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artista-eduardo-berliner/

10.11.2016 / CULTURA / POR FFW

entrevista exclusiva
com o artista Eduardo
Berliner
Por Waldick Jatobá
Memórias, fatos cotidianos coletados constantemente no seu
secreto caderno de anotações, desde o acordar até o adormecer.
Eduardo Berliner vive em perfeita sintonia com o mundo.
Jovem e talentoso artista plástico contemporâneo, dedica-se
essencialmente à pintura e costuma dizer que quando pinta, cria
atritos.
Seu senso de observação e disciplina é apuradíssimo, resultando
em telas pintadas a óleo, intensas, carregadas de uma força
pictórica única que o conecta diretamente com suas limitações e
vulnerabilidades.
Berliner é hoje um dos principais artistas de sua geração e
muito bem cotado e apreciado entre colecionadores e galeristas.
Na conversa que se desenrola a seguir, ele fala sobre as
influências para sua formação, a paixão que o mantém em
constant produção e seus processos de criação.
Durante a infância, quem foi o primeiro artista do qual
você se lembra de ter ouvido falar?
Quando pequeno, visitei museus de arte com meus pais, mas
não lembro de sentir interesse especial por algum artista. O que
me fascinava era o Museu de História Natural, com seus
dinossauros, esqueletos e dioramas. Lembro dos gráficos
indicando o cruzamento das aves e a diferença entre os bicos em
um modelo evolutivo darwiniano. Uma vez visitei o Museu da
Guerra com meus irmãos. Em uma sala dedicada à Segunda
Guerra, por eu ser muito novo, meu pai não permitiu que visse
algumas fotos, já que o conteúdo era muito violento. Essas
imagens que não vi ficaram marcadas na minha cabeça.
Adorava as ilustrações de uma coleção de livros infantis. Eram
títulos como As Viagens de Marco Polo – não era o texto o que
me interessava e, sim, as ilustrações ricas em detalhes. Lembro
que, olhando para esses desenhos, formulei pela primeira vez
uma pergunta que referia a natureza de um determinado meio.
Percebia que as linhas utilizadas na ilustração eram muito finas
e delicadas, nada que eu pudesse realizar com os materiais de
desenho tradicionalmente dedicados às crianças. Então
perguntei para uma amiga da minha mãe: como foram feitas
linhas tão finas? Ela respondeu: ”Com uma caneta de nanquim,
cuja ponta é como uma agulha”. Levei um susto com a resposta,
com a ideia de desenhar com uma agulha, algo utilizado em
uma seringa. Nessa época, ganhei minha primeira caneta de
nanquim. Amo essa ferramenta até hoje. A primeira vez que vi
alguém pintando foi o José. Ele veio do Nordeste e trabalhava
na casa dos meus pais. Nas horas vagas, fazia esculturas de
barro e pintava algumas delas com tinta acrílica. Lembro dos
pincéis e de uma caixinha cheia de tubos de tinta. Achava
fascinante, adorava vê-lo trabalhando. Ocasionalmente, pedia
um pedaço de argila e tentava fazer algo também.
Quais foram os momentos mais importantes de sua
formação? Houve alguém que o influenciou a seguir
esse caminho das artes visuais?
Conheci um amigo durante a faculdade de desenho industrial
que mantinha cadernos de anotação em que desenhava, escrevia
coisas e fazia colagens. Eram desenhos maravilhosos, repletos
adorei esses
adjetivos de franqueza e urgência. Nessa época, influenciado por esse
colega, comecei a manter cadernos de anotação, prática que
tenho desde então. A partir desse momento, comecei a
desenvolver trabalhos independentemente das demandas da
faculdade. Utilizava algumas disciplinas como pretexto para
desenvolver meus projetos e ferramentas do design gráfico para
produzir coisas que não pertenciam a esse contexto. Arranquei a
pele de um coelho mecânico e projetei a embalagem para essa
carcaça robótica. Fazia coisas dessa natureza e não me
processo/
preocupava em nomear o que estava fazendo. Eu apenas fazia podemos
coisas. Gradualmente, à medida que meu envolvimento com chamar também
esses projetos aumentava, surgiam dúvidas, questões, de
metodologia /
curiosidade e inquietação. Então, esse mesmo colega sugeriu proceder
que eu fizesse um curso de desenho com o Charles Watson, pois
ele abordava uma série de questões que pareciam importantes
para mim. Estudar desenho com o Charles foi determinante
para minha formação, pois entendi, pelo desenho, a
possibilidade de construir conhecimento por conta própria. Um
tipo de conhecimento muito especial e pouco valorizado, fruto
do contato diário e intenso com um determinado meio e a
gradual compreensão das questões pertinentes a esse campo.
Depois, por aproximadamente dois anos, participei do grupo de
estudos coordenado pelo Charles em que discutíamos os
projetos semanalmente. Ao longo desse período, entrei em
contato com a obra de inúmeros artistas. Em certa ocasião, foi
proposto ao grupo um exercício de pintura. Até esse momento
(2001) eu nunca havia pintado com tinta óleo sobre tela. Depois
desse primeiro exercício, nunca mais parei de pintar. Toda a
minha curiosidade e desejo naturalmente se direcionaram para
esse ponto. Pensei que queria fazer isso todos os dias da minha
vida o dia inteiro. Até então, minha prática artística era muito
fragmentada e, curiosamente, por intermédio da pintura,
consegui unir boa parte dos meus interesses. Fiz meu mestrado
em desenho de tipo para leitura em Reading, na Inglaterra entre
2002 a 2003. Essa é minha segunda paixão. Quando retornei
para o Brasil, passei a dar aulas de desenho de tipo e pintar.
Gradualmente, consegui dedicar mais e mais tempo para a
pintura.
Uma vez você declarou que, quando pinta, cria atritos.
Como você começa uma pintura ou um trabalho de
arte? O que vem primeiro: a ideia da forma ou o
suporte?
processo
Não há uma regra. Há anos conservo uma prática diária de de trabalho
desenho e pintura, e isso me mantém atento em relação a mim
mesmo e ao meu entorno. Como resultado dessa rotina,
ocasionalmente, surgem imagens mentais. Coisas estranhas,
que muitas vezes não consigo mapear imediatamente de onde
vêm. Então, tento encontrar uma maneira de colocar essa
imagem mental no mundo. À medida que transformo
pensamento em coisa no mundo, os materiais que utilizo
passam a interferir de forma determinante. Ou seja, passo a
pensar por meio dos materiais e da relação entre meus olhos e
minhas mãos. Gradualmente, a imagem mental inicial pode se
tornar menos importante e o processo passa a ser governado
pelas regras do suporte e do meio em que estiver trabalhando.
Às vezes, posso chegar a algo que considere interessante, mas,
em outros momentos, posso achar que essa imagem mental,
quando encostou no mundo, tornou-se pouco interessante.
Nesse caso, continuo trabalhando, e o próprio suporte oferece
uma dica para seguir adiante. Algo que não fazia parte de
nenhum plano, algo que quebra, uma mancha… Aí ocorre algo
diferente. Pelo contato com o próprio meio, coisas desconexas
que habitavam meus pensamentos encontram espelhamento
nos materiais, então eu posso ver algo que habitava meu
pensamento, mas ainda não podia nomear. É como se a pintura
ou o desenho fosse a ponte entre informação ainda desconexa.
Em outros momentos, não tenho certeza do que quero pintar,
então continuo desenhando e fico muito atento ao meu entorno.
Procurando uma dica no mundo, coisas que encontro na rua,
algo que tenha lido, a letra de uma música, uma frase solta, uma
folha, um inseto… Então recomeço a desenhar e pintar e novas
imagens vão surgindo na minha cabeça. Não tem início ou fim.
Você é essencialmente um pintor. O que te atrai na
pintura?
É como se o mundo fosse um rádio fora de sintonia, em que
identifico apenas ruídos, e a pintura não me ajuda a
transformar o ruído em música, mas colabora para que eu
encontre sentido no próprio ruído. Pintura é algo que me coloca
em contato direto com minhas limitações e mais profundo
senso de vulnerabilidade. É uma espécie de membrana que me
ajuda a perceber o mundo e criar sentido. Quando fico muito
tempo sem pintar ou desenhar, sinto que meu olhar perde
intensidade. Quando pinto, mantenho vivas, de forma muito
intensa, a experiência e a lembrança de tudo o que vejo e penso
em cada parte do meu corpo. Dessa forma, cada experiência
diária encontra reverberações nas demais experiências
construídas ao longo dos anos.
Qual a importância da cor no seu trabalho?
A questão para mim não é apenas a cor, mas a natureza do
próprio meio. A cor na aquarela e no tipo de pintura a óleo que
desenvolvo pode funcionar de maneira muito distinta. Acho que
a diferença está no modo como afetam diferentes partes da
minha memória. Para mim, aquarela é sobre luminosidade,
atmosfera criada pela luz. Afeta meu pensamento de maneira
muito dispersa e sutil. Já muitas de minhas pinturas a óleo
lidam com memórias do corpo e sua fisicalidade. Acho que essas
diferenças têm uma ligação direta com a natureza da tinta e sua
relação com o suporte. Por exemplo, é muito diferente pintar
sobre madeira ou sobre lona, a experiência sensorial
intuitivamente se relaciona com o assunto e com o rumo que
uma pintura pode tomar.
 
Você tem uma rotina para criar?
Tenho, simplesmente vou todos os dias para o ateliê e trabalho.
Se não tiver uma ideia específica, procuro algo que ajude a
iniciar um movimento. Pode ser algo que encontrei no caminho
entre minha casa e o ateliê, um pombo morto, uma folha, uma
cebola… Caso não encontre nada que interesse, acabo
destruindo alguma pintura antiga, pinto por cima e, à medida
que mexo na tinta, meu olho e minha mão vão ficando curiosos
e, gradualmente, entro no processo de pintura. Há anos
mantenho registros fotográficos e tenho pilhas e pilhas de imagens
fotografias espalhadas pelo ateliê, às vezes, em busca de um
ponto de partida, pego aleatoriamente uma foto enterrada no
bolo. Acho curioso como fotos a que eu não dava a menor
importância podem se tornar interessantes em outro momento,
quando associadas a um novo problema. Muitas vezes, são identifique um
problema /
apenas pequenas desculpas para iniciar o processo. deixe as imagens
Quem são seus ídolos no mundo da arte? surgirem + _

Admiro inúmeros artistas, mas guardo entre meus ídolos um


lugar especial para William Kentridge, Paula Rego e Lucian
Freud. De alguma forma, em todos eles encontro um olhar
perfurante sobre as coisas que estão bem debaixo de nosso
nariz, mas não notamos. Na época em que comecei a pintar, tive
a oportunidade de visitar uma retrospectiva de Freud, e foi uma
experiência muito marcante pra mim.
Você é um jovem artista com um currículo importante
pra sua idade. Já participou da Bienal de São Paulo e
também já fez exposições fora do Brasil. O que mais te
marcou em sua trajetória?
A Bienal de São Paulo foi importante em virtude do ótimo
relacionamento com a curadoria. Foi a oportunidade de fazer
pela primeira vez algo que mais e mais passou a me interessar.
Levar para o espaço expositivo trabalhos de naturezas distintas.
Pinturas, desenhos, aquarelas, textos, esculturas, fotografias e
cadernos. Percebi que essa maneira de ordenar as obras no
espaço ecoava o modo que percebo o mundo e os mecanismos
de minha memória.
Este ano ainda tenho minha individual na Casa Triângulo, em
São Paulo. Dediquei o ano inteiro apenas para esse projeto,
com abertura dia 5 de novembro.
Quanto tempo, em média, você dedica a um trabalho?
E quando você tem a certeza de que está pronto?
Difícil definir. O trabalho pode ficar pronto em algumas horas,
um, dois ou três dias… A realização normalmente é rápida. No
entanto, acho curioso notar que algo pintado em poucas horas
pode ter sido iniciado há anos em uma pequena anotação. Na
Bienal de São Paulo, apresentei um trabalho que de certa forma
toca nessa questão. Uma mesa com cadernos de desenho
produzidos ao longo de uma década. Cada desenho pode ter
sido realizado rapidamente, mas o número de folhas do caderno
nos lembra do tempo acumulado.
O trabalho está pronto quando não sinto mais necessidade de
modificar nenhuma das partes. No entanto, preciso voltar para
casa, dormir e olhar novamente no dia seguinte, afastado da
intensidade do processo para saber se o trabalho ainda
sobrevive. Às vezes, algo que inicialmente parecia ruim ou
inacabado parece forte e completo no dia seguinte, e a relação
oposta também ocorre com frequência. Outras vezes, um
quadro fica guardado em uma sala durante meses num estado
de dúvida. Pode ser que o surgimento de outras obras entre em
diálogo com esse quadro, então, ele fica pronto por conta
própria.
Qual conselho daria para os que estão começando a
carreira agora?
Acredite no pensamento que é construído lentamente pelo
contato diário com seu próprio trabalho.
Vá lá:
Exposição Eduardo Berliner (até 23.12)
Casa Triângulo (Rua Estados Unidos, 1.324, São Paulo)
*A FFWMAG é uma publicação semestral e a edição de número
42 com 4 capas especiais já está à venda nas principais bancas
do Brasil, na rede da Livraria Cultura e loja online
(www.livrariacultura.com.br)

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