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O meu amigo pintor (1987)

Sentir que, lá pelas tantas, eu consegui passar um sopro de vida pros meus
personagens [....] é o critério que adoto quando, já cansada de melhorar minha
escrita, resolvo botar o chamado ponto final na história.
(Lygia Bojunga, Dos vinte e 1)

A morte e a criança
Um livro infantil que gira em torno do suicídio de um adulto. Numa
história catalogada como infanto-juvenil, uma criança faz o relato do seu
luto. Uma obra dedicada às crianças traz, entre outras histórias, a de um
casal separado pela ditadura militar no Brasil. Lygia, em O meu amigo
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pintor, você olha a criança nos olhos e conta com todas as letras a história de
Cláudio, onze anos. Ele perdeu o melhor amigo, um vizinho já adulto, que se
matou. Assim, a criança que te lê depara-se com a morte e o suicídio, dois
temas incomuns nas narrativas dedicadas a elas.
Eu lia uma história para meu sobrinho Francisco, que tinha em torno
de seis anos. A personagem perderia a mãe e, em criança, o livro me tocara
muito. Ao ler para meu sobrinho, quando vi, estava rezando para ele não
perceber, por trás do sentido figurado, que se tratava da morte. Já
arrependida de ter selecionado justo aquele livro no meio de tantos, fui lendo
meio querendo acabar logo para passar a outro e terminei achando que a
coisa era tão figurada que ele não percebera… Mas o Francisco me olhou,
todo pensativo, e observou: “a mãe dela morreu, né?” Lygia, fiquei super
sem graça por não agir com tranquilidade. Isso foi há uns dez anos, mas
ainda me lembro com certo constrangimento…
Eu me sentia incapaz de lidar com a perda de uma pessoa querida.
Aliás não conseguia entender como é que as famílias continuavam vivendo
depois de perder alguém. Na minha família, eu acreditava, todo mundo só
morria de velhice. Podia até haver uma doença, mas ela só chegava depois
dos 80 anos… Tive sorte: não perdi ninguém até a idade adulta.
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Já te falei na minha dissertação de mestrado sobre o imaginário


urbano da bala perdida no Rio de Janeiro. A questão foi desenhada depois de
eu ser obrigada a encarar a morte da minha mãe, numa doença que durou dez
meses. Quis então escrever sobre a invasão da morte no quotidiano, apesar
de todos os esforços que fazemos para não pensar nela.1 Ao mesmo tempo
que desenvolvia esse trabalho, entre 2003 e 2005, escrevi uma novela juvenil
em que uma adolescente morre, vítima de bala perdida, na praia de
Ipanema.2 Ao escrever sobre o fato, a narradora, que vai fazer 15 anos,
descobre sua vocação literária.
Ao longo do livro, ela procura as palavras que representem a dor
causada pela tragédia. Assim como o menino Fernando, de 12 anos, que teve
uma redação publicada na edição do jornal carioca O Globo. Saiu na época
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em que eu defendia a dissertação. Sob o título “Minhas férias”,


frequentemente proposto pelos professores na volta às aulas, o desabafo pela
perda do pai. Roberto de Alcântara, motorista de ônibus, foi morto em
serviço, alvejado por bala perdida:
Provavelmente foram as piores férias que já tive. Não porque não viajei,
viajar não é tudo. Motivos pessoais que não são nada bons para serem
comentados numa reles folha de papel. Minhas férias se resumiram só a
estudar, dormir, de vez em quando me divertir com brincadeiras não tão
legais quanto estudar. Sair só para o curso, para estudar. Jogar videogame,
ver filmes todos os dias até altas horas por não ter com quem conversar nem
esperar para vir do trabalho por causa desta merda que se chama violência
que não abandona a droga da minha vida, por causa de um babaca qualquer
que acabou com toda a minha vida. Desculpa, professora, mas é a única
forma de expressar o que realmente eu sinto.3

Segundo o médico psiquiatra inglês Averil Stedeford afirmava nos

1
“Todas essas inovações – deslocamento da morte para a velhice, asilos, hospitais, etc. –
tornam a morte um fenômeno menos quotidiano. Nos tempos anteriores, todos estavam
condenados a perder, durante a vida, além dos pais e avós, irmãos, irmãs, primos, tios, um
ou vários filhos, inúmeros amigos, vizinhos e conhecidos. Hoje, a experiência da morte nas
sociedades industriais acontece normalmente em idade relativamente elevada, atingindo um
avô ou uma avó. Sendo as famílias atuais reduzidas aos pais e filhos e, muitas vezes,
residindo longe do domicílio dos avós e de outros familiares, pode acontecer de uma pessoa
não vir a conhecer a experiência da morte antes de ser adulta. Contudo, somente isso não
poderia explicar o distanciamento da morte.” (Rodrigues, 1983: 227)
2
Eu quero mais!, texto inédito.
3
In: Amora, Dimmi. “A bala que encontra cada vez mais vítimas”. O Globo, Primeiro
Caderno, p. 29, 07/08/2005.
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anos 80, uma das causas da dificuldade de se encarar o câncer terminal (o


próprio, o de um familiar ou amigo, ou mesmo de um paciente, no caso dos
profissionais de saúde), é o costume de afastar a idéia da morte para um
futuro remoto:
Quase todas as pessoas acham que vão viver até a velhice. Os jovens
presumem que alcançarão a vida adulta e provavelmente casarão; os adultos
ainda jovens, que vão progredir no seu trabalho, ter e criar filhos. Esses
esperam ver, mais tarde, seus filhos casados, desfrutar da aposentadoria e
dos netos. Na maioria, as pessoas, consciente ou inconscientemente, estão
programando a próxima etapa de suas vidas e jamais meditam sobre a morte
(Stedeford, 1980: 49)

Essa dissimulação da morte no quotidiano contrasta, segundo o


antropólogo brasileiro José Carlos Rodrigues, com sua espetacularização
pelos produtos da indústria cultural. Em livro publicado nos anos 80, ele
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observa que
Contra a idéia de „silêncio‟, os meios de comunicação nos dão a impressão
de um imenso barulho, de um intenso falar sobre a morte. Mas que morte é
essa, que povoa os meios de comunicação? São mortes normais, do dia-a-
dia, do próximo, daquele com quem temos alguma coisa a ver? São mortes
que despertem o pânico, que coloquem explicitamente uma fronteira entre
o aqui e o além, que evoquem o drama da finitude humana? São mortes que
impliquem um ritual, que questionem o homem no mais fundo de sua
existência? – Não. Simplesmente são mortes que ocorrem sobre a tela da
televisão, sobre o papel do jornal, incapazes de perturbar o ritmo de nosso
jantar ou o sabor de nosso café da manhã. São mortes que não evocam a
decomposição, que não nos colocam diante de um impasse escatológico,
que não transformam as relações sociais. São mortes excepcionais, pouco
prováveis, violentas, acidentais, catastróficas, criminosas, ou que atingem
pessoas importantes e excepcionais. Em suma: não são mortes.4 (Rodrigues,
1983: 229)

Pode ser que esteja mudando para “Sim” a resposta às perguntas que
grifei acima. A frequência dos casos de morte por bala perdida, no Rio de
Janeiro, dada a gratuidade que leva uma pessoa a ser alvejada, somada às
demais notícias de morte devido à insegurança pública no Rio de Janeiro,
têm modificado os modos de se habitar a cidade. Seja o pânico, o zelo
obsessivo pela segurança, o desejo de emigrar, a preferência por chamar um
táxi, em vez de sair no próprio carro… De um jeito ou de outro, a cada dia

4
Grifo meu.
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parece mais difícil deixar a idéia da morte de lado.


Eu te dei o exemplo da redação do menino. O texto fez parte de uma
reportagem de página inteira sobre a frequência de balas perdidas no Grande
Rio. Sob o título “A bala que encontra cada vez mais vítimas”, enumeravam-
se 19 casos de mortes desde janeiro até a data da publicação - 07/08/2005.
No período, pelo menos duas pessoas por mês haviam sido atingidas por
“tiros sem direção”. A matéria começava assim:
Com os olhos marejados, o funcionário do restaurante no Grajaú onde o
corretor Jorge Antonio Mirancos, 50 anos, foi atingido por uma bala
perdida há dez dias, enquanto jantava com a família, conta que escolheu e
reservou a mesa onde ocorreria a tragédia. O sentimento de culpa do
funcionário ganha mais força quando ele explica que a mesa estava há mais
de cinco metros da janela e que a vítima chegou a ser atendida por
paramédicos que também jantavam no mesmo restaurante, munidos de
equipamentos de respiração artificial e choque cardíaco. Ainda assim, Jorge
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não resistiu.
- Não dá para entender como isso pode ter acontecido. A bala passou por
um monte de gente e o acertou. Fizeram de tudo para reanimá-lo, mas ele já
chegou morto ao Hospital do Andaraí, que é aqui perto - disse o
funcionário.5

É certo que a espetacularização da violência pela mídia dificulta


nossa leitura dos fatos. O espetáculo existe, sim, e a cada dia mais
fosforescente. Não é tudo, porém. Existe uma perplexidade pairando pelas
ruas do Rio, hoje, que não existia ainda nos anos 90. A mídia, apesar das
purpurinas, também reflete e reforça este aspecto. Nesse sentido, Lygia, vejo
sua obra crescendo em importância, sabe? Quando você olha o leitor no olho
para falar que o Terrível não resistiu à luta, ou que a Gata da Capa foi
soterrada (!), que a Maria viu os pais caindo da corda bamba e que o amigo
do Cláudio se matou, quando você conversa com a gente assim, ajuda muito
(outro dia uma amiga minha perdeu o pai e receitei Corda bamba pra ela).
A narrativa de O meu amigo pintor é feita por Cláudio. Ele ouviu
seus pais conversando sobre a morte do vizinho e perguntou-lhes o que
acontecera realmente. Como resposta, recebeu um abraço da mãe, que disse:
- Você não tem mais que ficar pensando nisso, Cláudio. Na sua idade a
5
“A bala que encontra cada vez mais vítimas”. Por Dimmi Amora. Primeiro Caderno. O
Globo, 07/08/2005.
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gente tem que pensar na vida e não na morte. Você tem outros amigos…
- Que eu não gosto feito eu gostava dele!
- …você tem tanta coisa pra estudar, pra brincar, pra inventar, pára de ficar
pensando no que aconteceu com ele e toca a vida pra frente, meu filho! - foi
saindo e eu fiquei. E fiquei no ar ainda por cima. (Bojunga, 1987: 19)

Por pouco tempo. Logo ele vai saber que foi suicídio e, usando cores
para expressar as emoções, recria os fatos durante um sonho:
Pra ele, a coisa que tinha mais cor-de-morte era nevoeiro. Às vezes, quando
fazia céu azul de manhã mas de tarde começava uma névoa, ele dizia:
hoje fez vida de manhã,
mas agora tá fazendo um pouco de vontade de morrer. (….)
Nevoeiro assim forte quase sempre passa logo. Mas dessa vez não passou:
era um nevoeiro comprido, que durou a tarde toda e a noite inteirinha
também. A toda hora o Pintor espiava na janela. E nada da vontade de
morrer acabar. Foi por isso que ele se enganou: achou que a vontade nunca
mais ia passar e então resolveu matar a vontade.
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Tipo do engano sem jeito: no dia seguinte amanheceu um céu azul bonito
mesmo.
Mas aí o Pintor já tinha virado fantasma. (Bojunga, 1987: 27)

O livro é feito um diário, escrito nas três semanas seguintes ao


suicídio do vizinho pintor. Cláudio começa contando da vontade que teve de
ir até o apartamento de cima, dizer: “Saquei o que você me disse naquele
dia! estou entendendo demais esse preto; te juro que me deu um estalo e eu
estou entendendo o jeito que esse amarelo pegou.” Mas explica por que não
pôde visitar o amigo: “Hoje está fazendo três dias que ele morreu”.
(Bojunga, 1987: 8)
Dias depois, tentou dividir sua tristeza:
Eu tenho um colega na escola, sabe, e a gente é amigo. Só que não é amigo-
toda-a-vida do jeito que eu era do meu Amigo Pintor (tem dias que eu fico
pensando se dá pra ter mais de um amigo toda-a-vida) e ontem no recreio a
gente conversou de coração.
Tudo começou porque eu estava desenhando um coração; só que em vez do
coração ser vermelho, ele era marrom; e em vez de ser feito coração que a
gente conhece, ele era todo achatado assim pro lado e acabava de repente,
deixando a gente sem saber que fim que ele levava.
Quando eu terminei o desenho eu mostrei ele pro meu colega. (Bojunga,
1987: 30)

O colega diz que coração tem que ser vermelho, pontudo embaixo e
com seta. Pior: enquanto diz, “corrige” o desenho. No diário de Cláudio, o
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desabafo: “Eu acho que vai custar muito tempo pra arranjar um amigo que
saque também esse negócio de esborrachar e amarronzar coração”.
(Bojunga, 1987: 31) Lygia, mais uma vez você trabalha com a construção de
um espaço interno. Na solidão que descobre, Cláudio aprende a conviver
com perguntas, algumas que nunca vai responder. Como diz Maria, ele vai
se acostumar com elas.

O corpo e a obra
Essa é a terceira narrativa que você publica na primeira pessoa do
singular. Em A bolsa amarela, a protagonista Raquel conta várias histórias,
vindo a descobrir sua vocação literária. Em “A troca e a tarefa”, conto de
Tchau, a narradora, uma escritora, também trata de seu processo criativo. Já
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Cláudio, de O meu amigo pintor, não diz que é um escritor mas deixa claro
que é quem escreve o que se lê. Quando fala em seu “Amigo Pintor”, por
exemplo, explica porque o identifica desta forma: “acho que é melhor
escrever o meu amigo com letra maiúscula”, diz. (Bojunga, 1987: 13)
Usando assim a primeira pessoa do singular, você evidencia a
instância narrativa que adquire peso na sua obra. Uma vez que já te li até o
21o livro, posso voltar a este oitavo, hoje, e ver o quanto de você existe neste
pintor que se mata. Está na epígrafe: se você transmite vida ao personagem,
passa a existir - mulher que mora nos livros. Já o pintor se suicidou, na visão
de Cláudio, por não conseguir dar a tal “vida” aos quadros:
- Mas você é um bom pintor!
- Não! não, eu não sou. Eu sei muito bem como é que se pinta; eu tenho
técnica; eu trabalho e trabalho pra ver se eu dou vida aos meus quadros.
Mas não adianta: são telas mortas. - Foi apontando com o pincel: - Olha.
Olha! Olha!! não dá pra ver? não dá pra sentir que a minha pintura não tem
vida? - E aí ele jogou o pincel na mesa com um jeito meio, sei lá, um jeito
desesperado que, francamente, eu nunca tinha visto ele ter.
Eu fico lembrando dessa cena, e fico pensando uma coisa: será que um
artista pode amar tanto o trabalho dele que… deixa eu ver como é que eu
explico isso… pode amar tanto o trabalho dele que, se ele acha que o
trabalho não tem vida, ele também não quer mais ter? (Bojunga, 1987: 36)

Lygia, da forma como você costuma tratar a obra de arte, ela é uma
extensão do corpo do artista. Da forma como você fala em seus livros, eles
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são uma extensão do seu corpo. Aprendi com minha professora Vera, porém,
que a literatura surgiu exatamente da cisão entre o corpo e a história
contada...6 Então, parece que, ao escrever, você quer refazer este vínculo e…
consegue. Minha professora Vera que me perdoe a afirmação seguinte, mas
na minha leitura de você, Lygia, a obra não apenas se vincula ao seu corpo:
ela o constrói - livro a livro. A mulher que mora nos livros não tem outro
corpo senão este, composto de 22 títulos. É um corpo que paira por aqui
enquanto escrevo.
O vínculo entre o corpo e a obra só pode não existir para quem não é
artista. Se você é artista, o seu corpo se constrói da sua obra. Os meus livros,
aliás, nasceram, todos, cheios de vida. O fato de não publicá-los, porém,
pode fazê-los agonizar na gaveta. É como eu me sinto muitas vezes:
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sufocando junto com eles. Refiro-me a seis títulos: três infantis e três
juvenis. Faz dez dias que os recebi de volta, estavam nas mãos do Sr.
Parecerista, que me disse uma coisa horrível:
- Você escreve muito bem, mas seus temas são bobocas!
Isso mesmo, Lygia: bo-bo-cas. Não me disse mais nada! Como não
sufocar? Seis livros e o Sr. Parecerista me diz que escrevo muito bem, mas
que os temas são bobocas… Um adjetivo agressivo, né? A frase tem mais
cara de grosseria do que de parecer. Uma mensagem de desprezo, desdém,
fiquei arrasada. Ainda mais porque, exatamente quatro semanas antes tinha
recebido outro e-mail péssimo.
Há um ano (em julho de 2008), chegou uma mensagem ótima, de
uma editora grande, fabulosa. Já fazia um ano que eu mandara três desses
mesmos originais para lá (em julho de 2007). A mensagem tinha um tom
bastante pessoal, alguém dizia que estava encantado com o Para crescer e

6
“O primeiro indício da evolução que vai culminar na morte da narrativa é o surgimento do
romance no início do período moderno. O que separa o romance da narrativa (e da epopéia
no sentido estrito) é que ele está essencialmente vinculado ao livro. A difusão do romance
só se torna possível com a invenção da imprensa. A tradição oral, patrimônio da poesia
épica, tem uma natureza fundamentalmente distinta da que caracteriza o romance (….) O
primeiro grande livro do gênero, Dom Quixote, mostra como a grandeza de alma, a coragem
e a generosidade de um dos mais nobres heróis da literatura são totalmente refratárias ao
conselho e não contêm a menor centelha de sabedoria.” (Benjamin: 1993: 201)
103

que lutaria para publicá-lo. Recentemente, uma mensagem vinda do


“Infanto-Juvenil” da editora e assinada por outra pessoa, dizia:
Prezada Ana Letícia,

Foi com grande satisfação que avaliamos seu original Para crescer.
Infelizmente, em função de nossos projetos editoriais atuais, informamos
que, neste momento, não temos como incorporar este original ao nosso
catálogo. Tal decisão baseia-se na inadequação à nossa linha editorial no
momento e não a qualquer aspecto da qualidade do mesmo.
Agradecendo sua confiança, nos colocamos à disposição para futuros
contatos.

Atenciosamente,
Fulano.

Para crescer é uma novela juvenil. Foi o primeiro livro que escrevi e
queria que tivesse sido o primeiro a sair. Disse isso à Bom Texto Editora,
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que ficou de publicá-lo em 2005. Elogiaram muito o livro, mas desistiram


sem me dizer por quê. Finalmente, em 2006, a Bom Texto publicou Meninas
inventadas, reunião de onze contos juvenis. O livro foi finalista do Prêmio
Jabuti 2007, na categoria juvenil, e recebeu uma crítica elogiosa no Globo.7
Agora, penso em relançá-lo por outra editora e o juntei a mais cinco
originais, na pasta que me foi devolvida pelo Sr. Parecerista.
Hoje vejo a série de erros que cometi desde que concluí o Para
crescer, há quase oito anos. Minhas atitudes foram na maioria precipitadas e
descontinuadas. Enviei vários títulos de uma vez, sem saber que era melhor
um a um… Enviei textos pequenos e sem ligação, pensando que a editora se
daria ao trabalho de compor meus livros… Fiz várias bobagens, mas como
eu ia saber? Como um escritor que nunca publicou nada pode saber lidar
com o mercado editorial? Como é que eu ia adivinhar que eu não ia
conseguir desse jeito? Eu podia ter feito melhor? E agora, o que eu posso
fazer?
Estou muito triste com essas duas últimas cortadas que levei. Meus
seis livros são eu, claro que são. O pior é que ainda estou fazendo mais

7
Pauvolid, Eliane. “Metáforas delicadas do cotidiano. Ana Letícia Leal mostra domínio da
narrativa em 'Meninas inventadas”. O Globo, Prosa e verso, 9/12/2006.
104

quatro… Além deste que te escrevo, tem um livro de contos adultos e uma
novela juvenil que deixei quase prontos, no meu apartamento do Rio. Como
se não bastasse para a lotação das gavetas, ao receber o tal e-mail
desagradável da editora fabulosa, comecei o décimo.
Fui conhecer Belém e, quando vi, a Antônia estava comigo. É a
narradora do Para crescer. Pensei que ela estivesse sufocada no Brasil, mas
não: apareceu em Portugal dez anos mais velha. A gente foi passeando e quis
dar um presente a ela. Entramos na papelaria do Centro Cultural de Belém e
escolhemos a dedo um caderno lindo, colorido. Aos poucos, ela tem me
contado sua vida dos 17 aos 27 anos. Lygia, quem estava a ponto de sufocar
era eu, mas a Antônia devolveu vida pra dentro de mim.
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***

Quando redigi o texto acima ainda não tinha a edição da Casa. Vou
destacar dela o “Pra você que me lê” que, como todos, não se parece com
nenhum. Neste, você se explica pra muita gente. Ao longo de quase trinta
páginas, tenta mostrar as razões pelas quais andou contrariando um editor
aqui, um leitor acolá. Cada explicação é absolutamente coerente com a
imagem que você costuma passar, inclusive nas contradições que se
evidenciam.
Em relação a Meu amigo pintor, você recupera a história do livro que
nasceu da encomenda de uma editora. Tratava-se de uma coleção que iria
somar textos de escritores a imagens de pintores brasileiros em volumes
destinados ao público infantil. Você recusou em princípio por não querer
escrever sob pressão. Mas a pressão foi tão leve que você conseguiu se
concentrar a ponto de sentir-se “doída de ecos, lembranças… Mas confiante:
sabia que tinha engravidado do livro que ia ser.” (Bojunga, 2006: 98)
Quando o livro sai, alcança êxito comercial bem menor do que o
restante de sua obra. Você considera que a primeira edição do texto ficou
105

restrita a um “setor limitado”8 e, uma vez terminado o contrato, decide não


renová-lo9. Passa então a publicar o mesmo texto, com outro título e
pequenas modificações, pela editora Agir, que tinha o direito sobre seus
outros livros. Como sempre que fala em negócios, enfatiza a necessidade de
independência financeira e a dificuldade de se viver de direitos autorais
mantendo-se livre de determinações mercadológicas. Não entendi é porque
você não pode ceder seus textos a grupos de teatro amador, pois se eles não
vão ganhar dinheiro em cima, qual seria o problema? Você não poderia ficar
com o que viesse de “percentagem”? Mas de todo esse texto, ressalta-se o
seu pedido de amor a quem te lê. É como se você dissesse: “Não sou uma
mulher tão legal10 quanto vocês pensam, mas digam que me amam assim
mesmo!”.
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Lygia, uma de minhas intenções com este livro que te escrevo é


trazer à tona essas suas contradições. Elas ajudam a problematizar o ofício
de escritor na atualidade. Você, que se considera uma artesã da palavra, diz
abertamente que não abre mão de seus direitos autorais. Isso é no mínimo
curioso, querida.

8
“Pelo que me contaram, depois [de pronto], [o livro] alcançou uma bela repercussão no
limitado setor que percorreu.” (Bojunga, 2006: 98)
9
“Aprendi a reivindicar cláusulas que estabelecem prazos contratuais curtos. E tive que
também aprender a não hesitar na retomada de meus livros - uma vez esgotado o prazo
inicial do contrato - se as `regras do jogo´ são negligenciadas”. (Bojunga, 2006: 108).
10
“Mas quando - por exemplo - um grupo jovem, apaixonado por teatro, pega meu texto pra
levar pro palco, um dia se lembra que eu existo, vem correndo buscar minha autorização, vai
logo explicando que o grupo trabalha com emoção-e-paixão-mas-grana-não, aí sim sempre
me dói dizer não. Nossa! que decepção (puxa, Lygia, e a gente pensou que você era uma
mulher legal…), quanta revolta! (mas a gente já ensaiou a peça…), quanta perplexidade!
(mas a gente tá difundindo a tua obra… você não fica contente de contribuir pra todo esse
mutirão nacional de fazer nosso povo mais ligado no livro? no teatro? na cultura?…)”.
(Bojunga, 2006: 110)

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