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APONTAMENTOS DE INTRODUÇÃO AO DIREITO II

Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

17ª LIÇÃO

SUMÁRIO

1. Preliminares: o objeto fundamental da metodonomologia.


1.1. O objeto intencional da metodonomologia.
1.2. Os problemas cardeais da metodologia jurídica.
1.2.1. A racionalidade.
1.2.2. O modelo metódico.
2. História da metodologia jurídica.
2.1. Orientações metodonomológicas até ao século XIX.
2.2. Orientações metodonomológicas desde o início do século XIX.
2.2.1. Orientações teoréticas.
2.2.1.1. O positivismo exegético - Escola da Exegese.
2.2.1.2. O positivismo sistemático-conceitual - Jurisprudência dos Conceitos.
2.2.1.3. O método em que convergiram.
2.2.2. Orientações práticas.
2.2.2.1. Sentido geral.
2.2.2.2. Contributos mais relevantes.
2.2.2.2.1. A Livre Investigação Científica do Direito.
2.2.2.2.2. O Movimento do Direito Livre.
2.2.2.2.3. A Jurisprudência dos Interesses.
2.2.2.2.4. A superação da Jurisprudência dos Interesses.
2.2.2.2.5. O pensamento jurídico-metodológico desde o pós-guerra.

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II PARTE – A METODONOMOLOGIA E A CONCORRÊNCIA DE NORMAS NO TEMPO

17ª LIÇÃO

1. Preliminares.

O termo metodonomologia compreende os conceitos de logos (a razão, o pensamento,


o discurso), odos (o caminho, o itinerário), meta (o fim, a meta, o que está ao lado ou além) e
nomos (o direito, aqui entendido como validade intencional de realização concreta através de
juízos decisórios).
Explorando as virtualidades combinatórias dos elementos aduzidos, podemos
entretecer uma rede semântica na qual avultam as ideias de método, de metodologia e de
metodonomologia.

§ O método é o processo, o modus pelo qual se visa alcançar um fim;


§ A metodologia é a racionalidade ou o pensamento de um processo que visa um fim
específico ou se propõe a um certo objetivo;
A metodologia consiste numa reflexão, isto é, num pensamento/discurso
(logos), relativo ao método, pelo que são hipotizáveis várias relações entre essas duas
dimensões – logos e método - que coenvolve:
• Relação de exterioridade construtiva – concebe-se racionalmente um
método, para o impor posteriormente na prática;
• Relação de imanência constitutiva – reconhece-se um método a
posteriori, analisando a praxis pregressa, da qual ser o constituens
inapercebido (o próprio modus operandi não refletido);
• Relação de reconstrução crítico-reflexiva – entender que a razão nem
prescreve um método a priori, nem o descreve a posteriori, antes,
assume a própria prática para, referindo-a aos sentidos fundamentais
que correspondem à respetiva intencionalidade, a reconduzir, numa
atitude criticamente reflexiva que encontrará naqueles fundamentos o
seu sentido e justificação, como que à razão dessa mesma prática.
A metodologia é, portanto, uma reflexão de segundo grau, porque se ocupa de
meta-problemas – por oposição aos problemas de primeiro grau, isto é, os que
resultam da frustração concreta de expetativas de sentido, cognitivas ou normativas.
De facto, só quando os meios de resolver tais problemas começam a dececionar-nos,
nos deslocamos para um segundo nível, além do primeiro e por isso se adscreve uma
índole metra-reflexiva.

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Assim sucede também no domínio do direito. Durante muito tempo, os


problema vão sendo solucionados com a quase naturalidade propiciada pela
estabilização dogmática dos paradigmas imperantes e dos seus processos operativos,
sem que questionemos, portanto, o método e a racionalidade mobilizados para
enfrentar aquelas dificuldades. A crise irrompe quando somos forçados a ganhar
distância em relação ao modus agendi e à forma mentis que utilizávamos até então
tranquila. Trata-se, pois, de problematizar o próprio pensamento com que pensamos.

Com a inserção da partícula nomos, pretendeu PINTO BRONZE precisar o caráter


judicativo-decisoriamente inucleado (jurisprudencialmente perspetivado) da reflexão
metodológica. Se a expressão metodologia jurídica nos remete para o logos (vale dizer, a ratio
intencional ou o pensamento do método pelo qual se cumprirá o objetivo de realização do
direito), a referência ao nomos situa-nos especificamente no quadro de uma determinada
compreensão da juridicidade, a qual condiciona a forma e conteúdo da proposta metodológica
avançada.
Assim, do que se trata de estudar, nesta sede, é a racionalidade (logos) de que se
deve lançar mão para trilhar o caminho (odos) que há-de conduzir a normatividade jurídica
(nomos) ao objetivo (meta) inscrito no seu modo de ser (que é a realização judicativo-decisória
da sua intencional validade). A metodonomologia é, pois, a metodologia da judicativo-
decisória realização do direito, a metodologia adequada ao nomos e polarizada no juízo.

1.1. O objeto intencional da metodonomologia – o juízo decisório.


A metodonomologia tem por objeto a prático-normativamente racionalizada
realização judicativo-decisória do direito, dizendo, portanto, respeito ao caminho
racionalizantemente percorrido pela decisão judicativa, para que in concreto se realize a
intenção prático-normativa e, portanto, fundamentadamente regulativa do direito.
Ora, a metodonomologia tem, para os juristas, uma importância decisiva, porque o
direito é uma tarefa problematicamente constituenda. Além do mais, o processo de integração
europeia faz, por um lado, com que não tenha grande pertinência uma formação jurídica
exclusivamente radicada numa consideração do direito positivo nacional e, por outro, reforça
a importância da reflexão preocupada em determinar o sentido do direito e em apurar uma
orientação metodológica que permita realizar judicativo-decisoriamente aquele sentido.
Com efeito, aludimos a uma inteleção prático-normativa do direito, que o concebe
como uma dimensão normativa da nossa praxis e que identifica o seu dever-ser com uma
validade que só em concreto se realiza. O projeto de realização de valores cumpre-se nos
juízos decisórios através dos quais o jurista avalia os problemas juridicamente relevantes e
os dirime à luz do direito, deste modo, conformando em termos jurídicos a fenomenalidade

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histórico-social. Assim, compreende-se que a relação entre logos e método postulada pela
juridicidade seja de índole crítico-reconstrutiva.
Por conseguinte, a questão: como deverá mobilizar-se um determinado corte do
sistema jurídico para que possa prático-normativamente solucionar-se um certo problema1
jurídico concreto? É este o objeto da metodonomologia, razão por que pode concluir-se que
os sujeitos a quem está confiada a decisão judicativa de específicas controvérsias
juridicamente relevantes só cumprirão a sua tarefa se lograrem rever-se na máxima nos
scimus quia lex bona est, modo quis ea utatur legitime. Além do mais, daqui se depreende
também que a metodonomologia não tem a ver com a teorética qualificação de certos
conhecimentos (de caráter empírico ou normativo) como verdadeiros, mas com a tarefa
prática de reconstituinte mobilização, ou mesmo da inovadora constituição, no iter discursivo
conducente à decisão judicativa dos respetivos critérios-fundamentos.
Dissemos já: o direito realiza-se através dos juízos decisórios – numa proposta que
procura superar tanto o racionalismo formal extremo, como o decisionismo voluntarista e
irracional. Nesta categoria que dissemos ser o objeto da metodonomologia distinguem-se,
então, duas dimensões: uma dimensão voluntarista, que decorre da decisão – uma vez que
esta é sempre o resultado de um poder, o fruto de uma voluntas, de um querer; e uma
dimensão racional, associada à ideia de juízo, que vai agora entendido em sentido material,
como juízo prático-normativo ou de fundamentação. Isto vale por dizer que a mediação
judicativa implica sempre a subjetividade de um decidente, mas que é tarefa da reflexão
metodológica garantir a racionalização daquela, pela convocação de fundamentos, que a
objetivem (rectius: intersubjetivizem) e que permitam a sua sindicabilidade. Tudo porque uma
decisão, enquanto manifestação de uma vontade-poder remete para a subjetividade apenas,
pelo que se apresenta como causa sui, ou seja, não pode ser criticada, porque é expressão
autoafirmativa de um sujeito; só que, assim concebida, a decisão judicial corre o risco sério
de ser arbitrária, violando o direito. Ora, para que a decisão possa ser aceite, para ser válida,
é preciso que seja tanto quanto possível fundamentada por argumentos de direito – estes sim
passíveis de serem criticados, contrariados e refutados. Ou seja, é necessário um juízo, ou
ponderação prudencial de realização concreta orientada por uma fundamentação
normativamente adequada e circunstancialmente pertinente, mediante a convocação dos
argumentos ocorrentes. Estes argumentos são fundamentos de significação contextual e de
reconhecida validade numa pressuposição intencional.

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Um problema é uma interrogação que emerge no horizonte da experiência culturalmente significativa,
pressuposta que seja uma determinada normatividade – com uma densidade axiológica específica, v.g., de caráter
jurídico – referida a uma factualidade.

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Por fim, compreenda-se que, no discurso jurídico, metodologicamente intencionado,


há um tempo para discutir, mas também para decidir, o que concorre para desvelar a estrutura
intencionalmente simbólica do mencionado juízo decisório, na exata medida em que só com
ele se fecha o círculo heurístico da discussão do caso, e que, portanto, plasticamente se
desenha como um anel espiralado, composto por aquelas suas duas dimensões (a
concretamente centrada problematização judicativa e a normativamente polarizada
fundamentação discursiva), que, a posteriori, se hão-de revelar perfeitamente
complementares e reciprocamente ajustadas.

1.2. Os problemas cardeais da metodologia jurídica.

1.2.1. A racionalidade.
O problema da racionalidade pode ser desenvolvido como o problema da disquisição
da racionalidade, preordenada à fundamentação da concludência discursiva do juízo
decisório, em consonância intencional com as prático-problematicamente radicadas e
mimético-poieticamente excogitadas – e, portanto, analogicamente constituendas –
exigências que inervam o específico sentido que pressuponentemente se tiver reconhecido
ao direito.
Em suma, podemos dizer que a racionalidade traduz a relação entre certa posição,
conclusão, ação, decisão e certos pressupostos materiais ou formais, que a sustentam
discursivamente, conferindo-lhe um sentido, explicando-a ou justificando-a.

Racionalidade especificamente jurídica

1. Lógico-formal do jusnaturalismo normativista e


dos positivismos legalista e analítico-linguístico.
Técnico-
Lógico-formal
especulativa
2. Teorético-explicativa dos realismos.
3. Tecnológica dos diversos funcionalismos.
Teorética Técnico-explicativa 4. Prática.
Em geral 4.1. Procedimental.
Técnico-funcional
4.1.1. Tópico-retórica.
Processual vs 4.1.2. Argumentativa.
material
Prática 4.2. Material.
Finalística vs 4.2.1. Hermenêutica.
axiológica
4.2.2. Teleonomológica.
4.2.3. Dialética.
4.2.4. Analógica.

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1.2.2. O modelo metódico.


O problema da elaboração modelo metódico tem a ver com o conjunto de operações
reflexivas, determinado por aquela racionalidade, a que importa submeter os constituídos e/ou
constituendos fundamentos/critérios jurídicos, com o objetivo de testar a respetiva
prestabilidade para a normativo-judicativamente adequada resolução de cada caso
decidendo, e que, por isso mesmo, é co-implicado pelos dois polos que assim dialeticamente
se autonomizam – pela concreta quaestio disputata e pelo corpus iuris vigente.
Impõe-se, então, a questão: quais as operações reflexivas que o jurista tem de
empreender, ao longo do percurso que culmina no almejado juízo-decisório sobre o caso
decidendo? Com efeito, compreende-se que o método de realização do direito compreende
dois momentos que se encontram interligados: o da questão-de-facto e o da questão-de-
direito.
Quanto à questão-de-facto, importa: a determinação do âmbito de relevância jurídica
do caso - partindo do caso, o jurista, na pressuposição do sistema, vai apurar a relevância
jurídica do caso e recortar o respetivo âmbito, isto é, vai determinar se o caso coloca uma
questão de direito e quais entre os factos que o compõem têm relevo jurídico, enquadrando o
caso num campo dogmático (problema da qualificação); e a comprovação desse âmbito de
relevância – trata-se do problema da prova, não basta alegar os factos, sendo necessário que
sejam provados, entendendo-se a prova, não como uma demonstração científica de verdade
teorética e sim enquanto comprovação de uma verdade intersubjetivamente significante, uma
verdade prática ou para efeitos de realização judicativo-decisória da normatividade jurídica.
Já a questão-de-direito, deverá ser considerada, primeiro, em abstrato e, depois, em
concreto. Assim, em abstrato: o jurista, iluminado pelas circunstâncias concretas – pelo mérito
material do caso decidendo – dirige-se ao sistema para determinar qual o critério
hipoteticamente aplicável de modo adequado ao problema em apreço; para, depois, proceder
à interpretação da norma mobilizada, pertencendo, porém, a interpretação ao momento
seguinte, porque só pode fazer-se em concreto. Em concreto, resta a experimentação
propriamente dita do critério hipoteticamente aventado como adequado para o caso, a fim de
infirmar ou confirmar essa sua justeza – para isso, deve cotejar o problema resolvido pela
norma, com o problema que tem diante de si, atendendo aos respetivos âmbitos materiais de
relevância, à teleologia e ao fundamento do critério normativo. É neste momento que o juiz
vai proferir o juízo decisório que põe fim à controvérsia.

2. História da metodologia jurídica.

Se o sentido das problemáticas do sistema jurídico e das fontes do direito se nos


desvelou condicionado pela concretamente pressuposta conceção do direito, também o da

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metodonomologia depende do entendimento que tivermos da normatividade jurídica vigente.


Além do mais, se de uma perspetiva intencional se deverá reconhecer o que acaba de afirmar-
se, institucional e decorrentemente não poderá ignorar-se a dependência da
metodonomologia do concreto ordenamento de direito em que a refletirmos.
Neste sentido, procuremos agora apurar em que termos as histórico-diacronicamente
dominantes conceções do direito se projetaram em sinepeicas inteleções metódico-
metodonomológicas e, decorrentemente, contribuíram para modelar a forma mentis e o
modus agendi do mencionado jurista.
Por fim, dizer que a nossa inteleção do direito, assenta na sua pré-compreensão como
iurisprudentia, que o radica num intersubjetivo-pessoalmente consonante e histórico-
culturalmente constituendo referente de validade, materialmente densificado pela dialética
pluralidade de dimensões que inervam a normatividade jurídica, e a realizar judicativo-
decisoriamente em atenção aos problemas concretamente decidendos.

2.1. Orientações metodonomológicas até ao século XIX.


No nosso horizonte geográfico-cultural, afirmaram-se, sucessivamente, até ao
positivismo jurídico, três modelos dominantes de racionalidade: uma racionalidade retórico-
prudencial em Roma, que o inucleou o juízo metódico/metodológico em contextualmente
determinadas validades comunitárias; hermenêutico-dialética, na Idade Média, que concorreu
para o centrar em textos de autoridades igualmente contextualizados; e, finalmente,
axiomático-dedutiva, com o normativismo moderno, que de todo o perdeu de vista ao
absolutizar descontextualizados sistemas epistemo-logicamente estruturados de normas
gerais, abstratas e formais.
Concomitantemente, ao longo deste extenso percurso histórico, manifestaram-se,
consonantemente, três tipos de pensamentos jurídicos metódico/metodologicamente
comprometidos. Em primeiro lugar, o casuísmo jurisprudencial romano, atento à realidade
prática, e colimado ao aequum et bonum, que ia constituindo o corpus iuris por mediação da
resolução dos problemas concretos, não tematizou o seu específico modus operandi, que
apenas pode ser considerado de uma perspetiva aposterioristicamente descritiva. Depois, a
hermenêutica jurisprudencial medieval elaborou o direito a partir de textos (Corpus Iuris Civilis
e Corpus Iuris Canonici) referidos ao contexto cultural em que a normatividade jurídica
encontrava o seu fundamento, dialeticamente mobilizados pró e contra, e interpretados,
consoante a quaestio disputata, ora em termos precipuamente filológico-gramaticais
(comprehensio ou interpretatio legis), ora mesmo reconstitutivamente inovadores (por recurso
à experiencial e analogicamente polarizada interpretatio iuris), segundo o método escolástico.
Por fim, os juristas modernos desconsideraram que o caso circunstancialmente decidendo,
quer o contexto de emergência do texto interpretando e preocuparam-se em elaborar

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antecipadamente sistemas racionalmente abstratos de normas que seriam posteriormente


aplicadas de acordo com o teorético-dogmaticamente prescrito método silogístico-subsuntivo.
Roma Idade Média Modernidade
Modelos de Hermenêutico-
Retórico-prudencial Axiomático-dedutiva
racionalidade dialética
Tipos de
pensamento
Casuísmo Hermenêutica Método silogístico-
jurídico
jurisprudencial jurisprudencial subsuntivo
metodologicamente
comprometidos

2.2. Orientações metodonomológicas desde o início do século XIX.

2.2.1. Orientações teoréticas.


No normativismo moderno-iluminista, estava já inscrita a estrutura genética do
subsequente positivismo jurídico, foi este último que definitivamente alterou o quadro pré-
existente. O legalismo identificador do revolucionário Estado de direito demoliberal francês e
o historicismo emblematicamente assumido pela coetânea cultura alemã concorreram para
reduzir o direito a mero objeto-dado (rectius: a simples objeto – suscetível de ser teorético-
cognitivamente investigado – vertido num dado – empírico-analiticamente acessível e
determinaram a emergência de uma corrente metódico-jurídica de caráter teorético, no âmbito
da qual oportunamente distinguiremos uma orientação francesa (Escola da exegese) e uma
outra alemã (a Jurisprudência dos conceitos).
Quais as notas genericamente tipificadoras da referida corrente teorética?
Desta perspetiva, o direito apresentava-se ao jurista como um heterónomo objeto de
conhecimento. O sistema jurídico era uma entidade racionalmente diferenciada, unitariamente
consistente (sem antinomias ou contradições), universalmente pleno (sem lacunas) e
problematicamente autossuficiente (fechado). Por seu turno, o jurista que subscrevesse este
modelo prosseguia não uma validade prática, mas uma mera validade lógica. Com efeito, a
sua preocupação era uma de verdade e, portanto, teorético-cognitiva, e não axiológica,
precipitada num pensamento sintático e não pragmático, de todo alheio à modelante projeção
de uma específica exigência intencional numa histórico-concreta situação problemática e
apenas centrado na apreensão de um totalmente descontextualizado significado textual.
Por que razão procedia o jurista assim?
Para depois de conhecido o direito(-lei) o aplicar em termos racionalmente objetivos e
cientificamente neutrais: num primeiro momento, o que importava conhecer era a legalidade,
que, num segundo momento, independente daqueloutro, seria, enquanto género, aplicada a

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casos compreendidos como espécies. Com efeito, estávamos perante uma aplicação de
caráter estritamente lógico-dedutivo: o direito era a premissa maior, os factos constituíam a
menor e da lógico-formal articulação de ambas resultava, tautologicamente, a solução.
Insista-se: o método jurídico pretendia transformar o problema prático do direito num
problema teorético: da perspetiva deste modelo de pensamento, o jurista(-decidente)
resolveria os problemas práticos, conhecendo o direito(-legalidade) pré-disponibilizado pelas
instâncias com legitimidade política para o criarem. Assim, o logos mobilizado pelo referido
jurista era, portanto, teorético, numa dupla aceção: que na forma de conhecer o direito, pois
o que ele pretendia era apreender a lei na sua verdade; quer na forma de o aplicar, nos termos
lógico-aléticos do silogismo judiciário.

2.2.1.1. O positivismo exegético – Escola de Exegese.


A Escola da Exegese ganhou corpo na sequência da codificação pós-revolucionária –
que, por seu turno, havia sido antecedida pela positivação do tipicamente moderno
jusracionalismo lógico-sistemático. Com efeito, as codificações da França saída da Revolução
pretendiam-se obras definitivas.
Neste sentido, impunha-se aos juristas conhecer antes a lei codificada (e era
importante esta compreensão da lei sob specie codicis, porque, de acordo com a ideia
postulada, levava recta via a pensar o direito como um sistema autossuficiente, que, pelo
menos tendencialmente, estava todo, fechado e sem contradições, no código que
sistematizava), para depois a aplicarem lógico-dedutivamente.
Assim, a tarefa do jurista consistia na exegese, isto é, na interpretação, basicamente
filológico-gramatical e observando certas exigências racionais, da referida lei codificada. Com
efeito, assente no comentário filológico-gramatical, o discurso exegético garante a
permanência da autoridade do texto comentado, mas não deixa menos de manter o texto à
distância – afinal o pressuposto da intencionada sacralização do próprio texto compreendido
como ícone.
Ora, o objetivo e os pressupostos mencionados levavam os juristas a partir da letra da
lei, que era filológico-gramaticalmente analisada. Todavia, a natural polissemia das palavras
e a incontornável historicidade da vida forçavam, por vezes, os juristas a arriscar algo mais.
Recorria-se, nessas emergências, ao espírito da lei, ao tempo, identificado com a vontade do
legislador. Deste modo, a vontade do legislador consistia na intenção histórico-subjetiva que
o titular do poder legislativo havia tido ao criar o direito(-lei), e, para a apurar, era mister
compulsar os trabalhos preparatórios e, complementar ou subsidiariamente, inserir a norma
interpretanda no sistema instituído pelo código, de que ela fazia parte, por mediação de
argumentos puramente lógico-formais, pois postulava-se que o legislador era lógico-
formalmente coerente. Ou seja: a interpretação reduzia-se ao apuramento do sentido da lei

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codificada através da análise gramatical da sua letra, operação esta, eventualmente,


completada pela estrita consideração do seu espírito, em que se tratava tão-somente de
averiguar a vontade do legislador referida a um sistema lógico-racionalmente consistente.
Por fim, note-se que envolveu-se, ainda, à época, o pensamento jurídico francês na
tarefa de sistematizar o material disponibilizado pela interpretação. No entanto, não deixava,
então, de muito clara e significativamente, nas palavras de IHERING de separar-se aquela
jurisprudência superior (a interpretação e a sistematização, confiada aos juristas-cientistas)
da jurisprudência inferior (da aplicação, intencionalmente desvalorizada e cometida aos
juristas práticos).

2.2.1.2. O positivismo sistemático-conceitual – Jurisprudência dos conceitos.


Na linha de uma centrada numa intuição gnoseológica, LEOPOLD VON RANKE esboçou
a sua teoria da natureza do Estado como instância portadora da história e da política, tendo,
por seu turno, o autor-símbolo, da Escola Histórica vindo a sublinhar, na esfera do direito: que
o seu específico problema não era de dedução ou indução, mas de adequada compreensão
do próprio direito, através da sua, como que física, apreensão.
Para a Escola Histórica, o direito era um produto histórico do espírito do povo, donde,
a oposição de SAVIGNY à codificação e, como corolário, tanto a elaboração do código civil
alemão de uma perspetiva bem diferente daquela que estivera na base do código civil francês,
bem como a entrada em vigor do BGB quase cem anos volvidos sobre a do Code Napoleón.
Além do mais, o lugar de destaque ocupado em França pelo legislador deveria pertencer, na
Alemanha, segundo SAVIGNY, à ciência do direito: a normatividade jurídica estava imersa nas
instituições culturais do povo e manifestava-se, portanto, como uma objetividade que os
juristas deveriam apurar cognitivamente.
À ciência do direito reconhecia SAVIGNY três dimensões. Uma dimensão histórica,
romanticamente voltada para o passado, que esteve na base da procura do direito germânico,
consonante com o espírito prussiano, basicamente em textos de direito romano, e contribuiu
para instaurar um método puramente exegético, porque centrado na interpretação dos
mencionados textos-documentos. Uma outra, sistemática que determinou a compreensão do
direito como uma unidade orgânica de instituições com um sentido histórico-social coerente.
Finalmente, uma dimensão prático-normativa, que traduziu a autonomização do momento da
aplicação concreta. Com efeito, é certo que as aludidas dimensões histórica e sistemática
abriam potencialmente o direito a uma certa ideia de evolução. No entanto, se acrescentarmos
que elas eram sobretudo entendidas como a base requerida por uma almejada elaboração
dogmática, logo nos damos conta da como que natural degenerescência da Escola Histórica
na Jurisprudência dos Conceitos.

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Neste sentido, note-se que foi o idealismo alemão de matriz kantiana o principal
responsável pela redução da juridicidade a um desvitalizado sistema conceitual. A ratio
essendi do direito era agora identificada com conceitos, aparecendo o texto legal como mero
ponto de partida empírico (a ratio cognoscendi) para o respetivo apuramento. Se SAVIGNY, a
partir do sistema jurídico positivo, ainda compreendia o direito como um sistema orgânico de
instituições, o seu discípulo PUCHTA inucleou-o em estruturas lógico-conceituais – a famosa
genealogia dos conceitos não era outra coisa senão a articulação (lógico-dedutivamente)
encadeada das mencionadas estruturas elementares do pensamento, em termos
geometricamente configuradores de uma pirâmide que poderia subir-se até ao princípio
matricial. Por conseguinte, o pensamento deste Autor projetou-se metodicamente na proposta
de uma fundamentação científica – axiomático-dedutivamente polarizada e lógico-
dedutivamente estruturada – das decisões judiciais, redutivamente absolutizadora do caráter
imperativo – aprioristicamente ditado e discursivo-politicamente legitimante – da legalidade.
Em termos analíticos, a lição que mais durou foi a do próprio SAVIGNY e a ele se deve
a noção de interpretação como operação intelectual, de caráter exegético colimada à
desvelação da verdade interior da lei, bem como a acentuação da importância dos elementos
clássicos no processo interpretativo das leis consideradas separadamente. Por fim, note-se
que este Autor chamou a atenção para os problemas da unidade e da universalidade do
sistema jurídico. Com efeito, a ausência de unidade era suscetível de gerar contradições, que
deveriam ser resolvidas no quadro orgânico do instituto concretamente em causa,
considerando especialmente o sentido da sua evolução histórica. Por seu turno, um défice de
universalidade poderia gerar omissões, integráveis por analogia orgânica ou, em casos mais
raros, por criação de um novo instituto jurídico, organicamente consonante com a evolução
histórica do sistema.

2.2.1.3. O método em que convergiram.


Com o tempo, os dois horizontes erigidos pela Escola da Exegese e pela
Jurisprudência dos Conceitos acabaram por fundir-se. Surgiu, assim, o método jurídico.
O pensamento jurídico que lhe deu origem era chamado a desempenhar três funções:
a interpretação das normas tomadas na sua autossuficiência significante; a construção
conceitual realizada a partir dessa base material e instrumentalizada ao apuramento da
natureza jurídica dos institutos refletidos; e, por fim, a sistematização lógico-formalmente
articulada do direito.
Desta perspetiva, o direito é um abstrato objeto pré-posto (voluntaristicamente imposto
para o pensamento em França, e historicamente pré-suposto, para Escola Histórica alemã)
vazado em normas, que os respetivos destinatários deveriam mobilizar como meras formas.
Assim, o prescritivamente elaborado método jurídico apresentava três dimensões: uma

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primeira, hermenêutica, que se centrava na interpretação teorético-cognitiva das normas


jurídicas; uma segunda, epistemológica, que dizia respeito à construção-sistematização lógica
dos conceitos inferidos pela atividade interpretativa; e, finalmente, uma terceita, técnica, que
não era mais do que a (problematicamente dualizada e cronologicamente posterior) aplicação
silogístico-subsuntiva dos mencionados conceitos aos factos a que se reduziam os casos
decidendos.
Este método veio, porém, a ser alvo de uma dupla crítica por parte do pensamento
jurídico. Uma de caráter empírico mostrou que, no plano da realidade, as coisas não
decorriam como se afirmava: as componentes do juízo do julgador eram mais prático-
valorativas do que lógico-axiomáticas. Outra, de caráter especificamente metodológico,
assumiu que a reflexão interveniente não deveria ser como se sustentava: emergiram então
correntes que desvelaram não passar a norma de eventual pressuposto do direito
judicativamente realizando.
Por fim, podemos dizer que o positivismo: não proporciona uma fundamentação
adequada ao decidente quando este não dispõe de critérios pré-objetivados e
circunstancialmente mobilizáveis; não lhe fornece cânones de uma indiscutível
vinculatividade, que para a interpretação das normas, quer para a consideração da
controvérsia relevante; centrado, como está, na dedituvidade lógico-apofântica, não orienta o
decidente, de modo ajustado, nas irremissíveis valorações, postuladas por qualquer das duas
imbricadas tarefas acabadas de referir; e não consegue controlar, em termos consonantes
com as exigências prático-normativas, as ponderações constantemente pressupostas pela
reflexão judicativo-decisória.

2.2.2. Orientações práticas.

2.2.2.1. Sentido geral.


(decisão concreta como o centro de gravidade da problemática metodológico-jurídica)
A passagem de correntes metódicas teoréticas para os movimentos metodológicos
prático-normativamente orientados – a que assim se alude (de marcada inspiração finalística,
abertos à indiscutível existência de lacunas, centrados na importância capital da decisão
concreta, disponíveis para a consideração de critérios normativos extratextuais – fins,
interesses, valores... – preocupados com a justiça, sem, todavia, descurarem a segurança, e
mobilizadores de uma criteriosamente imaginativa e especificamente intencionada
racionalidade prático-argumentativa, em superação da normativamente impertinente
racionalidade lógico-dedutiva do método jurídico – e o decorrente reconhecimento da
importância e especificidade da função) a cumprir pelo jurista decidente, no horizonte de um

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Estado de Direito dos nossos dias, concorreram para a superação do método jurídico,
compreendendo-se, portanto, a abordagem daquele primeiro ponto.

2.2.2.2. Contributos mais relevantes.

2.2.2.2.1. A Livre Investigação Científica do Direito.


A Livre Investigação Científica do Direito, a que de imediato se associa o nome de
FRANÇOIS GÉNY, empenhou-se em criticar o positivismo exegético. Na pátria do legalismo,
ousou dizer que a lei era lacunosa, que os problemas da vida extravasavam o quadro por ela
instituído e que se impunha, portanto, repensar o paradigma discursivo consagrado. No
entanto, procurou não cair em excessos: dentro dos limites que a leu pudesse operar, deveria
ser interpretada, como preconizava a Escola exegética, em termos subjetivistas, privilegiando-
se a vontade histórica do legislador.
§ Influências Capitais:
Na esteira da philosophie nouvelle de BERGSON, a ideia de que a vida não era
redutível aos esquemas da ciência empírico-analítica e a abrir-se à restauração do
direito natural; na linha de DURKHEIM, a relevar a decisiva importância da sociologia
para o direito; e, inspirado pelo dogmatismo exegético, a não descurar as tradicionais
questões da construção e sistematização típicas do positivismo jurídico.
§ Méthode d’interpretation et sources de droit privé positif, de 1899:
Nesta obra, reabilitou o costume como fonte de direito, reconheceu a
importância das autoridades (da jurisprudência judicial e dogmática) na modelação do
direito privado positivo e invocou a natureza das coisas, hoc sensu, os princípios
próprios de cada domínio normativo-jurídico, para superar as lacunas do sistema legal,
através de uma libre reserche scientifique.
§ Science et technique em droit privé positif, 4 volumes de 1913 a 1927:
Nesta obra, visou oferecer a base epistemológica da sua conceção metódica.
Com efeito, a tese defendida nesta obra é a de que a normatividade jurídica só poderia
ser compreendida por referência a um par conceitual articulador da mencionada base
filosófica com a específica modalidade de aplicação metodológica que a caracteriza:
a primeira sintetizava-se em le donné (que competiria à science investigar); a segunda
identificava le construit (que seria o resultado da elaboração daquele dado pela
technique, com vista à sua objetivação e formulação praticáveis).
Dentro da categoria dos dados, o Autor distinguia dados reais, históricos,
racionais e ideais. Com os dados – os materiais fundamentos constitutivos do direito
– contribuiu GÉNY para recuperar a importância do contexto e antecipou a decisiva

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

relevância hodierna de um referente constituendo por mediação das experiências que


se vão interpondo.
De outro lado, o construído, elaborado pela técnica, ofereceria as fontes
formais do direito positivo – e a lei deveria ser interpretada e aplicada em consonância
com o pano de fundo entretecido pelos données.
§ Apreciação crítica: o positivismo insuperado.
Ao compreender basicamente os dados da ciência como fatores pré-jurídicos
e ao postular que o construit da técnica pressupunha o direito já constituído, GÉNY não
logrou sequer apreender o problema da constituição da normatividade jurídica. Com
efeito, não basta aludir a dimensões materiais que aditivamente concorrem no direito,
para o identificar como mais do que um sopro de vento. Para aceder à determinação
do seu sentido, importa sobretudo discernir tanto a específica exigência
autenticamente espiritual que o polariza e a singular modelação do equilíbrio que, por
referência àquela instância, articula as mencionadas dimensões materiais, como a
prudencial racionalidade chamada a cumprir a aludida tarefa.

Por fim, note-se que a Livre Investigação Científica do Direito criou as condições para,
em superação das teses da Escola da exegese, desvelar o direito como algo mais do que um
sistema autossubsistente na sua normativística arquitetura dogmático-formal, mas as aporias
do pensamento de GÉNY acabaram por determinar o involutivo desânimo que perpassa as
suas ultima verba, em que reconhece ser o direito positivo o único direito verdadeiro.

TRANSIÇÃO...
O Movimento do Direito Livre e a Jurisprudência dos Interesses alemãs impuseram uma outra orientação ao
pensamento jurídico: se GÉNY ainda o compreendera teoreticamente, como uma ciência, assumiu-se, finalmente, a
ideia de que o seu problema central era prático e se polarizava na decisão concreta, o que acabaria por determinar
a revisão de certos parti pris bloqueadores (o sistema jurídico passou a compreender-se como material e aberto e
as fontes do direito não puderam continuar a ser político-constitucionalmente tematizadas), com as consequências
arrasadoras para o status quo ante – o direito e o pensamento jurídico apresentam, afinal, uma unidade intencional,
para lá da integração das lacunas manifesta-se, autonomamente, a problemática do desenvolvimento
transsistemático do direito, aquando da racionalizada realização judicativo-decisória da normatividade jurídica é
mister atender a critérios jurídicos extratextuais e a fundamentos translegais, a reflexão metodológica revela-se, ela
própria, normativamente constitutiva.

2.2.2.2.2. O Movimento do Direito Livre.


O Movimento do Direito Livre surgiu em consonância natural com as epocais
preocupações filosófico-culturais irracionalistas, arvoradas por pensadores como
SCHOPENHAUER e NIETZCHE, e, sobretudo, em resultado da atividade de certos jovens juristas,
quase todos práticos, discípulos de IHERING, sensíveis ao finalismo pragmático-
funcionalmente comprometido para que este Autor chamara a atenção e céticos em relação
às virtudes do retorno ao dogmático-abstrato conceitualismo de PUCHTA.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

Este movimento elevou a decisão concreta ao primeiro plano e subalternizou o critério


legas pré-objetivado, colocando de cabeça para baixo o modelo discursivo tradicional.
Com efeito, a Doutrina do direito livre visou revolucionar o pensamento jurídico,
revelando o esotérico e transformando o jurista. Se o pensamento tradicional absolutizava o
racionalismo lógico-formal, a orientação de que agora cuidamos deslocou-se para os
antípodas e preferiu deliberadamente o irracionalismo voluntarista e a intuição emocional do
justo concreto, no entanto, não se nos afigura aceitável abdicar da excogitação e mobilização
de uma específica racionalidade que garanta a intersubjetivamente consonante e exigível
objetividade da reflexão metodonomologicamente comprometida. Além do mais, o Movimento
do Direito Livre admitiu explicitamente a possibilidade de decisões contra legem, por recurso
a uma jurisprudência dos sentimentos, sempre que o sentido da norma circunstancialmente
em causa se não revelasse inequívoco ou aceitável, nomeadamente por provir de um tempo
há muito passado, radicando em convicções jurídico-sociais incontroversamente perimidas.
Na sua fase derradeira, coincidente com a monografia de HERMANN ISAY, continuava
a apontar a decisão concreta como o centro de gravidade do discurso metodológico-jurídico,
mas admitia a mobilização a posteriori da norma legal para controlar a referida decisão e até,
eventualmente, para a retificar, pelo que se pode dizer que a mencionada norma aparecia
apenas como o marcador tardio de uma operação que se lhe antecipava.
De facto, note-se que o Movimento do Direito Livre sustentou, em termos radicais, que
na base da judicativo-decisória realização do direito estava a voluntas e não a ratio. Ora,
pressupondo que a formal racionalidade axiomático-dedutiva era a única disponível e tendo
compreendido a respetiva impertinência metodológico-jurídica, não hesitou em precipitar-se
no abismo irracionalista. Quer dizer: a metodonomologia tem na racionalidade uma sua
ineliminável dimensão constitutiva e este movimento não nos legou qualquer proposta
metodonomológica lograda.

2.2.2.2.3. A Jurisprudência dos Interesses.


Concentremos, agora, a nossa atenção na Jurisprudência dos Interesses, a importante
escola metodológico-jurídica de Tubigen, contemporânea dos dois movimentos
precedentemente considerados, que, pelo extremo equilíbrio das suas propostas e pela ampla
aceitação de que elas justificadamente desfrutaram, teve o êxito que aqueles outros nunca
conheceram.
O seu caput scholae, PHILIPP HECK, foi fortemente marcado pelas disputas que, à
época, intranquilizavam o horizonte do direito. Contra o formalismo conceitualista, a
Jurisprudência dos interesses louvou-se no finalismo de matriz sociológica, que HECK colhera
em IHERING.

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Para IHERING, o direito deve o seu sentido a fins societariamente relevantes, conquanto
não deixe também, em termos circularmente dialéticos, de os codeterminar, e
tendencialmente equivalentes, que o vão adequando às exigências de cada campo e
concorrem para assegurar a subsistência da própria sociedade em conformidade com a
comunitariamente radicada ética pragmática e utilitarista. Com efeito, foi este autor que
chamou a atenção para a categoria interesse, que deveria substituir a vontade como elemento
decisivo na constituição do Direito Privado. Assim, apontou, basicamente, o fim como a causa
natural do direito e inscreveu a luta no seu processo genético: cada um, para sobreviver no
palco do mundo, tinha de fazer algo por si, não devendo entregar-se sem oposição às forças
que o desafiavam.
§ Pressupostos metodológicos:
Esta importante Escola alemã, de clara inspiração sociológico-finalista, feriu de
morte o formal racionalismo idealista da Jurisprudência dos conceitos, sublinhando o
imperioso dever de obediência à norma legal.
Com efeito, note-se, no entanto, se perguntarmos, afinal, o que é a lei a que se
deve obediência, a resposta difere significativamente daquela que o pensamento
tradicional nos habituara: a lei é a emblemática expressão da autonomia da
comunidade jurídica (legitimamente representada pelo legislado, enquanto a
designação englobante daqueles interesses da comunidade que obtiveram vigência
na lei) e tem por objetivo solucionar ponderadamente um certo conflito de interesses.
Assim sendo, esta escola centrou.se mais na norma-problema do que na norma-texto,
razão por que se pode dizer que ela veio substituir a legislação, se sentido comum,
por uma genuína legisprudência (hoc sensu: pela formulação ponderada de normas
jurídicas prático-problematicamente fundamentadas).
Deste modo, mais importante do que atender à vontade manifestada pelo
legislador, é considerar os chamados interesses realmente, determinístico-
mecanicisticamente causais da norma e, daí, que em matéria de interpretação, a
Jurisprudência dos interesses legou-nos uma teoria da interpretação jurídica. Ora,
para compreender o sentido normativo da norma, o intérprete deve considerar o
conflito de interesses que a norma interpretanda tivesse dirimido de determinado
modo, impondo-se-lhe depois repensar inteligentemente esse critério, atenta a
singularidade do caso concretamente decidendo. Por conseguinte, note-se a norma já
não era a premissa maior de uma inferência lógica, mas o modelo de uma ponderação
prática; e que o próprio caso se não reduzia a mera espécie conceitualmente
enquadrada e subsumível ao género norma, antes se perfilava como problema com
uma específica relevância normativo-jurídica, que importava apurar através de um
genuíno juízo autónomo de juridicidade sobre o mencionado caso decidendo.

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Em consonância com o que se acaba de dizer, distinguiu HECK os problemas


normativos do problema de formulação e o sistema interno do sistema externo. Neste
sentido, note-se que os problemas normativos identificavam, substantivamente, as
próprias questões juridicamente relevantes, radicadas em conflitos de interesses que
importava solucionar em termos prático-teleologicamente adequados; os problemas
de formulação traduziam as preocupações associadas à sistematicamente articulada
e pedagogicamente empenhada exposição das soluções acabadas de referir.
Paralelamente, o sistema interno dizia respeito à unitariamente estruturada
consideração dos problemas normativos e das suas soluções específicas; e o sistema
externo tinha apenas a ver com a expositiva reprodução, especialmente determinada
por objetivos didáticos, dos conteúdos jurídicos.
§ O Método proposto:
A proposta metodologicamente mais relevante da Jurisprudência dos
interesses consistiu na teoria da interpretação que elaborou.
Com o objetivo de apurar a vontade normativa do preceito interpretando, a que
se devia obediência e que a letra da lei apenas indiciariamente poderia desvelar, era
mister identificar, mediante sucessivos afinamentos, os interesses causais da norma,
conformadores da decisivamente vinculante imagem dos seus interesses objetivos.
Estamos, assim, perante uma interpretação histórica, de caráter assumidamente
subjetivista. Uma vez, porém, que o sentido prático-normativamente relevante do
critério interpretando era o correspondente à sua vontade normativa e não à vontade
histórico-psicológica do legislador, aquela interpretação histórica projetava-se num
subjetivismo teleológico. Com efeito, aquela vontade normativa do critério
interpretando nada mais era do que a preferência do legislador por um dos interesses
em conflito.
Atente-se agora nas notas seguintes.
Em primeiro lugar, a fundamental pressuposição da vontade normativa do
critério interpretando implicava a superação do modelo lógico-dedutivo. A
determinação da relevância do critério interpretando não consistia num exercício
conceitual, mas antes impunha uma criteriosa investigação e ponderação de
interesses. Por seu turno, o caso-problema decidendo era também autonomamente
analisado pelo jurista, em ordem ao esclarecimento do conflito de interesses em que
radicava. Por conseguinte, a mobilização daquele critério-problemático para a
resolução deste caso-problema só seria normativo-juridicamente admissível se e
quando o conflito de interesses decidido pelo legislador na norma fosse semelhante
ao conflito de interesses constitutivo da controvérsia concreta. Com efeito, significa

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isto que estes dois polos discursivos eram relacionados por mediação de um juízo
analógico.
Em segundo lugar, a referida vontade normativa viabilizou a chamada
interpretação corretiva – a possibilidade de o decidente desrespeitar frontalmente o
teor semântico-sintático das normas, para respeitar o seu sentido prático-normativo,
ou, rectius, a possibilidade de correção das normas numa sua aplicação contra legem,
mas para respeitar justamente a material vontade normativa contra o teor formal da
norma.
Noutro plano, note-se que a Jurisprudência dos interesses superou definitiva e
concludentemente as inconcludências do conceitualismo, relativamente à questão da
integração das lacunas: as lacunas não eram apenas aparentes, mas reais; o sistema
jurídico não era fechado, nem logicamente pleno, mas inconcluso e omisso na
consideração de muitos interesses igualmente dignos de proteção; a recombinação de
conceitos e a produção de normas a partir de conceitos logicamente inferidos de outras
normas não passavam de falácias retórico-argumentativas e o que importava era
ponderar adequadamente os interesses que não tivessem sido, mas devessem ser,
juridicamente protegidos.
Por outro lado, HECK era bem claro em procurar manter-se em consonância
com o legislador: o decidente não estava impedido de sustentar a relevância jurídica
de interesses marginalizados pelas normas legais pré-objetivadas, mas já estava
vinculado aos juízos de valor das normas não imediatamente aplicáveis.
Neste sentido, note-se os operadores mobilizáveis no processo de integração
de lacunas. O primeiro era a analogia: quando procedesse para o caso omisso a
ponderação de interesses em que radicava a norma diretamente reguladora de um
caso prático-normativamente semelhante, não deveria hesitar-se em lançar mão da
mencionada norma para solucionar o caso não previsto. O segundo era constituído
pelos juízos de valor dominantes na comunidade jurídica, ou pelos juízos de valor do
legislador que fosse possível conhecer: à ciência prática do direito cumpriria esclarecer
o decidente sobre o modo de os investigar. Finalmente, em desespero de causa, o
decidente era remetido para a sua valoração própria e também aqui se esperava que
a ciência do direito lhe fornecesse as ponderações determinante para a decisão
valorativa a que não poderia então eximir-se.

2.2.2.2.4. A superação da Jurisprudência dos Interesses.


Centremo-nos, doravante, na acentuação das aporias que se lhe devem apontar.
§ Insuficiência de base sociológica:

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Da perspetiva sociológica, a Jurisprudência dos interesses esteve longe de


oferecer uma proposta suficientemente elaborada. Desde logo, por ter considerado
apenas os interesses em situação de conflito, esquecendo que eles podem
apresentar-se também mais ou menos intensamente em convergência; depois, por
não ter cuidado de analisar devidamente os referentes dos interesses; e, também, por
se não ter aberto a outros fatores igualmente causais do direito, como as situações de
poder, a confiança, a responsabilidade et cetera.
§ Insuficiência criteriológica:
Ao atender apenas a interesses, nunca logrou distinguir o objeto da valoração
do fundamento da valoração.
§ Insuficiência sistemática:
A Escola de Tubingen não conseguiu compreender adequadamente a
problemática do sistema jurídico. Se é certo que relevou o sistema interno, neles não
se nos manifesta nem a pluralidade de estratos que reconhecemos no corpus iuris,
nem a particular dialética que o anima, nem a específica intencionalidade que o
autonomiza – e é na inconsideração deste último ponto que radica quer o caráter
nomartivístico da Jurisprudência dos interesses (na falta de norma-critério legal
disponível, as propostas perdiam concludência), quer o atomístico casuísmo que
justificadamente se lhe censura (as particulares decisões-ponderações jurídicas que
vão sendo proferidas não são integradas por uma racionalizante fundamentação
circunstancialmente adequada).
§ Insuficiência filosófica:
Todas as críticas aduzidas permitem ainda a observação de que se não pode
subscrever, de uma perspetiva como que filosófica, a conceção heckiana do direito.
Com efeito, o sentido do direito, para a Jurisprudência dos interesses, não implicava
qualquer dimensão de idealidade ou espiritualidade, ou apenas se dispunha a
considerar as mencionadas dimensões quando elas se manifestassem como factos
sociais – a denunciar um indisfarçável finalismo instrumental radicado num estrito
positivismo fáctico-social, e tudo revelador de que se não consegue, por esta via,
enquadrar racionalizadamente a valoração, o punctum saliens da ponderação
metodológica – aliás, porque reclama a adoção de uma outra perspetiva (centrada na
assunção por parte do jurista-decidente, do constituendo sentido prático-normativo do
direito, em ordem à sua realização judicativo-decisoriamente concreta) e,
decorrentemente, a pressuposição de bem diversos referentes discursivos (em lugar
de empírico-analiticamente mensuráveis fatores sociais, as crítico-reflexivamente
inteligíveis exigências constituintes daquele sentido).
Vias de superação.

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§ O pensamento jurídico-causal.
Na trincheira de exploração do filão sociológico, merece, desde logo, referência
o pensamento jurídico-causal que, em ordem a uma mais profunda pesquisa das
fontes ou fatores determinantes do direito, considerou não apenas os interesses sem
mais, mas igualmente as próprias sociais situações de interesses e os demais fatores
da vida empírico-socialmente causais quer das decisões do julgador, quer das do
órgão aplicador do Direito, mas mais diversas matérias.
Todavia, do ponto de vista aqui decisivo e tal como a orientação inspiradora,
não logrou distinguir o objeto e o critério de valoração, nem, consonantemente, superar
a funcionalização social do direito, que se lhe deve censurar.
Com efeito, note-se que é nesta linha que se vêm inscrever os diversos
realismos e os vários sociologismos.
§ A jurisprudência das valorações.
As insuficiências que já apontamos às diversas orientações sociológicas
abriram também espaço a outra via discursiva: aquela que foi capaz de substituir o
teleologismo caracterizador das correntes acabadas de mencionar, por uma autêntica
teleonomologia, isto é, pela assunção do compromisso axiológico-prático do direito,
inucleado na sua específica intencionalidade.
Assim, se densificou a chamada Jurisprudência da valoração. Com efeito, a
passagem a uma Jurisprudência da valoração só cobra o seu pleno sentido quando
conexionada com o reconhecimento de valores ou critérios de valoração supralegais
ou pré-positivos.

2.2.2.2.5. O pensamento jurídico-metodológico desde o pós-guerra.


(a recuperação de antigos modelos de racionalidade)
Como já se referiu, a racionalidade é uma das dimensões estruturantes da
metodonomologia. Ora, a partir dos anos 50 do século XX, em vista da comprovada
inadequação às exigências que entretecem o prático dos paradigmas em que mais ou menos
rotineiramente se insistia, assistiu-se, no mundo da cultura – e também no universo do
pensamento jurídico – à crítica veemente a essas razões erradas e, complementarmente, à
recuperação de modelos de racionalidade caídos no esquecimento, na tentativa de discerir a
matriz que garantisse a concludência da decisão judicial, atentos os arrimos materiais e
formais que nela se tivessem pressuposto.
§ Hermenêutica.
§ Tópica.
§ Retórica.
§ Teoria da argumentação.

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§ Teleonomologia.
Os modelos a que aludimos permitem evidenciar certas particularidades da
racionalidade metodológico-jurídica, no entanto, não no-la desvelam integralmente.
Com este objetivo, podemos ficar-nos pela síntese lapidar, a este propósito
excogitada, por CASTANHEIRA NEVES: são quatro as dimensões da racionalidade implicada
pela realização judicativa do direito. Uma validade pressuposta a objetivar-se numa
dogmática, por um lado, e uma problematização praxística a exigir uma mediação judicativa,
por outro lado. As duas primeiras dimensões manifestam-se num sistema normativo; as duas
outras são convocadas por um problema prático. A dialética entre sistema e problema numa
intenção judicativa de realização normativa é, pois, a racionalidade jurídica a considerar.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

18ª LIÇÃO

1. A concorrência de normas no tempo.


1.1. Caráter tendencialmente pré-metodonomológico e conflitual do problema.
1.2. Princípios.
1.2.1. Princípio da garantia da estabilidade das situações envolvidas.
1.2.2. Princípio da solução normativo-juridicamente mais adequada.
1.2.3. Princípio da salvaguarda da confiança dos intervenientes.
1.2.4. Princípio da realização do interesse público.
1.3. Orientações doutrinais.
1.3.1. Doutrina dos direitos adquiridos.
1.3.2. Doutrina do facto passado.
1.3.3. O artigo 12.º do CC.
1.3.4. O artigo 13.º do CC.
1.4. Coordenadas da respetiva resolução em diversos âmbitos jurídico-dogmáticos.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

19.ª/20ª LIÇÃO

1. A interpretação jurídica.
1.1. O sentido do problema.
1.2. O objeto da interpretação.
1.3. O objetivo da interpretação.
1.3.1. O subjetivismo e o objetivismo.
1.3.2. As orientações mistas e gradualistas.
1.3.3. A interpretação dogmática e a interpretação teleológica.
1.4. Os fatores ou elementos da interpretação.
1.5. Os resultados da interpretação.
1.5.1. O seu sentido e as suas modalidades tradicionais.
1.5.2. A alteração desse sentido tradicional.
1.6. O significado da evolução de cada um dos problemas.
1.7. As linhas de superação da tradicional teoria da interpretação jurídica.
1.7.1. Os elementos normativos extratextuais e transpositivos.
1.7.2. O continuum da realização judicativo-decisória do direito.
1.7.3. A realização do direito como o problema metodonomológico.
1.7.4. Racionalidade e esquema metódico.
2. A integração
2.1. Problema das lacunas.
2.2. Os critérios da integração.
2.2.1. A analogia.
2.2.2. A autonomia constitutiva do julgador.
2.3. Sentido geral do problema do desenvolvimento transsistemático do direito.
3. Proposta unitária, analogicamente inucleada, da problemática da racionalizada
realização judicativo-decisória do direito.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

N.b.: quando se não abordar um tópico, está implícita a remissão para outro tema já abordado.

19ª/20ª LIÇÃO

1. A interpretação jurídica.

A metodologia jurídica constitui hoje um vasto e complexo campo temático. Foi a partir
dos movimentos de orientação prática que tudo se alterou: o pensamento jurídico
metodologicamente comprometido deixou de estar obcecado com o seu estatuto
epistemológico, na ânsia de preencher os requisitos da cientificidade, passando a centrar-se
na problemática da racionalizada – e, portanto, intersubjetivamente, controlada – realização
judicativo-decisória do direito.
Por conseguinte, limitar o âmbito da metodonomologia ao círculo da interpretação
jurídica, será um redutivismo – esta será uma sub-questão daquela que se preocupa com a
pluralidade de dimensões do concreto juízo decisório.
Não obstante, reconhecemos que, no horizonte de um sistema do tipo do nosso, os
mais dos casos controvertidos serão juridicamente decididos por mediação de normas legais,
ou de outros critérios pré-objetivados no corpus iuris – donde, a inevitabilidade e importância
central da interpretação jurídica.
Por fim, dizer que entendemos a interpretação jurídica como a atividade reflexiva
tendente a desocultar o sentido que uma dada norma jurídica (lato sensu) visa exprimir.

1.1. O sentido do problema.


Desde já, diga-se que entendemos que a interpretação jurídica: é apenas um dos
momentos da complexa inveniendi da decisão judicativa; e que não consiste em atingir e
determinar a significação apenas textual dos prescritivos textos jurídicos, antes, em assumir
e realizar a tarefa prática que é própria do direito.
Na verdade, constitui hoje um lugar-comum a afirmação de que qualquer proposição
significa sempre mais – assim, se desvelando o excesso de significado em relação ao
significante. Ou ainda: na medida em que não se reduz ao enunciado literal que comunica,
um qualquer critério jurídico traduz sempre uma hesitação prolongada entre o intersubjetivo-
comunitariamente partilhado e problemático-analogicamente reconstituível sentido da
normatividade vigente e a sua histórico-culturalmente possível objetivação e praxístico-
judicativamente fundamentada mobilização.
Neste sentido, a interpretação jurídica inucleia-se na responsabilizante tarefa da
prático-normativamente adequada (i.e. em consonância com as exigências que entretecem o
direito) de mobilização de um determinado critério jurídico pelo qual o decidente se possa

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

orientar, quando se lhe impuser discernir a decisão judicativa de um caso concretamente


decidendo, ou, mais exatamente, na questão se saber como se realiza, em termos
metodologicamente corretos a determinação normativo-programaticamente adequada de um
critério jurídico do sistema do direito vigente para a solução do caso decidendo.
Por conseguinte, impõe-se a consideração de que o caso (o problema que o constitui
como controvérsia juridicamente relevante – que se apresenta como complexas e concretas
situações intersubjetivamente disputadas, na pressuposição de específicas exigências de
sentido, que as cunham normativamente ab origine) é o prius da reflexão metodológico-
jurídica. Quando, porém, se diz que o caso-problema é, na sua problematicidade (na
singularidade da sua relevância jurídica), o ponto de partida, e, na sua intencionalidade (na
fundamentação do juízo decisório que o solucionará) a perspetiva da reflexão judicativo-
decisória, isso não significa que ele deva ser analisado tão separadamente que o
compreendamos desintegrado do sistema jurídico no âmbito do qual tenha irrompido com
sentido, ou que nos recusemos a admitir que a sua irrepetível singularidade venha a
redensificar materialmente, em termos dialéticos, esse horizonte. Ou seja: o caso-problema
emerge em termos antropocronotropicamente balizados, isto é, entre pessoas
determinadas, num certo momento histórico, num dado lugar onde e modo assim – em
síntese, num concreto quadro circunstancial.
Tudo a apontar para a conclusão de que, na interpretação jurídica, não se trata de
compreender determinantemente a letra e o espírito do texto legal em questão, nem de
explicitar descomprometidamente a significação da letra da regra-prescrição em causa, mas
de reconstituir fundadamente e utilizar adequadamente uma norma do corpus iuris como
critério orientador da solução de um caso justificadamente qualificado como juridicamente
relevante. Assim, note-se: o problema da interpretação jurídica não é hermenêutico-cognitivo,
nem analítico-linguístico, mas prático-normativo. Isto por duas ordens de razões: é que a
interpretação, enquanto tarefa hermenêutica, seria, na sua inesgotabilidade, uma tarefa
impossível, dado o caráter constituendo do direito, radicado na indefinibilidade do seu sentido
(dialeticamente marcado pela historicidade da sua intenção prática e pela intersubjetividade
da sua matriz constitutiva); só a impostação das coisas, desta perspetiva, permite que o jurista
se centre – no que lhe importa – no exercício reflexivo de tentar extrair a decisão concreta do
critério interpretando.
Assim, entendemos que ao jurista não compete aceder à compreensão do sentido
(cultural, jurídico-cultural) ou da significação (linguística) dos textos jurídicos, mas atingir a
normatividade jurídica das normas jurídicas, suscetível de lhe disponibilizar um
problematicamente adequado e normativamente fundado critério normativo jurídico, impondo-
se-lhe a concentração no normativamente enquadrado e decidendo problema jurídico
concreto e, atenta a justeza que prossegue, a assunção das exigências materialmente

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

densificadoras da sua tarefa institucional de judicativo-decisória realização do direito, vazadas


no constituendo corpus iuris vigente.
Dito isto, estamos em condições de compreender a radical inaceitabilidade da
orientação tradicional (tanto do positivismo legalista, como do positivismo analítico-linguístico)
a respeito do problema da interpretação jurídica. Para a teoria positivista, a interpretação
jurídica consistia na reconstituição do pensamento contido na lei, isto é, na determinação ou
da vontade do legislador-autor da lei, ou do sentido autonomamente comunicado pela própria
lei, com total menoscabo da respetiva “aplicação”.
Ora, da perspetiva prático-normativa, o que importa é esclarecer como devemos por
critérios e fundamentos jurídicos em geral, em conexão com o caso controvertido, para
adequadamente (em termos noético-noematicamente consonantes com as exigências
constitutivas da constituenda normatividade jurídica vigente) constituirmos este último como
problema juridicamente decidendo, e como devemos utilizá-los, para adequadamente
(judicativo-decisoriamente, em dialética referência intencional à relevância que manifestam,
ao seu telos específico e àquela mesma constituenda normatividade jurídica vigente)
solucionarmos o caso-problema.
Deste modo: acentua-se o caráter analógico da interpretação jurídica; sublinha-se a
ideia de que a analogia se mostra consonante com a tensão que perpassa a
metodonomologia, pois ao aproximar polos distintos (núcleos problemáticos diferentes, mas
justificadamente equiparáveis, sub specie iuris), do mesmo passo desvela a (apenas in
concreto eliminável) infinidade de sentidos que se lhes pode imputar); e, por fim, assume-se
a compreensão de que a tarefa interpretativa não esgota a problemática metodonomológica,
consistindo antes num ato normativo que concorre, como seu elemento, na praxis
metodologicamente específica da judicativa realização concreta do direito, no horizonte do
convencionalmente estruturado (e intencionalmente polarizado numa constitutivamente
singularizadora, historicamente deveniente e intersubjetivamente regulativa dimensão prático-
normativa) quadro institucional do sistema jurídico vigente.

1.2. O objeto da interpretação.


(da norma(critério)-texto à norma(critério)-problema)
Quanto ao objeto da interpretação, a questão: qual o modo de ser da norma
interpretanda? Diremos, desde já, ser ele não a norma-texto, mas a norma-problema.
Ora, da perspetiva tradicional, o direito era entendido como texto (a textualidade é
constitutiva da norma legal), e o texto era entendido na sua globalidade, sendo composto por
dois segmentos: a letra, enquanto imediata expressão verbal da proposição; e o espírito, isto
é, o conjunto das significações imanentes à norma legal, veiculadas por vários elementos ou
fatores de interpretação (intratextuais).

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Assim, e subjacente ao que acaba de acentuar-se, encontra-se um postulado: o de


que a letra afirma, em regra (a exceção corresponde ao estreito campo de aplicação do
brocardo, in claris verbis, interpretatio non fit), um sentido pré-jurídico, a que,
aposterioristicamente, a consideração do espírito, naquele quadro previamente (definitiva,
autónoma e determinantemente) balizado, aditará um singular sentido jurídico.
Por seu turno, o aludido postulado radica em três pressupostos: na utilização, pelos
critérios jurídicos, da linguagem comum; na univocidade desta linguagem; e na
inalterabilidade do significado das expressões linguísticas comuns quando utilizadas em
critérios jurídicos. Compreenda-se a inconcludência dos mencionados pressupostos: o
primeiro, ao fazer tábua rasa da intencionalidade prático-normativa que cunha ab origine a
linguagem jurídica, inconsidera a decisiva relevância do concreto jogo de linguagem em que
uma certa proposição vem à epifania; o segundo, ao postular a fixidez das significações,
ignora a historicidade que radicalmente as perpassa e que inelutavelmente as expõe ao jogo
dos tempos, dos lugares e dos modos; por fim, o terceiro, ao contrapor, em referência ao
critério interpretando, uma significação comum e uma outra jurídica, levanta os problemas da
impertinente determinação daquela primeira e da inadmissível cisão de uma questão, afinal,
unitária. Finalmente, todos eles, ao atenderem apenas a dimensões semântico-sintáticas,
apagam a normativo-juridicamente fundamental dimensão pragmática da linguagem jurídica.
Disto isto, se nos perguntarmos pelas instâncias de determinação do sentido normativo
de um certo critério jurídico, diremos serem elas, dialeticamente, os respetivos contexto de
aplicação, identificado pelo caso-problema judicando, e contexto de significação, traduzido
pelo constituendo sistema da normatividade jurídica vigente.
Em suma, ao jurista-decidente não importa a norma enquanto corpus semântico-
prescritivo, que comunica impositivamente um sentido literal, mas a norma enquanto regula
prático-normativa, que se revela apta para orientar, em termos também prático-
normativamente fundamentados, a solução de um problema, ou de uma série de problemas,
a que justificadamente se reconheça uma relevância especificamente jurídica, pois, de
contrário, em vez do significado dominar o termo, é o termo que domina o significado.
Por fim, dizer que a posição de princípio que se tome quanto ao objeto da
interpretação, condiciona a perspetiva adotada, não só em matéria de elementos, como
também de objetivos e resultados interpretativos.

1.3. O objetivo da interpretação.

1.3.1. O subjetivismo e o objetivismo.


A respeito do objetivo da interpretação, (para que é que se interpreta?), a literatura
jurídica do século XIX hipertrofiou a polémica entre o subjetivismo e o objetivismo.

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

O subjetivismo via a norma como um comando, imposto por uma vontade – centrando-
se, portanto, na determinação da intentio auctoris ou da mens legislatoris. A seu abono, tendo
por pretensão fixar a vontade do legislador histórico, louvava-se na segurança jurídica e no
princípio da separação de poderes, mas podia originar uma inaceitável fossilização do direito
se mediasse um longo período de tempo entre a entrada em vigor da norma interpretanda e
a ocorrência do problema justificativo da respetiva mobilização.
Por seu turno, o objetivismo pretendia apurar o sentido vazado ou condensado na
norma interpretanda – preocupando-se, consequentemente, em aceder à intentio operis, ou
à mens legis. A seu favor, intentando apurar o sentido da lei, concorria para realizar a
historicidade do direito, e, portanto, à sua conformação à vida, mas era suscetível de potenciar
o perigo do arbítrio jurisdicional.
Por nossa parte, observe-se que estas duas orientações radicam em diferentes
conceções do direito: o subjetivismo, inspirado pelo pensamento revolucionário remetia o
direito à voluntas do legislador; e o objetivismo, menos politicamente cunhado e mais
culturalmente marcado, referia o direito a uma logicamente coerente ratio ordenadora.

1.3.2. As orientações mistas e gradualistas.


É verdade que ainda hoje se insiste na disputa entre subjetivismo e objetivismo.
Todavia, no seu artigo 9.º, o nosso Código Civil optou, cautelosamente, por uma transação
entre ambas, assumindo uma posição gradualista, ou (rectius) mista.
Retomemos o que se disse. Uma vez que a norma era considerada como um texto, a
discussão fundamental no que toca aos fins da interpretação, girava em torno das correntes
subjetivistas e objetivistas, atualistas e historicistas. Tratava-se de saber se a descoberta do
significado do texto se obtinha mediante uma referência ao respetivo autor (o sujeito) ou
emanava do texto enquanto tal, independentemente da vontade do legislador que o criou, e
se o momento preciso para fixar esse sentido deveria ser o da elaboração do texto ou da sua
interpretação. Com o tempo, as duas dicotomias cruzaram-se, gerando proposta de
subjetivismo atualista e de objetivismo historicista. No fundo, o debate resume-se à
contraposição típica dos estudos literários, entre o relevo da intentio actoris e da intentio operis
na determinação do sentido de um texto.
De um lado, visa-se a reconstituição da voluntas ou da mens legislatoris. Neste caso,
interpretar consiste em atingir a vontade histórico-psicológica do legislador real, determinando
histórico-filologicamente o conteúdo que aquele sujeito pensou e quis consagrar na lei. Por
outra banda, aponta-se à reconstituição da mens legis: o sentido que o texto legal incorpora
e exprime autonomamente, i. é, com abstração do sujeito legislador real que foi o seu autor.
Na sequência do referido acima, convém não esquecer que o objetivismo e o subjetivismo se
desfiaram em várias correntes mais ou menos radicais, de tonalidade mais ou menos

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dogmática, etc., e que, gradualmente, foi a modalidade atualista do objetivismo a impor-se,


abeirando-se mesmo da referência ao elemento teleológico e projetando-se inclusive na
chamada presunção do legislador razoável. Por fim, note-se que a presunção do legislador
razoável conhece três declinações, das quais apenas as duas primeiras foram expressamente
consagradas no nosso Código Civil (art. 9.º/3): a presunção de razoabilidade material ou no
tocante ao conteúdo ou mérito substantivo (a ideia de que o legislador consagrou as melhores
soluções); a presunção de razoabilidade em termos formais ou quanto à expressão (a ideia
de que o legislador soube exprimir o seu pensamento com a correção bastante); e a
presunção de razoabilidade num sentido temporal ou diacrónico (a ideia de que o legislador
empregou formulações e adotou prescrições flexíveis e como tal suscetíveis de irem sendo
atualizadas em função dos condicionalismos em que forem sendo chamadas a atuar).
Artigo 9.º do Código Civil – Interpretação da lei

1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento
legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi
elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei
um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções
mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

A questão: sobejará alguma legitimidade ao pensamento jurídico para eventualmente se desviar da


posição assumida pelo legislador, relativamente ao problema da interpretação, ou deverá qualificar-se a
mencionada posição como imperativa? Qual o valor normativo de um cânone metodológico legislativamente
prescrito?
Ora, uma norma como a do artigo 9.º CC não é equiparável a qualquer outra que vinculativamente decida
uma particular controvérsia jurídico-dogmática, mas também se não pode qualificar como uma completa inutilidade.
O que acontece é que a quaestio disputata não pode deixar de ser estritamente determinada pelo modo como o
pensamento jurídico, tomado como auditório argumentativo, considere o sentido do direito e, nomeadamente, o
tipo de discurso implicado pela sua judicativo-decisória realização. E, sendo assim, a orientação legislativamente
privilegiada valerá o que puder valer – terá o mérito e a prestabilidade que resultarem do seu grau de coincidência
com a posição em cada momento e a propósito subscrita pela mencionada instância crítica (o pensamento jurídico,
tomado como auditório argumentativo – isto é, não como um conjunto de vontades discretas e tendencialmente
arbitrárias porque inucleadas em impulsos vitais insindicáveis, mas como o ético-praticamente responsabilizante
constitutivo da comunidade jurídica do tempo – relevando todas as dimensões que entretecem a juridicidade.
Em suma, a metodonomologia é, reservadamente, da legitimidade do pensamento jurídico e não do
legislador, pelo que este não deve invadir um espaço temático que, ratione materiae, lhe está vedado.

1.3.3. A interpretação dogmática e a interpretação teleológica.


A superação da dicotomia precedentemente analisada abriu espaço a uma outra –
àquela que veio opor a interpretação dogmática à interpretação teleológica. A primeira
procurava determinar um sentido logicamente coerente da norma interpretanda com o sistema

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conceitual, de base legal, de que ela fazia parte; a segunda referia a norma ao fim prático por
ela visado. Assim, diremos ser a interpretação dogmática uma operação sintática e a
interpretação teleológica um manifesto de caráter pragmático.
Ora, assim entendidas e levadas às últimas consequências, a interpretação dogmática
dessoraria ou formalizaria o direito, e a interpretação teleológica instrumentalizá-lo-ia ou
funcionalizá-lo-ia. No entanto, sabemos ser hoje a dogmática uma dogmática de
fundamentação, polarizada nas normativo-juridicamente e prático-problematicamente
redensificantes exigências de validade que cunham o corpus iuris. E também não ignoramos
ser o telos não heterónomo ao direito e suspeito de traduzir uma acrítica cedência a um mero
consequencialismo, nem dissolvente da sua intricada unidade, mas, antes, remeter a uma
genuína teleonomologia, a implicar uma prático-racionalmente controlada, normativo-
juridicamente intencionada e judicativo-decisoriamente inucleada realização dos fins
especificamente constituintes da constituenda normatividade vigente, e viabilizadora da
justeza sistemático-normativa (a aferir ante o corpus iuris) e da justeza problemático-judicativa
(a aferir ante a quaestio disputata) dialeticamente conformadores da solução dos concretos
casos jurídicos decidendos.
Neste sentido, quando adequadamente compreendidas, tanto a (mais imediatamente
racionalizante) interpretação dogmática, como a (mais visivelmente dinamizante)
interpretação teleológica são perpassadas pela dialética sistema-problema – um definiens do
discurso jurídico metodologicamente comprometido – podendo afirmar-se que cada uma
daquelas dimensões encontra na outra a outra face de si própria.
Por fim, observe-se que a orientação propugnada: por um lado, não inviabiliza a
disquisição de uma única solução como a normativamente exigida pelo caso decidendo – não
que ela seja passível de demonstração apodítica, nem que se perfile como a
circunstancialmente determinada concretização de uma ideia regulativa, antes daquela única
que pode considerar-se concludentemente legitimada pela reflexão fundamentante, atenta à
pluralidade de estratos que entretecem o corpus iuris vigente; por outro lado, a teoria do direito
procurou racionalizar o processo de conversão do telos fático, num autêntico telos normativo,
juridicamente pertinente, todavia, não teve êxito na tentativa, pois o seu específico
instrumentarium teorético-científico, embora considere fatores condicionantes do direito, não
se revela a lupa requerida para a captação do seu prático-normativamente decisivo sentido
predicativo.

1.4. Os fatores ou elementos da interpretação.


(os elementos tradicionais da interpretação e a sua evolutiva mudança de sentido)
A questão: em que se baseia a reflexão interpretativa?

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Na esteira de SAVIGNY, o pensamento jurídico clássico insiste nos elementos ou


fatores gramatical, histórico, sistemático e lógico ou racional.
O ARTIGO 9.º DO CC
Não é por acaso que o artigo 9.º/1 abre uma referência à letra da lei e à reconstituição a partir dos
textos do pensamento legislativo; e o nº 2, prescrevendo um limite às não estritamente literais inferências ainda
autorizadas pelo nº 1, revela a importância decisiva que o legislador entendeu dever atribuir ao elemento
gramatical. Tudo isto significa que o CC, ao reconhecer um valor determinante e autónomo à letra da lei e ao
centrar-se na norma-texto (letra mais espírito), não logrou superar – antes assumiu deliberadamente – a índole
hermenêutico-cognitiva do exercício interpretativo. É certo que o dualismo, de inspiração antropocêntrica,
concorreu para viabilizar uma tendencial superação do redutivo caráter semântico-literal da interpretação , que,
no seu radicalismo, a perspetiva analítico-linguística haveria de reinstaurar; e que a presunção do legislador
razoável, acolhida no artigo 9.º/3, primeira parte, ao privilegiar o objetivo de permitir tirar das normas o que, com
razoabilidade prático-teleológica, nelas se deva considerar consagrado, também se inscreve na mesma linha.

Da perspetiva tradicional, como se realiza a interpretação?


Ora, como a norma era encarada enquanto texto e numa perspetiva estritamente
hermenêutica, o ponto de partida não poderia deixar de ser a letra – a dimensão ou segmento
visível desse texto. O elemento gramatical constituía o fator fundamental e determinante,
assumindo um sentido dúplice: positivo e negativo. Negativo, porque a letra definia o círculo
de sentidos admissíveis, tanto maior, quanto maior a polissemia dos termos empregues;
positivo porque, de entre as possibilidades interpretativas ainda cabíveis no significado das
palavras usadas, se deveria privilegiar aquela que mais próxima estivesse do significado
literal.
Assim, os demais elementos interpretativos só poderiam ser equacionados dentro dos
significados admissíveis pela letra da lei, para ajudar a determinar qual deles deveria
prevalecer. Eram estes elementos: o histórico, isto é, as circunstâncias históricas que
rodearam a emergência do texto e o percurso que culminou especificamente na sua criação;
o lógico/sistemático, que respeita à unidade lógico-estrutural da norma e sobretudo à sua
inserção dogmática no sistema normativo e na pirâmide de conceitos; e teleológico. De todo
o modo, o intérprete nunca poderia, com recurso a tais elementos interpretativos, alcançar um
resultado que não tivesse na letra da lei um mínimo de correspondência verbal.
Com efeito, a lei assume uma função autónoma negativa de exclusão, analítica e
cronologicamente prioritária relativamente à consideração dos demais elementos
interpretativos, pois que define, com força normativo-prescritiva os limites de significação do
texto. Neste sentido, alguns autores, como LARENZ, vêm nela a fronteira da interpretação, uma
vez que lhe cabe definir essas balizas dentro das quais o processo interpretativo se pode
mover; para outros, como ENGISH, será suficiente que o pensamento legislativo, determinado
com recurso aos demais elementos interpretativos, tenha na letra uma expressão mínima,
uma alusão, ainda que imperfeita ou incompleta. Graças a este relevo negativo, a letra da lei

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atua, antes do mais, mediante o afastamento de todos os objetos, factos, situações, casos,
entre outros, que nela não tenham qualquer arrimo. Por outras palavras, ao traçar as fronteiras
da interpretação a letra da lei identifica logo os candidatos negativos à significação do texto,
isto é, todos os significados que inequivocamente exclui.
Depois, o elemento gramatical intervém num sentido positivo, e com valor meramente
indicativo, na seleção do significado a privilegiar em definitivo – pois que a norma, no final, só
poderá ter um sentido para poder ser mobilizada enquanto premissa maior do silogismo
judiciário. De entre os sentidos possíveis, a letra da lei ajuda agora a escolher os mais naturais
ou imediatos, ou seja, os que mais diretamente correspondem aos usos na linguagem comum
ou jurídica das palavras em causa – candidatos positivos – e, ao mesmo tempo, identifica
aqueles outros sentidos, ainda possíveis (porque permitidos pela letra), mas de uso menos
habitual – candidatos neutros.
Em suma, por referência ao elemento gramatical, teríamos: sentidos excluídos (casos
de certeza negativa), sentidos incluídos (situações em que se verifica uma certeza positiva) e
sentidos menos imediatos ou comuns (em que subsistem dúvidas quanto à sua inclusão,
embora não possam ser excluídos a partida).

Apreciação Crítica
A palavra é, decerto, a desmistificação do absurdo, pois introduz e traduz, num
indiferenciado horizonte integrante de todos os possíveis, a seleção de um (aberto) espaço
de significações racionais. No entanto, a sua ineliminável abertura – decorrente da
impossibilidade de se definirem aprioristicamente as possibilidades instituídas – impõe, no
campo específico da reflexão metodonomologicamente comprometida, a pressuposição das
constituendas exigências predicativas da juridicidade, para vir a ser concreto-
situacionalmente superada, em termos circunstancialmente (normativo-procedimentalmente)
adequados. De outro modo: se a palavra elimina o sem-sentido, nunca anula a
problematicidade do sentido instaurado, razão por que o respetivo advento não é bastante
para que o homem, no munda da vida, se desonere da interpretação prática, nem, no mundo
do direito, para que o decidente epicrítico possa inconsidera a tarefa da interpretação jurídica.
Todavia, a perspetiva tradicional não logrou dar o salto apontado, nem viabilizou o
acesso à inteleção acabada de de desvelar.
Com efeito, a orientação hermenêutico-exegética absolutiza a importância do texto da
norma legal e, dentro deste, da sua base literal. Se, porventura, subsistir uma indeterminação
insuperável ao nível da mera consideração da letra, recorrer-se-á ao espírito do critério
interpretando, constituído pelos restantes elementos interpretativos. No entanto, a apontada
relevância apenas subsidiária do espírito desvela o acentuado caráter determinante da letra;

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

e, na medida em que só poderá ser convocado para esclarecer um dos significados possíveis
da letra, manifesta o valor autónomo reconhecido a esta última.
Porém, se recordarmos a natureza metafórica das palavras e, sobretudo, se
compreendermos, prático-normativamente o problema da interpretação jurídica, deixa de
poder atribuir-se à letra da norma interpretanda uma qualquer densidade específica, ou um
qualquer relevo básico, autonomamente determinante da tarefa, pela decisiva razão de que
se trata então de utilizar, em termos juridicamente adequados – uma adequação a instituir
poieticamente e radicada na complexa e singularmente intencionada dialética entretecedor do
cado decidendo e do fundamento-critério da respetiva solução – daquela norma problema.
Neste sentido, não existe uma hierarquia fixa dos vários fatores, apesar de, desde os
estudos levados a cabo pela Jurisprudência dos Interesses, se vir salientando o especial
relevo do elemento teleológico. Ora, note-se que a teleologia da norma foi entendida de modo
diferente ao longo dos tempos: primeiro como ratio legislatoris; depois, como ratio legis;
posteriormente como ratio iuris (entendido como sistema) e, finalmente, como a razão do
direito, enquanto verdadeiro ius (que dá sentido normativo-jurídico à norma). Por sua vez, o
elemento sistemático remete agora para os liames axiológicos e intencionalmente prático-
problemáticos que unificam o direito em vigor e o elemento histórico pressupõe uma
consideração do contexto dogmático e axiológico-normativo em que a norma emergiu, para
além da investigação da sua génese prescritiva.
Em suma, tudo o que foi dito a revelar a incompreensão do sentido do problema da
interpretação jurídica por parte orientação exposta. É que do que se trata, nesta sede, é de
ponderar prudencialmente a eventual relevância jurídica de uma concreta situação da vida,
razão por que, em lugar da meramente reprodutiva-explicativa interposição-aplicação de um
glossário de definições, se impõe a autenticamente reflexivo-performativa pressuposição-
realização de um sentido deveniente. É que verbis igitur nisi verba non discimus e os juristas
têm é que decidir judicativamente problemas específicos, pressupondo um constituendo
conjunto de particulares exigências ou dimensões de sentido; e isto nos desvela o abismo que
entre existe entre a norma e o problema, a propugnar a inadequação de uma qualquer
perspetiva hermenêutico-cognitiva de interpretação, enquanto modus decidendi. Por fim, dizer
apenas que este não é um qualquer sentido (como um hipotético sentido comum): o referente
pressuposto pela interpretação de normas legais é o seu específico sentido jurídico, atenta a
intenção também especificamente jurídica, que devenientemente o constitui.

1.5. Os resultados da interpretação.

1.5.1. O seu sentido e as suas modalidades tradicionais.


O que é que se obtém com o exercício interpretativo?

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Relativamente a este tópico, lembremos a atitude preconizada pelo método jurídico.


Para além da interpretação autêntica (a soberanamente realizada pelo legislador) e da
interpretação revogatória ou ab-rogante (aquela que o intérprete deve lançar mão para
superar uma contradição insanável entre duas disposições legais), a referida perspetiva
centra a interpretação na norma-texto, tomada na sua autossuficiência significante, e procura
constatar, ou reestabelecer, o equilíbrio das duas grandezas que a conformam: a letra e o
espírito.
Ora, se uma e outra coincidirem (se o sentido imputado à letra for corroborado pelo
inferível espírito), nada mais se impõe do que uma mera interpretação declarativa, como que
confirmadora da mencionada constatação. Por seu turno, a interpretação enunciativa decorre
da estrutura lógico-apofântica da orientação tradicional e consiste na explicitação de um
critério virtualmente contido numa norma pré-objetivada no sistema e dele desimplicado
(unum ex alio) por mediação de inferências lógico-jurídicas, sintetizadas nos clássicos
argumentos: a maiori ad minus, a minori ad maius, e a contrario.
Porém, pode acontecer que as duas mencionadas grandezas não coincidam –
constatando-se um desvio entre ambas. Nesta hipótese, importa distinguir: se o sentido
decorrente do espírito for mais amplo do que o atribuível à letra, impor-se-á, com base no
argumento a fortiori, uma interpretação extensiva, isto é, uma ampliação do alcance da letra
para a adequar ao espírito; se ocorrer a situação inversa (espírito menos amplo que a letra),
atento o argumento cessante ratione legis cessar eius dispositivo, realizar-se-á uma
interpretação restritiva, isto é, uma redução da letra para a adequar ao espírito.
Tudo o que significa que o espírito permite vencer muito daquilo a que se não escapa
no domínio do corpo, ou que se subtrai às suas rédeas. Todavia, do ponto de vista aqui em
causa, é sempre no corpo que o espírito encarna, como é nele que e projeta a inquietação
perturbadora do espírito.

1.5.2. A alteração desse sentido tradicional.


Superada esta incompreensão da interpretação jurídica e assumida a perspetiva que
temos vindo a propugnar, tudo se altera também no âmbito problemático dos respetivos
resultados. Do que se trata, então, é de utilizar, de um modo prático-normativamente
adequados, os critérios justificadamente mobilizados para orientar as concretas decisões
judicativas.
Ora, nestoutro entendimento da questão principal, o pensamento jurídico acabou por
abrir-se à consideração de resultados interpretativos incompatíveis com a orientação
tradicional e inucleados na convocação da relevância, da teleologia e do fundamento do
critério interpretando. Com efeito, uma vez que a norma é encarada como solução jurídica
para um problema, a interpretação consiste nuclearmente na comparação entre o caso

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exemplo e o caso concreto, em busca de semelhanças à luz do sentido do direito. Desta


comparação, podem resultar várias hipóteses de interpretação:
§ Atendendo aos respetivos âmbitos de relevância material do caso e da norma para
além dos casos de assimilação total da relevância concreta do caso pela relevância
hipotética da norma, pode haver espaço a uma adaptação extensiva ou restritiva da
norma ao caso ou a veras correções da norma, se esta for atípica e se justificar a sua
convocação in casu (o que corresponde às hipóteses de assimilação parcial), quando
não ao seu abandono, porque a norma já não se revela adequada ao caso (sendo
superada por obsoleta, no que é uma manifestação dos limites temporais da
legislação);
§ Considerando a teleologia da norma, podem justificar-se correções e,
nomeadamente, a exclusão, do âmbito de aplicação de uma norma, de casos que
literalmente por ela estariam abrangidos (redução teleológica) ou a inclusão de casos
que formalmente não caberiam na norma (extensão teleológica);
§ Tomando em linha de conta os fundamentos da norma (de que depende a respetiva
validade), poderá ser objeto de correções interpretativas [quando, projetada sobre o
caso, manifeste uma incoerência, se bem que ainda sanável (justamente através da
correção) relativamente ao(s) princípio(s) normativo(s) em que se louva] e até acabar
por ser preterida ou superada - caso se conclua que a norma, mobilizada para resolver
o caso concreto adquire um sentido que irremediavelmente a incompatibiliza com os
princípio(s) normativo(s) em que se baseia, ou porque parece ter já nascido em
contradição flagrante com eles – e aí teremos a preterição – ou porque o sentido
destes entretanto mudou, ou surgiram mesmo princípios novos - e aí estaremos diante
de um caso de superação da norma (porque entretanto caducou, expondo os limites
temporais da norma).

1.6. O significado da evolução de cada um dos problemas.


(o caso decidendo não só como objeto da metodologia jurídica, mas como ponto de partida e perspetiva
do exercício metodonomológico)
Tentemos agora sintetizar os esclarecimentos precedentes.
O quadro de pressuposições em que assentava a orientação tradicional em matéria
de interpretação jurídica foi profundamente reconstruído.
I. Quanto ao objeto:
Alterou-se a compreensão do objeto da interpretação: deixou de pôr-se a tónica
nas palavras que plástico-semanticamente conformam a norma em causa e passou a
atentar-se nos problemas que prático-normativamente a densificam (...da norma-texto,
à norma problema).

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

II. Quanto ao objetivo:


Em lugar da estéril disputa da preferência pelo esclarecimento da intentio
auctoris ou da intentio operis, assumiu-se a responsabilidade da cumulativa
determinação do dogmático-axiologicamente modelado sentido teleológico-jurídico do
critério interpretando – da oposição entre objetivismo e subjetivismo à
complementaridade entre interpretação dogmática e teleológica.
III. Quanto aos elementos:
Reviram-se o significado, a importância relativa e o próprio catálogo dos
elementos ou fatores interpretativos.
Com efeito, a justificada impostação prático-normativa da interpretação jurídica
implicou a aludida mudança de significado: o elemento gramatical deixou de ser um
“em si” tranquilamente suficiente e volveu-se num “para nós” ebulientemente
interpelante, pois trocou a aderência às palavras pela referência ao direito; o elemento
histórico abdicou de confinar-se à descrição da fenoménica criação da norma, e abriu-
se, logo com a Jurisprudência dos Interesses e na pressuposição da razoabilidade
formal e substancial do legislador, à consideração do seu hermenêuticamente
deveniente e intencionalmente específico sentido problemático; o elemento
sistemático abandonou a pretensão de articular, lógico-conceitualmente uma norma
com as demais, e passou a centrar-se na dilucidação dos liames dogmáticos e
axiológicos que a entretecem com os restantes estratos do adequadamente
perspetivado corpus iuris vigente; e o elemento teleológico rompeu quer com a
vinculação à subjetivística ratio legislatoris, quer com a redução à normativística ratio
legis, e, depois de se ter convertido em elemento indiciador de uma verdadeira
alteração de sentido do problema da interpretação jurídica, como que se fundiu com o
também prático-normativamente compreendido elemento sistemático (que, num
horizonte significante, corresponde à estreita articulação dos elementos sistemático e
lógico, defendida pela perspetiva tradicional – para a qual, tanto um como o outro
estavam na base do esclarecimento do conteúdo da regulamentação legal a partir da
referência do preceito em causa não só à sua estrutura lógica interna, mas também
ao conjunto das restantes normas do sistema) polarizou-se na axiológico-
normativamente intencionada ratio iuris, enriqueceu-se com a experimentação
jurisprudencial e transmutou-se em elemento teleonomológico.
O reconhecimento do mérito autónomo do caso decidendo e a sua
compreensão como efetivo prius discursivo concorreram para que o elemento
gramatical perdesse o seu estatuto de fator autonomamente determinante da
interpretação. Assim, de uma ótica prático-normativa, deixa de ser possível, e não é
seguramente pertinente, indicar o elemento interpretativo em abstrato preponderante.

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Com efeito, se o que importa é resolver, em termos juridicamente adequados, os


problemas concretos, também aquela hierarquização depende das circunstâncias,
revelando-se insuperavelmente contingente. Não obstante, talvez seja legítimo
apontar a dialética em que se enredam os prático-normativamente compreendidos
elementos sistemático e teleológico, densificada como é pelo histórico-culturalmente
constituendo e judicativo-decisoriamente realizando sentido do direito vigente, como a
resposta avisada à questão originadora das considerações precedentes.
IV. Quanto aos resultados:
Tudo quanto se acentuou concorreu para a desvelação de resultados
interpretativos que a retórica discursiva positivística não poderia ter proposto, por não
radicarem já na primazia do elemento gramatical e da tensão letra-espírito, e antes
implicarem uma outra constelação de referentes polarizada nas normativo-
juridicamente adequadas compreensões do caso decidendo, do critério interpretando
e da relação que os articula.

1.7. As linhas de superação da tradicional teoria da interpretação jurídica.

1.7.1. Os elementos normativos extratextuais e transpositivos.


A recompreensão do problema da interpretação jurídica foi condição da emergência
de fatores interpretativos bem diferentes dos que se estava habituado a convocar, e que
analisámos.
Referimo-nos, aos inucleados em dimensões axiológico-práticas,
fundamentantemente constitutivas da normatividade jurídica – pense-se nos princípios
normativos e na pluralidade de vetores que a sua autonomização permite revelar – e àqueles
outros mais imediatamente associados ao compromisso prático-social da juridicidade –
lembre-se a importância cardeal da realidade na modelação do direito.

1.7.2. O continuum da realização judicativo-decisória do direito.


Aqueles mesmos topoi – que se reconduzem a uma das notas capitais do atual
pensamento jurídico metodologicamente comprometido, o de que o seu objeto é a judicativo-
decisória realização do direito e não a lógico-dedutiva aplicação da lei – e ainda o adequado
entendimento do sistema jurídico determinam uma totalmente diferente conceção do exercício
metodonomológico: o papel tradicionalmente cometido à norma cabe agora ao
sistematicamente enquadrado caso concreto; a pertinente suficiência de qualquer dos
estratos do corpus iuris, atenta a respetiva intencionalidade problemática, permitirá soluciona-
lo com base num mais ou menos denso ou rarefeito critério ou fundamento pré-objetivado na
sua irreprimível deveniência; e, no limite, a novidade de um caso, ainda justificadamente

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Davide Rodrigues 2016/2017 Primeira Turma

qualificado como juridicamente relevante, por referência ao constituendo sistema de direito, e


a abertura deste último viabilizam o desenvolvimento transsistemático da normatividade
jurídica vigente.
Deste modo, perfila-se, diante de nós, uma escala gradativa distinta da sublinhada
pelo positivismo, em que as concludentemente reconhecidas centralidade do caso e sentido
do sistema determinam a distinção dos concretos problemas jurídicos que encontram na
predisponível e apenas redensificável normatividade jurídica o citério/fundamento da sua
decisão judicativa, daqueles outros que autenticamente postulam o aludido desenvolvimento
transsistemático do direito (i.e. o alargamento em extensão, que não o mero aprofundamento
em intensão, do corpus iuris). É que o positivismo cindia a interpretação da lei e a integração
das lacunas, consoante ainda se estivesse dentro de uma das aceções possíveis da hipótese
textual da norma diretamente reguladora dos factos controvertidos, ou aquela hipótese
normativa apenas fosse indiretamente convocável em virtude da suficiente semelhança dos
factos previstos e dos factos omissos.
Ora, a referida escala gradativa manifesta-se no acentuado continuum
interpretação/aplicação e interpretação/integração. Com efeito, a importância fulcral, no
horizonte metodonomológico, do caso decidendo e dos princípios normativos
circunstancialmente pertinentes, mostra que o sentido normativo do critério jurídico
hipoteticamente disponível e adequado não pode antecipar-se em abstrato, as apenas
alcançar-se no termo de uma reflexão como que tripolarizada – porque centrada naquele caso
e, em hermenêutico-dialética circularidade, atenta quer à norma-critério, quer aos respetivos
princípios-fundamentos. E, depois de vencida a absolutização da norma-texto, de clarificados
os limites da legislação e de rigorosamente compreendido o sistema jurídico – tudo quanto se
reconduz à inteleção da matricial historicidade e da específica intencionalidade da praxis e do
nomos – percebeu-se também que a pré-objetivada juridicidade, quando operativa, se
reconstituía no exercício interpretativo (por mediação das exigências trans-objetivas,
associadas ao predicativo sentido do direito, que a densificam), passando a integrar
dimensões que até essa altura não apresentava – e que, portanto, esta integração emergia
na linha da interpretação, sem dela se dualizar, ao contrário do pensamento tradicional, que
compartimentava uma e outra.

1.7.3. A realização do direito como o problema metodonomológico.


Qual o significado da evolução que ela traduz?
Foi a bipolarização do exercício metodológico-jurídico, em dialética correlatividade, no
caso concretamente decidendo e na intencional problemática do critério e/ou fundamento
circunstancialmente pertinente que no-lo desvelou inucleado em problemas – que no-lo
manifestou um percurso discursivo de problema a problema (de particular a particular) e, por

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isso mesmo, analógico. Assim, qualquer impostação, mais ou menos inovadora, no domínio
do prático-normativo, pressupõe sempre referentes intersubjetivamente partilhados radica
numa inércia interdisciplinarmente estruturada e projeta-se numa dinâmica
interrelacionalmente potenciada – tudo o que, por mediação das revisões, das recorrências e
das reposições que assim, sucessiva e respetivamente, se reconhecem, denuncia a sua
ineliminável analogicidade. Donde, nada mais natural do que assumir a inevitabilidade que
deste modo se deteta, erigindo-a em núcleo da problemática metodonomológica e
estruturando em termos consonantes o modelo (noético noemático) da judicativo-decisória
realização do direito.

1.7.4. Racionalidade e esquema metódico.


A judicativo-decisória realização do direito centra-se, irredutivelmente, na disquisição
da existência ou da inexistência de uma correspondência intencional entre o mérito
problemático-normativo dos casos decidendos e a relevância igualmente problemático-
normativa dos mais ou menos amplamente predisponíveis ou constituendos
critérios/fundamentos suscetíveis de os virem hipoteticamente a assimilar, para determinar
aqueles que, in concreto, se devem privilegiar – sendo, todavia, certo que as referidas
semelhanças são, afinal, entretecidas por diferenças subtis (as constitutivas e especificantes
dos núcleos problemáticos que materialmente as densificam, e que as mencionadas
diferenças não deixam de se encontrar numa semelhança irredutível – a instituída pelo
adequadamente fundamentado mérito jurídico das quaestiones decidendi. O que, numa
palavra, significa estarmos diante de uma reflexão de caráter analógico. Podemos dizer: a
analogia é a essência do juízo.
Ora, a importância prática e metodonomológica da analogia radica na circunstância de
ela sintetizar: uma reflexão que discorre de particular a particular (de um particular conhecido
para um outro particular desconhecido ou menos conhecido ); por cuja mediação se vai
arriscando a (re-)constituição de um pressuposto termo de comparação (o tertium
comparationis); suscetível de fundamentar a eventual afirmação de uma correspondência de
sentido, ou de uma semelhança relevante entre aqueles dois polos, tomados sempre na sua
específica autonomia, o que, conjuntamente, traduz, por outras palavras, a problematicidade,
aberta e racionalizada nuclearmente predicativa dos dois referidos horizontes temáticos, e
ainda na de o citado operador discursivo se louvar de uma perspetiva pragmática, no princípio
da inércia (na prudente observação da experiência feita aquando do recorrente confronto com
uma qualquer hipoteticamente semelhante experiência a fazer), de uma perspetiva metódica,
no princípio da abdução (na empenhada tentativa de realizar um contínuo alargamento do
espaço dominado a partir da metafórica exploração da intencionalidade problemática dos
espaços pré-dominados) e de uma perspetiva axiológica, no princípio da igualdade (na

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judicativa decisão igual do que justificadamente se perfilar como igual e na exata medida da
mencionada e adequadamente reconhecida relação, isto é, na de ir buscar a sua última razão
de ser a nervuras identificantes) quer na prática quer no direito.
Advirta-se, ainda, ser o círculo de semelhança –a congruência dos recíproca e
concretamente implicados núcleos problemático e referencial do discurso – o pressuposto
irredutível da pertinência prático-normativa do recurso à analogia, ou de uma solução paralela
para dois casos juridicamente equiparáveis. Se, em vez daquele, nos depararmos com um
círculo de diferença (com um conjunto em que se revelem fundamentadamente incongruentes
os dois polos discursivos), se, em lugar da continuidade que o primeiro identifica, se perfilar
ao jurista ao jurista decidente a exclusão predicativa do segundo, intervirá a chamada analogia
inversa – em que a experiência feita se não ajusta à especificidade da experiência a fazer,
mas não deixa de funcionar como instância de controle negativo do juízo, neste último
horizonte – que encontra uma sua exemplar projeção metodonomológica no chamado
argumento a contrario (na exclusão de um caso concretamente decidendo do âmbito de
relevância de um determinado conjunto de fundamentos-critérios, atento o mérito
problemático de um e outro).
Finalmente, sublinharemos que o entendimento do sistema jurídico como uma unidade
de sentido normativo constituída por vários estratos que reciprocamente se condicionam nos
dispensa de insistir em contraposições categoriais tradicionalmente acentuadas, mas que
com ele não se compaginam. Refira-se, a título exemplificativo, aquela que distingue a
analogia de lei ou analogia ou analogia particular (analogia legis), da analogia de direito, ou
analogia total (analogia iuris) – respetivamente, a analogia que opera apenas com uma norma
legal igualmente aplicável a uma situação de facto não regulada por ela, ou com o princípio
(geral de direito) induzido a partir de várias e ajustável tanto à hipótese na lei com às hipóteses
reguladas – pois, em rigor, a analogia, liberta das aporias com que a subverteu a teoria
clássica, em qualquer das suas diversas formulações, é sempre deste último tipo.
Assim adequadamente compreendida, não é um raciocínio apenas operativo no
âmbito da integração das lacunas, revelando-se, antes, um vetor nuclear da própria realização
judicativo-decisória do direito por mediação de redensificantes apoios (critérios ou
fundamentos) pré-disponibilizados pelo sistema jurídico, pois, do que sempre se trata é de
trazer-à-correspondência o mérito problemático de um concreto caso decidendo e a
intencionalidade também problemática de um constituído ou constituendo apoio
circunstancialmente pertinente para a almejada decisão judicativa.

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2. A integração

2.1. Problema das lacunas.


Cartografaremos a rota navegada desde o reconhecimento (e a lógico-formalmente
concebida integração) das lacunas, até à autonomização (e à prático-normativamente
racionalizada solução) do problema do desenvolvimento transsistemático do direito. Se o
pensamento jurídico tradicional compartimentava estritamente a interpretação e a integração,
hoje tende a sustentar-se um continuum entre ambas. Por outro lado, se a doutrina alemã
ainda insiste em autonomizar a interpretação, a analogia e a constituição inovadora ou de
desenvolvimento do direito, nós cremos haver boas razões para sustentar que o tipo de
raciocínio mencionado em segundo lugar perpassa quer o primeiro, quer o terceiro dos
problemas referidos.
Até ao momento, abordamos a realização judicativo-decisória do direito por mediação
de critérios pré-disponibilizados pelo corpus iuris vigente. A questão que doravante se perfila
diante de nós é a da realização judicativo-decisória do direito por autónoma constituição
normativa.
Antes de mais, note-se que previamente à inventio dos apoios jurídicos (fundamentos
e critérios) postulados pela decisão judicativa, depara-se-nos a necessidade de esclarecer a
fronteira da possibilidade do exercício em causa, isto é, a urgência de traçar os limites do
próprio jurídico, face ao espaço livre do direito, pela elementar razão de que nem todos os
problemas praticamente significativos são metodonomologicamente relevantes. Em virtude da
especificamente intencionada historicidade que os marca, os dois contíguos espaços
mencionados relacionam-se sem cessar, enredando-se reciprocamente num
interpermutabilidade ora expansiva, ora compressiva de qualquer deles à custa do outro. E a
problemática dos referidos limites do jurídico é suscetível de ser analisada de duas
perspetivas distintas: uma – que é a tradicional – sustenta a respetiva definibilidade pelo
sistema pré-objetivado; a outra – consonante com o que temos vindo a sustentar – entende
que só partindo do concreto problema decidendo se logrará uma normativo-juridicamente
esclarecida abordagem da questão.
Por seu turno, em termos histórico-diacrónicos, deve assinalar-se a diferença
introduzida na vexatio quaestio pelo movimento codificatório. Antes desta época,
naturalmente, a dificuldade não era sentida, nem, decorrentemente, tematizada: o sistema
manifestava-se aberto e incluía o direito subsidiário, a que se recorria, quando a legislação se
revelasse insuficiente. Ora, a questão tornou-se aguda com a pretensão, assumida pela
codificação, de definir prévia, racional e esgotantemente o corpus iuris: de modo paradoxal,
foi a afirmação do ideal de um direito (positivo) completo que produziu o conceito de lacuna.
E, em sintonia com o espírito do tempo, os limites do jurídico não podiam deixar de ser

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formalmente traçados. Em termos formalmente lógicos, através da invocação do princípio


negativo geral (ZITELMANN), ou do princípio universal negativo – da aplicação ao sistema
global do direito positivo do argumento a contrario, sintetizado no brocardo quod non est in
codigo non est in mundo: era a orientação preconizada pelo positivismo exegético-legalista,
que atirava para o espaço livre de direito tudo o que não estivesse normativisticamente pré-
visto. Em termos formalmente dogmáticos, através da determinação das virtualidades
conceituais do sistema pré-objetivado: era a opção do dogmatismo inspirador do positivismo
científico-conceitual, que considerava abrir-se o espaço livre de direito para lá dos assim
traçados limites da juridicidade.
Ora, estas duas vias, que se encontram na desesperada tentativa de impedir
perentoriamente a experiência do novo e na ingénua ilusão de definir aprioristicamente a
emergência do direito, traduziam uma violência feita pela lógica apofântica à realidade
histórico-cultural e prático-social, e projetavam-se institucionalmente, por exemplo no référé
législatif e na rejeição da demanda. E tomou-se a consciência do caráter falacioso da
construção logo que começaram a surgir casos que, de acordo com os esquemas discursivos
utilizáveis, não eram subsumíveis ao sistema pré-definido e, apesar disso, manifestamente
exigiam uma solução jurídica. Ou seja: o problema das lacunas só surgiu quando se deu conta
da incompatibilidade entre o postulado da formal plenitude (lógica ou dogmática) do sistema
normativístico e a efetiva emergência de casos concretos que indubitavelmente o
desmentiam, pois sempre estes últimos hão-de ser mais do que as leis. Deste modo, entende-
se o conceito de lacuna: esta verificar-se-á quando o sistema positivo, imediatamente, ou por
interpretação (respetivamente, formal ou intencionalmente) – atendendo ao seu plano
ordenador inferido dos princípios, fins e juízos de valor que lhe vão implícitos –, permitir
qualificar um determinado caso como juridicamente relevante e, todavia, for omisso,
inadequado ou incompleto acerca da respetiva disciplina ou regime. Conceito este que
facilmente se precisará se esclarecermos o critério de delimitação de uma lacuna.
O mencionado critério poderá dizer-se o resultado da articulação daquela que
designaremos as fronteiras exterior e interior do sistema de direito positivo. A primeira é
traçada pela própria lei, na sua objetividade, e pelos princípios (gerais) dogmático-
conceitualmente constitutivos do ordenamento. Por seu turno, a fronteira interior coincide, da
perspetiva mais apegada à melopeia composta pelo método jurídico, com os sentidos
suscetíveis de serem atribuídos à letra da lei, e de uma outra mais arejada, com a
intencionalidade teleológica da norma em causa.
Neste sentido, é possível distinguir vários tipos de lacunas:
§ Normativas, de previsão ou autênticas versus de regulação, estatuição ou
inautênticas;

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As lacunas normativas, de previsão ou autênticas, verificam-se quando a


mediação judicativa não é só por si bastante para viabilizar a aplicação a um certo
caso de uma dada norma jurídica, exigindo-se, para o efeito, uma nova disposição
que se encontra a menos na lei e tornando-se, assim, necessária, pelo menos às
vezes, para colmatar essa falha de política legislativa, uma nova decisão do
legislador. Por sua vez, as lacunas de regulação, de estatuição ou inautênticas,
que não inviabilizam a estrita aplicação da lei, mas que a afetam, e que se mostram
passíveis de ser colmatadas pela instância de decisão, se esta revelar, como deve,
a intenção e a teleologia da lei.
§ Da lei versus de direito.
As lacunas da lei – um conceito de certo modo genérico, englobante dos
tipos anteriormente discriminados – ocorrem sempre que o plano da regulação ou
a teleologia própria de uma certa lei, discretamente considerada, no-la revelem
incompleta ou inadequada, impendendo especialmente sobre a jurisprudência
judicial o dever de as integras. As lacunas do direito traduzem omissões
censuráveis ao legislador – que ele próprio será chamado, em primeiro lugar, a
colmatar, e que, de um ponto de vista normativo, podem ser patentes (quando do
plano ou da teleologia da lei decorre que ela deveria oferecer regulação para um
determinado grupo de casos e, todavia, isso não acontece) e ocultas (quando a lei
disponibiliza a mencionada regulação, só que esta se revela prático-
normativamente inadequada, pelo que deverá ser objeto de uma restrição, v.g.,
sob a forma de uma redução teleológica), e, de uma ótica cronológica, iniciais e
subsequentes (consoante, e respetivamente, o legislador a quem a omissão deva
ser atribuída ou censurada, dela haja tido, ou não, conhecimento) – na global
pressuposição do deveniente sentido de direito vigente, nomeadamente atentas as
interprlantes exigências sintetizadas nos princípios normativos e as questões
juridicamente significativas inovadoramente decorrentes do dinamismo da
realidade histórico-social.

Por fim, note-se que esta via do pensamento tradicional, é a via em que afinal se
inscreve o artigo 10.º do CC – confinava a analogia à integração das lacunas, quando nós
igualmente a reconhecemos como a modalidade de raciocínio ajustado ao problema da
judicativo-decisória realização do direito por mediação de critérios jurídicos disponíveis e
circunstancialmente mobilizáveis.

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2.2. Os critérios da integração.

2.2.1. A analogia.
Até ao momento, vimos a questão da perspetiva do sistema da juridicidade pré-
objetivada; consideremo-la, doravante, a partir do próprio problema jurídico concretamente
decidendo.
A primeira questão será, então, a de determinar quando se está perante um problema
jurídico. Estaremos perante um problema jurídico quando não virmos transparentemente
cumpridas, na experiência que no-lo manifesta, as justificadamente pré-supostas, mas
constituendas, exigências constitutivas da juridicidade. É este o radical do problema
emergente, que, não obstante a respetiva novidade, nos permite qualificá-lo como
juridicamente relevante.

2.2.2.A autonomia constitutiva do julgador.


Antes de mais, importa atender a certos limites inultrapassáveis à atuação judicativo-
decisória do jurista, de caráter institucional e/ou normativo, que retiram qualquer legitimidade
à mencionada intervenção, ou, quando menos, a condicionam fortemente.
Neste sentido, aludimos à reserva de lei (categoria que designa os juridicamente
relevantes âmbitos materiais que devem ser regulados por lei, com a correlativa exclusão das
restantes instâncias a que, em regra, igualmente se comete a constituição da normatividade
jurídica vigente) e à judicial restraint (figura de presença constante na literatura jurídica
estadunidense e segundo o qual o julgador não deve ser chamado a traçar o programa político
estratégico da comunidade. Como exemplos dos segundos, referiremos as diversas
expressões do principio do numerus clausus (que, ao delimitar rigorosamente o espaço da
juridicidade, impede a respetiva consideração como um relativamente ilimitado campo aberto,
o que não deixa de desonerar o decidente), a regulamentação taxativa de certas matérias e
as controversas normas excecionais (que a orientação clássica – e o artigo 11.º do CC –
sustentam não comportarem aplicação analógica, mas que hoje em dia se não duvida que
admitem). Além do mais, como um limite simultaneamente institucional e normativo,
convocaremos a questão posta pelo princípio da legalidade criminal: revelando-se
metodologicamente impossível, a distinção entre interpretação e analogia, e,
decorrentemente, não podendo banir-se este último tipo de raciocínio da concreta mobilização
judicativo-decisória das normas penais incriminadoras, como realizar a intencionalidade
normativa daquele princípio, ao mesmo tempo perdra-de-toque do Direito Penal e marca-de-
contraste do Estado de Direito?

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Voltemos, porém, à questão principal: o prius do exercício metodonomológico é o


problema jurídico concretamente decidendo e o sistema jurídico não pode ser o definiens da
autónoma relevância jurídica do mencionado problema. Rigorosamente compreendido, o
corpus iuris não é só um objeto constituído por uma cópia de critérios fixos; é também um
sentido constituendo, pois vai integrando fundamentos polarizados numa experiencialmente
radicada, intencionalmente específica e historicamente deveniente axiologia prático-cultural,
que densificam aqueles critérios e neles se projetam, e orientam a solução dos problemas
emergentes em consonância com o seu apontado modo de ser.
Até ao momento, consideramos a interpretação jurídica – isto é, a decisão judicativa
de concretos problemas jurídicos com base no metodologicamente adequado aproveitamento
das possibilidades oferecidas pelos arrimos (critérios e fundamentos) sistematicamente
arquivados, sendo, todavia e sem contradição, igualmente certo que aqueles problemas não
deixam de redensificar estes arrimos. E recordámos que o sistema não pode bloquear a
emergência de problemas determinantes de uma renovação da normatividade jurídica e, por
isso mesmo, constitutivos do corpus iuris. Com efeito, não estamos a falar de lacunas, pois
estas omissões contra o sistema assentavam na absolutização da respetiva pré-definibilidade.
Do que se trata, é do dever de decidir judicativamente aqueles problemas que impõem um
não meramente reconstrutivo, mas autenticamente constitutivo, desenvolvimento do sistema
da juridicidade, que exigem uma afoita mutação, em lugar de uma tímida evolução da
normatividade jurídica.

2.3. Sentido geral do problema do desenvolvimento transsistemático do direito.


Não passaremos de uma breve tematização das dificuldades postas pelos concretos
problemas jurídicos que obrigam a um desenvolvimento da juridicidade já exta legem, mas
ainda intra ius, ou em relação aos quais se não dispõe de suficiente apoio legislativo ou
jurisdicional viabilizador da metodologicamente adequada constituição de normas do caso
que especificamente se lhes ajustem. Para o que, aliás, dispomos dos nucleares pressupostos
de inteligibilidade: do sentido do direito e do suficientemente assinalado caráter analógico da
sua judicativo-decisória realização.
Ora, quando uma singular e inovadoramente recortada controvérsia prática só puder
ser qualificada pela pressuposição do sentido do direito - isto é, quando tudo isto se projetar
em uma estrutura polarizada na fundamentante validade, histórico-concretamente realizanda
por mediação de um genuíno juízo-julgamento de um institucionalmente legitimado terceiro
imparcial – di-la-emos conformador a de um problema jurídico concreto. De outra perspetiva,
temos, diante de nós, os momentos material (o referido problema) e de validade (o referente
direito) que considerámos no âmbito das fontes do direito e convocadores de uma instância
incumbida de constituir a juridicidade requerida pelas circunstâncias. Não intervindo qualquer

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dos limites que se lhe oponha, é manifesto caber então ao jurista decidente a assunção da
tarefa de, com prudência de juízo e responsabilidade institucional, projetar o mencionado e
constituendo sentido do direito no aludido problema jurídico concreto, em ordem à judicativa
decisão deste último e, decorrentemente, à sua assimilação pelo corpus iuris. A racionalização
de que não pode abdicar-se no exercício – para que a ratio do juízo não seja totalmente
consumida pela voluntas da decisão – e que é pressuposto da controlabilidade (da
intersubjetivamente inucleada objetividade) prosseguida, impõe um esforço tendente a
alcançá-la.
Assim, em primeiro lugar, um problema eventualmente relevante para o direito emerge
sempre num dado quadro sociológico, igualmente densificado por exigências materiais de
caráter jurídico. Depois, o mérito autonomamente reconhecido a esse hipotético problema
jurídico talvez permita referi-lo aos sempre constituendos princípios normativos, positivos e
transpositivos, que mais ou menos se lhe ajustem. E, finalmente, o englobante e deveniente
ethos comunitário – autêntico cadinho em que se vai reconstituindo o sentido último do direito,
tanto na linha das suas manifestações precedentes, especificando-as ou corrigindo-as, como
em fundamentada rutura com elas, superando-as autenticamente – também concorrerá para
viabilizar a prático-normativamente exigível intersubjetivização da subjetividade do decidente,
ou seja, a racionalização das concretas decisões judicativas que deva proferir, radicada na
esclarecida inteleção do constituendo sistema da normatividade jurídica vigente,
E, se lembrarmos que todos os arrimos assim excogitados relevam
metodonomologicamente atenta a respetiva intencionalidade problemática, logo nos damos
conta de que se trata aqui de trazer-à-correspondência o problema jurídico concretamente
decidendo e o problema constitutivo do constituendo arrimo normativo circunstancialmente
pertinente, que ipso facto, nos desvela o caráter analógico do exercício.

3.Proposta unitária, analogicamente inucleada, da problemática da racionalizada


realização judicativo-decisória do direito.
A judicativo-decisória realização do direito implica um reflexão que se desenvolve
como um complexo sistema de ondas de propagação espiralada, conjuntamente emitidas pelo
problema interpelante e pela normatividade interpelada, que dialética e respetivamente se
projetam tanto no afinamento do específico mérito jurídico daquele primeiro, como no
apuramento do concreto critério que prático-normativamente objetiva o segundo polo
nomeado, para finalmente, convergirem e se condensarem na determinação de um
circunstancialmente adequado juízo decisório que, portanto, se nos apresenta como o núcleo
do exercício.
Esta questão matricial da metodologia jurídica, desdobra-se em outras duas macro-
questões que, de resto já abordamos.

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