Você está na página 1de 6

Psicanálise e Literatura: por que ler James Joyce?

Psychoanalysis and Literature: why to read James Joyce


Marta Regina de Leão D’Agord1

Palavras-chave
James Joyce, psicanálise, projeção, gozo.

Resumo
Quais são as contribuições que a teoria psicanalítica pode encontrar na Literatura? Os escri-
tores seriam psicanalistas avant la lettre? Com o objetivo de contribuir para essas questões,
a autora apresenta um percurso de leitura de três obras de James Joyce, a saber: Dublinenses
(1914), Um retrato do artista quando jovem (1904-1914) e Ulisses (1921). Os temas e o estilo
narrativo do autor são enfocados em um diálogo com conceitos da teoria psicanalítica.

INTRODUÇÃO para cada um da família que a convidou.


Carregada de pacotes, sobe no ônibus ao
No texto a seguir, apresento uma tra- cair da tarde. Durante o trajeto, um homem
jetória de leitura da obra de James Joyce lhe cede lugar. A gentileza masculina e um
(1882-1941), que inicia pela coletânea de leve roçar de um corpo ao seu a deixam en-
contos Dublinenses (1914). Esses contos são levada. Ao chegar à casa da família e ini-
fundamentais por introduzirem os leitores ciar a distribuição dos presentes, falta um
na atmosfera cultural do autor. Os contos pacote, o melhor presente que levava. Ela
apresentam personagens de Dublin, cidade se lembra, então, da gentileza no ônibus. É
de nascimento do autor. Nessas vinte nar- ao leitor que resta concluir. O roçar de um
rativas, crianças e adultos vivem o drama desconhecido a fizera devanear esperanço-
universal da busca de reconhecimento e sa, mas era de outra natureza esse leve to-
seus temores correspondentes, a rejeição e que. Ao final do jantar, a anfitriã ao piano,
a exclusão. Maria canta uma velha canção da infância
Uma dessas histórias, “Argila”, narra um do anfitrião. Emocionados, ninguém faz
dia na vida da antiga babá Maria. Ela ago- notar a Maria que ela repetiu a segunda es-
ra trabalha como lavadeira e passadeira, trofe. Dois equívocos, dois atos, a segunda
quando é convidada para um chá na casa estrofe repetida, o presente furtado.
da família onde trabalhara há muito anos. Outro conto, “Os mortos”, nos apresen-
A família se dispersou, é um dos irmãos, ta a narrativa de um baile em que questões
casado e com filhos, que a convida. O con- políticas e religiosas posicionam os perso-
to descreve toda a preparação para esse en- nagens em cena. Quando, ao final da noite,
contro. Ela precisa pedir licença para sair um dos convidados entoa com voz rou-
mais cedo do serviço; no caminho para a ca uma ária em irlandês arcaico, que diz:
parada de ônibus, ela compra doces e tortas “Ó, a chuva cai em meus densos cabelos/O

1 Psicóloga, Psicanalista, Doutora em Psicologia, Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicolo-


gia Social e Institucional e do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia da
UFRGS.

Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 34 – p. 111-116 – Dezembro. 2010 111


Psicanálise e Literatura: por que ler James Joyce?

rocio orvalha a minha pele/Meu filho jaz Para o leitor, os diálogos são momentos
enregelado...” (JOYCE, 2008, p. 205). Essa de objetividade que o situam nos aconteci-
canção é epifânica para Gretta, ao lhe fa- mentos da vida do personagem. Se o leitor
zer recordar o primeiro amor de sua vida. contasse apenas com a narrativa onírica,
Imediatamente, esse estado enlevado de não conseguiria acompanhar o contexto em
Gretta produz em seu marido, Gabriel, que essa narrativa se situa.
um renascimento de seu amor por Gretta. Poderíamos fazer um exercício de trans-
Assim, por motivos diferentes, eles vivem posição desses dois planos de narrativa para
uma epifania, ou melhor, cada um vive a a nossa experiência cotidiana. Imaginemos
sua epifania: ela por ouvir a canção, ele por o que seria dos nossos pensamentos se não
olhar para seu rosto ruborizado, seus olhos os expressássemos em palavras e não con-
brilhantes e seu estado silencioso: efeito da tássemos com a alteridade (da tela, do papel,
canção. do outro).
Enfim, nos contos de Dublinenses, os Teria sido através da escrita desse ro-
personagens estão aprisionados por con- mance que Joyce teria conseguido transpor
venções sociais e religiosas. Mas, apesar associações de ideias em literatura? Pois a
dessa atmosfera social de aprisionamento, alteridade exige coordenar em uma sinta-
algo do desejo dos sujeitos sutilmente se xe as ideias que fluem. E as ideias, os pen-
deixa entrever. Joyce sabia que o desejo é samentos, não cessam de fluir. O romance
veladamente manifesto na fala dirigida ao mostra esse contraste. Seja o diálogo que
outro. interrompe o fluxo de pensamento, seja o
fluxo de pensamento que tende a se afastar
O ROMANCE DE FORMAÇÃO do diálogo com a alteridade.
Depois dessa parte analítica, uma visão
A obra Um retrato do artista quando geral da obra, formada por cinco capítulos
jovem, datada 1904-1914, indica dez anos organizados cronologicamente da infância à
de trabalho sobre o texto. Nessa obra, Joyce juventude. No primeiro capítulo, até a forma
faz uma narrativa na terceira pessoa, mas o da linguagem é a de uma criança pequena.
personagem, Stephen Dedalus, é inspirado No segundo capítulo, encontramos o perso-
nas suas experiências da infância à juven- nagem em férias e seus pais decidem que ele
tude. A narrativa apresenta-se ora como estudará com os jesuítas no nível secundá-
a narração do que acontece com o perso- rio. Ao final desse capítulo, ele está com 16
nagem, ora como um diário. Em outros anos, é aluno brilhante e dedicado às ativi-
momentos, ainda, aparecem diálogos do dades religiosas. No terceiro capítulo, é nar-
personagem principal com seus colegas e rado seu drama de consciência entre o dese-
professores. jo e o pecado, sente-se culpado por desejar
Mas, na maior parte do tempo, a nar- e condenado ao inferno. Penitencia-se. Mas
rativa toma a forma de um fluxo de pen- ainda se sente culpado.
samentos, associação de ideias, palavras O quarto capítulo narra o início de sua
e imagens, atingindo uma forma onírica crise de fé, justamente após ser convidado
que é interrompida por diálogos. O leitor a seguir a vida religiosa. Ele se liberta da
acompanha dois planos narrativos que se fé quando é escolhido. É no momento em
sobrepõem: de um lado, o fluxo de pensa- que o reitor lhe confere um reconhecimen-
mentos do personagem principal, de outro to como uma pessoa especial que pode vir a
lado, os diálogos. compartilhar a vida religiosa jesuítica, que

112 Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 34 – p. 111-116 – Dezembro. 2010


Psicanálise e Literatura: por que ler James Joyce?

ele se sente distante em relação a esse pro- tânico. A minha leitura de Um retrato do
jeto de vida. É nesse momento que Stephen artista quando jovem me faz refletir so-
Dedalus vive uma epifania, a sua vocação de bre a aproximação da igreja com o poder
artífice das palavras lhe é revelada: “agora, secular, e como o catolicismo mantinha e
como nunca antes, seu nome lhe parecia ainda mantém a capacidade de aprisionar
uma profecia” (JOYCE, 2006, p. 180). corações e mentes. Uma idade média que
O quinto capítulo mostra Stephen dia- se prolongava no despertar para o século
logando com seus colegas universitários, XX na Irlanda de Joyce, e que, no Brasil,
distanciado dos seus familiares devido a sua se prolongou durante o século XX. A he-
crise de fé. Já tendo escolhido a arte como resia é tema que percorre Um retrato do
forma de libertar o espírito, ele decide aban- artista quando jovem e que é retomada
donar a ilha da Irlanda e partir para o conti- em Ulisses através de um projeto maior, a
nente europeu. helenização, contra a dominação inglesa
Nesse quinto capítulo, a passagem cen- da Irlanda, o retorno aos clássicos gregos.
tral é aquela do diálogo com seu colega Por isso a correspondência de cada capí-
Cranly. Stephen lhe conta que na noite an- tulo de Ulisses com os temas da Odisseia
terior discutira em casa porque a mãe não de Homero.
aceitava que ele não participasse do ritual
da Páscoa. Cranly tenta convencê-lo a co- O ESTILO NARRATIVO EM ULISSES
mungar mesmo sem ter fé, e assim se re-
conciliar com a mãe. E ainda argumenta Sobre o estilo narrativo de Joyce, o que
que, se em função da sua crise de fé, a hós- se encontrava incipiente ou hesitante em
tia se tornara apenas um pão, não haveria Um retrato do artista quando jovem, será
então problemas. Mas Stephen mantém-se consolidado em Ulisses. O fluxo de pen-
em dúvida, como poderia não ser conde- samentos, antes restrito ao personagem
nado aquele que comunga sem fé? Durante principal, será agora ampliado para diver-
o diálogo, a defesa, por Cranly, da reconci- sos personagens: começando pelo jovem
liação com a mãe, faz Stephen devanear em Stephen Dedalus - que retorna do exílio no
torno da imagem da mãe de Cranly, seria continente devido à doença da mãe; Leo-
jovem, seria madura? pold Bloom, o personagem central; Molly
E quanto ao nome do personagem? Ste- Bloom e outros tantos personagens que as-
phanous significa guirlanda em grego e as sumem a voz narrativa ao longo dos dezoi-
guirlandas são imagens que se formaram to capítulos da obra Ulisses.
em um devaneio do personagem durante O mais expressivo nessa obra de Joyce
uma caminhada pela praia. Dedalus, na mi- é que não encontramos apenas a oposição
tologia grega, é o nome do artífice (artista) entre fluxo de pensamentos e diálogos, mas
que constrói asas para fugir da ilha de Creta também a oposição entre estilos ou modo
e se libertar. Essas escolhas são significati- de pensar. E, para cada narrador, um esti-
vas, pois o personagem Stephen “voa” para lo. Assim como em Um retrato do artista
a liberdade no continente europeu, abando- quando jovem havia um modo infantil de
nando por um par de anos a Irlanda. falar que era narrado de forma a se ade-
A aproximação ao mundo grego re- quar à idade do narrador quando criança,
presenta a busca pela libertação do espí- agora será o modo de vida de cada perso-
rito da dominação dos corações e mentes nagem-narrador que dará forma ao estilo
dos irlandeses pelo poder católico e bri- narrativo.

Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 34 – p. 111-116 – Dezembro. 2010 113


Psicanálise e Literatura: por que ler James Joyce?

Assim, o ponto de vista será ampliado que ele não pode saber. Isso que penso, os
em diversas vozes que vão narrar, cada uma não-ditos, não seriam projeções? As proje-
por sua vez, suas preocupações, seu cotidia- ções são imagens que o sujeito forma de si
no, tendo como pano de fundo a cidade de mesmo, mas desconhece, ou melhor, conhe-
Dublin, tal como é percorrida por Leopold ce desconhecendo, pois as reconhece apenas
Bloom naquele 16 de junho de 1904. O per- nos outros.
curso de Bloom é o fio condutor que reúne Uma projeção é, portanto, uma forma-
cada um dos diversos narradores, e o princi- ção imagética que transita da imagem que o
pal deles é o próprio Bloom. sujeito tem de si para a imagem dos outros
A maior riqueza dessa obra é o contras- e retorna como a imagem que o sujeito pro-
te entre diversos planos narrativos: temos jeta (imagina) que os outros poderiam ima-
a forma narrativa da criança, dos trabalha- ginar dele mesmo. É uma narrativa na qual
dores, dos estudantes, da moça solteira, da alguém imagina o que os outros imaginam
senhora casada, cada uma dessas narrativas a partir do que esse alguém imagina de si
e diálogos porta um estilo de linguagem. A mesmo.
da moça solteira no capítulo treze contrasta, A formação de uma projeção ocorre em
por sua delicadeza, com a rudeza do diálogo uma sequência de planos narrativos encai-
dos trabalhadores em uma taverna no capí- xados um sobre o outro. Essa formação pro-
tulo doze. jetiva acontece quando alguém pensa que
E, mais do que isso, cada uma dessas sabe o que o outro pensa e assim imagina:
narrativas também contrasta as diferentes “ele sabe que eu sei que ele sabe que...”. Esse
impressões sobre o personagem Bloom, recobrimento de um plano sobre o outro po-
cada um deles narra como percebe Bloom; derá tomar a forma de encaixes parciais ou
na taverna, Bloom é o estrangeiro e excluí- totais. É de encaixes parciais que vivemos, e
do, tratado com violência. Na praia, em um Joyce cria seus personagens sem desconhe-
encontro de olhares, mas sem diálogos, a cer essa experiência tão universal.
moça solteira devaneia com aquele homem
que lhe parece tão encantador e poderia ser O PAI COMO FICÇÃO
um futuro marido.
Enfim, o terceiro e mais criativo aspecto Uma referência filosófica do persona-
desse contraste entre planos narrativos en- gem Stephen Dedalus é Tomás de Aquino.
volve o não-dito nos diálogos. Há um não- Em Um retrato do artista quando jovem, esse
dito como corrente de pensamentos dos nar- filósofo é uma referência estética para o ar-
radores, sempre fluindo. Apesar do diálogo tista: “Belas são as coisas que agradam aos
entre dois narradores, mantém-se um fluxo olhos” e “Bom é aquilo para o qual tende o
narrativo íntimo de cada um dos interlocu- desejo” (JOYCE, 2006, p. 197).
tores, ideias que eles não se permitem ou Em Ulisses, essa referência a Aquino se
não podem enunciar aos seus interlocuto- amplia, enfocando a distinção entre o que é
res. As narrativas oferecem aos leitores uma verdadeiro e o que é fictício. Uma referência
visibilidade do que está sendo pensado pelo a Tomás de Aquino vem seguida, ironica-
narrador, mas não dito interlocutor. mente, de uma alusão à psicanálise. Stephen
A teoria psicanalítica, através do concei- comenta que o que o filósofo “escreve sobre
to de projeção, analisa o campo imaginário o incesto é de um ponto de vista diferente
nos não-ditos. Se o que não pode ser dito ao do da nova escola vienense” (JOYCE, 1983,
outro é o que penso que sei sobre ele, mas p. 240). A essa referência ao incesto segue-

114 Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 34 – p. 111-116 – Dezembro. 2010


Psicanálise e Literatura: por que ler James Joyce?

se um discurso de Stephen, na biblioteca, mas pelos significantes que os diferenciam:


sobre o que é um pai e uma mãe. “O pai é homem e mulher.
um mal necessário”, a essa primeira afirma- Enfim, a obra de Joyce desafia os psica-
ção segue-se uma consideração sobre o pai nalistas a reinventarem conceitos. Em espe-
como mistério e incertitude, “porque a gera- cial o conceito de gozo. É importante con-
ção consciente é desconhecida ao homem” siderar que o gozo se relaciona ao riso, por
(JOYCE, 1983, p. 242). Em outras palavras, exemplo, o riso que os chistes provocam. E
Stephen se refere à clássica oposição entre esse riso nada mais é do que um gozo com as
Pater incertus e mater certissima. palavras. É desse gozo com as palavras que a
Enquanto o “Amor matris, genitivo sub- obra de Joyce é um testemunho.
jetivo e objetivo, pode ser a só coisa verda-
deira na vida” (JOYCE, 1983, p. 242). É de
uma referência à verdade como oriunda dos Keywords
sentidos de que trata Stephen, em uma arti- James Joyce, psychoanalysis, projection,
culação com a filosofia de Tomás de Aquino, enjoyment.
citada pelo personagem Stephen em Um re-
trato do artista quando jovem. Em resumo, Abstract
se a mãe é conhecida pelos sentidos, ela é What are the contributions to the
verdadeira; enquanto “a paternidade pode psychoanalytic theory that can be found
ser uma ficção legal” (JOYCE, 1983, p. 243). in the literature? The writers would be
Assim, a mãe é verdadeira, porque a re- psychoanalysts avant la lettre? Aiming to
lação de maternidade pode ser testemunha- contribute to these issues, the author presents
da pelos sentidos; já o pai é ficção, porque a a pathway of the reading of three works of
relação de paternidade depende não da cer- James Joyce, namely: Dubliners (1914), A
teza sensível, mas das palavras. Mas Joyce Portrait of the Artist as a Young Man (1914)
não recusa o poder da ficção, das palavras. and Ulisses (1921). The themes and narrative
Pelo contrário, seu projeto é justamente o de style of that author are focused in a dialogue
ser um artífice das palavras. with concepts of the psychoanalytic theory.
O ser humano não tem como não viver
na ficção, no mundo das palavras. Mas essa
ficção revela que algo foi perdido. Joyce tem
consciência dessa perda quando, lucida- Referências
mente, afirma sobre Adão: “Antes da queda,
Adão trepava, mas não gozava” (JOYCE,
1983, p. 60). JOYCE, J. Ulisses. Tradução de Antonio Houaiss. São
Essa observação do personagem Stephen Paulo: Abril Cultural, 1983.
Dedalus mostra que antes da queda, Adão _________. Um retrato do artista quando jovem. Tra-
não desejava porque nada havia sido perdi- dução de Bernardina da Silveira Pinheiro. Rio de Ja-
do. É a expulsão do paraíso que lança Adão neiro: Objetiva, 2006.
no mundo do gozo. E, seguindo por essa me- _________. Dublinenses. Tradução de Hamilton Tre-
táfora adâmica, de agora em diante, homem visan. 12. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
e mulher vão gozar da diferença sexual. Eles 2008.
podem gozar dessa diferença porque vivem
na ficção. Eles gozam da diferença, mas essa
diferença não se expressa anatomicamente,

Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 34 – p. 111-116 – Dezembro. 2010 115


Psicanálise e Literatura: por que ler James Joyce?

Tramitação

Recebido: 29.09.2010
Aprovado: 23.11.2010
Nome da autora:
Marta Regina de Leão D’Agord
Endereço: Rua Riveira, 600
90670-160, Porto Alegre, RS
E-mail: mdagord@terra.com.br

116 Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 34 – p. 111-116 – Dezembro. 2010

Você também pode gostar