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José Loureiro: pinturas feitas com

tinta

Bosão de L, 2011, 1626 x 540 cm


«Uma pintura para ser clara não necessita de reduzir os seus meios, mas tem de
estar consciente desses meios», 1997

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A. duas entrevistas

1. 1997
«São pinturas feitas com tinta»
EXPRESSO/Actual 29 Novembro 1997, pp. 20-21. Por ocasião de uma exposição na
galeria Módulo. Republicada em JOSÉ LOUREIRO, Relógio D'Água Editores, 2001.

Idade: 36 anos. Há dez, desde a primeira exposição [1988, Ether: “José se


quiseres come as sardinhas todas”], pintor a tempo inteiro, e agora um dos
nomes maiores da actualidade. Fragmentos de uma conversa sobre pintura:

Para além de ser sobre tela, «sobre» que é esta pintura?


— É uma pintura sobre a pintura. Usando os meios da pintura e chegando a uma
conclusão.
Já chegou a uma conclusão?
— Não. Cheguei a conclusões provisórias, no ano passado cheguei a algumas
conclusões, este ano cheguei a outras.
Cada tela é uma conclusão?
— Num certo sentido é, mas é uma conclusão que se prolonga por outras telas. Nada
é concludente. Quando se fizer uma pintura absolutamente concludente, isto acaba.
Estas são pinturas que têm a ver com a disposição da tinta na superfície da tela,
porque o processo de fazê-las é extremamente importante.

Pode dizer-se que estas são pinturas sobre bolas e que as anteriores eram sobre
quadrados?
— Na série com quadrados havia uma imagem pré-existente, agora, a ordenação das
bolas sou eu que a faço. As pinturas das «Palavras Cruzadas» referiam-se ainda a
uma imagem, que era retirada «ipsis verbis» de um jornal; estas pode dizer-se que são
pinturas verdadeiramente abstractas porque não se referem a nada da natureza ou das
imagens ou do mundo visível que nos rodeia. São construções e, para mim, a
estrutura da pintura sempre foi muito importante: estas grelhas de bolas estruturam a
pintura.
Quando refere que o modo de fazer é muito importante é porque nem tudo está à
vista?
— Por trás das pinturas estão outras pinturas e o resultado final é um processo de
sobreposição e de amálgama, mais ou menos controlado, de tudo o que se passa. É
engraçado que uma pessoa pode pensar muito nas pinturas antes de as fazer e depois

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de as fazer, mas enquanto as faz o pensamento não ajuda muito. Então há que
dominar aquela matéria, que é viscosa e nos está sempre a fugir.
A matéria é tão importante como a forma?
— Para mim a matéria é extremamente importante e sobretudo as marcas que eu
deixo na matéria, ou com o pincel ou com as impurezas que vão surgindo. São
pinturas feitas com tinta...
Tem que ser óleo?
— O óleo tem características específicas, nomeadamente o facto de ser um material
viscoso, de demorar muito tempo a secar, de se poder sobrepor infinitamente. Tudo
isso faz com que a superfície seja infinitamente modulada e modelada e enriquecida.

Existe no quadro uma estrutura regular de bolas recortadas que estabelece uma
ordem, mas há sempre um balouçar entre a ordem e a desordem.
— Eu sempre tive essa necessidade de ordem. A liberdade para mim não existe,
quando estou a pintar: há que estar sempre a tomar decisões e tomar decisões implica
uma noção muito clara da ordem, embora seja uma ordem aparentemente simples,
porque é uma trama, ou são sucessivas tramas que se sobrepõem e umas ficam mais
visíveis do que outras. Pode acontecer que a última trama seja a mais evidente e que
não vejamos nenhuma das tramas que ficaram para trás, pode acontecer que se vejam
várias tramas sobrepostas.
O que quer dizer que é também um trabalho sobre o espaço.
— Sobre o espaço e sobre a luz. Apesar de não estarmos perante uma janela, há uma
terceira dimensão; basta considerar que conseguimos ver coisas que estão para trás e,
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assim, o facto de a superfície ser plana é ultrapassado. A superfície é planificada, mas
é perfurada, é subvertida.
Voltando à questão da ordem, pode dizer-se que ela não impede o acidente...
— Não. O acidente é extremamente importante para a construção da pintura, mas não
quer dizer que seja o acaso. É justamente o acidente e não o acaso, é integrar o
acidente numa construção.
Ao pintar, usa grelhas perfuradas...
— São grelhas de um papel vegetal mais grosso, como usam os arquitectos, que é
muito resistente e se pode reutilizar várias vezes. As perfurações vão ganhando uma
espessura de tinta que corrói as margens de cada círculo e tornam-se elas próprias
maleáveis, elásticas.
Há aí um jogo entre o feito à máquina e à mão.
— Para mim, a mão e a pincelada estão na essência da pintura, da minha pintura. A
grelha não é um apoio, estrutura a pintura, mas não é uma muleta da pintura. Faz
parte da construção da pintura, mas não pode dissociar-se do que anda à volta. Estas
bolas, estes pontos grandes navegam num magma de tinta elástica, que se espalha e
se retrai. A grelha é ordem mas a ordem é sempre infringida, para voltar a ser ordem,
para ser novamente infringida. Não é um ponto de chegada.
O ritmo é também importante.
— O ritmo e a repetição. A tela é pontuada por uma estrutura muito simples, ritmada,
quase minimalista, mas sem qualquer referência reducionista; trata-se de usar uma
forma simples para se ser claro, para se pintar claramente. Uma pintura para ser clara
não necessita de reduzir os seus meios, mas tem de estar consciente dos seus meios.
O facto de esta estrutura ser simples ajuda à visão daquilo que me interessa, que é
uma superfície coberta de tinta, com uma determinada profundidade, com um
determinado conjunto de camadas sobrepostas.
Trata-se de procurar uma regra?
— Mas a regra está sempre a escapar. Com cada uma das telas tenho de recomeçar
tudo de novo, apesar de haver evidentemente uma relação entre elas. De cada vez,
penso que as coisas vão ser mais fáceis, mas são novamente complicadas e tem de se
recomeçar sempre e sempre e sempre. É impossível estabelecer uma regra. Mesmo
quando se trabalha com uma forma tão simples.

Poderá dizer-se que o seu trabalho é formalista?


— Não, de modo nenhum. Apesar da forma ser muito importante, o formalismo
implica que não haja um sentido, implica um arranjo — é apenas um arranjo — e
estas coisas têm um conteúdo, que não é evidente, que não é óbvio nem é para ser
óbvio. Uma pintura é tanto mais interessante quanto não for óbvia. O formalismo tem
uma conotação pejorativa, quer dizer que a forma se esgota na forma. Mas estas
pinturas não se esgotam nesta forma. Apesar de pensar muito nos materiais, também
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não basta pensar só nos materiais...
Falou num sentido ou conteúdo... Tem a ver com a emoção?
— Claro. Estas pinturas são para ser experenciadas, tem de se sentir qualquer coisa à
frente delas, tem que se estar algum tempo à frente delas, tem que se usufrui-las...
Mas o sentido delas não é imposto.
Como se situa perante a convicção de que outras linguagens, herdadas do «ready
made», são mais contemporâneas?
— Duchamp já faz parte de uma tradição, já passaram muitos anos sobre a
aproximação que ele fez da arte, e neste momento percebe-se que é um caminho
paralelo. A pintura pode ter sido nalgum momento abalada por essa pressão, mas
acho que podemos continuar a pintar calmamente, sabendo que as outras linguagens,
o vídeo e a instalação, são «media» paralelos à pintura. É completamente
despropositado dizer que são «media» mais avançados... apenas permitem outras
possibilidades. Como a pintura tem uma tradição maior, de muitos séculos, pode
haver quem pense que é redundante estar a pintar. Mas não, de maneira nenhuma, a
pintura não está nada estafada, é apenas um «medium» que se pode utilizar e, hoje,
cada vez mais livremente. Muitas pessoas desistiram ou põem problemas em relação
à pintura, mas eu sinto-me mais livre. Por que não fazer pinturas com bolas, usar
pincéis e fazer o que nos apetece?
Trata-se de aceitar e de continuar uma tradição?
— Claramente. Toda a pintura que está para trás é importante. Quando pinto,
continuo a pensar, por exemplo, no que levava Cézanne a pintar constantemente a
montanha de Sainte Victoire. O que leva uma pessoa a pintar constantemente o
mesmo motivo? Acho que isso é a essência da pintura. É ter essa persistência, esse
rigor. A arte corre paralela à vida, é um processo inesgotável.

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2. 2001

«As pinturas provocam outras


pinturas»
3 de Março de 2001
Publicado em JOSÉ LOUREIRO, Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2001

D e uma exposição para outra - das palavras cruzadas às bolas, e destas ao que
se lhes seguiu -, como é que se estabelece um programa de mudança?
- A palavra programa é demasiado forte. Não existe programa, as coisas vão-se
desenvolvendo e vão-se modificando naturalmente. Houve uma passagem lenta de
bolas outra vez para riscas, que não são propriamente riscas: as bolas foram ficando
reduzidas a linhas, a barras muito estreitas e muito próximas umas das outras, e daí a
superfície da tela começar a parecer-se com um ecrã… A aproximação das barras e a
sua instabilização com os pontos criou uma vibração óptica, que a certa altura
resultou numa espécie de ecrã, muito vibrátil.

Há uma série que se substitui a outra, ou os


quadros sucedem-se sem existir um corte?
- São mais os quadros a sucederem-se, apesar de
nas exposições haver alguma unidade entre as
pinturas. Não penso que tenho uma exposição e
faço um bloco de quadros que traz alguma coisa
de novo, e a seguir outro bloco que adianta mais
alguma coisa. Não tem nada a ver com isso. A
pintura é um processo de constante mutação e às
vezes de mutações imperceptíveis, de que a certa
altura não nos apercebemos muito bem mas que
se tornam preponderantes; às vezes acontecem
reenvios, ou há pinturas que vão mais adiantadas

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para outros lados. Vejo o meu trabalho mais como uma linha contínua de progressão,
não como uma coisa programada. O ecrã apareceu e agora mais uma vez
desapareceu. Essas barras pontuadas e muito vibráteis transformaram-se em barras
mais rígidas, com uma presença mais forte… Mas continua a haver essa noção de
pintar nos interstícios de qualquer coisa que já está lá, e a desmultiplicação dos
planos continua a ser importante.

Uma nova série não corresponde a uma mudança de programa, mas na sua pintura,
as bolas e depois as barras são de algum modo um sistema, ou a procura de um
método, mesmo que ele não se estabilize numa fórmula.
- O método é, digamos, uma percepção mais genérica das coisas. Isto é: se virmos as
pinturas ao longe, percebemos que há um método por trás delas, mas vendo ao perto,
elas diferenciam-se muito entre si. Essas pequenas diferenças acontecem no acto de
pintar. É impossível estabelecer uma fórmula: não é A mais B igual a boa pintura.
Não pode ser. O método exige lidar com algumas constantes que as pinturas têm, mas
nos interstícios dessas constantes acontecem coisas diferentes.

Qual é a importância dos estudos desenhados? Que relação há entre os desenhos e


as pinturas?
- Jamais consegui aplicar o desenho a uma pintura. É totalmente impossível, porque
os materiais mudam. O desenho é muito mais imediato, enquanto a pintura lida com
materiais mais pesados, que exigem uma maior distância, e a passagem do desenho
para a pintura é sempre muito problemática. Digamos que eu faço uma série de
desenhos, guardo uma ideia genérica, que é como um conjunto de preocupações, e
depois a passagem para a pintura é muito aleatória.

Quando pinta, trabalha em vários quadros ao mesmo tempo?


- Não. Tenho vários quadros à minha frente, mas pinto um de cada vez. Quando deixo
de pintar um quadro e passo para outro é porque, momentaneamente, não sei o que
hei-de fazer com ele. Mas sei que há coisas que não estão bem, há coisas que foram
massacradas - tenho de descansar dessa pintura e passo para outra. Tenho a ideia
muito clara de que cada quadro tem de ser pintado sozinho. Não dá para passar cores
de um quadro para outro, nada disso.

Há sempre uma grelha rígida, que surge como um suporte que vai ser perturbado…
- A estrutura é sempre muito forte nas minhas pinturas, desde as “Palavras Cruzadas”,
e mesmo antes, nas naturezas mortas; sempre tive uma ideia forte da presença de uma
estrutura, de uma organização muito bem fundamentada. Mas a sequência das
pinturas é sempre perturbada, há uma instabilidade que me interessa. O que é
interessante é ultrapassar e tornar instáveis as regras que às tantas se vão criando na
nossa forma de ver as coisas… As pinturas provocam outras pinturas. Nas que

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estiveram expostas no Palácio da Ajuda houve uma passagem entre quadros em que
as linhas ainda tinham alguns pontos e outros em que, a certa altura, essa pontuação
da linha deixou de ser necessária e as linhas separaram-se. É, digamos, como o
entreabrir de um estore. A certa altura surgiu uma espécie de persiana, de um estore, e
ele abriu-se, mas isso não é provocado…

Como é que numa situação em que existia uma marca pessoal muito forte surgiram
referências a Matisse e a Pollock?
- Esse confronto com os pintores que nos dizem alguma coisa é permanente. É um
diálogo com o passado, embora ao mesmo tempo haja um distanciamento desse
passado. Umas vezes esse diálogo está mais presente, noutras está menos presente, e
tem-me acontecido dialogar com coisas diferentes. O diálogo com o Pollock e com as
redes de drippings sem dúvida que está presente, de uma forma diferente porque a
tinta não é projectada, mas há uma desmultiplicação do espaço, como havia nas
coisas dele, e também existe uma noção de rede: atrás de coisas vêm coisas que se
sobrepõem a outras coisas…

Tratou-se de confrontar o seu sistema de trabalho com o de outros artistas?


- É muito perigoso quando a pintura se transforma num sistema. Ser sistemático é
diferente de ter um sistema. Eu sou muito sistemático, mas procuro o confronto. Acho
que basta ter apenas uma ideia, uma ideia muito forte, mas depois há que ter a
capacidade de confrontar essa ideia com objectos estranhos, há que introduzir a
estranheza na ideia. Isso para mim é muito presente. Estou sempre à procura da
estranheza, de introduzir elementos que descompõem, que se desviem de qualquer
previsibilidade. Esse é o perigo de usar uma grelha, mas por outro lado é um desafio -
torna-se um desafio subverter esse sistema: tornar a rigidez uma coisa leve, etérea,
ora mais pesada ora menos, contornar a rigidez.

E reconhece a proximidade com algumas pinturas do Brice Marden?


- Acho que essa aproximação obviamente se pode estabelecer, mas o próprio Brice
Marden fala do Pollock em relação às suas pinturas. Quando eu separo as linhas e
elas se transformam em barras, como há uma distância maior entre elas, elas
produzem um espaço novo onde podem acontecer outras coisas, e essas pequenas
linhas que se introduzem entre as barras e que se vão continuando empurram essas
barras. O espaço está dividido e está segmentado, esse espaço pode ser percorrido por
grandes pinceladas horizontais ou por linhas verticais.

Mas acho que a aproximação ao Brice Marden é acidental; acontece de modo


fortuito porque tem uma origem diferente. Quando é que uma pintura está acabada?
- Uma pintura está acabada quando se chegou a uma determinada organização do
espaço em que as coisas funcionam entre si, e já não são o somatório dos processos

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de fazer. O resultado tem do ser sempre uma coisa superior ao processo. É uma coisa
muito intuitiva. Tem a ver com atingir uma depuração da imagem, haver uma
concentração de meios e não um desperdício de meios, percepcionarmos qualquer
coisa organizada em que as coisas se reforçam e não se anulam… Mas é um fim
sempre provisório.

Sente-se a trabalhar no interior de um campo a que se poderia chamar abstracção?


- Creio que não, mas não é uma coisa em que eu pense muito. Podemo-nos perguntar
se a abstracção existe realmente, e talvez exista do ponto de vista formal, mas muitas
vezes um espaço não organizado que não sugere uma figura pode sugerir uma coisa
espectral, sugere figuras que não são figurações. Realmente não me considero um
pintor abstracto nesse sentido estrito. A prova é o surgimento daquelas figuras nas
pinturas de 99 que foi puramente fortuito: surgiram acidentalmente e sem qualquer
problema, meteram-se lá, e pode ser que se metam outra vez. Aparentemente as
últimas pinturas voltam a ser mais abstractas (entre aspas), mas não vejo isto como
uma organização fria, por elementos... As grelhas e as barras paralelas não
representam nada mas são de certa forma uma figura, que ao princípio não tem nome
e que, pelos vistos, a partir de certo momento faz apelo a um nome, porque não são
verdadeiramente abstractas. Acho que nunca pensei nessa questão da abstracção e da
figuração porque sempre circulei entre as duas. A abstracção não superou a figuração,
e esse sentido finalista da história é que foi absolutamente superado.

O que significa para si a mudança de década (e também de século), já que há o


hábito de ligar um artista a uma certa década, ou à datação de uma determinada
problemática?
- Essa datação das problemáticas sempre me fez muita impressão. É uma espécie de
limitação que nos é imposta. Às vezes até terá sido positiva, quando pensamos
naqueles pintores russos do princípio do século, em toda aquela energia, em todo
aquele momento explosivo de novas coisas que surgiram. Apetecia ter feito parte de
uma coisa dessas. Hoje em dia o espaço está tão estilhaçado, a ideia de vanguarda é
uma coisa tão desactualizada… Tenho uma noção do que se está a passar no
momento e do que se passou para trás, mas nunca pensei nas minhas pinturas como
ligadas a uma década. Não tenho a consciência de que seja um artista da década de
90, ou 80, acho isso uma coisa absolutamente secundária no meu caso. É uma noção
muito restritiva porque temporalmente uma década é uma coisa tão escassa… É um
estreitamento, uma concentração do tempo que não é produtiva. Eu desenho todos os
dias… As minhas preocupações são subjectivas e individuais, sou individualista
nesse aspecto. Procuro ver o que se passa à minha volta, mas depois a criação da
pintura, os desenhos, todo esse corpo de trabalho, é gerido individualmente. A forma
como eu encaro a pintura é uma coisa muito solitária, exige uma atenção diária, mas

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isto não significa um isolamento. Há sinais que se detectam e que acabam por entrar
na pintura, mas é de uma forma muito subjectiva, não programada e não dirigista.

De que artistas se sente mais próximo?


- Os meus gostos em relação a outros pintores são muito variados. É impossível
especificar, interesso-me por muitas coisas; gosto tanto do Pollock como do
Mondrian, ou do Rothko, gosto muito dos expressionistas abstractos americanos, por
exemplo, mas também de muitas outras coisas. Lembro-me de que quando comecei a
expor tinha muito presente o meu gosto pelo Soutine, que era alguém que estava lá
longe… O meu gosto flutua, embora seja muito ciente dos meus gostos.

E agora assume essa relação com os expressionistas abstractos americanos?


- Não se trata de assumir… Houve uma aproximação a certo momento em relação
especificamente ao Pollock. Aquela coisa enrodilhada agrada-me, mas é uma coisa
que não é apenas traduzida na pintura dele. Por exemplo, no Soutine, naquelas
pinturas tão mal pintadas (entre aspas)… gosto dessa coisa pouco pura… O meu uso
de grelhas é sempre no sentido não direi de conspurcá-las, mas de as sujar… Naquela
minha pintura do Mondrian a partir de Lichtenstein, a ideia que estava presente era a
de fazer linhas tortas, pura e simplesmente; era pôr um bocadinho de Soutine numa
linha daquelas… É uma coisa retorcida. Mas, por outro lado, também gosto de coisas
muito claras. Flutuo: há um campo muito plástico de flutuação na minha pintura.

Mas não existe uma forte pressão para um artista estabilizar uma linguagem, repetir
uma marca?
- Refazer uma assinatura é uma coisa muito melancólica, muito triste. Para o mercado
é simples porque se reconhece um valor, mas uma pessoa que é consciente dos meios
que utiliza não se pode deixar ficar por aí. Evidentemente que eu creio que tenho uma
linguagem própria mas que não é fechada, é uma linguagem que encolhe e alastra,
que está aberta a variados factores. Mas a linguagem no sentido de um vocabulário é
uma coisa muito pobre, e hoje mais ainda, com toda a diversidade de meios que
temos à nossa disposição. Estabelecer um programa de assinatura, programar uma
assinatura é terrível.

Há uma grande diversidade nas suas últimas pinturas.


- Por exemplo, quando as linhas se despenham através daquelas barras horizontais,
podemos lembrar-nos do Brice Marden ou do Pollock, mas elas não se despenham só
nesse sentido - elas entram em conflito, conflituam… e esse conflito faz parte. Quer
dizer que não podemos estar nunca satisfeitos com a nossa imagem. Não vejo nestas
pinturas um afastamento das minhas preocupações anteriores, mas elas podem ser
muito diferentes das que foram feitas no ano anterior. Isso agrada-me porque é um
sinal de que a pintura continua a ter possibilidades dentro de si própria.

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É trabalhar em constante risco?
- Eu não vejo isto como uma situação de risco. Acho que nos artistas de que gosto é
uma situação inerente à própria criação. Podemos pegar no Rothko, que
aparentemente andou vinte anos a fazer aquelas pinturas, mas no caso de um homem
daqueles jamais poderemos falar numa fórmula. Aquelas pinturas têm uma
intensidade e uma ética… essa ética é inerente ao trabalho de um pintor ou de artista.
Não é só a intensidade da pintura, é a vida a imiscuir-se na pintura. Houve uma altura
em que pensava que as pinturas não deveriam ter nada a ver com a minha vida, mas é
uma coisa impossível de destrinçar.

B. Textos críticos, notas

1995
«Sem palavras» 
EXPRESSO/Cartaz, 29 Abril

«I. Preto esbranquiçado», Gal. Alda Cortez

Todo o jogo infinito da pintura reencontrado por José Loureiro no espaço


gráfico das palavras cruzadas

As três grandes telas quadradas — de dois por dois metros! — dão a ver de imediato
a grelha impressa de um jogo de palavras cruzadas, delimitando e fragmentando a
negro, em primeiro plano, um espaço posterior de cores diversas, profundas e
flutuantes. A quadrícula ocupa toda a superfície, com os seus traços entrecruzados e
os quadrados negros da praxe, recortada de um jornal antes que as palavras se
comecem a inscrever. Com um olhar mais atento, ver-se-á que o rigor da grelha não é
exactamente uniforme: por vezes, a consistência dos bordos desvanece-se; aqui, um
gesto não se limita sob a grade e trespassa a barreira geométrica, ali, a mancha ou
atmosfera de cor devora o limite que a contém.

E afinal, vendo bem, o preto não está bem impresso a preto, é irregularmente traçado,
entre o cinzento e preto, com marcas da mão onde se quereria admitir a presença
uniforme da máquina. A grade negra é também exercício de pintura. Os títulos são
uma muleta acessória, neste caso: os quadros chamam-se Palavras Cruzadas,
seguidos dos seus números de série, e a exposição tem o nome «I. Preto
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esbranquiçado», obviamente referido à referida grelha. Seguir-se-ão, num segundo
andamento, a partir de 6 de Maio, por razões de dimensão da galeria e de intensidade
irradiante da pintura, mais três telas homónimas sob a designação «II. Cinzento
baço», de uma série que chegou às oito versões de igual formato, mas todas muito
diferentes nos valores cromáticos dominantes e também no modo de
«preenchimento» da quadrícula. Talvez não se encontrasse uma mais divertida mão
estendida àqueles que treslêem a velha fórmula de que a pintura é coisa mental ou
que cultivam outros idênticos interditos... E também poucas vezes a presença da
pintura foi tão afirmativa e livre na sua desrazão.

Com a sua grelha, José Loureiro estabelece a exacta coincidência da superfície do


quadro com o espaço da pintura, como auto-afirmação da materialidade do suporte
bidimensional, referência ao fechamento da janela ilusionista e ocupação «all-over»
do campo da tela. É uma via de abordagem formalista que se sugere e, na evidência
do seu humor, assim se nega como solução. Por outro lado, ao convocar o jogo
intelectualmente gratuito das palavras cruzadas, para o qual cada um dos intérpretes
pode ensair a inútil lista de sinónimos, é também a questão por resolver do sentido da
pintura que se oferece e se contraria: as palavras estão a mais, na situação do inicial
corpo-a-corpo perceptivo, quando o desafio, como aqui, é por inteiro o jogo da
pintura. A grelha é uma disciplina a transgredir, uma regra que o pintor subverte,
transformando-a em liberdade acrescida — como poderiam ser a presença da figura,
o assunto, a citação ou o género, outras regras passíveis de desvio. Na sua
bidimensionalidade afirmada, ela acrescenta mais espaço ainda ao que é infindável
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espaço pictural, atrás e entre (e também sobre) a sua frágil malha geométrica: lugar
da materialidade da pintura e espaço de todas as ilusões bem reais que a pintura tece.
Em vez das palavras, existem as cores, sempre impuras, como irrupção da luz e das
trevas e presença de uma matéria informe, organizada em manchas, campos,
pinceladas, transparências e ocultações: um espaço de pintura que não precisa, no
gozo da grade que não prende, de definir-se em significados.

Neste demorado acontecer visível desta pintura está também, para quem segue o
trabalho de J.L., a marca de um outro tempo ainda mais longo que é o da sequência
das suas exposições, permitindo entender melhor, nesse ritmo das procuras
sucessivas, a origem dos quadros actuais. Assim, como directa passagem, impõe-se
imeditamente à memória, de entre um conjunto de telas mostradas na Madeira (na
Porta 33), onde já se incluiam, aliás, as três primeiras versões das Palavras
Cruzadas, um quadro de 1993 que era uma explícita visita a Mondrian através da sua
transcrição materialista e vernácula por Lichtenstein: Não Objectivo I, a partir de
R.L. Não se tratava então, apesar das aparências, de um exercício da citação, mas de
um efectivo confronto com a possibilidade da pintura, reencontando a sua disciplina
num duplo sentido necessário, de lição e domínio da facilidade. Mas a ponte mais
exacta deve fazer-se entre esta e a primeira exposição de J.L., em 1988 na Ether
(«José se quiseres come as sardinhas todas»), em que surgira a público com a
surpresa de uma pintura excepcionalmente desenvolta, que então convidava a referir
Bonnard e Dacosta, no seu intenso prazer dos óleos em que se definia ou adivinhava a
presença de objectos de interiores domésticos. Sucessivos exercícios de contenção,
fragmentação e recuo provisório, permitiram agora renovar o acontecer inteiro da
pintura.

EXPRESSO/Cartaz 20-05-95, p. 17

“II. Cinzento baço”, Gal. Alda Cortez

Segundo capítulo de uma mesma série de telas de grande formato (“Palavras


cruzadas”), onde J.L. reencontra, a partir de uma reflexão sobre Mondrian revisto por
Lichtenstein, e, paradoxalmente, sobre a disciplina auto-imposta de uma grelha
geométrica que é, também, oportunidade da irrupção de múltiplos sentidos, as
possibilidades da pintura que anunciara em 1988-90. Pintura sobre a pintura (e não
exercício da citação ou ilustração de “problemáticas”, que são vias mais usadas),
estas telas onde os problemas do espaço plástico são revisitados com rara energia e
invenção, comprovada pela própria diversidade de “soluções” presentes na série, são
um reencontro com a complexidade e o prazer da pintura, das matérias, do gesto e da
cor,  e também uma resposta eufórica a todas as estratégias sacrificiais e facilmente
repetitivas das paredes monócromas ou matéricas.

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1996
Gal. Alda Cortez

EXPRESSO/Cartaz 25 Maio, p. 17 - A pintura continua de boa saúde, como uma


tradição continuada e a cada momento reinventada. José Loureiro, que há
exactamente um ano expusera no mesmo local as suas «Palavras cruzadas», regressa
com uma nova série em que passa da estrutura quadriculada a um «sistema» de bolas,
em quatro telas de grande formato e algumas outras de pequena dimensão e mais
variável resolução formal. Nos quadros maiores há sempre uma espécie de trama
mais ou menos aberta sobre a qual se sobrepõem faixas de outras bolas maiores e
barras ou campos lisos de cor; mas dizer sobrepõem é aqui problemático, porque tudo
se passa num espaço instável, elástico e vibrante, onde as tramas não definem
propriamente planos e as séries de círculos, flutuantes, surgem como problemas
espaciais e desafios do olhar, onde a cada momento é perturbada a lógica explicativa
de um qualquer formulário.   É nesse pôr à prova do olhar e da razão que a dimensão
essencial do jogo se afirma e excede como invenção e enigma.

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EXPRESSO/Cartaz 01 Junho, p. 18 - Exercício dos meios da pintura e não
«questionamento» sobre os meios, as condições e os fins da pintura, estes novos
quadros de José Loureiro vêem-se como demonstração da vitalidade de uma prática,
que certamente continua a convenção e a tradição da pintura ao mesmo tempo que as
redescobre em cada objecto realizado, para lá de qualquer ideia de «retorno» à
pintura ou à abstracção. O uso de uma espacialidade incerta, de profundidade instável
ou elástica, a eficácia do trabalho da cor que é intrínseco ao jogo das tramas de bolas,
indistintamente programado e aleatório, são elementos em que se conjuga a
materialidade de uma invenção. (Até 22 Jun.)

Gal. Módulo, Porto

EXPRESSO/Cartaz 14-12-96, p. 19 - Mostrados antes na Gal. Alda Cortez, as


pinturas e os papéis de José Loureiro viram-se como a sequência, diversamente
inventiva, de um retorno à picturalidade que marcara os começos do seu trabalho,
após um intervalo aplicado na busca de uma disciplina mais especulativa que oficinal.
Sobre uma regra de composição aparentemente geométrica, dominada pelo xadrez
das «palavras cruzadas», exercitavam-se antes vertiginosas flutuações espaciais que
se prolongavam por um domínio original da cor. Depois, sucederam-se as bolas às
riscas, com idêntica, mas obviamente diversa, investigação espacial. O programa ou o
cálculo da pesquisa óptica é, porém, o de uma «nova abstracção» que mantém com as
lógicas geometrizantes ou as derivas líricas uma relação marcadamente irónica, já
não discursiva e antes aplicada no reencontro de algumas intensidades imediatas, as
do fazer e do ver. O percurso é dos mais livres, sobre uma continuada segurança de
meios. (Até 12 Jan.)

15
1997

Expresso / Cartaz, “Actual”

16
1998
referência e obra reproduzida em ”Os anos 90 nunca existiram”, in Espacio/Espaço
Escrito, Badajoz, nº 15/16, 1998, pp. 106-116.

José Loureiro (1961), com primeiras individuais em 1988 que o revelavam


como um artista prodigiosamente dotado, a que se seguiu um natural
período de buscas e incertezas, mostrou nos últimos anos séries de quadros
«abstractos», estruturados por grelhas ou tramas de quadrados («Palavras
Cruzadas») e de bolas, onde se constrói, de um modo simultaneamente
programado e aleatório, como um acontecer de pintura, uma materialidade
incerta, de profundidade espacial instável ou elástica, com um notável
sentido da cor.

referência em “Todos diferentes, todos actuais”, catálogo da III Bienal de Arte


AIP'98, Europarque, Vila da Feira, 1998

José Loureiro mostra um exercício soberano da pintura, tão sensível como


experimentalmente reflectido, mas seria absurdo classificá-lo como um
«questionamento» sobre os meios, as condições e os fins da pintura. Não é
um trabalho «sobre», contra a vontade de alguns pobres de espírito que
querem reduzir a (des)razão da pintura a um programa de intenções ou
protocolo explicativo, subordinando-a à sua lógica escolar e reduzindo-a à
ilustração de um inútil resíduo.
Os seus quadros vêem-se como a demonstração vibrante e desafiadora da
vitalidade de uma prática antiga mas até agora inesgotável, continuando a
convenção do quadro e as tradições da pintura, mas afirmando-se como
novos, para lá de qualquer ideia de retorno ou pastiche.
Nas suas telas actuais, «às bolas», existe sempre uma espécie de trama
mais ou menos reconhecível sobre a qual se sobrepõem grelhas de outras
bolas maiores ou menores e barras ou campos lisos de cor; mas dizer
sobrepõem é aqui problemático, porque tudo se passa num espaço incerto,
de profundidade instável ou elástica, onde as tramas não definem
propriamente planos e as séries de círculos, flutuantes, surgem como
explorações espaciais e desafios do olhar, onde a cada momento é
perturbada a lógica explicativa de uma qualquer regra.
17
É nesse pôr à prova do olhar e da razão, da ordem e do caos, trabalhando a
matéria da cor, que a dimensão essencial do jogo, indistintamente
programado e aleatório, se afirma como inteligência e tecido de emoções.

1999
«Voz, focagem, grão, eco...»
EXPRESSO/Cartaz de 4 Dezembro, pp 26-27

Módulo, Lisboa (27 Nov. - 31 Dez.)

Continuação e viragem no percurso seguro de um pintor. Uma pesquisa sem


fim, aberta em várias direcções

HÁ DOIS anos, José Loureiro mostrou na Módulo os seus trabalhos então mais
recentes e o «Cartaz» de 27 de Novembro ocupou as páginas centrais com um texto
crítico de José Luís Porfírio («assim o pintor atinge uma maturidade onde a
consciência da pintura é mais que um discurso, porque passa pelo ofício do pintor e
se torna na consciência desse ofício») e uma entrevista que teve por título, retirado à
fala do pintor, «São pinturas feitas com tinta».

Dois anos depois, Loureiro apresenta novos trabalhos: oito telas exibidas nas paredes
da galeria e algumas outras, igualmente de grande ou de menor formato, acumuladas
nas respectivas reservas. São fruto da mesma investigação continuada sobre uma
prática chamada pintura, da mesma maturidade e ofício cedo alcançados pelo pintor.
São em grande parte as mesmas telas e já outras, partindo das direcções antes
experimentadas para pesquisas próximas e no entanto substancialmente diferentes,
sem que as soluções antes encontradas se convertam num código adaptável a uma
cadeia ou sistema de produção, sempre trabalhadas, cada uma delas e a série que de
algum modo integram, na instabilidade consistente e consciente de uma procura sem
fim à vista.

Houve, a certa altura, já na sequência de um trabalho iniciado por finais de 80, as


«Palavras Cruzadas», estruturas quadriculadas que evoluíam de uma conjunção de
apropriações interrogativas – Mondrian refeito por Lichtenstein e o encontro com
essas grelhas geométricas vistas nos jornais, imagens preexistentes no limiar da
18
«abstracção». Houve depois, mantendo a solidez da estruturação formal na base da
construção da pintura, a evolução para uma rede de círculos ou bolas, com uma trama
mais ou menos aberta, que se adensava volumetricamente em sobreposições e
transparências, num espaço elástico e vibrante nascido da materialidade do óleo. As
«Palavras Cruzadas» partiam de uma imagem prévia e nos quadros às bolas, esses
verdadeiramente abstractos, tornava-se mais livre e intensa a evidência da matéria e
do fazer da pintura.

«Globo», 1999, ó/t, 192x220 cm (continentes de cor em referência aos papéis colados de Matisse)

Depois, os alinhamentos longitudinais de círculos adensaram-se em barras que


atravessavam o quadro, flutuantes e intervaladas num espaço em que a superfície
plana da tela é perfurada e subvertida pela sobreposição das tramas de pontos ou
bolas, maiores e menores, que «navegam num magma de tinta elástica, que se espalha
e se retrai», dizia o pintor. A mesma estruturação ritmada, repetitiva, no interior de
cada tela, negava-se enquanto fórmula de composição rígida pela rejeição de todo o
19
reducionismo que substituísse uma lógica programada de construção à emoção que
pode decorrer da infracção da ordem, da integração do acidente e da surpresa no
gesto e na matéria pictural, manifestação viva da pintura em acto. Chamou-se
«Minutos» esse conjunto de telas, certamente relacionando cada uma com a realidade
geral da série e identificando-as como instantes exactos e claros a que chegara uma
pesquisa continuada. Dizia José Loureiro: «Uma pintura para ser clara não necessita
de reduzir os seus meios, mas tem de estar consciente desses meios».

A mudança do pintor é sempre lenta, ensaiada à vista nos sucessivos quadros


mostrados (e ocultada também em telas recomeçadas, onde se sedimentam formas
experimentadas e tintas sobrepostas), definida em ciclos de fronteiras flutuantes,
tecendo uma variação prosseguida de tela em tela que, sem ter a sua pintura um teor
narrativo, se poderia ver como uma contínua história do seu processo de fazer-se.

Entrar na sua actual exposição é viver um itinerário de sucessivas experiências,


percorrer um caminho feito até de surpresas, ao entrar o visitante no primeiro espaço
de acesso, depois descobrindo a grande tela que a certa altura se divisa do longo
corredor da galeria, a seguir varrendo as paredes com um olhar panorâmico, até ao
último quadro, mais imprevisível ainda, que descobre atrás de si. Referir as suas telas
será coartar de algum modo esse efeito de surpresa tão gratificante e depois
perdurável.

Estão lá as barras e bolas, estas mais ocultas, como memória e densidade textural,
mas as faixas paralelas tornaram-se mais estreitas, construindo um campo estriado
mais compacto, com uma definição espacial e lumínica sempre ambígua, onde o uso
particular da cor inviabiliza uma discriminação exacta de planos, entre o que está, na
superfície afinal plana, ilusoriamente mais atrás ou à frente, para cá ou para lá. Com
essa grelha regular como as estrias de um ecrã de televisão coabitam agora,
sobrepondo-se a ela, ou, aliás, divisando-se nos interstícios luminosos entre as faixas,
linhas coloridas oblíquas ou entrecruzadas, atravessando o quadro, e também
rectângulos, zonas ou campos de cor. As composições anteriores, ortogonais e
ordenadas, são agora instabilizadas por essas linhas ou manchas.

Os quadros têm desta vez títulos individualizados – Globo, Focagem, Breve, Eco,
Grão, Voz... – que surgiram depois de pintados, ou mesmo já na galeria, escolhidos
os oito da montagem final. Eles não descrevem nem referem uma intenção ou
projecto, são um acto posterior de baptismo, diz o pintor, identificando um ponto de
chegada, diferenciando-os entre si, como se ao nomeá-los «estivesse a sintonizar
qualquer coisa» neles presente. O título Globo, a tela maior, surgiu associado à ideia
de continentes de cor – José Loureiro acrescenta que essas zonas de cor são
referência directa a uma grande colagem de guaches recortados de Matisse vista em

20
Londres. Atribui à retrospectiva de Pollock o surgir das linhas oblíquas e
entrecruzadas dos quadros recentes. Refere que alguns títulos (Grão, Focagem)
reconhecem a proximidade das suas grelhas de cor cinza com as linhas do ecrã de
televisão.

Num último quadro, sem se interromper a continuidade da série, define-se entre as


faixas horizontais uma figura de homem de corpo inteiro, o retrato de um amigo,
intitulado Joaquim (há um Germano nas reservas da galeria). O pintor refere que ele
mesmo se surpreendeu ao fazer aparecer a imagem na sequência não prevista do seu
trabalho. Assim, como confirmação e viragem de um percurso seguro, esta é uma
exposição feita de situações inesperadas, que se sustentam nos anteriores pontos de
chegada, sempre como conclusões provisórias, e deixando abertos múltiplos
caminhos de futuro.

2001
"Linhas de vida"
EXPRESSO/Actual de 22 Dezembro

Galeria Cristina Guerra

Razão e acção na pintura experimental de José Loureiro

Para quem acompanha o trabalho de José Loureiro através das sucessivas exposições,
cada uma das suas telas é uma pintura plenamente independente no seu existir
individual e também um momento de um devir contínuo, um elo numa cadeia de
realizações sequenciadas. Cada quadro é, ao mesmo tempo, imprevisível na realidade
da sua configuração material e é sustentado pela contiguidade e renovação dos
«problemas» postos pelo trabalho anterior do pintor. Em vez de encontrarmos
variações sobre uma solução experimentada (o desdobramento de uma fórmula ou
sistema que caracterizaria uma fase de trabalho, como é mais frequente),
surpreendemos, de tela em tela, os passos de um caminho que se explora e que
permanece em aberto, desconhecido.

O livro este ano publicado pelo artista na Relógio d'Água põe à disposição do
espectador menos assíduo todo o corpo de trabalho, desde 1994 e com alguns passos
da produção anterior, que conduziu à exposição actual, mesmo se no caso da pintura,
21
e da sua em especial, nenhuma reprodução se substitui ao confronto visual e físico
com a materialidade sensível do quadro.

É de uma pintura em acção que se trata, legível de imediato como um fazer


«experimental» que instabiliza em permanência os dados já antes utilizados ou
estabelecidos para enfrentar sucessivamente novas possibilidades. A mobilidade do
pintor não é, em absoluto, a de uma dispersão volúvel de atitudes, à maneira do
nomadismo com que se destitui a marca autoral, nem a continuidade do seu trabalho
resulta da fixação de um sistema ou de uma maneira. O seu trabalho, pelo contrário,
realiza-se a partir da vitalidade assumida de possibilidades contrárias, entre a ideia
conceptualmente formulada e a experiência prática e imprevisível da sua realização
plástica, entre a regra construtiva (uma organização do espaço, uma grelha
geométrica) e a admissão do que acontece sobre a tela como acaso, acidente ou
estranheza, entre um princípio frio de definição e depuração racional e a abertura, no
terreno da acção pictural, ao que é precário e impuro.

Todos estes quadros, de grande ou muito grande formato, com fundos de cor mais ou
menos irregularmente lisos, são atravessados por riscas negras horizontais e paralelas,
agrupadas em número variável mas com distâncias constantes entre si (como uma
pauta, sugeriu o pintor). Formam barras transversais de diferente largura, dispostas
em lugares diversos da tela. Em quase todos, esse espaço irregularmente dividido é
atravessado por linhas verticais, por vezes oblíquas, de diferentes cores e espessuras
22
que o percorrem de modos infinitamente variáveis, sempre mais ou menos
acidentados e fragmentados: fluem (escorrem) rapidamente, alargam-se em barras
horizontais, quebram-se, serpenteiam, cruzam-se, conflituam entre si, conhecem
variações tonais, retomam uma direcção ascendente, interrompem-se, etc. Nesse
traçado de sugestão musical a matéria pictural imobiliza-se e permanece líquida e
vibrante, registando como um sismógrafo a instabilidade do que em cada quadro,
como na vida, é regra ou surpresa. Sustenta-se em cada quadro um olhar inesgotável,
no qual a leitura das formas não se encerra num mera inteligência formal, sem que se
abram espaços de representação ou de metáfora (que os títulos não autorizam). São
linhas de vida que se percorrem, de pintura e de vida, inseparavelmente.

2002
EXPRESSO/Actual de 13/7/2002

Museu de Serralves, Porto.

«O lugar da pintura»
Pinturas e desenhos recentes de José Loureiro em Serralves

Numa entrevista recente, Luc Tuymans, um pintor «terminal» que Serralves já expôs,
cita uma «boutade» de Catherine David, comissária da Documenta de 97, segundo a
qual a pintura é académica quando é boa e reaccionária quando é má. E acrescenta:
«Tudo isto é extremamente simplista, como a maior parte dos discursos actuais sobre
o carácter obsoleto da pintura, discursos vazios de sentido, porque a pintura é muito
mais do que um médium» (Artpress, Paris, Julho-Agosto). Para o discurso
institucional, a pintura é, quando muito, um «meio expressivo» entre outros meios de
comunicação, ou de produção de imagens, no seio da abstracção «Arte em geral»
onde se dissolvem as práticas artísticas concretas. De vez em quando, já duas vezes
este ano, as instituições francesas redescobrem a vitalidade da pintura em mostras
compungidas a que chamam «Urgent Painting» (Museu de Arte Moderna de Paris) ou
«Cher Peintre» (agora no Centro Pompidou).

23
A apresentação em Serralves de José Loureiro, «um dos pintores portugueses cuja
obra mais se tem vindo a afirmar desde finais da década de 80», como informa o
museu, começa por levantar problemas de programação e enfrenta esse
condicionamento discursivo sobre o carácter obsoleto da pintura. O espaço que lhe
foi atribuído, habitualmente ocupado por instalações e vídeos, não é apropriado a
uma obra onde é precisamente substancial a distância entre pintura e imagem, que
não pode confundir-se com a eventual diferença abstracção-figuração. A deficiente
iluminação (talvez já em parte corrigida com a abertura de uma janela) dificulta uma
contemplação que actue sobre a superfície do quadro para percorrer (decifrar?) tudo o
que nela se expõe e oculta, a flutuação do seu espaço virtual, o tempo inscrito nos
materiais, a opacidade ou vibração da cor, etc.

Também seria possível questionar o desequilíbrio da programação entre maiores e


menores representações, mesmo antes de chegar o mega-evento de Verão e de
bilheteira que serão as intimidades de Nan Goldin, mas importa mais reflectir sobre o
uso de um jargão «especializado», simplista e obscuro, que esconde os objectos em
vez de os iluminar. «A obra de José Loureiro confronta o tempo de quem declara a
pintura como um género extinto nas suas possibilidades», afirma João Fernandes,
director-adjunto e comissário, logo no começo do seu prefácio. Não é claro se ele
próprio declara o «género extinto», mas ainda mais obscura é a adaptação do seu
texto que abre a «folha de exposição»: «Os quadros de J.L. revelam uma
singularidade que se torna visível no confronto com os saberes e práticas que
testaram os limites formais e conceptuais da pintura enquanto género.» A sua
singularidade não é a de um exercício dentro de limites da pintura anteriormente
«testados», mas a invenção de um campo infindável de possibilidades, inéditas
mesmo se dialogam com as invenções de outros artistas (outro prefácio, de Filomena
Molder, interessa-se precisamente por essa continuidade de experiências e
significados).

Na sequência de uma série mostrada na Galeria Cristina Guerra, os novos quadros


colocam à prova e alargam as direcções que partem de uma provisória regra
construtiva, onde uma estrutura rígida de linhas paralelas horizontais é aleatoriamente
interrompida pela animação dos fundos de cor e por traços verticais irregulares. É
com elementos mínimos, que não são um mero jogo formal, que a pintura acontece
ao fazer-se, ultrapassando os sistemas e limites de que parte para absorver o olhar e
pôr em cena e em questão as virtualidades de uma prática chamada pintura.

Numa segunda sala, uma nova série de desenhos dá a conhecer uma produção
paralela à pintura, como um campo experimental onde se ensaiam ideias de pintura,
sem que esta nunca seja a aplicação de um projecto prévio. Esses desenhos reabrem
um diálogo entre figuração e abstracção que tem estado sempre presente no trabalho
24
do pintor: sobre as linhas horizontais de uma mesma pauta regular surgem silhuetas
de corpos humanos, sobrepostas e variavelmente descentradas ou flutuantes na página
branca. As linhas de contorno repetidas identificam o uso de moldes recortados a
partir de fotografias, contornados com a irregularidade da mão (de novo a regra e o
acidente). São mostrados sem título, mas em alguns desses desenhos, identificados
pelo artista, estão, por exemplo, Mark Rothko e Merce Cunningham. É imprevisível,
também para o próprio artista, o que poderá, ou não, decorrer desta «experiência»,
num trabalho que sempre se reinventa sobre os provisórios limites de uma prática
viva.

2003
Expresso/Actual 08 Fev.

Gal. Presença, Porto

Em Serralves, José Loureiro mostrou no Verão desenhos-estudos onde surgiam


silhuetas humanas (retiradas de fotografias, em geral de artistas históricos), várias
vezes sobrepostas e descentradas, visivelmente realizadas com o uso de moldes com
contornos recortados. Esse ensaio de ideias de pintura concretizou-se numa nova
série de telas de grande formato, mas a passagem do papel ao quadro não é mera
operação de transcrição-ampliação, vivendo a sua pintura, sempre, das contingências
e das explorações sucessivas do seu próprio fazer, mesmo se o pintor gosta de conter
a liberdade da mão com a regra pré-fixada pelos moldes. As anteriores barras que
atravessavam ou percorriam a tela tomam agora formas humanas, por vezes muito
indefinidas pela sobreposição, rotação e inversão das matrizes recortadas. Entre a
«abstracção» e o reconhecimento, entre o programa e o acidente ou aleatório, a
mesma pintura experimenta uma nova direcção, experimenta-se entre o saber
adquirido e o gosto pelo risco, ao nível da melhor pintura que hoje se pratica (em
qualquer parte do mundo). (Até 1 Mar.)

25
2005
«O quadro negro»
EXPRESSO/Actual de 20 Agosto

Centro Cultural Emmerico Nunes, Sines

Pintar, entre programar e acontecer

Entra-se na Capela da Misericórdia pela porta lateral que dá para o largo da Matriz,
para o mar e a casa branca e azul do Centro Cultural. A pequena porta recorta a
pintura em frente, que ao entrarmos se amplia até aos seus imensos 3,70 x 2,96
metros, de um negro brilhante, aparentemente liso e uniforme, estriado por linhas
brancas e cinzentas que a percorrem horizontalmente de bordo a bordo.

Vendo melhor, a horizontalidade é apenas aparente; as linhas paralelas começam, à


esquerda, no sentido da leitura, por um breve movimento ascendente e quebram-se
logo a seguir para iniciarem a travessia da tela, não exactamente na horizontal mas
sim levemente oblíquas, descendo tão lentamente que o olhar não o distingue de
imediato. O traço é regular, visivelmente apoiado numa régua mas não mecânico, e
cintila sobre o fundo negro com espessuras alternadas e intensidades regularmente
variáveis de branco e cinzento - não é como um padrão ou um sistema padronizado
que essa regularidade se vê, mas como um acontecer imponderável, regrado mas ao
mesmo tempo imprevisto. Esse negro brilhante do óleo também não é uma superfície
invariável ou uniforme. Para além dos acidentes introduzidos pelos reflexos da luz
projectada (apetece voltar com diferentes ambientes luminosos, de dia com luz
zenital difusa e ao poente que entrará pela porta em frente), há vestígios e relevos que
ficaram de estados anteriores da pintura e pequenas manchas esbranquiçadas e
irregulares que acontecem por acidente ou voluntária vontade de imperfeição.

Poderia ser um céu nocturno e o movimento das estrelas quando uma fotografia as
regista numa longa exposição, mas o negro e as linhas claras são aqui poderosamente
materiais, e diante do quadro (completo em si mesmo, não um fragmento de algo que
os bordos recortem) suspendem-se as tentativas de encontrar uma referência
conhecida que o explique. Ele basta-se a si mesmo, com a sua imensa superfície

26
vertical e as estrias quase horizontais que a atravessam, entre a regularidade exacta e
ao mesmo tempo vibrátil da sua estrutura equilibrada e a fractura subtil das duas
oblíquas desiguais.

Visto no espaço da capela, ao lado do púlpito elevado e lateral ao grande altar de


talha dourada, poder-se-ia procurar um propósito de diálogo com o sagrado, ou com a
razão humana do sublime, mas a realidade é que essa é apenas uma temporária
condição de exposição, antes de outros destinos e outras leituras. Mais do que esse
momentâneo local e as sugestões iconográficas que ele pode motivar, importará o
lugar desta pintura na sequência do trabalho do pintor, lembrando outras barras,
bandas, riscas, grelhas, que atravessam as telas. Ou podem vir à memória as pinturas
negras de Frank Stella, com as suas bandas estáticas sobre o fundo plano e impessoal
do esmalte, simétricas e voluntariamente pobres no seu rígido programa formal. Mas
essa aparente semelhança muda-se logo num feixe de diferenças, como se a mesma
aparente redução inicial dos meios fosse, afinal, um ponto de partida para outros
destinos e olhares em aberto.

No catálogo, um texto de João Miguel Fernandes Jorge refere esta mesma tela mas
com diferentes configurações (a segunda vez já num Post Scriptum que revê a
observação inicial). É uma outra pista sobre o trabalho do pintor, que insatisfeito com
o seu quadro o refaz e depois o recomeça, já inteiramente diferente. Nesse passo de
avaliação crítica do seu quadro, no próprio processo de o fazer, está inscrita a questão
decisiva dos critérios que distinguem a qualidade intrínseca de um obra (quando a
ausência ou indiferença dos critérios de qualidade se tornou para muitos uma regra).
O que teria falhado nessa obra que passava à pintura sobre tela e ao muito grande
formato a linha de trabalho gerada pelas grelhas de rectângulos que vemos na série
paralela de pinturas sobre papel, na variabilidade aleatoriamente experimentada da
sua estrutura pré-definida, igualmente expostas e excelentes em si mesmas? O que é,
como dizer, a excelência de uma pintura? (foto: Sem título, 2005, guache sobre papel)

27
2007
«Equilíbrios instáveis»
EXPRESSO/ACTUAL de 17 de Março

Galeria Cristina Guerra (1-31 de Março)

A pintura impura de José Loureiro, entre os seus programas


prévios e o acontecer do quadro, num momento de aproximação às
grelhas de Mondrian
É inevitável pensar em Mondrian e nas suas composições de rectângulos e quadrados
definidos por traços negros que estruturam o espaço plano do quadro, onde se
inscrevem zonas brancas ou de cores primárias. Nas pinturas de José Loureiro as
linhas rectas interrompem-se ou duplicam-se (são a justaposição de contornos de
moldes usados como régua, em precária aliança da mão e da máquina), a ordem é
instável (arbitrária, mas justa), a estrutura vacila sem se desmoronar, a superfície
branca «all-over» vibra, abre-se para dentro, numa insondável profundidade flutuante,
como um ecrã catódico, mas é a grelha de Mondrian que se move nestes quadros.

28
Não é a primeira vez que esse encontro acontece nem ele é acidental, tratando-se de
um pintor que põe em jogo meios de organização sistemática do espaço do quadro,
com formas modulares, padrões, barras e outros elementos de repetição estrutural - e
também, para lá da fronteira movediça do que se chama abstracção, matrizes
recortadas de figuras e objectos, adoptando a disciplina da variação mecânica em
situações de representação figurativa.

A grelha teve, no século XX, a partir do cubismo, um papel de especial importância,


chegando-se a substituir o mundo visível pela busca da sua estrutura espacial
(Rosalind Krauss chamou-lhe o «emblema da ambição modernista»). Mondrian levou
mais longe que ninguém a especulação sobre a variabilidade harmónica da grelha
geométrica não decorativa, investigando questões de ritmo, equilíbrio dinâmico,
tensão e oscilação ópticas ou vibração espacial. A visualidade pura da «nova plástica»
não se pode isolar, porém, duma reflexão milenarista, utópica e de contornos místicos
que a distingue de outros formalismos modernistas. No âmbito da conflitualidade
ideológica do primeiro pós-guerra, tratava-se de atravessar as aparências para atingir
um equilíbrio universal de relações, partindo da dualidade fundamental da vertical/
horizontal para abordar ou resolver outras dualidades: masculino/feminino, material/
espiritual, abstracto/natural, etc.

No caso de José Loureiro, o conhecimento das vicissitudes das utopias escreve-se


silenciosamente na prática pictural, mas os elementos formais também nunca são
apenas formas destituídas de conteúdo e expressão. São sempre possibilidade de
sentido e de emoção, dinamizada pelo olhar activo do observador que contempla.
Numa entrevista, Loureiro falou do gosto em «flutuar» entre Mondrian e Soutine. É
isso que aqui se passa, nestes quadros de grande formato que usam os meios mínimos
da pintura (a linha e duas não-cores, branco e preto, mas transformadas em cores com
luz própria), não como resíduos dum caminho geral fatalmente reducionista mas
como elementos bastantes para continuar a manifestar toda a ambição da pintura.

Loureiro chegou às actuais grelhas instáveis a partir de trabalhos em que repetia


módulos contíguos de dimensões constantes, numa estrutura ortogonal plana sujeita a
sobreposições ocasionais de formas iguais mas de cores diferentes. A estrutura
aparentemente rígida (vendo melhor, sempre variável de densidade, espessura e
velocidade do seu traçado modular) dava lugar a uma rede irregular graças a esses
módulos móveis, descentrados e ligeiramente oblíquos, que conferiam relevo espacial
à superfície e inscreviam o seu tempo de factura na imagem-objecto plástico. Nesse
trânsito que a pintura inclui importam o programa e a sua variação improvisada, a
regra e o acidente, a hesitação da mão e os acasos materiais, como se a vibração do
fazer dessa grelha a tornasse mais atraente e perfeita, talvez porque mais humana. A
possibilidade de recomeçar, repintando tudo, oculta-nos o que, ao olhos do
29
observador privilegiado que é o pintor, se pode tornar uma obra falhada (era esse o
caso do «quadro negro» exposto em Sines em 2005).

Na passagem para as telas actuais, a regularidade modular deu lugar à malha variável
de rectângulos e quadrados a preto e branco que tem a marca especulativa de
Mondrian, mas sem a economia e equilíbrio duma tensão geométrica que procura o
universal e o intemporal. Todas as hipóteses simbólicas da janela, da cruz, da árvore,
etc., são também anuladas pela recusa da simetria e das relações de proporção que
Mondrian designava como «trágicas». Em vez da contemplação da forma plástica que
busca a harmonia dum tempo messiânico, de uma ideia da «aparição abstracta das
coisas» alheia à aparência natural, estamos perante o acontecer material da pintura,
com as impurezas, os acidentes, os acasos, o tempo e os modos do fazer que se
interpõem entre o projecto e a decisão de chegar ao fim de um quadro. Numa outra
tela, de ainda maior formato, a inscrição de um rectângulo muito alongado e também
vacilante, numa breve deslocação lateral, pode ver-se como um encontro com Barnett
Newman. Não é citação, apropriação ou simulacro, nem vem prolongar o sentido
metafísico dos eixos verticais do pintor americano, sem certamente se recusar a ser
uma homenagem prestada a um dos herdeiros de Mondrian. Duas telas mais, muito
diferentes (e toda a exposição simultânea no espaço Chiado 8 que se prolonga até dia
23), situam esses encontros com o que já é história, sem deixar de ser pintura viva, no
âmbito do itinerário pessoal dum grande pintor dos nossos dias. Entretanto, falar de
«regresso da pintura» não é mais do que ruído.

30
C. Notas 1988-1993

1988 Ether: “José se quiseres come as sardinhas todas”

Expresso/Cartaz, 29 Outubro, p. 20

O espaço é à partida impróprio para a pintura; depois, no segundo piso, depara-se


com a curiosa colocação dos quadros (mesas, naturezas mortas…) num plano muito
baixo. Descobre-se que se trata de um jogo, com os olhares, os respectivos hábitos, as
relações usuais com a pintura, as luzes e os seus efeitos sobre as cores e densidades
do óleo – o texto breve do catálogo fala de penumbras e da presença dos objectos
desfocados (o lugar é dedicado à fotografia, em princípio… Mas não se trata de
óbvias pinturas de referências fotográficas). Raramente o retorno a uma prática
arcaica e injustificada se revela tão capaz de surpresa, longe do exercício académico e
afirmando o domínio das suas regras, circulando entre “temas” com o saber de uma
linguagem definida e o sabor das cores, das matérias, dos objectos – o gosto da
pintura. (Até 19 Nov.)

1988 Diferença: “Lumaréu”

Expresso/Cartaz, 26 Novembro, p. 20

Guaches de José Loureiro, cuja primeira pintura sobre tela foi uma muito recente
revelação da galeria Ether. A seu propósito, como de Miguel Branco, por exemplo, se
tem falado dos “netos de Dacosta” e em algumas figuras ou na sensualidade de
texturas ou em opções cromáticas se pode reconhecer pelo menos a admiração por
31
ele, um humor próximo. O discurso é aqui mais livre que na anterior exposição, onde
os quadros deixavam supor um gosto do precioso e do exercício virtuosístico,
sobreposto ao prazer da descoberta da pintura. (Até 4 Dez.)

1990 Diferença: “O Juramento”

Expresso/Cartaz, 10 Fevereiro, p. 11 - Com duas individuais de pintura praticamente


simultâneas em 1988, que foram particularmente saudadas pela sua originalidade,
falta a este regresso, naturalmente, a frescura de uma descoberta. Menos natural é que
pareça faltar  também a inquietação que se supõe dever marcar um itinerário criativo:
a presença dos objectos (Jarra, despertador, máquina, de 87, num exemplo ao
acaso do catálogo da exposição da Ether), sempre incertamente definidos, era a da
arbitrariedade de um jogo de matérias; as formas assumem agora um peso descritivo,
anedótico, em que a imprecisão das coisas é trabalhada como fórmula, numa
construção amável de efeitos narrativos.

Expresso/Cartaz, 17 Fev., p. 8 - A simultaneidade das duas primeiras individuais não


permitiu economizar a dificuldade da segunda exposição. A primeira (em especial a
da Ether) foi a ocasião da descoberta da pintura, da sedução dos seus materiais e
processos, da referência directa a alguns modelos sobrepostos, de Fautrier a Dacosta,
passando por Bonnard. A segunda é a das tentações e das facilidades imprudentes, em
que algumas fórmulas narrativas se caricaturam em vez de se aprofundarem, algumas
32
ampliações de escala se fazem mecanicamente, ou em que o alargamento das gamas
de cor e da luz (a penumbra dominava em muitas pinturas anteriores) não resulta do
amadurecimento dos recursos.

1991 Gal. Alda Cortez

Expresso/Cartaz, 20 Abril

É de um recomeço que parece tratar-se, depois da brilhante revelação das duas


individuais de 88, a que se seguiu, em 90, uma imprudente gestão de talentos e
facilidades. José Loureiro concentra-se agora sobre objectos isolados num fundo
indefinido (boca, orelha, batata, e suas sombras), em oposição às complexas
composições datadas de 87-88 - recorde-se por exemplo, Garfo, mesa, jarra, onde a
suspensão da definição das formas se fazia num terreno pictural onde os valores das
pastas, da iluminação e da cor se impunham com (ingénuo?) sucesso, numa linha que

“Boca” , guache, 28x34 cm

apontava então a atracção por Bonnard e Dacosta. Tanto como à interrogação do


sentido das imagens, numa direcção mais irónica e «cruel», lembrando Guston, é à
reconsideração de processos e de meios que agora se assiste. Como forma de
recomeçar, espera-se. ( Até 30)

1993 Galeria Alda Cortez

Expresso/Cartaz, 8 Maio

Desenhos: um novo momento de um percurso de decomposição, isolamento e


fragmentação de imagens, num processo de reconsideração de objectivos guiado pela
recusa e a crítica. Algumas das peças consistem em construções duplas, com a

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repetição de mão esquerda de um motivo tomado a uma figura de BD, ou, noutro
caso, de um esquema de pintura matissiana; noutros desenhos ainda (posteriores?) o
«tema» banaliza-se deliberadamente e multiplica-se em fragmentos, num mesmo
caminho de negação da habilidade manual e do projecto. É uma via de interrogações,
certamente em busca de um limiar que sirva de novo ponto de partida.

Equilíbrios instáveis, Expresso/Actual, 17.03.07.


O quadro negro, Expresso/Actual, 20.08.05
José Loureiro, Expresso, 08.02.03
O lugar da pintura, Expresso, 13.07.02
Linhas de vida, Expresso, 22.12.01
Voz, focagem, grão, eco…, Expresso, 04.12.99
Os anos 90 não existiram, Espacio/Espaço Escrito, n.º 15/16, 1998
«São pinturas feitas com tinta» (entrevista), Expresso, 29.11.97
A pintura como ‘arte pública’, Expresso, 21.11.97
«José Loureiro», Expresso, 14.12.96
«José Loureiro», Expresso, 20.05.95
Sem palavras, Expresso, 29.04.95
«José Loureiro», Expresso, 08.05.93
«José Loureiro», Expresso, 20.04.91
«José Loureiro», Expresso, 17.02.90
«José Loureiro», Expresso, 10.02.90
«José Loureiro», Expresso, 26.11.88
«José Loureiro», Expresso, 29.10.88

Todos diferentes, todos actuais, catálogo da III Bienal de Arte AIP’98, p. 73, Vila da Feira, 1998
«As pinturas provocam outras pinturas» (entrevista), in JOSÉ LOUREIRO, Relógio D'Água
Editores, Lisboa, 2001

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