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tinta
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A. duas entrevistas
1. 1997
«São pinturas feitas com tinta»
EXPRESSO/Actual 29 Novembro 1997, pp. 20-21. Por ocasião de uma exposição na
galeria Módulo. Republicada em JOSÉ LOUREIRO, Relógio D'Água Editores, 2001.
Pode dizer-se que estas são pinturas sobre bolas e que as anteriores eram sobre
quadrados?
— Na série com quadrados havia uma imagem pré-existente, agora, a ordenação das
bolas sou eu que a faço. As pinturas das «Palavras Cruzadas» referiam-se ainda a
uma imagem, que era retirada «ipsis verbis» de um jornal; estas pode dizer-se que são
pinturas verdadeiramente abstractas porque não se referem a nada da natureza ou das
imagens ou do mundo visível que nos rodeia. São construções e, para mim, a
estrutura da pintura sempre foi muito importante: estas grelhas de bolas estruturam a
pintura.
Quando refere que o modo de fazer é muito importante é porque nem tudo está à
vista?
— Por trás das pinturas estão outras pinturas e o resultado final é um processo de
sobreposição e de amálgama, mais ou menos controlado, de tudo o que se passa. É
engraçado que uma pessoa pode pensar muito nas pinturas antes de as fazer e depois
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de as fazer, mas enquanto as faz o pensamento não ajuda muito. Então há que
dominar aquela matéria, que é viscosa e nos está sempre a fugir.
A matéria é tão importante como a forma?
— Para mim a matéria é extremamente importante e sobretudo as marcas que eu
deixo na matéria, ou com o pincel ou com as impurezas que vão surgindo. São
pinturas feitas com tinta...
Tem que ser óleo?
— O óleo tem características específicas, nomeadamente o facto de ser um material
viscoso, de demorar muito tempo a secar, de se poder sobrepor infinitamente. Tudo
isso faz com que a superfície seja infinitamente modulada e modelada e enriquecida.
Existe no quadro uma estrutura regular de bolas recortadas que estabelece uma
ordem, mas há sempre um balouçar entre a ordem e a desordem.
— Eu sempre tive essa necessidade de ordem. A liberdade para mim não existe,
quando estou a pintar: há que estar sempre a tomar decisões e tomar decisões implica
uma noção muito clara da ordem, embora seja uma ordem aparentemente simples,
porque é uma trama, ou são sucessivas tramas que se sobrepõem e umas ficam mais
visíveis do que outras. Pode acontecer que a última trama seja a mais evidente e que
não vejamos nenhuma das tramas que ficaram para trás, pode acontecer que se vejam
várias tramas sobrepostas.
O que quer dizer que é também um trabalho sobre o espaço.
— Sobre o espaço e sobre a luz. Apesar de não estarmos perante uma janela, há uma
terceira dimensão; basta considerar que conseguimos ver coisas que estão para trás e,
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assim, o facto de a superfície ser plana é ultrapassado. A superfície é planificada, mas
é perfurada, é subvertida.
Voltando à questão da ordem, pode dizer-se que ela não impede o acidente...
— Não. O acidente é extremamente importante para a construção da pintura, mas não
quer dizer que seja o acaso. É justamente o acidente e não o acaso, é integrar o
acidente numa construção.
Ao pintar, usa grelhas perfuradas...
— São grelhas de um papel vegetal mais grosso, como usam os arquitectos, que é
muito resistente e se pode reutilizar várias vezes. As perfurações vão ganhando uma
espessura de tinta que corrói as margens de cada círculo e tornam-se elas próprias
maleáveis, elásticas.
Há aí um jogo entre o feito à máquina e à mão.
— Para mim, a mão e a pincelada estão na essência da pintura, da minha pintura. A
grelha não é um apoio, estrutura a pintura, mas não é uma muleta da pintura. Faz
parte da construção da pintura, mas não pode dissociar-se do que anda à volta. Estas
bolas, estes pontos grandes navegam num magma de tinta elástica, que se espalha e
se retrai. A grelha é ordem mas a ordem é sempre infringida, para voltar a ser ordem,
para ser novamente infringida. Não é um ponto de chegada.
O ritmo é também importante.
— O ritmo e a repetição. A tela é pontuada por uma estrutura muito simples, ritmada,
quase minimalista, mas sem qualquer referência reducionista; trata-se de usar uma
forma simples para se ser claro, para se pintar claramente. Uma pintura para ser clara
não necessita de reduzir os seus meios, mas tem de estar consciente dos seus meios.
O facto de esta estrutura ser simples ajuda à visão daquilo que me interessa, que é
uma superfície coberta de tinta, com uma determinada profundidade, com um
determinado conjunto de camadas sobrepostas.
Trata-se de procurar uma regra?
— Mas a regra está sempre a escapar. Com cada uma das telas tenho de recomeçar
tudo de novo, apesar de haver evidentemente uma relação entre elas. De cada vez,
penso que as coisas vão ser mais fáceis, mas são novamente complicadas e tem de se
recomeçar sempre e sempre e sempre. É impossível estabelecer uma regra. Mesmo
quando se trabalha com uma forma tão simples.
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2. 2001
D e uma exposição para outra - das palavras cruzadas às bolas, e destas ao que
se lhes seguiu -, como é que se estabelece um programa de mudança?
- A palavra programa é demasiado forte. Não existe programa, as coisas vão-se
desenvolvendo e vão-se modificando naturalmente. Houve uma passagem lenta de
bolas outra vez para riscas, que não são propriamente riscas: as bolas foram ficando
reduzidas a linhas, a barras muito estreitas e muito próximas umas das outras, e daí a
superfície da tela começar a parecer-se com um ecrã… A aproximação das barras e a
sua instabilização com os pontos criou uma vibração óptica, que a certa altura
resultou numa espécie de ecrã, muito vibrátil.
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para outros lados. Vejo o meu trabalho mais como uma linha contínua de progressão,
não como uma coisa programada. O ecrã apareceu e agora mais uma vez
desapareceu. Essas barras pontuadas e muito vibráteis transformaram-se em barras
mais rígidas, com uma presença mais forte… Mas continua a haver essa noção de
pintar nos interstícios de qualquer coisa que já está lá, e a desmultiplicação dos
planos continua a ser importante.
Uma nova série não corresponde a uma mudança de programa, mas na sua pintura,
as bolas e depois as barras são de algum modo um sistema, ou a procura de um
método, mesmo que ele não se estabilize numa fórmula.
- O método é, digamos, uma percepção mais genérica das coisas. Isto é: se virmos as
pinturas ao longe, percebemos que há um método por trás delas, mas vendo ao perto,
elas diferenciam-se muito entre si. Essas pequenas diferenças acontecem no acto de
pintar. É impossível estabelecer uma fórmula: não é A mais B igual a boa pintura.
Não pode ser. O método exige lidar com algumas constantes que as pinturas têm, mas
nos interstícios dessas constantes acontecem coisas diferentes.
Há sempre uma grelha rígida, que surge como um suporte que vai ser perturbado…
- A estrutura é sempre muito forte nas minhas pinturas, desde as “Palavras Cruzadas”,
e mesmo antes, nas naturezas mortas; sempre tive uma ideia forte da presença de uma
estrutura, de uma organização muito bem fundamentada. Mas a sequência das
pinturas é sempre perturbada, há uma instabilidade que me interessa. O que é
interessante é ultrapassar e tornar instáveis as regras que às tantas se vão criando na
nossa forma de ver as coisas… As pinturas provocam outras pinturas. Nas que
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estiveram expostas no Palácio da Ajuda houve uma passagem entre quadros em que
as linhas ainda tinham alguns pontos e outros em que, a certa altura, essa pontuação
da linha deixou de ser necessária e as linhas separaram-se. É, digamos, como o
entreabrir de um estore. A certa altura surgiu uma espécie de persiana, de um estore, e
ele abriu-se, mas isso não é provocado…
Como é que numa situação em que existia uma marca pessoal muito forte surgiram
referências a Matisse e a Pollock?
- Esse confronto com os pintores que nos dizem alguma coisa é permanente. É um
diálogo com o passado, embora ao mesmo tempo haja um distanciamento desse
passado. Umas vezes esse diálogo está mais presente, noutras está menos presente, e
tem-me acontecido dialogar com coisas diferentes. O diálogo com o Pollock e com as
redes de drippings sem dúvida que está presente, de uma forma diferente porque a
tinta não é projectada, mas há uma desmultiplicação do espaço, como havia nas
coisas dele, e também existe uma noção de rede: atrás de coisas vêm coisas que se
sobrepõem a outras coisas…
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de fazer. O resultado tem do ser sempre uma coisa superior ao processo. É uma coisa
muito intuitiva. Tem a ver com atingir uma depuração da imagem, haver uma
concentração de meios e não um desperdício de meios, percepcionarmos qualquer
coisa organizada em que as coisas se reforçam e não se anulam… Mas é um fim
sempre provisório.
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isto não significa um isolamento. Há sinais que se detectam e que acabam por entrar
na pintura, mas é de uma forma muito subjectiva, não programada e não dirigista.
Mas não existe uma forte pressão para um artista estabilizar uma linguagem, repetir
uma marca?
- Refazer uma assinatura é uma coisa muito melancólica, muito triste. Para o mercado
é simples porque se reconhece um valor, mas uma pessoa que é consciente dos meios
que utiliza não se pode deixar ficar por aí. Evidentemente que eu creio que tenho uma
linguagem própria mas que não é fechada, é uma linguagem que encolhe e alastra,
que está aberta a variados factores. Mas a linguagem no sentido de um vocabulário é
uma coisa muito pobre, e hoje mais ainda, com toda a diversidade de meios que
temos à nossa disposição. Estabelecer um programa de assinatura, programar uma
assinatura é terrível.
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É trabalhar em constante risco?
- Eu não vejo isto como uma situação de risco. Acho que nos artistas de que gosto é
uma situação inerente à própria criação. Podemos pegar no Rothko, que
aparentemente andou vinte anos a fazer aquelas pinturas, mas no caso de um homem
daqueles jamais poderemos falar numa fórmula. Aquelas pinturas têm uma
intensidade e uma ética… essa ética é inerente ao trabalho de um pintor ou de artista.
Não é só a intensidade da pintura, é a vida a imiscuir-se na pintura. Houve uma altura
em que pensava que as pinturas não deveriam ter nada a ver com a minha vida, mas é
uma coisa impossível de destrinçar.
1995
«Sem palavras»
EXPRESSO/Cartaz, 29 Abril
As três grandes telas quadradas — de dois por dois metros! — dão a ver de imediato
a grelha impressa de um jogo de palavras cruzadas, delimitando e fragmentando a
negro, em primeiro plano, um espaço posterior de cores diversas, profundas e
flutuantes. A quadrícula ocupa toda a superfície, com os seus traços entrecruzados e
os quadrados negros da praxe, recortada de um jornal antes que as palavras se
comecem a inscrever. Com um olhar mais atento, ver-se-á que o rigor da grelha não é
exactamente uniforme: por vezes, a consistência dos bordos desvanece-se; aqui, um
gesto não se limita sob a grade e trespassa a barreira geométrica, ali, a mancha ou
atmosfera de cor devora o limite que a contém.
E afinal, vendo bem, o preto não está bem impresso a preto, é irregularmente traçado,
entre o cinzento e preto, com marcas da mão onde se quereria admitir a presença
uniforme da máquina. A grade negra é também exercício de pintura. Os títulos são
uma muleta acessória, neste caso: os quadros chamam-se Palavras Cruzadas,
seguidos dos seus números de série, e a exposição tem o nome «I. Preto
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esbranquiçado», obviamente referido à referida grelha. Seguir-se-ão, num segundo
andamento, a partir de 6 de Maio, por razões de dimensão da galeria e de intensidade
irradiante da pintura, mais três telas homónimas sob a designação «II. Cinzento
baço», de uma série que chegou às oito versões de igual formato, mas todas muito
diferentes nos valores cromáticos dominantes e também no modo de
«preenchimento» da quadrícula. Talvez não se encontrasse uma mais divertida mão
estendida àqueles que treslêem a velha fórmula de que a pintura é coisa mental ou
que cultivam outros idênticos interditos... E também poucas vezes a presença da
pintura foi tão afirmativa e livre na sua desrazão.
Neste demorado acontecer visível desta pintura está também, para quem segue o
trabalho de J.L., a marca de um outro tempo ainda mais longo que é o da sequência
das suas exposições, permitindo entender melhor, nesse ritmo das procuras
sucessivas, a origem dos quadros actuais. Assim, como directa passagem, impõe-se
imeditamente à memória, de entre um conjunto de telas mostradas na Madeira (na
Porta 33), onde já se incluiam, aliás, as três primeiras versões das Palavras
Cruzadas, um quadro de 1993 que era uma explícita visita a Mondrian através da sua
transcrição materialista e vernácula por Lichtenstein: Não Objectivo I, a partir de
R.L. Não se tratava então, apesar das aparências, de um exercício da citação, mas de
um efectivo confronto com a possibilidade da pintura, reencontando a sua disciplina
num duplo sentido necessário, de lição e domínio da facilidade. Mas a ponte mais
exacta deve fazer-se entre esta e a primeira exposição de J.L., em 1988 na Ether
(«José se quiseres come as sardinhas todas»), em que surgira a público com a
surpresa de uma pintura excepcionalmente desenvolta, que então convidava a referir
Bonnard e Dacosta, no seu intenso prazer dos óleos em que se definia ou adivinhava a
presença de objectos de interiores domésticos. Sucessivos exercícios de contenção,
fragmentação e recuo provisório, permitiram agora renovar o acontecer inteiro da
pintura.
EXPRESSO/Cartaz 20-05-95, p. 17
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1996
Gal. Alda Cortez
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EXPRESSO/Cartaz 01 Junho, p. 18 - Exercício dos meios da pintura e não
«questionamento» sobre os meios, as condições e os fins da pintura, estes novos
quadros de José Loureiro vêem-se como demonstração da vitalidade de uma prática,
que certamente continua a convenção e a tradição da pintura ao mesmo tempo que as
redescobre em cada objecto realizado, para lá de qualquer ideia de «retorno» à
pintura ou à abstracção. O uso de uma espacialidade incerta, de profundidade instável
ou elástica, a eficácia do trabalho da cor que é intrínseco ao jogo das tramas de bolas,
indistintamente programado e aleatório, são elementos em que se conjuga a
materialidade de uma invenção. (Até 22 Jun.)
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1997
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1998
referência e obra reproduzida em ”Os anos 90 nunca existiram”, in Espacio/Espaço
Escrito, Badajoz, nº 15/16, 1998, pp. 106-116.
1999
«Voz, focagem, grão, eco...»
EXPRESSO/Cartaz de 4 Dezembro, pp 26-27
HÁ DOIS anos, José Loureiro mostrou na Módulo os seus trabalhos então mais
recentes e o «Cartaz» de 27 de Novembro ocupou as páginas centrais com um texto
crítico de José Luís Porfírio («assim o pintor atinge uma maturidade onde a
consciência da pintura é mais que um discurso, porque passa pelo ofício do pintor e
se torna na consciência desse ofício») e uma entrevista que teve por título, retirado à
fala do pintor, «São pinturas feitas com tinta».
Dois anos depois, Loureiro apresenta novos trabalhos: oito telas exibidas nas paredes
da galeria e algumas outras, igualmente de grande ou de menor formato, acumuladas
nas respectivas reservas. São fruto da mesma investigação continuada sobre uma
prática chamada pintura, da mesma maturidade e ofício cedo alcançados pelo pintor.
São em grande parte as mesmas telas e já outras, partindo das direcções antes
experimentadas para pesquisas próximas e no entanto substancialmente diferentes,
sem que as soluções antes encontradas se convertam num código adaptável a uma
cadeia ou sistema de produção, sempre trabalhadas, cada uma delas e a série que de
algum modo integram, na instabilidade consistente e consciente de uma procura sem
fim à vista.
«Globo», 1999, ó/t, 192x220 cm (continentes de cor em referência aos papéis colados de Matisse)
Estão lá as barras e bolas, estas mais ocultas, como memória e densidade textural,
mas as faixas paralelas tornaram-se mais estreitas, construindo um campo estriado
mais compacto, com uma definição espacial e lumínica sempre ambígua, onde o uso
particular da cor inviabiliza uma discriminação exacta de planos, entre o que está, na
superfície afinal plana, ilusoriamente mais atrás ou à frente, para cá ou para lá. Com
essa grelha regular como as estrias de um ecrã de televisão coabitam agora,
sobrepondo-se a ela, ou, aliás, divisando-se nos interstícios luminosos entre as faixas,
linhas coloridas oblíquas ou entrecruzadas, atravessando o quadro, e também
rectângulos, zonas ou campos de cor. As composições anteriores, ortogonais e
ordenadas, são agora instabilizadas por essas linhas ou manchas.
Os quadros têm desta vez títulos individualizados – Globo, Focagem, Breve, Eco,
Grão, Voz... – que surgiram depois de pintados, ou mesmo já na galeria, escolhidos
os oito da montagem final. Eles não descrevem nem referem uma intenção ou
projecto, são um acto posterior de baptismo, diz o pintor, identificando um ponto de
chegada, diferenciando-os entre si, como se ao nomeá-los «estivesse a sintonizar
qualquer coisa» neles presente. O título Globo, a tela maior, surgiu associado à ideia
de continentes de cor – José Loureiro acrescenta que essas zonas de cor são
referência directa a uma grande colagem de guaches recortados de Matisse vista em
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Londres. Atribui à retrospectiva de Pollock o surgir das linhas oblíquas e
entrecruzadas dos quadros recentes. Refere que alguns títulos (Grão, Focagem)
reconhecem a proximidade das suas grelhas de cor cinza com as linhas do ecrã de
televisão.
2001
"Linhas de vida"
EXPRESSO/Actual de 22 Dezembro
Para quem acompanha o trabalho de José Loureiro através das sucessivas exposições,
cada uma das suas telas é uma pintura plenamente independente no seu existir
individual e também um momento de um devir contínuo, um elo numa cadeia de
realizações sequenciadas. Cada quadro é, ao mesmo tempo, imprevisível na realidade
da sua configuração material e é sustentado pela contiguidade e renovação dos
«problemas» postos pelo trabalho anterior do pintor. Em vez de encontrarmos
variações sobre uma solução experimentada (o desdobramento de uma fórmula ou
sistema que caracterizaria uma fase de trabalho, como é mais frequente),
surpreendemos, de tela em tela, os passos de um caminho que se explora e que
permanece em aberto, desconhecido.
O livro este ano publicado pelo artista na Relógio d'Água põe à disposição do
espectador menos assíduo todo o corpo de trabalho, desde 1994 e com alguns passos
da produção anterior, que conduziu à exposição actual, mesmo se no caso da pintura,
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e da sua em especial, nenhuma reprodução se substitui ao confronto visual e físico
com a materialidade sensível do quadro.
Todos estes quadros, de grande ou muito grande formato, com fundos de cor mais ou
menos irregularmente lisos, são atravessados por riscas negras horizontais e paralelas,
agrupadas em número variável mas com distâncias constantes entre si (como uma
pauta, sugeriu o pintor). Formam barras transversais de diferente largura, dispostas
em lugares diversos da tela. Em quase todos, esse espaço irregularmente dividido é
atravessado por linhas verticais, por vezes oblíquas, de diferentes cores e espessuras
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que o percorrem de modos infinitamente variáveis, sempre mais ou menos
acidentados e fragmentados: fluem (escorrem) rapidamente, alargam-se em barras
horizontais, quebram-se, serpenteiam, cruzam-se, conflituam entre si, conhecem
variações tonais, retomam uma direcção ascendente, interrompem-se, etc. Nesse
traçado de sugestão musical a matéria pictural imobiliza-se e permanece líquida e
vibrante, registando como um sismógrafo a instabilidade do que em cada quadro,
como na vida, é regra ou surpresa. Sustenta-se em cada quadro um olhar inesgotável,
no qual a leitura das formas não se encerra num mera inteligência formal, sem que se
abram espaços de representação ou de metáfora (que os títulos não autorizam). São
linhas de vida que se percorrem, de pintura e de vida, inseparavelmente.
2002
EXPRESSO/Actual de 13/7/2002
«O lugar da pintura»
Pinturas e desenhos recentes de José Loureiro em Serralves
Numa entrevista recente, Luc Tuymans, um pintor «terminal» que Serralves já expôs,
cita uma «boutade» de Catherine David, comissária da Documenta de 97, segundo a
qual a pintura é académica quando é boa e reaccionária quando é má. E acrescenta:
«Tudo isto é extremamente simplista, como a maior parte dos discursos actuais sobre
o carácter obsoleto da pintura, discursos vazios de sentido, porque a pintura é muito
mais do que um médium» (Artpress, Paris, Julho-Agosto). Para o discurso
institucional, a pintura é, quando muito, um «meio expressivo» entre outros meios de
comunicação, ou de produção de imagens, no seio da abstracção «Arte em geral»
onde se dissolvem as práticas artísticas concretas. De vez em quando, já duas vezes
este ano, as instituições francesas redescobrem a vitalidade da pintura em mostras
compungidas a que chamam «Urgent Painting» (Museu de Arte Moderna de Paris) ou
«Cher Peintre» (agora no Centro Pompidou).
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A apresentação em Serralves de José Loureiro, «um dos pintores portugueses cuja
obra mais se tem vindo a afirmar desde finais da década de 80», como informa o
museu, começa por levantar problemas de programação e enfrenta esse
condicionamento discursivo sobre o carácter obsoleto da pintura. O espaço que lhe
foi atribuído, habitualmente ocupado por instalações e vídeos, não é apropriado a
uma obra onde é precisamente substancial a distância entre pintura e imagem, que
não pode confundir-se com a eventual diferença abstracção-figuração. A deficiente
iluminação (talvez já em parte corrigida com a abertura de uma janela) dificulta uma
contemplação que actue sobre a superfície do quadro para percorrer (decifrar?) tudo o
que nela se expõe e oculta, a flutuação do seu espaço virtual, o tempo inscrito nos
materiais, a opacidade ou vibração da cor, etc.
Numa segunda sala, uma nova série de desenhos dá a conhecer uma produção
paralela à pintura, como um campo experimental onde se ensaiam ideias de pintura,
sem que esta nunca seja a aplicação de um projecto prévio. Esses desenhos reabrem
um diálogo entre figuração e abstracção que tem estado sempre presente no trabalho
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do pintor: sobre as linhas horizontais de uma mesma pauta regular surgem silhuetas
de corpos humanos, sobrepostas e variavelmente descentradas ou flutuantes na página
branca. As linhas de contorno repetidas identificam o uso de moldes recortados a
partir de fotografias, contornados com a irregularidade da mão (de novo a regra e o
acidente). São mostrados sem título, mas em alguns desses desenhos, identificados
pelo artista, estão, por exemplo, Mark Rothko e Merce Cunningham. É imprevisível,
também para o próprio artista, o que poderá, ou não, decorrer desta «experiência»,
num trabalho que sempre se reinventa sobre os provisórios limites de uma prática
viva.
2003
Expresso/Actual 08 Fev.
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2005
«O quadro negro»
EXPRESSO/Actual de 20 Agosto
Entra-se na Capela da Misericórdia pela porta lateral que dá para o largo da Matriz,
para o mar e a casa branca e azul do Centro Cultural. A pequena porta recorta a
pintura em frente, que ao entrarmos se amplia até aos seus imensos 3,70 x 2,96
metros, de um negro brilhante, aparentemente liso e uniforme, estriado por linhas
brancas e cinzentas que a percorrem horizontalmente de bordo a bordo.
Poderia ser um céu nocturno e o movimento das estrelas quando uma fotografia as
regista numa longa exposição, mas o negro e as linhas claras são aqui poderosamente
materiais, e diante do quadro (completo em si mesmo, não um fragmento de algo que
os bordos recortem) suspendem-se as tentativas de encontrar uma referência
conhecida que o explique. Ele basta-se a si mesmo, com a sua imensa superfície
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vertical e as estrias quase horizontais que a atravessam, entre a regularidade exacta e
ao mesmo tempo vibrátil da sua estrutura equilibrada e a fractura subtil das duas
oblíquas desiguais.
No catálogo, um texto de João Miguel Fernandes Jorge refere esta mesma tela mas
com diferentes configurações (a segunda vez já num Post Scriptum que revê a
observação inicial). É uma outra pista sobre o trabalho do pintor, que insatisfeito com
o seu quadro o refaz e depois o recomeça, já inteiramente diferente. Nesse passo de
avaliação crítica do seu quadro, no próprio processo de o fazer, está inscrita a questão
decisiva dos critérios que distinguem a qualidade intrínseca de um obra (quando a
ausência ou indiferença dos critérios de qualidade se tornou para muitos uma regra).
O que teria falhado nessa obra que passava à pintura sobre tela e ao muito grande
formato a linha de trabalho gerada pelas grelhas de rectângulos que vemos na série
paralela de pinturas sobre papel, na variabilidade aleatoriamente experimentada da
sua estrutura pré-definida, igualmente expostas e excelentes em si mesmas? O que é,
como dizer, a excelência de uma pintura? (foto: Sem título, 2005, guache sobre papel)
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2007
«Equilíbrios instáveis»
EXPRESSO/ACTUAL de 17 de Março
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Não é a primeira vez que esse encontro acontece nem ele é acidental, tratando-se de
um pintor que põe em jogo meios de organização sistemática do espaço do quadro,
com formas modulares, padrões, barras e outros elementos de repetição estrutural - e
também, para lá da fronteira movediça do que se chama abstracção, matrizes
recortadas de figuras e objectos, adoptando a disciplina da variação mecânica em
situações de representação figurativa.
Na passagem para as telas actuais, a regularidade modular deu lugar à malha variável
de rectângulos e quadrados a preto e branco que tem a marca especulativa de
Mondrian, mas sem a economia e equilíbrio duma tensão geométrica que procura o
universal e o intemporal. Todas as hipóteses simbólicas da janela, da cruz, da árvore,
etc., são também anuladas pela recusa da simetria e das relações de proporção que
Mondrian designava como «trágicas». Em vez da contemplação da forma plástica que
busca a harmonia dum tempo messiânico, de uma ideia da «aparição abstracta das
coisas» alheia à aparência natural, estamos perante o acontecer material da pintura,
com as impurezas, os acidentes, os acasos, o tempo e os modos do fazer que se
interpõem entre o projecto e a decisão de chegar ao fim de um quadro. Numa outra
tela, de ainda maior formato, a inscrição de um rectângulo muito alongado e também
vacilante, numa breve deslocação lateral, pode ver-se como um encontro com Barnett
Newman. Não é citação, apropriação ou simulacro, nem vem prolongar o sentido
metafísico dos eixos verticais do pintor americano, sem certamente se recusar a ser
uma homenagem prestada a um dos herdeiros de Mondrian. Duas telas mais, muito
diferentes (e toda a exposição simultânea no espaço Chiado 8 que se prolonga até dia
23), situam esses encontros com o que já é história, sem deixar de ser pintura viva, no
âmbito do itinerário pessoal dum grande pintor dos nossos dias. Entretanto, falar de
«regresso da pintura» não é mais do que ruído.
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C. Notas 1988-1993
Expresso/Cartaz, 29 Outubro, p. 20
Expresso/Cartaz, 26 Novembro, p. 20
Guaches de José Loureiro, cuja primeira pintura sobre tela foi uma muito recente
revelação da galeria Ether. A seu propósito, como de Miguel Branco, por exemplo, se
tem falado dos “netos de Dacosta” e em algumas figuras ou na sensualidade de
texturas ou em opções cromáticas se pode reconhecer pelo menos a admiração por
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ele, um humor próximo. O discurso é aqui mais livre que na anterior exposição, onde
os quadros deixavam supor um gosto do precioso e do exercício virtuosístico,
sobreposto ao prazer da descoberta da pintura. (Até 4 Dez.)
Expresso/Cartaz, 20 Abril
Expresso/Cartaz, 8 Maio
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repetição de mão esquerda de um motivo tomado a uma figura de BD, ou, noutro
caso, de um esquema de pintura matissiana; noutros desenhos ainda (posteriores?) o
«tema» banaliza-se deliberadamente e multiplica-se em fragmentos, num mesmo
caminho de negação da habilidade manual e do projecto. É uma via de interrogações,
certamente em busca de um limiar que sirva de novo ponto de partida.
Todos diferentes, todos actuais, catálogo da III Bienal de Arte AIP’98, p. 73, Vila da Feira, 1998
«As pinturas provocam outras pinturas» (entrevista), in JOSÉ LOUREIRO, Relógio D'Água
Editores, Lisboa, 2001
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