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C O M U N I D A D E

L A V R O S

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PAULO BRIGUET

Licensed to Diego Araujo da Silva - av.diego.87@gmail.com


PAULO BRIGUET
C O M U N I D A D E L A V R O S

ÍNDICE
A literatura explica a vida humana. 3
Os dois acontecimentos que marcaram
a minha vida. 4
Os Pontos Luminosos 6
A literatura preserva o que
já existe dentro de você. 7
Os clássicos explicam a realidade. 8
Livros ruins — e o seu clássico particular. 10
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A importância da imaginação. 10

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A literatura explica a
vida humana.

S em a literatura a minha
vida não faria sentido.
Eu acredito num conceito que
eu costumo chamar de acon-
tecimento central. Todas as
pessoas tem um aconteci-
mento central em torno do
a importância que esse acon-
qual tudo o mais se torna por
tecimento aparentemente ba-
referir. Toda a existência vol-
nal teve na vida de Dante.
ta àquele centro de gravidade.
Dostoiévski? Eu tenho um
Qual é o grande aconteci-
palpite. Ele foi condenado à
mento da vida de Platão? Eu
morte por participar de um Licensed to Diego Araujo da Silva - av.diego.87@gmail.com
acredito que foi a morte de
movimento revolucionário
Sócrates. Aquele julgamento
e levado ao pelotão de fuzi-
definiu a vida de Platão.
lamento. Foi salvo no último
Para Dante, o encontro com minuto, foi exilado na Sibé-
Beatrice. Sua vida inteira e ria. Imagine o que é entrar
toda a sua obra gira em tor- num pelotão de fuzilamento
no de Beatrice. Ela é a guia de com a certeza de que irá mor-
Dante no Paraíso. Isso nos dá rer no momento seguinte?
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Para Santo Agostinho foi o Os dois


momento em que, no jardim, acontecimentos
ouviu uma criança cantar que marcaram
“Toma e lê. Toma e lê.” E leu a minha vida.
uns trechos de uma carta de
São Paulo e se converteu.
Na vida de Jesus, qual foi o
acontecimento central? Não
O primeiro deles é uma das
minhas mais remotas
lembranças. Vi, com dois ou
pode ser nem o nascimento, três anos de idade, meu pai,
nem a morte. É preciso ser à noite, sentado numa pol-
da existência, da própria bio- trona, lendo um livro. Aque-
grafia. Para Jesus, foi a insti- la imagem se fixou na minha
tuição da Eucaristia: “Isto é o memória de uma tal forma
meu corpo.” que eu nunca mais a abando-
nei. Ela me acompanha para
A ressurreição é o aconteci- onde eu vou. É uma coisa sim-
mento central na vida da hu- ples: meu pai lendo um livro,
manidade. mas me marcou profunda-
Na sua vida também existe um mente.
acontecimento que te redefi-
niu, que te fez ser quem você
é. Nem sempre é fácil encon-
trar isso. Talvez você encon-
tre mais que um. Mas busque Licensed to Diego Araujo da Silva - av.diego.87@gmail.com

o seu acontecimento central,


isto é um bom exercício.

“Toda a existência
volta àquele centro de
gravidade.”
HOMEM LENDO UM LIVRO-
ruskin stone

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E o outro acontecimento foi dessas Igrejas e, quando saí,


quando eu estava prestes a vi a outra Igreja, o outro lado
da calçada. Mas essa Igreja es-
completar 30 anos. Viajei para
a cidade de Mariana, MG. Es- tava incendiada, havia sofrido
tava com um amigo visitando um incêndio recentemente.
as cidades históricas minei- Estava inteiramente chamus-
ras. cada, as paredes estavam
completamente enegrecidas,
Me dizia ateu e era um mili- havia um cheiro de queima-
tante de esquerda. do, o teto havia desabado. Era
Minha vida estava completa- uma cena terrível.
mente desordenada. Depres- Eu me dirigi a frente dessa
são profunda, uma situação Igreja, olhei para essa des-
lastimável. truição e disse para mim:
Lá em Mariana, há uma pra- “Esta Igreja é a minha alma.”
ça com duas igrejas, uma de
frente para a outra. Igrejas A partir daquele momento eu
históricas. Fui visitar uma voltei a acreditar em Deus.

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As Igrejas do Carmo em Mariana.


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Eu não diria que eu sou exata- certo preconceito com O Se-


mente um convertido. Eu fui nhor dos Anéis. Achava que
criado na Igreja Católica, mas era somente literatura juve-
com 16 anos eu me distanciei nil, literatura de entreteni-
completamente. mento. Não é nada disso! O
Senhor dos Anéis é um clás-
A literatura salvou a minha
sico! Eu estou tendo, aos 50
vida.
anos, a grata experiência de
Eu jamais abandonei os li- ler O Senhor dos Anéis pela
vros. E foram exatamente os primeira vez! Tolkien era um
livros, as leituras, que man- gênio! Gimli, por exemplo,
tiveram essa vinculação com consegue encontrar um olhar
Deus escondida ainda dentro de amor nos olhos da Rainha
da minha alma. Élfica de um povo inimigo.
Isso é um exemplo de ponto
Os Pontos Luminosos luminoso! Um acontecimento
central na vida daquele per-

E u sempre fui um leitor


que buscou pontos lumi-
nosos.
sonagem.

Sabe aquele momento em


que você está lendo um livro
e para para respirar?
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“Meu Deus! É isso que eu es-
tava procurando! Este autor
está falando para mim!”
São esses pontos luminosos
que existem na literatura. Eu
já encontrei vários.
Eu tinha, por exemplo, um
MOÇA DE CINZA
louis le brocquy
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Eu sempre saio em busca des- a posse simultânea de todos


ses pontos luminosos, esses os momentos. Nesse sentido,
acontecimentos centrais que o acontecimento central sub-
existem também em cada li- verte o tempo: ele acaba vin-
vro. culando a passagem do tempo
a algo que permanece.
A literatura preserva
o que já existe dentro Nós estamos sempre buscan-
de você. do aquilo que é, aquilo que
permanece, que não será tra-

M inha conversão não sur- gado pelas correntes do tem-


giu do nada. po, que não vai ser desgasta-
do pela passagem dos anos.
Aquilo tudo já estava dentro Então, nesse sentido, a litera-
de mim! tura subverte o tempo e até a
E onde é que eu fui buscar própria História.
esses elementos dessa mi-
nha conversão? É lógico que
eu encontrei isso na cultura.
Aquilo estava dentro de mim
porque eu já havia testemu-
nhado a conversão de muitos
personagens!
Eu costumo dizer que o acon- Licensed to Diego Araujo da Silva - av.diego.87@gmail.com

tecimento central subverte


o tempo. A literatura faz isso
A LEITORA
felix valloton A literatura é uma
também! O Northrop Frye diz forma superior de
que a literatura não fala sobre realidade.
o que aconteceu, ela fala sobre Ao contrário do que se imagi-
o que acontece. E, nesse senti- na, a literatura não é um an-
do, ela subverte o tempo. Boé- tônimo de realidade, é uma
cio definia a eternidade como forma superior de realida-
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de. Vamos pegar um exem- Os clássicos retratam aquilo


plo simples: se você quiser que é perene, aquilo que nun-
conhecer a História da Rússia ca deixa de existir. Tome por
do Séc. XIX, o que é melhor? exemplo A Montanha Mágica,
Consultar jornais russos da de Thomas Mann. É uma qua-
época ou ler Guerra e Paz? rentena que nunca acaba! Um
jovem engenheiro alemão vai
Os jornais vão falar sobre o
visitar um primo internado
que aconteceu, Guerra e Paz
numa clínica para tubercu-
vai contar o que acontece.
losos, em Davos, na Suíça. Ele
Guerra e Paz é uma forma su- pretende ficar lá por alguns
perior de realidade. Seu pro- dias e fica por 7 anos. Chega
tagonista é mais real que os na clínica e contrai tubercu-
homens que existiram de car- lose. Sua quarentena nunca
ne e osso naquela época. Car- acaba.
rego ele como um amigo, que
Parece familiar?
me aparece em determina-
das situações: “O que ele faria O Simão Bacamarte, um per-
agora, se estivesse no meu lu- sonagem ficcional, é o retra-
gar?” to dos políticos brasileiros de
hoje. A Teoria do Medalhão
Os clássicos explicam também exemplifica o que
a realidade. se vê na Academia e na Mídia
brasileira.

O
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clássico é o livro que re-
siste à releitura.
O clássico é aquele livro que
você precisa mentir que leu.
Se você precisa mentir que leu
para ficar bem na rodinha,
pode ter certeza de que aquele
livro é um clássico.
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O clássico tem outra caracte-


rística. José Monir Nasser di-
zia:
“Não somos nós que expli-
camos os clássicos, são eles
que nos explicam”.
A literatura é também essa
busca pela voz interior, uma
presença constante em nos-
sas vidas. E às vezes você leva
uma vida inteira para desco-
brir essa sua voz interior.
É por isso que um leitor cos-
tuma se perguntar:
— Seria possível imaginar a
minha vida sem a literatu-
ra?
No meu caso, não.

“Nós estamos sempre


buscando aquilo que é, Licensed to Diego Araujo da Silva - av.diego.87@gmail.com

aquilo que permanece,


que não será tragado
pelas correntes do
tempo, que não vai
ser desgastado pela
passagem dos anos.”
O BRINCO
george hendrik breitner

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Livros ruins — e o seu ter receio de gostar de algum


clássico particular. aspecto de uma obra ou autor
com quem você não concorda.

A maior parte do que é


produzido na literatura A importância da
é porcaria. A maior parte dos imaginação.
livros que existem não mere-
cem ser lidos. Mas, às vezes,
encontramos livros que não A base de tudo é o discurso
poético, o discurso ima-
são clássicos, mas que ensi- ginativo. Sem esse campo,
nam alguma coisa. você não avança para os ou-
tros níveis do discurso.
Há leituras que eu fiz há 40
anos e que ainda povoam vi-
vamente a minha memória.
Não são clássicos, mas fazem
parte da minha vida. São li-
vros bons, que me ensinaram
a construir histórias, mas não
são grandes clássicos da lite-
ratura.
Não sou contra a literatu-
ra de passa-tempo. Há livros
que são uma delícia de serem Licensed to Diego Araujo da Silva - av.diego.87@gmail.com

apreciados.
Um dos encantos da literatu-
ra é ter esse seu clássico par-
ticular, que só você dá valor.
Eu também já li muita porca-
ria quando era militante po-
DUAS DANÇARINAS
lítico. Mas você não precisa edgar degas

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A LEITORA
darren thomson

vvvbvvHoje, no Brasil, temos Por que meu pai olhava aque-


tentativas de retórica e dialé-
le objeto retangular que es-
tica, sem o repertório imagi- tava em suas mãos? Por que
nativo. O resultado é catas- ele olhava aqueles símbolos,
trófico. manchas de tinta impressas
num papel? De noite, cansa-
Nos falta um repertório cul-
do?
tural. E essa é justamente a
missão do Conservadorismo Talvez porque naquele livro
Brasileiro: preservar um re- existisse algo mais impor-
pertório imaginativo que se tante que a própria vida. Licensed to Diego Araujo da Silva - av.diego.87@gmail.com

perdeu ao longo das últimas


décadas. Fazemos um traba-
lho semelhante aos dos mon-
ges copistas na Idade Média, “...no jardim, ouviu uma
preservando o que foi esque- criança cantar:
cido para o proveito das pró- ‘Toma e lê. Toma e lê’.”
ximas gerações.

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