Você está na página 1de 132

~..

"

t/;..o.". :J..f.-
P!lc:6IDga
CRP 07101313 CPF .'O.2'O.45Cl.'lM

.
..J
PREF ACIO(·)

o Autor pediu-me para apresentar este livro ao leitor. É realmente com alegria que
passo a cumprir t110agradável tarefa. E não somente por causa do seu estilo, que de t110
simples poderia até despertar uma falsa impress110de simplicidade ao tratar, em profun- :!
(1idade, um dos temas mais pesados e dificeis de c()nfron.tar para-ª..h.!!ffi!i.nidª-º.e.Fiquei
~urpreso ao sentir que a alma, ao invés de manifestar oposiç11oatravés de resistências,
entregava-se deliciada ao aprofundamento desse tema. É que ela deseja sempre ser to-
cada em seu mais íntimo, para poder então transmitir vida à nossa individualidade. !: ~i:
..Q.Jwpo todo o livro está-se dirigindo a in<fuiduos, e a premissa básica de Adolf , ,I.
Guggenbühl-Craigé a universalidade da individuaç!o. Esta idéia, tomada a sério segun-
(,') um modelo religioso, é levada, por isso mesmo, até às suas últimas conseqüências:-ª.- .'d: iI .
il'i[
Irl.
:!~)1.a_fompreens110 da normalidade contida nos assim chamados desvios do normal da ·1

sexualidade, e da anormalidade intrínseca de fenômenos considerados normais dent!9 ~rj


l~.,
do casamento. Assim, nos extremos os conceitos se invertem, como vemos por toda par-
te no livro, numa descriç110extremamente simples, clara e direta. Sem apelos a com-
.,
promissos de espécie alguma, o livro trata da grande síndrome contemporânea do ca- 11.!
Ii
l~11

samento que, como mostra o autor, corresponde a uma constelação de forças arque-
típicas, sendo pois mais fundamental do que as síndromes de problemas específicos, ~:,I

sejam eles socíais ou pessoais. Mas ao considerar os fundamentos. arquetipicos, nào se ~:ll!
perdem de vista as diferenças individuais. Vê-se entào que <2.. arquétipo do casamenJ-O_ fI;;
l·j
~_C<'l pode surgir como fenômeno isolado.
"Os loucos avançam, quando os anjos temem prosse&!rir". - O autor caro leitor, !!l
•. !
aventura-se por regiões que os anjos não se atrevem palmilhar. N110é somente um pouco I':
de loucura que intuímos no autor, é sobretudo algo de diabólico em ação. Em seu tra- ;i
"
balho se revela uma amorosa valorizaç110do outro - na maneira como trata o amor, o I:

relacionamento, as convenções dentro do casamento, o divórcio, a individuação, a \


psicoterapia, a ·sexualidade. O lado diabólico aparece ora...sobJotma-d<:--uma suave de.!
saprovação, ora como um sarcasmo a sério, ou na sutileza com ue estabelece distin~s_
~iire;-por-exemplotfellti< e e salvação, repro ução e sexualidade. sexIU.!.idade I.
1!!Q@!menteaceita'e fant~sias sex!!!is. ~ssas posições éticas, atunt110 aceitas como
~uto-evidentes. são arrasadoramente questionadas. E mais: a argumentação do autor
não se baseia apenas na tradiç110judaico-cristã, em que a monogamia é um reflexo do
monoteismo. Vai adiante, possibilitando-nos o acesso às imagens tentadoras dos mitos e
li
dos arquétipos ao longo da individuaç110, com uma abertura para os pontos de vista de '1
culturas pagãs e politeístas. N110é nisto que consiste precisamente o diabólico? '12l!!.:.
bollein" significa separar as coisas umas àas outras, ou decompor em duas partes. Nos-
sos pensamentos e nossos sentimentos não s110mais os rríesmos depois de se ler Guggen-
hühl. Em outras palavras, ele escreve livros psicoterapêuticos e não livros sobre psico-

(') Da ClJiç~o alcm~. Traduzido por Dr. Pedra ROli, e Silva.


PREF ACIO(·)

o Autor pediu-me para apresentar este livro ao leitor. f: realmente com alegria que
passo a cumprir tão agradável tarefa. E não somente por causa do seu estilo, que de tão
simples poderia até despertar uma falsa impressão de simplicidade ao tratar, em profun- , 'I
didade, um dos temas mais pesados e difíceis de c<:>nfron~arpara-ª-h.!!mitnid~_e. Fiquei
~u[preso ao sentir que a alma, ao invés de manifestar oposição através de resistências,
Ii
entregava-se deliciada ao aprofundamento desse tema. f: que ela deseja sempre ser to- . ,
, I'
cada em seu mais íntimo, para poder então transmitir vida à nossa individualidade.
..Q.Jwpo todo o livro está-se dirigindo a inc.fuiduos, e a premissa bãsica de Adolf
Guggenbühl-Craigé a universalidade da individuaç!o. Esta idéia, tomada a sério segun-
:]
(,') um modelo religioso, é levada, por isso mesmo, até às suas últimas conseqüências:-ª..- I'11. i! '
,'I
:I'il
!!!)1a.soompreensãoda normalidade contida nos assim chamados desvios do normal da !f·l!
sexualidade, e da anormalidade intrínseca de fenômenos considerados normais dentrg ~r
I~ j,
do casamento. Assim, nos extremos os conceitos se invertem, como vemos por toda par-
te no livro, numa descrição extremamente simples, clara e direta. Sem apelos a com-
promissos de espécie alguma, o livro trata da grande síndrome contemporânea do ca- lU.
lr,i
~ 'I

samento que, como mostra o autor, cor responde a uma constelação de forças arque-
típicas, sendo pois mais fundamental do que as síndromes de problemas especificos, ::,1

;',lj
sejam eles sociais ou pessoais. Mas ao considerar os fundamentos, arquetípicos, não se to·I,

perdem de vista as diferenças individuais. Vê-se então que <2.. arquétipo do casamenJ.Q_ 1:\:;
l'i
~ca pode surgir como fenômeno isolqdo,
"Os loucos avançam, quando os anjos temem prossegIDr". - O autor caro leitor, !!i
aventura-se por regiões que os anjos não se atrevem paImilhar. Não é somente um pouco I':
de loucura que intuímos no autor, é sobretudo algo de diabólico em ação. Em seu tra- ;i
I'
balho se revela uma amorosa valorização do outro - na maneira como trata o amor, o /.

relacionamento, as convenções dentro do casamento, o divórcio, a individuação, a


psicoterapia, a ·sexualidade. O lado diabólico apareceJ)ra...sob...fOl:ma-d~um~ de.l
i
saprovação, ora como um sarcasmo a sério, ou na sutileza com ue estabelece distin~s_
~iitre;-porexemplotfet I e e salvação, repro ução e sexualidade, sextlª-lidade I.
'!!Qralmente aceita'e fantlj,sias sex~is. ~sas posições éticas, A!untão aceitas como
~uto-evidentes, são arrasadoramente questionadas. E mais: a argumentação do autor
não se baseia apenas na tradição judaico-cristã, em que a monogamia é úm reflexo do
monoteísmo. Vai adiante, possibilitando-nos o acesso às imagens tentadoras dos mitos e
l
r

dos arquétipos ao longo da individuação, com uma abertura para os pontos de vista de I
culturas pagãs e politeístas. Não é nisto que consiste precisamente o diabólico? ':.l2k!.:-
bollein" significa separar as coisas umas das outras, ou decompor em duas partes. Nos-
sos pensamentos e nossos sentimentos não são mais os mesmos depois de se ler Guggen-
hühl. Em outras palavras, ele escrev;: livros psicoterapêuticos e não livros sobre psico-

(') Da ClJiç~o alcm~. Traduzido por Dr. Pedro ROli, e Silva.


terapia. Poder-se-ia dizer que o autor possui a capacidade dos pregadores para, com sua
fé particular e seu ímpeto retórico, conseguir alterar nossa base a~mica. Cada idéia vai
sendo desenvolvida, implacavelmente levada adiante por desvios e variantes, com re-
capitulações e aprofundamentos, até sua força subjugante conseguir abalar nossos sis-
temas de valores e de crenças.
Mas, caro leitor, é preciso coragem para acompanhar o autor. Se bem que simples
no estilo e de leitura fácil, dado o grande número de exemplos concretos, este livro é um
livro ousado. Sobretudo porque não se encontram com muita freqüência livros escritos
assim no campo da P3icoterapia, em especial quando se trata da - horribile dictu _ es-
cola junguiana. É bastante dificil escrever assim, É muito mais fácil pegar um conto de
fadas ou uma obra literária e propor uma interpretação elegante. Ou apresentar um caso
com um comentário clínico bem fundamentado, ou elaborar insights mitológicos e
metafisicos, enfeitados com eruditas notas de rodapé. Tudo isto é muito mais· simples e
também muito mais legítimo do que meter-se nas casas e nos quartos de dormir de gente
casada e lá se pôr a mostrar como a individuação opera. O autor se distingue singular-
mente de seus colegas. Ocupa-se com as pessoas que estão na proximidade mais imediata
- homens e mulheres em suas vidas atormentadas, onde nos deparamos a cada dia com
nosso céu e nosso inferno, nossos complexos e nossa individuação. É exatamente isso,
bem o sabemos, e é assim que deve ecoar cada frase. Cada palavra deste livro deve ter
como pedra de toque nossas próprias experiências com a sexualidade e com o casamento.
E, para terminar, devo dizer que, do ponto de vista psicológico, o mérito especial
deste livro não reside nem ha perspectiva religiosa que adota, nem na simplicidade da ex-
posição. O 'importante é a originalidade das reflexões do autor, empiricamente fun-
damentadas em um sem número de observações de casos particulares da sua prática
psiquiátrica: insjghts sobre a sombra em..n.ass· . ótica nossos auto-en an ~_
no casamento e no diY6rcio, nossas ilusões em relacão a individuação. Ao er o livro sen-
timos raiva e sentimos embaraço; sentimos aquilo que James Joyce chamou de "agenbit
of inwit", uma mistura de alegria e contrariedade, implícita em toda auto-reflexão: não
é um livro sobre sexualidade ou sobre o casamento - é de mim que ele está falando! Sou
eu mesmo quem pensa, sente, acredita e comporta-se dcsta c dcsta maneira. Quanta ver-
dade nisto! 'Como eu sou louco! Na verdade, como é infinilamcntc plcna dc irnp,.",; ?i1Cl:l
e de sentido a luta em que transcorre a minha vida!

James Hillman
GUERRA E PAZ NO CASAMENTO

Quando Zeus e Hermes vestiram-se com suas formas


~~.
:f!P.

mortais e viajaram através de terras da Betânia, todas as


portas permaneceram fechadas para eles. Ninguém lhes
ofereceu hospitalidade. Na subida de uma colina, de onde
se avistava a cidade particularmente inóspita, eles encon-
traram a cabana modesta de um pobre e velho casal,
Badus e Philemon. A porta estava aberta e eles fizeram-nos
entrar com grande afabilidade. Durante a refeição os hos-
pedeiros notaram que o vinho, ao invés de diminuir, de ~',
modo assombroso, se reabastecia continuamenté na jarra. w.
Compreenderam
pIes que seus
mortais e assim convidados
.os dois não podiamsuas
deuses revelaram ser sim-
ver- /,].~ ff·
dadeiras
to ponto identidades.
da colina. Lá,Levaram o casalque
de"scobriram deno
velhos
vale ao mais al- :'1J,,,.l
profundo, y-
a inóspita cidade havia desaparecido, submersa por um
lago. Sua cabana havia se transformado num templo e Zeus
se propôs a satisfazer a todos os seus desejos. Bacius e
Philemon quiseram somente passar o resto de suas vidas
servindo no templo e que um deles não sobrevivesse ao
outro. Quando morreram, um foi-transformado num car-
valho e o outro numa tília, que cresceram lado a lado.

A "Sagrada Família" é conhecida desde o Novo Tes-

tamento. Composta de Maria, José e o Menino Jesus. ~)IY


Nessa família invariavdmente reina paz e eompreenSãO~-V
Vários artistas retrataram Jesus na manjedoura ou no colo
de Ivlaria. Outras vezes, Jesus está brincando alegremente
enquanto ela cuida dele e José está sempre presente. Mes-
mo a perseguição que os força temporariamente a fugir
para o Egito não perturba a tranqüila harmonia da Sagrada
Família. Suas imagens sempre expressam piedade, har-
mot:lia e amor recíproco.
Hoje em dia o espírito da Sagrada Família está
presente nos comerciais de T. V. e na propaganda em
geral. Vemos o feliz casal de jovens passeando através de
um campo florido, enquanto a criança, viva e alegre, brin-
ca ruidosamente com um cachorrinho. Logicamente seu
bom humor deriva de causas que são de caráter bem mun-
dano. Estão satisfeitos porque se compreendem bem ou
porque suas roupas são lavadas com um detergente es-
pecial? Para essa família feliz não há nada além de luz,
alegria e sorrisos cheios de amor mútuo.

Assim,
radioso casal Bacius e Philemon,
dos anúncios de T. V., acada
Sagrada Família,
um a seu próprioo 1r . '
modo, representa o "casamento feliz" . J

A conceituação de' psicólogos e conselheiros ma-


trimoniais não é determinada por essa imagem tão in-
gênua. Têm uma visão mais diferenciada daquilo que seja ,::/,!c..-
um casamento feliz. ResQh~_em-se-pmc_eSSDS-l1eUróticos-eIl.>'\'
t
"QS. canais de-eomlJnicação-bloqueados-podem-sec.res-
.liibeJecidos". Problemas conjugais podem ser solucio-
nados. Os cônjuges devem chegar a uma relação escla-
recida e madura. O casamento neurótico torna-se sau-
dável. Um casamento feliz é a meta dos esforços despen.
di dos pelo psicólogo especializado.

Entretanto, desde tempos imemoriais, tem havido


outras imagens da vida conjugal. Para os gregos, Hera e
Zeus representam os cônjuges. Como a Rainha do Céu,

H~ra ~ De~sa do'casament.Q e...d.o-aartQ.


"10 ~ R.- ~
A estória dessa união divina não é entretanto tran- "\
qüila.ou-se
sinu Os pais
pelo eram
quartocontra o casamento,
de Hera porum
na forma de isso Zeus
cuco in- )
a fim
de seduzi-Ia. Hera lhe deu três filhos, um dos quais era o
letal Deus da guerra, Ares. Uma vez, por alguma razão
desconhecida, Hera prendeu Zeus com a ajuda de Atenas e
Poseidon. A prisão foi tão bem feita que vários ajudantes
tiveram que ser convocados do Tartarus para libertá-Io. ai
próprio Zeus por outro lado, pendurou Hera pelos pulsos
e amarrou uma bigorna aos seus pés pata que a punição
fosse suficientemente dolorosa.
Antes de seu casamento Zeus teve incontáveis aven-"
turas amorosas, as quais, sem nenhuma restrição de sua
parte', prosseguiram mais tarde durante seu casamento.
Nem humanos, nem ninfas, nem deusas, estavam a salvo
de suas investidas. Hera vingou-se do modo mais cruel
dessas amantes de seu marido, embora ela mesma não es-
tivesse imune aos ataques contra a sua castidade. A na-
tureza selvagem dessa Deusa do casamento é mostrada nas
seguintes estórias: ' .
Antes de seu casamento Zeus tinha uma relação com 1
Leto, a mãe de Artemis e ApoIo. Hera odiava Letol (;111- .
bora essa ligação com Zeus tivesse ocorrido antes do seu
casamento com ela. A Deusa jurou que se vingaria e que
Leto não encontraria paz. Foi somente através dos
maiores esforços que Poseidon conseguiu aliviar o so-
frimento de Leto.
Zeus já estava casado com Hera quando seduziu 10, a
filha de Onachus. Por vingança, Hera transformou 10
numa vaca. Ainda não satisfeita, Hera aguilhoou a vaca
com o ferrão de um inseto gigantesco, o que levou 16 à
loucura. Em pânico total a infortunada 10, na forma de
vaca, disparou pelo mundo afora.

Quando Zeus teve u~a relação com a f~lha de Kad- \


mus, SemeIe, Hera disse a essa moça para pedIr a Zeus que

11
se significou
t~ mostrasse aem sua plena
morte para amagnificência, o que certamen- }
inadvertida SemeIe.

HeraUma
tinha seu vez Zeusquase
assassinou
nome. dormiu comosa amada
todos Aegina,
habitantes pelo que )
da ilha l
temente criativo e sem a ajuda de sua parceira ou de qual-
quer outra mulher produziu uma filha, Atenas. Por vin-
gançaHera irritou-se
Atenás pariu oquando
monstroZeus tornou-se
Typhori, independen-
que cresceu para ~
ser um perigoso inimigo de seu marido. 'i',
:,.~
bém com meninos. Supõe-se que Ganymede e Phaon i~
foram seusera
. Zeus amantes.
infiel a Hera não só com mulheres mas tam-j ! !:

ºcasamento de Zeus e Hera dificilmente pode ser en-


guadrado..-Co~elizn~No entantQ•..Hera é a Deus~i-dõ
iL
H 1\

casamento. Hera e Zeus podem ser descritos como an- . i


: i
teceSsores belicosos da Sagrada Família. Para os gregos i

eles simbolizavam o casamento' 'par excel1ence". .:.~' ,


:,ii

tr~tanto, é refl~tida
A imagem do não somente cheio
casamento, entre os
deDeuses, mas tam-
rivalidades, en- .:;i
'11

bem em estónas populares. As tensas relações entre Só- ('I/,};!!


crates e sua mulher Xantipa, por· exemplo, é legendária. ::r,.. .Ji
São contadas muitas estórias sobre a briguenta e exigente ~) : :li

Xantipa, .mas o pró~rio


deve ter SIdoum Sócrat~s,
mando dos apesar de s,!a A
maISdesagradáveIs. sabedor~a,
maneIra. :li'I'
1!,

cruel como ele se comportava com sua mulher é contada na ::i!


estória de sua morte: rodeado por seus amigos, Sócrates se .,i
• 'I
preparou para morrer e procurou pela CIcuta.Quando sua .li
'mulher começou a chorar sentidarilente, Sócrates pediu a J
s~us amigos que levassem para longe a "criatura lamu- J II

nosa" .·:i
Imagens e .piadas, antigas e modernas, sobre o tema
casamento, apresentam-no nessa forma infeliz. Assim, em •
grupo só de homens, hoje em dia, são usados termos como
a "velha", a ·"patroa", a "bruxa" quando referindo-se a
12
suas esposas. Em numerosas caricaturas vemos a mulher de
pé atrás de uma porta, braço levantado com um rolo de
macarrão na mão, esperando, enquanto seu marido ser-
. penteia seu caminho do bar para casa num estupor leve- •
mente embriagado. Em baladas populares é encontrado o
tema da mulher rabugenta a qual nem mesmo o diabo quer
levar depois de sua morte.
O marido bruto que bate na mulher é· uma imagem
que quase não aparece mais no folclore popular atual do
casamento. Em contraste, a im·agem do marido aborrecido
que de manhã à noite se esconde atrás do jornal é muito
comum. Muitas piadas ironizam o marido que faz o pos-
sível para evitar que seus olhos se desviem para as ga-
rotas. Também o marido enganado é um alvo favorito.
Parece-me entretanto notável que essas imagens
negativas e corriqueiras levem a um guestimiamento sobre
a validade do próprio casamento. Porém,· isto já riãOé
tão verdadeiro em alguns trabalhos literários ou cine- !,

matográficos. O recente filme de Bergman, "Cenas de um i


casamento", apresenta a idéia de que uma relação ge-
nuinamente humana é quase· impossível dentro de um
casamento. Os dois personagens principais deste filme-
aprendem a realmente compreender um ao outro somente
depois que se separam.
Para muitas críticas sociais modernas o casamento é
uma instituição hipócrita, restritiva e destrutiva. Só pode
ser mantida por falsidade e fraude. FreqUentemente é visto
também como um dos instrumentos· da ordem social
dominante para condicionar o povo à subserviência, .numa
mentalidade escrava. Devemos nos perguntar então: é o
casamento uma instituição moribunda? Pode mesmo ser
um instrumento de tor~ura por parte da sociedade?

•••
••• 11
CASAMENTO E FAMÍLIA: INSTRUMENTO DE
TORTURA OU UMA INSTITUIÇAo AGONIZANTE?

A verificação de que a família e o casamento estão


hoje em estado de dissolução não exige um espírito crítico
aguçado, ainda que muitas pessoas ainda se casem com
~
grande entusiasmo. Porém, em todos os países onde as leis
não dificultam a obtenção do divórcio~ muitos casamentos
estão sendo· dissolvidos. Evidentemente não é só a res-
-- trição legal que impede os casaisde se <Íivorciarem. Muitos
~amentos se mantêm apenas por CQ~ões PUf,!:
mente materialistas. Para quase todas as classes sociais _
exceto para a muito rica e a muito pobre - o divórcio
usualmente significa um declínio no padrão de vida para
ambos os cônjuges e para os filhos. A mesma renda,
depois do divórcio, deve sustentar duas casas. Em' gruQQ§
s.pcia:isonde não há preocupação com dinheiro, onde um
divórcio não traz nenhum declínio significativo no padrão
"- de vida, ~ca de metade dos casamentos terminam em
divórç).Q. Mesmo quando um casamento se torna insusten-
tável muitos casais não se divorciam por causa dos filhos.
"Estamos esperando até que os filhos cresçam' o
pretexto. Quando os filhos crescem também não se divor-
ciam, não porque o relacionamento conjugal tenha me-
.
lhorado ' mas porque os cônjuges estão muito cansados e
têm medo da solidão OLI acreditam que não estão aptos
para encontrar novos parçeiros.
t\pesar do aumento crescente da taxa de divórcio a
I!!aioria das ~~soas o sente cO~~ãocásiâo-
do casamento tmham realmente a intenção de permanecer .
juntas até que a morte os separasse. r'-1~
j
J
Seria cansativo fornecer informações estatísticas sob~ I
a freqüência de divórcio nos vários países, culturas e ca-
j
! madas sociais. É muito mais expressivo para o indivíduo
1
lembrar-se de conhecidos, parentes e amigos que estão Com
Ii cerca de quarenta e cinco anos. Fazendo-se isso, percebe-se
que muitos casamentos que começaram auspiciosamente já
terminaram em divórcio. Todo mundo conhece casais que
,I dissolveram sua família nas mais variadas fases do casa-
mento. E, justamente quando alguém conclui tranqüila-
mente que, pelo menos aquele velho colega de escola José e
sua mulher Luísa desfrutam um casamento feliz, o telefone
toca e José comunica sua decisão ~ de se divorciar.
Todos esses divórcios não seriam tão negativos se
pudéssemos perceber alegria e felicidade genuína entre os
não divorciados. Mas esse não é o caso. Sabe-se por es-
tudos 'gerais, assim como por experiência pessoal, que
..IlJJ!Í!.?s pessoas casadaL.fonseguem manter a faI)1fE,:,.
unida so"mente CQ.DL.tn.l!it.a...dificuldade
.•.negando a si :-ni~::....
. mos tudo o que lhes é-.earo. Aqui e ali, contudo, encon-
tramos casais que estão realiIieiite satisfeitos um co~
outrQ. Pelo menos eles pensam que é esse o caso. O obser- ~
vador objetivo muitas vezes tem outra opinião: o casa-
mento parece funcionar tão bem, só porque pelo menos
um dos parceiros se sacrifica completamente e negligencia
seu próprio desenvolvimento. Ou a mulher sacrifica todas
as suas reivindicações pessoais. e culturais em nome da
profissão e do conforto do marido, ou - e este está se tor-
nando o caso cada vez mais freqüente - o marido é sub-
serviente à sua mulher e dificilmente ousa expressar
opiniões próprias na presença dela. Sacrifica seus amigos e
suas oportunidades profissionais e praticamente permite ã .
sua mulher toda-poderosa usá-Io como um criado. Fre-
qüentemente se observa quão interessante, viva e animada
16
uma pessoa casada é quando sozinha e como desaparece
qualquer sinal de vivacidade quando o outro cônjuge está _
presente. Muitos casais que têm um bom casamento de um
ponto de vista exterior, de fato, virtualmente se aleijam en-
tre si.

A despeito do exército de psicólogos e conselheiros


matrimoniais, não só o divórcio continua a ocorrer com
grande freqüência, como os casamentos que ainda existem
muitas vezes parecem ser apenas situações de crescimento
paralisad~.
Psiquiátras e psicólogos tiraram suas conclusões des-
sa situação desagradável: a dinâmica familiar e matri.;.
monial é explicada aos pacientes. A dúvida freqüente é se
o casamento e a família, em. sua forma contemporânea,
i ainda são instituições significativas. Não é o casamento,
1: como os revolucionários sociais o explicam, apenas tim ~I
instrumento da sociedade usado para estupidificar as pes-
soas?

Mesmo psiquiatras e psicólogos que não comparti-


lham deste ponto de vista radical, somam débitos diário~' :~
causa contra matrimônio e família. ~a maioria dos I> .
.",cientes neuróticos, a causa de sofrimento emQciQnar-teiii:
-
...

origem nos comm:.QlIÚ.SS-os-.eo.njugais -


doentios de seus pais.
.•.

Uma psicanálise tem duas metas: libertar o paciente


.'1" de seu sofrimento neurótico e além disso ajudá-Io na
·-direção do seu pleno desenvolvimento, no encontro do
,~~'sentidode sua vida. Freqüentemente, no entanto, a psi-
análise põe fim a um casamento. Achar sentido na vida, "
ignifica nesse caso, acima de tudo, determinar que· o
asamento não permite nenhuma sorte de desenvolvimen-
o significativo para o analisando. .
Muitos escritores modernos descrevem o casamento
orno uma instituição doentia, mantida somente à custa de
-mentiras e hipocrisias, decepção mútua e autodecepção. A •.
ida familiar consistiria então de uma tormenta sem fim.
t'"7
A.m-entira e a hiQocrisia no_çhama90 casª-menJ~burguês é
um dOS-aI\'-os-fa~oJ:i1Qs-dos_autores_~od.ern.Qs.Nes·se·pon-
to se é tentado a parafrasear o Hamlet de Shakespeare _
Alguma coisa apodreceu de fato - não na Dinamarca_
mas na família e no casamento.

com completa imparcialidade e justiça, emerge o seguinte


quadro: se, usando grande acuidade psicol<)gica, se
Se olharmos a instituição do casamento e da família)
funcionar em cada simples caso e que tencionasse tortura
seus membros, certamente' se inventaria o matrimônio
contemporâneo
imaginasse uma e instituição
a instituição social
de família atual. incapaz
que fosse Duas pes-
d~
soas de sexo diferente, usualmente com imagens e fan- .
tasias extrémamente opostas, com vitalidade e força dis-
tintas, prometem um ao outro estarem juntos noite e dia,
por toda uma vida. Nenhum deles deve exercer qualquer
tipo de controle sobre o outro, ambos devem se desenvol-

freqüentemente declarado somente por causa de uma in-


ver plenamente. Entretanto esse poderoso juramento é \0

vilhosa,
toxicação mas será esmagadora.
sexual um fundamento
Tal sólido para uma
intoxicação vida J
é mara-
inteira juntos?

Sabe-se bem que a maioria das pessoas se aborrece


mutuamente quando fazem uma viagem de vários dias
juntas. Depois de poucos dias já é mesmo difícil expressar-
se e cada pequena decisão se transforma numa disputa
semelhante a uma luta romãilã. Os dõlsp·ãrceiiõs·- en-
tretanto prometem viver suas vidas inteiras (trinta,
quarenta, cinqüenta, sessenta anos) juntos, na maior in-
timidade física, espiritual e psicológica. Assumem esse
compromisso, que dura toda uma vida, na juventude!
Talv€z em dez anos sejam pessoas completamente diferen-
tes. Fazem essa promessa numa idade em que nem sabem
quem são eles próprios, nem quem é o outro. Acima de
tudo, não se sabe como um ou outro vai se desenvolver mais
~ tarde. A"jovem encantadora, bem adaptada, se transforma .
18
- quem adivinharia? - numa matrona intoxicada pelo
poder. O jovem romântico, com planos tão sublimes para o
futuro, talvez mais tarde se comporte como um covarde
irresponsável.

responsável não sox:nente permita, mas realmente encoraje


jovens em sua completa ignorância a. se vincular per- ,
manentemente aos problemas que
Parece incompreensível psicológicos que seus
uma sociedade votose J
decente
impõem. '. . )
Quanto mais aumenta a expectativa de vida, mais
grotesca se torna essa situação. Há duzentos anos atrás as
pessoas não viviam até tão velhas e a maioria dos casamen-
tos findava depois de dez ou vinte anos, com a morte de um
dos cônjuges. Hoje, muitos matrimônios duram cinqüenta
ou mesmo sessenta anos.
>I

.!

:1

19
AS MUITAS FACES DO CASAMENTO E DA VIDA
FAMILIAR
.,'

~;

.~r
kJ I J
·tJ~ /(1 (fi '1

í
gradativamente está minando o casamento como insti-
É OAZeitgeist
tuição. (espírito
deterioração do tempo) contemporâneo
contemporânea que
da moral, a rein-
terpretação ou mesmo dissolução de valores, não se detêm
lI i'·
, !
~'
I
.,
:11,
"

'.
diante do casamento e da família. A sociedade ocidental se
li acha em crise espiritual. A crise está sacudindo os fun- '(

damentos de nossa vida social e os alicerces da família e do


I.
casamento.
"

Tais conclusões são oriundas daqueles que têm a im-


li 'pressãode que a juventude de hoje é particularmente
~! ~ desordeira, que a criminalidade está aumentando em
proporções assustadoras, .que a arte está degenerando etc..
':

;,
;i

!
;1 Esta opinião parte daqueles que acreditavam que as coisas
eram melhores antigamente. Estas pessoas estão freqüen-
!
1·1;

temente influenciadas por uma imagem de uma' 'idade de


ouro". Esta veneração pelo passado serve à nossa com-
I;
,/.,
preensão da maioria dos fenômenos sociais tão pouco
I'
quanto o faz a aspiração por um novo futuro. As pessoas
I
I que sofrem de tal ânsia acreditam que qualquer coisa nova
I
é melhor do que o que h~via antes. Um certo tipo de pes-
I
soas acredita que houve uma idade de ouro; o outro crê in-
I genuamente em progresso e espera um novo paraíso.
111\
Em períodos hÍstóricos diferentes casamento e fa-
ília também tiveram significados.diferentes. Todas as
,,~
~/ insti~uições sociais, in~l~sive casamento, e família, estão
contmuamente se ?Io~lflcando .. O matnmônio no tempo
da reforma de Zwmgho em Zunch não era certamentelo
mesmo que no tempo de Rudol Brun no século XIII. O
casamento de um rico mercador no tempo de Luís XIV..
deve ser compreendido de uma forma diferente do de um
comerciante próspero na Paris de hoje.
Em territórios cristãos, até a Reforma, e em culturas
católicas, havia menos divórcios que hoje. Isso não sig-
nifjca que os casamentos fossem melhores ou piores. O
vínculo até a morte, que encorajamos ainda hoje como um
ideal, era até recentemente tomado mais seriamente pelos
tribunais. A int.egridadede um casamento monogâmico no
Ocidente Cristão foi muitas vezes somente uma ficção
legal. Entre a nobreza da Europa, nos séculos dezesseis,
dezessete e dezoito, era comum que o marido tomasse uma lI,
f

concubina e a esposa um amante. Em países onde, até bem


recentemente, o divórcio era impossível - como na Itália
- muitos casais viviam separados e formavam novos
lares, sem casamento. r.f),cr"
v~'

Os eruditos não estão de ªcordo guantQ à origem-º.o


casamentQ. Muitos antropólogos são adepiQs da fantasia
de que os--humanos viviam.--.m:!~eirament..~ em ho!.9as e
desfr..U1aYamJ.9talQromiscuidade: qualquer homem tinha
contato sexual com qualquer mulher; era desconhecido ;~
que a relação sexual levava à gravidez; o papel do homem ,i

na produção de crianças não era percebido; crianças eram :1

<. criadas· pelo grupo 'como um todo. A família, casamento, ;/


,

associações monogâmicas ou poligâmicas, são entendidas i


.
como desenvolvimentos secundários .

t.o e éfa.mll.iasão para eles primários e primordiais. Crêem


nisto porque muitos mamíferos têm "casamentos",
Outros eruditos preferem outras fantasias......Casamen:\
sejam eles monogâmicos ou poligâmicos. A estrutura I
social primária da humanidade, se supõe, deve estar re- JI
'\'1
fletidae na
posas imagem
crianças de umdeles.
em volta . grupo de. es- J
homem com um l
Deve-se procurar a origem do casamento no impulso
sexual, no impulso de propagação da espécie, ou estarão
elas ligadas à origem da propriedade? Teriam os homens e

as mulheres, em algum ponto, começado a se possuir
mutuamente? Nós não sabemos.
Olhando através da história, vemos que casamento e
família foram fundados e formados de formas diversas e
diferentemente compreendidos. Para o antigo persa, por
exemplo, o casamento tinha sua razão de ser na produção
,~ de guerreiros para o rei. A produção de filhos ..teveum
papel decisivo entre muitos povos, mesmo que não tivesse
nada a ver com a produção de tropas para o rei. Assim
Abraão, com a aprovação de sua mulher Sara, gerou uma
filha com a serva Hagar, porque Sara era estéril.
As diversas nações têm se aproximado muito mais,
atualmente, através da tecnologia. Todavia, a organização
e concepção de casamento e família mantêm grande diver-
sidade. Mesmo a formação da família segue uma varie-
dade de critérios. A escolha romântica de um parceiro,
motivada pelo amor e pela atração sexual, estã ganhando
terreno como um critério. Porém, ainda não foi adotado
por toaa a humanidade. Na Índia, cerca de oitenta por
cento dos matrimônios são combinados pelos pais; apesar
de ser esperada uma ligação romântica, ela não aparece

arranjados não são nem piores nem melhores do que os


baseados no amor romântico. Ambos trazem desapon-
freqüentemente. O interessante é que esses casamentos)
tamento.
A compra de esposas é ainda praticada entre muitos
povos; roubo de mulheres, por outro lado, não é mais
muito difundido. O número de maridos e esposas em al-
guns lugares não é o mesmo. A monogamia rigorosa é
apenas uma das muitas possibilidades. b.. posse de muitas

- ,- 23
esposas ocorre !req.üent~~~nte na _,Á.sia_~_~-ªÁX~jsa. De
acordo com o relato de alguns vlaJantes,-ª~iandria
aind_a_ç~te. Mes~~
(múltiplo.sJI1arido.s)_ap-ar_entemente __
uma mescla de poliandria e poligamia é encontrada em
certas áreas.

O casamento é vivido sob as mais diversas concepções.


Etnologistas descrevem quase todas as formas lmagináveis
i de família e vida conjugal. Pode-se observar que às vezes o
'ti
II
casal vai morar com os pais do noivo; em outros lugares
com os pais da 110iva. Às vezes a lei dá ao marido plenos ·
poderes sobre a 'esposa ou verifica-se o contrário. Existem
I
matriarcados e patriarcados. Em outros lugares os homens
I.,
vivem separados de suas esposas, encontrando-as em dias
específicos. O trabalho é dividido ou o trabalho é feito em
comum. Um mínimo de contato sexual é determinado pOI
estatuto legal.

Os etnologistas relatam também os costumes mais


QiyetsQS-COOl relação...à-possibilidade_e imROSSThlIiaããe-aê
divórcio; o divórcio..-p-ode ser somente um--ª--.pequenafor-
JD. idade ou raticamente im ossível de ser obtido. Uma
forma extrema do vínculo matrimoma m IssolUvelocorre
quando a esposa permanece fiel a seu marido mesmo •
depois de sua morte, atirando-se sobre sua pira funerária.
Talvez a forma menos usual de casamento seja a descrita
pelos etnologistas: Uma jovem é casada com um menino
por seus pais. Desde que uma vida sexual CQmesse menino é
naturalmente impossível, é permitido à jovem esposa tomar
um amante e mesmo ter filhos com ele. Quando seu marido
tornar-se sexualmente capaz, ela o inicia sexualmente.
Depois de vários anos o marido toma como amante a es-
posa de um marido-menino, e mantêm essa relação até que
seu marido atinja a idade adequada, quando ela o inicia na
vida sexual.
.

tuiçãoPortanto,
de casamento
aquilo e afamília,
que nosnão
referimos
é algo que
como
foi ae insti-~
con- J '

,,)A
tinua sendo imutável entre todos os povos e em todos os "1 ;
tempos. )
'"

<.,
" , São enganosas as declarações como "A família é a
unidade básica da sociedade humana", "Pai, mãe e filhos
I
são a comunidade natural" etc .... ~ certas espécies de_
animais existe uma estrutura familiaLQ.ue.-éJdê~m
todos os lugares. Esta estrutura é criada instintivamen~
11

il
!I ~ntre..e.ss_esJljJ.imãise r~J2ete;.sesem~.· Entre os -humanos,
I-
,1
sem dúvida alguma, este não é o caso. Casamento e es-
H
:i
trutura familiar não são naturais nem instintivos, mas~ ~
il
11
tinatural, uma "opus contra naturam". É por isso que en- •
~ .Jilll-produto_-ªIli.fic@l
contramos tantas formas d~ esforço humano.deCasamento
diferentes casamento é an-~
no
J:
)
~l~ decorrer da história e entre várias culturas. Muitas imagens \
'i são vivenciadas no casamento e na família. . j

Podemos até não perceber o sentido de tudo isso. De \ 4 11


~
alguma forma as crianças devem ser criadas e isto acontece) I,

!~

tituem a imagem primordial da família e sem casame'Ílto e I ·1

mais
famíliafacilmente, dentro teria
a humanidade da família.
acabadoPai,hámãe e filhos
muito cons-
tempo. A} I
criança necessita do cuidado protetor e defensivo dos pais.

que somente onde há uma família saudável se pode criar #


Além
criançasdisso, a argumentação
saudáveis continua: foi demonstradO)
espiritual e fisicamente. . .
I· Çada perturbação no relacionamento entre marido e
-- mulher tem um efeito deletério sobre as crianças. Do pon-
to de vista da criação dos filhos, não há dúvida de que o
o

I: ~
casamento, tal como o compreendemos hoje em dia, seja a í
fi mais natural e primordial das instituições humanas. Esta I
objeção é menos válida do que possa parecer à primeira
vista. Sem dúvida, é necessário que um homem e uma
.-=>'
,
ti mulher se unam para conceber uma criança. Ainda assim,
depois da concepção e nascimento, existem várias pos-
sibilidades de como criar esta criança.
Em várias épocas e em diferentes culturas e estratos
sociais a humanidade dirigiu a tarefa de criar e educar os
1

I'
,I
'li
1.1
?"
filhos das mais diversas maneiras. Deve ficar aberta a
questão se o estilo corrente de se criar os filhos no mundo
. 1
ocidental é realmente a única ou mesmo a melhor pos-
sibilidade. Talvez os modernos psicólogos não percebam , I.
:.'

I, bastante claramente, que suas' concepções sobre as cOn- '


1':
dições sobe mesmo
saudável as quaissobre
uma ocriança se um
que seria desenvolve de modo
desenvolvimento li

saudável são cond:ciónadas pelas imagens da cultura à \


[ qual os psicólogos pertencem, e, con~eqüentemente, con- I
I;i'
. ' para eles .
ir dicionados e definidos por uma mitologia que é dominante)1
i
'I'
"
Aqui preciso ser mais específico. Até muito recen-
,.
'j

I temente havia grandes grupos sociais cultural e politi-


I: camente muito significativos, cujos métodos de criação de
filhos apresentavam pequena relação com a imagem
mítica da Sagrada Família. Ainda tem que ser provado )1 '

que os resultados desse tipo de criação de filhos era algo I,


I
r pior que o nosso - porquanto diferentes eles certamente
~ eram -', . Na aristocracia inglesa, por exemplo, pelo menos
~.
I, para os indivíduos que possuíam riqueza e propriedades
r
,,!

era costume, até recentemente, entregar as crianças para


'[I
uma ama tão cedo quanto possível. Essa ama, não a mãe
:~ •. ..."

ou o pai, tomava conta da criança. Os pais se omitiam de


i
I
j
todas as formas possíveis do trabalho de criar os filhos. Os'
J.
I' meninos e até certo ponto também as meninas, quando
I
tinham superado a fase das amas e das babás, eram
!
r imediatamente enviados a um colégio interno onde viviam
~ com crianças da mesma idade e eram educados por um
1.
.:.:
grupo de homens ou de mulheres. N'~
~:.
:i'
:;:
dedicava-se a sua carreira. A mãe dedicava-se à vida •
;,
~
,.
";
so~ial.O Ci.rcunstâncias
pai francesa.
arIstocracIa devotava-se semelhantes
à direção das propriedades
existiam também
" ou)/1
na r
11
F Podemos concluir que há várias poss.ihilida.cks néL
~;i
'I;
cria.ção e educação_dos..lilhQ$. i\-espécie-de...criacão ..c.en.-
ii
'I trada na féilllÍfuLgue imaginamo.s-hoj,e.-com.o.JdeaLnãü-~
li

li
26
em nenh.wn-S_entido_J--a_únic.a_e
..com..t.Qd.a..pr.obabilidade. não
~ senLãmbigüidade ..•...m.elhocoJLPioI_que_Qutras.:.. Cada si;
tema educacional tein3.wl.s_y.aDJ-ªgense desvantagens~·A
ãristocracia inglesa talvez encorajasse de certa forma o
desenvolvimento' de um ser humano impessoal e indiferen-
te, que poderia perseverar com certa fibra, através das
mais diversas circunstâncias, tanto como comissãrio de
um distrito na África, como um oficial de colônia na Índia ..

O jovens
nossos controledesde
parental cuidadoso
sua infância, que exercemos
e durante 'sobre'1
sua adolescên-
cia, forma pessoas que ~êm fortes sentimentos e ligações
!
Pessoais,
.
mas que tendem a ser continuamente. desiludidos' \
pe10 grande mundo quando começam a perceber que nem
,
todas as outras pessoas são tão amorosas quanto "papai"
e "mamãe". O inconveniente de nosso sistema de edu-
cação é talvez o mimo narcisista; a vantagem, por outro I·.
lado, é uma maior capacidade de amor pessoal.
O "melhQL.Sistema~ara a educação_de filhos não
..' existe.. As classes superiores romanas, que queriarnfazer
,. de seus filho's guerreiros qualificados e homens de estado .
•J capazes, tinham que educar seus filhos diferentemente dos
cristãos primitivos, para os quais a maior preocupação era
fazer com que seus filhos aprendessem a amar a Deus e as-
sim ganhassem o paraíso.
Crianças de estados totalitãrios, como os da União
Soviética, devem ser educados diferentemente. das crianças
de estados democrãticos como por. exemplo da DiÍlamar-
ca, As metas de nossa educação e esforços de criação
mudam praticamente cada dez a vinte anos em algo com-
pletamente diferente. Desde que as metas estão conti-
nuamente mudando, é quase impossível avaliar a eficácia
de uma educação em particular. Hoje, é como se tão logo
se tenha formulado um estilo de educação, a meta tenha

mudado, porque surgiu uma n"ovaimagem do homem. .;fil


Pedagogia
educadores que não
dão aé aparência
uma ciência objetiva.
de serem Mesmo SãO)
científicos os\ \. i
fruto de ~eu tempo ~ criam sistemas educacionais que se
prometido ascom
adaptam expectatIvas
Sua época.de uma imagem do homem com-

Desde que nunca temos tempo suficiente para testar


.os resultados de nossos esforços, os vários sistemas de
;
educação exprimem simplesmente nossas próprias fan-
I tasias e concepções sobre educação, respondendo à ques-
I;
"I tão de como as crianças devem ser formadas para se tor-
narem os adultos que queremos que sejam.

. Do ponto de vista do cuidado para com as crianças, é)


questionável se nossa imagem corrente de família é
"natural" ou necessária. Acredito que chegaremos mais

--
prÓximos de uma compreensão do casamento e da família
se tornar-se mais claro para nós que casamento e família
são criações a rtificiais.~ eJ(pres.sl5-e.Ld.aJant-;-:.a-,SJ
i-ª-.j---,h-u-m-an-a-.
I :>f

Trabalho humano no sentido mgis verdadeiro da palavras


Q.emafastado de qualquer espé.ci~_dejns.tinto~atural".
Neste livro referimo-nos ao casamento tal como é
usualmente vivenciado na Europa Ocidental e EUA; uma .
instituição social que está continuamente se transforman- I
do. É o resultado de um longo desenvolvimento histórico e I

de atitudes e concepções filosóficas, religiosas, políticas,j


sociais e econômicas, que por sua vez também se transfor-
mam. Compreende-se o casamento contemporâneo como
um compromisso para toda a vida. Divórcio é possível,
I!1as não desejável. A concepção atual dominante é que,
no casamento, os parceiros mais ou menos qualificados se
vinculam para toda a vida. A posição' da mulher é le-
galmente distinta da do marido pelo menos na Suíça, onde
o marido é responsável pelo sustento e pela manutenção.
Esse encargo é equilibrado por certos direitos: o marido dá
à família seu nome; sua casa torna-se a da mulher; ele tem
a palavra final na educação dos filhos e usualmente con-
trola o dinheiro. Na opinião de muitos as leis relativas ao
casamento são algo antiquadas. Têm sido feitos esforços
28
para estabelecer clara e firmemente a plena igualdade de
marido e mulher aos olhos da lei.

De nenhum modo deveria ser uma censura aos


criadores do Código Suíço de lei civil o fato de que as leis
do casamento são algo obsoletas. A maioria das leis que
estão relacionadas com instituições sociais devem neces-
sariamente tornar-se algo antiquadas. As concepções e)
imagens' nas quais se baseiam as institui,ções 'sociais se \ •
alteradas muito depressa para refletir essas mudanças
sociais, pois de outra forma a transformação contínua das
leis
transformam
criaria insegurança
muito rapidamente.
sobre os direitos
As leis
legais
nãode devem
alguém.serl
Além disso, de acordo com as concepções correntes,
esposa e marido - e também filhos - deveriam poder
desenvolver seu pleno potencial psicológico.
Df

Por esse processo ambos deveriam desenvolver-se, o


que não é evidente nem natural.
t.
Hoje visamos a igualdade entre os cônjuges como
xiomática, mas não podemos saber se, dentre c:" c:~';n
'Ianos, a maior parte da humanidade julgará C2;:-. e;,: ,':',
"esposa ou
""direitos marido seja tratado como um parceiro com
inferiores. 'I
I

.,
l
L

I1

j
BEM-ESTAR E SALV AÇAO

I~
f
l~·

A distinção entre bem-estar e salvação é artificial. Na


vida real não podem ser nitidamente distinguidas. En-
tretanto, ao tentar compreender o homem, é importante es-
" li!
:1

tabelecer as diferen:as, pel~ menos teoricamen~e. . ~'


Bem~es~ar esta relacIOn~do com o ~vltar teIlsões) ».>f1
desagradavels, com a tentatIva de usufrmr a sensação
física de conforto, relaxamento e prazer. O estado de bem-
estar exige suficiente alimento, proteção dos elementos, \ I
ausência de ansiedade sobre a própria existência, um
relaxamento da tensão sexual e uma agradãvel, embora não
exaustiva, quantidade de atividade física. Além disso re-
quer a possibilidade de satisfazer alguns dos desejos ma-
teriais sem esforços desordenados. É necessãrio também
um mínimo de espaço para viver.

Não se fisiológico.
puramente deve entender, entretanto, de
O sentimento o bem-estar
pertencer acomo
um ") !
grupo e ter humana,
segurança um certo prestígi~ dent:o dele é necessãrio.
o bom relaCIOnamento dentro daA (',
família, com vizinhos e parentes é indispensãvel. Para
muitos adultos, entretanto, a sensação de bem-estar
depende da presença de um ou mais filhos. Certamente ao
estado de bem-estar não pertencem as tensões, insatis-
fações, emoções dolorosas, ansiedade, ódio, conflitos in-
solúveis e difíceis, internos e externos, a procura óbses-

31
"'
siva de uma verdade que ainda não foi descoberta con-
flitos sobre Deus, e a necessidade de chegar a um a~ordo:
com o mal. e a morte. A doença certamente não pertence!
ao estado de bem-estar. É muito mais fácil de qUalquer I
forma para pessoas saudáveis, física e psiquicamente, ter a
sensação de bem-estar do que o é para as doentes. "Dai-
nos o Pão Nosso de cada dia" realmente implica em "Dai-
nos nossa sensação de bem-estar diário".

que tem a sensação de bem-estar é feliz e satisfeita.


A felicidade está relacionada ao· bem-estar: a pessoa]
Ao governo de uma nação cabe o bem-estar de seus
\, cidadãos. Por esta
"welfare state" . razão freqüentemente nos referimos . ao

O conceito de salvação nos é familiar do ponto de vis-


ta do contexto religioso. A religião cristã, por exemplo,
procurou trazer a salvação para a humanidade. Isto não
está relacionado simplesmente com uma existência terrena
tranqüila e felii. No contexto da linguagem religiosa a sal-
vação significa procurar e encontrar contato com Deus.
Em filosofia falamos da procura de sentido, quando nos
referimos a uma experiência do significado da vida. Na
concepção cristã, a salvação não é completamente obtida
nesta vida. Pecado e morte nos pesam continuamente, as-
( sim como o eclipse de Deus ou nossos deslizes contra ele.
. .A salvação envolve a questão do sentido da vida e isto
nunca JlOde ser-r.espondido de rnaneir-a-definitiYaAssim
como existem inumeráveis filosofias e religiões, também o
são os caminhos da salvação. Em última análise, ~ada in:
divíduo deve procurar e achar a salyação a seu· próprio
..!!lodo. Todos os caminhos para a salvação têm, entretan- 1~
to, características em comum. Não conheço ninguém para
o qual um confronto
necessário. --- -...com
. o sofrimento
. . e a morte não seja.

~ara.Qt.cristãos o grande rnitologema naf-ª-O caminho


da salvação é a yid.ade JeS!ls Cristo. Seus trabalhos, seu
32
sofrimento e morte pertencem inalteravelmente ao ca-
minho que ele encontrou de 'volta ao Pai. Mesmo depois
de sua morte não pôde ascender diretamente ao céu, mas
teve que passar primeiro três dias no inferno.

.0--,
j tes que uma pessoa possa começar a buscar o Nirvana ~
precisa
Paraserossacudida
morte. budistas, pelos espectros
Nirvana de ~alvação,
significa doença, velhice e ~rJ~
mas an-)
<'
r.,
1 Dificilmente podemos dizer com precisão ou mesmo
"" ' imaginar o que é salvação. Conhecemos apenas os vários
caminhos soteriológicos. O estado de salvação, como tal,
pode ser somente intuído, numa vida humana, durante os
I
D
I"
breves . momentos, de clímax' religioso ou filosófico.
Apenas por poucos segundos, por exemplo numa igreja,
acredita-se subitamente que se conhece o significado da
vida; faz-se contato com sua própria centelha de divin-
dade.
Como metas, salvação e bem-estar se contradizem. O
caminho para a felicidade não inclui necessariamente o ti
I
sofrimento. Em nome de nosso bem-estar somos impe-
lidos a ser felizes e não nos preocuparmos com questões
I,.
que não têm resposta. Uma pessoa feliz se senta na mesa
entre seus entes queridos e usufrui de uma refeição cheia
de carinho. Uma pessoa que procura a salvação briga com
Deus, o Diabo e o mundo; confronta-se com a morte,
mesmo se tudo isso não é absolutamente necessário na- I
quele preciso momento., ;

O estado civil é obrigado a zelar pelo bem-estar dos


'~ seus cidadãos, mas não está numa posição de oferecer sal-
vação a ninguém. Pode somente prover cada cidadão com
a liberdade de procurar a salvação de acordo com o es-
pírito que o impulsiona. São as igrejas e as comunidades
religiosas que se ocupam com a salvação.
Na psicologi~ junguiana e na psicoterapia uma distin-
ção. bem nítida é traçada entre bem-~star e salvação.
II
Promover o bem-estar envolve ajudar o paciente a adap-
tar-se ao seu meio e a aprender a encontrar seu próprio'.
caminho no mundo. Também está relacionado com liber-';
tá-Io, tanto quanto possível, de modelos neuróticos. Mas,
além disso, falamos de "lndividuação" em psicologia.
" junguiana, que necessariamente não se refere a saúde'
~.~mental, bem-estar e sensação de felicidade. "lndivi-'
2:, , duação" envolve a luta de uma pessoa para achar seu
" próprio caminho de salvação. Tal como o curador, o
::.: psicoterapeuta procura ajudar o paciente na direção do
!
-1
-"'" sentimento de bem-estar e felicidade neste mundo.
Procura também amparar o paciente na sua procura por
salvação, a "individuação". Qsaminho da individuação
tenunUit~QllLsl!~ouco
~.\ a ver com bem:}
É essencial compreender exatamente o que queremos
dizer com-ª..l!!!...agemou conceito de 'jndividuacão". Ela é*,
a descri ão psicológica do caminho de salva ão. A fim Cie
evitar mal-entendidos devo fornecer mais alguns elemen-
tos. ------------------:-
Desde o começo da e&stência do homem,.e.1e . tem ten: ti
~o descobrir quem é e o que o motiva. A psicologia é
ainda muito jovem como ciênciã;mas muito provavel~
mente o homem sempre se envolveu com a alma. bsta es-
pécie de envolvimento é relacionada com aquilo que des-
crevemos como religião. Psicologia e religião começaram
com a percepção da morte: isto era acompanhado por
imagens e fantasias a partir das quais se desenvolveram os
rituais funerários. O conhecimento consciente da....m..orle
foi re."p·~l.a~Qde relig.@o e psicologLa. .

Ew llOSS.n mundo ocidental conhecemos esta "psi- ~ i,


coI JiI;'ÚgIO "~esta crocura da natureza da alma den-
trQ.. de uma estrutura religio~. Mais cJara~nte na s!m
forma cristã e até certo ponto também nas suas form-ª§
iiiffi)lógicas gregas e romanas. Jesus Cristo ten~ou.n,tostrar
que Deus deveria participar do processo hlstonco da
humanidade para conduzi-Ia a Seu Reino. A alma tinha
34
que ser entendida do ponto de vista escatológico. A sal-
vação de almas
'::ristandade foi portanto a preocupação primeira da
medieval.

Durante a Renascença e depois dela, a dominância do


Deus Cristão começou a desfazer-se. Um novo mito,
chamado ciência, aflorou. O homem agora procurava ob-
servar objetivamente o que ele uma vez descrevera como
criação de Deus, a fim de descobrir "exatamente como são
as coisas em si mesmas", sem propósitos ulteriores.-º..
chamado método de observa~ão ob~ in- •
yestigilliQn~s_d.a...a.lwa.
A alma que se queria conhecer a fim
de-s;ilvar-se, estava agora, por assim dizer, colocada sob o
microscópio. A observação experimental objetiva tornou-
se na época o método psicológico.lnfclizmente, tudo o
gy~ra, mesmo vagamente, associado lielha psicologia
.,-:':~::iosa ou à salvação da alma. foi descartado nesta con-
Jr d:xeacão. Nenhum objetivo indefinido religioso devia
iI perturbar a clareza da observação. O único poder mo- t
i
I
tivador atribuído à vida psicológica' era o instinto de.
! sobrevivência do indivíduo e da espécie. Foi feito um es-
,i:
"I
forço para compreender a vida psicológica como um feixe
de mecanismos de sobrevivência mais ou menos bem
I sucedidos. b. pesquisa psicológica teYe.J.J1Rardentro de um
I modeiQJllilli>gico.
i

Freud, o "Cristóvão Colombo da psicologia",


acreditava nesse modelo biológico com uma fé fanática na
II ciência. Freud permaneceu um crente verdadeiro! Fome,'
sede, agressão e sexualidade tinham que continuar como .J
I
deuses predominantes. Ainda assim -Freud sentia-se,
muitas vezes, desconfortável no seu dogmatismo bioló:
..giro. Ele ohs.erYQufu[cgs Poderosas em ação no mundo ela
._alrna-qUeJlãQpermitirianu..eL.Q.Lensadas dentro do modo , I
I I
fie sobrevivênçia. Assim Freud polarizou, finalmente, os
jD.st.intos h.umª-nos· básicos. Todos os impuls.o.s_que-pa~
~ciam su~entar a vidã denominQ!!..EcQS-e.,.Jllém d.es.s.es+-~
PostulºJLºjmP!)J~Q-ºP_Qsto....,,_O--khgmaào
instinto da morte,_
lliANATOS. ~ -F._ ---r:HAN4'YE!_'S

C. G. Jung foi primeiramente partidário e depois


hostil às concepções de Freud, ~sicolog~a es-
treiteza do pensamento biOlógiroclássif.o. Ainda assim,
Jungtrabalhou, até certo ponto, com os métodos da ciên-
cia natural: observou a vida da psique em si mesmo e nos

outros com
manecer grande cuidado
um cientista objetivo. e Em
objetividade.
um sentido Queria
ainda daper-1Ii
mais
amplo Jung foi objetivo: ele libertou a si mesmo ti- \.
midez de seus predecessores que, além do medo de cair em '
alguma espécie de obscurecimento religioso, queriàm, por
m~ios dogmáticos, reduzir toda a vida psicológica aos ins-
tintos de conservação biológicos.

Jung ..estava livre da compulsão de classificar em


premissas dogmáticas todo fenômeno psicológico sob a
rubrica da biologia. Usando o método...ck observacão 4n:.
parcial e Sem preconceitos~escobriu o seguinte:- a~
criaçÕes, as alegrias etrjste~, as imagens e desejos da_;j

-
psique não poderiam ser reduzidQ~OS chamados i~~
básicos de-fo.me, sede, agressão e~ xJ]a~ Qutra fo.(-
ça, outro impulso, teria.q.lle ser tOinado..em consideI:ação.
Jung denominou-o deimPulse-par-a-a-individuação.
Desde Jung, outros psicólogos notáveis têm reco-
nhecido o impulso de individuação. Foram inventados
conceitos tais como "a . rocura de identidade individual",
"@1Q.-realizacão", "c i tividade", "a outra dimensão"
nidos.
ett ... ,todos os quais são ain a um tanto vagos e indefi-
Ct , O. (', .'v' ,
I
I '1", 11 r; .' I ,'): ' ,: ..-,i
r· j
'''~ ..•.
.7 :,) ':~
O'·~) f

j I~\ c~ t"' ~ O, (\ 1.J •• ;

k
:~) t ") ~ • J

" \' I
1
.; .. 1 ).. .

,36
INDIVIDUAÇÃO:
NÃO ELITISTA, SEMPRE POLÍTICA

1.1 (::

\'

\ ., ,I
_,t,

,
{'.: ; •• 1

J-.d'v.~~/:( ;rl/,..duycr I /7rj~'-'


/; ..

o que faz o conceito junguiano de individuação útil


para a vida psicológica das pessoas é, aCima de tudo~ a sua
.pormenorização. Indivi ão é um processo mas tam-
b.ém..p.ode.lier entendido como um imQulso. IndividuaçãO-é
uma parte essençial da motivação humana como fome,
sede. agress~ sexualidade. J ung sublinhou certos aspec-
tos da individuação. Ele enfatizou a importância do
desenvolvimento da alma individt!.al a gu.al, S~D1 dúyi_çta,
tem suas raízes na alma coletivaJIlasql'f:" ('r;p1·:d·:': o,-i,:'ve
dela diferenciar-se e desenvolver-se _i.u;.Üyi.í~jj_iliUl~l1te.
Escreveu muitas vezes sobre a importância de tornar-se
consciente; repetidamente' insistiu que aspectos cons-
cientes e inco1lS.ci~ da personalid._ªg_~qe,,~rbr!1 ~~r in:
tegrn.do.s. •...

Associou individuação com um processá que obser-


vamos na análise, embora nunca assumiSse que indivi-
duação pudesse ser obtida somente no cont~ytc 2naHtko.
Q impulso para a individuação nos impele a c~~Q.tatar
com uma centelha íntim~ de divindade Que Jung_~~_screve 6
oomo o "self" (si mesmo).
O processo e meta da individuação pode ser indicado ..•
"
ª-omente por símbolos. A vida d~ Jesus C,,:':' -. se com-
preendida ~imholkamente. é um. i)fO.;\o:;' ·'l!:~U. 'o' 0-'

_ duaçª-o.. Em linguagem religiosa poderíamos dizer que a


meta da individuaçãoé aproximar-se 9~eus (ou dos
deus.es.)_entraLem-COllt.ato_c_O-llLo_mund.o_que
t~mpo, o no.:sso-pr-6pr:io-ser... é, ao mesm2

Outro símbolo de individuação é a imagem da "jor-


nada da cidade de ouro, Jerusalém". No "Progresso do
Peregrino" de Bunyan, esta dolorida e corajosa pere-
grinação é descrita com detalhes. Na vida empíricà, nós
estamos sempre no começo ou no meio de uma jornada à
Jerusalém Dourada e nunca na meta. Contos de fada
freqüentemente contêm simbolismo de individuação. O
herói precisa empre~der muitaUl~nturas a fim de casar
com aa alma.
com p..rincesa.-Estc_c.as.am..ento_é um símbolo de uniãõ
-_

minino. Nesse sentido, o casamento em contos de fada, I


simboliza a meta doprojeta
Um homem desenvolvimento
a imagem psicológico.
de sua alma no fe-j
Freqüentemente, um "Progresso do Peregrino" trans-
forma-se num "Progresso de Príncipe", isto é, o príncipe
distrai-se tanto no caminho que a princesa está morta quan-
do ele chega ao castelo. Infelizmente, aindividuação, comoé
apresentada em contos de fada, é geralmente demasiado
simples e indiferenciada. Mitos antigos nos dão um quadro
melhor; e eu mencionaria como um exemplo a velha lenda .
galesa de Culhrwch e Oliven. O nome Culhrwch provavel-
mente significa. "vala de porcos". Culhrwch nas-
ceu entre porcos. Depois de seu nascimento sua mãe
enlouquece e morre. Uma boa madrasta o cria, elhecontade
uma donzela chamada Oliven, a filha de um gigante. O
gigante lhe dará sua filha somente sob a condição de que ele
execute quarenta tarefas possíveis e impossíveis, todas
aterradoras. Muitas façanhas são realizadas por Culhrwch.
Outras são cumpridas com a ajuda de seus compa- . k
nheiros e outras ainda são executadas por seus camaradas
i
ou pelo Rei Arthur. No curso dessas aventuras Culhr~ch
cruza todo o mundo conhecido dos Celtas. O conto atmge
li 1R
seu ponto mais alto na violenta caçada de um javali sel-
vagem e na sangria de uma feiticeira. '
A individuação como um desenvolvimento psico-
lógico é apresentada também em arte ,pictórica, embora
freqüentemente numa forma muito artificial. A imagem
do nobre cavaleiro São Jorge é bem conhecida. Ele nos é
apresentado por pintores, escultores e ourives em igrejas,
palácios e residências. Do alto de seu cavalo, em elegante
armadura o nobre cavaleiro espeta o dragão com sua
lança.
~ame.nte a imagem mostra a conquista vito.:
.xiosa J1e...Sã.oJ.o.rge-s.ub.r.e-seuinconsciente-escuro. Psico-
logicamente, muito mais pertinente é o mito de Culhrwch.
Apresenta o conflito com os poderes inconscientes da
alma. Após a vitória sobre o possante javali selvagem a
feiticeira negra é descoberta em sua gruta. O Rei Arthur
como auxiliar de Culhrwch envia criados à gruta, os quais
a arrancam dali pelos cabelos. Por sua vez ela os agarra
pelos topetes e atira-os ao chão. Gemendo, eles escapam
da gruta. No fim; Arthur tem que intervir pessoalmente ..
Corta a feiticeira ao meio com sua espada. O sangue é
retirado, provavelmente com a intenção de bebê-Io e por-
tanto de garrhar força para o encontro decisivo com o
gigante,.pai de Oliven. O infeliz futuro sogro do herói não
somente tem' sua barba cortada, mas também sua pele e
orelhas. Sua cabeça é decepada e fixada numa estaca.
Finalmente, o herói está apto para unir-se a Oliven. Agora
ele está ligado à sua alma, como é projetada na figura
feminina.
Coragem, covardia, luta caótica, sujeira e a medonha
bebida do sangu'e da feiticeira caracterizam essa estória.
Em contraste, distância e indiferença elegante são re-
tratadas nas pinturas de São Jorge e o dragão.

j~
) caótica estória de Culhrwch que na Imagem do elegante.
I: ,')
A individuação é melhor simboli~ada na sangrenta e
cavaleiro São Jorge.
J J\k

:! 39
~1
j.i
_.J .••••
lndividuação significa um trabalho ativo, difícil e
desconfortável através de nossa complexa psique a fim de
unir seus opostos, que são simbolizados pelo homem e
pela mulher. In~ividuação é,uma jornada longa e interes-
sante. Um cammho deve ser atravessado até que um
homem tenha confrontado e lidado com os aspectos múl-
tiplos do maternal. Primeiro ele tem que lidar com a mãe
natural, a mãe animal nutritivo, que o surpreende como
conservadora e anti-espiritual. Mitolo.gicamente ela é
representada pela extrovertida Pill1ador.ã:=cIa._Je.rtilidad..e~
Demeter. O que é sedutor sobre a mãe natural é que, como
ã feiticeira vistosa e vulgar de Hansel e Gretel, ela nutre; o
@e é sinistro-.é-'lU_e_ela~ostar.ia.-de-d~or.aLOJ1Qm~. Um .~
laço muito forte com a mãe inibe o desenvolvimento de,j'l'
um-homem. ~ ;
Outro lado da deusa com o qual o homem tem que se
haver é mitologicamente representado por Perséfone, a
Rainha dos Infernos. Este é o fantástico, feérico, espi-
ritual e ambicioso aspecto da mãe: ela pode inspirar um
i~
homem
fantasias tanto quanto impeli-Io
ambiciosai-da à morte
mãe podem e à loucura.
engendrar As)
nele um~.
impulso em direção a realizações espirituais, tanto quanto .
podem produzir a destrutividade da ambição arrogante. )
~quer grande esforço psicológico...para um homem ~
çar o ponto de Compreender que estes poderes arquetíp~
pa psiqueJ.â..Q inatos ~le mesmo e que mtda-Y.al~ê~los.
somente em Slla--Ol..~ natural ou projetá-Ios em outra
Illulher ou em instituições'; requer esforço pSlcológko-aJ-
cançar o ponto de ver quenada se realiza reclamando_c-on:
tra sua mãe ou fazendo repetidas acusações contra a
sociedade. Essa é apenas uma das lições prodigio-s.as=qUê
devem ser dominadas no curso da individuação. Da mais
decisiva importância neste processo é que um homem
chegue a termos com uma mulher ou com o feminino em
; ge~al e vice-versa, que uma mulher chegue a termos co
"': um homem ou como masculino.
,I! Um dos maiores temas da individuação é o mara-
40
vilhoso fato de que .a existência_humana- tanto qúanto a
existência animal - é vivida frutiferamente somente no

separação e união com a figura contra-sexual dentro e fora •


de si mesmo,
contexto pertencem
da polaridade ao desenvolvimento psicológico
mas..culino-femimno!Amor e ÓdiÕ~
que se coloca sob a bandeira deste processo soteriológico.
~ode ser evitado no processo-.deindividuacão a cQn- .
froI!tacão com o-s-QÍrimentoe a Ol-º.r.t.e.,som
o lado escuro
çle Deus e de sua criaçãQ, com o que nos· faz sofrer, con~. \,J
aquilo que nós usamos..para nos atormentár ou atormentar .~ __
aos outros. Não pode exis.t.irJndiyjduação...s.em..confronto:,\J. )
com o 1~1rutiy.o_-de--.D-e.us.,....dQJUundo~ de nossa '.: .
I
própria alma. Ser firme neste confronto é muito difícil,
. tanto. individual quanto coletivamente e cada período his-
tóricO encontra seus próprios métodos para fugir desta
tarefa. Em nosso tempo é moda atribuir sofrimento e des-
truição a causas sociais. São apresentadas soluções simples
para os problemas de sofrimento e destruição: se a so-
ciedade fosse reorganizada, o sofrimento desapareceria da
noite para o dia. Tudo o que chamamos "mal" é o resul-
tado de criação e educação erradas e estas por sua vez são
o produto de manipulações de uma sociedade perniciosa,
'J má, que é. governada por alguns oportunistas para seu
próprio proveito .
. Outra forma de fuga do sofrimento se expressa na
crença de que as coisas estão progredindo. Embora as
coisas estejam ainda num mau caminho estão melhorando
a cada dia, e é somente uma questão de tempo - e or-
. ganização -. até que o paraíso seja instalado na terra.
Individuação e salvação são conceitos fortemente
. relacionados. A meta da individuacão. poderíamos diz.eI:. I
t
a salvação da alma. Infelizmente ambos os conceitos
correm o constante risco de serem entendidos muito li-
';mitadamente.
A Frederico, o Grande, rei prussiano, que eu não con-
sidero muito simpático, é atribuída a frase: "Cada um

II 41
deve achar
deve ser abençoado
a salv~ãoa seu próprio
à sua modo" , isto é,__
I!!.~~eir~ cada qual
.__

A humanidade tem constantemente se predisposto a


lutar guerras sangrentas sob a crença de atingir metas
soteriológicas. rCada um acredita ter .<Lgever de fazer os
~._--------
outros se subm.e..t~.remao se.u~-ºnç_eltQ_--d~Ção. Os
mais escuros e mais destrutivos elementos da sombra se
misturam nos motivos do guerreiro soteriológico. A ofen-
siva pelo poder e o arrebatamento de destruição se escon-
dem sob o manto da motivação de salvar almas.

Entretanto a salvação está disponível e aberta a·qual-


quer um, é uma possibilidade para cada alma. Expressada
mens. linguagem cristã: Cristo morreu por todos os ho-
até-na

~udo a próp-ria salvação sQ.pode-seccomP.J:een-:.


cdida simbolicamente e somente representada em imagens.
As imagens que· expressam essa inefabilidade são muito
diferentes. A salvação se apresenta de muitos modos aos
olhos da compreensão humana. Mesmo que comum e pos-
sível a todas as almas, pode ser conseguida pelos mais
diversos meios. A fórmula Sine ecclesia nulla salus é um
mal~entendido trágico, porquanto ecclesia, ou seja, igreja,
está limitada a uma comunidade específica· de procura
soteriológica.

Uma definição elitista tende a abafar o valor do con-


ceito ou imagem de individuação. Supõ~-se, por exemplo,
que ela só está disponível àqueles que se submetem a
análise. Somente aqueles que podem falar sobre seu
próprio desenvolvimento psicológico e compreender e in-
terpretar seus sonhos seriam capazes e merecedores da sal-
vação. Tal concepção requer uma comparação com as
seitas cristãs quando afirmam que somente quarenta mil
al?Ias serão redimidas por Cristo, com os membros desta
seIta particular naturalmente incluídos.
Outra restrição igualmente presunçosa é a pretensão
de que somente pessoas com certa inteligência e certo nível
de educação são capazes de individuar. Pessoas com um
Q. I. de menos de 90 não são consideradas aptas para ela.
I
I

s.9mehte o pSIcológico e o intelectual. Estes caminhos es-


tão abe~tos para as pessoas
Há inúmeros se individuarem
caminhos através da ~~
para a individu,!ção; arte ~

nologia, negócios dentro


ou da culinária, ou política.
do contexto de .amor ou de tecj
Gostaria de ilustrar com os seguintes exemplos quão
diversos esses caminhos podem ser.

Orna vez ouvi uma banda de negros em Nova Orleães,


cujos membros tinham pelo menos sessenta e cinco anos
de idade. Muitos já não podiam dominar seus instrumen-
tos completamente, porque haviam perdido a flexibilidade
das juntas. Tocavam uma espécie de jazz antigo. Escutan-
do e observando os diferentes músicos, tinha-se a impres- .; !
l
são de que eles tinham e diziam algo relacionado com in-
dividuação. Eles descobriram seu caminho de salvação.
Outra experiência que me impressionou profunda-
jmente ocorreu quando visitei um culto religioso planejado
para crianças mentalmente retardadas, por uma ordem
religiosa. A comunhão foi distribuída para a congregação,
aos pais das crianças retardadas e às crianças. Elas tinham
sido preparadas para essa comunhão durante os meses an-
teriores e ensinadas do significado da comunhão através de
quadros. O que aconteceu dentro dessas crianças enquanto
elas comungavam, nunca saberemos c<Jm exatidão. Mas
observando suas faces e tentando colocar-nos em seus
lugares, não se podia evitar a impressão de que alguma
coisa acontecia em suas almas, semelhante à individuação.
Antes da distribuição das hóstias, em lugar de um sermão,
foram mostradas às crianças pinturas contando do so-
frimento, morte e ressurreição de Cristo. Teriam elas en-
tendido? Poderíamos fazer a mesma pergunta àqueles de
1111
......
!.. ~·).I,)':,~~
. "", l' 1'\ ". ,). ,'r.

nós com inteligência normal: teríamos entendido o so-", .

frimento
~ode e a ressurreição de Cristo? ~a realidade, ninguéni
compr.e_ende..La-indiriduação.-e.onc_eitualmente. S~-,M\yi
imagens podem eXQressá-Ia. Em cada participante desse
éulto religioso houve a convicção de que no momento da
comunhão essas crianças intuíram o sentido da salvação.
Por ocasião de uma conferência para psicólogos,
, durante a qual o conceito de individuação estava sendo
discutido, a reação foi ambígua diante da pergunta:
"Pode um retardado individuar-se?". Parece certo que is-
so possa ocorrer, porém permanece a questão de como is-
soocorre.
"'Temos discutido individuJ!Ção e como ela é represen-
tada simbolic~nte em contos de fada, es.tóriaS.Jk-ayen:..
turas e símbolos vivos.
Contudo, parece estar faltando um aspecto. A
procura de individuação e salvação parece ser algo autista
e centrado em si mesmo. Parece ocorrer aos indivíduos en-
quanto elaboraram suas próprias almas isoladamente ou,
por exemplo, no intenso encontro dialético do casamento.
, Unia questão afIora aqui: qual a utilidade de tudo isso
pat;a as instituições sociais, para a comunidade, para o es-
tado, enfim, para o próximo? ,
Individuação Ilã.o-éJndiYidualismo. O trabalho juilto \

vação de seu semelhante, isto é, pelo que abstratamente


chamamos de sociedade - tudo isso faz parte da indi-
a viZinhos, centros
viduação. ' comunitários e organizações, pela sal· )

Cada alma individual tem uma arte na alma cole-


Jiva. s cama as mais profundas estão inseparavel-
mente ligadas ao inconsciente coletivo, a alma coletiva
através da qual todos os homens e grupos estão unidos:-
Uma individuação egoística de um!.pesso~ .c~mo um ~s-
.-Satempo-l1arn. si mesmo, é, portanto, dIfIcIlmente ~n-
~ÍYel
\ ~

I li\:
.....-.-.. li li
É digno de nota que em muitos contos de fada e
mitos relacionados à individuação, o herói e seus ajudan-
tes ou amigos sejam reis, princesas e príncipes. Em mitos
arcaicos, são verdadeiros Deuses prestativos, com grande
-- ascendência sobre outras pessoas. Reis, princesas etc ....
I são pessoas com funções políticas, com altos cargos
políticos~Essas figuras míticas e de contos de fada têm im-
plicações ~ais _e co!etiy-ªs. l\j~dj.vi~uação d9_rei deve
trazer benefícios à sociedade. Além dIsso, esses mitos e
contos nos -arzem-que-uma-1ndividuaçãº~_~II!.implicJ~~ão
- social é inconcebí~~. PreCiSamOSêü-mpiétaressa dimensão
r
)(1""""


social de individuação, acima de tudo, olhando através
das imagens medievais. Queremos olhar não sómente as
figuras de reis e cavaleiros mas também aquelas dos er-
mitãos e reclusos. Reis e cavaleiros eram ativos na so-
:}
ciedade. O eremita, por outro lado; recolhia-se no iso-
:-lamento não somente para rezar pela salvação de sua
própria alma, mas para lutar pela salvação de toda a
,7 humanidade.
""'-

A participação na sociedade, sempre pertence à in-


__dividuação, seja na forma extrovertida, como no caso do
avaleiro medieval, na introvertida, como o caso do mon- •
e que reza ou numa forma mista. A pessoa em indivi-
duação ocupa-se com seu próximo, seja pela participação
lativa ou pelas lutas interiores com os problemas coletivos.


-,j
o"
I
I'"
•• '
.
" '••., .
1/ .....) _..
.11'1. ','0 : .•
CASAMENTO: .Y
UMCAMINHODESALVAÇAO .

Bem-estar e salvação devem ser conceitualmente dis-


ti~tos para a compreensão da psicologia humana. Indi-
viduação como C.O. Jung descreve é a porção da moti-
vação humana que pressiona em direção à salvação.
A individuação s6 pode ser experimentada e represen-
t?C(!, através de símbolos, tanto no processo quanto na
In,eta de salvação, que é empiricamente inatingível.
Precisa-se acrescentar que .desde tempos imemoriais' a •
1J.umanidade tem procurado exprimir sua compreensão de
psicologia através de imagens ou mitos pela razão de que o
comportamento dos seres humanos é determinado P.Qr
imagens que momentaneamente ganham dominância. mo.-
ttQs_çQ.,mportamosna bas.e de preci.sa...compreensão int.ekç-
!!!..alou reflexões exatas, mas, antes gundo ima~
-ªLJ2Lece em. ornar-se consciente significa ver mais
claramenté as imagens que nos conduzem e nesse empenho
continuamente refletimos e fantasiamos sobre as que nos
governam.
O estado de bem-estar também aparece em várias
imagens. A terra das Phaeaces, como os gregos nos con-
tam, é uma descrição do estado de bem-estar. Nela as coisas
são pacíficas e todas as pessoas parecem felizes. O que fal-,
ta, entretanto, é tensão, estímulo, luta. Odisseu (Ulisses)
não consegue resistir por muito tempo na terra dos
Phaeaces!
47
.,,\ ~
"I
I

Nas estórias de marinheiros freqüentemente se cruza "

"

com descrições de terras de leite e mel. É comum ouvirmos


como um marinheiro aporta em algum lugar, numa .ilha
onde há sempre muito alimento, onde as mulheres estã~ à
sua total disposição e onde ele passa o dia inteiro deitado'
numarede. Tais ilhas são geralmente projetadas nos Mares
do Sul. As estórias 'sobre esses marujos são representações
de imagens íntimas mais do que descrições precisas de ex-
periências reais. _)
Uma característica comum a tod'as essas','estórias de
alegres ilhas dos Mares do Sul e outras terras de leite e mel
, é que, mais cedo ou mais 'tarde, o protagonista precisa
deixá-Ias, e até mesmo quer deixá-Ias. Raramente nessas
ilhas de felicidade ele consegue realmente encontrar-se e
,chegar à sua própria alma. Relacionada a este estado de
bem-estar está a imagem do assim chamado naturalismo.
Concebe-se a possibilidade de um moddo natural de com-
portamento, de um povo completamente natural. Mas o'
homem é, em si mesmo, "desnatural'~, isto é, nada lhe
acontece de um modo simples: ele sempre tem que ter fan-
tasias, refletir, considerar, chegar a termos com suas
reações íntimas, questionar sua existência. Somente antes
da Queda o homem era "natural". ,.o Paraíso, como o
imaginamos, como era antes que Adão e Eva mordessem o
fruto proibido, é um lugar de felicidade natural.

As imagens que sustentam o turismo de massa, por


'exemplo, estão muito ligadas ao bem-estar e ao chamado
naturalismo. As propagandas turísticas nos induzem a
acreditar que organizações turísticas podem levar-nos a
um lugar onde nos livramos de todas as tensões, desejos e
lutas. A organização turística tomará conta de todos os
detalhes desagradáveis. Fornecerá boa comida e' bebida.
Sol, calor e uma praia esplêndida estão reservadas apenas
j
para nós. É também sugerido nos anúncios dessas excur-
1 sões que os turistas terão o que lhes é devido sexualmente e
que não experimentarão frustrações a esse respeito.

J 48
C& j9.i
\ ' t} \ LJ~' ~)t: Il· f ; !.""
'" '\C.ll)(:\( ":'~,>
~. .,. .
_ I ",U!, ..,' .
Entretanto, a procura de salvação e a procura de
bem-estar não estão inteiramente dissociadas. É possível
que as pessoas que são levadas ~elas grandes organizações
turísticas e que empreendem tal Jornada a um paraíso feliz
não estejam buscando a terra dos Phaeaces ou a terra de
leite e mel, mas um lugar onde eles encontrem suas almas
- buscando a terra dos Gregos com suas almas.
:\
A mistura de procura de salvação no turismo moder-
no, contudo, é mínima; talvez isso seja a razão pela qual
os locais que atraem grande número de turistas freqüen~
temente terminem como catástrofe cultural para os ha-
.bitantes locais. Os nativos dos grandes lugares turísticos
parecem perder suas almas; todos os esforços e ideais cul-' ,
turais, religiosos e políticos são invalidados desd~ que a
cultura está somente empenhada em atrair cada vez mais
gente. Não é o contato com uma população essencialmen-
te alienígena que corrompe os habitantes das estâncias es-
trangeiras; é o contato com grandes mas&as de pessoas que
estão procurando só bem-estar momentâneo, e não sal-
vação, que enfraquece e desvaloriza a população nátiva.
Para nós a questão é: o casamento está relacionado
com o bem-estar ou com a salvação? É ele uma instituição .
'I
j'

de salvação ou uma instituição de bem-e.star? É o casa- 4

mento, essa "opus contra naturam", um meio de in-


dividuação ou um meio de bem-estar? I,
,

O que se segue pode nos dar uma pista: todas as


cerimônias de casamento contêm certos elementos e im-'
plicações religiosos. Um casamento puramente civil
praticamente não existe. O habitante "pagão" do Taiti
ou das Ilhas Fiji, que são famosos por seu assim chamado
naturalismo, permitem uma espécie de prece sacerdotal
enviada aos deuses durante a cerimônia de casamento. No
caso dos Yakuts e dos Kalmucks um xamã também tem.
que estar presente a ele. Para os antigos egípcios os rituais
de casamento eram acompanhados de certas cerimônias
religiosas. Ésquilo diz em Orestes que, no casamento,
1I
marido e mulher estão unidos pelos Deuses. Platão afirma
que uma cerimônia religiosa é necessária a um casamen-
to. Para os indus as preces e invocações aos Deuses têm
um papel importante no matrimônio. Mesmo os países
comunistas tentam emprestar certa solenidade e esplendor
aos casamentos através do costume da cerimônia pseudo-
-religiosa. Lá os oficiantes civis tentam evitar a impressão
j de que um casamento é apenas a assinatura de um con-
l
I; muitas tarefas humanas são acompanhadas de alguma es
,.
pécie de culto religioso tais como simplesmente comer ,
caçar,
trato. embarcar
Pode-sé num navioque,
objetar etc ....na maioria das cUlturas)

-Todavia, é notável que, no curso de nossas vidas,


poucas coisas são tão rodeadas de cerimônias religiosas
,. quanto o casamento; somente o nascimento e a morte são
~: ·1

I tratados com a mesma seriedade. Sem dúvida, muitas


\
vezes aparecem resistências ao tom religioso dos serviços
l· de casamentos. Desde que cada um deve achar a bênção a
i;
seu próprio modo, a insistência em ações humanas cor-
~
,
J,
retas e cerimônias específicas de salvação têm que encon-
trar rejeição.

Certos budistas, por exemplo, entendem que casa-


mentos religiosos são nada mais que uma concessão à
fraqueza humana. Realmente, eles acreditam, o casamen-
to é apenas um acordo civil. No antigo Império Romano o
casamento foi progressivamente despido de qualquer sig-
nificado religioso e tornou-se um acordo puramente con-
i tratual. Cerimônias religiosas chegavam a ser olhadas
i! como práticas para assegurar a preservação da tradição
local. No Talmuci há passagens que afirmam que o casa-
Ij mento não é um pacto religioso. Lutero declarou que o
casamento concerne ajuristas, não à Igreja.
1

Entretanto, contrários a esses pronunciamentos, os


budistas acompanham os casamentos com muitos rituais
" religiosos. Os judeus, no curso de sua longa história, li-
"
111': :~.",
'o
gavam cerimônias religiosas aos seus casamentos e Lutero
disse: "Deus colocou sobre o casamento uma cruz".
A reforma de Zwínglio em Zurich também tentou dar
uma feição puramente secular aos votos de casamento ,mas
a pressão do povo forçou a volta de uma cerimônia reli-
gIosa.
Na Escócia Puritana foi dada uma tonalidade ex-
li tremamente mundana ao caráter do casamento. Até 1856
L ,
l' todo o necessário para casar-se na Escócia era a decla-
I; ração de intenção da parte de ambos os cônjuges: toda es-
:1
.t

pécie de cerimônia era evitada. J-li


;~r

1 A Igreja Católica só decidiu que o casamento era , :


'I';
1.
; válido unicamente com a bênção da Igreja no Concílio de ~'1
Trento em 1653. Hoje a Igreja Católica encara o casamen-
1
to como um sacramento, como um símbolo do casamento r
j
de Cristo com a Igreja. , ~~
,1'
'I
J
Em 1791 foi introduzido na França o casamento
puramente secular. "A lei considera o casamentQum con-
trato civil", era o modo como era colocado. O ato do
li casamento civil, entretanto, foi planejado para ser reves-
tido de grande solenidade, como é hoje na Alemanha . II

Ocidental. O oficial civil veste uma faixa de seda em volta


de seu abdômen e imita os gestos de um sacerdote. i
,I

·Um casamento civil na França é freqüentemente mais li


i,
'.'
~; solene que aumprese1!.çada
. Será casamento na igreja emàZurich'-j
referência transcendência na /
maioria das cerimônias religiosas - e mesmo contra gran-
i
o,'
de resistência - talvez uma indicação de que o casamento.
I, ,', tem muito maiS-a~er_com-sal-vaçãculO-Qlle com felicidade?~
I,
I~ Será essa a razão pela qual ele é uma espécie de " insti-
tuição desnaturada"?

toda a vida o vínculo de um homem e uma mulher, ate a


morte, pod~ ser entendido
O encontro como dois
dialético entr~ um meio especial
parceiros, de.d~ra
que des- j'

[ 51
cobrir a alma, uma forma especial de individuação. Uma
das características essenciais deste meio de salvação é a
ausência de saídas. Tanto quanto os sagrados ermitãos
santificados não podem fugir de si mesmos, também as
pessoas casadas não podem evitar seus parceiros. O ca-
ráter específico deste meio de salvação está na impossi-
bilidade de fuga, parcialmente enaltecedor, parcialmente
tormentoso. ~?\ Ar- ~ d. '~1nótc (
Na concepção cristã de salvação o. amor tem papel
importante. Pode-se talvez admirar porque até agora
; . somente aludi a amor em conexão com o casamento.
li A palavra amor inclui uma grande diversidade de
d fenômenos que talvez tenham a mesma fonte mas que
~
l'i
)
todavia devem ser distintas entre si. O casamento é um dos
1 caminhos de salvação do amor, mas de um amor que não é.
de todo idêntico ao que é produzido pelo jovem Cupido. O
amor de Cupido não é temperamental, irrestrito. A pe-
culiaridade do amor que marca o caminho de salvação
pelo casamento é sua "antinatural" estabilidade: "Para o
melhor ou para o pior, para mais riqueza ou mais pobreza,
, na doença e na saúde, até que a morte nos separe". Vê-se
freqüentemente casais de velhos nos quais um cônjuge é
espiritual e fisicamente robusto, enquanto o outro é física
~ e espiritualmente inexpressivo. E assim mesmo eles se
; amam. Tais casos demonstram o antinaturalismo e a gran-
~:
" deza dessa espécie de amor que o caminho de salvação
, através do casamento requer. O amor, no qual o casamen-
!
l'I: to se baseia, transcende a "relação pessoal" e é mais que
meramente relaciona!. Cada um tem que buscar seu
I;
próprio meio de salvação. Um pintor o encontra pintando,
l um engenheiro construindo etc.... Muitas vezesas pessoas
se colocam num caminho que, mais tarde, prova não ser o
seu. Muitos acreditam serem artistas e depois descobrem.
que sua vocação está em outra parte.
É o casamento , então um meió de salvação. para
"

qualquer um? Não há pessoas cujo desenvolvImento

I
psicológico não seja pelo casamento? Nós não exigimos
que todos encontrem sua salvação em música, por exem-

pensem e, então,
plo. Nãodever achar igualmente
sua s~lvaçãoquestionável
no casamento?
que Aqui
muitosse
pode' fazer a seguinte objeção; há, sem dúvida, muitos
meios de salvação, mas este fato não se aplica ao casamen-
to: não ocorre a ninguém que a maioria da população
l
deveria se tornar pintora, mas é esperadQ que uma pessoa
r normal se case depois de certa idade. Não casar é, supos-
f tamente, anormal. Pessoas mais velhas solteiras são des-
critas como tendo desenvolvimento infantil problemático;
I, vr-:1.hossolteiros são suspeitos de homossexualismo e
r mulheres que não se casaram são encaradas como se es-
1\
,,'
tivessem nesse estado por falta de atrativos ("A coitada
não conseguiu achar um homem"). Existe um terror vir-

atitude esteja um dos maiores problemas com respeito ao.


casamento
tual sobre omoderno.
fato de todos terem que se casar. Talvez nessa J'
1I

\ O caráter soteriológico do casamento está se tornan-


li do cada vez mais importante atualmente; ele está se tor-
nando cada vez mais um caminho para a salvação e cada
(\
vez menos uma instituição de bem-estar, cada vez mais
l';
uma vocação. Nem todo mundo acredita ter que achar sua
~
~ 1
:
;l , salvação tocando violino, assim, porque tantos acreditam
~ ser chamados para o casamento? Tal dominância de um ...•
1 meio de salvação é destrutivo. Inúmeras pessoas que estão
j casadas hoje não têm afinidades com o casamento. Apesar
~
I de muitos movimentos contrários do ponto de vista pu-
I ramente social, ele permanece mais valorizado que a si-
! tuação de ser solteiro. Esse não foi sempre o caso. A
1
vocação para freira ou padre era encarada como uma pos-
sibilidade de salvação. O fato de ser solteira por parte da
mulher era fortemente ligado à assexualidade, enquanto
que a sociedade era muito mais tolerante com os homens e a
vivência sexual era raramente considerada má para homens
solteiros.

É tempo de promover as possibilidades da vida ce-

53
libatária para pessoas que procuram sua salvação em
outro lugar que não no casamento. Isso também serviria
para tornar o casamento mais valioso. A posição social e a
segurança material de pessoas solteiras deve ser melho-
rada, e deveria tornar-se possível e aceitável pessoas terem
filhos fora do casamento. A meta seria reservar o casa-
mento somente para as pessoas especialmente dotadas
para encontrar sua salvação na intensiva, contínua relação
e encontro dialético entre o homem e a mulher.

I~
l'
Há muitas mulheres, por exemplo, que querem,
basicamente, só filhos e não um homem. Para elas é uma
tragédia ter um homem por toda a vida quando ele não lhe
I:;
interessa o mínimo.

O casamento moderno é possível só quando se


li deseja e se anseia este meio especial de salvação. O co-
letivo, entretanto, continua a arrebanhar pessoas para o
I casamento em nome do bem-estar. Muitas moças casam-se
'
.,
. para fugir da pressão de uma carreira e para achar alguém
11:t
.,
que cuide delas .. Só muito poucas uniões podem durar
\.i
:)
"até a IÍlorte" se o casamento é considerado como uma
instituição de bem-estar social.
; j

r Como mencionei, há hoje muitos contramovimentos


t~
;1
em ação, por exemplo, o de libertação das mulheres. "As
mulheres não necessitam dos homens", é um de seus
j. slogans. Infelizmente, contudo, women's /ib é - ou era _
\: hostil aos homens.
V
De acordo com estatísticas recentes, o casamento nos
1 '
II .países ocidentais está acontecendo menos freqüentemente
ou está acontecendo mais tarde na vida. Talvez um novo
desenvolvimento esteja preparando o caminho para que o
casamento se torne uma vocação para alguns e não uma
\ obrigação para todos. Muitos jovens estão vivendo juntos
iI sem se casarem e talvez isso reflita uma confirmação de
I que o casamento não é o meio de salvação para todos.
I
1 Ainda não é possível determinar claramente se isso é ou
não uma indicação real de uma recente concepção que
,\
\'1 54
emerge. Também poderia ser a expressão de um pessimis--,
mo coletivo, uma perda da fé em qualquer espécie de meio
de salvação.' _
Aqui devemos investigar as dificuldades futuras do
casamento moderno. Como afirmei antes, ele é acima de
tudo um meio de salvação e não uma instituição social.
Mas as pessoas estão continuamente sendo ensinadas pelos
psiquiatras, psicólogos e conselheiros matrimoniais, que
somente os casamentos felizes são bons e que os casamen-
tos deveriam ser felizes.
Na realidade, entretanto, qualquer meio de salvação
se conduz através do Inferno. A felicidade, no sentido que
é hoje apresentada aos casais, pertence a bem-estar, não a
salvação. o casamento é acima de tudo uma instituição de
salvação e esta é a razão pela qual é tão cheio de altos e
baixos. Ele consiste de sacrifícios, alegrias e sofrimentos.
Por exemplo., uma pessoa casada pode chocar-se contra o
lado psicopata de seu parceiro, aquela parte de caráter que
I
1
não é receptiva a se modificar e que tem conseqüências
tormentosas para ambos; se o casamento não se quebrar a
i! esta altura, um parceiro (geralmente o menos psicopático)
~;
~ 1

·1:
';
terá que desistir. Se um deles é, por exemplo, emocional-
~~
1',
mente frio, não há alternativa a não ser que o outro con-
tinue a mostrar sentimentos e emoções amorosos, mesmo
~ ' que o parceiro reaja a esses, fraca e inadequadamente.
Todos os conselhos bem intencionados a homens e mu-
l: lheres no teor de "Isso não vai adiantar" ou "Você não
li,/ deve tolerar isso" ou "Uma mulher (ou um homem) não
!I . deve deixar que isso lhe aconteçá" são, portanto, falsos e
il deletérios. .
! II
11

'I
: II

\
Um para
tamente casamento só funciona
aquilo que se alguém
nunca pediria se abreoutra
qu~ fosse.de
maneira. Somente friccionando as própnas fendas e se
exa-\J ,
I perdendo se é capaz de aprender sobre si mesmo, Deus e ~
mundo. Como todo meio de salvação, o do casamento e
1 duro e doloroso.
~d .~
...•.•.. )~
Um escritor que cria obras significativas não quer ser
feliz, quer ser criativo. Da mesma forma as pessoas ca-
sadas raramente podem desfrutar de uniões harmoniosas e
-I felizes como os psicólogos queriam que eles acreditassem.
I A imagem do casamento feliz causa grande dano.
I
Para aqueles que são dotados para o meio de salvação
através do casamento, esse, como qualquer outro, na-
turalmente oferece não só dificuldade, trabalho e sofri-
mento mas também a mais profunda ~spécie de satisfação
existencial. Dante não chegou ao Céu senão atravessando
o Inferno. E assim, também (lá) raramente existem
1 "casamentos felizes".

~.
ij:
!

11:

i
i

t
11

11
:\

lj:

li
I:
li
>11

11

1\

I
I
I

\
56
MASCULINO E FEMININO
NÃO SE HARMONIZAM

Para compreender o casamento moderno mais


pleliamente necessitamos refletir mais profundamente
sobre o fenômeno do masculino-feminino e da relação en-
tre homem e mulher. O que somos, realmente como ho-
mem, mulher, pessoas? O que determina nosso compor-
tamento cotidiano? Tentarei limitar-me aos enfoques que
sãoimportan~es para nosso tema.
As atividades dos animais são, em grande parte,
determinadas por padrões de comportamento inatos. Os
estímulos externos. provocam ou liberam alguns desses
padrões de comportamenfo inatos. De modo geral, esses
padrões herdados são adequados e úteis na situação que é
caracterizada por estímulos particulares'. A vida da espécie
e do indivíduo é mantida pela plena execução desse
modelo de comportamento. .
Na primavera, por exemplo, certos estímulos levam
algumas espécies de pássaros a construir ninhos de acordo
com um desenho específico. Assim que os ovos são
chocados e os pais vêem as bocas abertas dos passarinhos o
padrão comportamental de alimentação é ativado. Meios
artificiais podem substituir estímulos naturais e conseguir
o mesmo efeito. Um pássaro macho realizará um ritual es-
pecial de namoro ao aparecer uma fêmea. Mas a fêmea é
reconhecida por ele somente como algo que é caracteri-
~..,
zado por uma forma e cor particulares ou talvez por certo
som; esse som sozinho pode ser suficiente para ativar o
padrão comportamental de acasalamento. Isso é verda-
deiro não só para os pássaros como a seguinte estória
ilustra.

Foi observado no Canadá que durante o período do


cio os alces machos se jogavam de cabeça contra trens em
movimento. Descobriu-se então que o apito da locomotiva
parecia o rugido de um alce macho no cio, e por isso
ocorria um "duelo" entre o alce e a locomotiva e tal com-
portamento certamente não era o resultado de nenhuma
espécie de reflexão. O animal reage "instintivamente" não
no sentido de uma urgência vaga e indefinida, mas no sen-
tido-de completar padrões de comportamentos inatos que
usualmente são significativos em relação à situação dada.
Os humanos são diferentes, embora não tão com-
-,- pletamente. Também carregamos dentro de nós padrõet
inerentes de COIDrwrtamento, que são chamados arqué-
..tipos... A diferença entre padrões arquetípicos humanos e
éosa modelos
seguinte: inatos de reação e comportamento em animais

Os padrões de comportamento humanos são, antes de


í:
tudo, usualmente mais complicados e menos precisos nas
:~ minúcias que os dos animais. Nos humanos, estão rela-
I:
11,
cionados com linhas-mestras que atuam em segundo
I plano. Além disso, nos humanos, os padrões parecem ser
mais numerosos e não são todos utilizados no decorrer da
li vida; muitos deles são simplesmente deixados de lado.
11
II Toda pessoa tem dentro de si um grande número de pa-
drões de comportamento potenciais que dificilmente
1\ desempenham algum papel em sua vida específica.
'1\
I
I '
Terceiro, e isso é da mais decisiva importância, o ser
!
humano é capaz de observar esses padrões e de refletir
sobre eles; está apto para de vez em quando trazer esses
arquétipos para a consciência. Isso de modo geral não
ocorre atr~vés de pensamentos lógicos e reflexão, mas sim
i
homem
através de
símbolos.é um
imagens,
animal símb.olos,
que se torna
mitos,
consciente
estórias, através
etc .... de
O "\
_J

Tudo isso deve ser mais ou menos familiar ao leitor.


Entretanto, apesar disso, reina uma certa confusão quanto
à questão de masculino e feminino. Devia estar claro que
não existe só um arquétipo masculino e um arquétipo
feminino. Há dúzias, senão centenas, de arquétipos mas-
culinos e femininos. Há certamente bem mais do que
imaginamos comumente. Mas nem todos os arquétipos
são dominantes
indivíduo . em um período particular da vida de um

.Além disso, cada época histórica tem seus arquétipos


dominantes femininos e masculinos. As mulheres e os
homens são determinados em· sua identidade e C0m..por-
tamento sexuais somente por um número seleto de ar-
quétipos. O comportamento é determinado apenas por
aqueles padrões que são momentaneamente dominantes
na psique coletiva. Isso leva a um erro grotesco mas com-
preensível: os arquétipos que dominam o comportamento
!I, masculino e feminino num determinado período vêm a
I
I
!

linos. E desse número limitado de arquétipos é decidido o' ,


que são "masculinidade" e "feminilidade". Este IIial-
ser entendidos como os arquétipos femininos e mascu-- ')
-entendido levou, por exemplo,- à s,llposiçãâ na psicologi~·
junguiana de que masculinidad~ é idêntico a Logos e
feminilidade a Eros. Admite-se que a essência da femi-

•=
nilidade é pessoal, relacionada com o próximo, passiva e
masoquista, e que a essência da masculinidade é abstrata,
intelectual, agressiva, sádica, ativa etc .... Esta asserção in-
gênua deve ter sido feita apenas porque os arquétipos mas-
culinos e femininos que eram dominantes naquele temp"o e
válidos. cultura foram compreendidos como os únicos
naquela

Gostaria de mencionar apenas alguns dos numerosos


arquétipos femininos.

~
I
I .... Primeiro, há o arquétipo maternal: em sua forma
I

J ctomca, de um lado protetora e nutriente, de outra de-


voradora; na sua forma espiritual, de um lado inspira-
dora, de outro impelindo à morte e à loucura.
Um arquétipo algo mais sombrio é simbolizado na
mater dolorosa, descrita em milhares de pinturas e escul-
turas. É a mulher que perdeu seu filho, que havia morrido
1I na guetra ou morreu num acidente em plena juventude.
Tal mãe freqüentemente se identifica tão. fortemente com
o arquétipo da "mãe dolorosa" que lhe parece ter se tor-
:. nado outra mulher desde a perda que sofreu.
\
I~ •

O arquétipo de Hera, esposa do pai celeste Zeus, nos


é familiar como símbolo da esposa ciumenta, tão terrível e
:1 furiosa contra tudo o que desvia dela a atenção de seu
marido.
Outro arquétipo é a hetaira, a companheira desini-
bida do homem no prazer sexual, no saber e no estudo.
Hoje podemos verificar esse arquétipo exemplificado na
atriz Shirley Mac Laine: intelectual independente, mas não
' hostil ao homem.

Outro arquétipo feminino é representado por


. Afrodite, a deusa do prazer sexual, o arquétipo da amada
li
1~ :
desejável: esse arquétipo foi visto, por exemplo, na infan-
I: ' til e ingênua Brigitte Bardot e num modo diferente em
r : Marilyn Monroe.
I: '
I~'
"

I: .
Atenas representa um dos arquétipos femininos mais
I' interessantes: a mulher sábia, vigorosa, auto-suficiente,
L
lI! :
não-sexual, embora prestativa e útil ao homem, arquétipo
'I:
este desempenhado e vivido há poucos anos atrás por
I
I ' Eleanor Roosevelt.
I:
! Certas viúvas e divorciadas freqüentemente parecem
!
ter algo arquetípico sobre si. São independentes, o homem
está ausente e se tem a impressão de que "graças a
Deus!". A relação com o marido é aquela de conquistador
"para conquistado.
o
Esses arquétipos são todos mais ou menos relacio-
nados com o macho, tanto se marido ou se amante, e com

quétipos femini~~s p~der-se-ia ~oncluir corretamente que


i a natureza femInIna e caractenzada por Eros, por rela-
filhos ou com a família. Se esses fossem os únicos ar-~
cionamentos.
'I

il
li'\
.ll Os arquétipos femininos que não têm nada a ver com
::
;, o homem - pelo menos com o homem como marido ou
li
1I
amante - ou com os filhos, são tão importantes como os
anteriores, embora menos familiares à consciência co-
rI! letiva.
i:
I: Há, por exemplo, o arquétipo da Amazona, e o
I.,

guerreiro fêmea. Ela só necessita do homem para procriar.


De aeordo com alguns relatos as Amazonas capturavam os
i'i homens e dormiam com eles a fim de engravidarem; uma
vez que os homens tinham cumprido sua função, eram
ii mortos. De acordo com outra versão as Amazonas não os
li
[! usavam apenas para produzir filhos, mas também para os
i: trabalhos de casa, cozinha e cuidar dos filhos. As
li
!j
i:
Amazonas amam conquistas e se sentem bem em com-
li panhia de outras mulheres.
!
I Esse é o arquétipo da mulher independente que rejeita
!
! '
o homem. Também sabemos de um arquétipo da solitária
Amazona, uma mulher mais velha ou mais jovem que gos-
r ta de viajar sozinha, que entretanto não quer se ligar a
I:
I~ nada, que vê o homem com desconfiança, que se sente à
!
~.
vontade com mulheres mas que não é lésbica.
i;
I:d
Outro arquétipo feminino é o de Artemis. Sua dis-
I'
li
posição é, também, hostil aos homens. Não quer ser vista
i'
i,. ou conhecida por eles. Os homens que acidentalmente es-
" barram com ela devem morrer. Se Artemis tem uma re-
';
li lação com alguém é com seu irmão' ApoIo. Muitas mu-
i
li lheres são deste mesmo modo afetivamente relacionadas
I: somente com seus irmãos; fora disso não querem nada que
r tenha a ver com homens ou filhos. Isso pode ser entendido
não somente como o resultado de um desenvolvimento

J 61
neurótico, mas também como uma p~idaJÍe.-.ar
~ quetípica -
dófeminino.
Outro arquétipo que não está relacionado com ho
mens ou filhos é o da Virgem Vestal, a freira. Essa:
mulheres dão suas vidas a Deus ou sacrificam-na a algum(
outra causa, mas não a um homem ou a filhos.

Podemos concluir que há tantos arquétipos femininm


que não estão relacionados ao marido, ao amante ou aos
filhos quantos os que servem ao Eios da sexualidade e da
I vida familiar.
,\

,1\

11'
II
Um estudo mais exato das possibilidades arquetípicas
'\
hI do ser humano poderia contribuir muito para a com-
I
. preensão das chamadas neuroses. Uma Yis.ã..omuito li-
j
. da do que o homem deveria ser nos impede o co-
1\
.•' i nhecimento das incontáveis variações arquetípicas
~\ comportamento humano. Muitas das chamadas falsa
atitudes neuróticas não são o resultado de um desenvol ,
f : vimento psicológico desfavorável, como comumente os'
~ 'I consideramos, mas a imagem de um arquétipo particular
, que não pode ser vivido com uma boa consciência porque
I :j
;\
:.
I \
é rejeitado pelo coletivo. Praticamente todos os padrões,
arquetípicos de comportamento feminino que não se
relacionam com os homens são relegados a "não devia
I
11, ser" e são vistos como neuróticos e doentes. Não é neces-
l!
fI
J.! I
sariamente neurose se o marido ou os filhos não são o cen-
\i; tio do interesse de uma mulher. A Amazonas, Artemis, a
li i
l Virgem Vestal etc.... são padrões femininos de compor-
j; tàmento, baseados em arquétipos e não necessariamente
1,1 em psicopatolpgia.
,Ii\ii
:1

Os arquétipos necessitam certas circunstâncias e~


'I
1:1
;1 movimentos espirituais, num período histórico particular,
II a fim de serem ativados e vividos. Assim, houve tempos e ~,
11
situações nos quais o arquétipo do artista não era valo-
.1
rizado: em tempos de paz o arquétipo do guerreiro não
>

!I
tinha papel importante etc ..
62
tl\ \ '1'1\
Um arquétipo feminino dos qlais impórtantes é o da
mãe; em quase todos os períodos históricos isso tem sido
vigorosamente vivido e tem dominado o comportamento
da maioria das mulheres. As crianças necessitam das
mães; sem elas a humanidade teria cessado de existir.
Qual é atualmente a situação arquetípica das mu-
lheres? -Que arquétipos dominam? Quais deles perderam
alguns de seus significados? Notadamente na Europa
Ocidental tem havido um declínio da doininância do ar-
quétipo maternal nos últimos dez ou quinze anos. Eu
suporia que em muitas "altas" culturas históricas esse ar-
! 11\ quétipo perdeu muito de seu significado para classes
_sociài-s particulares, e.g. entre as mais altas classes sociais
do Império Romano, entre a nobreza francesa do século
XVIII etc ....

I! Nesse aspecto temos hoje na Europa Ocidental e em


muitas outras áreas indl.striais do mundo uma situação
J

, .,1
muito interessante. Quando as crianças vêm ao mundo,
elas têm uma boa chance de viver por setenta anos. Em
períodos anteriores somente poucas conseguiam atingir a
idade adulta, e então foi necessário para a sobrevivência
da humanidade que as mulheres disponíveis tivessem tan-
\
,I tos filhos quanto possível. Mesm) aqueles que atingiam a
idade adulta freqüentemente morriam cedo. Isso significa
que a maioria das mulheres morria antes de atingir uma
idade na qual o arquétipo mãe já não era uma necessidade.
Entretanto, hoje, a mulher média na Europa Ocidental
~ talvez tenha dois ou três filhos lue, depois que ela tenha
, atingido a idade de mais ou menos quarenta e cinco anos,
J

'J
~ ':1 - já não exigem toda sua energia.
~
\"

ri j ~
""I:':' que Antigamente era de
tinham o auxílio possível
criadosapenas aos não
e servos, muito ricos,a
perder
II j
i~
,I maior parte de sua energia psicológica no cuidado com os
filhos. Hoje em dia os criados são raros mesmo entre os
ricos, mas em contrapartida (pelo menos na Europa
Ocidental) as mulheres de todas as classes têm menos
uni
trabalhos domésticos graças ao desenvolvimento da teco
nologia. Mesmo o cuidado com crianças pequenas requel
hoje menos trabalho e esforços. '
Desde que o arquétipo da mãe e de Hera são menos
dominantes atualmente, é deixado mais lugar para que
outros possam emergir. Numerosos outros arquétipos
·contêm energia psíquica. A mulher contemporânea tem a
oportunidade de viver dentro dos mais diversos arqué-
tipos. o"· •

De modo significativo, a situação para os homens não


é exatamente a mesma. Para eles não mudou muita coisa.
Por milênios os homens tiveram muito mais possibilidades
arquetípicas do que as mulheres. O arquétipo de Ares, por
exemplo, o guerreiro e soldado brutal, sempre lhes foi di
t ponível assim como o de Ulisses, o guerreiro e marido in'
"
teligente. O arquétipo do sacerdote, o homem de Deus
~ também sempre lhes foi viável. O arquétipo do médico, o
de Hephaistos, o técnico primoroso, o de Hermes, o ladrão
e comerciante inteligente, e muitos outros, não lhes foram
negados.
O fato que a mulher de hoje tenha mais possibilidades
arquetípicas abertás a ela não significà automatiCamente
que o homem de hoje também tenha mais possibilidades à
sua disposição que o do passado. O homem de hoje ainda
1\
II é muito ligado a seu papel de provedor e isso limita suas
li,
, possibilid~des. As possibilidades árquetípicas para os
1\

II!
homens não são muito mais numerosas que as das mu-
\
lheres, mas para elas essa grande oportunidade é de uma
1
certa forma nova. Por essa razão estou tratando mais dos
arquétipos femininos que dos masculinos.
II As mulheres que até há bem pouco tempo só podiam
entrar em contato com poucos arquétipos e fazê-l os de-
finidos em seu comportamento, estão se tornando cada
I\ vez mais estimuladas pela abertura de novas possibili-
dades. Infelizmente outra face do problema está se
apresentando e gostaríamos de explorá-Io um pouco mais.
~,
I\\
;,t-
~:
~'.. I \
I
A passagem de um arquétipo a outro, o despertar de
um novo, que tinha sido ren~~ado, é uma situação que se
experimenta" sempre com dIfIculdade. Sabemos de tais
passagens na história da vida de cada um. Durante a
puberdade o arquétipo da crian a retrocede parã segundo
p ano e emerge o o a u to. Por volta· e cmquen a anos
esse começa gradativamente a ser supnmido pelo ar-
quétipo do "SENEX". Q,!lando um dos arquétipos se"",
separa do outro, .h~, na_ vida do indiv.íduo, a chamaE..a·1\O~
depressão de transIçao. Sao bem conhecIdas as depressões (.,#.~
que ocorrem durante a puberdade e no período entre "1tt"
quarenta e cinco e cinqüenta e cinco. Essa espécie de
depressão na história de uma vida individual pode ser
dominada porque sabemos precisamente qual arquétipo
está se diferenciando.
Contudo, a situação coletiva da mulher não pode ser
encarada como simplesmente paralela a uma depressão de
transição do indivíduo. Para tentar esclarecer esse ponto
farei algumas breves reflexões psicológicas.
Tudo o que somos, o somos através do desenvolvi-
mento, através da experiência, da humanização do ar-

nosso comportamento. Podemos cultivar esse compor- c


'I!
iamento, entendê-Io
quétipo. Padrões através deprecisos
arguetípicos imagens, tornarmo-nos J
semm:e-gQvernam
conscientes dele e dar-lhe forma. Mas raramente podemos
1\
funcionar exclusivamente a partir da vontade em assuntos
1;
"I importantes. Em outras palavras, só experienciamos nossa •
!I
atividade tão significativamente guando ela está rela-
cionada com uma base arquetípica. Uma mãe nunca pode
I "funcionaLsatisfatoriamente como mãe se a maternidade
for fruto de uma reflexão consciente ou só de uma inten-
li ção e sentimentos egoístas. Ela não pode ter uma relação
d simplesmente pessoal com o filho. Sua relação com ele é
,I~ fundamentalmente impessoal e arquetípica. Está ligada ao
! quetípico pode ser construída uma relação pessoal de
"mãe-filho"da . "mãe e filho" e unicamente nesse terreno ar-)
arquétipo

,:;"
Além disso, ~<.>..!!!.os
incapazes de escolher um ar-
uéti or ato de decisão consciente. Ele nos é dado
?través da elaboração e uma sltuaçãoextêma e do incons:ar
II
"
ciente coletivo. Os arquétipos que regem o coletivo tam-=
I
n
"
.6ém nos regem.:-Podemos perceber quais deles são do-
11

I'
"
minantes através dos mitos, personagens de filmes,
propaganda, estórias populares etc .. Eis alguns exemplos:
Elizabeth lI, símbolo do arquétipo da rainha e esposa,
Jaequeline Kennedy, da que alcança fama e riqueza
através dos homens; a ex-imperatriz Soraya, a mulher de
amor livre; Elizabeth Taylor, a beleza de consumo; James
11:
Bond, o aventureiro que domina a tecnologia e exaure as
mulheres; o cantor de rock orgiástico, como Dionísio,
quase arrebentado por suas fãs, o trickster Mickey Mouse;
o' herói
talha Muhammad Ali, cuja fanfarronice antes da ba-
é homérica.
~:

t
~
porqueA situação
elas estãoatual da mulherde éum
se separando especialmente
pequeno grupo de 7\V '
diflcil
arquétipos e se aproximando de um grande, mas esse grupo
novo ainda não é claramente visível. Nesse' sentido sua
situação é diferente da de uma depressão de transição in-
dividual. A situação hoje é que as mulheres estão conlO.
f; que ao mar: o velho continente desaparece e o novo ainda
l'
,. não se tornou completamente visível. Tal passagem traz
d: consigo um vazio arquetípico. Perdido, procurando,
I' desamparado, o navio do mundo da mulher flutua num'
li.
\' oceano vasto. E 'essa situação de transição arquetípica é

,J
tI: também uma das razões pelas quais tantas mulheres
procuram
viver encontrar-se
suas próprias vidas.e têm o desejo de ser elas próprias,

Muitas mulheres vêm aos psicólogos, conselheiros ou


psiquiatras dizendo ser infelizes e querer viver somente
suas próprias vidas: serem elas próp...ri.as.-e-S.e
enco.ntrareUt .
.1\9-hamada alltodesco.berta das mulheres acima-de..quaren-=--.
ta anos·é hoje em dia o tópico favorito das revistas femi-
.ninas e de artigos psicológicos populares.
66
f!I'I8
Este "ser si mesmo" é, obviamente, impossível. Toda
a conversa sobre isso é a expressão da desorientação, con-
fusão e depressão coletivas. Dizer "quero ser só eu'
mesma" faz tanto sentido quanto dizer "quero falar
minha própria língua". Temos que nos exprimir na língua
I:
.111":
com a qual'crescemos desde a infância ou nas que apren-
dembs desde então. Não podemos falar nossa "própria"
11:,

preender. Similarmente não podemos nos encontrar, mas


somente expressarmo-nos através do desempenho de
papéis arquetípicos e nesse sentido podemos, talvez, en-
língua-, pois, se alguém o faz, ninguém mais
contrarmo-nos. _ o pode com- \
Não há dúvida que uma nova liberdade se consteI ará
para a mulher moderna. Mesmo hoje, a mulher já está em
situação de poder permitir-se desempenhar uma gama
maior de papéis arquetípicos do que no passado. Ela pode
ser mãe, amante, companheira, Amazonas, Atenas etc.;
I: Não me aventuraria, no presente, a abstrair "o fe- (I

minino" de todos os arquétipos femininos conhecidos, ou .:


o "masculino" dos arquétipos masculinos. Isso reque-i
reria, em primeiro lugar, mulheres psicólogas que não se

masculina. Ainda assim já sabemos que uma coisa é certa:


precisamos pôr um fim às equações: "feminino = Eros e
relacionamento" e "masculinO = Logos, intelecto,
conformariam(Atenas,
atividade." em estudar o tema através
por exemplo, da uma
apresenta perspectiva
forma )
feminina de intelectualidade que não pode ser entendida
como "animus"). Também precisamos acabar com o en-
foque biológico segundo o qual uma mulher se realiza
somente criando os filhos.
As muitas novas possibilidades arquetípicas que estão
surgindo trazem uma conseqüência interessante: o medo
L da multiplicidade das possibilidades arquetípicas. As
mulheres estão acostumadas a serem condicionadas e
H
, ·1
conduzidas por um pequeno número de arquétipos. A
\!
I1
I""">':"
nova multiplicidade que começa a emergir está fazendo
-

II ~ ~7
com que muitas mulheres sintam-se inseguras; sentem-se
conduzidas a se atcr ao menor número possível de ar-
quétipos. Durante séculos o arquétipo de Hera dominou
, as mulheres. Hoje o arquétipo da mulher profissional está
I começando seu domínio por um prisma unilateral. As
mulheres sofrem a compulsão coletiva de trabalhos assim
que o arquétipo mãe terminou seu curso. Ao invés de
livremente entregar-se à multiplicidade de possibilidades
arquetípicas, freqüentemente elas se rendem à imagem da
mulher profissional e acreditam ter encontrado "reali-
! zação" mesmo nas posições mais aborrecidas, às quais
elas têm geralmente se entregado sem a menor necessidade
econômica. Não são poucas as mulheres casadas por volta
dós cinqüenta anos que, tendo se libertado do encargo de
cuidar de crianças, compulsivamente sacrificam sua liber-
~ :li
dade a uma posição profissional subserviente e tediosa. O
arquétipo da mulher profissional está fortemente ligado

aos "'deuses" técnicos utilitários e racionais de nossa
i;"
época. Freqüentemente se ouve "Eu gostaria de fazer algo
I ~
!;
útil" .
:i
:~

,.
Entretanto, sc a série inteira dos novos espectros ar-
"
1,
quetípkos realmcnte abrisse seu caminho, o relaciona-
mento entre homens e mulheres seria refeito de muitas
maneiras IWVas. Ú'
i.
!:
! i
I. .'
;.

homem Muitas relaçõesseriam


e mulher novas decretadas:
e extrcmamente diversas esposa
Hero-Zeus, entre l'\
autoritária e marido brutal; Philemon-Baucis; o afei- \

çoado'e fiel casal;


tre a mulher sensualAres-Afrodite,
que se espanta um
comrelacionamento
a brutalidade een-o I\
rufião que cultua a beleza; Zeus e as ninfas, o homem .\

apaixonado pela intoxicação sexual, se relacionando com


i muitas amigas; Afrodite e seus amantes incontáveis etc .. '1

!
Zeus e' Hera devem ser entendidos como o Presidente'
e a Primeira Dama do Olimpo. Mas sua proeminência
diminuirá e deixará lugar para inumeráveis novos deuses e

deusase Hera
Zeus aparecerem e se altamente
permanecerão desenvolverem: Apesar
consIderados. disso, I
~
e-'

iII
AR
Arquétipos que até agora foram exilados no submun:
do da patologia podem ser vividos mais intensamente. As
relações de Ulisses com Atenas não serão mais conside-
radas patológicas e inseridas num complexo maternal; os
homens estarão aptos a se relacionar com as mulheres de
maneira assexualizada; o arquétipo irmão-irmã será
, novamente capaz de sobreviver - o relacionamento
~::
..
Artemis-:Apolo - e o amor profundo, persistente,
acolhedor entre irmão e irmã não será mais condenado
como incesto ou como vínculo pouco saudável. (Interes-
1:'
santemente esse relacionamento entre irmãos foi menos
,
!:~

~. patologizado e menos considerado como incesto na época


l..
da Rainha Vitória que na de hoje.) Também certos ar-
i:
quétipos femininos combativos, de ódio aos homens,
aparecerão, e as Amazonas conseguirão ser reconhecidas.
Haverá mulheres que abertamente expressarão seu desejo
de ser somente mães, não esposas. Haverá arquétipos que
terão pouco a ver com o relacionamento interpessoal mas
serão orientados somente para a profissão: mulheres/ cien- ,1,
"

~.
,~
\

tistas, artistas etc ..


I),

1111
, I';
"

:~
:
Tudo isso entretanto, é o quadro do futuro. No I
,.
'presente as mulheres e as relações entre elas e os homens
1::
estão em fase de transição. A incerteza inerente a essa
.,
1" .
situação nos amedronta não só porque não sabemos quais
arquétipos virão à tona, mas também porque çm tais
rd::
j' épocas de transição somos muito mais abertos tanto ao ~
10•

,- pecto sinistro e perturbador dos arquétipos quantQ.aose.u


o'.
esplendor. Enfrentar e refletir sobre isso é extraordina-
!:
, riamente aifícil e nos amedronta profundamente. A
:1 I,
I', humanidade sempre procurou caminhos para tornar essa
situação inócua tão logo chegue à consciência. Contudo
"i.
,'; ....; aqui está uma armadilha àqueles que pensam obter uma
~ imagem fidedigna dos arquétipos através de uma mito-
fI'I!J logia tradicional, como a dos gregos. Mitologias, contos de
::1

I'
j'l'

.l-

il,
I'e
fI!'e nitidamente
fada etc., sãodelineados,
geralmentemas
cheios
muitas
de vezes
símbolos
eles arquetípicos
também são
li!
~ maquilados de uma mistura de imagens moralizadas-
!
;
i fie estetizadas e despotencializadas. ,
"
'I' f't'J rn
:,1

i__ ~ _
Em tempos recentes a psicologia começou a recO-
nhecer o aspecto destrutivo dos arquétipos maternal e
paternal. Cronos que devora seus filhos e a Deusa-Mãe,
que exige sacrifício humano, aparecem novamente no
reconhecimento de que muito sofrimento neurótico é
1I

li
ocasionado pela destrutividade dos pais. "Mamãe e
"

!;
Papai" não são mais apresentados tão 'completamente
inofensivos e de repente até parecem ser culpados por
tudo! Infelizmente a psicologia ain,da não chegou a uma
conclusão similar com respeito à relação entre homem e
1 mulher. Temos identificado o agressivo como masculino,
i\
r mas' também temos visto freqüentemente o feminino
",
" unido a um Eros não agressivo. Mesmo no século XX ain-
'. da não queremos olhar honestamente para o arquétipo do
~.;
:'l
"
feminino que arruina a vida de um homem e o assassina.
:(
Falamos da "femme fatale" e da "Ia belle dame sans
L
~:1!
merci". Marlene Dietrich cantou: "Os homens pululam à
.:j~
,'I:
minha volta como mariposas na luze se queimam". Con-
~jl
~~
~: tudo, psicologicamente essas figuras não são tomadas '~
~:.;;
seriamente, no sentido arquetípico. Dentro do campo das
li'
"I
possibilidades arquetípicas as relações entre homem e
mulher não são limitadas nem a relações vitais, nem à in-
dependência mútua de um e outro; elas também incluem
rivalidade mútua e batalha de um contra o outro, rejeição
recíproca, Amazona odiada pelo homem, a ira do fanático
women's lib, a brutalidade de Zeus, e a obstinação ma-
II ; levolente de Hera. O lado destrutivo e agressivo de uma!

reconhecido, mas o luxuriante desejo de morte da mulher


contra
relação oentre
homem ou não
homem tem sidotemreconhecido
e mulher ou tem sido
sido progressivamenteJ1
patologizado por causa de uma compreensão unHateral do
feminino.

,assassina
As imagens arquetípicas
nas figuras do feminino,
mitológicas a agressividade"'\
de Pentesilea, Camila,
Juturha, Marfisa, Bradamata, Clorinda, Britomart, Bel-
phoebe, Radigund são mal-entendidas como não fe-
mininas, como imitativas do masculino, ou como an-

rI'
70
dróginas. A mulher belicosa e matadora de homens~ que
vestida duma pesada armadura põe fora de combate um
homem após outro~ não é antifemínina, pelo contrário, ela
se nos apresenta com um arquétipo feminino que por cen-
tenas, mesmo por milhares de anos tem estado "fora de
moda".

!,
:;
:1

:;
ll\
"~I
il
:!!

~.'

Fi

<1
,\
íl ) 0./

~\\
~;;
( ~
l:f

~';
"~I
~;I

.c;.

I,:::

•••
~
fI!'e
r~
:;
".
".
I ~
•••••• 71
como tal. Todos esses fatores desarmoniosos nem semprl
têm a ver com um desenvolvimento neurótico ou um,
relação neurótica.

o casamento não é confortável e harmonioso' , antes (


um lugar de individuação onde uma pessoa entra em atrite
consigo mesma e com um parceiro, choca-se com ele ne
amor e na rejeição e desta forma aprende a conhecer a s
próprio, o mundo, bem e mal, as alturas e as profundezas.

"I

,;-j':q
\! I
II
I
~;
,-!

"j

\
I
1

E'U I :
,i

i\

\1
7')
EXEMPLO DE CASAMENTO DE
INDIVIDUAÇÃO

- E mais: De qualquer forma muitos casamentos duram


>

até a morte. Como veremos, sem sacrifício o casamento


raramente funciona. O sacrifício na individuação muitas
vezes toma formas estranhas, mas somente a individuação
faz o casamento inteligível.

A apresentação do seguinte caso é uma ilustração e


um estímulo para investigações futuras. Estou comple-
--:
tamente consciente do problema inerente à apresentação
de um caso, isto é, que o caso é escolhido como uma for-
ma para provar o que se quer provar.

Recebi a aprovação da pessoa envolvida para publicar


sua estória como um caso de estudo. Mudei alguns de-
talhes de sua identidade e assim eu a apresento à luz dessa
I Outra identidade quase estranha. Os membros da família
n
me asseguraram não acreditarem ser reconhecidos e
I ademais me asseguraram que isso não os perturbaria.

O caso, então. Ele é um pequeno homem de negócios,


\ algo sem atração, inteligente, e nenhuma educação
acadêmica. Ela é uma mulher bonita, de inteligência
~
média, com uma base acadêmica em humanidades. São
j
ambos da mesma idade. Encontraram-se quando tinham
cerca de vinte e cinco anos. Rapidamente se apaixonaram e
ela engravidou. O casamento prosseguiu, não realmente
"I fI!II8 'i' A
sob a pressão da gravidez, mas porque eles se amavam· ar-
dentemente.

A mulher.admirav~ o !Darido por sua perspicácia nos


negócios, sua mdependencla, e sua determinação em ven-
cer. Ele valoriza sua beleza física, sua cultura e seu estudo
acadêmico.

Depois do casamento o marido começou um negócio


e logo teve que ocupar-se bastante com seu crescimento.
Tinha que trabalhar duro, muitas vezes até tarde da noite.
Ela introduziu-o no campo do que se chama "cultura", e
continuou a admirar suas habilidades como comerciante.
"I

Depois do segundo filho ela começou a interessar-se


exClusivamente pelas crianças, gradativamente desligou-se
de seu marido. Nas conversas particulares entre eles, ela
fazia uso de sua instrução acadêmica. Ele tornou-se muito
servil e tentou fazer a vida tão confortável quanto possível
t para ela, ajudou-a no trabalho doméstico etc.. Entretan-
to, começou a sentir um profundo ressentimento contra a
esposa. Quando chegou uma noite em casa levemente em-
briagado e sua mulher pediu-lhe ajuda em alguns afazeres
ele explodiu e depois de alguma discussão esbofeteou-a.
J\mbos ficaram terrivelmente assustados com isso e foram
~I;
a um conselheiro matrimonial pedir ajuda.
O conselheiro falou com cada um separadamente.
~. Disse à mulher que por razões neuróticas ela estava ten-
t
lli
tando controlar o marido. Aconselhou-a a ser mais gentil
com ele e a respeitá-Io mais. Além disso, tentou fazer com
fi'
que a mulher experimentasse novamente sua admiração
pelas qualidades de negociante do marido, recentemente
diminuída.
i:l
,1
'j Ao marido, o conselheiro explicou que por razões
i neuróticas ele não era suficientemente forte e independen-
te na sua conduta com sua mulher. Advertiu~o sobre a
[\
VIII :1 bebida e em termos bem diretos que não espancasse sua
mulher outra vez. Ele percebeu que o marido estava cheio

t 74
de agressão reprimida e recomendou-lhe por isso que se
submetesse a uma análise.
Entre outras coisas a análise mostrou que o marido
compreendia basicamente m~is de "cultura" que sua es-
posa. Por exemplo, ele tinha muito prazer em literatura e
pintura. Tornou-se mais autoconfiante· mas sua mulher
não pôde tolerar sua nova atitude. Estava acostumada a
que ele cedesse sempre. Depois de uma confrontação
vigorosa .entre eles, ela partiu com as duas crianças e re-
fugiou-se na casa de sua mãe. Procurou· então a opinião de
outro conselheiro que não era conhecido de seu marido, o
qual aceitou o quadro tal como ela o pintou, isto é, que o
marido era muito esforçado, inculto, emocionalmente
rígido, insensível e hermético, um "self made man". Os
dois concluíram que seria difícil mudar o marido e que no
caso do casamento poder de algum modo ser salvo, teria
que ser à custa de que ela desempenhasse o papel de dona
de casa obediente.
Depois de algumas semanas o marido apareceu na
casa da sogra e carregou a mulher e os filhos de volta com
I
.!
ele. Ambos os cônjuges concordaram, considerando todos
os aspectos de que valia a pena continuar casados. Ele se
tornou mais meigo e desistiu da esperança de ser capaz de
realmente assumir sua posição própria vis à vis sua mu-
lher. Ele elogiava suas qualidades de universitária fre-
qüentemente e na presença de amigos geralmente citava (e
se referia) às opiniões da mulher em questões culturais a
fim de agradá-Ia. Na lida doméstica ele a ajudava sempre
I que possível, mesmo· que estivesse sobrecarregado com
seus negócios. Por sua parte ela quase não tomava co-
nhecimento dos problemas de negócios dele. Muitas vezes
acontecia que quando ele chegava em casa do trabalho,

I morto de cansaço e ansiava nada mais que sentar-se numa


poltrona confortável e assistir TV ele tinha que levá-Ia ao
teatro. Ela o controlava completamente .
.Nes~e meio tempo ela' se tornou se~uah!1e~te fri~.
Podia atmgir o orgasmo só quando o mando fmgia paga-
7,
Ia colocando uma nota de cem francos no criado mudo.
Em fantasias, ela gostava de ver-se como uma prostituta
num bordeI.
Nas questões sexuais o marido tinha algumas tendên-
cias masoquistas. Chegava a ejacular só se durante a
relação sexual ela lhe puxasse o cabelo.
Contavam um ao outro suas fantasias sexuais. A
comunicação entre eles nunca cessou completamente;
havia dias que podiam se entender muito bem.
A certa altura o marido teve o seguinte sonho. Viu o
quadro familiar no qual Aristóteles está ajoelhado no
chão enquanto uma mulher está montada a cavalo sobre
ele. Só que nesse caso, ele próprio era AristóteIes· e sua
mulher o montava.
Mais além, no sonho, ele viu que sua mulher tinha as
pernas mutiladas e portanto :tão podia andar.
O sonho pode ser interpretado de muitos ângulos.
Para nós mostra o seguinte: o homem está sendo domi-
nado por sua esposa; ela, entretanto, é incapaz de andar
sobre suas próprias pernas. Por esta razão ela não tinha
outra escolha a não ser "cavalgá-Io". Sem dúvida, isso es-
tá relacionado a um casamento neurótico: ele é algo
ni
11 masoquista, enquanto ela compensa seu lado basicamente
!
materialista e rude com um pseudo-interesse em cultura.
Além do mais, é óbvio que a mulher está, no fundo, com-
pletamente dependente, ela pode funcionar, portanto,
..!
somente se achar alguém que aprecia ser controlado e só
através de tal situação ela é levada a certo grau de inde-
pendência.
Não prosseguirei no sentido subjetivo do sonho, no
qual a mulher representa a anima do sonhador .
. O marido tinha um sonho periódico que aparecia
m~lto freqüentementedepois que tivera uma briga
a~lrrada com sua esposa. Num pequeno quarto escuro,
,
_""

t~
~.~ VIa um homem tocando piano; muitas vezes ele próprio
76
I1 era esse homem. A figura do sonho sempre tinha que tocar
11
uma espécie de melodia; ele não tinha outra escolha a não
ser sentar-se no quarto e tentar tocar uma determinada
1 I' música.
Uma vez sonhou que via as notas que ele (ou o outro
homem) devia tocar. A melodia escolhida chamava-se "Le
i i.
, Marriage' ,.
. '
;I
O .paciente associou o pequeno quarto escuro ao
quartinho da casa de seus pais em que, quando menino,
ele passava o tempo pensando e refletindo. Além do mais,
fora lá que ele descobrira pela primeira vez que podia pen-
sar e que era capaz de refletir sobre si mesmo e sobre os
. outro.s.
O homem não era absolutamente musical mas lem-
brou-se que quando garoto gostava de ouvir uma música
de órgão e apreciava cantar na igreja. Mesmo agora a
música religiosa tinha algo atraente para ele. A música es-
tava de certa forma associada com o que não pode ser
compreendido, com o divino. '
Este sonho deve, em parte, ser entendido como um
sonho de individuação compulsiva. "Le Marriage" era a
• y melodia que ele tinha que tocar e que o aproximava do
divino, ajudando-o, assim, a individuar-se.
Sem dúvida o sonho desse homem era peculiar, mas o
compelia, de dentro de si, a tocar "Le Marriage", a
música do casamento.

l i'
; ;
! :
~. O marido teve posteriormente uma outra associação
mteressante com o sonho. Associou-o a um saltimbanco
~sobre o qual ele lera uma novela e da qual se lembrava do
"'seguinte: uma cidade medieval construíra uma grande
I
I
_.'catedral dedicada à glória de Deus e da Virgem Santa.
\
Para provar sua reverência todos os habitantes contri-
_.lbuÍr~m .na construção: o arquiteto doou os projetos, o
I FarplDtelro construiu os Jndaimes, o pedreiro construiu
~i
~~::>.:cdes, o pintor decr-,·ou o interior, o ourives moldou
..•...
lindos candelabros etc.. Quando a construção terminou
foi celebrada uma grande festa e todos sentiram que Deus
estava muito próximo. Tarde da noite um padre foi ve-
rificar se tudo estava em ordem na catedral e no altar ele se
deparou com um malabarista vigorosamente desempe-
nhando sua arte com bolas e bastões.

I Cheio de indignação justa o padre lançou-se sobre o


artista, ao que ele replicou: "Cada um nessa cidade tem
'.
um ofício, que cada qual usou para a glória de Deus na
construção dessa' igreja; eu não tenho outras aptidões a
não ser equilibrar bolas e bastões no ar e é isso que estou
fazendo aqui, para a glória de Deus."

I
O sonhador associou seu ato de tocar piano ao
malabarismo do ,Htista da festa.
!i

I
i -Certamente, atingimos agora a questão de quanto um
;
cônjuge (nesse caso o marido) pode continuar a se sub-
,
meter repetidamente à sua esposa antes que' prejudi'Que
não só ,a sua própria individuação mas também o de seu
cônjuge. Nesse caso a esposa continuaria a exigir mais e
mais.

Em resposta, podemos só aludir ao conto de fadas do


"Pescador e Sua Mulher". Devido à pressão da esposa o L'

pobre pescador precisa continuar a pedir mais e mais ao


peixe que faz milagres.

'I Peixe, peixe no mar,


Por piedade, escute-me:
Minha esposa, Ilsebil, tem seu próprio desejo.
E me manda pedir-lhe um favor.
I
.•i

Finalmente, instigado por sua mulher ele pede demais

,.,
~

f!}Iit!J
e ambos terminam tão pobres quanto eram no começo. ~

". 78
tJIjII@
SEXUALIDADE E REPRODUçAo

::
i
j

I:
i'
I
"


,.

Il
~
~
Como chegamos ao tema casamento e demos uma
olhada na relação entre masculino e feminino per se,
aproximamo-nos do assunto sexualidade. No casamento e
na relação de um homem e uma mulher geralmente a
I
li
!;

I' sexualidade tem um papel decisivo. A palavra "sexua-


lidade" é tão usada atualmente a ponto d.eaborrecer-nos.
; . É tão exaustivamente usada que se chega a crer que se sabe
i; do que se está falando. Que espécie de fenômeno psi-
!
cológico descrevemos com a palavra sexualidade ou
"sexo"?

II Os gregos do período clássico se expressavam, sig-


nificativamente, mais poética e precisamente do que nós.
I ~
Falavam de Afrodite, nascida da espuma do mar formada
'Ri
dos genitais cortados de Ouranos, o Deus-céu, filho de ~jt\1 B

!
,. Caos. Era encantadora e seduzia. Páris deu a maçã de
"i' ouro não a Atenas ou a Hera, mas a Afrodite. Ela era a es-
posa do ferreiro aleijado Hephaistos, mas apaixonada
f pelo deus da guerra Ares, que espalhava medo entre a
humanidade.

':fertilidade". Era representado como um homem ~o:- . (


nvel, mundo
pelo com genitais
inteiro.·mitológica
Outra figura grega é Príapo, o deus da

79
1
gigantescos que audaciosamente eXIbIa~r,; I
tros e maIS conhecido. De acordo com a Theogeny de
Hesíodo esse deus existiu desde o princípio dos tempos:
era nascido do Caos. Ele estava presente no "nascimento"
de Afrodite. Em períodos posteriores (e.g., no tempo de
Ovídio) era descrito como um rapazinho frívolo. Viaja\'a
pela terra com arco e flexa, algumas delas tendo pontas
I'

I de ouro. Se os homens ou os Deuses eram atingidos por


I elas, caíam na loucura do amor. Outras flexas tinham
I
I pontas de chumbos, e qualquer pessoa atingida por essas
il 'se tornava insensível ao amor. Mais tarde ainda, na his-
,I
tória, foi mencionado um grupo de figuras que acom- ,
:1
Ii panhavam Eros, os Erotes. Eram seres diminutos alados
i\
:'\ que, muito suspeitosamente, pareciam as criaturas que es-
!i caparam da caixa de Pandora.
jl

Talvez seja psicologicamente mais correLO e mais


t
I,
I',.I realista falar de numerosos Deuses e deusas diferenciados,
r'i todos os quais eram cercados por lendas, do que falar de
:'1
í\' '\
!~
, j \
, ,
um,é!_única.. entidade,.chamada sexualiciade. Esta é uma
i; palavra limitada e primitiva que não pode fazer justiça a
,i.
,

I
'--
um fenômeno tão multifacetado.
:'\

Não só os gregos mas também muitos PO\'OS repre-


sentavam a sexualidade em imagens mitológicas. Um
i \,
)'!111~ I
exemplo de uma cultura completamente diferente é o da
tribô indígena Winnebago, da América do r\orte. Em
\ ; conexão com Watjunkaga, uma figura trapaceira de sua
I,II
, I mitologia, a sexualidade é descrita como algo comple- .
i ,~ tamente independente de seu portador. Watjunkaga é uma
, ,I
: I figura imortal que prega peças e qlle contra ele também
Ii
são pregadas outras peças. Ele carrega seu membro mas-,
~;llll
\ i '\
I '
',i
culino gigantesco num cofre, mesmo que isso tenha pouco.
a ver pessoalmente com ele. Seu membro nada indepen- I
tlll\ • dentemente pela água em direção a garotas que se ba- \
nham. A imagem desta sexualidade separada, indepen- I,
,tlm\
dente, é psicologicamente extraordinária. Sem dúvida, \
combina com a imagem de homem que predomina na cul- I
i:
~~
ti:
"
I< tura dos Winnebago _ uma imagem que exibe significan-
~;
1',' temente menos características centralizadas do que a nos-
80
I
! \
I I
\
;
sa. o homem é compreendido como consistindo de muitas
partes de alma. Mesmo nós, ocidentais contemporâneos
I muitas vezes nos expressamos em coloquialismos simi:
lares: dizemos, por exemplo, que nosso "coração dói"
;\I
I\ quando realmente queremos dizer que nós nos sentimos
doloridos.
Os etnologistas descrevem povos arcaicos que não
vêem conexão entre sexualidade e reprodução. Eles ex-
:1
h perimentam estes dois conjuntos de fenômenos como
completamente separados. Hoje praticamente toda crian-
\1 ça sabe que a sexualidade está ligada com a concepção da
II
geração seguinte. Mas, não seriam estes povos arcaicos
I~
I mais çorretos de um ponto de vista psicológico? Qual é,
realme'nte, a conexão entre sexualidade e reprodução?

É notável como nos cursos de história teológica")..dÁ


I
I.
:1
judaica e cristã,ligadas
forçosamente a sexualidade
uma a eoutra.
a reprodução se tornarallla J
Até recentemente
sexualidade só poderia ser satisfeita em conexão cOm a
II reprodução. São Paulo, por exemplo, rejeitou a sexua-
lidade como tal,. reconhecendo-a só com certas qualifi-
II 7 cações se ela fosse santificada através do casamento. Ele
-considerava melhor casar e viver sexualmente dentro do
II
casamento do que se queimar na luxtiria. Santo Agostinho
Ii -' então especificou que a sexualidade poderia ser reco-
! l nhecida como legítima dentro do casamento porque servia
ao propósito da reprodução. Ele fundamentalmente re--
:\ jeitava o prazer sexual. São Tomás também e outros pais
da igreja sustentavam a opinião de que o prazer sexual é
11
pecaminoso em todos os casos, mas poderia ser perdoado
quando colocado a serviço da reprodução intramarital.
1\ Alberto Magno e Duns Scotus então advogaram a causa
'\
de-que o prazer sexual não requer necessar~amente o per-
I.J
dãO quando Ocorre dentro do contexto do casamento e
serve ao propósito de reprodução.

\1
A -justificação da sexualidade em virtude de seu
propósito reprodutivo te~ aparecido nos tempos mais
'"11 \1 •• 01
modernos, mas em versões secularizadas. Muitos médicos
e psiquiatras do século XIX tentaram compreender a
sexualidade biologicamente do ponto de vista da repro-
dução. Por esta razão a masturbação, as fantasias sexuais
e coisas desse tipo, eram vistos como algo não saudável e
perttirbador do sistema nervoso. Até muito recentemente
era comum contar às crianças que a masturbação poderia
levar à invalidez e a sérias doenças.
As concepçÕes dos P.Siguiatras do século XIX fora~
~
~.!i moldadas (embora não COnSCleIltemente) pclas opiruoês
•..
cristãs. Kraepelin, por exemplo, era da opinião que a
. origem das desordens sexuais era quase sempre a mastur-
~ i
t
bação. O medo da masturbação pode parecer um pouco
,I~' I
..estranho hoje em dia mas é completamente compreensível
dentro de seu contexto histórico. O sentido da sexualidade
!
era entendido como reprodução e portanto a masturb~ç~o_
li era encarada como patológica ou pec?minosa, já gg_~_I!un..-
i\
ca poderia levar à concepção. Kraepelin foi mais além
considerando as desordens sexuais originárias das imágens
mentais e fantasias que acompanham a masturbação. As
II . fantasias sexuais eram para ele patológicas, e isso é tam- ;
I', bém compreensível dada a base na qual estava inserido'
I
dentro do momento histórico.
\
Kraepelin acreditava que quanto mais longe a se-I
i xualidade se afasta da reprodução, mais pátológica se
,
torna.
j

Oficialmente a psiquiatria do século XIX era tudo


I
menos cristã. É interessante observar, entretanto, como
idéias teológicas medievais moldaram até a compreens.ãO-
da psicopatologia humana. O biologismo ingênuo do
'\ I século XIX que via a sexualidade só relacionada à re-
,

i produção , obviamente não tinha ainda superado .a com-.


preensão medieval da vida sexual. Entretanto, InVestI-
·1
i gadores desse período começaram a ocupar-se intensi-
vamente com o problema da sexualidade. .
. Certamente existe uma espécie de sexualidade prática
:\ dirigida somente à reprodução. Encontramo-Ia entre cer-
iI 82
para a concepção de filhos é que o homem esteja suficien-
temente excitado para o ato sexual. Uma vez que as coisas
cheguem a esse ponto, seria, para o propósito de repro-
dução, somente uma perda de energia para a mulher. O or-
gasmo não é sem
ocorre mesmo biologicamente
ele. necessário; a fertilização
.~,

Encontra-se também esse tipo de sexualidade pri-·


mitiva entre homens. Existem homens sem seletividadei
para os quais a única coisa importante é conseguir al
ejaculação, não importando para eles onde ou como.'
i
Qualquer outro tipo de intercâmbio sexual para esse tipo
;I~I de homem é completamente desinteressante e até incom-
preensível. Tal tipo de sexualidade arcaica, que basica-
:J . . . mente é colocada a serviço da reprodução, é encontrada
naqueles que, por diversos motivos, tenham sido cultural-
mente privados da vivência de qualquer forma de estí-
11
i' '
mulos físico-afetivos durante a sua infância.

de
. sexualidade
Interessante primária, e até
percebermos que animalística, que tiPo1l.
foi exatamentea esse foi
I aceita pelos teólogos cristãos como sendo não pecami-
nosa, desde que fosse santificada pelo casamento e estives-
se a serviço da reprodução.
!I
\,

I O cristianismo, entretanto, é o herdeiro das concep-


ções que eram importantes no Velho Testamento. A perda
!
proposital do sémen masculino citada no Velho Testamen-
to, era considerada um sério crime contra Deus.
Quando paramos para pensar profundamente no fato
de que a sexualidade deva ser justificada através da re-
produção, é que percebemos o quanto esse tipo de con-
ceituação chega a ser animalesco e repulsivo. De fato, isso
significa que somente uma cópula biologicamente orien-
tada, isto é, uma relação sexual insensível, seja consi-
derada como ideal. Equivaleria dizer que comer não é
pecaminoso quando simplesmente devoramos a comida o
mais rapidamente possível sem nenhuma consideração a
mais a não ser a satisfação pura e imediata do apetite.
84
Temos o direito de .questio~ar a validade do conceito
de que a base da sexualIdade seja a reprodução. Do total
de energia e tempo que as pessoas gastam com sexualidade,
muito pouco é dedicado ao aspecto procriativo.
A vida sexual inicia-se na primeira infância e só ter-
mina com a morte. Por vida sexual entendo toda a gama
de sexualidade tal como fantasias sexuais, mdsturbação,
namoros sexuais, bem como a relação sexual em si.
Somente uma pequena parcela.:.dessa vida sexual global é
, expressa em atos concretos, ~ maior parte é constituída t
por sonhos e fantasias. Que isso tenha pouco a ver com
I reprodução é evidente. E indo além, percebemos que mes-
:" :
mo 'os atos sexuais que praticamos, na sua maioria, têm
fi
]_,a:
pouco ou nada a ver com a reprodução. E não estou me
referindo ao uso de anticoncepcionais. Digo que as
próprias atividades sexuais que praticamos estão desvin-

~I o fato de que a sexualidade esteja sempre correlacionada à


culadas na sua
reprodução não maior
faz comparte
quedea utilidade
devamos biológica.
compreenderAssim,
tão- j
-somente por essa sua função.
Essa conexão da sexualidade à reprodução atrofiou
f I
1-',,1 \
enormemente a sexualidade. Mais ou menos conscien-
temente ainda é aceita como "sexualidade normal" aquela
, 1I
que derive sua conduta do objetivo da reprodução. Mes-
mo hoje em dia, muitos psicólogos consideram anormal
I qualquer forma de sexualidade que não possua uma clara
I; conexão com a fertilização. A compreensão parcializada
dos ensinamentos da Igreja Católica causou grande mal a
,,1\1
esse respeito. No século XIX, o pensamento católico
abraçou-se fortemente ao biologismo. Isto resultou na
'1\
h visão mais popular católica de que: a) a sexualidade devesse
li ser vivida somente dentro do casamento; b) a sexualidade
,'!
n devesse ser vivida somente com vistas à reproduç2c ;:: ,
propósito do casamento sustentava-se na produção e
educação de crianças.
,Este ','finis primarius" do casamento é a produção
e cnação de filhos, enquanto que, por outro lado, Santo
mlli\ ..
las mulheres histérica~. O ~onc~ito ~e histeria não.é tam-
bém muito comu,m. e e m~Ito dI~CUtIdo.Minha opinião é
que ela é ainda clImca e pSIcologicamente muito útil. Uma
das peculiaridades das chamadas histéricas, que é descrita ~ 'fe;
j?or muitos autores, .éa primariedade das fu!!!las arcaicas e 5
--primitivas de relaCIOnamento. Por .exemplo, freqüente-
mente achamos entre histéricos, sejam homens ou mu-
lheres, uma espécie de reflexo condicionado primitivo.
Sob certas condições estas pessoas fogem do relaciona-
mento em pânico. Outra forma similar de reação primitiva
que domina pessoas com traços histéricos é a paralisia
súbita e completa em situações que inspirem medo. Seria
.~ !l
.

'lI:
·1
\: l·' ~ . isso uma relíquia do reflexo de "fingir-se morto?" Quan-
!
do o animal ou pessoa atacados não mais se agita ou não
mostra nenhum movimento, o atacante não ataca mais e
recua ante sua vítima.
I
Outro modo de reação arcaica é a sensibilidade da
i
pessoa histérica a todas espécies de comunicação não ver-
bal. Os histéricos muitas vezes sentem o que está acon-
tecendo com a outra pessoa antes que ela própria perceba.
Com os histéricos a habilidade de comunicar-se direta-
mente com as almas dos outros sem o uso de discurso ou

fortemente desenvolvida. Em outras palavras: essa


habilidade arcaica
qualquer forte
outra não foi perturbada por um desenvol-
vimento doforma
ego. clara de expressão ainda parece ser )
A sexualidade de mulheres histéricas mostra algumas I
características muito interessantes com relação a isso.
Muitas mulheres com um caráter histérico são com ple-
fjf/8 tament: f;ias sexualmen.te 9-uando chegam ao ato sexual
fI.!!1't!J real e sao mcapazes de atmgIrem orgasmo. Por outro lado,
~ elas são geralmente bastante glamourosas e ativas na arte
~ da sedução ou atração sexual. São muito bem dotadas para.
f!I"'8 atrair e sexualizar o homem. No momento, entretanto, da
f!!'e união sexual, são bastante insensíveis.
file· Essa espécie de '~ idade histérica" pode ser
' :endida como -sexualidade
-- arcaIca.
--- que importa

li 83
Agostinho havia dito: "in nostrarum quippe nuntilis plus
vaiet ',sanctitas sacramenti quam fecundiras uteri" ("o
sacramento é mais importante do que a infertilidade da
mãe").

l
T
i:"

,i
i'li
,1
11,,-
õ::
"

:!

II

il:

I,
li

"

1:\,

I!

,.
i,

:ltl
I. I,

i
i
I,


!I:
o ABSURDO DA SEXUALIDADE "NORMAL"

l Uma mudança decisiva na compreensão da vida


sexual foi feita por Fretid. Hoje em dia, a compreensão da
llr':;
.,)
sexualidade é inconcebível se separada do conhecimento
preciso de suas teorias. De acordo com Freud, a sexua-
lidade se compõe de muitos instintos diferentes, os quais,
se tudo corre bem, são integrados no que pode ser enten-
dido como a sexualidade normal; se as coisas não vão
flR 11'j
I~'

j:
bem, eles aparecem em forma das chamadas perversões.
Desejamos abordar aqui apenas muito levemente as
1\
teorias freudianas.
II
\
Freud descreve de uma forma muito precisa os vários
~;
!~
estágios característicos do desenvolvimento da ~exualidade '
humana. Para o recém-nascido a sexualidade é ainda
desorganizada e difusa. Por natureza a criança é polimor-
fa e pervertidamente auto-erótica. A criança possui, por
assim dizer, todas as tendências sexuais que, se não são in-
tegradas, serão mais tarde experimentadas como perver-
sões.
O primeiro centro da sexualidade ocorre na área da
boca. O primeiro estágio é a chamada fase oral, durante a
qual tudo o que tenha relação com a boca - mamar, en-
golir, comer - é sentido sexualmente.
Na fase seguinte esses sentimentos de prazer tornam-
se mais e mais concentrados nos órgãos de excreção e na
eliminação de fezes e urina. (Explicar precisameIlle porque
essas tendências sado-masoquistas aparecem durante essa
fase nos levaria muito além de nossos propósitos). Numa
fase mais tardia, os genitais tomam a liderança e durante
,
,I
esse estágio fáIico (mais ou menos aos cinco anos) entra a
i! fase edipiana com os desejos incestuosos de contato sexual
'iII com o pai ou a mãe. Os desejos edipianos não são satis-
'I
'l!
feitos e devem ser suprimidos, resultando no estágio de
~' latência, que dura até mais ou menos os doze anos.
Durante este estágio os instintos sexuais são reprimidos e a
energia sexual é, até certo ponto, sublimada. Na puber-
dade, a chamada sexualidade normal finalmente chega a
~I
11 seu devido lugar.
'li
~l

Esse longo e complicado processo de desenvolvimen-
f' to contém muitos perigos, através dos quais as anomalias
li'
"~
..:
sexuais podem se instalar. Em qualquer fase pode ocorrer
~!
:; uma fixação e certos componentes sexuais especificos,
como por exemplo o sado-masoquismo anal ou o exibi-
cionismo podem predominar; ou, além da ansiedade
sobre a força dos instintos sexuais, podem aparecer
mecanismos de deslocamento através dos quais toda a
'.
sexualidade se concentra num objeto desviado, como no
r!~
caso-do fetichismo, onde o objeto substituto faz o papel
i., da coisa desejada.
'r·
• ri
~
Jj
De acordo com Freud, a causa desse desenvolvimento
L.
" defeituoso está numa fraqueza constitucional ou em sífilis
.!
congênita, numa frágil constituição nervosa ou em certas
experiências que levam a uma fixação. Um estímulo sexual
infeliz numa certa fase, como por exemplo presenciar um
contato sexual entre os pais, o qual é confundido com uma
tentativa de assassinato, a sedução por parte de parentes
!I
ou empregados , pode fazer com que um certo instinto .par-
cial, essencial nessa fase particular, torne-se demaSIado )
importante mais tarde e assuma a direção.

Sob esse aspecto,' os desvios sexuais era~ il?terpr~-


tados como a dominância de in'stintos sexuaIS mfantIs
irresistíveis. Todo tipo de sexualidade que, de uma certa
••
~ 88
forma, não correspondcsse ,à clássica relação sexual tinha
que ser, nesse contexto, mterpretada como perversão
sexual.
Esse esquema de desenvolvimento de Freud tem sido
cada vez mais atacado atualmente. Foi demonstrado, por
exemplo, que o chamado período de latência é um con ..
1".
"
ceito muito questionável, porque a vida sexual nas crian-
I
I, ças de seis a doze anos de idade de forma alguma dirilinui.
Infelizmente, a magnificência do .pensamento de
Freud freqüentemente não é bem entendida pelos re-
presentantes da psicologia junguiana. Freud certamente
,1,' não descreve "fatos", Seu trabalho pode ser melhor
~\il apreciado se entendemos suas teorias sexuais como uma
a',
mitologia moderna que, através de suas representações
simbólicas, nos dá uma melhor abordagem do mundo da
sexualidade do que os fatos estatísticos.
Não é, talvez, a criança polimorficamente pervertida,
\,
por exemplo, uma representação simbólica da pessoa total
presente em cada criança, na qual tudo já deve ser encon-
trado?
\,
U Freud tentou demonstrar que muitas das pseudoper-
versões estão presentes desde o início em todas as peSS02Se
li, 11

, 'I
! :. que a sexualidade "norinal" não é nada mais que uma
l,~
: i'
criação delicada e artificiosa, cujos vários blocos de cons-
l:
II
l'i' I "
~-
tf-
trução são as chamadas perversões. É mérito das teorias
freudianas que os desvios sexuais estejam incluídos na
compreensão da sexualidade e que a estreita concepção da
! •

".... ....-
sexualidade tenha se ampliado para além de sua conexão
com reprodução, A aguda percepção de Freud não pôde,
~ ..... entretanto, liberar a sexualidade de seu confinamento de
\

\
I
". uma vez por todas. De acordo com Gebsattel, por exem-
I fI!!t4 plo, a masturbação é ainda um pecado contra o princípio
iJ- do Eu-Tu, um pecado contra Eros, ou, segundo o famoso
d4 psicólogo suíço e filósofo Paul Haeberlin, um pecado con-
tra o parceiro.
~
Os existencialistas tentaram em parte, compreender
mais profundamente a riqueza 'da sexualidade. Medard
~
Boss assegura que ~ão só ? sexualidade normal, mas cada'
variação da sex.uahdade e uma desesperada, ainda que
limitada, tentativa .de .expressar amor. Outros existen-
~ialistas entendem o InstInto ~exual como um impulso para
Integração, no mundo, conSIderando que quando Ocorre
uma divisão entre o mundo e o instinto, essa divisão deve
ser preenchida com fantasias e perversões sexuais de uma
natureza destrutiva, como o sadismo e o masoquismo.
. /
Entretanto, para o nosso próprio questionamento
futuro, queremos lembrar a declaração de Freud de que
"talvez em nenhum outro lugar o amor todo-poderoso se
mostre com mais força do que nas aberrações".
Qualquer abordagem da sexualidade que tenha a
ii reprodução - ou ainda o ato sexual formal como o foco
i~: central e que veja todo outro tipo de sexualidade como
'111]\
, ~~; SUspeito, precisa ser julgado à luz dos seguintes fenô-
(I ~:

li mente que, quanto mais diferenciada, e não quanto mais


menos:
fraca a na prática
pessoa psicoterapêutica
é, mais as freqüente-1.
acontece
nela encontramos chamadas
li
soas mdIferencladas, com um desenvolVimento a!·\;~:,:.:
aberr~çõ~s.e sexu~is.
mínimo As exceções
pouco estímulo provampossuem
cultural, as. regras.uma
A~ p.es-
se- \
.'j. ~ xualidade "normal" com muito mais freqüência do que as
1\,;

I' pessoas diferenciadas afetiva e culturalmente.


!j
11 ~
I! \.
I
I; •
Além disso, dificilmente alguém que tenha tentado.J
·l" compreender a sexualidade, levou em consideração o fato
I!
de que a maioL.parte da vida sexual humana ~~nsiste de
L
,
I
fantasias; em parte elas são da variedade "normal", mas
;: ~m parte são também de uma mUlto extra~Lmána._ya::
\

L r~edade.::::- significativamente mais extraordiná]j3: .q~le~.


'i
li
VIda sexual realmente vivida.

as aberrações que lhe pertencem que nos permIta entender


tudo, a totalidade do fenômeno sexual em toda sua va-
riedade e riqueza,
Temos 'semuma
que achar moralizá-Io
chave paraoua biologizá-Io, sem"\\\
vida S~:':·L::•. 1:/;.:'
dogmatizar sobre o que deveria ou não ser. .J
SEXUALIDADE E INDIVIDUAÇAo
-

~i
~~
~'

~:

f'

11,
,
t Gostaria de ampliar a compreensão da sexualidade.
~i Sem esse entendimento .amplo o papel dela e suas va-
~i riações no casamento não podem ser inteiramente enten-
II
didos. Infelizmente muitos dos métodos mais modernos e
i\\
li,
atuais métodos de estudo da personalidade não nos levam
muito longe. A tentativa, por exemplo, de afirmar que ela
I"
não é nada mais que uma experiência de prazer não me
parece encerrar todo o fenômeno. O poder compulsivo da
,:., sexualidade, o fato que a maioria das pessoas devota gran-
de parte de suas fantasias aos temas se:\uais, o enorme
.c:
problema que tem sido em toda~ as épocas, tudo isso não é
acidental e seria completamente ininteligível se fosse ver-
liil dade que ela se resumisse apenas na experiência de um
r simples prazer. A2exualidade sempre teve alguma coisa de
y
!I!,
I numinoso, alguma coisa estranha e fascinante. O fato, por
;
~xemplo, de haver prostituição no templo em tempos his-
!
:1: tóricos no Oriente não significa que esses povos conce-
biam a sexualidade como coisa "natural", como algo que
j,
,
i se pudesse experimentar de modo frívolo e prazenteiro.
Indica justamente o oposto: essas pessoas conc~biam a
.!:
i
:1\', sexualidade como algo tão numinoso que até podia ter
I,
\:1
lugar num templo.
il, :1'
.'J

:1
A sexualidade entendida como uma forma de rela-
cionamento interpessoal entre um homem e uma mulher

J~
;1

também não abrange a totalidade do fenômeno. A


J 91
maioria das fa~tasias sexuais são vividas independente
mente do relaclO.nan:e.n~o humano; estão ligadas a pes
soas com as quaIs dIfICIlmente se pode ter qualquer re
lacionamento ou com quem um relacionamento seria im-
possível.
~r
r
t
Q'

':1:'

~,'
Nem a interpessoal,
cionamento concepção da nemsexualidade rela-I
como noummesmo
como um prazer l
( preensão desse fenômeno humano .., Nem a procriação,
,
I:,
..
nem
nível odoprazer,
comer nem
e do as relações
beber interpessoais
nos leva eXQlic.am_a
muito longe na com- ~'
!~~

t enorme variedade da vida e das fantasias sexuais. )


I"
Freud procurou, à sua própria maneira bem impres-
,~, .siva, entender todas as chamadas atividades mais altas do
i"',
"

homem (tais como arte, religião etc ... ) como sexualidade


"
sublimada. Podemos tentar dar uma volta e perguntar:
pode a totalidade da sexualidade ser compreendida do
I: ponto de vista da individuação,no impulso religioso? São
,\1
,
as canções de amor profundamente coloridas de sexo das
freiras medievais, realmente como Freud disse, expressões
de erotismo frustrado?' -

Estarão as muitas canções modernas e as antigas can-l


despedida, apenas relacionadas com a sexualidade não
,
I,ll!
vivida da adolescência? Ou são formas simbólicas de ex-
pressão do processo
ções folclóricas que de individuação
cantam e da busca religiosa?
sentimentalmente o amor c aJ
É válido tentar relacionar sexualidade com indivi-
duação. Uma das tarefas da individuação, como já foi
mencionado, é a conscientização da sombra pessoal,
coletiva e arquetípica. Isso não significa só um empurrão
através das camadas aparentemente destrutivas da alma
por virtude de circunstâncias pessoais ou coletivas. Sig-
nifica também entrar em contato com o "mal" em si, com
o assassino e suicida dentro de nós. Outra tarefa não
menos importante do processo individuacional é, para o
homem, confrontar o feminino e para a mulher o mas-
culino, partes deles mesmos, ter' uma confrontação com a
92
anima e o animus. A .luta. com ? la~o contras sexual e a
consciência de su8: mIsterIOSa hg~çao com ele propor-
cionam a oportumdade de expenmentar e entender as
Ifi
il~ polaridades
ser humano da alma bom
e Deus, e do emundo, do homeme inconsciente'
mau, consciente V
e da mulher \);1\
I,!,

~!! racional e irracional. O chamado coniunctio oPposi~


ji!
ijil (orum, a união ou convergência dos opostos, é um dos
~'!
muitos~modelos e símbolos para a meta de individuação.
L:!
J ung enfatizou repetidamente a importância dos
sonhos, fantasias, imaginação ativa, mitologia religiosa e
trabalho artístico no processo de individuação. Por esses .
meios odemos experimentar os símbolos através dos
1:\
:11:,,';:,'

'~'::: guais nos in IVIduamos ..Aí ve~os os símbolos vivõs-que-


nos transformam. Os símbolos têm a tendência de se tor-
I', ," narem posse de uma pequena e educada elite. Isso acon-
teceu, por exemplo, aos deuses gregos no curso da história.
'li:
.:. A mesma coisa pode acontecer aos símbolos cristãos. Os
y
1,11!,

~ 1 ~~ ,&eusesda antiga Grécia são, talvez, símbolos de poderes~


espIntuaIs, arquétipos etc ... , mas os gregos os experimen-
"
tavam sensualmente, como realidades concretas. A me-
lt!\ dida que os povos do mundo antigo começaram a encarar
;!\
~!. os deuses, conscientemente, como símbolos, os deuses
iJ'
1:) perderam muito de sua influência na vida espiritual da
li: maioria das pessoas. Nós, psicólogos, também, por todo
'li;'
"I:
'I
nosso mais ou menos profundo entendimento de sím- -K
bolos, temos um grande desejo do concreto. Analistas .
I~,
':'\>
\:.
sempre caem na tentação, por exemplo, de interpretar os
l~r sonhos não como símbolos, mas como um oráculo con-
creto. Assim, 'o aparecimento da mãe num sonho é mais I
11.,

p
"1\'
"
freqüentemente interpretado como a mãe real do que /
li como símbolo do maternal. ,/

1
II
,I

'I il Os gregos honravam seus deuses e sacrificavam a eles, 1


\\1
I,
podendo senti-Ios, com mais intensidade, particularmente
{ seus componentes arquetípicos em suas próprias almas -
l ,j

.atr~v~s d~ proje~ão:e, como dizemo~.hoje.em Oproces- V


:I
Li un?I~Iduaçao geralmente, vIvencIadodia em.._pr?Jeção.~
, II Os alqUImIstas medievais projetavam seu desenv~I'y'!Inento,
'\t. 'Ií\
"1
I :I
'~ lI;!
I -' I vV--"~tJ
.IJ .•.. .• I l-..
.t~
'\)V1'
espln~~al.no processo qUlmIco, real ou Imagmário. Mas, .
expenencIa concreta .grega dos deuses Olímpicos e a do
~lq~imistas do matenal,. eram pr~cessos de individuaçã
.'0 ••••• ,........ • • .' ••••• ~~

hmltad?s. C;? Jung.sal!entou mUltas vezes a importânci~


da "retlfada de proJeçoes. Quando elas são retiradas os
'sonhos, fantasias e imaginação ativa tornam-se o ~eio
real do processo de individuação, fazendo assim possível o
encontro dos símbolos vivos que realmente podem atuar
em nós. /
A individuação necessita de símbolos vivos. Mas on-\
de, hoje em dia, encontramos símbolos vivos atuantes?
Símbolos que sejam tão vivos e efetivos como os deuses da '
antiga Grécia ou do processo alquímico? Exatamente nes
~
I .'se ponto um novo entendimento da sexualidade se no
,:I
..:"I~l revela. Ela não é idêntica à reprodução e seu significad
li'
1::
não é exaurido nas relações humanas ou na experiência d
'"
:\:;

li.
111\ii
entendida como uma fantasia de individuação, uma fan-
:!i\
!~
prazer.cujos
tasia A sexualidade, com
símbolos são tãotodas
vivossuas variações,
e tão efetivos pode ser \.
que po-
li
;,
"
dem até mesmo influenciar nossa psicologia. E, dessa for- .
I!
ma, os símbolos"não são propriedade exclusiva de uma
i elite acadêmica, maSde todas as pessoas.
!:

1.1\;

!,

\!
Quais asão,
de chegar um então,
acordo ascom
possibilidades
o feminino?para
Uma homem<1
umpossibili~
:\li1
L
dade pode estar no relacionamento com uma mulher,
li como, por exemplo, no casamento; outra pode consistir
em fantasias sexuais, incluindo as homossexuais, - onde
f
1\;\
o feminino pode ser experimentado com outro homem
cuja meta não é reprodução, relacionamento humano ou
prazer, mas a confrontação com a anima, com o feminino.
Outra possibilidade existe num relacionamento para um
ajustamento para a mulher.
As fantasias sexuais da maioria dos homens e mu-
lh~res são muito mais selvag-ense bizarras do que a vida
sexual realmente vivida .. Infelizmente, analistas e psi-
cólogos com freqüência reagem a essas fantasias com ares
\\,
94
de superioridade e as patologizam. Um comentário sobre
uma fantasia particularmente viva e original de um ou
uma paciente poderia ser: "Este (ou esta) jovem ainda não
é capaz de relacionar-se. Ainda é uma vítima completa de
seu instinto sexual não humano". Ou um analista diz a um
colega numa discussão de caso: "Ele desvirtua sua na-
morada para poder viver suas fantasias sexuais. Ele ainda
carece de ternura e sensibilidade". Outro comentário: "Es-
te velho está sofrendo de luxúria senil" . A expressão, "ele
escapa para a fantasia" também é freqüentemente ouvida.
Esta maneira patologizante e com ares de superioridade de
observar tais fenômenos agem destrutivamente sobre a al-.
ma. A individuação tem lugar não apenas nas projeções e
no relacionamento humano. O processo pode ocorrer in-
teriormente, através do significado dos símbolos; não
apenas através da reflexão e do pensamento, mas através \i'~
V,if"(
dos símbolos que se apossam do corpo e da alma e dessa (j
,
forma se apoderam do homem inteiro sob seu domínio.
Gostaria de enfatizar mais uma vez que a vida sexual,
acima de tudo como aparece nas fantasias, é um intenso
processo precisa ser respeitada e reconhecida. É anti-
psicológico encarar esse fenômeno como algo primitivo,
sicológico encarar esse fenômeno como algo primitivo,
que pode ter um certo significado simbólico mas que deva
ser sublimado e talvez experimentado num plano mais al-
to. É prejudicial à alma quando a vida sexual se torna
demasiado espiritualizada. Entretanto, é preciso evitar
mal-entendidos: a minha recomendação não tem neces-
sariamente a ver com uma intensa vivência da sexualidade
como advoga William Reich, por exemplo. Vida sexual e

,.
particularmente fantasias sobre ela, com suas inúm.eras

i
1 particularidades e belas características, representam
~ apenas uma das muitas maneiras através das quais a in-
dividuação se processa. Não é o meio par excellence.
. Gostaria de demonstrar com o exemplo seguinte que
até as mais extraordinárias práticas e fantasias sexuais têm
relação com a individuação e, portanto, com a salvação.
" F
Uma vez trat~i um estudant~,.um fetichista, que tinha
entrado em conflIto com a polIcIa porque roubara uma
peça íntima de. ml;l~h~r.Eu ain~a ~stava nessa época em
treinamento pSIqUlatnco e tenteI ajudar o estudante des-
cobrindo certas conexões psicodinâmicas.
Um dia ele entrou e com uma voz triunfante leu para
mim a passagem em que Fausto encontra Helena. Como
Fausto, depois de longa procura, finalmente pode encon-
trar a mais bela criatura feminina da face da terra, a bela
Helena, e como ela desaparece, deixando Fausto com sua
roupa e seu véu nas mãos.
:' As mulheres são apenas um símbolo, de qualquer
forma", explicou-me. "Talvez a experiência do encontro
com o feminino seja mais profunda se temos apenas um
pedaço de sua roupa, .um objeto que simboliza a mulher,
.mais do que ter a nrópria mulher. Pelo menos, ninguém
então se esquece de que a fantasia é quase tão importante
quanto a realidade" . .
Num certo sentido esse estudante estaria certo. Ele
não equiparava sexualidade com reprodução, com puro
prazer ou relacionamento humano. ele- a entendia-como
algo simbólko. Através dele tornou-se claro para mim que
á sexualidade tinha que ser considerada diferentemente de
como eu a tinha percebido até então. Comecei a perguntar
se não é caso freqüente que o desvio sexual esteja mais
próximo do fenômeno da sexualidade do que a chamada
sexualidade normal. Repito: os conceitos "normal" e
"anormal" perderam grande parte de seu significado com
respeito à vida sexual. A individuação nos dá a chave para
a sexualidade, e não para a normalidade ou anormalidade.
, Como mencionei anteriormente, .uma das grandes
.tarefas do processo de individuação é a experi~ncia do
,lado escuro e destrutivo. Isso pode ocorrer através dã
sexualidade, que pode ser uma das m,uitas .po~s.ibilidades
~ra esta eXQeriência. Isso certamente não sIgmfIca que ãf-
guém tenha que ser inundado pelas fantasias de um Mar-
96
quês de Sade, de um Leopold. Sacher-Masoch ou que se
deva praticar, desempenhar taIs fantasias. Significa antes
que elas podem ser encaradas como a expressão simbólica
de um processo de individuação que se desenrola no ter-
ritório dos deuses sexuais.

~i
~~;
Certa vez tratei qma mulher masoquista, uma au-
toflageladora a quem tentei ajudar a se normalizar. Até
~I
"

,~
obtive algum sucesso: suas' atividades masoquistas pa-
~\,
~I
raram e ela reprimiu suas fantasias. Entretanto, começou
I;i~
a sofrer de uma inexplicável dor de cabeça, que lhe causou
l'
!'
grandes problemas em sua vida profissional. Numa es-
pécie de experiência visionária - ela era uma negra
africana e no seu ambiente tais coisas não eram incomuns
- Moisés lhe aparecia e a instruía para que continuasse
com as flagelações; se ela não o fizesse, os egípcios a
matariam. Com base nessa visão, ela desenvolveu uma
complicada teoria, alicerçada em parte nos rituais de
flagelação dos cristãos mexicanos, a qual assegurava que
apenas através de seu masoquismo ela poderia confrontar
e chegar a termos com o sofrimento do mundo. Ela se per ..
mitiu màis uma vez ser invadida por fantasias masoquis-
tas, e, assim que o fez, suas dores de cabeça desapare-
ceram e seu desenvolvimento psicológico continuou muito
bem.

Esse exemplo serve como uma ilustração, não como


uma recomendação.

o fenômeno do sado-masoquismo tem freqüente-


mente estimulado o interesse dos psicanalistas. Como
podem coincidir dor e prazer? O masoquismo parece ser
algo 'autocontraditório para muitos psicólogos e psica-
nalistas. Alguns deles vão tão longe quanto afirmar que os '
,
masoquistas devem tentar de vez em quando, vivenciar
,

s.uas fantasias em grandes detalhes e com ~uita teatra-


hdade, mas quando isso realmente cai no sofrImento, eles
cessam, de imediato, tal comportamento.
Entretanto isso não é totalmente correto, e, além dis-
so, relaciona-se parcialmente com certas variações sexuais.
A vida sexual real raramente está de acordo com as fan-
tasias sexuais. Sabemos 'que existem muitos masoquistas
que não só procuram formas degradantes de dor, mas
111
também as experimentam com prazer. ,{
IIII! :
I~

o masoquismo teve muita importância na Idade


Média, quando os flageladores inundavam cidades e vilas.
Muitos dos santos dedicavam muito, tempo à flagelação.
Monges e freiras considera'vam uma prática rotineira in-
fligir dor e humilhação a si mesmos.
A tentativa da moderna psiquiatria de entender esse
·fenômeno coletivo como uma expressão de sexualidade
perversa e neurótica, não me parece satisfatória. Che-
gamos mais próximos do fenômeno com o conceito de in-
dividuação. Não é o sofrimento de nossa vida e da vida em
geral, uma das coisas mais difíceis de se aceitar? O mundo
está tão cheio de sofrimento e todos nós sofremos tanto no
corpo e no espírito, que mesmo os santos tiveram dificul-
dade de entendê-Io. É uma das tarefas mais difíceis do
processo de individuação aceitar tristeza e alegria, dor e'
prazer, a fúria de Deus e a graça de Deus. Os opostos _
'sofrimento e alegria, dor e prazer - estão simbolicamente
unidos no masoquismo. Assim a vida pode ser realmente
aceita, e mesmo a dor pode ser experimentada com ale-

O masoquista, de uma forma original e fantástica, se

;:j,.::
confronta e chega a um acordo com os maiores opostos de
~. existência.
nossa ')~
\'1 ;

; I: \\
O estupro tem um grande papel em sonhos e fantasias
'i
11:
, "
~as mulheres. É, muitas vetes, o centro ~e medos compu.1- Jí
i~
11j
SlVOS.Amedrontadora, excitante ou fascmante, a fantasla,~1
.. !.
, I' de estupro é, em cada caso, importante para a psique
,li
;1'i
, "

·!.H grega e das artes plásticas. Talvez o motivo rapto tenha al-
':!: ' feminina. O rapto é um dos maiores temas da mitologia\
go a ver com a alma sendo súbita e brutalmente sobre-
.'1'\'

'I 98
, : Ij
.q
~,I i
pujada pelo espírit?: o ani~~s inva~e a ambivalente alma
feminina. Em ~llnha pratI~a ps~coterapêutica tenho

dida como
algo um
que va:or
freqüentemente
como PSICO~OgICO,
VIstonecessIta
nao e nãocomo
c~mo, a .fantasIa um
de
pode símbolo
rapto
ser - enten-
conquistado v \.~
vivo, \ :nJ}

ou caminho
no reduzido, para
mantém a paciente em movimento e a ajuda)'
a individuação.
Talvez esteja gradualmente se tornando inteligível
porque precisamos nos libertar das "imagens dominantes
da normalidade".
É esse agarramento numa pseudonormalidade sexual
que torna impossível uma verdadeira compreensão da
sexualidade. Uma grande quantidade de fantasias sexuais

concepções da normalidade são muito peculiares. Não


\1:
podemos compreender um fenômeno psicológico se ex- o
plicamos uma considerável
da humanidade, porção dodele
quando observadas pontosimplesmente
de vista das ~
como normal ou patológico.
Gostaria de demonstrar que as chamadas perversões
são essenciais para um entendimento da sexualidade.
Assim, para não fugir às dificuldades, abordei uma das
variações da vida sexual aparentemente menos compreen-
síveis, o masoquismo.
O masoquismo é quase sempre combinado com sadis-
mo. Fala-se de sado-masoquismo. Para o psicólogo com-
prometido com o ponto de vista biológico, que acredita .
que toda vida psicológica possa ser explicada baseando-se
em mecanismos de sobrevivência, o masoquismo é um
obstáculo. Bastante importante, o sadismo parece apresen-
tar menos dificuldades intelectuais. O acesso a esse fenô-
m7no tem sido obstruído principalmente devido a precon-.
ceItos ~orais. Em primeiro lugar, então, vamos a alguns
eSclareCImentos conceituais.
. No caso do sadismo clássico, entendemos o prazer
sexual como sendo obtido causando ou obserJando dores
99
físicas ou psicológicas no parceiro. Por sadismo no sen-
tido mais amplo, entendemos simplesmente crueldade,
notadamente o divertimento derivado de ferir alguém
.l
física ou psicologicamente, sem necessariamente obter dis-
so uma sensação ou prazer sexual. Por sadismo moral en-
~~;
~ti tende-se a tendência de comprazer-se fazendo outra pessoa
sofrer psicologicamente.
Agressão, em contraste, é algo que tem pouco a ver
com o fenômeno mencionado, mas ,que freqüentemente
III
está misturado a ele. A agressão é a capacidade e o prazer
l
!~

'1\'
de impor sua própria vontade, de conquistar o inimigo, de
sobrepujar, de dominar uma situação pela energia, de
; ~j
chegar "em primeiro lugar" numa competição com os
l\l:
amigos. Nesse sentido a agressão é um importante instinto
de sobrevivência. Causar dor aos outros não é essencial na
agressão; sua essência é principalmente o provar-se forte.
Por ser freqüentemente confundido com agressão, o
que pode, ser facilmente entendido do ponto de, vista
biológico, o sadismo parece apresentar menos dificuldades
intelectuais que o masoquismo.
A alegria de ver outra pessoa sofrer física ou psi-
cologicamente é muito mais comum do que o puro sadis-
mo sexual., Todavia üma tonalidade sexual em surdina

------------
freqüentemente acompanha esse tipo de crueldade que, em
si mesma, não é particularmente sexual.
A crueldade, o prazer de torturar o semelhante, tem
sido descrita desde o começo do comportamento regis-
trado do homem; ele ocupa nossas fantasias e enche nos-
:j sos cinemas. Os romanos, por exemplo, cuja civilização e
cultura se mantêm como um dos pilares fundamentais do
;!
Ocidente, tinham pouca inibição a esse respeito. Para seu
:1 divertimento jogavam escravos e criminosos aos animais
j,

H:
selvagens. Quando ocorria uma crucificação numa peça
teatral, crucificavam realmente um criminoso no palco.
!I,
i,l , Acredita-se que Pedro, o Grande, da Rússia, apresen-
II
'li'
'1\
tava decapitações para distrair seus convidados. Maria,
100
:11\\:'
rainha da Escócia, em sua juventude como Dauphinc de
France tinha que ver os huguenotes serem torturados até
a mort'e durante a sobremesa. Nessas ocasiões as avós
. colocavam as crianças pequenas nos joelhos para se as-
segurarem de que elas assistiriam a tudo. E as crueldades
da 2. a Grande Guerra são familiares a todos nós.
A crueldade, para obtenção de prazer sexual, foi des-
crita desde o começo dos tempos históricos. O Marquês
de Sade, nobre fràncês do século XVIII, é, em nosso tem-
po, o autor mais conhecido que trata desse fenômeno.
Entretanto, a maior quantidade de sexualidade sádica
ocorre nas fantasias e sonhos das pessoas. No sadismo
aparecem componentes psicológicos que são de maior im-
portância para o desenvolvimento da pessoa.
O sadismo deve ser entendido, em parte, como uma
expressão do lado destrutivo da pessoa: uma expressão do
núcleo, da sombra, do assassino dentro de nós. É carac-
terística especificamente humana achar prazer na des-
truição. Esse não é o lugar adequado para se considerar se
a destrutividade pertence à natureza humana ou é produto
de um desenvolvimento falho, embora' eu acredite que a
primeira hipótese seja a verdadeira. De qualquer forma a
destrutividade é' um fenômeno psicológico com o qual
todo ser humano tem que chegar a termos. O prazer de
~'= destruir, de enganar, de torturar, também é experimen-
tado através da sexualidade. O prazer de destruir os outros
está relacionado à autodestruição. Assim, não é surpreen-
dente que o sadismo e o masoquismo apareçam juntos: o
ill!
i1
, ;:'. "

assassino autodestrutivo é o centro da sombra arquetípica,


~,'
o centro da destrutividade irredutível nos seres humanos.
Outro componente do sadismo é a intoxicação com o
;],' , .•0 poder. Causa prazer sexual dominar completamente o
,III ::
:1
parceiro, brincar com ele como o gato com o rato.
:1\1 ,.,

, I" I
'li'!
"I,';i I ~inda outro aspecto do sadismo é a de~rad,aç.ão do
I", '
"

1,\ I; ~ ",.'pa~c~lro ao estado de puro objeto. Nas fantaSIas sadIca~, a


~"SUjeIção do parceiro e a observação "fria" de suas reaçoes
,11: \ ~ ';

~
:1'1
:
rainha da Escócia, em sua juventude como Dauphine de
France, tinha que ver os huguenotes serem torturados até
a morte durante a sobremesa. Nessas ocasiões as avós
cólocavam as crianças pequenas nos joelhos para se as-
segurarem de que elas assistiriam a tudo. E as crueldades
da 2. a Grande Guerra são familiares a todos nós.
A crueldade, para obtenção de prazer sexual, foi des-
crita desde o começo dos tempos históricos. O Marquês
de Sade, nobre fràncês do século XVIII, é, em nosso tem-
po, o autor mais conhecido que trata desse fenômeno.
Entretanto, a maior quantidade de sexualidade sádica
ocorre nas fantasias e sonhos das pessoas. No sadismo
aparecem componentes psicológicos que são de maior im-
portância para o desenvolvimento da pessoa.
O sadismo deve ser entendido, em parte, como uma
expressão do lado destrutivo da pessoa: uma expressão do
núcleo, da sombra, do assassino dentro de nós. É carac-
terística especificamente humana achar prazer na des-
truição. Esse não é o lugar adequado para se considerar se
a destrutividade pertence à natureza humana ou é produto
,.
1; de um desenvolvimento falho, embora" eu acredite que a
J primeira hipótese seja a verdadeira. De qualquer forma a
\-
!'·lli\1'.\. destrutividade é um fenômeno psicológico com o qual
todo ser humano tem que chegar a termos. O prazer de
,( destruir, de enganar, de torturar, também é experimen-
ti: tado através da sexualidade. O prazer de destruir os outros
: l\i\
'dll;~. está relacionado à autodestruição. Assim, não é surpreen-
dente que o sadismo e o masoquismo apareçam juntos: o
assassino autodestrutivo é o centro da sombra arquetípica,
o centro da destrutividade irredutível nos seres humanos.
Outro componente do sadismo é a intoxicação com o
:,i;
poder. Causa prazer sexual dominar completamente o
\ ;;i parceiro, brincar com ele como o gato com o rato .
.'I!'
'I"

: I"
'11:'
"li' .' ~inda outro aspecto do sadismo é a de%rad,aç.ãodo
1\ \ .: ~
",,'parceIro ao estado de puro objeto. Nas fantasIas sadIcas, a
li "
.il' : -" sujeição do parceiro e a observação "fria" de suas reações
j
II
"li

;.III,:l:
desem~enha um g~ande p~pel. O parceiro torna-se apenas
um objeto com cUJas reaçoes se brinca.

. Esta forma sádica de objetivação faz parte de muÍLas


relações sexuais. Qualquer relação humana sexual ou não,
deveria ser um encontro de dois parceiros içzualm~nte
qualificados - pelo menos é o que se pretende~ E, as5im
que o outro se torna um objeto, seja para obter prazer ou
dável. observá-Io com curiosidade, a relação não é sau-
para

Acredito, entretanto, que estamos sendo· muito


preconceituosos nesse ponto. Qualquer relação é, em par-
,I: te, composta de uma objetivação. É também neces5ário o
;H,
~de observar o Qarceiro il1!párcial e_Qbletl\'aJll~~
:'1'
:!~ te. De uma certa forma, experimentamos no amor urna
01:
I'. completa identificação com o outro; por outro lado mna
I';;

li:
fria objetividade não deve ser evitada. Sem objetividade
Iq
,1:
uma relação se torna caótica e perigosa. Freqüentemente
II1 se ouve durante um processo de divórcio: "eu o amei tanto
:!:
q; e agora isso aconteceu; eu simplesmente não o conhe-ço~
'I'
I I i~

'''i'\'r ção, essa surpresa, ocorre na maioria das relações nas


1,11
I'" quais
mais. aEle
objetividade foi negligenciada.
mudou tanto, é uma outra pessoa". Essa deCep-jf
li;!
No sadismo, então, a destruição, o poder e a obj~-
III\~.\
b· tificação se expressam através da sexualidade.
IH

;. !1~I Estou apenas tentando apontar o caráter indi\'idual


111;,

: q~-:
"t:II"j;! da sexualidade, não glorificar as perversões. A esse res-
.(,
·1'··
I

)
,~.

,~: :
peito, parece-me correto mostrar que a mais ampla exten-
:'.'
til; ~~ . são da atividade sexual humana, particularmente como 5e
ill!II···
:;), manifesta nas fantasias sexuais, não pode ser considerada
I i~ apenas como patologia.

O aspecto individualizante da sexualidade se re\'ela


mais forte no encontro intenso e amoroso entre um ho-
mem e uma mulher , na momentânea . e arrebatada fusão
do ato ,do amor. Este propulsor maIS profun~o das ex-
periências humanas não pode ser compreendIdo como
102
copulação meramente biológica. Este poderoso aconte-
cimento no qual homem e mulher se tornam um física e
psicologicamente, deve ser entendido como um 'símbolo
vivo do mysterium coniunctionis, a meta do caminho de
individuação. A união sexual do Rei e da Rainha era con-
siderada pelos alquimistas como a coroação de sua obra.

todasA asfu~ão
IncompatlbIlIdades
sexu~l .e~pressae aOposIções
po~te quepredominantes.j
une, em nós,~,~
Até certo ponto, o homem e a mulher completam um ao I
outro, e até certo ponto não estão, de forma alguma, sin-
cronizados um ao outro. No ato de amor, toda polaridade
_e fragmenta~ã.o. do ser é superai!a. Aí está seu fascínio, e )
não na POSsIbIlIdade de resultar em reprodução. O ato de
amor é, acima de tudo, muito mais que uma expressão de
reiacionamento pessoal entre um certo homem e uma certa
mulher. É um símbolo de algo que vai além do relacio-
namento pessoal. Isso explica o freqüente aparecimento de
imagens eróticas na descrição de experiências religiosas. A
união mística com Deus é, em parte, simbolizada pelo ato .
de amor. Nesse sentido ª-maioria das estórias de amo(do
--~----::~-~---::------~--~-
mundo, os poemas de amor e as canções sobre ... a unTh'õeIo
..-----._- ~
nQmem e da mulher não devem ser entendid·a~merámente
como a expressão da vida erõtka.-Ína..s' como'símbolos
religiosos. Freud demonstrou cornotodo·s osinstintos par-
êiais sexuais se unem no ato sexual para formar uma gran-
de experiência.
Deixando de lado a notável e fascinante variedade dos
.impulsos sexuais, o ato sexual ocorre como um grande
acontecimento. A vida sexual e as fantasias eróticas são
tão ricas e multifacetadas que cada variedade possível'de
vida psicológica pode ser experimentada através desse
simbolismo vivo; Assim como Jung entendeu as iltíagens e
~s atividades peculiares dos alquimi~tas como pseudo-
Imagens de desenvolvimento psicológico e individuação,
t~~bém podemos reconhecer e seguir o processo. de in-
dIvIduação na vida sexual e suas variações: N~sse contexto
também entendemos a grandeza de Freud~ Ele acreditava

103
que pudesse descrever a sexualidade dentro do model<
biológico, mas descreveu-a com rara diferenciação, e pen
sava ter descoberto nela os f~~damentos do comporta
mento humano. Apenas um pSlcologo da escolajunguiam
pode apreender a psicologia de Freud; que enfrentou ~
sexualidade e foi subjugado por suas manifestações. Con.
tra suas próprias intenções, por assim dizer, ele criou umz
mitologia sexual viva e moderna:r- Como exempo, con-
sideremos outra vez a imagem da criança polimorficamen-
~
te perversa: ela existe em cada um de nós, através de todá
nossa vida. Alguns aspectos são reprimidos e levam uma
existência meramente sombria em sonhos e fantasias mis-
teriosas. O que é essa criança perversa polimorfa se não o
~
;..'. Self (Si Mesmo) da escola junguiana, o símbolo da to-
talidade da psique, o núcleo divino dentro de nós que con-
tém tudo, todas as possibilidades e opostos de nossa
psique?
li,

,.\ Quero mencionar mais uma. característica. da vida


I
i'
I
sexual, com todas' suas variações, que só pode ser real-
mente entendida do ponto de vista do processo de indi-
viduação: a timidez e o segredo. A vida sexual, tanto
vivida como fantasiada, é mantida em sigilo pela maioria
das pessoas. Mesmo na situação analítica pode levar anos
para que as fantasias sexuais mais profundas capitulem. A
maior parte das imagens sexuais que .aparecem nos sonhos
dos pacientes são descritas de forma limpa e inofensiva.
Este desejo de segredo é dificilmente compreendido do

humano.
ponto de vista
Mistério
da reprodução,
e intimidade prazer
são, no
ou entanto,
relacionamento.,
carac-(
terísticas da alma e do processo de individuação. Por al-
gum tempo esse processo tem que ter lugar num vaso
fechado; nada e ninguém ousa perturbá-Io.

l
'ij";
1'",

!' t 104
.Ir\:\
ill: J
o LADO DEMONÍACO DA
SEXUALIDADE

Já disse anteriormente que por um longo período os


teólogos cristãos reconheciam apenas a sexualidade re-
lacionada à reprodução. Encaram o erótico como algo
demoníaco e misterioso, contra o qual se tinha que lutar
ou neutralizar. Todos esses' teólogos medievais eram
provavelmente pessoas inteligentes e diferenciadas, numa
busca honesta de verdade e entendimento. Se, portanto,
consideravam a sexualidade .como demoníaca, esse fato
não pode ser desprezado. Eles estavam expressando algo
muito verdadeiro.
A sexualidade é ainda ligada ao demoníaco em nossos
dias. Todas as tentativas de torná-Ia completamente \ ~
-'I'
inofensiva e apresentá-Ia como totalmente "natural"
falharam., Para o homem moderno, certas formas de
,,,I

'!Il
sexualidade continuam a aparecer como algo mau e pe-
i
caminosamente sinistro.
':

Certos movimentos de liberação feminina tentaram


mi .". li
"

entender a sexualidade como uma arma política usada


i\.'
pelos homens para subjugar as mulheres; desta forma eles
'~.!li, "demonizaram" a sexualidade, ao mesmo tempo sugerin-
,I, do que, com uma mudança de papéis entre homelH ~
~)
rili

.', !
,ill!
mulher, a sexualidade pode tornar-se inofensiva.
li'
H,
Outro exemplo do caráter demoníaco da sexualidade
"h
iít

._~--------------
é o efeito implicativo da chamada cena original. Estudan-

105
tes de Freud e uma grande parte da opinião oficial edu-
cada sob sua influência afirmam que podemos esperar
sérias conseqüências numa criança que acidentalmente.

testemunhar um contato
desenv?lv~e?tos neuróticossexual entre seusa pais.
são atribuídOs Muito~~
tais experiênJ
cias na mfancla.
Algo parece estranho nessa teoria: noventa por cento
da humanidade vive em condições de habitação que tor-
nam impossível que uma criança não .testemunhe, aciden-
talmente, as atividades sexuais de seus pais. Apenas uma
pequena parte da humanidade está economicamente
habilitada para acomodar a família em mais de um ou dois
. quartos. A observação do contato sexual entre os pais ou
'outros adultos certamente impressiona profundamente a
criança.
Se, entretanto, tal experiência, que pertence à infân
cia da maioria das pessoas, realmente leva à neurose, ain
da tem que ser provada. Isso significaria que experiência'\ (
pertencentes inevitavelmente à infância da maioria da
pessoas causam sérios danos. Isso é extremamente im
provável, a não ser que se entenda a sexualidade como aI
guma coisa em si mesma sinistra, permitindo um pode
quase mágico.
Para evitar mal-entendidos, parece-me que os psicólo-
gos modernos que levam a remoção dos tabus tão longe, a
ponto de aconselharem aos pais que não excluam os filhos
de sua vida sexual, estão "jogando o bebê fora, junto com a
água do banho. ' ,

que aOsvida
autores
sexualdedos
modernos
pais develivros infantis que
ser mostrada acreditaml
em seus livro~ \
são, em minha opinião, muito primitivos. Negligenciam o
'il
complexo do incesto, que se expressa .no univer~alme~te
conhecido tabu do incesto. Uma apresentação lrrestnta
dos pais superestimula ·nas crianças os desejos incestuos'os
. e o ciúme relacionado a eles. Através disso, a situação
edipiana se intensifica de modo incômodo.
106
Por outro lado, felizmente é impossível para os pais
mostrarem, abertamente e sem nenhuma inibição, sua
sexualidade aos filhos. Isso também se relaciona com o
tabu do incesto. Os pais, instintivamente, também se
defendem contra a superestimulação de suas tendências e
fantasias incestuosas. A repressão de um tabu provavel-
.mente cria maiores danos psicológicos que seu respeitoso

reconheci~ento. Alguns dos


cesto, mais nos protegem que maiores ~abus, como o do in~~•.
nos restrIngem. )
Este não é o lugar para se discutir exaustivamente o I
tabu do incesto. Todavia, precisamos anotar o fato de que
ele não pode ser encarado como se fosse motivado bio-
logicamente. Tivessem as pessoas praticado o incesto,
teriam aumentado os fatores hereditários negativos entre
elas. As crianças com essa hereditariedade desfavorável
teriam, em sua maioria, se extinguido, e assim' a huma-
nidade, como um todo, teria tido muito menos fatores
hereditários desfavoráveis em sua combinação genética. O I
tabu do incesto, entretanto, não deve ser explicado como!. ül'
eugenia instintiva. Certamente ele está ligado ao' impulso \ ~'i
humano de se desenvolver cada vez mais e de sempre estar \
numa posição de confronto com novas almas. Laços \
heterossexuais estreitos devem ser formados sempre fora :
da família imediata para que o desenvolvimento humano
não fique estagnado~
Outro exemplo da opinião muito difundida de que a
sexualidade é' algo magicamente danoso está expresso nas
leis e na atitude jurídiea referentes ao exibicionismo.
Experiências com exibicionistas são" indubitavelmente,
amedrontadoras para muitas crianças e mulheres. Mas, é
~\\
muito questionável que esse susto prejudique a alma da
vítima a tal ponto que os exibicionistas devam ser
I
ameaçados de longas sentenças ou mesmo de castração
.,,11\1
forçosa. É impossível demonstrar conclusivamente que al-
~un:ta criança tenha sido, alguma vez, severamente pre-
'1'\l

I' Judicada por tal experiência e que uma mulher adulta


t"::iihasofrido shios danos psicológicos por isso.
1~
.\ .
I\,\t" 107
Sabemos que os exibicionistas são, em geral, inofen-
sivos e que se expõem porque têm medo do sexo feminino
e não confiam em si mesmos para se aproximarem das
mulheres. O perigo de ser violentada por um pseudo-
-homem normal é muito maior do que o perigo de ser mal-.;;:
tratada dessa forma por um exibicionista. .;x~
É verdade que muitos adultos que sofrem de pro- .
blemas sexuais pretendem que esses se originaram de uma
determinada experiência na infância, ·por exemplo de um
encontro com um exibicionista; mas essas tentativas de ex-
plicação não devem ser tomadas como provas de tal
etiologia ....Q desejo de encontrar uma e..xplic.açãQ
causali
.muito forte nas pessoas. Quando alguém sofre de um dis-
túrbio estomacal, culpa a cerveja gelada que tomou no dia
anterior; muitos homossexuais, quando experimentam a
dor social por sua homossexualidade, ou são indiciados
por ela, tentam explicar sua homossexualidade pelo en-
contro com um exibicionista.
Outro exemplo contemporâneo de como a sexuali-
dade ainda é encarada como sinistra encontra-se na or-
ganização e na exclusão da sexualidade da maioria dos
hospitais. Não é grande problema quando é um caso de
um paciente que permanece lá pouco tempo. Mas, que
todo tipo de vida sexual seja proibida a pacientes que têm
que passar um longo período num hospital, como insti-
tuições para doentes mentais, sanatórios para tuberculose
etc., só pode ser explicado pelo caráter demoníaco da
sexualidade, pela "demonização" da sexualidade.
Acredita-se que a vida sexual pode, de alguma maneira
enigmática e misteriosa, causar algum dano a esses pacien-
';:11 !
tes. Mas, por que se acredita nisso? Por que razão não se
permite aos pacientes de uma instituição para doentes
mentais, por exemplo, ter contato sexual com outra"pessoa
dentro da instituição?
O que se segue é ainda outro exemplo de como é ad-
mitido que a sexualidade deva ser algo sinistro. A relação
. aI com uma pessoa mentalmente retardada é consi-
sexu
derada ato criminoso na S'mça. A m . tençao
- dI'essa el era
proteger de abuso a p~sso~ menta~mente,retardada. Mas,
o efeito básico dessa leI fOItornar lmposslvel ao retardado
mental uma vida sexual. Que essa lei desumana não tenha
encontrado resistência popular demonstra mais uma vez o
poder quase mágico atribuído à sexualidade.
O~ atletas - participantes das Olimpíadas, por exem-
plo - são amiúde severamente proibidos por seus trei-
nadores de terem atividades sexuais durante as compe-
tições. Tem acontecido que atletas olímpicos têm sido
mandados de volta para casa por haverem participado de
aventuras sexuais clandestinas, mesmo que se saiba ser
benéfica a certos atletas a atividade sexual antes de grandes
esforços atléticos.

Antigos preconceitos estão aí presentes. Entre alguns


povos primitivos, o homem não deve ter contato sexual
com mulheres antes de ir para o trabalho.
I O elemento demoníaco inerente à sexualidade ma-
nifesta-se també~ no fato de que é muito dificil experi-
l)

. mentar e aceitar certos atos sexuais simplesmente como


I "divertimento" ou experiência prazeirosa. Poucas pessoas
. podem "simplesmente usufruir" da sexualidade como· o
II
" 'fariam com uma boa religião. A "teoria do copo d'água"
; - experiência sexual como o saciar a sede - é freqüen-
:111
, temente advogada, mas raramente experimenta,da por pes-
I, " soas durante, muito tempo.
I
r···l

!
,I
Que significa para a psicologia que a sexualidade
'I

" I ,1 semp~e contenha algo sinistro, mesmo hoje, quando


'I
"

,;i acredItamos já nos termos libertado dessa atitude? O


·ii
",
'~..sinis!ro és" . ível 'o impressionante,o
T
li! ) Ç.?mecamos a $Xpenmen ar me o. O processo de indi- -t
':li, ta o-como .
;[ vIdduação, que
~).nummoso.
-.1) tem um em
numtnoso
n~ quer forte
que caráterreligioso,
muitos
algumaaspectos.
coisa Tudoé experimen-
lvma oa.Qareç~,
que es- )
.11:\
)
I '

. (r tej~
tr-ánho e sinistro
ligado caráter;possui,
a salvação inclui
sempreoutras
entre o sobre-humano.
co"isas, um es-
O aspecto demoníaco da sexualidade talvez seja com-
preensível devido a seu cunho individuacional. Ela não é
simplesmente uma atividade biológica inofensiva, mas...aIl=.
lês um símbolo de algo relacionado ao significado de nos-
sas vidas, à nossa luta e ânsia pelo divino. O confronto
"com as figuras parentais é experimentado no drama do in-
cesto. O confronto com a sombra conduz aos componen-
tes sado-masoquistas destrutivos dô erótico. O encontro
com nossa própria alma, com a anima e o animus, com o
feminino e o masculino, pode'assumir uma forma sexual.
'. O amor por nós mesmos e pelos outros é experimentado
corporalmente na' sexualidade, quer nas fantasias, quer
nas atividades. Em nenhuma parte a união de todos os
opostos, a "união mística", o "mysterium coniunctions"
é mais impressivamente expressa que na linguagem do
erotismo.

li" ,

\11

o.i

1
110
A SEXUALIDADE PLENA NO CASAMENTO

,\

!
I

Tenho enfatizado que a individuação pode ocorrer -'\


através de vários sentidos e caminhos: não existe apenas
uma estrada para Roma. A salvação pode ser obtida por -{:

uma centena de meios diferentes. Não é apenas uma forma


de individuação que se abre para uma pessoa, mas antes,
muitas ao mesmo tempo, todas elas distintas umas das
outras.
Eu descreveria como individuação instintiva a que é
feita através da sexualidade, i.e., através de símbolos
sexuais. Ela está imprimida dentro de nós, nos é dada, sem
que tenhamos que tomar grandes decisões a seu respeito.
Por essa razão o simbolismo sexual da individuação é tão
importante: nele aparece a maioria das cores, imagens é
estórias para cada modo de individuação.
Uma "forma fundamentalmente diferente de indi-,
,viduação é o que descrevi acima como o "casamento de'
confrontação". Escolhe-se" casar; faz-se nisso uma es-
:j colha. Gostaria de classificar a individuação através do'
" cas3:mento como uma das "individu'ações de deCÍs2'-O".
\
DecIde-se entrar no casamento da mesma maneira que
d~cide-se fazer análise, assume-se uma profissão etc ....
,~II:\
i , .' " Casamento. e sexualidade têm sido estreitamente
(\
hga~os desde tempos imemoriais. As mulheres têm sido,
I ou aInda são, em muitas culturas, proibidas de experimen-
,u I ...
" J

i tareril a sexualidade fora do casamento. As jovens tinham


: que ser virgens quando casavam. As leis atuais ainda são
.. firmes num ponto: relações sexuais fora do casamento são
'vistas como adultério. Num casamento que é, acima de
tudo considerado como um caminho para a salvação, a
sexualidade é, naturalmente, o campo ideal para a busca
de individuação. Em tal casamento a sexualidade não ser-
ve ao propósito de reprodução, nem meramente à relação
interpessoal e ao amor mútuo, mas à paixão pela indi-
viduação.
1
! Por essa razão, não existe sexualidade normal (ou
111
pervertida) entre p'essoas casadas. Tudo é possível, tudo é
I permitido, desde que tudo é expressão de fantasias in-
ii dividuacionais. Ainda assim, existem casais cuja sexua-
l~dade é constringida por certas pressões para a norma-
lIdade. Cada parceiro permite-se revelar ao outro apenas
dentro de certos limites, e cada um se contém naquilo que
acredita não ser permitido. Por conseguinte, raramente
um marido e uma mulher satisfazem completamente um
ao outro. Ao invés de cada um deles encorajar o outro a
expressar e relatar suas fantasias sexuais mais secretas e
peculiares, um certo medo de anormalidade domina a
,.> cena, até mesmo uma tendência à condenação moralista
'll, , de qualquer coisa que não pertença, incondicionalmente, a
,; \';~""u.m dos parceiros. O resultado é que o material de indi-
"," .,"-vlduação é excluído do casamento ou vivido em outra par;.'
te ou, o que é quase tão sério, o outro parceiro passivo,
embora reprovavelmente, aceita essa situação.
É aconselhável que se viva no casamento os interesses
sexuais compartilhados, se possível a aceitação dos que
não o são, e, em qualquer caso, não rejeitá-Ios. Dessa for-
ma aprende-se a conhecer a outra pessoa em todas suas al-
turas e profundezas. Assim se atravessa a floresta primeva
da alma e, como vimos no mito de Culhwrch, nem toda
façanha tem que ser realizadá apenas por si mesmo.
Em alguns casamentos entretanto, isso pode ser
muito difícil. O homem, por' exemplo, tem interesses bis-
112
, \

sexuais. Como deve sua mulher reagir? Deve encorajáho a\


ocontar
mínimosuas.mteresse,
fantasias ou
homossexuais
mesmo encoraJa-lo
nas ~,uais aelaVIver
?ão ~em
~ua,' .
homossexualidade? Não podem ser dadas regras gerais.'
Apenas a atitude com que se aborda tais problemas pode
ser discutida. É desejável, a todos em tais ambíguas cir-
cunstâncias, ir mais além em sua tolerância do que suas
próprias inclinações tenderiam a levar. -.
Uma regra seria que por amor a permanecerem jun-
tos não se tente fugir da sexualidade do outro, assim
co~o não se pode fugir do outro psicologicamente. A·
confrontação nunca termina. A forma como .é vivida, é o
trabalho de cada casal e de cada cônjuge. Cada casal cria
sua sâlvação dentro do casamento e aí procura sua indi-
viduação única. Nesse sentido, ar; pessoas casadas estão
completamente independentes e desligadas de qualquer
concepção de normalidade. Cada casamento é, em si mes-
mo, um mundo. "Na guerra e no amor tudo é justo".
A independência de cada casamento' de toda espécie
de padrões e critérios, relaciona-se não apenas ao compor-
tamento sexual, mas ao ser total dos cônjuges individuais.
\
Acrescento ainda algo de significado mais geral. A \

.'''.- chamada pessoa normal, completamente sem neuroses, é


. difícil de ser encontrada. Cada um de nós tenta, à sua
PI:i>.priamaneira, com mais ou menos sucesso, combater
.:.,= .9~ ~b~e~as fundamentais e insolúveis e contr . es dão
- - vlda.....tals como o anseIO e ser cuidado, usufruir da de-
pendência infantil de um lado, e uma existência indepen-
dente do outro; livrar-se dos pais e permanecer para sem-
pre criança; o desejo por outras pessoas e o medo delas e
. d.es~a. própria agressão; a ansiedade da dor.e da decadên-
'~.iI CIa fI~Ica; o,medo da·morte e a aspiração de perpetuar-se
!~ .atrav~s de fIlhos e netos; o desejo do poder e o desejo de
submIssão; amor e ódio, piedade e orgulho etc .... Sob esSe
~sP~~to, todo ~undo é mais ou menos neurótico. Nossas
a~Ihdades PSIcológicas para chegar a termos com os
po eres.da alma são variadas e diversas.
1 1 '1
/
""

Nunca acontece, entretanto, que no casamento duas


*
f: ~
,r pessoas completamente "sadias" se encontrem. Ambas
ü' ~ têm suas peculiaridades e distorções neuróticas. Mas o
9'~CO casamento não tem a ver com um parceiro curando o
A L. ~ ••••
t> -L: ~%. ' outro ou ainda transformando o outro significativamente:
~~~O~ isso não é possível. Através do ato de casar, assume-se a
tarefa de mútua confrontação até a morte. De alguma for-
~\fl ~ ;.,~O
~p /

/'
,0 \fl~ ~~
ma, o casamento tem que funcionar, i.e., também os sin-
v~ 0..'?-
~,
\
r\i \fl•.
~ 9>
_. , ". '
tomas neuróticos terão que ser sincronizados um ao outro.
~ \fl Ás peculiaridades próprias e as do parceiro devem ser
suportadas, aceitas e integradas na interação entre os es-
posos. É muito impressionante quantos comportamentos
extremamente patológicos um casamento de individuação
\ é capaz de suportar. '

O psicólogo perfeito pode achar, em quase todo



I J casamento bom, um número de mecanismos neuróticos
suficiente para considerá-Io impossível e pronto para o
:1
divórcio. No casamento de individuação ambos os par-
ceiros se confrontam com tudo, com a saúde e a doença,
os traços normais e anormais de seu ser.
Muitos casamentos murcham, secam e perdem o
caminho de individuação porque os casais tentam facilitar
suas situações através da repressão e exclusão de suas
características mais importantes e essenciais, sejam elas
desejos sexuais estranhos, traços neuróticos ou o que quer
que seja. Quanto mais confrontos se faz, mais interessante
e fecundo se torna o caminho para a individuação.

L
~11·
1,1

[ i
,;1
,
','
. ,

':~I,

II

.";1

114
CASAMENTO NÃO É ASSUNTO PRIV Ano

-, Atualmente, uma das formas mais comuns de um


cônjuge "dissociar" parte de sua psique é isolar-se de sua
J .J' família, dos pais etc ....
A intromissão dos parentes por afinidade num ca-
/ ;' samento sempre leva a grandes dificuldades. Em inúmeras
/ piadas populares e caricaturas mostra-se, por exemplo, a
sogra aparecendo subitamente na porta da entrada e a sur-
presa amedrontada do genro.
As influências negativas de' parentes levam muitos
casamentos à beira do divórcio. Certos parentes são sem-
pre um problema: a mãe interfere muito, o pai não enten-
de o genro, a mulher admira o pai mais que o marido~,
outros se envergonham dos parentes porque vêm de um
meio' social diferente, ou são avarentos, ou não têm senso
de humor, ou certo sobrinho conta anedotas sujas o tempo
todo etc ....

, ,Muitos analistas recomendam em tais casos afastar-se -1


da relação familiar ou ainda cortã-Ia. Talvez, em algl..r:- ," ~
casos, essa. atitude possa estar absolutamente certa, mas \
do ponto de vista do casamento como meio de inui d- '
?uação.é muito questionãvel. Se levamos a sério a idéia do
.mconsclente coletivo como C. G. Jung a entendeu, não es-
\1

iJ ,ta~~s, apenas vagamente ligados à psique de todas ~s pes-


': ,S?C!~) mas especialmen;.c às dos parentes mais prÓXImos e
\i\
':,1
-~:;"'I~:#~".>1':'~:"
'.:
de nossos parentes próximos e distantes devem ser encon-
tradas
de nós ee nós
percebidas
deles. em nosso inconsciente. São uma parte
mais distantes. Expressando mais concretamente, as almas]
Ao quebrar o contato com a família imediata e com a (
distante, estaremos reprimindo alguma coisa. Os membros
da família estão sempre silenciosamente em nossa psique,
ainda que não estejam mais concretizados sentando-se à ~
..;
, ~~ nossa mesa. ,
A confrontação no casamento serve melhor à indi-
viduação quando é tão abrangente quanto possível, quan-
do inclui tanto quanto possível todas as partes de nossa al-
ma. Um encontro dialéticode confronto com a família do
parceiro' pertence, portanto, a um processo psicológico
particular; pertence ao caminho específico de salvação.
Um casamento de individuação raramente é uma

/
,./'
questão privada. Isso é expresso na maioria das ceri-
~ônias de casamento das quais parentes mais próximos e
distantes participam. O costume contemporâneo de
oficiá-Io dentro do menor círculo possível não exprime a
realidade do casamento com um ritual adequado. Tais
cerimônias são sinais de um individualismo psicologi-
camente irrealista. Cada pessoa é encarada como um in-
"li!, divíduo isolado, separado do inconsciente coletivo que o
relaciona e o liga a todas as outras pessoas _ acima de
tudo à sua própria família. .

suas famílias com freqüência funcionam relativamente


bem, Descobri
mas tornam-se
que asexcessivamente estéreis
pessoas casadas que see aborrecidas.
separam dej
Aqui está um exemplo. A mulher vinha de uma assim
chamada família "primitiva". Seu pai era um negociante
bem Sucedido, grosseiro e indiferenciado psicologicamen-
.te. Sua mãe parecia murchar nos trabalhos caseiros e não
tinha interesses culturais ou espirituais. A conversa entre
pais e parentes girava em torno de programas de televisão
e notícias do diário popular. . ,
116
1I
o marido vinha de uma família de classe médi:a cujos
membros tinham tendências a depressão. Sua mãe havia se
suicidado quando ele tinha cerca de vinte anos. Um irmão
dele via tudo negativamente e conseguia sufocar toda
alegria com seú pessimismo.

/
Depois do casamento, celebrado somente com um
pequenp CÍrculo de amigos, o casal mais ou menos cortou
relações com suas famílias. Ele estava desgostoso e en-
tediado com seus parentes' depressivos e ela envergonhada
dos dela.
~,
~~
•..
/ o casamento continuou, em geral pacificamente, mas
~."
'- os cônjuges se sentiam aborrecidos e davam a impressão,
v
,j' ~. aos p'oucos amigos dessa jovem família, de serem exces-
~~
'q,
', sivamente estéreis e desinteressantes. !

~,Q.::O '
°0 " ,/ Então a mulher teve '0 seguinte sonho: ela discutia
,/
rudemente com seu pai. Como' algumas pessoas se
/"
..

// aproximavam, ela começou a sentir-se envergonhada e


/~
/ temerosa que se enervassem com a linguagem crua do con-
,/
,,' flito. Empurrou seu pai para longe de si e ele caiu na água.
/
/ Não ficou claro se ela intencionalmente o empurra para
.'/ dentro d'água, mas, de qualquer forma, ele afunda sem
/
./~. nenhum som.

Então alguém da multidão disse à sonhadora: "Ele


(isto é, o pai) sabe como investir dinheiro com lucros mais
altos''' ...
,
\
li
"

li
"

\'
Iríamos a um campo muito distante se levãssemos em
I: consideração todas as associações da sonhadora. Aqui es-
",\i tã apenas uma: a "lucros" ela associou o talento P.'~:)
I, 11
I,
i •. utilizado" ao talento oculto e enterrado, mencionado no
I'
I; Novo Testamento. A analisanda era muito interessada t'1I1
i
assuntos financeiros e também sabia bastante a respeito.
.
De acordo com a associação, o sonho queria dizer aI-
assim: porque ela empurrara o pai dentro d'água,
117
fazendo-o submergir inatingivelmente, já não havia mais
ninguém que soubesse como investir dinheiro Com lucros.
Isso significava que a mulher havia se tornado estéril e já
não podia beneficiar-2t:' t:'om seu talento.

il :
! ~:

- 11 R
o SACRIFÍCIO

I
'li
, I

b casamento de S. José, como o entendemos, é um


daqueles em que os cônjuges renunciam à sexualidade _ é
,·i assim um casamento assexual. Hoje este casamento é
brandamente ridicularizado como uma "instituição
católica" peculiar. Psiquiatras e psicólogos descreveriam
tal casamento, no caso da causa da assexualidade não ser
orgânica, como um acordo neurótico de duas pessoas que
" foram severamente perturbadas em seu desenvolvimento
.;
psicológico. Em nossos dias os PSicolongüistas exigem de
todos, desde sua juventude até a velhice, uma vida sexual
saudável e vigorosa. Nenhuma pessoa casada sadia e
nenhuma pessoa solteira sadia deve levar uma vida as-
sexual. A sexualidade vigorosa e saudável é de rigueur .
Esta é uma exigência conformista e niveladora. Con-
I 1 funde pessoas com animais; requer que uma pessoa viva
'I : !;
.11111
"naturalmente"
desse naturalismo. e a sexualidade é contada como parte
'\
I
111 ~

'"11- .
Há muitas pessoas que não têm grande interesse na
sexualidade e não são severamente "neuróticas". Oca-
,11

sionalm~nte se acha um casal para o qual a sexualidad~.é


s6 medlanamente interessante. Tal casamento, POS1tI-
'vamente, não é absurdo. É possível dentro do casamento,
como .em praticamente nenhuma outra situação, que a
~exuahdade-como-símbolo_individual seja vivida com-
pletamente. Mas a mete: do. ca~~mento não é experiência
sexual, mas antes salvaçao, mdlvlduação: buscar e achar a
Deus, à alma e a si mesmo. E isso também pode acontecer
sem sexualidade.
Isso nos leva a um problema central do casamento,de
salvação e individuação. Nós, psicólogos junguianos,
falamos freqüentemente de "tornar-se inteiro", de rea-
lizar-se completamente, mais do que de individuação. A
"pessoa total" é a meta da longa estrada da individuação ..
A mandala, um símbolo da meta ou do centro de indi-
viduação, tem a forma de um círculo e simbolicamente
contém todos os opostos; nela nada está faltando.
Mas tal processo de tornar-se completo não' está
necessariamente implicado na palavra "salvação" e a
frase "tornar-se total" ou "completo" está aberta ao
mal-entendido. A individuação como a busca de salvação,
não está só relacionada a "tornar-se total"; ela também
exige sacrifício renunciatório. Algo deve ser desfeito, algo
\ deve ser renunciado, ou para colocá-Io paradoxalmente: ~
':1
ao processo de atingir a totalidade pertence o sacrifício, a
II:1 renúncia real de partes vivas de nossa personalidade, ou
do que pode ser mais valioso em nós e para nós.
,~: .
'\...'Z.

Mitológica e ritualmente, o sacrifício sempre tem um


papel importante. Por um lado, ele é exaltado, e por
outro, permanece como um obstáculo e uma causa de
aborrecimentos. Aqui a notável história de Abrão e Isac
me vem à mente. Deus exige de Abrão que sacrifique seu
filho Isac. No último momento, contudo, Deus imped~ o
sacrifício. Não devemos compreender maio fim desta es-
;1. :1
tória. Mesmo as estórias mitológicas têm uma tendência
!I;" ..
ao conforto (embora num menor grau que em contos de
fada), para não amedrontar o ouvinte indevidamente. Se
Deus realmente recebeu ou não o sacrifício de Abrão é in-
c0Il:seqüente. Ele o exigiu, o que signifi~a que poderia tê~lo
aceltado. Ele requer que Abrão esteja preparado para
120
oferecer o sacrifício de seu filho. Não é tanto a estória de
um teste, de uma tentativa da parte de Deus para descobrir
se Abrão estaria pronto para sacrificar seu'filho; a crise
central da estória é que Deus exige o sacrifício.
Também me lembro da estória sobre Agamenon e
Efigênia. Os gregos podem navegar para a Ásia Menor e
conquistar a cidade de Tróia somente depois que Aga-
menon tenha sacrificado sua filha. Esta lenda mitológica é
também feita mais saborosa aos ouvintés já que Efigênia
não morre, mas somente é levada a um país longínquo.
O motivo sacrificial é ainda achado na circuncisão.
Pelo menos simbolicamente algo pertencente ao recém-
nascido deve ser sacrificado a Deus.
Como toda imagem arquetípica importante, a do
sacrifício leva à caricatura e ao excesso. Pensem nas
milhares de vítimas humanas de sacrifício que os astecas
acreditavam que os deuses exigissem. Para tomar um
exemplo mais próximo: os milhões de jovens que mor-
1\.
reram em batalhas durante aI; a Guerra Mundial pode ser
\r
encarado como uma horrenda caricatura da imagem do
:11:'
"

.:;1
sacrifício. Que os generais e políticos estivessem prepa:"
'11';[.
I
rados para permitir que centenas de milhares de jovens
:i
:! morressem para' a obtenção de umas poucas milhas
i quadradas de terreno e que centenas de milhares de jovens
"
; permitissem que fossem massacrados é dificilmente in-
,
;I
!
teligível de um ponto de vista racional. Isso deve estar
I
:
relacionado com uma possessão demoníaca através da
imagem arquetípica do sacrifício.
Ligado a isso nós precisamos também lembrar o as-
sas~ínio sistemático de milhões de judeus europeus pelos
,r . . alemães. Milhares , dezenas de milhares, milhões
,'nazIstas
permItIram a si mesmos ser dirigidos pelos torturadores
,I "
r

. T?dase Possibilidade
demasIa arquetípica
torna um demônio
para sacrifício.
horrendo. j'
quando realizada em - .
JAi
j:

I:
:! 1,21
Quando os pensa~entos e imagens de sacrifício são
vividos como uma capcatura, as pessoas sempre reagem
violentame~t~ contfa el~s. E~ J.l?SSOS dias tal reação está
em plena atIvIdade. A dIspombIlIdade para o sacrifício, a
alegria do sacrificio, a prontidão ao sacrificio têm todas
tomado, em certos círculos, uma conotação obscena. Isso
não rpodifica o fato de que o sacrificio de alguma coisa
muito cara a nós parece ser indispensável à individuação, à
salvação da alma. -
Penso agora sobre o que tem sido por dois mil anos o
exemplar concorde do meio de salvação no mundo ociden-
tal, isto é, a vida de Cristo. A fim de se tornar um com o
--Pai, Cristo teve que sacrificar tudo: reputação, auto-
~estima, a estima de outros e a própria vida.
Este livro é uma tentativa, entre outras coisas, de
provar o caráter individuacional do casamento. No con-,
texto de nossa presente discussão ainda não aludimos aos
grandes sacrifícios que são também exigidos pelo casa-
mento. A maioria das pessoas casadas precisam, até certo"
ponto, renunciar a certas partes de suas personalidades;
precisam sacrificar no altar do casamento. O casamento é
uma confrontação inescapável, contínua, que somente
pode ser resolvida através da morte. Entretanto, tal con-
fronto de longo prazo só é possível se um ou ambos os
cônjuges renunciam a algo importante. Primeiro, tudo é
confrontado, mas logo se torna aparente aos 'cônjuges que
esta confrontação a longo prazo da qual não se pode fugir,
i só pode ser mantida se algo essencial da própria alma de
I cada pessoa é conscientemente renunciado.

I: Uma esposa é dotada musicalmente, por exemplo, e


,:
lj ·por amor a seu marido ela renuncia à música porque sem
1: seu apoio ele não pode progredir profissionalmente e
-I

t.
cairia em depressões. Ou um marido precisa desistir de.
d
;.
f~zer qualquer coisa por si mesmo no mundo dos negó-
:ri CIOS; ele precisa colocar sua luz sob uma capa para que a
··i
f:
"
luz de sua mulher possa brilhar mais fortemente.
~
I,

1
-I:
---1.22
Cá está um sonho que trata desse tema. O sonhador é
uma mulher de quarenta anos que sacrificou suas habi-
lidades artísticas por seu marido e sua família. Ela não
desenvolveu seus próprios dons artísticos, mas preferiu
ajudar seu marido que tinha uma posição de extraordi-
nária responsabilidade. Ela o sustentou emocionalmente,
ouvindo-o por horas a noite enquanto ele lhe contava de
suas di'ficuldades profissionais, desapontamentos e suces-
sos. Este é o sonho: Seu filho, que tem certa semelhança
com o Sr. W. (um artista seu conhecido), está se afogando
ou está a ponto de se afogar. A mulher está num estado de
pânico e tenta salvar o menino. Desesperadamente ela'
corre, prá frente e para trás. A criança contudo afunda-se
cada vez mais profundamente. A mulher corre sobre uma
estrutura que represa a água, de ambos os lados, mas no
I; ~
I
meio há alguns poços. A criança está sempre num poço
, ,
diferente e cada vez mais fundo na água. A mulher não é
" capaz de salvar a criança. Finalmente ela a vê em água
I,
, muito profunda e ela já não se move.
"

,\,,\ No final do sonho a mulher teve a impressão de ser


li:
!~
um observador da cena inteira: ela se encontrava em al-
H
\!.
gum lugar acima de todo o acontecimento e acreditava
li reconhecer a forma dessa represa.
1"
,:
I' Enquanto ela pensava sobre esse sonho e sobre como'
pareciam as estruturas da barragem vista de cima, lhe
ocorreu de que a coisa toda representava claramente uma
mandala. A represa era as linhas de limite; os poços, o es-
paço vazio no meio delas.
O sonho tinha o caráter de um pesadelo. Ela não
,P?dia evitar que o filho se afogásse e por outro lado, a
VIstade cima a enchia de profunda paz. .

\i
'.mdIc~ção
. Poderíamos
de quenoso perguntar
analisando setem
esseque
sonho não é uma
sacrificar l
sua ~
próprIa criatividade no Self (si mesmo) ou para o Si M~s- \
mo. Geralmente tais mandalas simbolizam a estrutura SIg- .//
;\
nificativa e ~ d~n.âmic~da alma, a meta ou o poder mo-
tivador da mdlvlduaçao. Esta mandala continha o sa-

Muitos casamentos acabam porque se rejeita a idéia


de sacri!ício e. a esse respeito muitas análises e psicote- /\
crifício. i'

rapias" tem efeitos profundamente perturbadores para o I


i>
i"
casamento.
I:
Em nome do pleno desenvolvimento da personalidade
individual, de totalidade individual, o casamento de in-
dividuação é sacrificado.
I '.
iii
li, Por razões não inteiramente aparentes ou explicáveis
",
1" para mim, o desenvolvimento narcisístico da personalidade
lil
:11
!il
jll
e a hostilidade contra qualquer espécie de sacrifício da
'I
'"'
personalidade são verdadeiros dogmasda maioria de
tt
grupos psicoterapêuticos modernos; por essa.razão muitos
,"
:l: casamentos são interrompidos em tais grupos. Talvez esses
~~.i
~ grupos, se não propriamente dirigidos, sejam os instru-
! I

;1 mentos inconscientes e não intencionais dos movimentos


'I, " coletivos dos tempos; mais provavelmente, contudo, é
:j
precisamente nesta forte constelação das dominantes do in-
il~
\"
consciente coletivo que repousa a única possibilidade te-
~.~ rapêutica de tais grupos: através delas se pode conscientizar "
,I;) as imagens coletivas dominantes.
"'i:
Repetidamente as pessoas casadas de meia-idade
\;
I'
acham seu caminho para o psicólogo, o conselheiro
I: matrimonial, ou o psiquiatra, com a queixa: eu não pos-
i
so, crescer; eu não posso desenvolver minha personali-
dade; eu tenho que deixar muitas das minhas habilidades
sem cultivo; eu gostaria de me ampliar e finalmente me
descobrir, finalmente ser capaz de crescer. O tema da
mulher - ou homem - que quebra os estreitos confins do
casamento é favorito de muitas estórias, novelas e filmes.
Freqüentemente no momento da verdade, isso se
reduz a nada mais q~e tornar-se cônscio da necessidade de
sacrificar uma porção da personalidade do indivíduo.
1 ')A
Tenta-se evitar esse aspecto ~a individuação. E há hoje
muitos psicólogos para os quaIS o caráter de individuação
do casamento é desconhecido e que além do mais não
querem saber nada sobre a necessidade do sacrifício. Eles
pertencem antes ao moderno culto da personalidade e es-
tão, portanto, também a serviço do bem-estar, mais do que
da salvação; e nessa área podem causar muito dano. O
sacrifício é rejeitado sem hesitação; por razões dogmáticas
não é permitido que ele exista.
Obviamente não estamos aqui falando de um sa-
:1 crifício moralístico e repreensivo com o espírito de mar-
'-I
tírio. Esse concerne mais ao sacrifício de livre-arbítrio,
1-
;,J

j.!
sem reprovação a ninguém; concerne à renúncia necessária
:'j e auxiliar da individuação.
;1

H A esse respeito, mesmo a sexualidade deve ser sa-


~;j
-,
crificada em certos casamentos. Estou abordando aqui o
problema da frigidez e da impotência. Pessoas que foram
atingidas "pelas flechas de chumbo de Eros podem muitas
vezes ser curadas por psicoterapia ou por lições de técnicas
sexuais; muitas vezes, entretanto, isto nada ajuda. Infeliz-
11:, mente o parceiro sexualmente capaz é, então, freqüen-
III temente aconselhado a que procure amor em outro lugar
I qualquer. A solução para o problema não é, certamente,
tão simples. Ou um renuncia à sexualidade ou o outro
desiste da fidelidade de seu parceiro. O sacrifício da se-
t xualidade é tão significativo quanto sua decretação; ou o
parceiro indiferente deve sacrificar a seu companheiro de
individuação sua aversão à sexualidade. Desse modo, as
maiores de todas anomalias sexuais, frigidez' e impotência
no
vação.casamento, podem ser aceitas sob o aspecto da sal-

I~ Eu tenho descrito a sexmilidade como individuação


II
'1
:)
indi.viduaçãoe A"
;1,.,
y escolhIda.
instint!va, eAmbas formas de
o casamento sãoconfronto
intimamente
comorelaCIOnadas --W'
il
il"
\' fre~üe?t~mente experienciadas juntas. Essas duas forma,s
:l;
de mdIvIduação podem se fortalecer e enriquecer uma a
\w
,DI
outra mutuamente. Mas sua conexão íntima também leva
a muitas tragédias e a muitos mal-entendidos. Um meio de
individuação não garante o outro e um não deve ser con-
fundidQ com o outro. Psicologicamente precisamos
claramente distinguir os dois meios na vida e na consciên-
cia.
Muitos jovens decidem casar-se sem paixão sexual.
Uma intoxicação erótica é algo tão absorvente que se-
riamente prejudica a habilidade de fazer tais distinções.
Entretanto muitos jovens têm o instinto preciso para
reconhecer se seu' 'estar apaixonado" é basicamente uma
intoxicação sexual ou se seu "amor" também inclui a for-
ça para caminhar junto com um parceiro a trilha da in-
" dividuação-via-casamento.
Entretanto, geralmente se acredita que um meio qe
individuação possa exigir uma contrapartida ao outro.
Muitos cônjuges acreditam, por exemplo, que têm o direito
de exigir satisfação sexual em virtude do meio de indi-
viduação do casamento. O reverso também é caso fre-:-'
qüente: parceiros que se encontram só no meio instintivo,
sexual de individuação, injustificadamente exigem o
caminho consciente, escolhido, de individuação do ca-
samento.

1,
"

i:

,~
'i

li'
\:

, I·\:r
'In
.I\li
l;
:iq
li:!,1
I\!iI
lU
o DIVÓRCIO

.Antes de ir além gostaria de abordar o assunto do


divórciot a possível dissolução do casamento.

O casamento dura até a morte. Ao menos as pessoas


se casam com essa intenção. Sua significação mais profun-
da é a confrontaçãot inevitável por toda uma vida. O meio
de individuação pelo casamento consiste no fato de quet
nele, não se pode evitar o encontro dialético com o par-
ceiro, mesmo quando as coisas se tornam diflceis e de-
sagradáveis.
Issot de forma nenhuma implicat contudo, em que o
divórcio não deveria existir ou que o divórcio viole certas
exigências da individuação. Como já indiqueit ele implicat
Hi antes de tudo, em que talvez fosse melhor que menos pes-
soas se casassem. Deveria ser dado ao estado civil de sol-
li!
I
i teiro um maior valor. É de se esperar que o mundo con-
! temporâneo aumente as possibilidades socialmente san-
1
I!i cionadas de ser solteiro e respeitado. Deve-se esperar mais
li
tIIj ainda compreender que o fato de ser solteiro não implica
\
numa vida assexuada. Novas formas de convivência
parecem, finalmente, estar começando a existir - co-
li,
., munast por exemplo, ou outras comunidades que não pos-
i su~m o caráter de exclusividade do casamento. Também
sena desejável que mais mulheres fossem capazes de se
lU tornarem mães felizes sem ter obrigate ;amente que se

\1 127
casar. É injusto, para o meio de individuaçào pelo casa-
mento que, mUltas pessoas, especialmente mulheres se
submetam a essa instituição de salvação a fim de te;em
filhos e serem mães. Para as pessoas cujo principal in-
teresse é a próxima geração, o casamento é uma instituição
totalmente inadequada.
Errare humanum est. Mais cedo ou mais tarde pode se
tornar claro às pessoas casadas que elas não encontraram
o seu parceiro de individuação, mesmo que não existam
sérios mal-entendidos entre eles. Talvez alguém não tenha
achado o companheiro certo para o caminho de indivi-
duação através do casamento ou descobre-se ser com-
pletamente inadequado para esse caminho. O critério de
divorciar-se ou não deveria ser procurado no grau de
dificuldade ou patologia no casamento, mas antes deveria,
claramente, depender do casamento representar ou não
para ambos os cônjuges um meio de salvação.
_ Entretanto, antes que os casais notem o problema

permanecer juntos pelo bem dos filhos?


Minha opinião é que nenhuma consideração deveria
\ . ser
tornam-se
dada aospais. Levanta-se
filhos. Mantenhoentão
essa aopinião
questão: deveríamos
pelas seguintes
. razões: antes de tudo, é extraordinariamente difícil saber
exatamente o que machuca os filhos psicologicamente e o
que os ajuda. Causa dano aos filhos crescer numa família
intacta na qual os pais estão desempenhando uma farsaT
Ajuda-os se vêem como os pais estão se sacrificando pelo
bem-estar dos filhos enquanto renunciam a seus próprios
caminhos de individuação? Ou se desenvolv~m melhor em
uma situação honesta que um divórcio mUltas vezes lhes
esclarece? Podemos, por agora, só aprese~tar a suposiÇã~
- que a observação tem muitas vezes confirmado - que.e
u~ ~ardo pesado para os filhos testemunhar como o~ paIS
re~eltam sua própria salvação e individuaçã?, Isso cna nas
cr~anças uma consciência cronicamente ma para com os
paIS ~, advindo dessa má consciência, uma agressão
doentia.
. 12R
Além do mais, a opinião de que se deve permanecer
casado incondicionalmente por causa dos filhos, mesmo
quando se reconhece não ser o casamento um meio de in-
dividuação, está muito ligada a "bem-estar". O casamen-
to não é uma instituição para o bem-estar e isto serve tanto
aos filhos quanto aos pais. A coisa mais importante é
il
II
exemplificar para os filhos as possibilidades de indivi-
li
!1 duação. Deveríamos demonstrar a eles a ~;Il1port~nci.a.da
salvação, e não do bem-estar. É portanto muito ques-
tionável se é certo para nós nos devotarmos, hipocrita-
mente ficando juntos, ao serviço do bem-estar mais do
que ao conhecimento da salvação. Queremos dirigir nos-
sos filhos à situação e não ao bem-estar. Essa distinção é
de grande importância precisamente aqui, em relação com
o que se supõe acontecer aos filhos e como precisamos nos
conduzir para com eles.

Só outra pequena advertência com relação às -circuns-


tâncias daqueles que encontram a individuação em seu
casamento e daqueles para os quais ela se apóia em outro
lugar. As pessoas buscam sua salvação por vários meios.
É, contudo, terrivelmente difícil para qualquer pessoa não
fazer apologia, consciente ou. inconscientemente. Isso
freqüentemente leva a desenvolvimentos infelizes, prin-
cipéilmente quando uma pessoa exerce grande influência
sobre outra, seja ela um analista, psicólogo, conselheiro
-j(,.
J
I' '

ou amigo com influência. Nunca somos objétivos, mesmo


quando acreditamos sê-Io, mesmo como psicólogos. Há
um modo sagrado em ser casado e um modo casado de ser
solteiro. O~ "discípulos" de cada forma tentam converter-
se uns aos outros - e freqüentemente causam problemas
com isso. Uma mulher divorciada que depois de amarga
' experiência descobre que o casamento não é seu caminho
il~ costuma prestar-se a ser conselheira de pessoas casadas
que tenham problemas. Ela terá uma tendência de tentar
conve~ter aqueles que procurem seus conselhos a adotar
uma hnha de individuação não-matrimonial. E assim um
. casal que buscava ajuda para. talvez salvar seu .casamento
upl<i pelo divórcio. qs terapeutas e conselheiros matri-
. 1\~~liais tam~m agem como pregadores, quer s~~i~~'o
'* ~a.o. SerIa bom se os tera~eutas tive~sei!l-
. lima conSqenCla profunda daqueles cammhos de mdl-
viduação em que foram bem ou mal sucedidos, e se pudes-~
sem admitir quaisquer tendências àqueles que procuram 1
sua ajuda. Isso protegeri& aqueles que procuram conselho
de absorver as tendências mais ou menos conscientes do
terapeuta.
Considero ideal que o analista seja inteiramente fran-
co e quando o paciente comece a falar de suas dificul-
dades no casamento, o analista diga por exemplo: "Olhe,
() cas.amento não foi o meu caminho para a individuação,
portanto tome cuidado, pois posso involuntariamente ten-
tar convencê-Ia de divorciar-se e levar uma vida de sol-
teiro. "

'11; ~

j'
\

"111 ~

il'

'I
r
:1

I
I til
SALVAÇÃO, BEM-ESTAR, INDIVIDUACAo:
SÓ PARA OS INSTRUIDOS? .

}
1
\ '

o;!
,lI!
Ili, ,\

r::
j"

11\ ,Tenho falado explicitamente nesse livro sobre bem-


1:\
·1 ~ ;
estar, salvação, individuação e outros tópicos que tais. Al-
guém poderia perguntar se é mesmo possível ao homem
\ \ \

\.

1:\ ,dirigir
médio porcompreender
eles. Alguémconceitos
poderia se
tãoperguntar
complicados ou se I~
realmente 1
i \1
há muitos casais que refletem sobre se acharam ou não no
1 I: casamento seu meio de salvação, seu meio de indivi-
jl
,.11"
q
\~\
:\\ duação; ou se não é o caso de que muitos J)1aisentendem o
Ii casamento como uma agência de bem-estar.
\1
"' . Como psicólogo não estou tentando forçar nada a
. li
!l\\\
, ,11
I~{t~inguémou trazer ninguém ao ponto onde possa se de-
"11

"ti ~t9~t,
~@~~cura
er com
;~!»!ge ,as compreender
conceitos
pessoas e asabsolutos.
o que e está
motiva Ao contrário,
acontecendo,
encontrar o psicólogo
nomes o que
para os oJr
';1\
~peDQS psicológicos. O fenômeno psicológico é ex-
. II ~~fiado por imagens pela maioria das pessoas e não in-
l\!;i\~1
li ~~p'-almente descrito. Até recentemente eram, acima de
'~s religiões e igrejas que forneciam às pessoas
l"i')~f_atravésdas quais elas se habili,tavam a refletir
\\1\
,C!í~;~ relações fundamentalmente espirituais.
'\1 ' I~\ ~taso que a salvação e o bem-estar são motivações
'~ f\lndamentais para .toda pessoa, mesmo que
bI"~
nl
~~e. consciência disso 'de um modo conceitual.
,pJuges,
~".:
sejam eles educados psicologicamcllle
I'~;li
\\\ DI
ou não, sejam alfabetizados ou não, perguntam-se se o
casamento serve mais ao bem-estar ou à salvação' se
devem permanecer juntos em nome do bem-estar 'dos
filhos ou se devem buscar a salvação. Que este é, de fato o
caso, vemos repetidamente pelos sonhos e fantasias de
pessoas que encontramos, independente de sua herança
social e de sua educação.
Para dar um exemplo: Uma costureira industrial de
vinte e"dois anos contou-me a seguinte estória: "Meu pai
nos deixou quando eu tinha dez anos. Ele mandava regular-
mente dinheiro à minha mãe, entretanto somente visitava
os filhos cada ano ou dois. Eu amava muito a minha mãe e
critiquei severamente meu pai quando ele nos deixou.
Tivemos que viver pobremente e nenhum dos filhos pôde
cursar a escola depois dos ,doze anos. Mas apesar de todas
as críticas, eu também amo muito ineu pai. Não sei por que.
Afinal de cmitas, ele me abandonou. Quando eu o via de
vez em quando - era bem raramente - ele não se interes- .
sava muito por mim. Ele sempre falava sobre seu trabalho;
só este o interessava. Ele é louco. Minha avó também gosta
dele. Eu não quereria ter nenhum outro como pai" .
.. -.

Parece-me que pela estória dessa mulher podemos ao


menos abordar os fatos psicológicos. A realização desse
pai, a salvação dele e sua individuação está em outro lugar
que não no casamento. Ele parece estar 5lmarrado com sua
vida profissional. A filha aceita isso, entende e não rejeita i)
seu 'pai: até, de certo modo, o admira. Ela tem a impres-l
são de que ele era verdadeiro, fiel a alguma coisa, mesmo II
que ela não o compreenda plenamente.
o CASAMENTO ESTÁ MORTO
VIVA O CASAMENTO! '

No começo desse livro referi-me à 'imagem do tur-


bulento casamento divino de Zeus e Hera. Esses dois não
desfrutaram do chamado casamento feliz; eles não só se
amavam como também se degladiavam usando os meios
mais corruptos. Esse casal pode nos ajudar' a compreender
o casamento sob um novo ponto de vista.

Não se poupam esforços para se esclarecer e com-


preender o casamento contemporâneo assim como tam-
I
bém não se poupam esforços para.,ajudar individualmente
os casais a superarem seus problemas. O que falta, em
I
minha opinião, é uma pesquisa que revelaria sob qual es-
trela, sob que imagens nosso trabalho teórico e prático
:lu1
sobre o casamento realmente está ocorrendo. Se queremos
compreender outras pessoas e nosso próprio trabalho ,
II
.I I ,
I', quais
psicologicamente
fiéis. Deusesmesmo
Pode estamos
é, confirmar-se
antes
servindo,
de tudo,
a quais
que essencial
imagens
estamos esclarecer
somosaa ~~/}\(
servindo
i
I',
i I:' dois senhores, que estamos sendo conduzidos por imagens
;i
Contraditórias e assim causando grande confusão.

Muitas das dores e esforços ao lidar com o casamento


Ilil: contemporâneo são dominados por considerações de bem-
' .'? fe 1°
.estar. ICI'd ade e fatores biológicos. Isso correspon
' de a'
:1:\I 9PVSIÇãoda psicologia contemporânea que é caracterizada
:111
através de um ceticismo profundo, atingindo mesmo a
uma rejeição de algo transcendente.
Muitos profissionais que se preocupam com o ca-
samento, sejam psicólogos ou conselheiros matrimoniais,
têm como meta o chamado casamento normal e feliz, o
relacionamento neurótico entre dois cônjuges mais ou
menos saudáveis. Para atingir essa meta, muito é inves-
\1
tido. São usadas técnicas que supo.stamente ajudam o
casal a se entender melhor física e psicologicamente. É
! \ feita uma tentativa de explicar mecanismos neuróticos de
li\'-
\ ~ se relacionar com o cônjuge, de expor tais mecanismos,
mudá-Ios ou' eliminá-Ios. O casamento é considerado
como uma relação entre duas pessoas que, através de es-
,
.III~!: forços psicológicos e talvez com a ajuda de profissionais,
pode ser moldado em algo feliz e satisfeito.
Todos esses esforços, contudo, não alteram o fato de
que os divórcios continuem a ocorrer e que os casamentos
atuais muitas vezes pareçam estar terrivelmente doentes.
Além do desespero honesto, então, a alteração radical ou
mesmo dissolução dessa instituição é muitas vezes exigida.
A maioria das pessoas espera ser capaz de levar uma vida
conjugal feliz, mas poucos casais são capazes de fazê-Io.
A~sim, levanta-se a questão legítima do quanto não seria
melhor proceder radicalmente e pôr fim ao casamento.
Deste ponto de vista o caso se torna mais sério agora que
muitos dos fatores que mantiveram o casamento, pelo.
menos exteriormente, estão gradativamente desaparecen-
do. Muito poucas pessoas casadas ainda dirigem um
negócio juntos e conseqüentemente poucos compreendem
seu çasamento e o formam como uma sociedade. Mais que
noventa por cento da população que trabalha é empre-
gada. O cuidado dos filhos une os casais por uns vinte .
anos, enquanto que a maioria deles têm que viver juntos
por cinqüenta ou sessenta anos.
A isso deve-se acrescentar que muitos psicólogos são
da opinião de que os pais são fundamentalmente inade-
quados pa~a. criar seus filh~s, especialmente se estão,
como a maIOrIa das pessoas, vIvendo um casamento árduo
e problemático. Cada vez menos fatores políticos, eco-
nômicos e sociais parecem estar vindo em auxílio do
casamento.

Por essa razão o último . suporte remanescente , a


sexualidade, é tão violentamente explorada. Nesta área
encontramos muitos livros que querem ensinar pessoas
, casadas a ter uma vida sexual feliz e plena. Afrodite é en-
carregada de suprir a matéria-prima para o caso do ca-
jl\\:
samento em colapso, e de ajudá-Io a sustentar-se. O ca-
samento é, de fato, um lugar onde a sexualidade muitas
veze~ pode ser vivida intensamente. Recentemente, en-
tretanto, o casamento tem perdido seu monopólio em
relação a isso. Os jovens tornaram-se mais livres sexual-
mente. Cada vez mais eles podem viver sua sexualidade
sem tornar-se maritalmente ligados um ao outro. Todas as
assíduas tentativas de limitar a vida extraconjugal ou
eliminá-Ia através da proibição do concubinato ou arran-
jos similares terminam por falhar miseravelmente. Cada
vez mais é possível aos membros de todas as classes
sociais ter uma vida sexual satisfatória sem se casarem. O
mil
que há apenas vinte anos atrás parecia impossível está hoje
"

estabelecida firmemente; mesmo os chamados jovens de


famílias decentes podem viver juntos tanto quanto lhes
" aprouver sem problemas posteriores.
i
i Além disso está se tornando progressivamente sabido
illlil . que o ca'samento pode ter um efeito inibidor na sexuali-
dade. Para muitas pessoas o casamento significa não o
lugar onde viver a sexualidade, mas antes o lugar da frus-
tração.sexual. Assim, parece que até o último sUporte do
casamentp,. além. de ter filhos, está gradativamente per-
dendo sua eficácia. O casamento concebido sob a imagem
de bem-estar tem se tornado, para muita gente, o maior
desapontamento.

O pseudocasamento feliz inequivocamente terminou.


J1<i
o casamento como uma instituição de bem-estar já não
tem mais justificativa. Os psicólogos que se sentem com-
prometidos com a meta do bem-estar fariam melhor se
realmente tomassem seriamente seu ponto de vista re-
comendando e sugerindo outras formas de viver junt~ ao
invés de despender sua energia tentando manter uma ins-
tituição fundamentalmente impossível com uma porção de
modalidades técnicas de tratamento. Do ponto de vista do
bem-estar, o casamento não é só um paciente, é um pa-
ciente mortalmente doente. "
Cá e lá são feitas tentativas de definir o casamento de
modo novo, usando a relação interpessoal como um ponto
de' partida. O relacionamento interpessoal é hoje algo
como um Deus. E há teólogos que discutem que Deus se
mostra em, ou consiste de relação interpessoal. Mas as
chamadas relações interpessoais podem ser construídas e
tendem a ser vividas fora do casamento. Para uma relação
interpessoal feliz, o casamento parece ser uma base pobre.
Vive-se junto em demasia e os atritos são demasiados.
Na minha prática, tenho feito as seguintes obser-
vaçõe~ dignas de nota: o nível da dificuldade num ca-
samento, a soma de sofrimento, irritação, ódio e frustra-
ção, também os elementos neuróticos e perversos que se
encontram no casamento - tudo issO.não é necessaria-
mente paralelo a uma tendênda em direção à dissolução
do casamento. Isso quer dizer que casamentos aparen-
"temente muito difíceis são muitas vezes claramente viáveis
e realmente continuam até a morte de um dos cônjuges.
Por outro lado, casamentos menos problemáticos, aqueles
que contêm menos patologia, freqüentemente mostram
uma tendência maior para a dissolução; parecem se dis-
solver mais prontamente do que os casamentos mais di-
fíceis. O observador que navega sob a bandeira do bem-
estar tem dificuldade em compreender isso. Sua tendência
é dar um mau prognóstico àqueles casamentos nos quais
aparecem perversões sexuais, relações torcidas e' fenô-
\1
menos semelhantes.
1
1 '1.1'.:
A tenacidade do casamento como instituição, o fato
de que continua a ser popular apesar de sua estrutura
dolorosa torna mais fácil a compreensão se voltamos nos-
sa atenção às imagens que não se relacionam com bem-
estar.
O ponto central no casamento não é o bem-estar ou a
felicidade; e, como esse livro tentou demonstrar, a sal-

homemduas
antes quepessoas
se amam,
que são
estãofelizes e têmsefilhos
tentando juntos,~mas
indivjdu.af..,_ :..b
/~
vação. O casamento não envolve só uma mUlher~um
sua "salvação da alma". Talvez isso soe piegas e anti-
quado. Fora da ansiedade de que elementos religiosos
poderiam falsificar nossa compreensão científica, nos
fechamos a uma compreensão da alma; assim fixamos
diante dos olhos uma imagem de homem que é apenas um
entre muitos. Somos criaturas orientadas não somente em
11111
direção ao bem-estar; somos criaturas cujo comportamen-
to não pode ser simplesmente explicado como uma luta
pela sobrevivência e felicidade, alívio de tensão e conten-
tamento. Não somos meramente Phaeaces. O resultado
disso é que o homem e - o que particularmente nos interes-
sa aqui - uma das mais importantes instituições, o ca-
samento, nos impressiona em geral como doente. O ca-
li, samento é julgado pelas imagens de çem-estar e o resultado
é pobre.
O casamento é definido não só pelas imagens de bem-
estar mas também pelas de salvação. A concepção "até
que a morte os separe" nada tem a ver com bem-estar; vis-
to do ponto de vista do bem-estar, a noção "até a morte"
:It:. não faz sentido. Considerando do ponto de vista de bem-
estar, o casamento está incuravelmente doente. Por isso, ~
,o.
os esforços para expor e remover os chamados neuroticis-.
mos dos cônjuges e do casamento em si mesmo têm só um
val?r limitado; muito do que é visto como doente pelos
apostolos do bem-estar não 6 de forma alguma doente,
e.g., o acima mencionado "sacrifício de uma porção im-
Portante e criativa da personalidade" .
Para pessoas que veneram ao altar do bem-estar o
casamento dirige-se para a doença. E isso é verdade não'só
para elas .. As. estradas ~e salvação são muitas; há tantos t<
caminhos délllihviQl@Çllo qUé3:ntopessoas. r..
-~ caminho de salvação entre--rnü1tos:embora contenha
muitas possibilidades diferentes.
Por essa razão aludi, no início desse livro a muitas
imagens de casamento. Zeus e Hera oferecem uma
imagem, a Sagrada Família outra; há ainda outras e cada
casal tem sua própria balança, sua variação da imagem ..O
casal que é selado pela imagem da Sagrada Família con-
sidera anormais os devotos de Zeus e Hera; para Hera e
Zeus a Sagrada Família pareceria ser um assunto lamen-
tável. OsPenso
culares. meios nos
de salvação
"beatos" sempre
que se foram muito
sentavam parti-...Js
anos no..J
topo de \lma colina a fim de achar sua salvação, ou nas
freiras medievais q~e beijavam as feridas dos l~prosos.
Assim também achamos uma grande riqueza de diferentes
"meios de salvação do casamento", por exemplo o ca-
samento do príncipe consorte onde a esposa reina e o
marido atrás da" cena calmamente serve, ou (, éasamento
da Máfia no qual o marido é um gangster no mundo exter-
no, mas vivencia o casamento "sagrada "família" com sua
mulher e filhos, e muitos outros meios.
Entender as pessoas e suas estruturas sociais exige
uma visão das imagens que estão traba~Ji.~!,ldoem outro
plano. O .fenômeno do casamento não pó"~$.~r compreen-
dido sem se considerar as imagens que lhe dão forma. í
Cada manifestação psicológica precisa ser confrontada
com suas imagens próprias e não com imagens que lhe são
estranhas. As catedrais góticas, se confrontadas com as
imagens idealizadas do mundo :antigo grego parecem inin-
teligíveis ou sem fundamento. Nas páginas anteriores ten-
tei mostrar como agarrar-se a uma imagem inadequada -
. a reprodução -" obscurece as verdadeiras proporções da
s~x':lalidade. A sexualidade, entretanto, é poderosa e ins-
tmtiva; esse meio de.,~ individuação e se 1 simbolismo são
"13R
capazes de' se manter a si mesmos, sejam ou não reco-
nhecidos.
Como pessoas que participam de comunidades cul-
turais, nacionais, religiosas e como cônjuges, criamos e
continuamos a criar as possibilidades de individuação, da
busca de salvação através do casamento. As imagens que
vigoram por trás do casamento assim como o compreen-
demos hoje são várias imagens diferentes de individuação
e salvação. Assim que confrontamos casamentos con-
cretos com outras imagens estranhas a ele - assim como
bem-estar, felicidade ou lar para filhos - o casamento
parece ser sem sentido, murcho, moribundo e mantido
vivodevido a um grande aparato de psicólogos e conse-
lheiros.
O casamento está morto, viva o casamento!

mill'
ti
I,

ii

'::\III~

I,!

1.:1111I11'

II "

,
i"\1 :1\
\\\: I

Wll
:11\ I

Você também pode gostar