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Desenhar para ver

REVISTA VIDA SIMPLES – Ed. Jun/2007

“Simples e sem mistério, algumas noções básicas das aulas de desenho (que qualquer um pode pôr
em prática) podem abrir nossa percepção e ajudar a mudar nossa relação com o mundo.”

por Aline Angeli

Impossível esquecer minha primeira aula num curso de desenho. Tinha 13 anos. Enquanto ajeitava a
folha de papel no cavalete e abria empolgada minha recém-comprada caixinha de bastões de carvão,
o professor acomodou numa mesa à minha frente aquilo que seria o tema do dia: uma jarra de
porcelana acompanhada de um copo de vidro. “Quero que, no papel, a jarra continue branca e o
copo, transparente”, instruiu ele. Mirei a jarra branca, peguei meu carvão preto e abri o sorriso
desconfiado de quem participa de uma pegadinha. “Olhe direito”, insistiu o professor. “Olhe como
alguém que não sabe que as porcelanas são brancas, nem que o vidro é transparente”, disse,
retirando-se. Olhei. Olhei. Olhei. E foi então que, para minha surpresa, vi. Guardo até hoje o croqui
que registrou nos mínimos detalhes a festa de luz e sombra daquelas duas simples peças, cada tom
de cinza, cada reflexo claro, cada mancha escura que, juntos, faziam da porcelana, porcelana, e do
vidro, vidro. Desnecessário dizer que nunca mais voltei a olhar da mesma forma para as coisas que
me cercam.

Pura observação

“Esqueça as ambições artísticas: antes de tudo, a principal função do desenho é transformar nossa
maneira de ver o mundo”, afirma o artista plástico Paulo von Poser, famoso por suas representações
de rosas e de paisagens urbanas, que também dá aulas de desenho para os alunos de Arquitetura da
Universidade de Santos. Verdade: embora o senso comum insista em mostrar o contrário, o
desenho, necessariamente, não tem nada a ver com a “Arte” que tanto respeitamos. Nem com dom.
É pura observação e prática: uma prática deliciosa, capaz de proporcionar muito prazer, imensa
realização pessoal e que, como toda prática, pode ser aprendida – ou melhor, reaprendida.

Sim, todos nascemos com a capacidade de figurar e exercemos essa habilidade livremente até os 7
ou 8 anos – época em que, para pena da maioria, o encanto se quebra, ficamos mais críticos e
descobrimos, decepcionados, que nossas garatujas nem de longe conseguem imitar fielmente as
formas reais. Não é coincidência também que esse seja justamente o período em que passamos pelo
processo de alfabetização, no qual toda a ênfase está centrada no desenvolvimento do raciocínio
lógico e da comunicação verbal.

Bem mais estimulado, é este nosso lado mais analítico, racional – e, por sua vez, mais cricri – , que
irá predominar vida afora, fazendo com que a gente se convença de que não leva jeito para o
desenho (assim como para várias outras coisas). Além disso, cristalizando nosso bloqueio, pouco a
pouco formamos uma biblioteca particular de estereótipos visuais, com modelos preconcebidos
sobre como deve ser a representação do que está na nossa frente. É isso o que faz, por exemplo,
com que, ao tentar desenhar um rosto, a gente vá logo traçando o olho como uma canoa, antes
mesmo de se dar ao trabalho de conferir os detalhes e a assimetria de sua delicada forma. Ou
copiando o coelhinho mimoso do livro da escola, imaginando que é o único modo de desenhar algo
“bonito”.

Bonito. Certo. Reto. Igual. A expectativa de fazer uma reprodução fotográfica e a tendência de
considerar “errado” todo desenho que não retratar à imagem e semelhança seu original são os
principais empecilhos de quem tenta fazer as pazes com o lápis. Por isso mesmo, esse é um dos
primeiros mitos que o professor Silvio Dworecki procura derrubar entre os alunos da Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da USP, durante suas aulas de Desinibição do Traço. “Para copiar o real
com exatidão temos a câmera fotográfica, que reproduz formas, cores e texturas como ninguém”,
diz. “Logo, se ela é capaz disso tudo, eu fico liberado para fazer o diferente, o que não se parece”,
afirma.

Sem borracha

Talvez, neste momento, você, caro leitor, esteja se perguntando: “Se estamos liberados, por que
raios ela se preocupou tanto com a porcelana?” Simples: porque o desenho começa no olho – e não
na mão, ora. Por mais que me esforçasse, jamais teria chegado ao resultado a que cheguei se não
tivesse, de fato, “meditado” na frente daquele jarro. Só ao esquecer que ele tinha que ser branco
pude perceber o tanto de preto – e de outras cores – que havia ali. Não foi um registro preciso,
objetivo. Foi o registro de uma surpresa, de um momento único. Esse é o barato do desenho. “A
partir do momento em que os olhos se abrem, tudo se torna igualmente fascinante, igualmente
inspirador, igualmente impregnado de sentido”, escreve em Zen Seeing, Zen Drawing: Meditation
in Action (“Olhando Zen, Desenhando Zen: Meditação em Ação”, sem edição brasileira) o artista
plástico e filósofo norueguês naturalizado americano Frederick Franck, morto no ano passado, aos
97 anos.

A cada desenho, mudamos nossa percepção de um objeto, de uma paisagem, de um corpo. “Você
nunca mais vai desenhar como alguém que nunca desenhou. Nunca mais vai desenhar como uma
criança”, diz, com certa inquietação, Paulo von Poser. Mesmo que decida repetir, recomeçar, nunca
será a mesma coisa, nunca partirá do mesmo ponto – e nada é tão significativo quanto reconhecer,
pela prática, que nosso olhar muda, que ele é plástico, moldável, poético. De tão carregada de
significado, a preocupação em limpar a mente e conservar o olhar virgem diante do mundo foi uma
constante no trabalho de artistas como Juan Miró, Van Gogh, Matisse, Paul Klee e tantos outros.
“Eles nos oferecem como herança a possibilidade de desenhar ‘errado’, de inventar as cores que não
estão nas coisas”, diz Dworecki. Melhor assim. “O acerto é muito chato: todo mundo acerta igual”,
afirma o professor.

Por isso é que a borracha, nesse caso, só atrapalha. “Desenho que é desenho tem que contar a
história de como foi feito, trazer no fundo as cinco ou seis linhas que foram testadas antes que uma
fosse escolhida, mostrar que havia outras camadas, outras possibilidades, deixar espaço para que o
espectador o complete”, diz Von Poser. É, em resumo, uma questão de dedicar-se a errar. A errar
com graça.

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