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MESTRADO EM ENSINO DE ARTES VISUAIS 2022/23

REFLEXÃO SOBRE A MINHA EDUCAÇÃO ARTÍSTICA


MARGARIDA COELHO

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM PORTUGAL


Professor Doutor Joaquim Pintassilgo

MEMÓRIAS SOBRE O ENSINO


3 de janeiro, 2023
A memória é uma matéria complicada. Os registos que compõem a nossa memória pesam tanto
no nosso ponto de vista quanto esse mesmo ponto de vista pesa na formação das nossas memórias.
Quanto mais penso no assunto, mais alimento a visão da ligação entre as minhas memórias e o meu ser
como um ciclo inquebrável, um padrão que se autorrealiza.

A minha memória, como a de muitos outros, é altamente seletiva. Conjugando isso com o impacto
que o meu acompanhamento psiquiátrico, principalmente os fármacos receitados, teve na minha
memória, não tenho muita confiança na veracidade nem no alcance da mesma. Deixando claro que a
ligação entre o meu presente e passado seja débil e inconstante, creio que este exercício possa trazer
alguma catarse ao me encorajar a concentrar e refletir sobre o meu passado, particularmente nas
memórias da minha educação artística no ensino básico.

Consigo afirmar com certeza que o meu primeiro contacto com o mundo das artes foi através do
desenho. O meu pai conta-me que em pequena carregava sempre comigo uma mochila munida de pelo
menos um caderno e um estojo para que, fosse onde fosse, nunca estivesse desprovida da possibilidade
de desenhar. A minha educação artística iniciou-se cedo; sendo neta de dois pintores e sobrinha de duas
professoras de artes, assim que comecei a rabiscar era alvo de grande fascínio.

Passei pouco tempo com o meu avô antes de ele falecer, mas recordo-me vivamente do espanto
que sentia ao estar no seu atelier, recheado de telas e material de pintura, e de me sentar a desenhar
nesse mesmo espaço. Só me recordo de uma lição em específico, uma sobre profundidade – estava a
desenhar uma rapariga na relva e o meu avô explica-me que, ao desenhar coisas mais pequenas e com
menos detalhe, conseguia fazer com que elas aparentassem estar longe. Numa folha ao lado do meu
desenho pintou uma série de riscos verdes (relva) e por cima deles outros risquinhos mais leves e
pequenos – parecia magia! Senti-me muito poderosa com este novo truque.
Gostava muito de livros para colorir e, ao ver isso, a minha mãe e a minha tia ensinaram-me como
pintar com marcadores e lápis. Três lições a que dei muito uso:

Das escolas que mais contribuiu para o desenvolvimento do meu interesse pelas artes foi o Jardim
Escola João de Deus, a escola onde passei mais anos (da pré-primária até ao quarto ano). À medida que
me vou afastando do meu tempo no João de Deus, a minha admiração pela educação que lá recebi cresce,
começando pela importância dada aos trabalhos manuais. Tanto em variedade como em frequência, as
artes plásticas foram uma presença marcante nos meus oito anos no Jardim Escola João de Deus.

Dias especiais como Dia da Mãe, do pai, da criança, entre outros, eram sempre acompanhados
de um projeto de trabalhos manuais. A escola dispunha de um estúdio de olaria, onde aprendemos a fazer
copos, tigelas e até pintamos os nossos próprios azulejos. Lembro-me de fazer projetos de recortes,
decorações com macarrão, desenhos impressos em t-shirts com serigrafia, de fazer papel com polpa de
jornais rasgados, pinturas com uma pena e café e desenhos de grande formato, em particular um retrato
do “mundo do avesso”, feito com lápis de cera Caran D’Ache sobre uma cartolina preta A2.

As experiências com trabalhos manuais faziam parte de todas as disciplinas, desde estudo do
meio a matemática, e eram sempre a parte favorita da turma em qualquer aula. Em cada período os
alunos trabalhavam as artes e música, praticando coreografia e preparando adereços, em preparação
para um espetáculo, de Natal, de Carnaval e de fim do ano escolar. Lembro-me de fazermos desfiles
elaborados, com cantigas e fardas específicas. A escola em si ainda se encontra decorada com frisos e
morais pintados com temas naturalistas, os quais passei muito tempo a admirar.

Nestes anos, a maioria dos meus colegas gostava de desenhar, ninguém se destacava como o
artista da turma ou “a pessoa que desenha”, mas com o passar dos anos vi essa diferenciação a
intensificar-se.

A transição do João de Deus para a escola seguinte, Colégio de Santa Maria, foi abrupta. Toda a
atividade artística passou a estar limitada ao atelier de Educação Visual, disciplina que só tínhamos uma
vez cada duas semanas, e os projetos que nos propunham eram banais comparados com o que estava
habituada. Foi neste colégio que comecei a sentir a distinção dos alunos “que desenham bem” quanto ao
resto da turma que, por comparação, não se identificava com esse perfil. Fui vendo essa divisão a ficar
mais pronunciada - à medida que os que “não desenhavam bem” se tornavam “os que não desenham”,
o número de alunos com gosto e dedicação pelas artes visuais ia diminuindo.

Nos dois anos que lá passei, lembro-me de apenas dois projetos que realizei no Colégio de Santa
Maria: um desenho que a turma fez para imprimir numa t-shirt comemorativa e um trabalho de retrato do
Rei D. Afonso Henriques, em que a turma fez uma fila em frente à minha carteira para que os ajudasse a
desenhar a cara, todos com a justificação - “porque tu desenhas bem” (a professora não aprovou deste
outsourcing do trabalho e a fila foi dissolvida).

O avanço para o 3º ciclo veio acompanhado de um grande salto no rigor dos trabalhos de Educação
Visual. Na Escola Secundária Rainha Dona Amélia tive as minhas primeiras experiência com software de
criação de arte, como o Photoshop e GIMP. Entusiasmada com as novas possibilidades facilitadas por
estes programas e munida do meu primeiro computador comecei a dedicar-me a criar mais arte minha,
que publicava num blogue. Como a maioria dos exercícios de Educação Visual ofereciam pouca margem
para criatividade e exploração, tornou-se uma necessidade focar-me nesses impulsos no meu tempo livre.
Nestes tempos passei inúmeros dias a colecionar imagens e desenhos de livros e revistas, a imitar partes
que me cativavam, a descobrir novas coisas que conseguia desenhar. A minha professora de E.V do nono
ano permitiu-me um pouco mais de folga para encaixar o que gostava de desenhar no enunciado a
cumprir. Um exemplo é este desenho feito para um exercício de perspetiva com dois pontos de fuga:

Lembro-me de querer que os desenhos que fazia em Educação Visual fossem algo que quisesse
publicar no meu blogue, e não apenas uma imagem que fosse vista como banal. Neste caso queria cumprir
dois desafios: traçar os edifícios com canetas de grossura diferente e desenhar criaturas bizarras com
sombreamento a lápis de cor. Não fiquei satisfeita com o meu trabalho, a nível da perspetiva e do uso dos
marcadores mais grossos, mas foi um exercício muito importante.

Perto do final do ano letivo, no meu aniversário, recebi uma mesa digitalizadora da marca Wacom
e mergulhei por completo no mundo da arte digital; a arte foi afunilando para uma veia de BD e animação.
Comecei a traçar um projeto de banda desenhada, mas não possuía capacidades de planeamento a longo
prazo nem a disciplina necessária para tal desafio.

Em retrospetiva, gostava de ter nutrido mais o meu impulso aventureiro e ter sido mais aventureira
com a minha arte na minha adolescência. Encontrei uma zona de conforto em arte de videojogos,
animação e BD que pôs em pausa a minha experimentação com outras formas de arte e novos materiais.
A minha visão do desenho tornou-se limitada e eu tornei-me menos confiante. Todavia, a introdução à
carreira do ensino reacendeu a minha chama criativa e empoderou a minha experimentação. Sinto que,
para ajudar a formar alunos criativos e confiantes, tenho primeiro de me formar a mim. Quero aprender
para poder ensinar, ensinar para poder aprender… Quero despertar o gosto e entusiasmo pelas artes e
trabalhos manuais que recebi no Jardim Escola João de Deus… E quero que o meu trabalho artístico e a
minha posição de professora se alimentem um ao outro.

Para concluir, agradeço a oportunidade para parar e refletir no meu ensino, consegui contemplar
de maneira mais consistente o meu percurso até este momento. Em geral tive imenso privilégio de
frequentar as instituições de que falei.

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