The Duchamp effect. Cambridge: MIT Press,
1996.
DE DUVE, Thierry. Resonances du readymade. Nîmes: Jacqueline Chambon, 1989.
WOLLHEIM, Richard. A pintura como arte. São Paulo: CosacNaify, 2002.

1
O livro foi editado na tentativa de mapear o legado de Marcel Duchamp e sua recepção por
parte dos artistas a partir dos anos 1950. Incluindo ensaios e entrevistas de Benjamin Buchloh,
Hal Foster e outros, investiga, inclusive, o efeito Duchamp na arte conceitual.

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