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Marcel Duchamp fala sobre os Ready-Made. A Philippe Collin.

Ed. L’échoppe, Paris.

Trad. Daniel Jablonski (em curso de revisão)

Essa entrevista foi realizada na Galeria Claude Givaudan, em Paris, em 21 de junho de 1967.
Previsto para o programa de Jean-Michek Meurice e Pierre-André Boutang “Images et
idées”, ele foi ao ar logo em seguida no segundo canal da ORTF no quadro do “nouveau
dimanche”. É possível ver um longo trecho em “Naissance de l’esprit Dada” que fez parte da
série “Archives du XXe​ ​ siècle” de Jean-José Marchand e pode ser consultada na biblioteca
do Centro Pompidou e na Inathèque de France, Biblioteca François Mitterand.

A filmagem acontece no subsolo da galeria em frente a uma reprodução em tamanho natural


da “Porta da rua Larrey”.

Marcel Duchamp concedeu graciosamente essa entrevista, aceitando que lhe fizesse
perguntas destinadas ao grande público, sob o risco de ver-me obrigado a passar pelo
advogado do diabo.

Tendo perguntado pelo procedimento a ser utilizado, Preto e Branco ou A Cores, ele se
mostrou ​a priori​ satisfeito que a cor pudesse dar conta das listras verdes e amarelas de sua
gravata cortando o cinza carvão de seu terno.

Ao fim da entrevista, Marcel Duchamp, no primeiro andar da galeria, assinou uma centena
de exemplares “de vanguarda” do cartaz da exposição. (Sua mão direita estendida,
segurando um charuto envolto [surmonté] de uma nuvem de fumaça.)

Logo após, ele partiu a pé pelo Boulevard Saint-Germain, em direção do Carrefour


Bac-Raspail.

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21 de junho de 1967

Galeria Givaudan, Paris

Philippe Collin. — Marcel Duchamp, atualmente duas exposições lhe são dedicadas na
França: uma no Museu de Arte Moderna que é, digamos, retrospectiva, onde há aspectos do
conjunto de sua obra, e essa em que estamos, na galeria Givaudan, que é mais especialmente
dedicada ao que se chama de ready-made. Gostaria que o senhor me dissesse o que entende
por ready-made. É uma expressão inglesa que, que ao fim e ao cabo, não é evidente para
todo mundo.

Marcel Duchamp. — Sim. Quer dizer “Já feito”. Como as roupas de confecção. Cheguei
simplesmente a essa conclusão, faz bastante tempo. Há sempre algo de “já feito” em um
quadro: você não faz os pinceis, você não faz as cores, você não faz a tela. Então, indo mais
longe, retirando tudo, mesmo a mão, não é mesmo?, chega-se ao ready-made. Não há mais
nada que seja feito: tudo é “já feito”. O que eu faço, é que eu assino, simplesmente, para que
tenha sido eu a fazê-los. Simplesmente, eu paro aí, isso é tudo. Terminou. Parece um pouco
engraçado, mas é uma consequência natural, indo até o fim do raciocínio.

O senhor está, em suma, totalmente de acordo com a definição de Breton. Eu cito de


memória: “Um ready-made é um objeto manufaturado, promovido à dignidade de objeto de
arte pela única escolha do artista”. Acho que essa é a fórmula.

Estamos de acordo [​C’est entendu​]: pela escolha do artista. Mas é sempre a escolha do artista.
Mesmo quando você faz um quadro comum [​ordinaire]​ , há sempre uma escolha: você escolhe
suas cores, você escolhe sua tela, você escolhe o tema, você escolhe tudo. Uma obra de arte é,
essencialmente, uma escolha. Aí, é a mesma coisa. É uma escolha de objeto. Ao invés de
fazê-lo, ele já está feito. Essa escolha, evidentemente, dependente das razões pelas quais você
escolhe. Aí, é uma questão bem difícil de explicar: ao invés de escolher algo que te agrada ou
algo que te desagrada, você escolhe uma coisa que não tem nenhum interesse, visualmente,
para o artista. Em outras palavras, [se trata de] chegar a um estado de indiferença em relação a
esse objeto. Se é algo que te agrada, é como as raízes [​racines​] na praia, entende: é estético, é
bonito, é belo, se colocamos isso na sala. Não é de forma alguma a intenção do ready-made. A
intenção do ready-made é livrar-se dessa ideia do belo e do feio. Poderia fazer-se cinquenta
por dia, mas não é verdade. Si você fizer cinquenta por dia, verá que dentro de três ou quatro

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os cinquenta começarão a lhe agradar, ou a lhe desagradar, portanto o resultado não é o que eu
buscava.

Os primeiros ready-made tiveram origem em que ano?

Em 13, em 1913. A primeira coisa é uma roda de bicicleta que coloquei simplesmente sobre
um banco e a observei girar. Nesse caso, além do ready-made havia também o fato de que
girava, isto é, o movimento fazia parte [​était compris​] na ideia do ready-made e foi umas das
primeiras coisas de movimento que me interessou. Em seguida, houve sem movimento, não
era necessário, em seguida houve o porta-garrafas em 14, em seguida em 15-16 houve outros;
mas já não faço há muito tempo, você sabe, eu não faço mais, pois justamente há o perigo de
fazer em demasia, porque qualquer coisa, você sabe, tão feio quanto seja, tão indiferente
quanto seja, se tornará belo e bonito após quarenta anos, pode estar tranquilo quanto a isso...
Então, é muito preocupante para ideia do ready-made.

No procedimento de base do ready-made está a recusa de tudo o que o senhor chama, creio,
de “sedução retiniana”.

É possível, sim, mais isso é outra coisa. É para os quadros. É para o quadro a óleo que,
geralmente, é feito para agradar a retina, não é mesmo?, para ser julgado de acordo com o
efeito retiniano do quadro. Não há mais anedota, não há mais religião, não há mais nada. É
puramente, materialmente falando, o que está sobre a tela que lhe transmite, supostamente, as
sensações estéticas, etc... Aí, eu fico um pouco inquieto quando não há mais nada fora esse
feito retiniano. Eu sou contra, e é por isso que não gosto muito de arte abstrata, porque não
busca mais do que me agradar na retina. Não é o suficiente, na minha opinião. Na época da
religião, era a religião. No época da a anedota, era a anedota. Mesmo os quadros de batalha
tinha um sentido, você me entende. Ao passo que um quadro completamente abstrato não tem
nada a não ser esse aspecto. É um hábito que adotamos de ter sensações extraordinárias com
um quadro abstrato, e com muitas palavras, naturalmente, que não explicam nada. Mas enfim,
as palavras estão aí.

Teria o senhor chegado, desde a época em que fez seus primeiros ready-made, a esse vínculo
estético que temia, ou eles ficaram perfeitamente indiferentes?

Para mim, sim! A mim, sim! Mas enfim, eu entendo que as pessoas procurem frequentemente
um lado agradável, e elas o encontram por hábito. Se você olhar para uma coisa vinte vezes,
cem vezes, você começará a se acostumar, a gostar ou mesmo a detestá-la. Nunca fica

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totalmente​ indiferente. Portanto, é um problema difícil. Sobretudo, para mim, não me
interessa de forma nenhuma olhá-los, você me entende.

Mas como — eu não chegaria a dizer segundo que modo de uso — deve ser olhado um
ready-made?

Ele não deve ser olhado, no fundo. Ele está aí, simplesmente. Tomamos consciência pelos
olhos de que existe. Mas não o contemplamos como contemplamos um quadro. A ideia de
contemplação desaparece completamente. Simplesmente tomar nota que se trata de um
porta-garrafas, ou de que era um porta-garrafas que mudou de destinação [​destination​].

Há todavia uma pesquisa bem grande na apresentação de alguns dos ready-made aqui: o fato
que eles pareçam girar [pivoter] no vazio, o que lhes dá também um movimento.

Não é muito importante. Eles não tem uma destinação absoluta, isto é, uma forma de
apresentação absolutamente necessária. Por exemplo, em Rouen, eles estavam muito mais no
chão do que no ar. Aqui, eles estão no ar. Não há um jeito certo [​Il n’y a pas de vrai​].

E as sombras?

As sombras do ready-made, já é outra combinação. É uma ação de sentido mais ou menos


estético, não é mesmo?, como um Calder. Não se pode ficar sempre na indiferença. O mundo
não é apenas indiferente, afinal de contas!

Essa projeção que o senhor mesmo fez, eu suponho, das sombras dos ready-made nas
paredes, aqui, atende a uma vontade precisa?

Não. Era simplesmente, justamente, sobretudo para os ready-made, uma maneira de mostrar
uma forma diferente, a começar, pela perspectiva de projeção da luz. E também para mudar,
para dar uma alegria a algo um pouco solene, afinal de contas, após o que acabo de lhe contar!

Há um falso problema que gostaria de levantar, no qual muitas pessoas pensam: é que esses
ready-made, que querem ser uma reação contra a noção de objeto de arte clássica, são
finalmente “consumidos” nos museus, nas exposições, são vendidos enquanto objetos de arte.
Não haveria aí uma espécie de contradição?

Há uma contradição absoluta, mas é isso que é agradável, não é mesmo! É de introduzir a
noção de contradição que é uma coisa, justamente, que nunca foi suficientemente explorada,

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você me entende? Ainda mais porque essa exploração não vai muito longe. Se fazemos uma
edição dos ready-made de oito, como uma escultura, como um Bourdelle ou seja quem for,
não é um exagero. Há uma coisa que se chama “múltiplos”, chegando nos cento e cinquenta,
nos duzentos exemplares. Aí, faço uma objeção porque se torna realmente vulgar demais, se
você quiser [​si vous voulez​]: isso vulgariza de uma forma inútil coisas que poderiam ter um
interesse se elas fossem vistas por menos gente. Há gente demais que olha [​regardent]​ no
mundo. É preciso reduzir esse número de gente que olha! Isso, é um outro problema.

Não é o que estamos fazendo hoje em dia!

Não, mas enfim. Assistir televisão não é mesma que olhar de verdade, afinal. É como uma
reprodução: não é a mesma coisa que a coisa ela mesma.

Eu queria justamente falar disso! Como a presença real de um objeto indiferente e, a


princípio, manufaturado — retomo seus termos — se torna necessária? Por que a reprodução
de um ready-made não é o bastante?

Poderia bastar, mas há ainda a terceira dimensão em jogo, posto que não são coisas com duas
dimensões. Com frequência, pode ser: eu de fato fiz um pequeno ready-made que era uma
reprodução utilizada pelos artistas para fazer pequenas paisagens. Lhes damos os modelos e
eles copiam. Então, eu comprei um assim, acrescentei simplesmente duas pequenas manchas,
uma vermelha e outra verde, e chamei isso de ​Farmácia​: para tirá-lo de seu eixo, para fazer
dele uma coisa, para fazer um ready-made justamente.

A posse em nossa casa de um porta-garrafas não assinado pelo senhor não pode ter um
sentido maior?

Era o que eu lhe dizia logo antes: não é a questão visual do ready-made que conta, é o fato
mesmo que ele exista. Ele pode existir na sua memória. Você não precisa vê-lo para entrar no
domínio do ready-made. Compreende o que quero dizer? Não há mais questão de visibilidade,
por assim dizer. Ela é completamente matéria cinzenta. Ela não é mais retiniana.

Há outro aspecto de que gostaria de falar: é o aspecto, digamos, verbal, por falta de um
melhor termo. O senhor, tanto nos títulos de seus ready-made quanto em seus textos, utilizou
e deformou [malaxé] muitas palavras da língua francesa, seja por trocadilhos seja por jogos
de palavras franco-ingleses. Me parece muito importante essa mistura.

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Sim, é muito importante para mim. Em certos casos, acrescentei uma frase. Sobre o
porta-garrafas, eu tinha escrito uma frase quando o realizei, em 14. E como ele se perdeu na
noite dos tempos, eu não me lembro da frase que tinha escrito. Então, os novos
[porta-garrafas] não tem. Da mesma forma, muitas vezes, coloquei títulos assim e, como você
diz, porque acrescenta uma cor, se você quiser, no sentido figurado da palavra. É uma cor
verbal. É isso que me interessa, mas de forma alguma no sentido lógico e prescritivo. Por
exemplo: se fosse um porta-garrafas, eu não escrevo “porta-garrafas”, você pode ficar
tranquilo. Portanto, o que fazemos acrescenta uma dimensão dada pelas palavras que são
como uma palheta com cores. Colocamos uma cor a mais, cores verbais.

E uma e outra são finalmente inseparáveis no título?

Não, pode ser que não aconteça. Mas se acontece, é muito válido para mim.

Gostaria de saber se, apesar de tudo, o senhor tem, entre o conjunto de coisas aqui presentes,
um vínculo. Há para o senhor uma noção de ligação apesar de tudo, quase física, um vínculo
de criador face às suas...

Há sempre um pequeno lado sentimental, evidentemente, que não podemos impedir de entrar
em jogo [​jouer]​ . Mas isso não me impede de dormir de forma alguma, e lhe garanto que não
penso nem um pouco em meus ready-made. Eu nunca pensei tanto quanto agora, porque por
um período de trinta anos ninguém falou a respeito, nem eu tampouco. Portanto, estava um
pouco esquecido, simplesmente, e voltou agora. E logo, em cinco ou seis anos, não se voltará
mais a falar disso.

Por que está se falando nisso agora? No fundo, é porque está se fazendo do senhor, não
contra sua vontade — pois isso não o abala [ébranle] —, um precursor ou mesmo um mestre
de escola [chef d’école].

As escolas são bem entediantes, para começar. Mas então, mestre de escola, é ainda pior, você
compreende! O que está acontecendo, não sabemos, é bastante imponderável. Não se pode
explicar essas coisas. É um fenômeno. As pessoas se interessaram nisso. Elas acharam
provavelmente que havia algo a mais do que uma anedota, ou uma fantasia de um artista um
pouco louco, você compreende. Eu não sou nem um pouco louco, você sabe!

O primeiro ready-made é de 1913. Que impressão isso lhe dá? Cinquenta e quatro anos para
que, afinal, uma obra permaneça.

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Eu não sei, porque há também coisas que fiz antes, mesmo quadros. Há alguns que não vejo
faz quase esse mesmo tempo. Encontraram alguns de 1910-11 que eu não tinha visto há
cinquenta anos. Não foi desagradável. Tem-se uma impressão de frescor; envelheceu,
evidentemente, mas não envelheceu no mal sentido. Não tenho vontade de furá-los ou
rasga-los ou de sumir com eles ou de destruí-los, não! Eles são o que são. Não estou nem um
pouco envergonhado.

O senhor faz o que atualmente?

Eu espero a morte, tão simplesmente. Pense que chega uma idade em que não temos
necessidade de fazer o que quer que seja, a menos que se tenha vontade. Eu não tenho
vontade. Eu não tenho vontade de trabalhar ou de fazer coisa alguma. Eu estou muito bem.
Acho que a vida é tão bela quando não temos nada a fazer, em termos de trabalho, quero
dizer! Mesmo a pintura. As questões da arte já não me interessam mais.

Nunca, para o senhor, a criação foi uma noção de trabalho; sempre foi uma...

Uma pedra no caminho [​une pierre d’achoppement]​ . Acho que o trabalho para viver é uma
imbecilidade. Mas isso, é uma outra questão.

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