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Tranformando a realidade

O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a


imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás
de casa.
Passou um homem depois e disse: Essa volta que o
rio faz por trás de sua casa se chama enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que
Fazia uma volta atrás de casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.
Manoel de Barros

Nos últimos 4 anos, paralelamente à minha atividade docente na disciplina de Prática de


Ensino de Arte na Universidade Estadual de Campinas (Brasil), tenho sido convidada, com
frequência, para palestras e workshops para professores de educação infantil. A constância
destes convites levou-me a concentrar minhas observações nas concepções que os educadores
têm sobre infância e arte, e na possibilidade de transformá-las através de um trabalho de
formação, no qual a prática artística dialogasse com leituras de textos teóricos e literários,
imagens e poemas. A inclusão de textos poéticos entre as leituras obrigatórias, revelou-se
extremamente importante e nasceu da minha convicção de que artistas e poetas são
interlocutores privilegiados para quem trabalha com a primeira infância. Eles recuperam para a
educação aquilo que a criança ainda não perdeu: a capacidade de imaginar cobras de vidro mole
fazendo curvas atrás de casa…
Apesar de trabalhar com grupos sociais diversos, com recursos materiais muito distintos,
encontrei pouca diferença no modo como os professores trabalham com as crianças, assim
como na forma como organizam seus espaços. Esta constatação reafirmou minha certeza de
que a atitude do professor é muito mais determinante do que os recursos materiais. Realmente,
o que rege a prática do educador é sua “estética pessoal”, que não se restringe apenas a aquilo
que acha belo ou feio, mas envolve a própria maneira como pensa e faz as coisas. Cada
movimento, gesto, decisão está intrinsecamente conectada à estética de cada pessoa, que como
uma impressão digital, deixa sua marca única em tudo que toca. 1 Porém, diferente de uma
impressão digital que é permanente, a estética pessoal pode ser ampliada pela educação.
Tendo como apoio observações recolhidas nos cursos, procurarei sublinhar aspectos
que se apresentaram mais relevantes para ampliar o entendimento dos educadores, com quem
tenho trabalhado, a respeito da importância da arte na educação de crianças pequenas.
Quando procuram uma palestra ou curso de arte, os professores estão, em geral,
buscando técnicas e receitas que os auxiliem no planejamento das atividades. Buscam
novidades como se a Escola fosse um espaço de consumo e não de produção de conhecimento.
O primeiro passo, portanto, é levá-los ao reconhecimento da arte como linguagem, uma forma de

1 Ruebsaat,S.- On Personal Aesthetics, in 2nd International Academic Conference of Analytical


Psychology & Jungian Studies Texas, EUA, July 8,2005.
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representação e expressão que opera através de cores, formas, linhas e volumes para criar
imagens. Uma forma de comunicação que serve para dizer o que as palavras não dizem.
As linhas, cores, e texturas constituem um alfabeto, um dos primeiros que a criança
utiliza para se comunicar. Podemos mesmo dizer que é sua primeira escrita, porque toda criança
desenha. Encontrando um instrumento que deixe uma marca: a varinha na areia, a pedra na
terra, o caco de tijolo no cimento, o carvão nos muros e calçadas, o lápis, o pincel com tinta no
papel, a criança brincando, vai deixando sua marca, criando jogos, contando histórias. 2No
entanto, quando crescem, a maioria das crianças diz não saber desenhar. Faz-se necessário,
então, refletir se é possível considerar inerente ao desenvolvimento a atrofia de uma linguagem
que é tão natural na primeira infância.
Como dão pouca atenção à sua própria educação estética, os educadores simplesmente
aceitam que o desenho seja algo que se perde ou entendem que é reservado àqueles que
possuem um dom. Acreditam, também, que arte é sempre uma atividade cara, um luxo mais do
que uma necessidade.
Seguindo as pistas do poema de Manoel de Barros, podemos nos perguntar se as cobras
de vidro mole ao serem substituídas pelas enseadas, levariam consigo uma parte do mundo da
imaginação…
Piaget já havia alertado para este problema em A Educação Artística e a Psicologia da
Criança3 escrevendo: “quando se estudam as funções intelectuais, ou os sentimentos sociais,
nota-se um progresso contínuo, enquanto que, no domínio da expressão artística, ao contrário,
se tem a impressão de um retardamento”. Ponderando adiante, que “a educação artística deve
ser, antes de tudo a educação desta espontaneidade estética e dessa criação das quais a
criança pequena já manifesta a presença, ela não pode, menos ainda do todas as outras formas
de educação, contentar-se com a mera transmissão e aceitação passiva de uma verdade ou
ideal já elaborados: a beleza como a verdade, não recria senão o sujeito que a conquista”
Se não se trata de mera transmissão de informações, tampouco é tarefa que dependa
de um dom, mas que requer conhecimento, planejamento adequado e constância. Precisa ser
um exercício cotidiano. Não pode ficar confinada a dias especiais ou para quando sobra um
tempo. Exige, também, atenção ao nível de desenvolvimento intelectual e emocional de cada
criança, para que se tenha uma noção clara do tipo de atividade propor em cada estágio. Isto
pode evitar que se caia na armadilha de julgar os desenhos e pinturas a partir de critérios
estéticos totalmente incompreensíveis para uma criança.
Durante as vivências nos workshops os educadores percebem que, ao longo de sua
formação, tiveram poucas oportunidades de expressar suas idéias com a linguagem visual.
Precisam, portanto, de muitas experiências com diferentes materiais, afim de conquistar um
domínio sempre crescente sobre os instrumentos de criação.
Compreendem, porém, que a técnica é apenas um meio e nunca um fim em si mesma.
A curiosidade infantil em deixar marcas vem da necessidade de exercitar a capacidade de
apreensão das coisas, expressar descobertas, contar histórias.
Muito além do domínio dos materiais, as crianças necessitam de vivências significativas,
que serão o conteúdo de suas expressões. Não apenas de um grande es pectro de experiências,
como de uma sequência coerente de atividades, de forma a possibilitar o aprofundamento da
sua compreensão sobre o conteúdo a ser apreendido. 4

2 Albano Moreira, A.A.-O espaço do desenho: a educação do educador, São Paulo, Loyola, 10ª ed.
2007,p.9.
3 Piaget, J.-“A Educação Artística e a Psicologia da Criança”, Revista Pedagogia,janeiro-julho,1966,
vol.XII,nº21,São Paulo, p.137/139
4 Brearley, M- The Teaching of Young Children, New York, Schocken Books 1975, p.40
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A riqueza das imagens expressas nos desenhos e pinturas depende tanto da quantidade
e da qualidade das experiências a que as crianças são submetidas, como da atmosfera de
confiança e acolhimento proporcionado pelo educador durante as atividades.
Se o professor estiver preocupado em oferecer sempre uma novidade, sem se
preocupar em relacionar as atividades, o resultado poderá ser superficial e fragmentado. Mais
importante do que a variedade das informações é a possibilidade de construir um conhecimento
significativo.
Uma visita a um parque, uma história ou um sonho pode desencadear uma série de
atividades relacionadas. Se o ponto de partida for um passeio, pode ser interessante começar
pela observação das cores, texturas, sons e cheiros, seguida ou não, da coleta dos espécimes
que encontrarem. Este material, quando levado para a sala, pode possibilitar o aprofundamento
da experiência sensorial, a troca de observações, a criação de estórias. Num segundo momento,
as crianças podem ampliar suas descobertas, pesquisando em livros, lendo poemas, histórias e
filmes. Os desenhos e pinturas que resultarem desta série de atividades, traduzirão, com
certeza, a riqueza das experiências vividas.
Atividades que explorem o mundo externo: como visitas a parques, ao bairro, ao pátio do
recreio são tão importantes, quanto aquelas que explorem o mundo interno das crianças como: a
escuta de um sonho5, da lembrança de um evento marcante, do poema, ou da história preferida.
O importante é que o professor desenvolva uma observação e uma escuta extremamente
atenciosas aos diferentes olhares e desejos das crianças. Não importa tanto se os desenhos
serão bonitos ou não, mas que tenham significado, que traduzam o tamanho e a cor do sonho de
quem os criou.
O desenho, assim como a poesia, será, então, o resultado de um certo olhar do sujeito
sobre as coisas.
Este entendimento, que foi fruto das vivências dos educadores nos workshops, ampliado
pela leitura e reflexão de diferentes textos, não pode ser improvisado. Requer disponibilidade
para se entregar à experiência, pois “a função permanente da arte é recriar para a experiência
de cada indivíduo a plenitude daquilo que ele não é, isto é, a experiência de toda a humanidade.
A magia da arte está em que nesse processo de recriação, mostra a realidade como passível de
ser transformada, dominada e tornada brinquedo.”6

Ana Angélica Albano


São Paulo, Primavera de 2007

5 Gambini, R.-“ Bringing Soul Back to Education:Dreams in the Classroom”,in Soul and
Culture,Texas,TexasA&M University Press,2003.
6 Fischer,E.-A necessidade da arte, Rio de Janeiro, Zahar, 1967,p.252

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