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Carolina Rosa

INTRODUÇÃO AO DIREITO II
Sebenta 2ª Frequência

17ª LIÇÃO
SUMÁRIO:
A metodonomologia (e a concorrência de normas no tempo)

1. Preliminares: o objeto fundamental da metodonomologia.


2. As projeções metodológicas do pensamento jurídico até ao fim do século XVIII
3. Ideias fundamentais sobre algumas das mais importantes orientações
metodonomológicas desde o início do séc. XIX:
a. As orientações teoréticas: positivismo exegético (École de l'exégèse) e
positivismo sistemático-conceitual (Begriffsjurisprudenz): o "método jurídico"
b. As orientações práticas:
i. A decisão concreta como o "centro de gravidade" da problemática
metodológico-jurídica
ii. Contributos mais relevantes:
1. A "Livre Investigação Científica do Direito"
2. O "Movimento do Direito Livre"
3. A "Jurisprudência dos Interesses"
4. A superação da "Jurisprudência dos Interesses"

PRELIMINARES: o objeto fundamental da metodonomologia – juízo decisório

A metodologia jurídica ou a metodonomologia tem por objeto a prático-


normativamente racionalizada realização judicativo-decisória do direito. Dizendo,
portanto, respeito ao caminho (odos) racionalizantemente (logos) percorrida pela
decisão judicativa (nomos) para que in concreto se realize a intenção prático-normativa
e, portanto, fundamentadamente regulativa do direito (a meta circunstancialmente
visada).

O termo metodonomologia compreende os conceitos de logos (a razão, o


pensamento, o discurso), odos (o caminho, o itinerário), meta (o fim, a meta, o que está
ao lado ou além) e nomos (o direito, aqui entendido como validade intencional de
realização concreta através de juízos decisórios). Explorando as virtualidades

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combinatórias dos elementos aduzidos, podemos entretecer uma rede semântica na qual
avultam as ideias de método, de metodologia e de metodonomologia.

Ora, a metodonomologia tem, para os juristas, uma importância decisiva, porque


o direito é uma tarefa problematicamente constituenda. Além do mais, o processo de
integração europeia faz, por um lado, com que não tenha grande pertinência uma
formação jurídica exclusivamente radicada numa consideração do direito positivo
nacional e, por outro, reforça a importância da reflexão preocupada em determinar o
sentido do direito e em apurar uma orientação metodológica que permita realizar
judicativo-decisoriamente aquele sentido.

Podemos resumir tudo numa pergunta: como deverá mobilizar-se um


determinado corte do sistema jurídico para que possa prático-normativamente solucionar-
se um certo problema jurídico concreto?

É este o objeto da metodonomologia, razão por que pode concluir-se que os


sujeitos a quem está confiada a decisão judicativa de específicas controvérsias
juridicamente relevantes só cumprirão a sua tarefa se lograrem rever-se na máxima nos
scimus quia lex bona est, modo quis ea utatur legitime.

Além do mais, daqui se depreende também que a metodonomologia não tem a


ver com a teorética qualificação de certos conhecimentos (de caráter empírico ou
normativo) como verdadeiros, mas com a tarefa prática de reconstituinte mobilização,
ou mesmo da inovadora constituição, no iter discursivo conducente à decisão judicativa
dos respetivos critérios-fundamentos.

Dissemos já: o direito realiza-se através dos juízos decisórios – numa proposta
que procura superar tanto o racionalismo formal extremo, como o decisionismo
voluntarista e irracional.

Nesta categoria que dissemos ser o objeto da metodonomologia distinguem-se,


então, duas dimensões:

• uma dimensão voluntarista, que decorre da decisão – uma vez que esta é sempre
o resultado de um poder, o fruto de uma voluntas, de um querer;

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• e uma dimensão racional, associada à ideia de juízo, que vai agora entendido em
sentido material, como juízo prático-normativo ou de fundamentação.

Ou seja, é necessário um juízo, ou ponderação prudencial de realização concreta


orientada por uma fundamentação normativamente adequada e circunstancialmente
pertinente, mediante a convocação dos argumentos ocorrentes. Estes argumentos são
fundamentos de significação contextual e de reconhecida validade numa pressuposição
intencional.

Por fim, compreenda-se que, no discurso jurídico, metodologicamente


intencionado, há um tempo para discutir, mas também para decidir, o que concorre para
desvelar a estrutura intencionalmente simbólica do mencionado juízo decisório, na exata
medida em que só com ele se fecha o círculo heurístico da discussão do caso, e que,
portanto, plasticamente se desenha como um anel espiralado, composto por aquelas suas
duas dimensões (a concretamente centrada problematização judicativa e a
normativamente polarizada fundamentação discursiva), que, a posteriori, se hão-de
revelar perfeitamente complementares e reciprocamente ajustadas.

Os problemas cardeais da metodologia jurídica

São dois os problemas cardeias da metodologia jurídica:

• Disquisição da “Racionalidade”
• E a elaboração do correspondente “modelo metódico”

RACIONALIDADE

O problema da racionalidade pode ser desenvolvido como o problema da disquisição


da racionalidade, pré-ordenada à fundamentação da concludência discursiva do juízo
decisório, em consonância intencional com as prático-problematicamente radicadas e
mimético-poieticamente excogitadas – e, portanto, analogicamente constituendas –
exigências que inervam o específico sentido que pressuponentemente se tiver
reconhecido ao direito.

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Em suma, podemos dizer que a racionalidade traduz a relação entre certa posição,
conclusão, ação, decisão e certos pressupostos materiais ou formais, que a sustentam
discursivamente, conferindo-lhe um sentido, explicando-a ou justificando-a.

O MODELO METÓDICO

O problema da elaboração modelo metódico tem a ver com o conjunto de


operações reflexivas, determinado por aquela racionalidade, a que importa submeter os
constituídos e/ou constituendos fundamentos/critérios jurídicos, com o objetivo de
testar a respetiva prestabilidade para a normativo-judicativamente adequada resolução
de cada caso decidendo, e que, por isso mesmo, é co - implicado pelos dois polos que
assim dialeticamente se autonomizam pela concreta quaestio disputata e pelo corpus
iuris vigente.

A metodonomologia é, portanto, o caminho reflexivo racionalmente percorrido


pelos juristas (-decidentes) para alcançar o seu objetivo – a prático-normativamente
adequada resolução judicativa dos concretos caos-problemas que devam solucionar.

Impõe-se, então, a questão: quais as operações reflexivas que o jurista tem de


empreender, ao longo do percurso que culmina no almejado juízo-decisório sobre o caso
decidendo? Com efeito, compreende-se que o método de realização do direito
compreende dois momentos que se encontram interligados: o da questão-de-facto e o
da questão-de-direito.

Quanto à questão-de-facto, importa: a determinação do âmbito de relevância jurídica


do caso - partindo do caso, o jurista, na pressuposição do sistema, vai apurar a relevância
jurídica do caso e recortar o respetivo âmbito, isto é, vai determinar se o caso coloca uma
questão de direito e quais entre os factos que o compõem têm relevo jurídico,
enquadrando o caso num campo dogmático (problema da qualificação); e a comprovação
desse âmbito de relevância – trata-se do problema da prova, não basta alegar os factos,
sendo necessário que sejam provados, entendendo-se a prova, não como uma
demonstração científica de verdade teorética e sim enquanto comprovação de uma
verdade intersubjetivamente significante, uma verdade prática ou para efeitos de
realização judicativo-decisória da normatividade jurídica.
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Já a questão-de-direito, deverá ser considerada, primeiro, em abstrato e, depois, em


concreto. Assim, em abstrato: o jurista, iluminado pelas circunstâncias concretas – pelo
mérito material do caso decidendo – dirige-se ao sistema para determinar qual o critério
hipoteticamente aplicável de modo adequado ao problema em apreço; para, depois,
proceder à interpretação da norma mobilizada, pertencendo, porém, a interpretação ao
momento seguinte, porque só pode fazer-se em concreto. Em concreto, resta a
experimentação propriamente dita do critério hipoteticamente aventado como
adequado para o caso, a fim de infirmar ou confirmar essa sua justeza – para isso, deve
cotejar o problema resolvido pela norma, com o problema que tem diante de si,
atendendo aos respetivos âmbitos materiais de relevância, à teleologia e ao fundamento
do critério normativo. É neste momento que o juiz vai proferir o juízo decisório que põe
fim à controvérsia.

IDEIAS FUNDAMENTAIS SOBRE ALGUMAS DAS MAIS IMPORTANTES ORIENTAÇÕES


METODONOMOLÓGICAS DESDE O INÍCIO DO SÉC. XIX

ORIENTAÇÕES METODONOMOLÓGICAS ATÉ AO SÉCULO XIX – páginas 760 a 763 do manual

No nosso horizonte geográfico-cultural, afirmaram-se, sucessivamente, até ao


positivismo jurídico, três modelos dominantes de racionalidade:

• uma racionalidade retórico-prudencial em Roma, que o inucleou o juízo


metódico/metodológico em contextualmente determinadas validades
comunitárias;
• uma outra hermenêutico-dialética, na Idade Média, que concorreu para o centrar
em textos de autoridades igualmente contextualizados;
• e, finalmente, axiomático-dedutiva, com o normativismo moderno, que de todo
o perdeu de vista ao absolutizar descontextualizados sistemas (epistemo-)
logicamente estruturados de normas gerais, abstratas e formais.

E, ao longo deste extenso percurso histórico, manifestaram-se, consonantemente,


três tipos de pensamentos jurídicos metódico/metodologicamente comprometidos:

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• Em primeiro lugar, o casuísmo jurisprudencial romano, atento à realidade


prática, e colimado ao aequum et bonum, que ia constituindo o corpus iuris
por mediação da resolução dos problemas concretos, não tematizou o seu
específico modus operandi, que apenas pode ser considerado de uma
perspetiva aposterioristicamente descritiva.
• Depois, a hermenêutica jurisprudencial medieval elaborou o direito a partir de
textos (Corpus Iuris Civilis e Corpus Iuris Canonici) referidos ao contexto
cultural em que a normatividade jurídica encontrava o seu fundamento,
dialeticamente mobilizados pró e contra, e interpretados, consoante a
quaestio disputata, ora em termos precipuamente filológico-gramaticais
(comprehensio ou interpretatio legis), ora mesmo reconstitutivamente
inovadores (por recurso à experiencial e analogicamente polarizada
interpretatio iuris), segundo o método escolástico.
• Por fim, os juristas modernos des-consideraram quer o caso
circunstancialmente decidendo, quer o contexto de emergência do texto
interpretando e preocuparam-se em elaborar antecipadamente sistemas
racionalmente abstratos de normas que seriam posteriormente aplicadas de
acordo com o teorético-dogmaticamente prescrito método silogístico-
subsuntivo.

ROMA
•Modelo de racionalidade: Retórico-prudencial
•Tipos de pensamento juridico metodologicamente comprometidos: Casuísmo jurisprudencial

IDADE MÉDIA
•Modelo de racionalidade: Hermenêutico - dialética
•Tipos de pensamento juridico metodologicamente comprometidos: Hermenêutica jurisprudencial

MODERNIDADE
•Modelo de racionalidade: Axiomático-dedutiva
•Tipos de pensamento juridico metodologicamente comprometidos: Método silogismo-subsuntivo

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ORIENTAÇÕES METODONOMOLÓGICAS DESDE O INÍCIO DO SÉCULO XIX.

Orientações teoréticas

No normativismo moderno-iluminista, estava já inscrita a “estrutura genética” do


subsequente positivismo jurídico, foi este último que definitivamente alterou o quadro
pré-existente. O legalismo identificador do revolucionário Estado de direito demoliberal
francês e o historicismo emblematicamente assumido pela coetânea cultura alemã
concorreram para reduzir o direito a mero objeto-dado (a “simples objeto” – suscetível de
ser teorético-cognitivamente investigado – vertido num “dado” – empírico-
analiticamente acessível) e determinaram a emergência de uma corrente metódico-
jurídica de caráter teorético, no âmbito da qual oportunamente distinguiremos:

 uma orientação francesa (Escola da exegese)


 e uma outra alemã (a Jurisprudência dos conceitos).

Comecemos por aludir às notas genericamente tipificadoras da referida corrente


teorética?

Desta perspetiva, o direito apresentava-se ao jurista (e ao conjunto dos seus


destinatários) como um heterónomo objeto de conhecimento. O sistema jurídico (legal)
era uma entidade racionalmente diferenciada, unitariamente consistente (sem antinomias
ou contradições), universalmente pleno (sem lacunas) e problematicamente
autossuficiente (fechado).

Por seu turno, o jurista que subscrevesse este modelo prosseguia não uma
validade prática, mas uma mera validade lógica. Com efeito, a sua preocupação era uma
de verdade e, portanto, teorético-cognitiva, e não axiológica, precipitada num
pensamento sintático e não pragmático, de todo alheio à modelante projeção de uma
específica exigência intencional numa histórico-concreta situação problemática e apenas
centrado na apreensão de um totalmente descontextualizado significado textual.

Por que razão procedia o jurista assim?

Para depois de conhecido o direito(-lei) o aplicar em termos racionalmente


objetivos e cientificamente neutrais:

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 num primeiro momento, o que importava conhecer era a legalidade;


 num segundo momento, independente daqueloutro, seria, enquanto
género, aplicada a casos compreendidos como espécies.

Com efeito, estávamos perante uma aplicação de caráter estritamente lógico-


dedutivo:

 o direito era a premissa maior;


 os factos constituíam a menor;
 e da lógico-formal articulação de ambas resultava, tautologicamente, a
solução.

O método jurídico pretendia transformar o problema prático do direito num


problema teorético: da perspetiva deste modelo de pensamento, o jurista(-decidente)
resolveria os problemas práticos, conhecendo o direito(-legalidade) pré-disponibilizado
pelas instâncias com legitimidade política para o criarem. Assim, o logos mobilizado pelo
referido jurista era, portanto, teorético, numa dupla aceção: que na forma de conhecer
o mencionado direito, pois o que ele pretendia era apreender a lei na sua verdade; quer
na forma de o aplicar, nos termos lógico-aléticos do silogismo judiciário (páginas 766 a
775 do manual).

Vimos atrás as características genéricas das correntes metódicas-jurídicas de orientação


teorética. Importa sublinhar agora que, nesse âmbito, se afirmaram duas linhas
principais, referimo-nos à Escola da exegese (École de l´exége) francesa e à jurisprudência
dos conceitos (Begriffsjurisprudenz), alemã.

O POSITIVISMO EXEGÉTICO – ESCOLA DE EXEGESE – páginas 775 a 780 do manual

A Escola da Exegese ganhou corpo na sequência da codificação pós-revolucionária


– que, por seu turno, havia sido antecedida pela positivação do tipicamente moderno
jusracionalismo lógico-sistemático.

Como sabemos, as codificações da França saída da Revolução pretendiam-se


obras definitivas (lembre-se que o voluntarismo da época sustentou a possibilidade de se

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condensar, racional, sistemática e imutavelmente, num código, todo o pré-determinado


domínio juridico-dogmático: o Direito Civil estaria todo no Code Civil…).

Neste sentido, impunha-se aos juristas conhecer antes a lei codificada (e era
importante esta compreensão da lei sub specie codicis, porque, de acordo com a ideia
postulada, levava recta via a pensar o direito como um sistema autossuficiente, que, pelo
menos tendencialmente, estava todo, fechado e sem contradições, no código que
sistematizava), para “depois” a aplicarem lógico-dedutivamente.

Assim, a tarefa do jurista consistia na exegese (donde a denominação da escola),


isto é, na interpretação, basicamente filológico-gramatical e observando certas
exigências racionais, da referida lei codificada. Com efeito, assente no comentário
filológico-gramatical, o discurso exegético garante a permanência da autoridade do texto
comentado, mas não deixa menos de manter o texto à distância – afinal o pressuposto
da intencionada sacralização do próprio texto compreendido como ícone.

O objetivo e os pressupostos mencionados levavam os juristas a partir da letra


da lei (o corpus da norma interpretanda), que era filológico-gramaticalmente analisada.
Todavia, a natural polissemia das palavras e a incontornável historicidade da vida
forçavam, por vezes, os juristas a arriscar algo mais.

Recorria-se, nessas emergências, ao espírito da lei - a decisiva importância do


texto não se projetou, portanto, na mera relevância da letra – ao tempo obviamente
identificado coma vontade do legislador. Ora, a vontade do legislador consistia na
intenção histórico-subjetiva que o titular do poder legislativo havia tido ao criar o direito(-
lei), e, para a apurar, era mister compulsar os trabalhos preparatórios e, complementar
ou subsidiariamente, inserir a norma interpretanda no sistema instituído pelo código, de
que ela fazia parte, por mediação de argumentos puramente lógico-formais, pois
postulava-se que o legislador era lógico formalmente coerente.

Ou seja: a interpretação reduzia-se ao apuramento do sentido da lei codificada


através da análise gramatical da sua letra, operação esta, eventualmente, completada pela
estrita consideração do seu espírito, em que se tratava tão-somente de averiguar a vontade
do legislador referida a um sistema lógico-racionalmente consistente.

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Por fim, note-se que se envolveu, ainda, à época, o pensamento jurídico francês
na tarefa de sistematizar o material disponibilizado pela interpretação. No entanto, não
deixava, então, de muito clara e significativamente, nas palavras de IHERING de separar-
se aquela jurisprudência superior (a interpretação e a sistematização, confiada aos
juristas-cientistas) da jurisprudência inferior (da aplicação, intencionalmente
desvalorizada e cometida aos juristas práticos).

O POSITIVISMO SISTEMÁTICO-CONCEITUAL – JURISPRUDÊNCIA DOS CONCEITOS.

Na linha de uma centrada numa intuição gnoseológica, LEOPOLD VON RANKE


esboçou a sua teoria da natureza do Estado como instância portadora da história e da
política, tendo, por seu turno, o autor-símbolo, da Escola Histórica vindo a sublinhar, na
esfera do direito: que o seu específico problema não era de dedução ou indução, mas de
adequada compreensão do próprio direito, através da sua, como que física, apreensão.

Para a Escola Histórica, o direito era um produto histórico do “espírito do povo”,


donde, a oposição de SAVIGNY à codificação e, como corolário, tanto a elaboração do
código civil alemão de uma perspetiva bem diferente daquela que estivera na base do
código civil francês, bem como a entrada em vigor do BGB (código civil alemão) quase
cem anos volvidos sobre a do Code Napoleón.

Além do mais, o lugar de destaque ocupado em França pelo legislador deveria


pertencer, na Alemanha, segundo SAVIGNY, à “ciência do direito”: a normatividade
jurídica estava imersa nas instituições culturais do povo e manifestava-se, portanto, como
uma objetividade que os juristas deveriam apurar cognitivamente.

À ciência do direito reconhecia SAVIGNY três dimensões:

• Dimensão histórica
• Dimensão sistemática
• Dimensão prático-normativa

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DIMENSÃO DIMENSÃO DIMENSÃO


HISTÓRICA SISTEMÁTICA PRÁTICO-
•Uma DIMENSÃO HISTÓRICA, •Uma outra, DIMENSÃO NORMATIVA
romanticamente voltada para o SISTEMÁTICA (ou “filosófica”)
passado, que esteve na base da que determinou a •Finalmente, uma DIMENSÃO
procura do direito germânico, compreensão do direito como PRÁTICO-NORMATIVA, que
consonante com o espírito uma unidade orgânica de traduziu a autonomização do
prussiano, basicamente em instituições com um sentido momento da aplicação
textos de direito romano, e histórico-social coerente. concreta.
contribuiu para instaurar um
método puramente exegético,
porque centrado na
interpretação dos mencionados
textos-documentos.

Com efeito, que as aludidas dimensões histórica e sistemática abriam


potencialmente o direito a uma certa ideia de evolução. No entanto, se acrescentarmos
que elas eram sobretudo entendidas como a base requerida por uma almejada
elaboração dogmática, logo nos damos conta da como que natural degenerescência da
Escola Histórica na “Jurisprudência dos Conceitos”.

Neste sentido, note-se que foi o idealismo alemão de matriz kantiana o principal
responsável pela redução da juridicidade a um desvitalizado sistema conceitual que,
portanto, “representa uma abreviação da realidade”. A ratio essendi do direito era agora
identificada com conceitos, aparecendo o “texto legal” como mero “ponto de partida
empírico (a ratio cognoscendi)” para o respetivo apuramento. Se SAVIGNY, a partir do
sistema jurídico positivo, ainda compreendia o direito como um sistema orgânico de
instituições, o seu discípulo PUCHTA inucleou-o em estruturas lógico-conceituais – a
famosa “genealogia dos conceitos” não era outra coisa senão a articulação (lógico-
dedutivamente) encadeada das mencionadas estruturas elementares do pensamento,
em termos geometricamente configuradores de uma pirâmide que poderia subir-se até
ao princípio matricial. Por conseguinte, o pensamento deste Autor projetou-se
metodicamente na proposta de uma fundamentação científica – axiomático-

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dedutivamente polarizada e lógicodedutivamente estruturada – das decisões judiciais,


redutivamente absolutizadora do caráter imperativo – aprioristicamente ditado e
discursivo-politicamente legitimante – da legalidade.

Em termos analíticos, a lição que mais durou foi a do próprio SAVIGNY e a ele se
deve a noção de interpretação como operação intelectual, de caráter exegético colimada
à desvelação da verdade interior da lei, bem como a acentuação da importância dos
elementos clássicos no processo interpretativo das leis consideradas separadamente.

Por fim, note-se que este Autor chamou a atenção para os problemas da unidade
e da universalidade do sistema jurídico. Com efeito, a ausência de unidade era suscetível
de gerar contradições, que deveriam ser resolvidas no quadro orgânico do instituto
concretamente em causa, considerando especialmente o sentido da sua evolução
histórica. Por seu turno, um défice de universalidade poderia gerar omissões, integráveis
por analogia orgânica ou, em casos mais raros, por criação de um novo instituto jurídico,
organicamente consonante com a evolução histórica do sistema.

O MÉTODO JURÍDICO

Com o tempo, os dois horizontes erigidos pela Escola da Exegese e pela


Jurisprudência dos Conceitos acabaram por fundir-se. SURGIU, ASSIM, O MÉTODO
JURÍDICO.

O pensamento jurídico que lhe deu origem era chamado a desempenhar três
funções:

• a interpretação das normas tomadas na sua autossuficiência significante;


• a construção conceitual realizada a partir dessa base material (das
referidas normas) e instrumentalizada ao apuramento da natureza jurídica
dos institutos refletidos;
• e, por fim, a sistematização lógico-formalmente articulada do direito.

Desta perspetiva, o direito é um abstrato objeto pré - posto (voluntaristicamente


imposto para o pensamento dominante em França, e historicamente pré - suposto, para

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Escola Histórica alemã) vazado em normas, que os respetivos destinatários deveriam


mobilizar como meras formas.

Assim, o prescritivamente elaborado método jurídico apresentava três


dimensões:

• uma primeira, hermenêutica, que se centrava na interpretação teorético-


cognitiva das normas jurídicas;
• uma segunda, epistemológica, que dizia respeito à construção-
sistematização lógica dos conceitos inferidos pela atividade interpretativa;
• e, finalmente, uma terceira, técnica, que não era mais do que a
(problematicamente dualizada e cronologicamente posterior) aplicação
silogístico-subsuntiva dos mencionados conceitos aos factos a que se
reduziam os casos decidendos.

Este método veio, porém, a ser alvo de uma dupla crítica por parte do pensamento
jurídico:

• Uma de caráter empírico mostrou que, no plano da realidade, as coisas


não decorriam como se afirmava: as componentes do juízo do julgador
eram mais prático-valorativas do que lógico-axiomáticas.
• Outra, de caráter especificamente metodológico, assumiu que a reflexão
interveniente não deveria ser como se sustentava: emergiram então
correntes que desvelaram não passar a norma de eventual pressuposto
do direito judicativamente realizando.

De modo esquemático pode dizer-se, que o positivismo:

• não proporciona uma fundamentação adequada ao decidente quando este não


dispõe de critérios pré-objetivados e circunstancialmente mobilizáveis;
• não lhe fornece cânones de uma indiscutível vinculatividade, que para a
interpretação das normas, quer para a consideração da controvérsia relevante;
• centrado, como está, na dedituvidade lógico-apofântica, não orienta o decidente,
de modo ajustado, nas irremissíveis valorações, postuladas por qualquer das duas
imbricadas tarefas acabadas de referir;

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• e não consegue controlar, em termos consonantes com as exigências prático-


normativas, as ponderações constantemente pressupostas pela reflexão
judicativo-decisória.

ORIENTAÇÕES METODONOMOLÓGICAS DESDE O INÍCIO DO SÉCULO XIX.

Orientações práticas

Ora, a cumprida a explicitação do que acaba de sublinhar-se impõe uma referência a


alguns movimentos, metodologicamente comprometidos, estiveram na base da evolução
ulterior do pensamento juridico.

Sentido geral

A passagem de correntes metódicas teoréticas para os movimentos


metodológicos prático-normativamente orientados – a que assim se alude (de marcada
inspiração finalística, abertos à indiscutível existência de lacunas, centrados na
importância capital da decisão concreta, disponíveis para a consideração de critérios
normativos extratextuais – fins, interesses, valores... – preocupados com a justiça, sem,
todavia, descurarem a segurança, e mobilizadores de uma criteriosamente imaginativa e
especificamente intencionada racionalidade prático-argumentativa, em superação da
normativamente impertinente racionalidade lógico-dedutiva do método jurídico) – e o
decorrente reconhecimento da importância e especificidade da função a cumprir pelo
jurista decidente, no horizonte de um Estado de Direito dos nossos dias, concorreram
para a superação do método jurídico, compreendendo-se, portanto, a abordagem
daquele primeiro ponto.

Comecemos então por uma caracterização de três orientações distintas, que se


manifestaram quase ao mesmo tempo:

• FRANÇA – “Livre Investigação Científica do Direito”


• ALEMANHA – “Movimento do direito livre” e “Jurisprudência dos interesses”

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A LIVRE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA DO DIREITO

A Livre Investigação Científica do Direito, a que de imediato se associa o nome de


FRANÇOIS GÉNY, empenhou-se em criticar o positivismo exegético.

Na pátria do legalismo, ousou dizer que a lei era lacunosa, que os problemas da
vida extravasavam o quadro por ela instituído e que se impunha, portanto, repensar o
paradigma discursivo consagrado. No entanto, procurou não cair em excessos: dentro
dos limites que a leu pudesse operar, deveria ser interpretada, como preconizava a Escola
exegética, em termos subjetivistas, privilegiando-se a vontade histórica do legislador.

Influências:

• Na esteira da philosophie nouvelle de BERGSON, a ideia de que a vida não era


redutível aos esquemas da ciência empírico-analítica e a abrir-se à restauração do
direito natural;
• Na linha de DURKHEIM, a relevar a decisiva importância da sociologia para o
direito;
• e, inspirado pelo dogmatismo exegético, a não descurar as tradicionais questões
da construção e sistematização típicas do positivismo jurídico.

Méthode d’interpretation et sources de droit privé positif, de 1899:

Nesta obra, reabilitou o costume como fonte de direito, reconheceu a


importância das autoridades (da jurisprudência judicial e dogmática) na modelação do
direito privado positivo e invocou a natureza das coisas, hoc sensu, os princípios próprios
de cada domínio normativo-jurídico, para superar as lacunas do sistema legal, através de
uma libre reserche scientifique – art. 10º, nº3 do nosso CC.

Science et technique em droit privé positif, 4 volumes de 1913 a 1927:

Nesta obra, visou oferecer a base epistemológica da sua conceção metódica. Com
efeito, a tese defendida nesta obra é a de que a normatividade jurídica só poderia ser

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compreendida por referência a um par conceitual articulador da mencionada base


filosófica com a específica modalidade de aplicação metodológica que a caracteriza:

• a primeira sintetizava-se em le donné (que competiria à science investigar);


• a segunda identificava le construit (que seria o resultado da elaboração daquele
dado pela technique, com vista à sua objetivação e formulação praticáveis).

Dentro da categoria dos dados, o Autor distinguia dados reais, históricos, racionais e
ideais. Com os dados – os materiais fundamentos constitutivos do direito – contribuiu
GÉNY para recuperar a importância do contexto e antecipou a decisiva relevância
hodierna de um referente constituendo por mediação das experiências que se vão
interpondo.

De outro lado, o construído, elaborado pela técnica, ofereceria as fontes formais do


direito positivo – e a lei deveria ser interpretada e aplicada em consonância com o pano
de fundo entretecido pelos données.

Apreciação crítica: o positivismo insuperado

Ao compreender basicamente os dados da ciência como fatores pré-jurídicos e ao


postular que o construit da técnica pressupunha o direito já constituído, GÉNY não logrou
sequer apreender o problema da constituição da normatividade jurídica. Com efeito, não
basta aludir a dimensões materiais que aditivamente concorrem no direito, para o
identificar como mais do que um sopro de vento. Para aceder à determinação do seu
sentido, importa sobretudo discernir tanto a específica exigência autenticamente
espiritual que o polariza e a singular modelação do equilíbrio que, por referência àquela
instância, articula as mencionadas dimensões materiais, como a prudencial racionalidade
chamada a cumprir a aludida tarefa.

Por fim, note-se que a Livre Investigação Científica do Direito criou as condições
para, em superação das teses da Escola da exegese, desvelar o direito como algo mais do
que um sistema autossubsistente na sua normativística arquitetura dogmático-formal,
mas as aporias do pensamento de GÉNY acabaram por determinar o involutivo desânimo

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que perpassa as suas ultima verba, em que reconhece ser o direito positivo o único direito
verdadeiro.

Nota para interligar os conceitos:

O Movimento do Direito Livre e a Jurisprudência dos Interesses alemãs impuseram uma outra orientação ao pensamento jurídico: se GÉNY ainda o
compreendera teoreticamente, como uma ciência, assumiu-se, finalmente, a ideia de que o seu problema central era prático e se polarizava na
decisão concreta, o que acabaria por determinar a revisão de certos parti pris bloqueadores (o sistema jurídico passou a compreender-se como
material e aberto e as fontes do direito não puderam continuar a ser político-constitucionalmente tematizadas), com as consequências arrasadoras
para o status quo ante – o direito e o pensamento jurídico apresentam, afinal, uma unidade intencional, para lá da integração das lacunas manifesta-
se, autonomamente, a problemática do desenvolvimento transsistemático do direito, aquando da racionalizada realização judicativo-decisória da
normatividade jurídica é mister atender a critérios jurídicos extratextuais e a fundamentos translegais, a reflexão metodológica revela-se, ela própria,
normativamente constitutiva.

O MOVIMENTO DO DIREITO LIVRE

O Movimento do Direito Livre surgiu em consonância natural com as epocais


preocupações filosófico-culturais irracionalistas, arvoradas por pensadores como
SCHOPENHAUER e NIETZCHE, e, sobretudo, em resultado da atividade de certos jovens
juristas, quase todos práticos, discípulos de IHERING, sensíveis ao finalismo pragmático
funcionalmente comprometido para que este Autor chamara a atenção e céticos em
relação às virtudes do retorno ao dogmático-abstrato conceitualismo de PUCHTA.

Com efeito, a Doutrina do direito livre visou revolucionar o pensamento jurídico,


revelando o esotérico e transformando o jurista. Se o pensamento tradicional
absolutizava o racionalismo lógico-formal, a orientação de que agora cuidamos deslocou-
se para os antípodas e preferiu deliberadamente o irracionalismo voluntarista e a intuição
emocional do justo concreto, no entanto, não se nos afigura aceitável abdicar da
excogitação e mobilização de uma específica racionalidade que garanta a
intersubjetivamente consonante e exigível objetividade da reflexão
metodonomologicamente comprometida.

Além do mais, o Movimento do Direito Livre admitiu explicitamente a


possibilidade de decisões contra legem, por recurso a uma jurisprudência dos
sentimentos, sempre que o sentido da norma circunstancialmente em causa se não

17
Carolina Rosa

revelasse inequívoco ou aceitável, nomeadamente por provir de um tempo há muito


passado, radicando em convicções jurídico-sociais incontroversamente perimidas.

Na sua fase derradeira, coincidente com a monografia de HERMANN ISAY,


continuava a apontar a decisão concreta como o centro de gravidade do discurso
metodológico-jurídico, mas admitia a mobilização a posteriori da norma legal para
controlar a referida decisão e até, eventualmente, para a retificar, pelo que se pode dizer
que a mencionada norma aparecia apenas como o marcador tardio de uma operação que
se lhe antecipava.

De facto, note-se que o Movimento do Direito Livre sustentou, em termos


radicais, que na base da judicativo-decisória realização do direito estava a voluntas e não
a ratio. Ora, pressupondo que a formal racionalidade axiomático-dedutiva era a única
disponível e tendo compreendido a respetiva impertinência metodológico-jurídica, não
hesitou em precipitar-se no abismo irracionalista.

Quer dizer: a metodonomologia tem na racionalidade uma sua ineliminável


dimensão constitutiva e este movimento não nos legou qualquer proposta
metodonomológica lograda.

A JURISPRUDÊNCIA DOS INTERESSES

A importante escola metodológico-jurídica de Tubigen, contemporânea dos dois


movimentos precedentemente considerados, que, pelo extremo equilíbrio das suas
propostas e pela ampla aceitação de que elas justificadamente desfrutaram, teve o êxito
que aqueles outros nunca conheceram (pioneiro entre nós o Dr. Manuel Andrade ilustre
professor da faculdade de Direito da Universidade de Coimbra).

O seu criador, PHILIPP HECK, foi fortemente marcado pelas disputas que, à época,
intranquilizavam o horizonte do direito. Contra o formalismo conceitualista, a
Jurisprudência dos interesses louvou-se no finalismo de matriz sociológica, que HECK
colhera em IHERING.

Para IHERING, o direito deve o seu sentido a fins societariamente relevantes,


conquanto não deixe também, em termos circularmente dialéticos, de os codeterminar,

18
Carolina Rosa

e tendencialmente equivalentes, que o vão adequando às exigências de cada campo e


concorrem para assegurar a subsistência da própria sociedade em conformidade com a
comunitariamente radicada ética pragmática e utilitarista.

Com efeito, foi este autor que chamou a atenção para a categoria interesse, que
deveria substituir a vontade como elemento decisivo na constituição do Direito Privado.
Assim, apontou, basicamente, o fim como a causa natural do direito e inscreveu a luta no
seu processo genético: cada um, para sobreviver no palco do mundo, tinha de fazer algo
por si, não devendo entregar-se sem oposição às forças que o desafiavam.

Pressupostos metodológicos:

Esta importante Escola alemã, de clara inspiração sociológico-finalista, feriu de


morte o formal racionalismo idealista da Jurisprudência dos conceitos, sublinhando o
imperioso dever de obediência à norma legal.

Com efeito, note-se, no entanto, se perguntarmos, afinal, o que é a lei a que se


deve obediência, a resposta difere significativamente daquela que o pensamento
tradicional nos habituara: a lei é a emblemática expressão da autonomia da comunidade
jurídica (legitimamente representada pelo legislado, enquanto a designação englobante
daqueles interesses da comunidade que obtiveram vigência na lei) e tem por objetivo
solucionar ponderadamente um certo conflito de interesses.

Assim sendo, esta escola centrou-se mais na norma-problema do que na norma-


texto, razão por que se pode dizer que ela veio substituir a legislação, se sentido comum,
por uma genuína legisprudência (hoc sensu: pela formulação ponderada de normas
jurídicas prático-problematicamente fundamentadas).

Deste modo, mais importante do que atender à vontade manifestada pelo


legislador, é considerar os chamados “interesses realmente, determinístico-
mecanicisticamente causais da norma” e, daí, que em matéria de interpretação, a
Jurisprudência dos interesses legou-nos uma teoria da interpretação jurídica.

Ora, para compreender o sentido normativo da norma, o intérprete deve


considerar o conflito de interesses que a norma interpretanda tivesse dirimido de

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Carolina Rosa

determinado modo, impondo-se-lhe depois repensar inteligentemente esse critério,


atenta a singularidade do caso concretamente decidendo. Por conseguinte, note-se a
norma já não era a premissa maior de uma inferência lógica, mas o modelo de uma
ponderação prática; e que o próprio caso se não reduzia a mera espécie conceitualmente
enquadrada e subsumível ao género norma, antes se perfilava como problema com uma
específica relevância normativo-jurídica, que importava apurar através de um genuíno
juízo autónomo de juridicidade sobre o mencionado caso decidendo.

Em consonância com o que se acaba de dizer, distinguiu HECK os problemas


normativos dos problemas de formulação e o sistema interno do sistema externo.

• PROBLEMAS NORMATIVOS identificavam, substantivamente, as próprias


questões juridicamente relevantes, radicadas em conflitos de interesses
que importava solucionar em termos prático-teleologicamente
adequados;
• PROBLEMAS DE FORMULAÇÃO traduziam as preocupações associadas à
sistematicamente articulada e pedagogicamente empenhada exposição
das soluções acabadas de referir.
• Paralelamente, O SISTEMA INTERNO dizia respeito à unitariamente
estruturada consideração dos problemas normativos e das suas soluções
específicas;
• e o SISTEMA EXTERNO tinha apenas a ver com a expositiva reprodução,
especialmente determinada por objetivos didáticos, dos conteúdos
jurídicos.

A proposta metodologicamente mais relevante da Jurisprudência dos interesses


consistiu na teoria da interpretação que elaborou. Com o objetivo de apurar a “vontade
normativa” do preceito interpretando, a que se devia obediência e que a letra da lei
apenas indiciariamente poderia desvelar, era mister identificar, mediante sucessivos
afinamentos, os “interesses causais” da norma, conformadores da decisivamente
vinculante “imagem dos seus interesses objetivos”.

Estamos, assim, perante uma “interpretação histórica”, de caráter


assumidamente subjetivista. Uma vez, porém, que o sentido prático-normativamente

20
Carolina Rosa

relevante do critério interpretando era o correspondente à sua “vontade normativa” e


não à “vontade histórico-psicológica do legislador”, aquela “interpretação histórica”
projetava-se num subjetivismo teleológico.

Com efeito, aquela “vontade normativa” do critério interpretando nada mais era
do que a preferência do legislador por um dos interesses em conflito.

Atente-se agora nas notas seguintes:

• Em primeiro lugar, a fundamental pressuposição da vontade normativa do


critério interpretando implicava a superação do modelo lógico-dedutivo.
A determinação da relevância do critério interpretando não consistia num
exercício conceitual, mas antes impunha uma criteriosa investigação e
ponderação de interesses. Por seu turno, o caso-problema decidendo era
também autonomamente analisado pelo jurista, em ordem ao
esclarecimento do conflito de interesses em que radicava. Por
conseguinte, a mobilização daquele critério-problemático para a
resolução deste caso-problema só seria normativo-juridicamente
admissível se e quando o conflito de interesses decidido pelo legislador na
norma fosse semelhante ao conflito de interesses constitutivo da
controvérsia concreta. Com efeito, significa isto que estes dois polos
discursivos eram relacionados por mediação de um juízo analógico.
• Em segundo lugar, a referida vontade normativa viabilizou a chamada
interpretação corretiva – a possibilidade de o decidente desrespeitar
frontalmente o teor semântico-sintático das normas, para respeitar o seu
sentido prático-normativo, ou, rectius, a possibilidade de correção das
normas numa sua aplicação contra legem, mas para respeitar justamente
a material vontade normativa contra o teor formal da norma.

Noutro plano, note-se que a Jurisprudência dos interesses superou definitiva e


concludentemente as inconcludências do conceitualismo, relativamente à questão da
integração das lacunas:

21
Carolina Rosa

• as lacunas não eram apenas aparentes, mas reais;


• o sistema jurídico não era fechado, nem logicamente pleno, mas
inconcluso e omisso na consideração de muitos interesses igualmente
dignos de proteção;
• a recombinação de conceitos e a produção de normas a partir de
conceitos logicamente inferidos de outras normas não passavam de
falácias retórico-argumentativas e o que importava era ponderar
adequadamente os interesses que não tivessem sido, mas devessem ser,
juridicamente protegidos.

Por outro lado, HECK era bem claro em procurar manter-se em consonância com
o legislador: o decidente não estava impedido de sustentar a relevância jurídica de
interesses marginalizados pelas normas legais pré-objetivadas, mas já estava vinculado
aos juízos de valor das normas não imediatamente aplicáveis.

Neste sentido, note-se os operadores mobilizáveis no processo de integração de


lacunas:

• O primeiro era a analogia: quando procedesse para o caso omisso a


ponderação de interesses em que radicava a norma diretamente
reguladora de um caso prático-normativamente semelhante, não deveria
hesitar-se em lançar mão da mencionada norma para solucionar o caso
não previsto.
• O segundo era constituído pelos juízos de valor dominantes na comunidade
jurídica, ou pelos juízos de valor do legislador que fosse possível conhecer:
à ciência prática do direito cumpriria esclarecer o decidente sobre o modo
de os investigar. Finalmente, em desespero de causa, o decidente era
remetido para a sua valoração própria e também aqui se esperava que a
ciência do direito lhe fornecesse as ponderações determinante para a
decisão valorativa a que não poderia então eximir-se.

22
Carolina Rosa

A SUPERAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DOS INTERESSES

Centremo-nos, doravante, na acentuação das aporias que se lhe devem apontar.

Insuficiência de base sociológica:

Da perspetiva sociológica, a Jurisprudência dos interesses esteve longe de


oferecer uma proposta suficientemente elaborada. Desde logo, por ter considerado
apenas os interesses em situação de conflito, esquecendo que eles podem apresentar-se
também mais ou menos intensamente em convergência; depois, por não ter cuidado de
analisar devidamente os referentes dos interesses; e, também, por se não ter aberto a
outros fatores igualmente causais do direito, como as situações de poder, a confiança, a
responsabilidade et cetera.

Insuficiência criteriológica:

Ao atender apenas a interesses, nunca logrou distinguir o objeto da valoração do


fundamento da valoração.

Insuficiência sistemática:

A Escola de Tubingen não conseguiu compreender adequadamente a


problemática do sistema jurídico. Se é certo que relevou o sistema interno, neles não se
nos manifesta nem a pluralidade de estratos que reconhecemos no corpus iuris, nem a
particular dialética que o anima, nem a específica intencionalidade que o autonomiza – e
é na inconsideração deste último ponto que radica quer o caráter nomartivístico da
Jurisprudência dos interesses (na falta de norma-critério legal disponível, as propostas
perdiam concludência), quer o atomístico casuísmo que justificadamente se lhe censura
(as particulares decisões-ponderações jurídicas que vão sendo proferidas não são
integradas por uma racionalizante fundamentação circunstancialmente adequada).

23
Carolina Rosa

Insuficiência filosófica:

Todas as críticas aduzidas permitem ainda a observação de que se não pode


subscrever, de uma perspetiva como que filosófica, a conceção heckiana do direito. Com
efeito, o sentido do direito, para a Jurisprudência dos interesses, não implicava qualquer
dimensão de idealidade ou espiritualidade, ou apenas se dispunha a considerar as
mencionadas dimensões quando elas se manifestassem como factos sociais – a denunciar
um indisfarçável finalismo instrumental radicado num estrito positivismo fáctico-social, e
tudo revelador de que se não consegue, por esta via, enquadrar racionalizadamente a
valoração, o punctum saliens da ponderação metodológica – aliás, porque reclama a
adoção de uma outra perspetiva (centrada na assunção por parte do jurista-decidente,
do constituendo sentido prático-normativo do direito, em ordem à sua realização
judicativo-decisoriamente concreta) e, decorrentemente, a pressuposição de bem
diversos referentes discursivos (em lugar de empírico-analiticamente mensuráveis
fatores sociais, as crítico-reflexivamente inteligíveis exigências constituintes daquele
sentido).

O pensamento jurídico-causal

Na trincheira de exploração do filão sociológico, merece, desde logo, referência o


pensamento jurídico-causal que, em ordem a uma mais profunda pesquisa das fontes ou
fatores determinantes do direito, considerou não apenas os interesses sem mais, mas
igualmente as próprias sociais situações de interesses e os demais fatores da vida
empírico-socialmente causais quer das decisões do julgador, quer das do órgão aplicador
do Direito, mas mais diversas matérias.

Todavia, do ponto de vista aqui decisivo e tal como a orientação inspiradora, não
logrou distinguir o objeto e o critério de valoração, nem, consonantemente, superar a
funcionalização social do direito, que se lhe deve censurar. Com efeito, note-se que é
nesta linha que se vêm inscrever os diversos realismos e os vários sociologismos.

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Carolina Rosa

A jurisprudência das valorações

As insuficiências que já apontamos às diversas orientações sociológicas abriram


também espaço a outra via discursiva: aquela que foi capaz de substituir o teleologismo
caracterizador das correntes acabadas de mencionar, por uma autêntica teleonomologia,
isto é, pela assunção do compromisso axiológico-prático do direito, inucleado na sua
específica intencionalidade.

Assim, se densificou a chamada Jurisprudência da valoração. Com efeito, a


passagem a uma Jurisprudência da valoração só cobra o seu pleno sentido quando
conexionada com o reconhecimento de valores ou critérios de valoração supralegais ou
pré-positivos.

O pensamento jurídico-metodológico desde o pós-guerra. (a recuperação de antigos


modelos de racionalidade)

Como já se referiu, a racionalidade é uma das dimensões estruturantes da


metodonomologia. Ora, a partir dos anos 50 do século XX, em vista da comprovada
inadequação às exigências que entretecem o prático dos paradigmas em que mais ou
menos rotineiramente se insistia, assistiu-se, no mundo da cultura – e também no
universo do pensamento jurídico – à crítica veemente a essas razões erradas e,
complementarmente, à recuperação de modelos de racionalidade caídos no
esquecimento, na tentativa de discerir a matriz que garantisse a concludência da decisão
judicial, atentos os arrimos materiais e formais que nela se tivessem pressuposto.

• Hermenêutica:
Deve-se-lhe a desvelação de categorias inquestionavelmente operativas no âmbito do
discurso prático – o referente, a pré-compreensão, o círculo ou espiral hermenêutica –
mas, centrada como está na inteleção dos sentidos comunicados, não apreende a
decisão judicativa que é o núcleo da reflexão jurídica metodologicamente
comprometida. A hermenêutica contrapõe ao subsuntivismo (à aplicação lógico-
dedutiva da norma) do pensamento tradicional da reciproca referencia
progressivamente afinadora e intencionalmente seletiva de um fundamento-critério
normativo de um caso decidendo.

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Carolina Rosa

• Tópica:
Ora, quanto a esta lembraremos de ser a tópica a “arte da descoberta e da utilização de
pontos de vista e argumentos no tratamento de problemas que recusam uma solução
rigorosamente dedutiva”. Por outras palavras um “processo especial de tratamento de
problemas” com base em “pontos de apoio que o disperso surguir desses mesmo
problemas vias suscitando e que os decidentes vão tendo por aceitáveis”. A Tópica
apresenta-se como uma “técnica de discussão”, sedutora cujo o seu caracter disperso
(em que igualmente participa a hermenêutica) se não harmoniza com a exigível
compreensão do direito como uma constituenda e específica ordem de validade, sem a
pressuposição da qual se não logra fundamentar adequadamente as concretas decisões
judicativas – o que é bastante pra patentear a insuficiência metodonomológica da tópica

• Retórica;
• Teoria da argumentação:
Revela o caracter não lógico-apofântico, mas antes dialético-dialógico da reflexão
metodológico-jurídica e concorre para iluminar alguns perfis dos
metodonomologicamente capitais problemas a constituição da juridicidade e da
fundamentação das decisões judicativas. Mas distraída como se encontra, pela sua
pluripolarização de nervuras nuclearmente predicativas da normatividade jurídica não
nos consegue apreender por inteiro.

• Teleonomologia.

Os modelos a que aludimos permitem evidenciar certas particularidades da


racionalidade metodológico-jurídica, no entanto, não no-la desvelam integralmente.
Com este objetivo, podemos ficar-nos pela síntese lapidar, a este propósito excogitada,
por CASTANHEIRA NEVES: são quatro as dimensões da racionalidade implicada pela
realização judicativa do direito. Uma validade pressuposta a objetivar-se numa
dogmática, por um lado, e uma problematização praxística a exigir uma mediação
judicativa, por outro lado. As duas primeiras dimensões manifestam-se num sistema
normativo; as duas outras são convocadas por um problema prático. A dialética entre
sistema e problema numa intenção judicativa de realização normativa é, pois, a
racionalidade jurídica a considerar.

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Carolina Rosa

19ª e 20ª LIÇÃO


SUMÁRIO:

A interpretação jurídica

1. O sentido do problema
2. O objeto da interpretação
3. O objetivo da interpretação:
a. o subjetivismo e o objetivismo;
b. as orientações mistas e gradualistas e a sua refração no art.º 9.º do Código Civil;
c. a interpretação dogmática e a interpretação teleológica
4. Os fatores ou elementos da interpretação
5. Os resultados da interpretação
6. O significado da evolução: o caso decidendo não só como "objecto" da metodologia
jurídica, mas autenticamente como "ponto de partida" e "perspectiva" do exercício
metodonomológico
7. As linhas de superação da teoria tradicional da interpretação jurídica:
a. os elementos normativos extratextuais e transpositivos da interpretação
jurídica;
b. o "continuum" da realização judicativo-decisória do direito e a interpretação
jurídica como momento dessa realização;
c. a mencionada realização do direito e não a interpretação como o problema
metodonomológico; δ) alusão à específica racionalidade e à estrutura básica do
esquema metódico prático-normativamente consonantes

A integração

1. Referência ao tradicionalmente designado problema das lacunas


2. Os critérios da integração:
a. a analogia;
b. a autonomia constitutiva do julgador
3. O sentido geral do problema do "desenvolvimento transistemático do direito

Esboço de uma proposta unitária, analogicamente inucleada, da problemática da racionalizada


realização judicativo-decisória do direito.

27
Carolina Rosa

A metodologia jurídica constitui hoje um vasto e complexo campo temático. Foi a


partir dos movimentos de orientação prática que tudo se alterou: o pensamento jurídico
metodologicamente comprometido deixou de estar obcecado com o seu estatuto
epistemológico, na ânsia de preencher os requisitos da cientificidade, passou a centrar-
se na problemática da racionalizada realização judicativo-decisória do direito.

Por conseguinte, limitar o âmbito da metodonomologia ao círculo da


interpretação jurídica, será um redutivismo – esta será uma sub-questão daquela que se
preocupa com a pluralidade de dimensões do concreto juízo decisório. Não obstante,
reconhecemos que, no horizonte de um sistema do tipo do nosso, os mais dos casos
controvertidos serão juridicamente decididos por mediação de normas legais, ou de
outros critérios pré-objetivados no corpus iuris – donde, a inevitabilidade e importância
central da interpretação jurídica.

Mas o que é a interpretação jurídica?

A interpretação jurídica é a atividade reflexiva tendente a desocultar o sentido de uma


dada norma jurídica visa exprimir. Logo recorramos à hermenêutica, porque esta dá-nos
“a teoria e a metodologia para qualquer espécie de interpretação”.

SENTIDO DO PROBLEMA

Acontece que uma coisa é a interpretação em geral (histórica, literária…) e, outra, bem
diferente, a interpretação jurídica.

Esta última é apenas um dos momentos da complexa inveniendi da decisão


judicativa; e que não consiste em atingir e determinar a significação apenas textual dos
prescritivos textos jurídicos, antes, em assumir e realizar a tarefa prática que é própria
do direito.

28
Carolina Rosa

Na verdade, constitui hoje um lugar-comum a afirmação de que qualquer


proposição “significa sempre mais” – assim, se desvelando o excesso de significado em
relação ao significante. Ou ainda: na medida em que não se reduz ao enunciado literal
que comunica, um qualquer critério jurídico traduz sempre uma “hesitação prolongada”
(VALÉRY) entre o intersubjetivo-comunitariamente partilhado e problemático-
analogicamente reconstituível sentido da normatividade vigente e a sua histórico-
culturalmente possível objetivação e praxístico-judicativamente fundamentada
mobilização.

Neste sentido, a interpretação jurídica inucleia-se na responsabilizante tarefa da


prático-normativamente adequada (em consonância com as exigências que entretecem o
direito) de mobilização de um determinado critério jurídico (certa norma legal) pelo qual
o decidente se possa orientar, quando se lhe impuser discernir a “decisão judicativa” de
um caso concretamente decidendo, ou, mais exatamente, na questão se saber como se
realiza, “em termos metodologicamente corretos a determinação normativo-
programaticamente adequada de um critério jurídico do sistema do direito vigente para
a solução do caso decidendo”.

Impõe-se uma importante advertência: a consideração de que o caso (o


problema que o constitui como controvérsia juridicamente relevante – que se apresenta
como complexas e concretas situações intersubjetivamente disputadas, na
pressuposição de específicas exigências de sentido, que as cunham normativamente ab
origine) é o prius da reflexão metodológico-jurídica.

Quando, porém, se diz que o caso-problema é, na sua problematicidade (na


singularidade da sua relevância jurídica), o ponto de partida, e, na sua intencionalidade
(na fundamentação do juízo decisório que o solucionará) a perspetiva da reflexão
judicativo-decisória, isso não significa que ele deva ser analisado tão separadamente que
o compreendamos desintegrado do sistema jurídico no âmbito do qual tenha irrompido
com sentido, ou que nos recusemos a admitir que a sua irrepetível singularidade venha a
redensificar materialmente, em termos dialéticos, esse horizonte.

29
Carolina Rosa

Ou seja: o caso-problema emerge em termos antropocronotropicamente


balizados, isto é, entre pessoas determinadas, num certo momento histórico, num dado
lugar onde e modo assim – em síntese, num concreto quadro circunstancial.

Os esclarecimentos precedentes mostram-nos que a interpretação jurídica, não


se trata de compreender determinantemente a letra e o espírito do texto legal em
questão, nem de explicitar descomprometidamente a significação da letra da regra-
prescrição em causa, mas de reconstituir fundadamente e utilizar adequadamente uma
norma do corpus iuris como critério orientador da solução de um caso justificadamente
qualificado como juridicamente relevante.

O que vale afirma: o problema da interpretação jurídica não é hermenêutico-


cognitivo, nem analítico-linguístico, mas prático-normativo. Isto por duas ordens de
razões:

• é que a interpretação, enquanto tarefa hermenêutica, seria, na sua


inesgotabilidade, uma tarefa impossível, dado o caráter constituendo do
direito, radicado na indefinibilidade do seu sentido (dialeticamente
marcado pela historicidade da sua intenção prática e pela
intersubjetividade da sua matriz constitutiva);
• só a impostação das coisas, desta perspetiva, permite que o jurista se
centre – no que lhe importa – no exercício reflexivo de tentar extrair a
decisão concreta do critério interpretando.

Em síntese rigorosa sublinhamos que, ao jurista não compete aceder à compreensão do


sentido (cultural, jurídico-cultural) ou da significação (linguística) dos textos jurídicos, mas
atingir a normatividade jurídica das normas jurídicas, suscetível de lhe disponibilizar um
problematicamente adequado e normativamente fundado critério normativo jurídico,
impondo-se-lhe, com esse objetivo, a concentração no normativamente enquadrado e
decidendo problema jurídico concreto e, atenta a justeza que prossegue, a assunção das
exigências materialmente densificadoras da sua tarefa institucional de judicativo-
decisória realização do direito, vazadas no constituendo corpus iuris vigente.

30
Carolina Rosa

Dito isto, estamos em condições de compreender a radical inaceitabilidade da


orientação tradicional (tanto do positivismo legalista, como do positivismo analítico-
linguístico) a respeito do problema da interpretação jurídica.

Para a teoria positivista, a interpretação jurídica consistia na reconstituição do


pensamento contido na lei, isto é, na determinação ou da vontade do legislador-autor da
lei, ou do sentido autonomamente comunicado pela própria lei, com total menoscabo da
respetiva “aplicação”.

Desta perspetiva prático-normativa, o que importa é esclarecer como devemos


por critérios e fundamentos jurídicos em geral, em conexão com o caso controvertido,
para adequadamente constituirmos este último como problema juridicamente
decidendo, e como devemos utilizá-los, para adequadamente (judicativo-
decisoriamente, em dialética referência intencional à relevância que manifestam, ao seu
telos específico e àquela mesma constituenda normatividade jurídica vigente)
solucionarmos o caso-problema.

Neste sentido, acentua-se o caráter analógico da interpretação jurídica; sublinha-


se a ideia de que a analogia se mostra consonante com a tensão que perpassa a
metodonomologia, pois ao aproximar polos distintos, do mesmo passo desvela a
infinidade de sentidos que se lhes pode imputar); e, por fim, assume-se a compreensão
de que a tarefa interpretativa não esgota a problemática metodonomológica, consistindo
antes num ato normativo que concorre, como seu elemento, na praxis
metodologicamente específica da judicativa realização concreta do direito, no horizonte
do convencionalmente estruturado quadro institucional do sistema jurídico vigente.

O pensamento tradicional considerava quatro grandes núcleos de questões no âmbito do


problema global da interpretação jurídica:

• O seu objeto
• O seu objetivo
• Os seus fatores ou elementos
• E os seus resultados

31
Carolina Rosa

Com base nestes núcleos vamos perceber o que separa as impostações hermenêutico-
exegética e prático normativa da interpretação jurídica.

OBJETO DA INTERPRETAÇÃO

Quanto ao objeto da interpretação, a questão: qual o modo de ser da norma


interpretanda?

O importante está em perceber que, hoje em dia, ele não é a norma-texto, mas
a norma-problema.

Ora, da perspetiva tradicional, o direito era entendido como texto (a textualidade


é constitutiva da norma legal), e o texto era entendido na sua globalidade, sendo
composto por dois segmentos:

• a letra, enquanto imediata expressão verbal da proposição;


• e o espírito, isto é, o conjunto das significações imanentes à norma legal,
veiculadas por vários elementos ou fatores de interpretação
(intratextuais).

Subjacente ao que acaba de acentuar-se, encontra-se um postulado: o de que a


letra afirma, em regra um sentido pré-jurídico, a que, aposterioristicamente, a
consideração do espírito, naquele quadro previamente (definitiva, autónoma e
determinantemente) balizado, aditará um singular sentido jurídico. Por seu turno, o
aludido postulado radica em três pressupostos:

1. na utilização, pelos critérios jurídicos, da linguagem comum;


2. na univocidade desta linguagem;
3. e na inalterabilidade do significado das expressões linguísticas comuns
quando utilizadas em critérios jurídicos.

Compreenda-se a inconcludência dos mencionados pressupostos:

32
Carolina Rosa

• o primeiro, ao fazer tábua rasa da intencionalidade prático-normativa que


cunha ab origine a linguagem jurídica, inconsidera a decisiva relevância do
concreto “jogo de linguagem” em que uma certa proposição vem à
epifania;
• o segundo, ao postular a fixidez das significações, ignora a historicidade
que radicalmente as perpassa e que inelutavelmente as expõe ao jogo dos
tempos, dos lugares e dos modos;
• o terceiro, ao contrapor, em referência ao critério interpretando, uma
significação comum e uma outra jurídica, levanta os problemas da
impertinente determinação daquela primeira e da inadmissível cisão de
uma questão, afinal, unitária.

Finalmente, todos eles, ao atenderem apenas a dimensões semântico-sintáticas,


apagam a normativo-juridicamente fundamental dimensão pragmática da linguagem
jurídica.

Em suma, ao jurista-decidente não importa a norma enquanto corpus semântico-


prescritivo, que comunica impositivamente um sentido literal, mas a norma enquanto
regula prático-normativa, que se revela apta para orientar, em termos também prático-
normativamente fundamentados, a solução de um problema, ou de uma série de
problemas, a que justificadamente se reconheça uma relevância especificamente
jurídica, pois, de contrário, em vez do significado dominar o termo, é o termo que domina
o significado (FRANCIS BACON).

OBJETIVO DA INTERPRETAÇÃO

A respeito do objetivo da interpretação, (para que é que se interpreta?), a literatura


jurídica do século XIX hipertrofiou a polémica entre o subjetivismo e o objetivismo.

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Carolina Rosa

SUBJETIVISMO OBJETIVISMO

O subjetivismo via a norma como um comando, O objetivismo pretendia apurar o sentido


imposto por uma vontade – centrandose, vazado ou condensado na norma interpretanda
portanto, na determinação da intentio auctoris – preocupando-se, consequentemente, em
ou da mens legislatoris. aceder à intentio operis, ou à mens legis.

O subjetivismo que almejava fixar a vontade do


legislador histórico, louvava-se na segurança O objetivismo intentava apurar o sentido da
jurídica e no princípio da separação de poderes, lei, concorria para realizar a historicidade do
mas podia originar uma inaceitável fossilização direito, e, portanto, à sua conformação à vida,
do direito se mediasse um longo período de mas era suscetível de potenciar o perigo do
tempo entre a entrada em vigor da norma arbítrio jurisdicional.
interpretanda e a ocorrência do problema
justificativo da respetiva mobilização.

Por nossa parte, observe-se que estas duas orientações radicam em diferentes
conceções do direito:

• o subjetivismo, inspirado pelo pensamento revolucionário remetia o direito à


voluntas do legislador;
• e o objetivismo, menos politicamente cunhado e mais culturalmente marcado,
referia o direito a uma logicamente coerente ratio ordenadora.

As orientações mistas e gradualistas e a sua refração no art.º 9.º do Código Civil

É verdade que ainda hoje se insiste na disputa entre subjetivismo vs objetivismo.


Todavia, no seu artigo 9.º, o nosso Código Civil optou, cautelosamente, por uma
transação entre ambas, assumindo uma posição gradualista, ou mista.

Interpretação dogmática e interpretação teleológica

A superação da dicotomia precedentemente analisada abriu espaço a uma outra


àquela que veio opor a interpretação dogmática à interpretação teleológica.

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Carolina Rosa

A primeira procurava determinar um sentido logicamente coerente da norma


interpretanda com o sistema conceitual, de base legal, de que ela fazia parte; a segunda
referia a norma ao fim prático por ela visado. A interpretação dogmática uma operação
sintática e a interpretação teleológica um manifesto de caráter pragmático.

Ora, assim entendidas e levadas às últimas consequências, a interpretação


dogmática dessoraria ou formalizaria o direito, e a interpretação teleológica
instrumentalizá-lo-ia ou funcionalizá-lo-ia. No entanto, sabemos ser hoje a dogmática uma
“dogmática de fundamentação”, polarizada nas normativo-juridicamente e prático-
problematicamente redensificantes exigências de validade que cunham o corpus iuris.

E também não ignoramos ser o telos não heterónomo ao direito e suspeito de


traduzir uma acrítica cedência a um mero consequencialismo, nem dissolvente da sua
intricada unidade, mas, antes, remeter a uma genuína teleonomologia, a implicar uma
prático-racionalmente controlada, normativo-juridicamente intencionada e judicativo-
decisoriamente inucleada realização dos fins especificamente constituintes da
constituenda normatividade vigente, e viabilizadora da justeza sistemático-normativa (a
aferir ante o corpus iuris) e da justeza problemático-judicativa (a aferir ante a quaestio
disputata) dialeticamente conformadores da solução dos concretos casos jurídicos
decidendos.

Neste sentido, quando adequadamente compreendidas, tanto a (mais


imediatamente racionalizante) interpretação dogmática, como a (mais visivelmente
dinamizante) interpretação teleológica são perpassadas pela dialética sistema-problema
– um definiens do discurso jurídico metodologicamente comprometido – podendo
afirmar-se que cada uma daquelas dimensões encontra na outra a outra face de si
própria.

Por fim, observe-se que a orientação propugnada: por um lado, não inviabiliza a
disquisição de uma única solução como a normativamente exigida pelo caso decidendo
– não que ela seja passível de demonstração apodítica, nem que se perfile como a
circunstancialmente determinada concretização de uma ideia regulativa, antes daquela
única que pode considerar-se concludentemente legitimada pela reflexão

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Carolina Rosa

fundamentante, atenta à pluralidade de estratos que entretecem o corpus iuris vigente;


por outro lado, a teoria do direito procurou racionalizar o processo de conversão do telos
fático, num autêntico telos normativo, juridicamente pertinente, todavia, não teve êxito
na tentativa, pois o seu específico instrumentarium teorético-científico, embora
considere fatores condicionantes do direito, não se revela a lupa requerida para a
captação do seu prático-normativamente decisivo sentido predicativo.

ELEMENTOS OU FATORES DA INTERPRETAÇÃO

A questão: em que se baseia a reflexão interpretativa?

Proposto por SAVIGNY, o pensamento jurídico clássico insiste nos elementos ou fatores:

• gramatical;
• histórico;
• sistemático;
• lógico ou racional.

Não é por acaso que o artigo 9.º/1 abre uma referência à letra da lei e à reconstituição a
partir dos textos do pensamento legislativo; e o nº 2, prescrevendo um limite às não
estritamente literais inferências ainda autorizadas pelo nº 1, revela a importância decisiva
que o legislador entendeu dever atribuir ao elemento gramatical. Tudo isto significa que
o CC, ao reconhecer um valor determinante e autónomo à letra da lei e ao centrar-se na
norma-texto (letra mais espírito), não logrou superar – antes assumiu deliberadamente
– a índole hermenêutico-cognitiva do exercício interpretativo.

A convocação do espirito da norma interpretanda, concorreu para viabilizar uma


tendencial superação do redutivo caráter semântico-literal da interpretação , que, no seu
radicalismo, a perspetiva analítico-linguística haveria de reinstaurar; e que a presunção
do legislador razoável, acolhida no artigo 9.º/3, primeira parte, ao privilegiar o objetivo

36
Carolina Rosa

de permitir tirar das normas o que, com razoabilidade prático-teleológica, nelas se deva
considerar consagrado, também se inscreve na mesma linha.

Pressupostos de esclarecimentos que precedem, como se realiza então, da


perspetiva tradicional, a interpretação?

Ora, como a norma era encarada enquanto texto e numa perspetiva estritamente
hermenêutica, o ponto de partida não poderia deixar de ser a letra – a dimensão ou
segmento visível desse texto. O elemento gramatical constituía o fator fundamental e
determinante, assumindo um sentido dúplice: positivo e negativo (artigo 9º, nº2).

Negativo, porque a letra definia o círculo de sentidos admissíveis, tanto maior,


quanto maior a polissemia dos termos empregues; positivo porque, de entre as
possibilidades interpretativas ainda cabíveis no significado das palavras usadas, se
deveria privilegiar aquela que mais próxima estivesse do significado literal.

Assim, os demais elementos interpretativos só poderiam ser equacionados


dentro dos significados admissíveis pela letra da lei, para ajudar a determinar qual deles
deveria prevalecer. Eram estes elementos:

• o histórico, isto é, as circunstâncias históricas que rodearam a emergência


do texto e o percurso que culminou especificamente na sua criação;
• o lógico/sistemático, que respeita à unidade lógico-estrutural da norma e
sobretudo à sua inserção dogmática no sistema normativo e na pirâmide
de conceitos;
• e teleológico.

De todo o modo, o intérprete nunca poderia, com recurso a tais elementos


interpretativos, alcançar um resultado que não tivesse na letra da lei um mínimo de
correspondência verbal.

Com efeito, a lei assume uma função autónoma negativa de exclusão, analítica e
cronologicamente prioritária relativamente à consideração dos demais elementos

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Carolina Rosa

interpretativos, pois que define, com força normativo-prescritiva os limites de


significação do texto.

Neste sentido, alguns autores, como LARENZ, vêm nela a fronteira da


interpretação, uma vez que lhe cabe definir essas balizas dentro das quais o processo
interpretativo se pode mover; para outros, como ENGISH, será suficiente que o
pensamento legislativo, determinado com recurso aos demais elementos interpretativos,
tenha na letra uma expressão mínima, uma alusão, ainda que imperfeita ou incompleta.
Graças a este relevo negativo, a letra da lei atua, antes do mais, mediante o afastamento
de todos os objetos, factos, situações, casos, entre outros, que nela não tenham qualquer
arrimo.

Por outras palavras, ao traçar as fronteiras da interpretação a letra da lei


identifica logo os candidatos negativos à significação do texto, isto é, todos os significados
que inequivocamente exclui. Depois, o elemento gramatical intervém num sentido
positivo, e com valor meramente indicativo, na seleção do significado a privilegiar em
definitivo – pois que a norma, no final, só poderá ter um sentido para poder ser
mobilizada enquanto premissa maior do silogismo judiciário. De entre os sentidos
possíveis, a letra da lei ajuda agora a escolher os mais naturais ou imediatos, ou seja, os
que mais diretamente correspondem aos usos na linguagem comum ou jurídica das
palavras em causa – candidatos positivos – e, ao mesmo tempo, identifica aqueles outros
sentidos, ainda possíveis (porque permitidos pela letra), mas de uso menos habitual –
candidatos neutros.

Em suma, por referência ao elemento gramatical, teríamos: sentidos excluídos


(casos de certeza negativa), sentidos incluídos (situações em que se verifica uma certeza
positiva) e sentidos menos imediatos ou comuns (em que subsistem dúvidas quanto à
sua inclusão, embora não possam ser excluídos a partida).

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Carolina Rosa

Apreciação critica

A palavra é, decerto, a desmistificação do absurdo, pois introduz e traduz, num


indiferenciado horizonte integrante de todos os possíveis, a seleção de um (aberto)
espaço de significações racionais. No entanto, a sua ineliminável abertura – decorrente
da impossibilidade de se definirem aprioristicamente as possibilidades instituídas –
impõe, no campo específico da reflexão metodonomologicamente comprometida, a
pressuposição das constituendas exigências predicativas da juridicidade, para vir a ser
concreto-situacionalmente superada, em termos circunstancialmente (normativo-
procedimentalmente) adequados.

De outro modo: se a palavra elimina o sem-sentido, nunca anula a


problematicidade do sentido instaurado, razão por que o respetivo advento não é
bastante para que o homem, no “mundo da vida”, se desonere da interpretação prática,
nem, no “mundo do direito”, para que o decidente epicrítico possa inconsiderar a tarefa
da interpretação jurídica.

Todavia, a perspetiva tradicional não logrou dar o salto apontado, nem viabilizou
o acesso à inteleção acabada de desvelar.

Como observámos, a orientação hermenêutico-exegética absolutiza a


importância do texto da norma legal e, dentro deste, da sua base literal. Se, porventura,
subsistir uma indeterminação insuperável ao nível da mera consideração da letra,
recorrer-se-á ao espírito do critério interpretando, constituído pelos restantes elementos
interpretativos.

No entanto, a apontada relevância apenas subsidiária do espírito desvela o


acentuado caráter determinante da letra; e, na medida em que só poderá ser convocado
para esclarecer um dos significados possíveis da letra, manifesta o valor autónomo
reconhecido a esta última.

Porém, se recordarmos a natureza metafórica das palavras e, sobretudo, se


compreendermos, prático-normativamente o problema da interpretação jurídica, deixa
de poder atribuir-se à letra da norma interpretanda uma qualquer densidade específica,

39
Carolina Rosa

ou um qualquer relevo básico, autonomamente determinante da tarefa, pela decisiva


razão de que se trata então de utilizar, em termos juridicamente adequados – uma
adequação a instituir poieticamente e radicada na complexa e singularmente
intencionada dialética entretecedor do cado decidendo e do fundamento-critério da
respetiva solução – daquela norma problema.

Neste sentido, não existe uma hierarquia fixa dos vários fatores, apesar de, desde
os estudos levados a cabo pela Jurisprudência dos Interesses, se vir salientando o especial
relevo do elemento teleológico. Ora, note-se que a teleologia da norma foi entendida de
modo diferente ao longo dos tempos:

• primeiro como ratio legislatoris;


• depois, como ratio legis;
• posteriormente como ratio iuris (entendido como sistema)
• e, finalmente, como a razão do direito, enquanto verdadeiro ius (que dá
sentido normativo-jurídico à norma).

Por sua vez, o elemento sistemático remete agora para os liames axiológicos e
intencionalmente prático-problemáticos que unificam o direito em vigor e o elemento
histórico pressupõe uma consideração do contexto dogmático e axiológico-normativo em
que a norma emergiu, para além da investigação da sua génese prescritiva.

RESULTADOS DA INTERPRETAÇÃO

Questão: o que é que se obtém com o exercício interpretativo?

Relativamente a este tópico, lembremos a atitude preconizada pelo “método


jurídico”.

Para além da interpretação autêntica (a soberanamente realizada pelo legislador)


e da interpretação revogatória ou ab-rogante (aquela que o intérprete deve lançar mão
para superar uma contradição insanável entre duas disposições legais), a referida

40
Carolina Rosa

perspetiva centra a interpretação na norma-texto, tomada na sua autossuficiência


significante, e procura constatar, ou reestabelecer, o equilíbrio das duas grandezas que a
conformam: a letra e o espírito.

Se uma e outra coincidirem (se o sentido imputado à letra for corroborado pelo
inferível espírito), nada mais se impõe do que uma mera interpretação declarativa, como
que confirmadora da mencionada constatação.

Por seu turno, a interpretação enunciativa decorre da estrutura lógico-apofântica


da orientação tradicional e consiste na explicitação de um critério virtualmente contido
numa norma pré-objetivada no sistema e dele desimplicado por mediação de inferências
lógico-jurídicas, sintetizadas nos clássicos argumentos: a maiori ad minus, a minori ad
maius, e a contrario.

Porém, pode acontecer que as duas mencionadas grandezas não coincidam –


constatando-se um desvio entre ambas. Nesta hipótese, importa distinguir: se o sentido
decorrente do espírito for mais amplo do que o atribuível à letra, impor-se-á, com base
no argumento “a fortiori”, uma interpretação extensiva, isto é, uma ampliação do alcance
da letra para a adequar ao espírito; se ocorrer a situação inversa (espírito menos amplo
que a letra), atento o argumento cessante ratione legis cessar eius dispositivo, realizar-
se-á uma interpretação restritiva, isto é, uma redução da letra para a adequar ao espírito.

Tudo o que significa que o espírito permite vencer muito daquilo a que se não
escapa no domínio do corpo, ou que se subtrai às suas rédeas. Todavia, do ponto de vista
aqui em causa, é sempre no corpo que o espírito encarna, como é nele que e projeta a
inquietação perturbadora do espírito.

Estes resultados decorrem de um impostação hermenêutico-cognitiva do


problema da interpretação jurídica, que por sua vez, emerge no seio de uma conceção
positivista do direito, desenvolvida em torno da prevalência do elemento gramatical.

Alteração desse sentido tradicional com fundamento na interpretação teleológica

Superada esta incompreensão da interpretação jurídica e assumida a perspetiva


que temos vindo a propugnar, tudo se altera também no âmbito problemático dos

41
Carolina Rosa

respetivos resultados. Do que se trata, então, é de utilizar, de um modo prático-


normativamente adequados, os critérios justificadamente mobilizados para orientar as
concretas decisões judicativas.

Ora, nestoutro entendimento da questão principal, o pensamento jurídico


acabou por abrir-se à consideração de resultados interpretativos incompatíveis com a
orientação tradicional e inucleados na convocação da relevância, da teleologia e do
fundamento do critério interpretando.

Com efeito, uma vez que a norma é encarada como solução jurídica para um
problema, a interpretação consiste nuclearmente na comparação entre o caso exemplo
e o caso concreto, em busca de semelhanças à luz do sentido do direito. Desta
comparação, podem resultar várias hipóteses de interpretação:

• Atendendo aos respetivos âmbitos de relevância material do caso e da


norma para além dos casos de assimilação total da relevância concreta do
caso pela relevância hipotética da norma, pode haver espaço a uma
adaptação extensiva ou restritiva da norma ao caso ou a veras correções
da norma, se esta for atípica e se justificar a sua convocação in casu (o que
corresponde às hipóteses de assimilação parcial), quando não ao seu
abandono, porque a norma já não se revela adequada ao caso (sendo
superada por obsoleta, no que é uma manifestação dos limites temporais
da legislação);
• Considerando a teleologia da norma, podem justificar-se correções e,
nomeadamente, a exclusão, do âmbito de aplicação de uma norma, de
casos que literalmente por ela estariam abrangidos (redução teleológica)
ou a inclusão de casos que formalmente não caberiam na norma (extensão
teleológica);
• Tomando em linha de conta os fundamentos da norma (de que depende a
respetiva validade), poderá ser objeto de correções interpretativas
[quando, projetada sobre o caso, manifeste uma incoerência, se bem que
ainda sanável (justamente através da correção) relativamente ao(s)
princípio(s) normativo(s) em que se louva] e até acabar por ser preterida
ou superada - caso se conclua que a norma, mobilizada para resolver o
42
Carolina Rosa

caso concreto adquire um sentido que irremediavelmente a


incompatibiliza com os princípio(s) normativo(s) em que se baseia, ou
porque parece ter já nascido em contradição flagrante com eles – e aí
teremos a preterição – ou porque o sentido destes entretanto mudou, ou
surgiram mesmo princípios novos - e aí estaremos diante de um caso de
superação da norma (porque entretanto caducou, expondo os limites
temporais da norma).

O SIGNIFICADO DA EVOLUÇÃO - o caso decidendo não só como objeto da metodologia


jurídica, mas como ponto de partida e perspetiva do exercício metodonomológico

Tentemos agora sintetizar os esclarecimentos precedentes.

O quadro de pressuposições em que assentava a orientação tradicional em


matéria de interpretação jurídica foi profundamente reconstruído.

Alterou-se a compreensão do objeto da interpretação: deixou


de pôr-se a tónica nas palavras que plástico-semanticamente
Quanto ao objeto
conformam a norma em causa e passou a atentar-se nos
problemas que prático-normativamente a densificam
Quanto ao objetivo Em lugar da estéril disputa da preferência pelo
esclarecimento da intentio auctoris ou da intentio operis,
assumiu-se a responsabilidade da cumulativa determinação do
dogmático-axiologicamente modelado sentido teleológico-
jurídico do critério interpretando.
Reviram-se o significado, a importância relativa e o próprio
catálogo dos elementos ou fatores interpretativos.

Com efeito, a justificada impostação prático-normativa da


Quanto aos elementos
interpretação jurídica implicou a aludida mudança de
ou fatores
significado:

43
Carolina Rosa

• o ELEMENTO GRAMATICAL deixou de ser um “em si”


tranquilamente suficiente e volveu-se num “para nós”
ebulientemente interpelante, pois trocou a aderência
às palavras pela referência ao direito; o elemento
histórico abdicou de confinar-se à descrição da
fenoménica criação da norma, e abriuse, logo com a
Jurisprudência dos Interesses e na pressuposição da
razoabilidade formal e substancial do legislador, à
consideração do seu hermenêuticamente deveniente
e intencionalmente específico sentido problemático;
• o ELEMENTO SISTEMÁTICO abandonou a pretensão de
articular, lógico-conceitualmente uma norma com as
demais, e passou a centrar-se na dilucidação dos
liames dogmáticos e axiológicos que a entretecem
com os restantes estratos do adequadamente
perspetivado corpus iuris vigente;
• e o ELEMENTO TELEOLÓGICO rompeu quer com a
vinculação à subjetivística ratio legislatoris, quer com
a redução à normativística ratio legis, e, depois de se
ter convertido em elemento indiciador de uma
“verdadeira alteração de sentido” do problema da
interpretação jurídica, como que se fundiu com o
também prático-normativamente compreendido
elemento sistemático polarizou-se na axiológico-
normativamente intencionada ratio iuris, enriqueceu-
se com a experimentação jurisprudencial e
transmutou-se em elemento teleonomológico.

O reconhecimento do mérito autónomo do caso


decidendo e a sua compreensão como efetivo prius
discursivo concorreram para que o elemento gramatical
perdesse o seu estatuto de fator autonomamente

44
Carolina Rosa

determinante da interpretação. Assim, de uma ótica


prático-normativa, deixa de ser possível, e não é
seguramente pertinente, indicar o elemento
interpretativo em abstrato preponderante. Não obstante,
talvez seja legítimo apontar a dialética em que se
enredam os prático-normativamente compreendidos
elementos sistemático e teleológico, densificada como é
pelo histórico-culturalmente constituendo e judicativo-
decisoriamente realizando sentido do direito vigente,
como a resposta avisada à questão originadora das
considerações precedentes.
Tudo quanto se acentuou concorreu para a desvelação de
resultados interpretativos que a retórica discursiva
positivística não poderia ter proposto, por não radicarem já
na primazia do elemento gramatical e da tensão letra-
Quanto aos resultados
espírito, e antes implicarem uma outra constelação de
referentes polarizada nas normativo-juridicamente
adequadas compreensões do caso decidendo, do critério
interpretando e da relação que os articula.

As linhas de superação da teoria tradicional da interpretação jurídica:

Aqueles mesmos topoi – que se reconduzem a uma das notas capitais do atual
pensamento jurídico metodologicamente comprometido, o de que o seu objeto é a
judicativo-decisória realização do direito e não a lógico-dedutiva aplicação da lei – e ainda
o adequado entendimento do sistema jurídico determinam uma totalmente diferente
conceção do exercício metodonomológico:

• o papel tradicionalmente cometido à norma cabe agora ao


sistematicamente enquadrado caso concreto;

45
Carolina Rosa

• a pertinente suficiência de qualquer dos estratos do corpus iuris, atenta a


respetiva intencionalidade problemática, permitirá soluciona-lo com base
num mais ou menos denso ou rarefeito critério ou fundamento pré-
objetivado na sua irreprimível deveniência;
• e, no limite, a novidade de um caso, ainda justificadamente qualificado
como juridicamente relevante, por referência ao constituendo sistema de
direito, e a abertura deste último viabilizam o desenvolvimento
transsistemático da normatividade jurídica vigente.

Deste modo, perfila-se, diante de nós, uma escala gradativa distinta da sublinhada
pelo positivismo, em que as concludentemente reconhecidas centralidade do caso e
sentido do sistema determinam a distinção dos concretos problemas jurídicos que
encontram na predisponível e apenas redensificável normatividade jurídica o
citério/fundamento da sua decisão judicativa, daqueles outros que autenticamente
postulam o aludido desenvolvimento transsistemático do direito (i.e. o alargamento em
extensão, que não o mero aprofundamento em intensão, do corpus iuris).

É que o positivismo cindia a interpretação da lei e a integração das lacunas,


consoante ainda se estivesse dentro de uma das aceções possíveis da hipótese textual da
norma diretamente reguladora dos factos controvertidos, ou aquela hipótese normativa
apenas fosse indiretamente convocável em virtude da suficiente semelhança dos factos
previstos e dos factos omissos.

Ora, a referida escala gradativa manifesta-se no acentuado continuum


interpretação/aplicação (1) e interpretação/integração (2). Com efeito, (1) a importância
fulcral, no horizonte metodonomológico, do caso decidendo e dos princípios normativos
circunstancialmente pertinentes, mostra que o sentido normativo do critério jurídico
hipoteticamente disponível e adequado não pode antecipar-se em abstrato, as apenas
alcançar-se no termo de uma reflexão como que tripolarizada – porque centrada naquele
caso e, em hermenêutico-dialética circularidade, atenta quer à norma-critério, quer aos
respetivos princípios-fundamentos.

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Carolina Rosa

E, (2) depois de vencida a absolutização da norma-texto, de clarificados os limites


da legislação e de rigorosamente compreendido o sistema jurídico – tudo quanto se
reconduz à inteleção da matricial historicidade e da específica intencionalidade da praxis
e do nomos – percebeu-se também que a pré-objetivada juridicidade, quando operativa,
se reconstituía no exercício interpretativo (por mediação das exigências trans-objetivas,
associadas ao predicativo sentido do direito, que a densificam), passando a integrar
dimensões que até essa altura não apresentava – e que, portanto, esta integração
emergia na linha da interpretação, sem dela se dualizar, ao contrário do pensamento
tradicional, que compartimentava uma e outra.

Qual o significado da evolução que ela traduz?

Foi a bipolarização do exercício metodológico-jurídico, em dialética


correlatividade, no caso concretamente decidendo e na intencionalidade problemática
do critério e/ou fundamento circunstancialmente pertinente que no-lo desvelou
inucleado em problemas – que no-lo manifestou um percurso discursivo de problema a
problema (de particular a particular) e, por isso mesmo, analógico.

Assim, qualquer impostação, mais ou menos inovadora, no domínio do prático-


normativo, pressupõe sempre referentes intersubjetivamente partilhados radica numa
inércia interdisciplinarmente estruturada e projeta-se numa dinâmica
interrelacionalmente potenciada – tudo o que, por mediação das revisões, das
recorrências e das reposições que assim, sucessiva e respetivamente, se reconhecem,
denuncia a sua ineliminável analogicidade. Donde, nada mais natural do que assumir a
inevitabilidade que deste modo se deteta, erigindo-a em núcleo da problemática
metodonomológica e estruturando em termos consonantes o modelo (noético
noemático) da judicativo-decisória realização do direito.

[Racionalidade e esquema metódico]

A judicativo-decisória realização do direito centra-se, irredutivelmente, na


disquisição da existência ou da inexistência de uma correspondência intencional entre o

47
Carolina Rosa

mérito problemático-normativo dos casos decidendos e a relevância igualmente


problemáticonormativa dos mais ou menos amplamente predisponíveis ou
constituendos critérios/fundamentos suscetíveis de os virem hipoteticamente a
assimilar, para determinar aqueles que, in concreto, se devem privilegiar – sendo,
todavia, certo que as referidas semelhanças são, afinal, entretecidas por diferenças subtis
(as constitutivas e especificantes dos núcleos problemáticos que materialmente as
densificam, e que as mencionadas diferenças não deixam de se encontrar numa
semelhança irredutível – a instituída pelo adequadamente fundamentado mérito jurídico
das quaestiones decidendi. O que, numa palavra, significa estarmos diante de uma
reflexão de caráter analógico. Podemos dizer: a analogia é a essência do juízo.

Ora, a importância prática e metodonomológica da analogia radica na


circunstância de ela sintetizar: uma reflexão que discorre de particular a particular (de
um particular conhecido para um outro particular desconhecido ou menos conhecido);
por cuja mediação se vai arriscando a (re-)constituição de um pressuposto termo de
comparação (o tertium comparationis); suscetível de fundamentar a eventual afirmação
de uma correspondência de sentido, ou de uma semelhança relevante entre aqueles dois
polos, tomados sempre na sua específica autonomia, o que, conjuntamente, traduz, por
outras palavras, a problematicidade, aberta e racionalizada nuclearmente predicativa dos
dois referidos horizontes temáticos, e ainda na de o citado operador discursivo se louvar
de uma perspetiva pragmática, no princípio da inércia (na prudente observação da
experiência feita aquando do recorrente confronto com uma qualquer hipoteticamente
semelhante experiência a fazer), de uma perspetiva metódica, no princípio da abdução
(na empenhada tentativa de realizar um contínuo alargamento do espaço dominado a
partir da metafórica exploração da intencionalidade problemática dos espaços pré-
dominados) e de uma perspetiva axiológica, no princípio da igualdade (na judicativa
decisão igual do que justificadamente se perfilar como igual e na exata medida da
mencionada e adequadamente reconhecida relação, isto é, na de ir buscar a sua última
razão de ser a nervuras identificantes) quer na prática quer no direito.

Advirta-se, ainda, ser o círculo de semelhança –a congruência dos recíproco e


concretamente implicado núcleo problemático e referencial do discurso – o pressuposto

48
Carolina Rosa

irredutível da pertinência prático-normativa do recurso à analogia, ou de uma solução


paralela para dois casos juridicamente equiparáveis. Se, em vez daquele, nos depararmos
com um círculo de diferença (com um conjunto em que se revelem fundamentadamente
incongruentes os dois polos discursivos), se, em lugar da continuidade que o primeiro
identifica, se perfilar ao jurista ao jurista decidente a exclusão predicativa do segundo,
intervirá a chamada analogia inversa – em que a experiência feita se não ajusta à
especificidade da experiência a fazer, mas não deixa de funcionar como instância de
controle negativo do juízo, neste último horizonte – que encontra uma sua exemplar
projeção metodonomológica no chamado argumento a contrario (na exclusão de um
caso concretamente decidendo do âmbito de relevância de um determinado conjunto de
fundamentos-critérios, atento o mérito problemático de um e outro).

Finalmente, sublinharemos que o entendimento do sistema jurídico como uma


unidade de sentido normativo constituída por vários estratos que reciprocamente se
condicionam nos dispensa de insistir em contraposições categoriais tradicionalmente
acentuadas, mas que com ele não se compaginam. Refira-se, a título exemplificativo,
aquela que distingue a analogia de lei ou analogia ou analogia particular (analogia legis),
da analogia de direito, ou analogia total (analogia iuris) – respetivamente, a analogia que
opera apenas com uma norma legal igualmente aplicável a uma situação de facto não
regulada por ela, ou com o princípio (geral de direito) induzido a partir de várias e
ajustável tanto à hipótese na lei com às hipóteses reguladas – pois, em rigor, a analogia,
liberta das aporias com que a subverteu a teoria clássica, em qualquer das suas diversas
formulações, é sempre deste último tipo.

Assim adequadamente compreendida, não é um raciocínio apenas operativo no


âmbito da integração das lacunas, revelando-se, antes, um vetor nuclear da própria
realização judicativo-decisória do direito por mediação de redensificantes apoios
(critérios ou fundamentos) pré-disponibilizados pelo sistema jurídico, pois, do que
sempre se trata é de trazer-à-correspondência o mérito problemático de um concreto
caso decidendo e a intencionalidade também problemática de um constituído ou
constituendo apoio circunstancialmente pertinente para a almejada decisão judicativa.

49
Carolina Rosa

A INTEGRAÇÃO

Problema das lacunas

Até ao momento, abordamos a realização judicativo-decisória do direito por


mediação de critérios pré-disponibilizados pelo corpus iuris vigente. A questão que
doravante se perfila diante de nós é a da realização judicativo-decisória do direito por
autónoma constituição normativa.

Antes de mais, note-se que previamente à inventio dos apoios jurídicos


(fundamentos e critérios) postulados pela decisão judicativa, depara-se-nos a
necessidade de esclarecer a fronteira da possibilidade do exercício em causa, isto é, a
urgência de traçar os limites do próprio jurídico, face ao espaço livre do direito, pela
elementar razão de que nem todos os problemas praticamente significativos são
metodonomologicamente relevantes.

A problemática dos referidos limites do jurídico é suscetível de ser analisada de


duas perspetivas distintas: uma – que é a tradicional – sustenta a respetiva definibilidade
pelo sistema pré-objetivado; a outra – consonante com o que temos vindo a sustentar –
entende que só partindo do concreto problema decidendo se logrará uma normativo-
juridicamente esclarecida abordagem da questão.

Por seu turno, em termos histórico-diacrónicos, deve assinalar-se a diferença


introduzida pelo movimento codificatório. Antes desta época, naturalmente, a
dificuldade não era sentida, nem, decorrentemente, tematizada: o sistema manifestava-
se aberto e incluía o direito subsidiário, a que se recorria, quando a legislação se revelasse
insuficiente. Ora, a questão tornou-se aguda com a pretensão, assumida pela codificação,
de definir prévia, racional e esgotantemente o corpus iuris: de modo paradoxal, foi a
afirmação do ideal de um direito (positivo) completo que produziu o conceito de lacuna.

E, em sintonia com o espírito do tempo, os limites do jurídico não podiam deixar


de ser formalmente traçados. Ou seja: o problema das lacunas só surgiu quando se deu
conta da incompatibilidade entre o postulado da formal plenitude (lógica ou dogmática)
do sistema normativístico e a efetiva emergência de casos concretos que

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Carolina Rosa

indubitavelmente o desmentiam, pois sempre estes últimos hão-de ser mais do que as
leis.

Deste modo, entende-se o conceito de lacuna: esta verificar-se-á quando o


sistema positivo, imediatamente, ou por interpretação (respetivamente, formal ou
intencionalmente) – atendendo ao seu plano ordenador inferido dos princípios, fins e
juízos de valor que lhe vão implícitos –, permitir qualificar um determinado caso como
juridicamente relevante e, todavia, for omisso, inadequado ou incompleto acerca da
respetiva disciplina ou regime.

Conceito este que facilmente se precisará se esclarecermos o critério de


delimitação de uma lacuna. O mencionado critério poderá dizer-se o resultado da
articulação daquela que designaremos as fronteiras exterior e interior do sistema de
direito positivo. A primeira é traçada pela própria lei, na sua objetividade, e pelos
princípios (gerais) dogmático-conceitualmente constitutivos do ordenamento. Por seu
turno, a fronteira interior coincide, da perspetiva mais apegada à melopeia composta
pelo método jurídico, com os sentidos suscetíveis de serem atribuídos à letra da lei, e de
uma outra mais arejada, com a intencionalidade teleológica da norma em causa.

Neste sentido, é possível distinguir vários tipos de lacunas:

• Normativas, de previsão ou autênticas versus de regulação, estatuição ou


inautênticas;

As lacunas normativas, de previsão ou autênticas, verificam-se quando a mediação


judicativa não é só por si bastante para viabilizar a aplicação a um certo caso de uma dada
norma jurídica, exigindo-se, para o efeito, uma nova disposição que se encontra a menos
na lei e tornando-se, assim, necessária, pelo menos às vezes, para colmatar essa falha de
política legislativa, uma nova decisão do legislador. Por sua vez, as lacunas de regulação,
de estatuição ou inautênticas, que não inviabilizam a estrita aplicação da lei, mas que a
afetam, e que se mostram passíveis de ser colmatadas pela instância de decisão, se esta
revelar, como deve, a intenção e a teleologia da lei.

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• Da lei versus de direito.

As lacunas da lei – um conceito de certo modo genérico, englobante dos tipos


anteriormente discriminados – ocorrem sempre que o plano da regulação ou a teleologia
própria de uma certa lei, discretamente considerada, no-la revelem incompleta ou
inadequada, impendendo especialmente sobre a jurisprudência judicial o dever de as
integras. As lacunas do direito traduzem omissões censuráveis ao legislador – que ele
próprio será chamado, em primeiro lugar, a colmatar, e que, de um ponto de vista
normativo, podem ser patentes (quando do plano ou da teleologia da lei decorre que ela
deveria oferecer regulação para um determinado grupo de casos e, todavia, isso não
acontece) e ocultas (quando a lei disponibiliza a mencionada regulação, só que esta se
revela prático-normativamente inadequada, pelo que deverá ser objeto de uma
restrição, v.g., sob a forma de uma redução teleológica), e, de uma ótica cronológica,
iniciais e subsequentes (consoante, e respetivamente, o legislador a quem a omissão
deva ser atribuída ou censurada, dela haja tido, ou não, conhecimento) – na global
pressuposição do deveniente sentido de direito vigente, nomeadamente atentas as
interperlantes exigências sintetizadas nos princípios normativos e as questões
juridicamente significativas inovadoramente decorrentes do dinamismo da realidade
histórico-social.

Por fim, note-se que esta via do pensamento tradicional, é a via em que afinal se
inscreve o artigo 10.º do CC – confinava a analogia à integração das lacunas, quando nós
igualmente a reconhecemos como a modalidade de raciocínio ajustado ao problema da
judicativo-decisória realização do direito por mediação de critérios jurídicos disponíveis
e circunstancialmente mobilizáveis.

[esquema do modelo metódico: página 969 do manual)

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OS CRITÉRIOS DA INTEGRAÇÃO.

A analogia

Até ao momento, vimos a questão da perspetiva do sistema da juridicidade pré-


objetivada; consideremo-la, doravante, a partir do próprio problema jurídico
concretamente decidendo. A primeira questão será, então, a de determinar quando se
está perante um problema jurídico. Estaremos perante um problema jurídico quando não
virmos transparentemente cumpridas, na experiência que no-lo manifesta, as
justificadamente pré-supostas, mas constituendas, exigências constitutivas da
juridicidade. É este o radical do problema emergente, que, não obstante a respetiva
novidade, nos permite qualificá-lo como juridicamente relevante.

A autonomia constitutiva do julgador

Antes de mais, importa atender a certos limites inultrapassáveis à atuação


judicativo-decisória do jurista, de caráter institucional e/ou normativo, que retiram
qualquer legitimidade à mencionada intervenção, ou, quando menos, a condicionam
fortemente.

Neste sentido, aludimos à reserva de lei (categoria que designa os juridicamente


relevantes âmbitos materiais que devem ser regulados por lei, com a correlativa exclusão
das restantes instâncias a que, em regra, igualmente se comete a constituição da
normatividade jurídica vigente) e à judicial self restraint (figura de presença constante
na literatura jurídica estadunidense e segundo o qual o julgador não deve ser chamado a
traçar o programa político estratégico da comunidade.

Como exemplos dos segundos, referiremos as diversas expressões do principio do


numerus clausus (que, ao delimitar rigorosamente o espaço da juridicidade, impede a
respetiva consideração como um relativamente ilimitado campo aberto, o que não deixa
de desonerar o decidente), a regulamentação taxativa de certas matérias e as
controversas normas excecionais (que a orientação clássica – e o artigo 11.º do CC –

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Carolina Rosa

sustentam não comportarem aplicação analógica, mas que hoje em dia se não duvida
que admitem).

Além do mais, como um limite simultaneamente institucional e normativo,


convocaremos a questão posta pelo princípio da legalidade criminal: revelando-se
metodologicamente impossível, a distinção entre interpretação e analogia, e,
decorrentemente, não podendo banir-se este último tipo de raciocínio da concreta
mobilização judicativo-decisória das normas penais incriminadoras, como realizar a
intencionalidade normativa daquele princípio, ao mesmo tempo perdra-de-toque do
Direito Penal e marca-decontraste do Estado de Direito?

Voltemos, porém, à questão principal: o prius do exercício metodonomológico é


o problema jurídico concretamente decidendo e o sistema jurídico não pode ser o
definiens da autónoma relevância jurídica do mencionado problema. Rigorosamente
compreendido, o corpus iuris não é só um objeto constituído por uma cópia de critérios
fixos; é também um sentido constituendo, pois vai integrando fundamentos polarizados
numa experiencialmente radicada, intencionalmente específica e historicamente
deveniente axiologia prático-cultural, que densificam aqueles critérios e neles se
projetam, e orientam a solução dos problemas emergentes em consonância com o seu
apontado modo de ser.

Até ao momento, consideramos a interpretação jurídica – isto é, a decisão


judicativa de concretos problemas jurídicos com base no metodologicamente adequado
aproveitamento das possibilidades oferecidas pelos arrimos (critérios e fundamentos)
sistematicamente arquivados, sendo, todavia e sem contradição, igualmente certo que
aqueles problemas não deixam de redensificar estes arrimos. E recordámos que o
sistema não pode bloquear a emergência de problemas determinantes de uma
renovação da normatividade jurídica e, por isso mesmo, constitutivos do corpus iuris.

Com efeito, não estamos a falar de lacunas, pois estas omissões contra o sistema
assentavam na absolutização da respetiva pré-definibilidade. Do que se trata, é do dever
de decidir judicativamente aqueles problemas que impõem um não meramente
reconstrutivo, mas autenticamente constitutivo, desenvolvimento do sistema da

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juridicidade, que exigem uma afoita mutação, em lugar de uma tímida evolução da
normatividade jurídica.

PROPOSTA UNITÁRIA, ANALOGICAMENTE INUCLEADA, DA PROBLEMÁTICA DA


RACIONALIZADA REALIZAÇÃO JUDICATIVO-DECISÓRIA DO DIREITO.

A judicativo-decisória realização do direito implica um reflexão que se desenvolve


como um complexo sistema de ondas de propagação espiralada, conjuntamente emitidas
pelo problema interpelante e pela normatividade interpelada, que dialética e
respetivamente se projetam tanto no afinamento do específico mérito jurídico daquele
primeiro, como no apuramento do concreto critério que prático-normativamente
objetiva o segundo polo nomeado, para finalmente, convergirem e se condensarem na
determinação de um circunstancialmente adequado juízo decisório que, portanto, se nos
apresenta como o núcleo do exercício. Esta questão matricial da metodologia jurídica,
desdobra-se em outras duas macro-questões que, de resto já abordamos.

18ª LIÇÃO (resumo à mão)


SUMÁRIO:
A concorrência de normas no tempo:

• Caráter tendencialmente pré-metodonomológico e conflitual do problema.


• Princípios:
a. Princípio da garantia da estabilidade das situações envolvidas.
b. Princípio da solução normativo-juridicamente mais adequada.
c. Princípio da salvaguarda da confiança dos intervenientes.
d. Princípio da realização do interesse público.
• Orientações doutrinais:
o Doutrina dos direitos adquiridos.
o Doutrina do facto passado.
o O artigo 12.º do CC. 1.3.4. O artigo 13.º do CC.
o Coordenadas da respetiva resolução em diversos âmbitos jurídico-dogmáticos.

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