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Metodologia jurídica

Doutor Pinto Bronze 4º Ano FDUC


Matéria toda da disciplina (ano lectivo de 2007-2008), na altura a matéria que
está a letra mais pequena não foi leccionada. Consultar os sumários do presente ano
lectivo em que se encontre. Estes apontamentos têm a matéria toda.

João Rebelo

A actual circunstância do unive rso e do pensamento jurídico e a exigência


de reflexão metodológica:

1-Introdução:
Normalmente os juristas deparam-se com casos concretos para resolver e, ao
fazê-lo, lançam mão do quadro de direito disponível de modo imediato. São os
chamados problemas de primeiro grau. Em épocas de estabilidade são apenas estes os
problemas que preocupam os juristas, não se sentido necessidade de repensar o próprio
pensamento com base no qual estes problemas são resolvidos. Mas há momentos em
que se duvida da suficiência do pensamento que preside à resolução destes problemas
de primeiro grau. É, então, sentida a necessidade de repensar o modo como se resolvem
os problemas juridicamente relevantes. Nesse momento somos defrontados com
problemas de segundo grau. Se é nas épocas de estabilidade que se colocam e resolvem
os problemas de primeiro grau, será nos momentos de crise que surge a necessidade de
resolver estes problemas de segundo grau.
Quando podemos dizer que estamos a viver num momento de crise? Será
quando os juristas já não se satisfazem com as respostas dadas aos casos concretos pela
mobilização do quadro de direito disponível: soluções essas que resultam da intervenção
do pensamento, que por inércia, se habituaram a lançar mão e que já não se oferecem
como adequadas.
Ora, vivemos hoje um momento de crise, em que se sente uma necessidade de
repensar o pensamento implicado pela realização judicativo-decisória do direito.
Trata-se de um momento de crise que ocorreu também na época moderna, face à crise
no modelo medieval, e que levou à ascensão do normativismo que redundou no
positivismo e que deu origem ao método jurídico. Mas, como se verá, o positivismo não
tinha uma perspectiva metodológica (enquanto caminho - ódos - para chegar a um
determinado fim ou objectivo - meta - ou seja, um proceder ou processo). Ora, este
processo é presidido por uma racionalidade – lógos. Já que lhes faltava a
problematização do logos, da racionalidade que preside a um tal pensamento, lançava-se
mão do pensamento axiomático-dedutivo em que o pensamento é dado de antemão
(racionalidade havia só uma, a lógico-dedutiva e mais nenhuma) como única forma de
se atingir a pretendida cientificidade. Tal como aconteceu na época moderna, face ao
modelo medieval, no início do século XX tomou-se gradualmente consciência da
insuficiência do paradigma positivista. Ele deixou de responder às exigências que se
colocavam. Renasce a necessidade de repensar a própria razão, o próprio pensamento
através do qual os juristas resolvem os problemas concretos juridicamente relevantes.
Colocou-se aqui, ao contrário do positivismo, uma reflexão já de carácter metodológico,
em que se racionaliza, se problematiza o caminho, o modo de proceder para se atingir
determinado fim (que no caso da metodologia, como veremos, é a judicativo-decisória
realização do direito). Dr. Pinto Bronze afirma que, apesar de nesta altura se viver um
ambiente de fractura, de ruptura do pensamento, de perecimento de um paradigma -
dimensão negativa - o facto é que a crise também tem uma dimensão positiva ou
redentora, já que nos momentos de crise há sempre algo de novo que nasce. Ao nível do
pensamento jurídico teremos então que excogitar outro modelo de pensamento que
permita resolver adequadamente os problemas concretos considerados como
juridicamente relevantes.
Em suma, nestes momentos de crise deixamos uma intentio recta, típica das
alturas de estabilidade, em que se avançam as soluções para os problemas concretos sem
se questionarem tais soluções, sem problematizarmos o pensamento que lhes preside,
para assumirmos uma intentio obliqua, problematizando o modo como são resolvidos
tais problemas, problematizando as soluções avançadas. Passamos, nestes momentos de
crise, a não caminhar apenas o caminho das soluções para passarmos a problematizar
esse caminho.

2-A importância da relação racionalidade-método na determinação da


perspectiva adoptada:

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Vimos já a raiz etimológica de metodologia (o discurso, a razão, o pensamento -
logos - do caminho - odos - para algo além - meta). Nessa base, poderá a metodologia
definir-se como a racionalidade ou o pensamento de um proceder que visa um fim
específico ou se propõe um certo objectivo. Mas o logos será o fundamento ou o
determinante e então a metodologia é a razão intencional de um método, é a
racionalidade ou pensamento sobre esse método.
Ora, se a metodologia é a razão intencional de um método, desde logo se suscita
uma questão - qual a relação que se estabelece concretamente entre o logos (a razão, a
racionalidade, o pensamento) e o método (o modus ou processo)? Estaremos aqui
perante um problema que é já um problema de primeiro grau.
Esta relação entre o logos e o método não foi sempre a mesma ao longo dos
tempos. Podemos pensar esta relação segundo três tipos diferentes:
- Relação de imanência constitutiva: A razão é constitutiva da prática e
manifesta-se na própria prática. O método é tão só modus operandi dessa prática e, por
isso, apenas reconhecível a posteriori através de uma análise explicitante. O lógos, a
racionalidade é aqui meramente descritiva, não prescreve qualquer método à prática,
limitando-se a descrever à posteriori o método utilizado na prática. Verdadeiramente
aqui não há qualquer distância entre o lógos e o método: o logos, o método e a prática
constituem uma incindível unidade.
Esta relação de imanência constitutiva verifica-se em momentos não
problemáticos, em épocas optimistas, em culturas de sedimentação. Ele é típico do
pensamento jurídico romano e medieval, épocas em que os juristas iam criando o direito
à medida que resolviam os casos concretos. Estes juristas não se preocupam com o
modo como iam resolvendo os problemas. Iam criando o direito à medida que resolviam
as questões. Daí que se diga que a razão não era prescritiva, ela não prescrevia o
método, mas sim descritiva limitava-se a posteriori a analisar e descrever o que se tinha
feito.
Segundo Hegel, nesta perspectiva não se aprende a nadar antes de nos lançarem
à água, mas no seio da própria água, ou seja, não se dão lições de natação, simplesmente
nada-se. Ou então, segundo o verso de Machado, o caminho faz-se caminhando. Ou
ainda de acordo com Heidegger, o método é como um visitante tardio que tem ordem de
busca em casa dos antigos para ver como é que eles fizeram. Aqui resolvem-se os
problemas realizando-se os conhecimentos de acordo com o modo normal do proceder.

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- Relação de exterioridade construtiva: Aqui o logos já não é descritivo mas
prescritivo. Ele define autónoma e voluntaristicamente o método que impõe à prática. O
logos prescreve à priori um método a aplicar à prática. O método é criado à priori.
Aqui, o método é objecto-produto da razão. O método é modelado como um
instrumento finalisticamente predeterminado. Tomando a definição de Habba, ele é um
conjunto de procedimentos intelectuais, ordenados segundo um plano racional
preestabelecido, aplicáveis a um dado domínio em vista de um determinado fim. O
método oferece- nos, enquanto processo teleologicamente programado de actividade
intelectual, como um artefacto racional que se avalia pela sua aptidão a atingir o fim em
vista, ou seja, oferece-se com a índole de uma técnica, de uma operatória. A
racionalidade prescreve aqui um modelo para a prática, que não apenas pré-determina e
pré-constitui essa prática, como é ainda um critério decisivo de validade dessa prática.
Esta relação ocorre no seio de culturas que têm um projecto programático que
querem ver realizado. Trata-se de um método postulado pelo positivismo. Os juristas
com a intenção de conferir ao direito o estatuto de ciência (já que este conceito de
método esteve na base da constituição da ciência moderna) elaboram um modelo rígido
de regras que deveria ser observado aquando da resolução de casos concretos.
- Relação de reconstrução crítico-reflexiva: A razão não prescreve à priori um
método à prática e também não o descobre apenas à posteriori descritivamente. O lógos
não é prescritivo, nem descritivo, mas crítico-reflexivo.
Nesta relação o lógos parte da ideia última de direito e a nalisa a prática,
orientando-a numa atitude criticamente reflexiva no sentido dessa ideia última do
direito. Em suma, a razão parte do fundamento último do direito e analisa a prática para
ver se esta é consonante com aquele fundamento. Há aqui uma dialéctica entre o lógos e
o método, entre a racionalidade e o modo de agir, relação típica dos pensamentos
práticos, como é o caso do direito, em que a acção não espera pela reflexão, dada a
urgência dessa prática, se bem que a posteriori essa prática se torna auto-reflexiva.
Aqui, o pensamento nada impõe à acção mas acaba por orientá- la na auto-reflexão. Esta
é uma relação defendida por Castanheira Neves, Esser, Kriele e Möller.

3-O tipo de metodologia postulado pela actual situação da juridicidade:


A questão que se coloca é a seguinte: qual a relação entre o lógos e o método,
que hoje se deverá defender? Não será de imanência constitutiva: embora sendo de
grande importância analisar a prática, não podemos cair numa teoria da prática, numa

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mera descrição da realização do direito pelos agentes, ou seja, apesar da importância de
um momento analítico-descritivo, não o podemos elevar ao valor de cânone ao jeito de
“a prática é que decide”. Isto apenas seria possível se houvesse um consenso quanto aos
valores que a realização do direito pretende abranger. Ora, como estamos numa época
de crise, esse consenso não se verifica.
O momento analítico-descritivo será importante para:
-Denunciar um academismo metódico que a metodologia jurídica tem sofrido ao
enunciar esquemas que ignoram os verdadeiros problemas e as exigências com que se
depara a prática jurídica e como tal, não cumpridas por ela;
- Referir o pensamento da metodologia jurídica à prática. Ele que é prático já
que assume e reflecte os problemas de uma prática da realização do direito. Esse
momento analítico servirá para uma reflexão crítica que se caracteriza por uma intenção
normativa ou por um momento normativo, isto é, prático-constitutivo.
Não será também de exterioridade construtiva. Temos de nos afastar de uma
perspectiva que sustenta uma racionalidade, que prescreve um conjunto de regras e que
esperamos a sua estrita aplicação (posição assumida pelo positivismo), porque nestes
casos em que o lógos prescreve um método à prática é ignorada a especificidade do caso
concreto.
A relação que hoje se estabelece é critico-reflexiva. A metodologia jurídica não
se propõe nem a construir sem mais um método para aplicar o direito, nem
simplesmente conhecer o método praticado, mas a reflectir o problema da realização do
direito no seu sentido para criticamente orientar essa realização do direito no juízo
decisório.
O tipo de metodologia a que a actual situação do pensamento jurídico recorre
há-de ser sempre consonante com o sentido último que hoje atribuímos ao direito. Essa
ideia é a afirmação de uma validade em que o homem se reconhece a si mesmo com
uma ineliminável dimensão ética.
Mas sabemos que, além das variações diacrónicas (ao longo dos tempos), o
direito também sofre variações sincrónicas (num mesmo momento mas em sistemas
diferentes) sendo realizado de maneiras diferentes. É o caso das variações entre os
sistemas de legislação de tipo continental e os sistemas de common law. A metodologia
não pode ser cega a estas variações porque a metodologia é sempre uma metodologia de
um direito. Daí que o logos, apesar de partir da ideia última do direito, deve analisar a
prática para ganhar consciência da concreta problemática da realização do direito. Se o

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direito tem um sentido prático-concreto, também a metodologia tem que atender a essa
dimensão (momento analítico). Mas não deve, à semelhança da relação entre o logos e o
método concebida como de imanência constitutiva, apenas descrever essa prática. Isto
porque o direito tem uma intenção normativa. Assim, a metodologia terá também uma
índole normativa: parte da intencionalidade prática da realização do direito (o sentido
último que se quer atingir com essa realização) e dirige-se critico-reflexivamente a essa
prática. No fundo, é pensamento de uma prática para uma prática, neste sentido,
consciente, através do momento analítico da problemática da realização do direito,
assume a normatividade do direito que dá sentido a essa prática (o tal sentido último)
para projectar essa normatividade criticamente na prática decisór io-judicativa. A
metodologia tem claramente uma índole normativa, ou seja, prático-constitutiva no
sentido de que se propõe a reflectir criticamente a realização do direito, orientando o
julgador nos seus juízos decisórios.

O problema metodológico:
O campo te mático - a racionalizada realização judicativo-decisória do
direito:
Vimos já que à metodologia compete reflectir criticamente o método da
judicativo-decisória realização do direito. Mas devemos questionar qual o âmbito da
realização do direito.
Sabemos que a realização concreta do direito não se confunde com a mera
aplicação lógico- formal de normas jurídicas positivadas aos casos concretos, mesmo
quando o jurista pode apoiar-se numa norma pré-disponibilizada pelo sistema (o que
nem sempre acontece). O juiz não é um mero aplicador de normas, não é apenas a boca
que profere as palavras da lei, porque a realização do direito é uma dimensão
constitutiva da normatividade jurídica vigente. Ela deixa de ser mera actividade de
aplicação de normas para ser uma actividade de verdadeira criação ou constituição do
direito, criação cujo reconhecimento é hoje um lugar comum e sem o qual não seria
pensável o reconhecido direito jurisprudencial (direito judicial, richterrecht), enquanto
elemento integrante do sistema do direito vigente.
Assim, o discurso metodológico é performativo, constitutivo, de criação do
direito. Esta conclusão põe em causa a ideia tradicional de que a criação do direito
compete ao legislador e a sua aplicação ao juiz ou ao jurista em geral. Ao me smo tempo
que permite um conceito alargado de realização do direito que abrangerá tanto a

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prescrição legislativa, ou seja, a actividade do legislador como a decisão judicativa, ou
seja, a actividade do juiz, conceito esse defendido por alguns autores.
De facto, existem certas notas que aproximam a actividade do juiz da actividade
do legislador:
- Ambos actuam de forma vinculada: o juiz actua de forma vinculada ao sistema
jurídico vigente; o legislador actua vinculado ao quadro constitucional, embora aqui o
grau de vinculação seja menor já que se é verdade que o legislador não pode emanar
normas inconstitucionais, a verdade é que ele não está vinculado a toda a normatividade
como acontece com o juiz. Castanheira Neves fala, não só de uma vinculação positiva
perante a normatividade material e processual constitucional por parte do legislador,
mas também de uma vinculação transpositiva já que as normas jurídicas serão uma
determinação e concretização do princípio axiológico- normativo do direito enquanto
direito (princípio da validade do direito). A norma é uma objectivação linguística de
pontos de vista jurídicos e portanto uma interpretação de algo que lhe é exterior e para
que ela remete, sendo esse algo o direito, a juridicidade.
- Ambos se dedicam à resolução de problemas jurídicos: o juiz resolve
problemas jurídicos concretos; o legislador também se propõe a resolver questões
jurídicas só que de modo prescritivo, de forma geral e abstracta. Neste sentido, Sauer,
Rhinow e Schapp;
- Há um cânone hermenêutico que está consagrado no art. 10º CC que estabelece
que, na ausência de critérios jurídicos para resolver os problemas concretos, ou seja, nas
situações das tradicionalmente chamadas lacunas, o julgador deve actuar como se fosse
legislador.
É com base neste conjunto de notas que alguns autores concluem que se possa
falar da realização do direito em sentido amplo, de modo a abranger tanto a prescrição
legislativa como a judicativa decisão concreta. A primeira é uma realização do direito
em abstracto; a segunda é uma realização em concreto que seria um prolongamento da
primeira. É com base nisto que autores como Husson falam da unidade do pensamento
jurídico e Lombardi defende um conceito unitário de jurisprudência, unidade essa que
se reconduziria a uma unidade do método jurídico, havendo uma convergência entre o
método legislativo e judicativo no sentido de uma intenção metódica global. Neste
sentido, Rhinow e Burckardt. Método jurídico único que tanto a criação como a
aplicação do direito haveriam de cumprir. Com isto, estava justificada a convocação
para a metodologia jurídica da teoria da legislação.

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Mas será que devemos defender este conceito amplo de realização do direito?
Castanheira Neves acredita que essa é uma posição demasiado apressada,
havendo que tomar em conta diferenças estruturais entre a actividade do juiz e a
actividade do legislador. Para que se aceitasse tal posição teria que se aceitar uma de
duas teses redutivistas:
1- O legislador antecipa em abstracto o julgador, posição aceite naqueles
períodos históricos em que o legislador se limitava a compilar, a declarar o direito
pré-existente na sociedade (período do direito romano e direito medieval). Mas, esta já
não é uma posição aceite no nosso tempo. Hoje o legislador assume uma tarefa de
programação político-social reformadora ou organizadora como mostram os fenómenos
de descodificação e da forte pressão ideológico-política que se faz sentir na revisão dos
códigos tradicionais. Apesar de o julgador na realização do direito contribuir para a sua
constituição, o facto é que o faz no cumprimento da normatividade jurídica vigente;
2- O julgador repete, em concreto, o legislador: tese aceite pelo normativismo
moderno e pelo positivismo legalista, para quem o direito se confundia com a lei,
competindo ao jurista apenas a aplicação lógico-subsuntiva aos casos concretos da lei.
Esta posição, também aceite pela tese de engenharia social, para a qual o direito é uma
objectivação de uma estratégia político-social, devendo o juiz apenas converter essa
estratégia em táctica. Ora, esta posição não será igualmente de aceitar, uma vez que hoje
sabemos que a tarefa do juiz na realização do direito não se reduz a uma mera aplicação
da lei, e também porque não aceitamos a racionalidade tecnológica presente na tese da
engenharia social como à frente perceberemos.
Existem claras diferenças entre a prescrição legislativa e a decisão judicativa que
são avançadas por Castanheira Neves:
- Há uma diferenciação estrutural: a prescrição legislativa dirige-se à acção,
pretendendo ser para esta uma regra através de enunciados linguísticos imperativos. Ela
surge como uma norma sociológica de ordenação, determinação ou regulamentação de
comportamentos. O direito surge-nos aqui como thesis - sistema de regras
político-sociais de organização e reforma. As categorias capitais são as de cumprimento
ou não cumprimento, de performance de funcionalidade e desfuncionalidade.
Por sua vez, a decisão judicativa dirige-se a casos, a problemas jurídicos
concretos, surgindo como critério de valoração e decisão. O direito surge- nos aqui como
nomos, normatividade de uma validade. Aqui relevam as categorias de validade ou
invalidade, de justiça ou injustiça, de lícito ou ilícito. Se quisermos utilizar a distinção

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de Habermas, a prescrição legislativa remete para o direito como meio e a decisão
judicativa para o direito como uma instituição.
- Baseiam-se em sistemas normativos de índole diferente: a prescrição
legislativa assenta na lei e tem uma índole de legalidade: trata-se de um sistema de
regulamentação; a decisão judicativa mobiliza todo o ius, sendo o ius o constituendo
sistema da normatividade jurídica vigente: trata-se de um sistema axiológico.
- Há uma diversidade de intencionalidades: a prescrição legislativa tem uma
intenção político-estratégica de carácter programático, enquanto que a decisão
judicativa tem uma intenção de validade. A decisão judicativa tem a ver com a
necessidade de mobilizar histórico-concretamente a específica validade que é o direito.
- Como vimos há uma diversidade de vinculações. A função legislativa é
caracterizada por uma maior autonomia, enquanto a função judicativo-decisória tem
uma índole sobretudo vinculada (não obstante os seus momentos constitutivos).
- Eles têm perspectivas metódicas diferentes. A prescrição legislativa convoca a
política do direito e é estudada sobretudo ao nível do direito constitucional e da teoria
da legislação, ao passo que a decisão judicativa é estudada ao nível da metodologia.
Temos, desta forma, que concluir pela não-aceitação de uma metodologia global
de todo o pensamento jurídico, não podendo defender o tal conceito amplo de realização
do direito. Para marcar as diferenças entre a prescrição legislativa e a decisão judicativa,
esta sim objecto da metodologia, é que Pinto Bronze fala de metodonomologia. Parte da
análise de autores como Castanheira Neves e Wolfgang Fikentscher que apresentam a
metodologia enquanto meta+odos+logos, ou seja, enquanto problema da racionalização
(logos) de um caminho (odos), para se atingir um certo fim (meta), mas que sentem a
necessidade de deixar claro que não cuidam de uma metodologia global do direito mas
apenas da problemática da racionalizada realização judicativo-concreta do direito.
Defende Pinto Bronze que caso consideremos nomos como o decisório juízo concreto,
ou seja, como a decisão judicativa pela qual em concreto se realiza o direito, então
chegamos à palavra metodonomologia a traduzir o campo temático desta cadeira.
Trata-se do caminho racionalizadamente percorrido pela reflexão judicativa para que se
realize a intenção regulativa do direito, ou seja, se resolve em termos prático-
normativamente adequados os problemas qualificados como juridicamente relevantes.
Enquanto que, se falamos de metodologia jurídica, teremos sempre que fazer a
advertência inicial, de modo a excluirmos do seu âmbito a actividade do legislador.

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Com a partícula nomos sabemos que falamos apenas da realização judicativa concreta
do direito, excluindo-se à partida a actividade do legislador.

O objecto intencional e o sentido proble mático da metodologia:


O nosso tempo é um tempo de crise ao nível do pensamento jurídico, por isso ele
é propício à reflexão de carácter metodológico. Ele é um tempo de crise porque ruiu o
sistematismo dogmático-conceitual próprio do normativismo moderno e do
positivismo-legalista. Os problemas actuais do pensamento jurídico são diferentes. A
intenção do direito é hoje outra e, como tal, os problemas que o direito tem hoje de
resolver são outros. Como tal, é necessário pensar, nas palavras de Castanheira Neves,
novos caminhos para esses problemas.
Duas ideias fundamentais que importa ter presentes são as de que:
- O direito apenas se torna existente quando se realiza histórico-concretamente; o
direito não o é antes da sua realização; apenas na sua rea lização adquire a sua
existência; o direito não é direito sem se manifestar na prática e como uma prática. Nas
palavras de Ihering, “ o direito existe para se realizar (…)” o que não passa à realidade,
o que não existe senão nas leis e sobre o papel, não é mais do que um fantasma do
direito”. Não temos direito apenas porque pensamos a essência jurídica ou porque
construímos um sistema de normatividade jurídica: aí temos, quando muito, a
possibilidade ideal do jurídico. Só o cumprimento histórico-concreto, ou seja, a vigência
é que transforma a juridicidade em direito.
- Contra o que sustentava o positivismo, o direito não se confunde nem se esgota
na legislação e a realização do direito não se esgota na simples aplicação das normas
legais. Há dimensões normativas de carácter axiológico que inevitavelmente intervêm
aquando da decisão do caso concreto, daí que se tenha de distinguir entre realização do
direito e mera aplicação de normas.

Façamos agora uma breve incursão na história do pensamento jurídico para nos
apercebermos das posições postuladas pelo positivismo e assim podermos avançar
críticas a esse modelo.
Ao nível da história do pensamento jurídico podemos distinguir duas épocas:
- Época pré-positivista: há uma característica comum a todo o pensamento
jurídico pré-positivista que é a ideia da existência de um direito natural acima do direito
positivo. O direito, apesar da existência de leis, inferia-se sobretudo do costume. O

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direito não era considerado um dado tal como viria a ser considerado pelo positivismo:
era antes um problema prático em processo de realização, o qual se manifestava
aquando da resolução dos problemas concretos, integrando o domínio da filosofia
prática. Ele era um preceituado normativo acerca da reflexão sobre o bem, a justiça, a
equidade (ao nível do pensamento jurídico romano) ou com uma referência directa a
Deus (ao nível do pensamento jurídico medieval).
O pensamento jurídico moderno, o chamado normativismo moderno iluminista,
que durou durante os séculos XVIII e XIX, assentou num postulado fundamental: a
ideia de autonomia do homem. O homem moderno libertou-se da transcendência
teológica medieval e passou a querer constituir uma nova ordem a partir de si mesmo.
Certos autores, como Grócio, Pufendorf e Wolf construíram sistemas de direito natural
elaborados a partir de axiomas antropológicos aos quais se acedia através de uma
racionalidade puramente lógica. A partir dos últimos axiomas da razão pretendia-se
construir sistemas completos de direito. O direito natural moderno-iluminista assentava
num puro racionalismo; era um jusracionalismo. O direito passou a ser visto como um
sistema de normas racionalmente elaborado o que acabou por culminar na codificação
(regulamentação racionalmente abstracta que se decreta antes de os proble mas práticos
surgirem). A realização do direito resumia-se à subsunção lógico-formal dos casos
concretos a essas normas.
- Época positivista: para o pensamento jurídico-positivista, que tem o seu início
no século XIX, a racionalidade continuava a ser a lógico- formal e a realização do direito
também se resumia à aplicação lógico-subsuntiva da lei. Só que o que está na base da
elaboração legislativa não é já a razão humana como acontece com o normativismo
moderno- iluminista, mas sim a vontade do legislador. Os autores positivistas tinham
dois propósitos essenciais: a) garantir uma estrita separação de poderes entre o poder
legislativo e o poder judicial; b) elevar o direito à categoria de ciência. Com isto, o
pensamento jurídico abandonou a filosofia prática e procurou o seu lugar na ciência e o
direito acabou por se tornar uma verdadeira ciência autónoma. Quem criava o direito era
o legislador e o juiz deveria apenas conhecer esse direito para o poder aplicar
lógico-subsuntivamente, sem proferir quaisquer valorações de índole prático-social.
Vejamos os princípios do pensamento positivista:
1- Princípio da identidade entre o direito e a lei: o direito manifestar-se- ia
unicamente nas leis, não havendo outro direito para além daquele que as leis
prescrevem. Contrariamente ao que hoje se sustenta, o direito era constituído apenas

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pelo conjunto das normas impostas pelo legislador, normas que esgotavam todo o
direito. “O direito é lei e toda a lei é direito”.
2- Princípio da exclusividade da lei como critério jurídico : para a decisão de um
caso concreto só se recorre à lei, enquanto norma escrita, não havendo necessidade de
recorrer a quaisquer outros critérios para além da lei. Mesmo a interpretação da lei era
puramente exegética (etimologicamente exegese significa re tirar o que está dentro para
fora). Não se recorre a elementos normativos transtextuais ou transpositivos (que
estejam para além do texto da lei).
3- Princípio da suficiência da lei: a lei basta para decidir toda a vida jurídica e
esta basta-se com o que dela passa a lei. O sistema de normas era fechado, pleno,
autosuficiente o que pressupõe a inexistência de lacunas.
Para o positivismo o direito seria apenas o direito positivo num duplo sentido:
1- Excluía-se qualquer direito com fundamento natural e indispo nível; e,
2- Esse direito identificava-se com o direito imposto pelas prescrições dos
órgãos legislativos.
Além disso, o direito é mera forma, ou seja, como estrutura ordenadora da vida
social considerada com abstracção dessa matéria social ordenada, ou seja, sem
referência a quaisquer intensões materialmente práticas. Também como forma ao nível
do pensamento jurídico dão que apenas se admitia a interpretação lógico-sistemática e
nunca teleológica. Tal como a dogmática deve apenas elaborar conceitos
lógico-abstractos, premissas para uma aplicação lógico-subsuntiva do direito, ou seja,
conceitos que não variassem com os diferentes conteúdos possíveis da realidade e sem
considerar os seus fins ou interesses.
O direito era ainda considerado objecto: ao pensamento jurídico competiria
conhecer o direito que é (o iure condito) e não o direito que deve ser (o iure condendo),
ou seja, importa responder às questões “o que é?” e “como é o direito?”. Mas já não
importa a questão de saber “como deve ser o direito?” ou como deve ele ser feito. Ao
jurista competia conhecer esse direito e aplicá- lo lógico- formalmente ou
lógico-dedutivamente constituindo nesses termos o que viria a chamar o estrito método
jurídico, que veremos à frente.
Sabemos que tanto a Escola Histórica, de origem alemã, como a escola da
exegese, de origem francesa, vão confluir no método jurídico. No entanto, as duas
escolas têm concepções diferentes do direito.

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Para a escola da exegese, o direito positivo era um conjunto de normas impostas
pelo legislador estadual, ficando o direito submetido ao voluntarismo político de cada
momento (se o legislador muda de vontade, então muda-se o direito).
Para a escola histórica, o direito positivo surge como algo também pressuposto,
mas histórico-socialmente. É resultado do espírito do povo (Volksgeist). O direito era
dado e encontrado nas várias manifestações culturais de um povo. O direito não era
feito voluntaristicamente. Mas depois era necessário proceder à sua elaboração
científica conducente à sua determinação e explicitação dogmáticas. Este elemento
histórico, que não existe ao nível da escola da exegese, vai perecer perante o desejo da
cientificidade. Isto porque Savigny, ao querer converter o histórico numa dogmática
coerente, que servisse de base à ideia de sistema, pensou esse sistema como um
conjunto de estruturas que subsistiriam naquilo se mantinha. Abstraiu-se assim da
contingência histórica, já que a verdade não estaria naquilo que é empiricamente
variável, mas na estrutura. Em vez de histórico, Savigny pre feria afinal o ahistórico. Isto
porque se pretendia atingir a racionalidade Kantiana sistemático-dogmática. A escola
histórica acabaria na jurisprudência dos conceitos.
Estas duas escolas vão convergir no método jurídico. O pensamento jurídico
tinha uma função teorético-cognitiva. O jurista devia limitar-se a conhecer o direito
positivo para depois o aplicar lógico-subsuntivamente. Tudo isto tinha a sua base numa
concepção rígida do princípio da separação dos poderes. Quem cria o direito é o
legislador, o jurista deve conhecê- lo para depois o aplicar. Se, em vez de meros
aplicadores do direito, os juristas realizassem o direito, participando constitutivamente,
violar-se- ia este princípio da separação dos poderes.
Analisemos agora os momentos do método jurídico:
1- Momento hermenêutico: momento básico da interpretação das le is referido só
ao seu conteúdo textual, ou seja, uma interpretação filológico- gramatical das leis. Os
elementos de interpretação eram quatro: o gramatical, o lógico, o histórico e o
sistemático, não se admitindo o elemento teleológico da interpretação, uma vez que a
teleologia está para além do texto da norma.
2- Momento científico-dogmático: é privativo da escola histórica. Era o
momento da elaboração de conceitos e do seu sistema. Assim, procedia-se à elaboração
de conceitos e à sua sistematização. Com esta conceptualização atingiam-se os seguintes
objectivos: a) garantia-se uma mais fácil subsunção dos casos aos conceitos
determinantes das normas; b) garantia-se a plenitude lógica do sistema, que lhe excluiria

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as lacunas. Isto porque os conceitos eram auto-produtivos de novos conceitos o que
permitia encontrar solução para todos os casos jurídicos. Se um determinado caso não
pudesse ser resolvido pelo recurso a um desses conceitos é porque esse caso não era
juridicamente relevante, devendo o jurista ignorá-lo, já que não reclamaria para aí uma
solução de direito (esta conceptualização tem vícios: por exemplo, o contrato é um
negócio jurídico e é regulado pelo modo x; o testamento também é um negócio jurídico
pelo que também deverá ser regulado pelo modo x; desta forma, apesar das
especificidades do testamento, as quais decorrem do facto de estarmos aqui perante um
negócio mortis causae, será este regulado da mesma forma que se estivéssemos perante
um contrato).
A escola da exegese c) também garantia a plenitude lógica do sistema, alcançado
através do princípio universal negativo. Isto porque o legislador pensou em todas os
casos jurídicos e deu- lhes uma resposta positiva ou negativa. Caso não existisse norma é
porque o legislador tinha resolvido a questão negativamente.
3- Momento técnico: há um acto lógico de aplicação do direito sem se
efectuarem quaisquer considerações práticas ou valorativas. Depois da interpretação, o
jurista limitava-se a aplicar as normas ao caso concreto, seguindo o esquema do
silogismo judiciário. A norma era a premissa maior, o caso era a premissa menor e a
solução resultava da subsunção do caso à norma. O juiz não tinha qualquer papel activo
na criação do direito. O direito era visto como um conjunto de normas, um objecto
(objectivismo) e o jurista deveria apenas dirigir-se a essas normas com a intenção de as
conhecer (cognitivismo), lançando mão de uma racionalidade lógico- formal para as
aplicar aos casos concretos.
Assim, o direito era:
- Subsistente em si, isto é, é um sistema autónomo perante outras referências
ético-culturais;
- Um sistema unitariamente consistente, ou seja, sem contradições, pleno (sem
lacunas) e fechado (auto-suficiente);
- O pensamento jurídico teria uma índole objectivo- intelectual e lógico-teorética,
excluindo-se ponderações axiológicas ou concretas valorações teleológicas;
- A validade dos juízos jurídicos não se opera por referências
axiológico-normativas ou por intenções práticas mas pela sua coerência sistemática num
quadro dogmático-conceitual;

14
- A realização do direito reduzia-se a uma aplicação lógico-subsuntiva do direito
previamente determinado e sistemático-conceitualmente conhecido.

Podemos lançar duas críticas ao método jurídico postulado pelo positivismo:


A) Esta é uma crítica de carácter empírico ou analítico (feita no plano dos
factos). Na realidade, as coisas não se passam do modo como postulava o positivismo.
Por um lado, constatou-se que o sistema não é pleno. Existiam casos que reclamavam
uma solução jurídica e para os quais não havia nenhuma norma pré-disponibilizada pelo
sistema. Mas mesmo quando existe essa norma pré-disponibilizada conclui-se que o juiz
não é um mero aplicador dessa norma porque no processo judicativo-decisório intervêm
dimensões práticas a dois níveis: para rever a distância entre a norma que é geral e
abstracta e o caso que é particular e concreto, para determinação da específica
relevância do caso concreto, isto porque o caso tem sempre uma dimensão
prático- histórica. Há, então, sempre que fazer uma ponderação de carácter prático,
porque o caso não surge descontextualizado, ele surge num dado momento
histórico-concreto. O juiz não pode eximir-se a um juízo autónomo sobre o mérito do
caso. Há sempre um quantum de subjectividade na decisão. O juiz é sempre
influenciado pela sua experiência de vida, pelo seu sentido de justiça.
B) Outra crítica será de carácter metodológico (critica-se o método afirmado
pelo positivismo). Se as coisas não se passavam como o positivismo postulava era
necessário elaborar um novo esquema metódico que oriente o julgador na resolução dos
casos concretos. Esse esquema há-de acentuar a relevância do caso concreto.
Assim, como reacção ao positivismo, surgiram correntes metodológic as de
orientação prática desde a última década do século XIX até aos nossos dias, caso da
livre investigação científica do direito de Geny, do Movimento do Direito Livre, da
jurisprudência dos interesses de Heck, da jurisprudência sociológica, da jurisprud ência
da valoração que concebiam o direito como um problema prático comprometido com
valores, fins e interesses. O direito não era apenas só forma, mas ele tem também uma
dimensão prática; por outro lado, a realização do direito é constitutiva da normatividade,
há uma unidade entre o pensamento jurídico e o direito. Ao nível da interpretação
jurídica, reconhece-se que se não pode prescindir de elementos normativos extratextuais
e transpositivos, sejam eles valores, interesses, critérios ético-sociais, etc., ou seja,
reconhece-se a existência de outras fontes do direito para além da lei, reconhecendo-se
igualmente que as normas legais têm limites:

15
- Funcionais: há campos do jurídico que não são objecto de regulamentação por
parte do direito positivo. São objecto do direito estatutário ou convencional ou então
não são objecto de qualquer regulamentação;
- Normativos:
a) Objectivos: o sistema não é pleno. As normas legais não resolvem todos os
casos que a realidade suscita: há problemas que são juridicamente re levantes e que não
encontram solução nos critérios positivos fornecidos pelo legislador: estamos aqui
perante o problema das lacunas.
b) Temporais: a norma legal pressupõe sempre um determinado contexto
histórico-cultural. Quando a realidade cultural se altera, a norma pode tornar-se
obsoleta, deixa de ser convocada para resolver os problemas, pelo que já não é eficaz.
Por outro lado, podem-se alterar os princípios normativos em que a norma se baseava,
tornando-se então a norma caduca, pelo que já não é válida;
c) Intencionais: a norma jurídica é duplamente transcendida porque tem de se
referir ao mérito jurídico do caso concreto e, por outro lado, aos fundamentos da própria
norma. É a distância percorrida pelo decidente entre a concretude do caso e a abstracção
da norma.
d) Validade: o conteúdo das normas legais é ajuizado em função da sua validade
que é assegurada pela consciência jurídica geral, formada por três extractos: a)
princípios e valores que nos levam à própria ideia de direito (exemplo: dignidade da
pessoa humana); b) princípios e valores que nos remetem para uma determinada área do
direito e que a distinguem das outras; c) princípios jurídicos positivos, como a liberdade
contratual (os quais se distinguem dos princípios gerais do direito). Se a norma está em
desacordo com o princípio em que essa norma se baseia essa norma não é válida ab
initio.
O objecto intencional da metodologia é o juízo decisório ou a decisão judicativa.
Ao falarmos da decisão judicativa ou do juízo decisório há aqui dois segmentos que não
deixam de, em abstracto, ser contrários:
- O segmento de decisão: esta é a manifestação de um quero, posso e mando.
Traduz a opção por uma de entre várias possibilidades que se oferecem para escolher,
radicando na voluntas de quem a profere postula-se como tal desvinculada quanto ao
conteúdo e quanto a qualquer pré-determinação. Num estado de direito a decisão
judicial não pode ser um acto puramente voluntarístico e, como tal, arbitrário. Apesar de

16
na decisão judicativo-decisória haver uma dimensão de voluntas, esta deve ser reduzida
a um mínimo.
- A dimensão do juízo: esta corresponde a um momento de fundamentação e de
possibilidade de controlo das decisões jurídicas. Este juízo não é um juízo lógico que
convocando premissas, procure demonstrar uma conclusão. Ele é um juízo de
fundamentação que convoca argumentos. Tem, como tal, uma índole
prático-argumentativo. O que caracteriza esse juízo é a resolução de uma controvérsia
prática, convocando-se posições divergentes sobre a mesma questão prática, mediante
uma ponderação argumentativa racionalmente orientada que conduz a uma solução que
é comunicativamente fundada.
Assim, o juízo tem a função de reconduzir a decisão necessária (já que já que
tem que se resolver a controvérsia emergente do caso) à fundamentação exigível,
porque a decisão deverá justificar-se perante os seus destinatários. Compete assim ao
juízo reverter a voluntas decisória à ratio normativa. No entanto, não se consegue
eliminar de todo a decisão para se afirmar exclusivamente o juízo porque:
1- Tratando-se na decisão jurídica de uma decisão vinculante, ela manifesta um
poder que não se poderá reduzir por uma qualquer racionalidade. Daí que o problema
constitucional da delimitação e legitimação que é respondido pelo princípio da
separação dos poderes, pela institucionalização dos tribunais e pela jurisdicionalização
do processo.
2- Porque a decisão não poderá nunca ser totalmente reduzida racionalmente, ela
não se deixa decorrer inteiramente pela razão. Tal é o fruto da urgência da decisão, na
impossibilidade de um non liquet ou de uma denegação da justiça; fruto ainda da
institucionalização formal do julgamento que impõe a decisão porventura sem um
conhecimento ou sem que existam possibilidades de conhecer; ainda do carácter
circunstancial da controvérsia a determinar a selecção de uma relevância entre outras
relevâncias possíveis; ainda a criatividade argumentativa e a elaboração persuasiva.
Tudo isto faz com que uma dimensão de voluntas seja irredutível pela dimensão
da ratio, no sentido de que a solução imposta não exclui em absoluto que outra fosse
possível. A ratio não impõe necessariamente aquela decisão e não exclui que outra
diversa seja possível. Antes de tomada nós não podemos dizer que a solução será esta
ou aquela. Em suma, ela não pode ser pré dita. Mas uma vez prescrita teremos de ser
capazes de a reconduzir a sentença, aos fundamentos em que se baseia. Ela deve
revelar-se racionalmente fundamentada de modo a que entre os seus fundamentos e a

17
sua conclusão haja um forte nexo que leve a que seja aceitável no contexto em que ela é
vinculante. O que dela há de decisão contraditória é assimilado pelo juízo, pelo
raciocínio argumentativo que a sustenta. Nestes termos a decisão jurídica da realização
do direito é verdadeiramente decisão judicativa.
Se no juízo se exprime uma fundamentação, esta implica fundamentos e
possivelmente critérios (normas jurídicas) em que esses fundamentos se objectivam.
Esses fundamentos e critérios vão ser encontrados no constituendo sistema de
normatividade jurídica vigente.
Há, assim, quatro dimensões que se entretecem numa constante dialéctica: a
decisão, o juízo, a norma e o sistema.
O juízo de julgamento apresenta notas formais e notas materiais. Quanto às notas
formais:
a) Exige-se uma solicitação provinda de fora da instância decisória e formulada
por quem tenha legitimidade processual para o fazer, isto é, não se conhecem as
questões judiciais ex officio.
b) O julgamento implica uma controvérsia processualmente disciplinada.
c) Tal controvérsia é da autónoma responsabilidade do terceiro imparcial do juiz.
Não estão apenas em causa as posições das partes.
Quanto às notas materiais:
a) Quanto ao seu objecto – trata-se da resolução de uma controvérsia em que
esteja em causa a redução do direito.
b) O critério normativo do juízo é o constituendo sistema da normatividade
jurídica vigente.
c) O seu modo metodológico – o que se pretende é a redução a quase nada da
dimensão da decisão. O controlo da racionalidade é tarefa específica da metodologia.
d) O juízo de julgamento tem uma intencionalidade específica que é a singular
validade predicativa da normatividade jurídica. Normatividade essa que tem uma
especificidade, não se trata da validade de carácter ético ou moral. Os referentes
axiológicos últimos da normatividade jurídica são os direitos de autonomia e de
participação nas suas diversas expressões. O juridicamente intencionado absoluto do
nosso momento actual radica nestes direitos e deveres. Trata-se do absoluto do nosso
momento actual, logo não quer dizer que ele continuará sempre este.
Como dissemos antes o juízo não é de carácter lógico, convocando premissas
para determinar uma conclusão, mas de carácter argumentativo. São mobilizadas razões

18
para justificar como pertinente determinada solução. Neste tipo de juízo não se
demonstram verdades. Mas será que não há qualquer objectividade neste juízo? Pinto
Bronze fala da objectividade da intersubjectividade. No discurso intersubjectivo
invocamos argumentos que não são fortes ou são fracos, caso sejam fortes poder-se-ão
sustentar posições que podem ser consideradas como intersubjectivamente objectivas,
ou seja, suficientes fortes para serem aceites. A relação entre os fundamentos e a
decisão deve ser harmoniosa, deve haver sinepia.
O Dr. Pinto Bronze partindo da expressão “sociedade de risco” na acepção
veiculada por Ulrich Beck, onde há uma globalização dos perigos, transporta essa
“risikogesellschaft” para as decisões judicativas. Se a categoria risco é sinal de escolha,
de perigo, de desafio, então nas decisões judicativas a decisão será o “domínio do risco”
enquanto que o segundo do juízo identificar-se-á com o “risco dominado”. Apesar da
decisão ser do “domínio do risco” o facto é que essa obrigatoriedade de decisão diminui
o risco comparativamente maior de se permanecer na indecisão até que a seu modo, a
decisão também concorra para dominar o risco.

3 - A legitimidade da discussão do problema metodológico por parte do


pensamento jurídico, não obstante as normas do C.C. sobre o proble ma.

Num estado de direito, em que o homem tem uma ineliminável dimensão ética e
em que o direito não é simples limite formal ou instrumento, mas fundamento material
das diversas funções do Estado, não se pode prescindir do reconhecimento da
autonomia do direito e como tal também da metodologia, ou seja, do pensamento
encarregado de o realizar judicativo-decisoriamente.
Mas sendo assim como justificar a iniciativa frequentemente tomada pelo legislador de
pré-escrever um cânone metodológico?! A generalidade dos códigos civis contém
normas com esse objectivo. Eles eram, à época do movimento codificatório, marcado
pelo ideário moderno- iluminista, as leis básicas. Mas entretanto o mundo do direito
alterou-se e a lei fundamental de qualquer país passou a ser a constituição, perdendo o
Código Civil o seu estatuto privilegiado.
Também entre nós o legislador pré-escreveu um modelo metodológico que
plasmou em normas do Código Civil (art. 8º, 9º, 10º e 11º). O legislador plasmou aqui o
modo como o juiz deve realizar o direito.

19
A questão que se coloca é a seguinte: que relevância a atribuir a essas normas?
Qual o seu valor? Castanheira Neves entende que estas normas valem o que podem
valer quando confrontados com o modo como o pensamento jurídico as compreende.
Valerão muito se, porventura, estiverem em consonância com esse pensamento jurídico,
valerão pouco ou mesmo nada se estiverem em contradição ou se opuserem ao
pensamento jurídico. Castanheiro Neves entende que se trata de uma matéria em que o
legislador nada deve dizer, devendo manter um “silêncio eloquente”, à semelhança do
que acontece com o BGB, filho da escola histórica, ou mais recentemente com o Código
Civil Brasileiro.
Pinto Bronze considera estas normas como inconstitucionais. Organicamente
porque manifestam um desvio das competências da instância que as gerou. O legislador
usurpou uma tarefa de outrem. Materialmente porque não se mostram conformes com
dimensões estruturantes do Estado de Direito. O reconhecimento da autonomia e do
sentido do direito e também do pensamento encarregado de o realizar
judicativo-decisoriamente.
Este autor considera, no entanto, que a inconstitucionalidade orgânica é mais
fraca que a inconstitucionalidade material porque:
a) Os diversos poderes do Estado e as funções que eles titulam são hoje
interdependentes;
b) O próprio legislador faz parte do pensamento jurídico, ele também o integra.
Sendo assim, talvez se deva admitir que o legislador tenha o direito de dizer
umas palavras sobre estas questões respeitando as dimensões que co mpõem. O Estado
de Direito, tal como o entende o pensamento jurídico-constitucional, ou seja, ao
pronunciar-se deve consagrar a autonomia do direito e do pensamento encarregado de o
realizar judicativo-decisoriamente, ou seja, deve consagrar aquilo que é
metodologicamente correcto atendendo ao Estado de Direito que hoje vivemos (que na
perspectiva de Pinto Bronze não marcou o fim da história da evolução das comunidades
humanas, não deixa de ser contingente, está exposta à erosão da história, mas que
enquanto nos mantivermos neste ciclo histórico se perfila como referente
incontornável). Atendendo a isso nada impede que o legislador (em certas hipóteses o
próprio legislador constitucional) tome posição sobre a matéria.
Pinto Bronze propõe mesmo alterações legislativas neste sentido e sugere um
novo texto para algumas normas:

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a) No art. 203º CRP, que consagra a independência dos tribunais, dever-se- ia
levar ao nº1 do art. de modo expresso o que já lá está implicitamente (uma vez que o art.
2º CRP já institui o Estado de Direito Material), ou seja, dever-se-ia dizer que “os
tribunais são independentes e apenas estão sujeitos ao direito e à lei”;
b) No art. 202º CRP que tem por epígrafe a função jurisdicional, integraria um
novo número que afirmava que o problema da realização do direito e da autónoma
competência dos tribunais, que deverão pressupor dialecticamente o mérito jurídico do
caso, o pré-objectivado sistema jurídico e o específico sentido da juridicidade, propondo
este autor um texto para esse mesmo número que consagre estas mesmas dimensões;
c) Ora, este novo número do art. 202º CRP determinaria a revogação dos actuais
arts. 8º, 9º, 10º e 11º CC;
d) Pinto Bronze diz ainda que face à lei nº 74/98 que regula a publicação,
identificação e formulário dos diplomas legais. O art. 5º CC é hoje supérfluo, como tal
deveria ser derrogado;
e) Revogados deveriam ser ainda os arts. 6º e 7º do CC, já que o art. 6º é um
mero corolário dos deveres gerais de cidadania. O art. 7º podia ser transferido para a lei
74/98;
f) Revogado ainda todo o capítulo I do Livro I, Título I do CC que trata das
fontes do direito. Em uma constituição acrescentar-se-ia um novo nº 2 ao art. 203º CRP
que explicaria que são fontes do direito os modos de constituição da normatividade
jurídica vigente;
g) Quanto à questão da concorrência de normas no tempo, regulada nos arts. 12º
e 13º CC. A delicadeza da matéria levou a que fosse a doutrina a esclarecer as muitas
dificuldades que neste âmbito se suscitam. Pinto Bronze considera que só a partir da
especificidade do problema concreto, das exigências a cumprir no quadro dessa questão
e do reconhecimento das fragilidades que se apontam a teoria do facto passado
consagrada pelo legislador de 66 é possível revolucionar as questões concretas que se
colocam ao juiz. Em virtude das singularidades que esta problemática assume nos
diversos ramos do direito, o que lhe leva à sua disciplina pelos mesmos, o CC deveria
limitar-se a reconhecer a realidade referida dispondo num nº 1 “Em princípio, as normas
jurídicas do direito civil apenas dispõem para o futuro” e num 2º “Podem, porém, ter
eficácia retroactiva se a tal não se opuserem fundadas razões de carácter
jurídico-constitucional”.

21
Em suma, apesar destas normas consagradas no CC há ainda e continuará a
haver legítimo espaço para a reflexão metodológica.

II - O problema da racionalidade jurídica

A metodologia pressupõe uma certa racionalidade, pois já vimos que ela é a


racionalizada realização judicativo-decisória do direito. Resta saber qual é o tipo de
racionalidade que havemos de mobilizar para resolvermos os concretos problemas
jurídicos que se nos colocam.
Ratio significa etimologicamente relação, então racionalidade será relação
discursiva. Tratar-se-á da relação entre certa posição ou conclusão e certos pressupostos
(sejam eles materiais [ex: fundamentos, motivos] ou formais [ex: um processo, um
sistema de regras procedimentais]) que sustentam essa conclusão, dando- lhe um
sentido, explicando-a ou justificando-a. Uma conclusão será racional quando é
sustentável pela referência a determinados pressupostos. A antítese da razão será a
intuição e a emoção, enquanto atitudes sem pretensão de validade objectiva. A
racionalidade garante a validade da solução, garante a sua criticidade, a sua
judiciabilidade, ajuizando-se criticamente a solução. A razão não é mais do que uma
cadeia de preposições que se conexionam para garantir a coerência a determinado
discurso.

1º-Alusão à actual “crise da razão”: sentido geral e hodierno dessa crise.


Perspectiva da sua superação - a razão e as razões

O Homem é caracterizado como um ser racional, o que o distingue dos demais


animais que vivem imersos no seu mundo. Os Homens têm essa capacidade de se
transcender, não estão como que pré-programados. Desde os gregos que o Homem se
define como racional, procurando apurar o instinto e dominar o mistério. Tudo isto
apesar de a razão nunca se ter manifestado como única dimensão caracterizadora do
Homem. Não podemos esquecer a sensibilidade (que releva ao domínio da estética), o
instinto, a alma.
Hoje é pacífico que a razão está em crise. Crise a que não devemos reconhecer
em sentido negativo, não é o adeus definitivo da razão. Devemos dar um sentido
positivo. Ela é uma crise libertadora de outras modalidades de razão designadamente

22
liberta a razão prática. Isto porque a razão que entrou em crise foi a razão
axiomático-dedutivo- lógico-formal, a chamada razão moderna de carácter teorético e
demonstrativo.
A razão moderna era uma razão imperialista e exclusiva, afirmava-se a si mesma
como a única dimensão do Homem, afastando todas as outras dimensões supra
referidas. Ela sustentava-se a si própria, era auto-suficiente.
O que caracterizava essa razão moderna?
a) A verdade e o valor são acessíveis à razão. Podemos aceder racionalmente a
eles.
b) Só a razão consegue atingir a verdade e o valor, só a ela eles são acessíveis.

2) Os tipos de racionalidade em geral


A racionalidade apresenta três modalidades básicas:
a) Racionalidade lógico- formal
É a racionalidade de um discurso as relações entre proposições num modo de
inferência necessária entre elas, isto é, umas proposições implicam as outras
proposições.
A validade deste discurso afere-se pela mera compossibilidade sintáctica das
proposições. A fundamentação e a crítica esgotam-se no respeito por essa estrutura de
compossibilidade. Assim, por exemplo, se A=B e B=C, então A=C e isto será assim
independentemente do conteúdo das proposições que se articulam.
Trata-se de uma racionalidade fundamente lógica, demonstrativa, dedutiva e
silogística. Trata-se da racionalidade cartesiana vista como garantia de cientificidade.
Ora, o direito sempre teve a tentação de “vestir o figurino da moda” e, por isso, lançou
mão desta racionalidade que lhe garantia a cientificidade num tempo em que, como
afirma Heidegger, “o não ser ciência era uma deficiência”.
No entanto, mesmo respeitando a compossibilidade sintáctica das proposições
podem existir vícios, já que se poderão utilizar significados diferentes do mesmo
conceito nas premissas. Exemplo não jurídico: a raposa tem quatro patas; o general
Rommel alemão da II GM é uma raposa, logo o general Rommel tem quatro patas.
Exemplo jurídico: colocou-se há algum tempo o problema de saber se a electricidade
era uma coisa, e se uma vez que o Código Penal prevê o crime de furto para o qual é
necessário existir uma coisa se o desvio de electricidade era um furto respondendo os
juristas que a electricidade não é uma coisa e como para haver furto terá de se desviar

23
uma coisa alheia, então quem desvia electricidade não comete nenhum furto. Está aqui
em causa o mesmo vício que no exemplo supra avaliado, ou seja, a utilização de
conceitos com significados diferentes: coisa em sentido jurídico e coisa em sentido
físico (tal como raposa em sentido figurativo significa astúcia, esperteza e raposa em
sentido material representa um animal).
Concluímos que a conclusão nem sempre é verdadeira independentemente do
conteúdo consagrado nas premissas.

b) Racionalidade teorética
É uma racionalidade de referência objectiva que se traduz numa relação
sujeito-objecto. A validade mede-se pelo próprio objecto referido. O discurso é racional
quando responde à realidade heterónoma ao sujeito que é o objecto.
Esta racionalidade tem três subtipos: especulativa, explicativa e
teórico- funcional.

c) A razão em causa é a razão moderna, a razão do sujeito moderno cartesiano.


A razão teórico-analítica-objectiva e dedutiva-demonstrativa, axiomático-dedutiva,
referida a um objecto.

Quais as notas desveladoras da crise da razão anunciada?


a) A verdade em si não é acessível à razão. Esta não dá garantias do acesso
à verdade, o que faz é apenas uma interpretação histórico-culturalmente condicionada
como qualquer interpretação. Popper já havia afirmado que a verdade é inacessível: o
que se vai fazendo é justificar os erros.
b) Há outras instâncias, para além da razão, a que se deve reconhecer
legitimidade para tentar aceder à verdade e ao valor, caso da sensibilidade (arte) e da
espiritualidade (religião) explicações animistas. Derrida fala da crise do logocentrismo.
c) O lugar que antes estava ocupado pela razão está hoje ocupado pela
linguagem, pela comunicação. A comunicação constitui, hoje, a condição necessária de
todo o conhecimento em geral.
d) O monismo da razão cartesiana deve dar lugar a um plura lismo de
racionalidades onde o discurso é irredutível.
e) Reconhece-se que detrás de uma aparente vontade de verdade se
ocultava uma verdadeira vontade de poder.

24
Como afirmamos, esta crise da razão moderna tem um forte aspecto positivo, ela
é libertadora de outras modalidades da razão. A razão dos nossos dias tem claramente
um carácter discursivo, ela discorre por etapas até ao resultado. Tem também um
carácter justificativo - pretende justificar aquilo que alcança. Por fim, tem um carácter
comunicativo - pretende comunicar o que esclarece. Como veremos, a razão que se
deverá assumir no âmbito do discurso jurídico é uma razão prática onde não se
convocam premissas mas argumentos, onde não se pretende demonstrar verdades mas
argumentar convincentemente para que se possa depois defender determinada tese. A
razão prática é uma vernunft, assente numa relação sujeito-sujeito, enquanto que a razão
teorética é uma verstand, assente numa relação sujeito-objecto.

B1) Racionalidade teorético-especulativa:


É a racionalidade típica do pensamento clássico.
Parte-se da ideia de que a racionalidade é inerente às próprias coisas, à realidade.
O homem surge como um hermeneuta das coisas do mundo, que não duvida das coisas
do mundo, sendo um homem optimista um pouco na senda do Dr. Pangloss, do cândido
do Voltaire. “Vivemos no melhor dos mundos possíveis”. É isto o inter- legere, a
explicitação da realidade objectiva que é transcendente, daí o discurso intelectual ou
puramente especulativo (no sentido do espelho das coisas). O q ue se pretende é ler por
dentro as coisas para explicitar a racionalidade dessas coisas, a racionalidade que lhes é
inerente.
A validade do pensamento afere-se pela correspondência entre o discurso e a
realidade heteronomamente contemplada. Como o discurso se limita a explicitar uma
realidade à qual é imanente uma determinada racionalidade, então à partida a validade
do discurso estará garantida.

B2) Racionalidade teorético-explicativa:


Pretende explicar a realidade através da formulação de universais hipóteses
explicativas ou teóricas, em que cada elemento do discurso encontra a sua razão de ser
ou fundamento quando posto em selecção com os outros elementos.
A validade do pensamento terá o seu critério na experiência objectiva que é
invocada numa intenção de comprovação, ou seja, estas teorias hão-de ser comprovadas

25
através da experiência comprovação que pode ser feita em termos positivos ou de
fundamentação por verificação ou em termos negativos os de críticas por falsificação.
É o discurso teórico-explicativo de índole empírico-analítico e procedimental da
ciência moderna, em que as teorias são universais hipóteses de aplicação que são depois
comprovadas ou não.
A validade sustenta-se num modelo processual de construção teórica e de
comprovação empírica, pelo que a sua validade é metodológica.

B3) Racionalidade teórico- funcional:


Mantém-se a relação sujeito-objecto, ou seja, mantém-se a referência objectiva à
realidade, mas a realidade não é agora critério de validade do discurso, mas é apenas
visto como um meio para alcançar fins programados previamente seguindo uma relação
funcional (função-efeitos) ou esquema técnico (meio- fim).
A validade do pensamento é aferida pela adequação funcional dos meios, aos
fins.
A racionalidade confunde-se aqui com eficiência ou eficácia.

C) Racionalidade prática
Aqui não está em causa uma relação sujeito-objecto mas uma relação
sujeito-sujeito.
Esta racionalidade é comunicativa, manifestando-se num discurso argumentativo
numa troca de argumentos, discurso que não visa nem a necessidade da
compossibilidade (racionalidade lógico- formal) nem a verdade através da
correspondência ou a adaptação à realidade (racionalidade teorética). Convocamos
argumentos, que não são verdadeiros ou falsos mas fortes ou fracos, de forma a garantir
o convencimento dos interlocutores. Visa-se atingir o consenso entre dois sujeitos que
se relacionam.
A validade deste pensamento é uma validade prática, isto é, reconduz-se à
fundamentação intersubjectivamente lograda. Trata-se de uma racionalidade prática, em
que vai excluindo o absoluto, isto é, o desligado da prática, e o impessoal, antes
afirmando-se o histórico-concreto.
Racionalidade dirigida não à razão em si, mas às razões que são mobilizadas no
âmbito de uma controvérsia.
Dentro desta racionalidade prática podemos fazer duas distinções:

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a) Racionalidade axiológica vs racionalidade finalístico-estratégica
Dicotomia enunciada por Max Weber: racionalidade axiológica
(wertrationalotat) e racionalidade finalística (zweekrationalitat). Nas palavras do próprio
Weber é qualificada como zweekkatioralitat a acção orientada segundo meios tidos por
adequados para alcançar fins concebidos. A acção é wertrationalotat se determinada
através na crença no próprio valor (em sentido ético, religioso ou outro) de um
determinado comportamento puramente como tal e independentemente do resultado.
Mainhoffer concretizou nesta formulação: integra-se na racionalidade axiológica
o comportamento que tem o seu fundamento no benefício ou no prejuízo “eu quero isto
porque isto me é útil ”, integra-se na racionalidade axiológica o comportamento que tem
o seu fundamento em princípios ou valores, compreendendo o mundo do ponto de vista
da rectidão e moralidade “eu quero porque tenho isto por recto, por bem” é esta a
máxima. Acredita-se no valor incondicional de um comportamento independentemente
do resultado, diferentemente do que acontece na racionalidade finalística em que a
actuação é orientada por fins que se pretendem alcançar e não por valores.
Na racionalidade finalística a prática converte-se em técnica. A fundamentação
cede à instrumentalização, a razão material cede à razão formal, puramente
instrumental. A ordem cede à planificação. Aproxima-se esta racionalidade prática,
enquanto teórica, da última modalidade da racionalidade teorética, acabando por se
confundir com essa racionalidade teórico- funcional. A racionalidade é
instrumentalizada no processo de um fim. A racionalidade prática seria uma
racionalidade científico-tecnológica e transformar-se-ia no modelo operatório de uma
engenharia social – “social enginnering” sugerida por Pound e retomada por Popper.
A racionalidade finalística, ao especificar-se nos pensamentos económico e
prático, como racionalidade estratégica, foi base e princípio das teorias racionais da
decisão, ou teorias empíricas da decisão prática. O comportamento racionalizado
segundo o esquema meio/fim converte-se em comportamento racional estratégico
quando o meio se especifica em diversas possibilidades de acção entre as quais se opta
de forma a optimizar com essas possibilidades a prossecução do fim ou objectivo. A
racionalidade estratégica traduzir-se-á na justificação da escolha, entre diversas
possíveis acções, por critérios determinados por um princípio de optimização na
realização de certo objectivo. A decisão é a escolha finalística entre diversas
possibilidades relativamente ao fim pretendido. A teoria da decisão tem por objectivo a
definição de regras e modelos de decisão, com base numa investigação de acção

27
finalizada nos seus pressupostos, nos seus fins, nos seus efeitos, etc. Teoria que opera
num quadro de racionalidade formal e mobiliza os modelos do pensamento matemático,
convertendo o qualitativo em quantitativo, uma tentativa de um cálculo da acção e da
decisão. O que interessa não é a decisão enquanto decisão justa ou verdadeira, mas
como decisão óptima em condições e optimização que se pretende calculável. Era a
ideia do racionalismo clássico, o tornar calculável a prática humana.
[Segundo este pensamento há diversas situações a que a decisão vai referida: a)
decisão em situação de certeza - cada escolha de uma alternativa entre as várias
corresponde um resultado certo. O problema reduz-se à comparação dos resultados
possíveis e a escolha do resultado preferível; b) decisão em situação de r isco - os
resultados das acções não são certos, só podem ser considerados em termos de
probabilidade por ocorrerem circunstâncias apenas estimáveis na sua probabilidade de
relevância para o resultado; c) decisão em situação de incerteza e sentido estrito - o
decidente tem de atender a circunstâncias desconhecidas, considerando-as na sua
relevância para o resultado das acções; d) decisão em situação de incerteza competitiva
ou situação antagónica - os decidentes são dois ou mais em situação de conflito, de tal
modo que relevando os efeitos da acção de cada um para a do outro com os seus efeitos,
cada decidente terá de ter em conta tanto a acção dos outros como a reacção dos outros
aos efeitos da sua própria acção. Esta modalidade subordina-se ao postulado
fundamental da acção racional dos participantes no sentido em que cada um deles agirá
de modo racional, isto é, de forma a obter maior benefício das suas acções e entram o
maior prejuízo das acções e reacções dos outros. É este postulado que permit e definir
estratégias para a decisão nestes tipos de situações. Definida a situação, e uma vez que a
decisão se traduz na escolha de alternativas na situação em atenção aos fins, há que
considerar no quadro de coordenadas e estas influenciam a mobilização de um conjunto
de factores, base do enunciado de regras de decisão. Há que discriminar as variáveis
quanto aos fins (o que se quer) e as alternativas (o que se pode fazer) e as variáveis
relativa ao como (efeitos de cada alternativa e a reacção que possa sofrer a decisão que
opta por uma delas). Isto reconduz a dois pontos principais: obtenção de uma lista
completa de alternativas com a consideração dos efeitos de cada uma; valoração desses
efeitos segundo uma escala de valores por que se prontifique a escolher das alternativas.
Os factores serão uma base de informação e uma base de valoração. A base de
informação traduzir-se- ia num conjunto de conhecimentos sobre as possibilidades de
acção e os seus efeitos. A base de valoração será um sistema de fins ou valores (não

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uma ordem cronológica mas uma escala de preferências relativamente às alternativas ou
teoria de preferência tendo por objecto as diversas alternativas com vista à realização do
fim pretendido, valores puramente finalístico- formal, fundando-se numa relação
estrutural). Essa teoria da preferência terá de respeitar três axiomas: de comparação (as
alternativas hão-de ser comparáveis entre si), de assimetria (elas são diferentes entre si e
nos seus efeitos), de transitividade (é transitivo de um sujeito caso prefere a) perante b)
e b) perante c) também preferirá sempre a) perante c)).
São condições para a decisão, encontrando o seu complemento no enunciado de
máximas, que as regras por que a decisão se possa orientar. São muitas as propostas
dessas regras que levam sobretudo as situações de total incerteza. Caso for possível
juízo de probabilidade vale a regra de Bayes decidindo-se pela alternativa que for mais
provável de entre os mais desejáveis para o decidente segundo a escala de preferência.
Excluída a probabilidade as regras são duas: numa atitude excludente de riscos
minimizar-se-ão os máximos riscos; numa atitude de aceitação de riscos, optimista
decide-se pela alternativa de efeito nas favoráveis, independentemente do grau com que
se ofereça a chance da sua verificação: são as regras do minimax e do maximax.]

b) Racionalidade substancial ou material vs racionalidade processual,


procedimental ou formal
São racionalidades materiais aquelas cujas validades que pretendem manifestar
se refiram e sejam expressão de um fundamento material. A conclusão será válida caso
seja racionalmente justificado por algo materialmente pressuposto que dá sentido
positivo à prática, seja esse algo de natureza ontológica, antropológica, axiológica, etc. -
referência a um fundamento material. Esse algo que fundamenta, porque tem uma
intencionalidade material, há que manifestar-se no conteúdo da atitude prática em causa
- expressão de um fundamento material.
São racionalidades procedimentais aquelas que legitimam a validade que se
propõem exprimir através do processo, do modo procedimental ou operatório pelo qual
chegamos a uma determinada conclusão.
O que dá validade a qualquer acção deixa de ser um fundamento material para
ser o procedimento adaptado que conduziu a essa acção.
No primeiro tipo de racionalidade, o essencial é o conteúdo e secundário o modo
de obtenção; no segundo tipo, o essencial é esse modo e secundário o conteúdo, em
termos de se admitirem aqui soluções de conteúdos diferentes num como que princípio

29
de equivalência ou indiferença material, enquanto que ali vigora pelo contrário o
princípio da única solução válida.
Na formulação de Luhmann: legitimação/validade pelo fundamento material
num caso; legitimação avaliada pelo processo no outro.
O exemplo histórico-cultural mais expressivo da racionalidade material foi o
jusnaturalismo clássico e da racionalidade procedimental. O contratualismo e o
neo-contratualismo políticos, a teoria do discurso da verdade e da justiça - Habermas
teoria da racionalidade práticas como argumentativo - Alexy e as teorias sistémicas da
prática Luhmann.

Se comparamos esta distinção com o primeiro enunciado, concluímos que a


racionalidade axiológica corresponderá sempre a uma racionalidade material enquanto
que a racionalidade finalística corresponderá a racionalidade procedimental.
De facto a zweekrationalitat tende a coincidir, que não a identificar-se, com a
racionalidade processual. É que ambas se baseiam em pressupostos histórico-culturais
fortemente afins. São resultado do pensamento moderno, com a sua neutralidade e
suspensão do axiológico pela subjectividade humana e a sua racionalidade
empírico-científica. O homem moderno, contrariamente ao pré-moderno, era posto
perante um mundo de facticidade empírica e de causalidade e como tal axiologicamente
neutro. O desencantamento do mundo na expressão de Max Weber a que o homem só
aprende a sua subjectividade. Os fins deixaram de ser a expressão metodológica de uma
onda axiológica para passarem a ser manifestações de pretensões subjectivas. As
categorias de acção deixaram de ser as de bem, do justo da validade axiológica para
serem as do útil, da oportunidade, da eficiência, da eficácia. A acção é revertida para a
estrita factualidade, submetendo-a à científica investigação empírica. É o predo mínio da
racionalidade finalística sobre a axiológica.

Atendendo a esta evolução histórico-cultural também se compreende a


preferência que hoje tende a dever-se à racionalidade processual face à material. Essa
evolução culminou na recusa de ordens ou siste mas de valores absolutos, o que
culminaria no relativismo e no niilismo contemporâneos.
O homem é colocado num mundo axiologicamente neutro, onde não há uma
verdade absoluta, não há um “Grund”, um fundamento último. No universo prático o

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conteúdo provém agora da forma, só o procedimentalismo excluiria o total relativismo e
subjectivismo.
Esta conclusão não deve excluir uma racionalidade material. Os fundamentos
matérias da prática deixou de ser, é facto, entidades absolutas, um ser ou natureza, para
passarem sem o ser. Os valores que se afirmam em cada momento histórico, as
respostas ao justo e ao bem que numa época são dados. A alternativa jusnaturalista
/positivismo não tem de ser uma alternativa absoluta. Contra o jusnaturalismo e a sua
procura dos fundamentos do direito numa manifestação do ser, da natureza,
compreende-se que o direito compete à autonomia cultural do homem, ele é uma
resposta culturalmente humana, historicamente condicionada ao problema de
convivência. O direito não é descoberto pela razão. Contra o positivismo terá de se
negar que o direito seja apenas o resultado de uma voluntas, orientado por um finalismo
ou que ele seja mero resultado dos compromissos político-sociais pois a prática jurídica,
convocou sempre valores e princípios normativos fundamentantes que pertencem a uma
dada cultura num certo momento histórico. Esses valores e princípios fundamentais às
normas positivadas que se exprimem nessa cultura e nessa época são princípios e
valores metapositivos. Pelo que a exclusão da função posição jusnaturalista a
fundamentos absolutos, intemporais e naturais ao homem não nos deve condenar à
contigência politico-social do positivismo. A solução deveria ser a de um tertium genus
fundado no problema do estado do direito que na nossa cultura e num tempo é dado. Daí
que não se possa excluir uma ineliminável deveres axiológicos. Tanto o positivismo
com o jusnaturalismo são ahistóricos, negligenciam a historicidade, o diálogo que se
tem de estabelecer entre o actual e o tradicional. Este tertium genus é fundamentalmente
histórico, já que tende a esse diálogo, não afirmando um absoluto axiológico
intemporal, mas um fundamento axiológico que é dotado da característica da
historicidade, sendo conformado culturalmente. Pinto Bronze fala em atender ao
absoluto do nosso momento histórico. Absoluto este que pode ser hoje diferente do que
foi ontem e do que será amanhã. Ele é o fundamento da normatividade jurídica: para
este autor esse referente último é a pessoa humana e a sua eminente dignidade. Os
princípios da pessoalidade são a igualdade (dimensão singular) e a responsabilidade
(dimensão comunitária). Ele distingue o indivíduo da pessoa. A pessoa tem na
comunidade um dos seus elementos constituintes. Esta igualdade projecta-se no direito
de autonomia e participação e o da responsabilidade nos deveres de corresponsabilidade
e solidariedade.

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Nesta linha de um tentium genus é que se situa a neokantiana “ideia do direito ”
ou do “direito justo” - Binder, Ernest Mayer, Radbruck-ou o direito natural existencial
de Maihofen. Hoje afirma-se nos princípios do direito justo de Larenz ou o
reconhecimento de um principio normativo de juridicidade em que se objectiva a
consciência judicial geral de uma certa comunidade histórico cultural que tem o seu
núcleo numa consciência axiológico-jurídica constituída pelos princípios jurídicos
fundamentais e o sentido axiológico último do direito numa comunidade - Castanheiro
Neves.

3 - Os tipos de racionalidade especificamente jurídica


Questão que se coloca agora é a de saber qual a racionalidade que
especificamente deve corresponder ao pensamento jurídico na sua tarefa de realização
do direito. Todas as racionalidades que analisámos em geram têm sido assumidas pelo
pensamento jurídico nessa tarefa.

A) Racionalidade lógico-formal e racionalidade teorético-explicativa


A atitude tradicional (mas não originária já q ue essa não era a atitude do jurista
romano e não é a do jurista dos sistemas da “common law”) é a que vê o direito como
um objecto e o pensamento jurídico com uma interacção teorética.
A esta racionalidade tradicional são atribuídas duas características fundamentais:
1- Objectivismo: o direito é encarado como um objecto que é pré-existente,
pré-dado aos juristas;
2- Cognitivismo: o jurista dirige-se a esse direito, a esse objecto, com a mera
intenção de o conhecer, ao ponto de se poder afirmar que o problema jurídico é um
problema de conhecimento e o jurista decide conhecendo.
Postulam esta atitude vários pensamentos jurídicos diferentes como:
1- Jusnaturalismo racionalista: via o direito como objecto, fundado em entidades
indispensáveis ao homem com uma consistência de ser. O direito é um conjunto de
regras ou axiomas da razão humana aos quais acedemos em termos meramente
lógico-dedutivos;
2- Positivismo: o direito é também objecto, um conjunto de regras
prescritivamente impostas pelo poder que circunstancialmente se afirma.
Estas duas correntes divergem, no entanto, na compreensão do direito (em saber
o que é o direito) para o jusnaturalismo racionalista o direito tema ver com uma ideia de

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ser, é um conjunto de regras indispensáveis que fazem parte da razão do Homem, para o
positivismo o direito é já uma manifestação de um poder - o poder do legislador. Mas
ambos convergem numa mesma racionalidade lógico- formal. Será que esta
racionalidade deve ser hoje a racionalidade especificamente jurídica? Claramente não,
ela é uma racionalidade tautológica, isto significa que na conclusão só encontramos o
que está nas premissas (se a=b; b=c então a=c). Sabemos que tal não é possível porque a
resolução de problemas jurídicos concretos é ela mesmo redensificadora da
normatividade jurídica vigente. A realização do direito implica sempre um juízo
normativo autónomo e a racionalidade lógico formal não nos permite o controlo desse
juízo.
3- Realismo: os diversos realismos vêm dizer que o direito não é identificado
com o juízo de valor, um juízos de dever ser, mas sim como um conjunto de factos
sociológicos e psicológicos. Os realistas relevam os factos, pretendendo substituir a
normatividade pela factualidade. As decisões de qualquer autoridade jurídica são vistas
pelo “logalrealism” tão só como o resultante de um conjunto de factores (psicológicos,
ideológicos, económicos, políticos, sociológicos, etc.) que os influenciam ou motivam
daí que a ciência do direito houvesse de ter o seu objecto não só no estudo das normas
jurídicas, mas na investigação empírico-analitica daqueles comportamentos, enquanto
explicáveis por aqueles factores e em ordem a prever esses comportamentos no futuro.
Em suma, o jurista deve tentar conhecer um dos factos para poder através desse
conhecimento prever as decisões jurídicas. O juiz não tem juízo de dever-ser mas é
apenas influenciado por factos. Daí a racionalidade teorético-explicativo aqui presente.
Não devemos adoptar esta perspectiva. Do nosso ponto de vista o importante
não é explicar as condições heterónomas que determinam a decisão jurídica, ou seja,
adoptar uma perspectiva externa. O que pretendemos é assumir as intenções e os
sentidos de um ponto de vista interno, responder à questão que o decidente
necessariamente se pões - como deverá ele julgar e decidir o problema jurídico correcto
que lhe impõe resolver no quadro da juridicidade vigente. É este o primeiro erro
metodológico em que o realismo cai. O segundo é o de se preocupar com o contexto da
investigação e de ignorar o problema e o contexto da fundamntação ao pretender
substituir a fundamentação normativa por uma explicação empírica. Reverte a decisão
jurídica para a psico-sociologia deixando inconsiderado aquilo que a especifica como
decisão jurídica que lhe confere um surtido normativo a exigir uma fundamentação
também normativa.

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O pensamento dos realismos não é um pensamento jurídico enquanto tal, não
oferece uma racionalidade jurídica que seja assumível pelo pensamento jurídico na
realização do direito. Será uma racionalidade de um pensamento psicológico,
sociológico, etc., ou seja, de um outro pensamento que não o jurídico.
Este pensamento servirá mais uma lógica de advogado, mas não contribui para a
lógica do juiz isto porque se prende com o saber os factos que levam o juiz a
determinada decisão, mas não o orienta na sua tarefa de realização do direito. Mas é este
orientar, este guiar que constitui justamente o problema da metodologia jurídica. A lém
de que ao dizer que o direito não se identifica com juízos de dever-ser, estamos a
abandonar o que caracteriza o direito na ideia de validade. O direito é um dever-ser,
convoca necessariamente uma axiologia.

B) A racionalidade tecnológica
Esta atitude vê o pensamento jurídico não como uma teoria mas como uma
tecnologia - uma tecnologia social ou uma “social engineering” (atitude da engenharia
social). O direito é agora concebido como instrumento submetido e ma nipulado por uma
racionalidade finalística, funcional e tecnológica.
Esta racionalidade é a assumida pela jurisprudência sociológica onde avultam
nomes como Pound e Cardozo.
Há que não confundir esta jurisprudência sociológica com a jurisprudência dos
interesses, apesar de ambos devem importância à categoria dos interesses. Na segunda,
o que releva são os conflitos de interesses que fazem surgir as normas, eles são factores
causais do direito. Na jurisprudência sociológica, os interesses não são perspectivados
segundo um ponto de vista conflitual, o direito não existe para resolver conflitos mas
sim para ponderar interesses que existem e para os tentar satisfazer ao máximo. Só a
jurisprudência sociológica e não a jurisprudência dos interesses lança mão de uma
racionalidade tecnológica.
Para a racionalidade tecnológica parte-se da evidência de que os bens materiais
existentes são escassos, não são suficientes para satisfazer os desejos de cada indivíduo
que são infinitos. O pensamento jurídico preocupar-se- ia em radicar até ao limite do
possível os diferentes interesses, todos eles legítimos que se fazem sentir no panorama
social. Assim, o direito vai ser chamado a distribuir em termos utilitarísticos o máximo
de benefícios. O fim da ordem jurídica seria o de eliminar o desperdício dos recursos
garantindo a sua máxima distribuição.

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O objectivo é o de convocar o pensamento jurídico para a definição, através do
direito, das soluções socialmente mais convenientes, não as axiologicamente válidas
mas as finalístico-programaticamente mais oportunas ou úteis e instrumentalmente
adequados ou eficazes, numa preferência pela programática utilidade relativamente à
axiológica justiça. O técnico-sociologismo é sempre um utilitarismo. O direito vai
existir para ponderar os interesses sociais e para tentar satisfazê-los o mais possível.
O jurista de prudente ou sujeito de juízos práticos de validade e normativos,
passaria a engenheiro ou técnico social.
O que se pretende com esta engenharia social não é obter uma decisão
normativamente fundada e axiologicamente válida mas sim encontrar a solução mais
eficaz e útil. O direito passa a compreender-se como uma estratégia politico-social
finalisticamente programada. A decisão concreta seria uma táctica de realização ou
execução consequencial e a função judicial como uma instituição funcionalmente
adequada a essa estratégia/táctica. Veremos, assim, cada um desses momentos:
a) Concepção do direito;
b) Decisão jurídica;
c) Função judicial.

Quanto à concepção do direito:


Vamos estudar o modelo de Hans Albert, inspirado no racionalismo
crítico de Popper. Segundo este modelo não é possível alcançar a verdade mas tão só
eliminarem-se erros, constroem-se hipóteses explicativas que serão válidas até serem
substituídas por outras que as falsificam (invalidam). A ciência tem como direito
objectivo não tanto a verdade, mas a denúncia do erro. Modelo este que Hans Albert
transpôs para o mundo do direito. O direito passa a ser visto como uma estratégia
politico-social, funcional e fundamentalmente programado. A própria sociedade propõe
ao direito o seu programa político e ao jurista compete tão só descobrir esses fins da
sociedade - concepção finalística.
Para a realização desses fins e cumprimento dessas ideias, elaboram-se
modelos ou projectos de solução tendo sempre em atenção as vár ias soluções
alternativas possíveis.
A elaboração destes modelos deve obedecer a três princípios:
1- Princípio da congruência: as soluções têm que ser sistematicamente
possíveis no contexto cientifico em que se inserem;

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2- Princípio da realizabilidade: é necessário que as soluções sejam
susceptíveis de serem realizadas tendo em conta as circunstâncias concretas;
3- Princípio da explicabilidade: as soluções têm que ser susceptíveis de
serem esclarecidas pelo pensamento científico.
A aceitação dos referidos modelos ou projectos de solução depende da
averiguação dos efeitos que desses modelos resultem, em confronto com os efeitos de
que seriam susceptíveis os modelos da solução alternativa. Em suma, a opção por um
desses modelos era feita através da comparação dos efeitos a que a sua aplicação
previsivelmente conduziria.
São duas as conclusões a sublinhar nesta proposta de racionalidade a que o
direito e o pensamento jurídico deveriam também assinalar:
1- As soluções oferecidas pelos modelos elaborados são meramente hipotéticas,
na medida em que estão sempre submetidas a uma experimentação racional social ou
uma “falsificação” em função das suas condições de realização e efeitos.
2- Estamos perante uma tecnologia social sem carácter normativo onde não há
qualquer relevo axiológico.

Quanto ao nível da decisão jurídica:


É aplicada à decisão jurídica a teoria da decisão, ou melhor, teoria
empírico-analítica da decisão, modelo definido por Wälde e Kilian.
Começa-se por observar que o tradicional método normativo não seria o
determinante das decisões concretas. Tal método seria apenas uma forma de justificação
a posteriori dessas decisões obtidas na verdade através pragmáticas ponderações
teleológicas aferidas pelos efeitos. Dai que se defendesse a substituição do método
tradicional pela racionalidade que atendem a este tipo de ponderações o que seria
conseguido pela aplicação à decisão jurídica da teoria das decisões.
Esta teoria tem como principal objectivo racionalizar a decisão, estabelecendo
regras que permitam obter a decisão mais útil e oportuna. A decisão é a escolha
finalística entre diversas possibilidades de acção tendo em conta os efeitos de cada uma
dessas possibilidades relativamente ao fim pretendido. A racionalidade traduzia-se na
justificação da escolha, entre diversas possíveis acções, por critérios determinados por
um princípio de optimização na realização de certo objectivo.
Para se alcançar este objectivo de optimização dos resultados e uma vez que a
decisão consiste na escolha de alternativas atendendo aos seus fins, há que considerar

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um quadro de coordenadas (da decisão) e estas implicam a mobilização de um conjunto
de factores (para a decisão) que será a base do enunciado de regras máximas (de
decisão). Há que discriminar em qualquer decisão as variáveis quanto aos fins: aquilo
que se quer; as alternativas; o que se pode fazer; e as variáveis relativas ao meio: efeitos
de cada uma dessas alternativas e a reacção que possa sofrer a decisão que opte por cada
uma delas. Isto reconduz-se à obtenção de uma lista completa das alternativas de acção
e dos previsíveis efeitos a que cada uma conduzirá, elabora-se então a chamada base de
reformação. Com essa base de informação formar-se-á uma valoração desses efeitos
segundo uma ordem ou escala de valores pelo qual se justificará a escolha das
alternativas. Teremos, assim, simultaneamente uma base de valoração. Esta base de
valoração será em sistema de fins ou valores, atendendo que para este pensamento
funcional- instrumental esse sistema não significa uma ordem axiológica, é tão só uma
escala de preferências relativamente às possibildades alternativas ou uma teoria de
preferência cujo objectivo são as diversa alternativas (as diversas acções-efeitos) com
vista à realização de fim ou objectivo pretendido. A valoração não é mais que a
comparação das alternativas nesse sentido.
Esta teoria de preferência só será susceptível de se oferecer como base para a
decisão se respeitar três axiomas:
1- Axioma de comparação: as alternativas hão-de ser comparáveis entre si;
2- Axioma de assimetria: as alternativas hão-de ser diferentes entre si e nos seus
efeitos;
3- Axioma de transitividade: uma ordem de preferências para as alternativas A,
B, C é transitiva se o sujeito da decisão caso prefira A face a B e B face a C, preferirá
também sempre A perante C.
Tudo isto são apenas os pressupostos e condições para a decisão, encontro o seu
complemento indispensável no enunciado de regras ou máximas pelos quais a decisão
se possa orientar tendo em conta o caso concreto. Essas re gras visam sobretudo as
situações de total incerteza (de risco e de indeterminação). Há que distinguir duas
situações:
1- Caso seja possível fazer um juízo de probabilidade quanto aos efeitod da
escolha das alternativas aplica-se a regra de Bayer - o decidente optar pela alternativa
que for mais provável de entre as que conduzem aos efeitos pretendidos
2- Se não for possível fazer esse juízo de probabilidade quanto aos efeitos são
postuladas duas regras: ou seguimos a regra minimax, numa atitude pessimista ou

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excludente de riscos, numa ideia e minimização dos riscos o decidente profere a
alternativa de efeitos mais favoráveis independentemente do grau de possibilidade da
sua verificação. A primeira regra é também chamada de minimização dos máximos
riscos e a segunda de regra do máximo dos máximos.
Como se procede isto na prática? O que o jurista tinha de decidir era saber se in
casu o conceito jurídico de uma norma foi ou não preenchido. A resposta a este
problema resultaria de saber que efeitos a resposta afirmativa ou negativa provocaria e
se esses efeitos, referidos ao fim da norma, seriam ou não desfavoráveis, ou seja, o fim
da norma (a situação descrita que deve ser alcançável com uma norma concreta)
permitirá afirmar positiva ou negativamente dos possíve is efeitos alternativos, efeitos
que serão a base de valoração que levará ou não a reconhecer verificadas as condições
de aplicação da norma. Há, assim, uma conexão entre a situação concreta, fim da norma
e efeitos da decisão constituída através das condições de aplicação; os efeitos da decisão
teriam de se submeter aos axiomas que vimos para ser possível a sua escolha e essa
escolha seria encontrada pelo fim da norma, cabendo aos julgados a tarefa decisória de
acordo com as regras supra mencionadas.
Este método reconhece a intervenção pessoalmente decisiva do julgador, mas
enuncia as condições da sua máxima racionalidade e com essas condições a
possibilidade do seu controlo.

Quanto à função judicial:


Vamos ter o juízo tecnocrata proposto e caracterizado po r F. Ost. O juiz actuaria
segundo o modelo da justiça científica essencialmente funcional, instrumental. O juiz
deixa de ser um terceiro imparcial, deixa de ser um mero árbitro, intervindo activamente
na criação das soluções mais adequados aos fins e interesses propostos pela sociedade.
O juiz intervém pondo fim a diferendos fazendo a aplicação da lei. Mas também actua
antes que uma controvérsia se forme cumprindo uma função preventiva, de conselho,
orientação. Depois de resolvida a controvérsia e proferida a decisão o juiz continua
responsável pelos interesses em causa e pode, a todo o momento, rever as soluções que
são proferidas rebus sic stantibus (enquanto se mantiverem as circunstâncias). Deixa de
ser aplicador passivo de regras e princípios pré-estabelecidos e passa a colaborar na
realização de finalidades políticas e sociais. Ele é a longa manus da função
administrativa/executiva. As decisões do juiz nunca formaram caso julgado material,
ideia hoje presente a nível dos processos de jurisdição voluntária.

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Esta preocupação não com o mais justo, mas com a transformação do juiz num
administrador é consequência do estado-providência da sociedade pós- industrial, onde o
estado é interveniente sob a forma de redistribuição, planificação, controlo,
envestimento, etc. As obrigações cujo respeito o juiz deve assegurar tomam a forma de
directivas flexíveis ou de “standards”, os direitos assegurados são simples interesses.
Isso obrigaria o juiz a decidir atendendo às finalidades sociais e politicas que presidem
às instituições e mecanismos no seio dos quais se oferecem estes “standards” e
interesses. Há uma transformação do juiz em administrador - ele resolve os conflitos de
interesses inspirando-se nas finalidades que devem prevalecer. O direito
instrumentaliza-se, convertendo-se numa técnica ao serviço do desenvolvimento social.
Na base de tudo a ideologia tecnocrática com a legitimação pela eficiência.

Críticas a esta racionalidade tecnológica


Luhmann critica esta perspectiva considerando-a disfuncional por três motivos:
1- Estes modelos introduziram a contingência nas decisões jurídicas, com
sacrifício da exigível certeza
2- Violaria os princípios da igualdade (metade pela variação daquilo que é
socialmente mas adequado num determinado momento)
3- Para este autor o direito deve ser concebido como um sistema
normativamente autónomo cuja função principal é a redução da complexidade em que
se traduz a sociedade. Ora, caso o direito seja interventalizado para a prossecução de
fins pré-determinados ele deixa de cumprir essa função, já que ele está em constante
variação deixando de ser um sistema autónomo.
Teubner também lança uma crítica de sentido funcional. Aqueles modelos só
acentuariam a sobrejuridicização da sociedade com a consequência da sobresocialização
do direito: o direito passa a ser um mero instrumento da sociedade e como tal a
sociedade passa a estar dominada pelo direito. Daí, também no plano jurídico, a crise do
estado-providência com movimentos de deslegalização, descriminalização, de procura
de formas alternativas de justiça.
Castanheira Neves lança um conjunto de críticas:
1- A primeira tem directamente a ver com o sentido do direito. Ao levarmos a
perspectiva analisada às últimas consequências, o direito deixa de ser uma
normatividade de garantia, uma axiologia ou sistema de verdades materiais que se
subtraem à contingência decisória, convertendo-se num instrumento relativizado à sua

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própria “performance”, às suas consequências do momento. O direito não é mais um
sistema de validades que se impõe a todos os tipos de poder e na vida comunitária. Sem
esse sistema de validades não temos direito, pelo menos o direito que o estado de direito
intenciona. Temos assim um sistema de direito sem direito, já que este pressupõe
necessariamente um sistema de validades em que a justiça é valorizada em detrimento
da eficácia e da oportunidade.
2- A segunda atenta à função judicial. Esta converter-se-á numa outra função
executiva, sem diferenças essenciais relativamente à função administrativa já que a sua
intenção é também finalística e o seu princípio o da eficiência. A função judicial
torna-se numa longa manus da intervenção politico-social ou pelo menos senão dela
legitimante.
Desta forma subverter-se-á o sentido da função judicial no quadro de um estado
de direito. Pois o que compete à função judicial, e a distingue das demais funções desse
estado, é, como terceiro imparcial, gozando de um estatuto de independência, o assumir
e o fazer cumprir a reserva de direito que dá a dimensão “de direito” ao “estado de
direito” e à comunidade em geral. Esta dimensão traduz-se nas garantias que o princípio
da legalidade é chamado a oferecer nos vários domínios jurídicos e na axiologia
específica que postula e que encontra expressão máxima nos direitos fundamentais.
Tudo o que vai dito não significa que o juiz deva ser indiferente ou que tenha de
irrelevar totalmente os resultados. Os resultados são sempre importantes para o direito
já que estes não se traduzem numa ética de consciência mas numa verdadeira ética de
responsabilidade. No entanto, a decisão não pode ser orientada apenas por um programa
de fins ou por uma estratégia finalística. Aí não se afirmam nem se cumprem validades
que vimos serem essenciais ao direito mas decide-se com base na oportunidade e na
eficácia. Tudo se resume, em suma, ao seguinte: qual deverá ser o sentido da opção - se
validade ou oportunidade, se justiça ou utilidade. Ora, considerando o direito como um
sistema de validades teremos que concluir que a racionalidade a adoptar não pode ser
tecnológico-estratégico mas ser orientada por uma validade normativa. As diferenças, o
espaço que as separa é gigantesco: de um lado a validade, do outro a oportunidade, de
um a justeza, do outro a eficácia; de um o fundamento do outro a estratégia; de um lado
o juízo, do outro a decisão; de um lado o direito como categoria ética do outro o direito
como categoria técnica.
3- A terceira crítica tem a ver com a teoria de decisão e a sua aplicação à decisão
jurídica. Castanheira Neves considera que ela pode ser viável: nos domínios da

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prescrição legislativa que tem uma índole estratégica; nas decisões administrativas com
a sua intenção de oportunidade e eficiência é também um domínio no essencial
finalisticamente orientado onde há várias alternativas e de escolha entre o que é mais
oportuno atendendo aos seus efeitos; ainda nas decisões discricionárias que se
caracterizam por escolher, de entre diferentes possibilidades a que realiza melhor um
fim pré-determinado (maxime nas decisões administrativas discricionárias, o fim
público); abrange ainda as decisões que as partes ou os sujeitos processuais tomam no
âmbito de uma táctica processual - o objectivo que se propõe é a realização do direito
mas a obtenção de benefícios ou exclusão de prejuízos. Questão que se coloca é a de
saber se este modelo decisório servirá à realização do direito. A resposta é negativa, ela
não serve para orientar o juiz nessa sua tarefa de realização do direito. Isto porque a
realização do direito afirma uma validade normativa vinculante. Assim, o fundamento
da decisão proferida pelo juiz será sempre uma ideia de validade.
A teoria analítica da decisão mostra-se impraticável visto que não é possível
elaborar uma teoria de preferências, ou seja, elaborar uma base de valoração. Desde
logo porque é impossível converter as preferências individuais em preferências sociais,
isto porque a viabilidade desta conversão dependeria de certas condições que se
demonstram simultaneamente irrealizáveis: serem ilimitadamente admissíveis todas as
ordens de preferência individuais logicamente possíveis (chamada condição W
“irrestricted domain”); serem as alternativas proferidas por todos os indivíduos também
proferidas na decisão social (condição P por referência ao princípio de Pareto); não se
alterar a preferência social sobre um par de alternativas ainda que se altere uma
preferência individual relativamente a uma terceira alternativa que não foi objecto de
escolha por, por exemplo não estar originariamente disponível (condição I de
irrelevância); não existir nenhum titular que imponha uma qualquer preferência ou um
qualquer sistema de preferências (condição O - “non-diatatorischip”).
Impossível ainda elaborar uma teoria de preferências porque a base de
valoração, sabemo- lo já tem de ter uma prévia transitividade. Mas a verdade é que a
decisão jurídica é incompatível com essa transitividade. Isto porque:
1- Os princípios e fundamentos de valoração alteram-se no tempo o que exclui
uma rígida hierarquização, antes implicando uma sua convocação móvel (exemplo,
veja-se o princípio da liberdade contratual, inicialmente considerado como inderrogável
e as recentes evoluções em matéria de protecção do consumidor, que permitem várias
vezes a sua derrogação).

41
2- O modo como o caso concreto solicita os fundamentos põe sempre em causa
uma lógico-abstracto transitividade. Por um lado a relação abstracta dos fundamentos e
a relação que entre eles implica o problema concreto não têm que coincidir (exemplo:
princípios compatíveis em abstracto e que se revelam antinómios em concreto e o
inverso). Por outro a alteração circunstancial da posição hierárquica entre valores ou
princípios junto da problemática da situação concreta (exemplo de Luhmann do
trabalhar e de comer). Por outro lado, ainda essa trans itividade abstracta pode ser
lacunosa ou aberta no plano concreto - a especificidade do caso pode exigir
especificações, correcções, excepções, etc. (exemplo: o arrendamento pode cessar por
denúncia do senhorio caso precise da casa para sua habitação. No entanto, se o
arrendatário tiver mais de 65 anos, esta regra não valerá). Em todos estes casos, a
transitividade garantirá a racionalidade de decisão mas não sustenta a justiça dessa
decisão concreta. Isto é dizer que o modelo de racionalidade que a teoria da decisão
postula é teorético-dedutivo enquanto que a decisão jurídica convoca uma racionalidade
prático- valorativa. Esta tentativa de matematização, por parte da teoria da preferência,
da decisão jurídica não pode nunca aspirar a cobrir todos os pressupostos de
racionalização desta decisão, ela é insuficiente.
Conclusão que não se altera ainda que consideremos o particular relevo dos
efeitos no quadro da teoria da decisão. No caso em que queiramo s ver nos efeitos o
critério decisivo segundo um princípio exclusivamente da eficiência. Aqui os efeitos das
decisões não se aferem pelos fins, mas pelo seu resultado específico segundo um cálculo
global de rendimento - uma decisão será eficiente se as vantagens que produzam forem
superiores aos prejuízos que provoque. Aqui os efeitos são critérios de si próprios. Mas
mesmo aqui há objecções - a eficiência não coincide nem garante a justiça, a decisão
eficiente pode ser injusta e a ineficiente justa por isso hoje se defende uma teoria da
justiça contra um utilitarismo-vide John Rawls. A outra objecção tem a ver com as
exigências da própria praxis - a objectividade racional que se lhe queira postular não
pode dispensar um quadro de referências que lhe seja fundamento. Sem esse a priori, a
praxis será uma pura contingência ou uma anarquia, não garantidora da previsibilidade
das acções. Ora, absolutizar os efeitos como critério prático-decisório, com a sua
contingência, e o seu a posteriori, condenaria a decisão à mesma contingência e
imprevisibilidade. Outro caso seria o de ver os efeitos não só a projecção d a eficácia
dessas preferências mas critérios críticos dessas preferências na sua transitividade
prévia. Os efeitos falsificariam e obrigam a alterá-las. Com o que o fundamento não

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estaria na transitividade mas na dialéctica entre preferências e ofertas. Mas aí a
racionalidade altera-se, ao pôr em causa as preferências porque se mostram inadequadas
ou inaceitáveis na sua realização, então elas são submetidas a uma ponderação prática
orientada por fundamentos práticos, critérios que se impõem às preferências para as
justificarem, confirmarem ou informarem. Os efeitos deixam de ser meros empíricos
referidos a uma teoria das preferências mas factores práticos de uma prática justeza e as
preferências não são os fundamentos, mas objecto de justificações práticas.
Em suma, esta racionalidade tecnológica não servirá como racionalidade
especificamente jurídica, orientando o juiz na decisão de casos concretos.

C) A racionalidade prática:
O direito não é mais um instrumento mas uma normatividade, ele implica
sempre uma validade, faz sempre apelo a uma determinada axiologia. O direito não
pode ser concebido (ainda que como uma normatividade) como um objecto tal como
fazia o jusnaturalismo ou o positivismo jurídico. Estes não compreendem que uma
validade normativa enquanto tal convoca sempre a sua histórica realização concreta e
que esta não se cumpre pela mera força do enunciado geral e abstracto dessa
normatividade, exige sempre a mediação de um julgador na solução dos problemas que
solicitam essa normatividade. O direito não é mais um objecto, mas um problema. Por
tudo isto, a racionalidade que corresponde a esse pensamento jurídico assim
compreendido há-de ser uma racionalidade prática que assenta numa relação
sujeito-sujeito, em que a sua função é resolver problemas práticos numa atitude
jurisprudencial.
A questão que se coloca é se essa racionalidade prática será de índole material
ou de índole processual ou procedimental.
Vejamos as racionalidades práticas de tipo procedimental:
- A orientação tópico-retórica: a tópica foi recuperada nos anos 50 do século XX
por Theodor Wiehweg. A tópica é um pensamento dialético de controvérsias práticas,
um processo especial de tratamento de problemas que consiste na mobilização do topoi
sugeridos pelas próprias controvérsias para a ponderação dos prós e dos contras das
diversas opiniões que se referem a essas controvérsias. Os topoi são, nas palavras de
Aristóteles, procedimentos padrão que se podem usar a discutir qualquer assunto no
âmbito de uma controvérsia; são lugares comuns ou argumentos estandardizados aceites
por todos ou pela maioria ou pelos mais qualificados. Nas palavras de Castanheira

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Neves, os topoi são os referentes de sentido culturais comungados pelas mentes mais
esclarecidas e razoáveis de uma certa comunidade, todos por eles como critérios
adequados para os problemas concretos. A partir desses referentes de sentido que são
por todos aceites estabelece-se uma argumentação com a apresentação das razões que
fundamentam uma posição e a contestação das opiniões diverge ntes. Enquanto que com
a retórica clássica se tentava persuadir os interlocutores através da argumentação, com a
tópica se tenta chegar a um consenso. Através da argumentação dialética em que
participavam os interessados no problema se chegava a esse conse nsus, que seria a
solução possibilitada por essa dialética argumentativa, resolvendo-se dessa forma a
problemática.

2- A orientação argumentativa:
Esta foi uma orientação recuperada por Perelman com base na teoria da
argumentação. Este autor defende que mais do que ersuadir os interlocutores, importa
fundamentar argumentativamente. Distingue a argumentação daquilo que é a
demonstração para concluir que, ao nível do discurso jurídico, não se demonstra,
argumenta-se. Quer-se garantir não a persuasão mas o convencimento.
Este autor autonomizou a categoria do auditório que, numa perspectiva
microscópica, é o contexto em que é discutida a controvérsia e que, numa perspectiva
macroscópica é constituído pelo próprio pensamento jurídico - o chamado auditório
universal. O jurista tem que ter sempre presente o auditório: é perante esse auditório que
o jurista tem de se preocupar em intersubjectivar a sua subjectividade; é perante esse
auditório que o jurista tem que argumentar.
Perelman contribuiu decisivamente para:
- Explicitar a contextualização histórico-social da argumentação;
- Transpor para o domínio da prática o princípio da inércia, segundo o qual se
não divisam razões para alterarmos a nossa actuação. Devemos continuar a resolver os
problemas jurídicos da mesma forma que resolvemos os problemas anteriores. Caso se
entenda que em algum dos casos se deveria resolver os problemas de forma diferente,
tem-se o ónus da argumentação. Devem-se apresentar razões que mostrem a
necessidade de alterar o sentido que normalmente é dado à decisão. Assim, só tem o
dever de fundamentar aquele que pretende alterar o pré-estabelecido no diálogo
argumentativo. Isto é extremamente importante já que justifica o papel da analogia e a
presunção de justiça dos precedentes jurisdicionais.

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- Valorizar a tolerância em que radica princípio avaliatur altera pars, pedra
angular de um estão de direito material.
Jurgen Habermas é outro autor que se poderia inserir na racionalidade
argumentativa. Vem falar da situação discursiva ideal, aquela em que os interlocutores
podem dizer tudo o que verdadeiramente pensam sem quaisquer constrangimentos. Na
realidade, é difícil existiremestas situações discursivas ideais, todavia num estado de
direito devem criar-se as condições para que as situações discursivas se aproximem
desta situação discursiva ideal. É o que acontece com a afirmação de que as partes em
juízo têm um due process.
Em que medida é que estas racionalidades tópico-retórica e argumentativa se
aproximam e se afastam? Vejamos as diferenças: a tópica dá um maior peso ao
problema enquanto que a argumentação dá um maior peso ao discurso e às regras da
dialéctica. Além de que os topoi são diferentes dos argumentos: os topoi são lugares
comuns, de carácter impessoal e dedutivo enquanto que os argumentos, partindo dos
topoi (desses referentes de sentido comum) acrescentam- lhes algo. Vão ter em conta as
exigências concretas (não são dedutivos) tendo um carácter pessoal (pode-se recorrer a
metáforas ou paradoxos).
No entanto, ambas acabam por convergir: por um lado, porque ambas visam um
consenso; por outro lado, porque a tópica não dispensa a argumentação no actuar da sua
dialética e a argumentação uma tópica na procura dos seus argumentos. Temos, assim,
duas nuances de uma global racionalidade tópica argumentativa, racionalidade esse
procedimental no sentido em que um enunciado normativo é válido ou é verdadeiro se
for o resultado de um determinado proceder.
Robert Alexy também defende uma racionalidade prática de carácter
procedimental. Para Alexy, o discurso jurídico é um caso especial do discurso prático
geral: sendo este um discurso argumentativo, tenta apurar as regras que o ordenam e a
sua fundamentação. As regras traduzem-se na sistematização de exigências
ético-normativas e teórico-procedimentais. A fundamentação dessas regras radica numa
lógica pragmática, mesmo que estas sejam injustas. Pinto Bronze discorda da posição
desta autor: tem dúvidas de que se possa afirmar que o discurso jurídico seja uma mera
teoria geral da argumentação aplicada ao quadro do discurso jurídico. A afirmação de
um continuum entre o discurso prático geral e o específico discurso jurídico pode
conduzir à diluição do sentido específico do discurso jurídico fundado na ideia última
da pessoa. Pinto Bronze duvida que Alexy tenha compreendido o carácter

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prático- normativo da interpretação e o verdadeiro carácter da analogia. Alexy continua a
remeter a analogia para o instituto da integração de lacunas enquanto que Pinto Bronze
considera que a analogia perpassa toda a realização do direito. No que respeita à
interpretação e à analogia, Alexy é ainda bastante influenciado por Savigny.
Vejamos a crítica à racionalidade tópico-retórica-argumentativa.
A racionalidade argumentativa é uma racionalidade prática de índole
procedimental que visa alcançar o consenso através da argumentação perante um
auditório que cumpre convencer.
Esta racionalidade não pode ser a racionalidade especificamente jurídica porque
essa racionalidade há-de ser uma racionalidade prática já não de índole meramente
procedimental mas de índole material.
Castanheira Neves indica quatro razões para a inadmissibilidade da
racionalidade tópico-retórico-argumentativa como racionalidade especificamente
jurídica:
1 - A racionalidade tópico-retórica-argumentativa visa como fundamento para as
suas posições um consenso. Este consenso é obtido a posteriori, no final da discussão
enquanto que o fundamento a decisão judicativa há-de ser encontrado numa validade
que é normatividade vinculante e que se afirma a priori. Temos assim um consenso
persuasivo a posteriori contra uma validade normativamente vinculante a priori.
Consenso é um resultado contingente de uma participação situacional, a validade é
pressuposição que dá sentido à própria argumentação.
2 - Os topoi e os argumentos são entre si equivalentes, a sua diferença de força
persuasiva resulta apenas da concludência concreta da argumentação que com eles se
opera, ou seja, o maior ou menor grau de convencimento que possibilita depende
exclusivamente da controvérsia concreta e do particular contexto da emergência dessa
controvérsia. Diferentemente, os fundamentos e os critérios jurídicos não são
equivalentes porque:
- Sobre eles recaem diferentes presunções de vigência. Os princípios beneficiam
de uma presunção de validade, as normas legais de uma presunção de autoridade, os
precedentes de uma presunção de justeza e a dogmática de uma presunção de
racionalidade. São vinculantes.
- Os fundamentos e critérios actuam segundo uma ordem de preferência entre si.
Há uma hierarquia entre eles.

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- Os critérios e os fundamentos preferem a quaisquer outros argumentos
invocáveis. Num estado de direito só podemos decidir com base nesses fundamentos e
critérios e não com base em argumentos morais, éticos ou de outra índole por mais
convincentes que sejamos.
3-Para a racionalidade tópico-retórica-argumentativa a única instância de
controlo é a discussão (Vieltweg) enquanto que no discurso jurídico decisório essa
instância de controlo há-de ser um terceiro imparcial - o tribunal - que não deixa de
ouvir as partes mas tem plena autonomia judicativa.
4-O juízo jurídico encontra o seu fundamento no constituendo sistema de
normatividade jurídica vigente e não apenas nas regras do discurso prático-racional
como acontece com a racionalidade argumentativa.
Há verdadeiras diferenças entre o discurso puramente argumentativo e o
discurso jurídico: mas tais diferenças não são, no entanto, tão marcantes como
inicialmente se poderia pensar. Vejamos então algumas contra-razões que, em certa
medida, contradizem as críticas anteriormente apresentadas:
1- Castanheira Neves há muito que afirma a deveniência da normatividade
jurídica vigente, isto é, que a normatividade jurídica está em constante reconstituição.
Lembra este autor frequentemente que apenas a posteriori se poderá ajuizar da justeza
de uma dada decisão judicativa e esta vai contribuir para a redensificação da
normatividade jurídica vigente. Isto não deixa de enfraquecer a primeira razão supra
indicada, pois temos um a posteriori a que devemos dar atenção que será fundamento
pelo menos de e que redensificará a normatividade jurídica vigente. Nem tudo é
garantido à priori.
2 - Castanheira Neves também adverte para o facto de que os fundamentos e
critérios disponibilizados pelo sistema, apesar de não serem em abstracto equivalentes,
só vêem explicitado o seu sentido jurídico quando articulados com o caso-problema que
justificou a sua mobilização. Isto concorre para relativizar o peso da segunda razão: eles
não são equivalentes mas apenas entendemos verdadeiramente o seu sentido no caso
concreto. Tanto os argumentos como os fundamentos e os critérios apenas ganham
sentido no confronto com o caso concreto.
3 - Castanheira Neves sublinha também a importância dos princípios do
contraditório e da defesa na modelação do ordenamento jurídico-processual de um
verdadeiro estado de direito material o que enfraquece a terceira razão já que a

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discussão, apesar de não ser a única instância de controlo, assume também um papel
importante nessa função, através do princípio do contraditório e da defesa.
4 - Castanheira Neves afirma também a relevância de certas regras da
argumentação prática no âmbito da reflexão metodológica (ex: exigências de tolerância,
da reversibilidade, da imparcialidade, da publicidade; anda princípios da competência
argumentativa, da inércia, etc…). Isto mostra que não há contradição insanável com a
razão apresentada em quarto lugar, já que apesar de o juízo jurídico encontrar o seu
fundamento no constituendo sistema da normatividade jurídica vigente, o facto é que
não dispensa estas regras de argumentação para chegar a esse juízo.
Como conclusão, Castanheira Neves afirma que a racionalidade especificamente
jurídica não é puramente argumentativa mas tem necessariamente uma dimensão
argumentativa que se manifesta em três pontos:
- O ponto de partida tanto do discurso argumentativo como do discurso jurídico
é o caso concreto, o problema decidendo. Por isso se diz que o caso é o prius
metodológico.
- Tanto num discurso como no outro, o que se visa é fundamentar a
razoabilidade prática da solução de uma controvérsia concreta; não se visa demonstrar
silogisticamente qualquer verdade teorética de uma conclusão. Em ambos se invocam
argumentos, não se demonstra nada.
- O procedimentalismo puro que tende a associar-se à argumentação estrita não
pode associar-se já às modalidades mais elaboradas do discurso argumentativo tal como
não se pode associar ao pensamento jurídico metodologicamente comprometido. Por
outro lado, se é verdade que o direito é uma validade material, não é menos verdade que
ele não pode realizar-se sem a mediação de certos operadores formais, sem um
regulativo exigente ao nível da sua actuação formal.

Racionalidades práticas de tipo material:


1-A orientação hermenêutica:
Este é um pensamento defendido em termos filosóficos por Heidegger gadamer
e o pensamento jurídico por Coiny, Betti, Esser, Kaufmann, Larenz ou Dworkin. A
hermenêutica é um pensamento dirigido à interpretação e explicitação de certos sentidos
culturais que são textualmente comunicados. O pensamento jurídico seria também ele
um pensamento hermenêutico uma vez que se dirigia à interpretação das fontes do

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direito para delas extrair os fundamentos e critérios de decisão. O que estava em causa
seria interpretar as fontes para deles tirar os critérios e fundamentos.
O pensamento hermenêutico autonomizou um conjunto de categorias que depois
se tornam lugares comuns no quadro do pensamento jurídico. São elas:
- Categoria da unidade ou da totalidade, a qual significa que a parte que se
interpreta apenas é inteligível à luz da compreensão do todo em que se insere. No plano
jurídico, isto significa que quando se interpreta uma norma temos que ter em atenção
todo o sistema jurídico de que essa norma faz parte.
- Categoria do referente: o referente é a dimensão que se intenciona, é o sentido
transtextual que é necessário ter em atenção para se compreender o que se interpreta. No
âmbito do pensamento jurídico, o referente é a “coisa direito”, die sache recht- trata-se
do próprio sentido da normatividade.
- Categoria da pré-compreensão: é o pré-juízo, isto é, o jurista parte para a
interpretação das fontes do direito com uma determinada pré-compreensão do sistema
jurídico e esta pré-compreensão é um saber de experiência feito e esse saber vai sendo
redensificado por novas experiências. Esta categoria vai influenciar a interpretação a
fazer.
- Categoria do círculo hermenêutico: o jurista parte para a interpretação com
uma pré-compreensão e após essa interpretação a pré-compreensão fica enriquecida.
Para se resolver um caso concreto há um constante ir e vir do olhar da norma para o
caso e do caso para a norma (hingehen und herwandern des blickes-Engisch ). Olha-se
para o caso e depois para o sistema e depois olhamos de novo para o caso. Durante este
ir e vir do olhar aprofunda-se a normatividade da norma, redensifica-se a relevência
jurídica do caso e o próprio decidente reconstitui também a sua subjectividade, isto
porque se altera a sua pré-compreensão (daí que na expressão alemã se utilize o verbo
wandern que traduz essa reconstituição, essa purificação, catarse que é justo e que cabe
no significado do mesmo mas já não no verbo gehen). Nisto consiste o círculo
hermenêutico, que é na verdade mais uma espiral hermenêutica porque em cada ir e vir
já nos encontramos noutro plano. Não é um círculo que se fecha mas antes uma espiral,
uma vez que quando voltamos ao caso jáo compreendemos de um outro modo.
Deste modo podemos superar a distinção entre sujeito e objecto porque o objecto
será sempre apreendido em função da pré-compreensão do sujeito em causa e a
pré-compreensão do sujeito é sempre influenciada e enriquecida pela interpretação que

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ele faz do objecto. Assim, nem o sujeito é puro, porque enriquecido pelo resultado
interpretativo, nem o objecto é puro porque influenciado pela pré-compreensão.
- Categoria do aplicativo: toda a interpretação é aplicação. a interpretação é feita
sempre a partir de uma situação concreta. Deste modo, a interpretação que se faça de
uma norma só estará completa no momento da sua aplicação à situação concreta.

A interpretação hermenêutica não se confunde com a interpretação


filológico- gramatical do positivismo. Para o pensamento hermenêutico, a interpretação
visa alcançar os sentidos culturais que estão comunicados nos textos e a interpretação é
sempre feita a partir da situação concreta, o que não acontece no positivismo, onde se
parte da norma.

Cabe notar, porém, que Dworkin não tem da problemática metodológica uma
compreensão totalmente hermenêutica. A sua compreensão é prático-normativa.
Todavia o autor faz uma constante referência ao cânone da totalidade tendo, por isso,
dado um importante contributo para a compreensão da racionalidade hermenêutica.
Vejamos quais são as principais dimensões para a compreensão da racionalidade
hermenêutica: para Dworkin, o direito não é um dado, um pressuposto objectivo a que
se dirija a interpretação com o intuito de o apreender (tese do positivismo). O direito é
sim um conjunto de direitos e princípios que se vão constituindo e manifestando através
da sua realização; à medida que se realiza, constitui-se. Ele realiza-se através de uma
prática interpretativa. O direito acaba por se identificar com a prática interpretativa (daí
a conclusão “law is an interpretative concept”). E a interpretação é criativa, é
constitutiva, justificando-se pela intenção de realizar certos valores undamntais
(dimensão material).
A realização do direito não tem, assim, uma intencionalidade teórica mas uma
intencionalidade prática e uma índole não explicativa mas sim argumentativa. Dworkin
tem uma concepção do direito referida aos direitos e aos princípios e com a fundamental
dimensão ético-jurídica. O direito não deveria ser visto como um “modelo of rules”,
sistema limitado e lacunoso de normas positivas - mas sim como um “model of
principles”, sistema este global de princípios e direitos ético-jurídicos. O jurista deveria
procurar os critérios e fundamentos da decisão. Há aqui uma clara superação do
positivismo.

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CastanheiraNeves concorda com o pensamento de Dworkin, na generalidade dos
aspectos que referimos (ou seja, a de que o direito não é um dado; a ideia de que a
interpretação jurídica não deve ser meramente exegética mas sim criativa; a de que o
direito faz apelo a uma validade; quando interpretamos uma norma, temos que a referir
aos princípios normativos para compreendermos o seu verdadeiro sentido). Porém, o
autor chama à atenção para o facto de que há certos aspectos no pensmento de Dworkin
com os quais não podemos concordar.
Vejamos as críticas ao pensamento de Dworkin: para este autor, a decisão
judicativa estava justificada se cumprisse duas dimensões:
- Dimensão da consistência: significa que a decisão concreta teria que ser
compatível com o desenvolvimento da prática e integrável nessa prática. Trata-se de
uma consistência lógico- institucional.
-Dimensão da coerência: a decisão invocaria como seus fundamentos os valores
ético-jurídicos com expressão nos direitos e nos princípios. Trata-se de uma coerência
normativo- intencional.
Caso se cumprissem estas duas dimensões obter-se-ia sempre decisões jurídicas
correctas e justas.
Castanheira Neves afirma que não pode ver-se nesta construção mais do que um
princípio regulativo a que falta o apoio de um esquema metodológico para o seu
efectivo cumprimento. São, no fundo, apenas princípios organizadores.
São duas as consequências a referir:
1- A ausência desse esquema metodológico pretende-se suprir pelas qualidades
que se espera que o jurista chamado à decisão concreta idealmente tenha. As q ualidades
que se esperaria do jurista para conseguir sempre uma solução correcta o autor define-as
na metáfora do jurista Hércules - o modelo de um jurista que, pelas suas excepcionais
qualidades de conhecimento, de juízo e outras indispensáveis estará à a ltura da tarefa.
2-Para Dworkin, as decisões judicativas encontram o seu fundamento e a sua
validade na coerência global da prática e esta coerência tinha um sentido narrativo, em
termos tais que a prática judicativa poderia ser vista como uma novela em q ue os vários
autores (os vários julgadores) iam escrevendo sucessivamente. Estes autores têm um
margem de liberdade, mas estariam vinculados, com excepção do primeiro, pelo género
literário em causa que é definido pelo primeiro autor. No final, a obra terá que constituir
um todo de sentido. Assim, na decisão de casos concretos os juristas tinham alguma
autonomia interpretativa mas a solução só era válida caso se integrasse na coerência da

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prática como um todo. A validade não se afere pela justeza material da decisão mas sim
pela integração daquela decisão na totalidade da ordem jurídica.
O que releva, na perspectiva de Dworkin, não é tanto um juízo autónomo sobre a
parte mas sim a integração da parte no todo. No fundo, este autor dá mais importância
ao todo. A prática judicativa tinha uma índole narrativa.

A racionalidade hermenêutica não se confunde com a racionalidade narrativa e


numa análise rigorosa o pensamento de Dworkin não tem uma índole narrativa, tem sim
uma índole prático-normativa.
Vejamos as semelhanças entre a racionalidade hermenêutica e a racionalidade
normativa:
1 - Ambas se situam num plano distinto do pensamento lógico, afirmando-se no
plano da prática;
2 - Ambos afirmam a ideia de razoabilidade ou de plausibilidade e já não de
necessidade ou de demonstração;
3 - Elas não visam o conhecimento objectivo ou científico do mundo mas a
compreensão da realidade humana do mundo, visam compreender o mundo humano dos
sentidos.
Quanto às diferenças:
1 - Têm paradigmas diferentes. A racionalidade narrativa visa a narrativa de
contos ou histórias enquanto que a racionalidade hermenêutica visa a compreensão e
interpretação de textos.
2 - Têm referentes normativos diferentes. Na racionalidade narrativa o referente
é o acontecimento, a trama das acções. Na racionalidade hermenêutica o referente é a
coisa direito, o tema de que fala o texto;
3 - Elas têm pressuposições diferentes: a racionalidade narrativa parte da
experiência da vida, do acontecimento empírico. A racionalidade hermenêutica parte da
cultura assumida e transmitida numa histórica tradição cultural.
4 - Elas têm finalidades diferentes. A racionalidade narrativa visa a
inteligibilidade da realidade do próprio acontecimento, enquanto que a racionalidade
hermenêutica visa compreender o sentido da expressão cultural a que a coisa referida
permite aceder.
5 - Elas têm coerências diferentes. Na racionalidade narrativa a coerência
traduz-se na unitária conexão de elementos dispersos de modo a estruturar o

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acontecimento como um todo. Trata-se de uma coerência de índole estrutural e numa
perspectiva horizontal. Já para a racionalidade hermenêutica a coerência traduz-se na
integração da parte no todo. Trata-se de uma coerência de índole integrante, numa
perspectiva vertical.
Poderá a racionalidade narrativa afirmar-se como a racionalidade
especificamente jurídica? Não pode, todavia há um âmbito particular do discurso
jurídico em que a narração é relevante - é o campo da prova. Neste âmbito, o que
pretendemos é efectivamente saber como é que as coisas se passaram, quais foram os
acontecimentos que tiveram lugar, quer-se determinar os factos.
E a normatividade hermenêutica será a racionalidade especificamente jurídica?
Vimos que as categorias hermenêuticas se tornaram lugares comuns no quadro do
pensamento jurídico. Na verdade, só compreendemos uma norma se tivermos em
atenção o sistema jurídico e o sentido da normatividade jurídica vigente (categoria da
totalidade e do referente). Por outro lado, partimos para a interpretação de uma norma
com uma pré-compreensão do sistema jurídico (categoria da pré-compreensão) e para
resolvermos um caso concreto há um constante ir e vir do olhar do caso para a norma e
da norma para o caso (categoria da espiral hermenêutica).
Quando o decidente tem que resolver um concreto problema jurídico ele
dirige-se em primeiro lugar ao caso concreto. Por isso, dizemos que o caso é o prius
metodológico. Depois de relevar o mérito específico do caso, o jurista vai procurar um
critério pré-disponibilizado pelo sistema que o possa auxiliar na decisão do caso. A
selecção do critério que num sistema como o nosso será na mais das vezes uma norma,
e a sua interpretação, são feitas tendo em conta as especificidades do caso. Assim,
Castanheira Neves diz que há um continuum entre os tradicionais momentos da
interpretação e de aplicação de normas. Esta ideia faz- nos lembrar a categoria da
applicatio, mas há uma distinção fundamental que teremos que fazer: a racionalidade
hermenêutica fala em aplicação de normas enquanto que hoje nós dizemos que aquilo
que está em causa é o confronto analógico entre a intencionalidade problemática da
norma e o problema constitutivo do caso. Esta aplicação de normas faz lembrar o
positivismo e o seu momento técnico.
Concluímos desta forma que a racionalidade espec ificamente jurídica tem uma
dimensão hermenêutica. Mas será a racionalidade especificamente jurídica uma
racionalidade estritamente hermenêutica? Não o é pelos seguintes motivos:

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a) Carácter prescritivo e decisório da reflexão metodológica e não apensa
compreensivo. A reflexão metodológica não tem a ver com a correcta compreensão de
textos (o correcto compreender a que Canaris alude), tem sim a ver com o justo decidir
de casos concretos que surgem na realidade. O direito não é apenas um sentido a
compreender. Entendendo que o direito é uma validade não podemos apenas atender à
dimensão da compreensão. Temos que mobilizar essa validade e resolver casos
concretos.
b) O carácter constitutivo da reflexão metodológica: para decidir não é suficiente
a compreensão dos fundamentos e critérios objectivados. Entre estes e a decisão
concreta intervém a mediação judicativa que articula os primeiros com o caso concreto
e se assume como constitutivo da normatividade jurídica vigente.
c) O carácter normativo da reflexão metodológica: o direito é uma validade que
importa realizar histórico-concretamente. Não se trata de aplicar apenas as normas
interpretadas. Trata-se verdadeiramente de realizar a validade que o direito é numa
constante dialéctica entre a norma e o caso.
d) Carácter judicativo da reflexão metodológica: o que está em causa não é
integrar o caso decidendo no sistema global. Trata-se sim da justeza decisória, da
decisão judicativa do caso concreto.

2 - Racionalidade teleológica ou teleonomológica:


Já vimos que a racionalidade especificamente jurídica é uma racionalidade
prática, que não é uma racionalidade argumentativa mas tem uma dimensão de
argumentação, que não é uma racionalidade hermenêutica mas tem uma dimensão
hermenêutica. Podemos questionar agora se a racionalidade especificamente jurídica é
uma racionalidade teleológica.
A racionalidade teleológica centra-se nos fins práticos e o direito releva os fins.
O direito não se reduz a uma ética de consciência, assumindo-se antes como uma ética
de responsabilidade, ou seja, ao direito importa que através da sua realização em
concreto se vão alcançando certos fins. Ele há-de ter em atenção certos fins, tem que
atender às consequências da sua actuação.
Só que esses fins vão poder ser compreendidos como fins heterónomos,
estranhos ao direito porque a realização do direito não se pode subordinar à realização
de finalidades heterónomas e previamente definidas (como acontecia com a
racionalidade tecnológica). Mas há fins que são intenções práticas, isto é, fins ce ntrados

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nas intenções materialmente densificadoras do próprio direito. Por isso, dizemos que a
teleologia jurídica é uma teleonomologia (telos - fim + nomos - concreto juízo decisório
+ logos - racionalidade). Na realização do direito temos que considerar o telos do logos,
ou seja, o fim do conceito juízo decisório. Temos que considerar as intenções práticas
que, desde o início, caracterizam o direito enquanto direito. É o que acontece, por
exemplo, com a finalidade de justiça, também de igualdade.
Castanheira Neves afirma quatro dimensões da racionalidade especificamente
jurídica. Uma validade pressuposta que por razões de economia de esforço tende a
objectivar-se numa dogmática e uma problematização praxística que não dispensa uma
mediação judicativa.
Segundo este autor, estas quatro dimensões podem ser reconduzidas a duas: as
duas primeiras dimensões identificam o sistema, as duas últimas identificam o
problema.
A racionalidade jurídica pressupõe, assim, uma constante dialéctica entre
sistema e problema. Quando o juiz é confrontado com um caso concreto a primeira
coisa que terá que fazer é olhar para o caso e é a partir dele que se vai desenvolver todo
o esquema de realização do direito. Olhando para o caso o jurista só o compreende
verdadeiramente se pressupuser o sistema, porque só conhecendo o sistema da
normatividade jurídica vigente pode reconhecer o jurista num concreto caos da vida um
caso prático. Se não pressupusesse o sistema, o jurista não ia conseguir identificar no
caso os aspectos juridicamente relevantes. Há aqui, desde logo, uma dialéctica entre o
sistema e o problema o que permite ao decidente concluir se estamos ou não perante um
caso juridicamente relevante.
Depois, o jurista vai procurar no sistema um critério pré-objectivado (critérios,
isto é, normas, o que é mais frequente num sistema jurídico como o nosso; depois
aparecem os precedentes jurídicos, frequentes em sistemas jurídicos de common law; e
os modelos elaborados pela dogmática) que o possa auxiliar na resolução daquele caso,
critério esse que num sistema como o nosso será a norma. Encontrada essa norma, ele
vai proceder à sua interpretação atendendo às especificidades do caso concreto. Na
verdade, há uma distância entre a norma que é geral e abstracta e o caso que é particular
e concreto, distância que tem que ser superada pela reconstituição da normatividade da
norma, de modo a adequar-se a norma ao caso. Também neste momento há uma
dialéctica entre o sistema e o problema.

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Pode acontecer que o caso seja inteiramente novo, isto é, um caso que não
encontra resposta no sistema pré-constituído. Neste caso estamos perante o
desenvolvimento transistemático do direito, o que tradicionalmente se designa de
lacuna. Este caso novo reclama uma solução de direito no âmbito da normatividade a
constituir – o sistema é um sistema aberto. A própria realidade jurídica que faz emergir
os problemas é um estrato do sistema. Também neste caso em que não há um critério
pré-disponibilizado há uma dialéctica entre o sistema e o problema. O sistema que
vamos considerar é o sistema a constituir, vamos pressupor as exigências constituendas
do sistema.
No fundo, o sistema surge como um sistema-problema e é por isso que Pinto
Bronze fala de uma dialéctica entre o problema e o problema em vez de uma dialética
entre o problema e o sistema. Como vimos, Castanheira Neves reduzia a duas as 4
dimensões da racionalidade jurídica - sistema e problema. Pinto Bronze questionava se
essas duas dimensões serão verdadeiramente irredutíveis. Concluía dizendo que a
dimensão do problema é irredutível. Mas quanto à dimensão sistema há algo mais a
dizer. A norma não releva como norma texto mas como norma problema, isto é, o
sistema interessa-nos atenta a sua relevância problemática. Para Pinto Bronze os dois
pólos irredutíveis da racionalidade são dois problemas: o problema constitutivo do caso
concretamente decidendo e a dimensão problemática do estrato do sistema mobilizável.
Tudo se resume a saber se existe ou não uma semelhança suficiente entre o problema do
caso concreto e o problema da norma ou de outro qualquer estrato do sistema. Por isso,
a racionalidade jurídica ao discorrer de problema a problema, ao discorrer de particular
para particular é uma reflexão de carácter analógico (quando se discorre do particular
para o geral, induz-se; quando se discorre do geral para o particular, deduz-se): trata-se
de uma reflexão de carácter analógico, quer a sentença radique ou não num critério
pré-objectivado no sistema da juridicidade vigente. Há uma superação do pensamento
tradicional que reservava o recurso à analogia para o domínio da integração de lacunas.
Hoje, a analogia é um operador que prepara toda a problemática da racionalizada
realização judicativa do direito.
Concluindo a racionalidade especificamente jurídica é uma racionalidade
prático-axiológica, tem uma dimensão argumentativa e uma discussão hermenêutica. É
teleológica mas não tecnológica, é assim teleonomológica, é dialéctica e analógica.
Tudo o que dissemos até agora é muito importante porque a opção que fizemos
no âmbito da racionalidade vai influenciar a opção que vamos fazer quanto ao esquema

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metódico. Há-de estar sempre presente a ideia de que toda a realização do direito é
perpassada por considerações de carácter analógico.

Metodologia jurídica
2semestre
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I - Evolução histórica do pensamento jurídico

O pensamento jurídico é o sector cultural em que se assume e cumpre o sentido com que o direito se
compreende a determinar as relações sociais, a ordenar a convivência comunitária. Por outro lado o universo jurídico
que compreende o direito e a realidade histórico - social que ele ordena, manifesta-se como uma intencionalidade
consistente, como um sistema. O jurídico é, então, um subsistema do sistema cultural global. O pensamento jurídico
não é senão a ratio desse sistema, é a razão jurídica do sistema jurídico. Ao assumir o sentido do direito e ao conferir
com ele racionalidade ao sistema jurídico, o pensamento jurídico acaba por ser o constituens daquele sistema e da sua
prática. É o motor que faz com que o sistema jurídico se organize coerentemente para realizar certos fins (como tal só
no pensamento jurídico estará a chave para determinar o método jurídico). Este não é mais que a metódica do
pensamento jurídico, a metódica do seu modo de pensar e resolver os problemas jurídicos.
O pensamento jurídico é, então, uma entidade culturalmente histórica. Esse pensamento há-de ser função,
quer da concepção do direito e dos objectivos práticos que ele pretende alcançar em cada época, quer do sentido do
sistema cultural global uma vez que ele é um sector da cultura.

1 - O pensamento jurídico pré - positivista

No pensamento jurídico pré-positivista podemos distinguir ainda três modalidades:


O pensamento jurídico Romano;
O pensamento jurídico M edieval e,
O pensamento jurídico M oderno (o normativismo moderno iluminista)

Vejamos algumas características comuns a estas três modalidades de pensamento jurídico:


a) Até ao século X VIII o pensamento jurídico é compreendido como uma capítulo da filosofia prática. Tal
como a filosofia prática de raízes gregas e repensada numa perspectiva teológico - cristã pelo pensamento medieval,
procurava a solução de todos os problemas da praxis humana na doutrina ética do bem e da justiça, assim também o
pensamento jurídico de então.
b) Estas três modalidades de pensamento afirmam em maior ou menor medida a existência de um sistema
de fontes normativas positivas.
c) Todas elas afirmavam a existência de um direito natural a que o pensamento jurídico se referia que
existia para além do direito positivo e antes dele.
d) Há uma unidade intencional entre o direito e o pensamento jurídico, porque ambos têm uma intenção
ético-prática e normativa e o direito era, no essencial, o produto normativo desse pensament o jurídico.

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No entanto estas três modalidades de pensamento jurídico são distintas entre si, uma vez que o sentido
último do direito em cada uma delas é diferente. No direito Romano ele tem um sentido p rudencial, por seu turno o
pensamento jurídico M edieval tem um sentido hermenêutico, enquanto que o pensamento jurídico M oderno tem um
sentido axiomático - dedutivo racional.

1.1- O pensamento jurídico Romano

O direito Romano (o da época clássica que especifica o verdadeiro ius romanum) foi um direito de juristas.
Tratava-se de um direito jurisprudencial - doutrinal. Ele era produto da iurisprudentia dos juristas romanos que eram
cidadãos particulares, não magistrados ou sequer juízes, que conjugando o seu saber com a sua origem aristocrática
lhes conferia uma auctoritas. O direito Romano tem, assim, um carácter jurisprudencial e não jurisdicional como o
direito da commow law anglo-saxónico, já que os juristas Romanos não são magistrados, ou juízes. Não era também
um direito de legislação como o direito europeu continental após o legalismo da codificação. No direito romano não
havia um corpo sistemático de leis. O direito ia-se constituindo à medida das necessidades. Quando surgia um
concreto caso jurídico tinha que se encontrar uma solução para ele, criando-se desta forma o direito. Por isso se diz
que o direito romano tinha um carácter judicativo casuístico que invocava como fundamentos materiais a bone fides,
a aequitas, a utilitas, a humanitas.
Os juristas resolviam os problemas jurídicos com base numa comparação de casos. Quando um jurista
resolvia um caso tirava dessa resolução a sua ratio decidendi, vendo porque é que tinha resolvido daquele modo. Essa
ratio ia orientar o decidente na resolução de casos futuros que apresentassem semelhanças com o caso anteriormente
decidido. Por isso se diz que o pensamento jurídico romano tem um carácter analógico.
Podemos dizer que o ius civile foi obra da interpretatio prudentium, produto da jurisprudência dos juristas
romanos. Estes tinham como funções aconselhar as partes na celebração de negócios jurídicos, assistir as partes em
litígio num processo e dar opiniões ou pareceres (as responsas e as sententio) em relação a casos jurídicos que lhes
eram colocados quer pelos particulares, quer pelos magistrados a quem davam acessória.
Todo o direito romano é marcado por um forte procedimentalismo. Era possível perder-se uma acção pela
não verificação de certos aspectos formais. Todavia, têm também um forte sentido axiológico, resultado da influência
grega. Para a resolução dos casos os juristas romanos invocam como fundamentos materiais e constitutivamente
decisivos valores como a bona fides (boa-fé), a aequitas (equidade), a utilitas (utilidade) e humanitas (humanidade).
O pensamento jurídico romano é um pensamento tópico. Os juristas invocavam os “topoi” (referentes de
sentido culturais comungados pelos membros mais esclarecidos e razoáveis de uma certa comunidade, tido por eles
como critério adequado para a resolução dos problemas concretos) tais como a aequitas ou a humanitas para
alcançarem as soluções para os problemas que fossem materialmente mais justos. No fundo eram estes valores que
constituíam o direito natural.
No sistema romano fazia-se uma clara distinção entre auctoritas e potestas. A auctoritas era um poder de
carácter comunitário, a potestas identificava-se com o poder politico. Distinguia-se ainda entre ius e lex. O ius
remete-nos para uma dimensão transpositiva, para a ideia de justiça, equidade. A lex era, uma declaração solene com
valor normativo baseado no acordo entre quem a emite e o seu destinatário que vincula um e outro. Estas distinções
eram muito importantes, uma vez que garantiam a autonomia do pensamento jurídico perante o poder económico e
politico - ideológico.
Progressivamente a lex foi-se intrometendo no terreno do ius dando orientações ao jurista, condicionando a
sua actividade e as suas decisões. Isto faz com que, mais tarde, a lex chegasse ser considerada como fonte de ius,
como fonte de direito.

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Em suma, o direito Romano era um direito que se manifestava e constituía num casuísmo
tópico-jurisprudencial e que actuava judicativo analogicamente, tendo criado certos institutos que perduraram até aos
nossos dias.

1.2- O pensamento jurídico Medieval

A sociedade da Idade M édia era fortemente hierarquizada e submetia-se a um rígido princípio da


autoridade. O pensamento jurídico medieval veio a constituir-se essencialmente como interpretatio do corpus iuris
civilis (colectânea justianeia recuperada para o Ocidente nos fins do século XI) e do Corpus iuris canonici entretanto
elaborado. Estes eram vistos como indiscutíveis textos de autoridade. Estes livros não eram simples testemunhas
históricas da verdade ou da realidade das coisas, mas essa verdade e realidade em si mesmas. Eles eram a razão
escrita, a ratio scripta no domínio jurídico, contendo as regras da razão prática da própria justiça.
Assim, o pensamento jurídico assumiu-se como interpretação de textos: o direito oferecia-se enunciado um
texto e através desses textos e da sua interpretação obter-se-iam todos os critérios jurídicos para a solução dos
problemas. Assim, o direito passou a ser inferido das fontes prescritivas textuais, isto é, das leis. Os juristas
medievais, que se diziam legistas, acabaram por a seu modo, identificar o direito com a lei, razão pela qual se diz que
o pensamento jurídico medieval é um factor cultural da emergência do positivismo. Já na Idade M édia estes legistas
identificavam o direito com a lei.
Há, no entanto, diferenças substanciais entre o pensamento jurídico med ieval e o positivista. Por um lado,
os autores positivistas descontextualizaram o texto da norma enquanto que os juristas medievais contextualizaram o
texto por mediação dos problemas. Por outro lado no período positivista a lei era a única fonte de direit o, enquanto
que na época medieval, embora reconhecendo que o direito se manifestava em fontes normativas positivas, os juristas
afirmavam também a existência de um direito natural acima do direito positivo. O direito natural remete-nos, neste
período medieval, para a ideia de Deus, para a transcendência divina.
Na Idade M édia encontramos duas escolas. A escola dos Glosadores e a escola dos Comentadores.
Escola dos Glosadores: exegese filológico-gramatical, não criativa, os glosadores faziam glosas, que eram
pequenos comentários do corpus iuris civilis numa estrita exegese filológico - gramatical, estas glosas visam o
esclarecimento, a conciliação, a distinção, a síntese, etc, do sentido dos textos. Os glosadores vão então trabalhar
sobre o direito já criado. Assim, o pensamento desta escola não era criativo, mas um pensamento meramente
reprodutivo.
Escola dos Comentadores: (criativos)-com o tempo começam-se a sentir novas exigências prático-sociais
e o direito romano revelou-se incoerente e insuficiente. Sur giram então os comentadores. Estes faziam comentários
aos textos e depois faziam comentários aos próprios comentários. Contrariamente aos glosadores, os comentadores
vão inovar, vão criar direito. A interpretação já não é meramente exegética, já se vai alé m do sentido filológico do
texto, procura-se o sentido normativo do texto, notando-se já um certo desprendimento em relação à letra da lei. Os
comentadores procediam já à extensio legis que é o método que se traduz no desenvolvimento do direito romano
vertido no CIC, partindo da distinção entre a letra e o espírito da lei. Estes juristas procuravam um direito que os
textos deviam exprimir mas que se fundava e constituía para além deles no direito natural. Se o espírito da lei fosse
mais amplo alargava-se a letra da lei para coincidir com o espírito.
Quanto ao método utilizado pelos juristas M edievais era o método escolástico. Os juristas começavam por
enquadrar as questões em grandes quadros científicos e dogmáticos e depois procediam à discussão sobre as questões.
Eles aplicavam à discussão os métodos da lógica aristotélica e da retórica e no âmbito destas discussões (suscitadas
por problemas práticos reais ou imaginados) os juristas invocavam sempre como argumentos os textos de autoridade
e as opiniões de autores consagrados. Pretendia-se alcançar a communis opinio. Era importante indicar o maior
número possível de opiniões no sentido da decisão.

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O pensamento jurídico M edieval assumiu-se então como interpretação de textos. É um pensamento
hermenêutico, uma vez que o método escolástico se traduz numa disputa de questões, este pensamento é também
dialéctico - argumentativo. Por isso os argumentos ganham neste método uma importância fundamental. Nesta altura
afirmam-se os argumentos que ainda hoje utilizamos como os argumentos a simili ou a pari, a contrário, a maiori ad
minus, a minori ad maius, a fortiori, ad absurdum, etc.
Em conclusão, a intenção do pensamento jurídico medieval continua a ser jurisprudencial. Os juristas
pretendiam resolver os casos jurídico concretos tal como acontecia no direito romano, só que enquanto o método
seguido pelo pensamento jurídico romano era jurisprudencial casuístico e baseado na racionalidade tópico decisória,
o método seguido pelo pensamento jurídico medieval é jurisprudencial - dogmático baseado numa racionalidade
hermenêutico-dialéctica.

1.3- O pensamento jurídico moderno

O pensamento jurídico do homem moderno instituído do século XVI ao século XVIII, radica o seu
fundamento último no postulado da própria autonomia do homem. Ele já não é visto como um ser criado à imagem e
semelhança de Deus mas como um ser natural. Ele rompeu com a pressuposição de ordens transcendentes e construiu
uma nova ordem a partir de si mesmo afirmando como fundamentos do seu saber e da sua acção a razão e a
experiência. Falamos da razão cartesiana lógico-formal. Autores como Grócio, Pufendorf e Wolf construíram
sistemas de direito natural elaborados a partir de axiomas antropológicos aos quais se acedia através de uma
racionalidade lógico-dedutiva. Trata-se verdadeiramente de um jusracionalismo. Para este todos os fundamentos
normativos da juricidade haviam de se procurar no direito natural pelo que o direito era um direito
filosófico-especulativamente constituído, isto é, o direito não era um direito imposto mas sim um direito excogitado
pela razão moderna do homem.
Todo o pensamento jurídico partia dos axiomas da razão humana que depois era objectivado em normas e,
assim, se constituía o direito. O direito passou, assim, a ser um sistema de normas que se havia de cumprir numa
legislação sistemática, numa codificação e o pensamento jurídico moderno culminou na codificação. O pensamento
jurídico ao assimilar a razão moderna tornou-se também ele um pensamento sistematicamente dedutivo. Tal foi o
normativismo moderno.
A realização do direito resumia-se à subsunção lógico - formal dos casos às normas. Questão que se coloca
é a de saber como se fez a passagem do pensamento moderno para o positivismo. Na verdade, o positivismo recebeu
do jusracionalismo a racionalidade lógico-formal e a ideia de que o direito é um conjunto de normas. Pinto Bronze
considera que se substituirmos a razão humana, a especulação filosófica pela vontade do Estado, isto é, pela
imposição politico-voluntarista damos o salto do jusracionalismo, isto é, do normativismo moderno ilu minista para o
positivismo legalista.

2- O pensamento jurídico positivista

No século XIX o pensamento jurídico abandona totalmente o campo da filosofia prática e procura o seu
lugar na ciência, segundo a sua concepção positivista, aquela gera a cultura do século unicamente admitida. Como ao
tempo “não ser ciência era uma deficiência” também o direito quer ser ciência - surge então o período positivista.
Neste período o direito apresentava-se ao jurista como um heterónomo objecto de conhecimento. Ele era
criado pelo legislador e ao jurista, respeitando uma estrita separação dos poderes, apenas cabia aplica-lo
lógico-subsuntivamente.
O sistema jurídico era uma entidade racionalmente diferenciada, isto é, autonomista do contexto social com
as suas dimensões éticas e culturais que nada tinham a ver com o direito. Era unitariamente consistente, isto é, não

61
tinha antinomias ou contradições. Era ainda universalmente pleno, isto é, sem lacunas. Ainda problematicamente
auto-suficiente, isto é, fechado.
Por seu turno, o jurista não pretendia alcançar uma validade prática mas uma mera validade lógica. A sua
preocupação era de verdade e, portanto, teorético - cognitiva e não axiológica, ou seja, prático comunicativa.
O jurista conhecia o direito (entenda-se lei) pré - dado, para depois o aplicar em termos lógico-subsuntivos
(entendia-se em termos racionalmente objectivos, cientificamente neutrais). Num primeiro momento o que importava
era conhecer a legalidade, para num segundo momento a aplicar formalmente nos casos, Era uma applicatio de
carácter lógico-dedutivo, em que a lei era a premissa maior - era o genérico e os factos (ou seja, o caso) era a
premissa menor - a espécie. Da articulação lógico-formal de ambas resultava tautologicamente (na solução não estava
nada que já não estivesse nas premissas) a solução é o silogismo judiciário.
No positivismo afirmam-se duas escolas:

1- A escola da exegese: a escola da exegese surge na sequência da codificação pós - revolucionária. As


codificações da França, saída da revolução, pretendiam-se obras definitivas. O código não era uma mera colectânea
de leis, mas um corpo legislativo que se propunha a regulamentação total, exclusiva e definitiva de um certo domínio
jurídico. Assim, por exemplo, todo o direito civil estaria no código civil e todo o direito comercial estaria no código
comercial. Todo o direito seria resultado da vontade do legislador. Vejamos os postulados desta escola:

 Princípio da identidade entre direito e lei, o direito manifestar-se-ia unicamente nas leis, não havendo
outro direito para além daquele que as leis prescrevem “o direito é lei e toda a lei é direito” (solução da escola ao
nível das fontes de direito);
Princípio da exclusividade da lei como critério jurídico (teoria da normatividade jurídica) - para a decisão
de um caso concreto só se recorre à lei, enquanto norma escrita, não há necessidade de se recorrer a quaisquer outros
critérios para além da lei. Este postulado não se identifica com o anterior porque pode reconhecer-se na lei a única
fonte de direito e no entanto admitir que a sua interpretação - aplicação exige o recurso a critérios complementares ( o
caso das clausulas gerais, ou dos conceitos indeterminados, na sua interpretação). Assim, além de única fonte de
direito a lei é ainda o critério jurídico exclusivo. M esmo a interpretação da lei era puramente exegética (exegese -
tirar para fora o que está dentro) não se recorrendo a elementos normativos transtextuais.
Principio da suficiência da lei, a lei basta para decidir todos os casos jurídicos. Assim, o sistema jurídico
era concebido como fechado, pleno e autosuficiente, pressupondo a inexistência de lacunas. Este postulado não se
confunde com o anterior porque o decidir exclusivamente segundo o critério da lei não assegura só por si a existência
de lei para todos os casos juridicamente relevantes. Diferença que tem repercussão institucional no instituto do
“refére legislatif” - a lei devia ser o único critério jurídico, caso houvesse dúvida, sobre o seu sentido ou se
verificasse a sua falta, o julgador deveria interpelar o legislador para que este desse solução ao problema - instituto
que foi suprimido. O code civil obrigaria já ao juiz a decidir ele próprio todos os casos, proibindo a denegação de
justiça sob pena de responsabilidade penal do decidente. Passa a inferir-se desse artigo do code civil este postulado da
suficiência da lei. Aceitar uma lacuna seria uma “calúnia do juiz à lei”.

A tarefa do jurista consistia em conhecer o direito positivo, numa função teorético-cognitiva, para depois
fazer uma exegese, ou seja, uma interpretação filológico-gramatical da lei codificada (momento hermenêutico do
método jurídico). Todavia as palavras são polissémicas e a vida tem uma incontornável historicidade o que levava os
juristas a arriscarem um pouco mais, uma vez que nem sempre os problemas seriam resolvidos apenas com recurso à
letra da lei. Nestas situações recorrer-se-ia ao espírito da lei que se identificava com a vontade do legislador. Vontade
que consistia na intenção histórico-subjectiva que o legislador havia tido (naquilo que ele quis naquele momento) no
momento em que criou a norma. Para apurar esse espírito da lei dever-se-ia recorrer aos trabalhos preparatórios, e

62
complementar ou subsidiariamente inserir a norma no sistema do código de que ela fazia de que ela fazia parte pela
mediação de argumentos puramente lógico-formais como os argumentos a maiore ad minus, a minore ad maius, a
fortiori, a símile, a contrario, pois entendia-se que a vontade do legislador não era uma vontade sem mais, não era
arbitrário, mas sim uma vontade racional, lógico-formalmente coerente, à qual se poderia aceder nos casos em que
tivessem fixado duvidas na conjugação histórica dessa vontade1.
M as então como se deveria superar a dificuldade da ausência uma previsão expressa na lei, isto é, qual a
solução que a escola da exegese dava para os casos que não estivessem expressamente previstos na lei, ou seja, para
os casos omissos ou de aparentes lacunas? Como vimos o artigo 4º do “code civil” proibia o non liquet, ou seja, a
denegação de justiça ou abstenção de julgar. Nele se afirma o postulado da suficiência da lei para todos os casos
jurídicos. Se surgisse um caso que não tivesse resposta imediata na lei, o mesmo seria resolvido por recurso ao que os
autores da escola da exegese chamavam de “correcta recolocação da norma no sistema”, isto é, ir-se-ia interpretar a
norma através da sua inserção no sistema, no todo, instituído pelo código, recorrendo-se para tal à analogia. Analogia
que podia ser:
Analogia legis - aplicava-se a norma que previa um determinado caso a um caso análogo, não
directamente previsto, recorrendo-se ao argumento a pari ou a simili, isto é, ao argumento por identidade de razão.
Analogia iuris - procurava-se deduzir uma solução dos princípios gerais do direito que eram inferíveis do
conjunto das normas. Caso não fosse possível resolver o problema quer pela analogia legis, quer pela analogia iuris,
ou seja, na hipótese de não se poder deduzir da lei uma solução para o caso, a solução seria a recusa da demanda. Pois
se o direito era a lei e o caso não estava directa ou indirectamente regulado nela então era porque se tratava de um
caso que não era juridicamente relevante, caindo assim fora do direito. É uma manifestação do princípio do universal
negativo - o legislador tinha pensado em todos os casos juridicamente relevantes dando-lhes uma resposta positiva ou
negativa. Caso não houvesse norma para o caso é porque o legislador tinha resolvido a questão negativamente, não o
considerando juridicamente relevante. Daí que as lacunas fossem apenas aparentes.
Alguns autores da escola da exegese, ainda que de um modo, dedicaram-se também a sistematizar o
material disponibilizado pela interpretação (momento da sistematização do método jurídico) através de comentários,
obras de exposição, interpretação e explicação dos códigos. Quanto à aplicação concreta da lei ela era feita de forma
lógico-dedutiva, sem se efectuarem quaisquer considerações práticas ou valorativas - depois de interpretar a lei nos
termos descritos o jurista limitava-se a aplicar ao caso concreto as normas segundo o esquema do silogismo -
judiciário, a norma legal era a premissa maior, o caso decidendo a premissa menor e a solução resultado de subsunção
do caso à norma (momento técnico do método jurídico). Em todo o seu pensamento se notava uma separação entre a
jurisprudência superior que era a interpretação e sistematização confiada aos juristas cientistas a jurisprudência
inferior que consistia na aplicação da lei, momento que era desvalorizado e comedido aos juristas práticos. Assim,
interpretação e aplicação da norma eram dois momentos distintos, sendo a interpretação feita em termos abstractos,
isto é, sem relevar o caso concreto.

2 - Escola histórica do direito

Esta escola é expressão do vasto movimento cultural Alemão surgido no final do séc. XVIII, início do séc.
XIX que atingiu os vários domínios da cultura, visava combater o racionalismo moderno Iluminis ta que ao nível do
direito desembocava no legalismo Francês. Afirmava-se a natureza histórica da realidade humana e de todas as suas
manifestações culturais. Assim, também o direito se manifestava na história de cada povo. O Direito continuava a ser

1
Assim, além da letra atendia-se ao espírito da lei que era chamado a restringir, estender ou a
complementar o sentido daquela, distinguindo-se a interpretação gramatical de interpretação lógica que
visava já a vontade racional do legislador e culminaria na explicitação dos princípios gerais da lei e do
código.

63
pré-dado, mas este já não era o resultado de um “diktat” do legislador, ou seja, não era imposto pela vontade do
legislador, mas sim, pressuposto no espírito do povo “volksgeist”, que se revelaria na história de cada povo2.
A normatividade jurídica estava, então, imersa nas instituições culturais do povo, manifestava-se como uma
objectividade cultural que os juristas deveriam apurar cognitivamente. O direito era então um dado, objecto de
conhecimento, e o lugar que na França era ocupado pelo legislador deveria pertencer, na Alemanha, segundo Savigny
à ciência do direito a quem cabia conhecer nas instituições culturais do povo o direito. À ciência do direito eram
reconhecidas por Savigny três dimensões:
Dimensão histórica, voltada para o passado, procurando-se a base do direito germânico em textos de
direito Romano, o que não deixava de ser uma contradição.
Dimensão sistemática ou filosófica, fortemente marcada por Schelling, determinava a compreensão do
direito como uma unidade orgânica de instituições com um sentido histórico coerente, o que originava uma
concepção orgânico-evolutiva dos institutos jurídicos.
 Dimensão prático-normativa, que traduziu a autonomização do momento de aplicação concreta do
direito, mas que a evolução desta escola viria quase a apagar.
M as, a escola histórica sofre a influência do idealismo Kantiano 3 e acabou por negligenciar o histórico-
concreto, acabando por reduzir a juridicidade a um mero sistema conceptual, acabando por dar origem à
jurisprudência dos conceitos, o direito era agora identificado com os conceitos a quem, Ihering apelidava de “corpus
simples da química jurídica” “como não ser ciência era uma deficiência” e na ânsia de elevar o direito a ciência o
elemento sistemático vai-se sobrepor ao elemento histórico. Ela optou pelo sistemático e sacrificou o histórico na
ânsia da cientificidade. Se para Savigny o direito era ainda visto como um sistema orgânico de instituições, ou seja,
ele tinha uma perspectiva sistemático-institucional. Já para Puchta, seu discípulo, o direito passou a ser um sist ema de
conceitos. Ele tinha uma perspectiva sistemático-conceitual.
Para Savigny a interpretação era a operação intelectual destinada à desvelação da verdade interior da lei.
Este autor acentuou a importância dos elementos clássicos: gramatical, histórico, sistemático e lógico no processo
interpretativo das leis. Numa segunda fase Savigny admitiu também o elemento teleológico, elemento que vai para
além da letra da lei, cautelosamente apenas na medida em que tal resultasse claramente de verdade ínsita na l ei. Algo
que depois foi claramente afirmado por Ihering com a jurisprudência dos interesses.
De um ponto de vista metódico a jurisprudência dos conceitos não veio propor uma teoria da interpretação
muito diferente da proposta pela escola da exegese. A lei interpretada era remetida ao sistema conceptual considerado
auto-subsistente e pleno. Lei que depois era aplicada lógico-subsunsivamente. Também para esta corrente de
pensamento as lacunas que eventualmente surgissem seriam meramente aparentes, uma vez que seriam absorvíveis
pelas potencialidades de desenvolvimento lógico do sistema jurídico conceitual. Isto porque os conceitos eram auto
produtores de novos conceitos o que permitia encontrar solução para todos os casos jurídicos. Se um caso não
pudesse ser resolvido através do recurso a um desses conceitos é porque esse caso não era juridicamente relevante,
devendo o jurista ignora-lo já que não reclamaria por si, uma solução do direito. Com o tempo o pensamento destas
duas escolas acabou por fundir-se e deu origem ao método jurídico.

3 - Crítica e superação do positivismo

O método jurídico positivista foi alvo de uma dupla critica por parte do pensamento jurídico. Uma de
carácter empírico e outra de carácter metodológico.

2
Co mo consequência bem v isível o código civil A lemão (BGB) que entrou em vigor anos depois do code
civil francês.
3
Que neglegenciava o histórico concreto em detrimento de estruturas dogmáticas e como tal a -historicas.

64
A de carácter empírico mostrou que no plano da realidade as coisas não decorriam como se afirmava: as
componentes do juízo do julgador eram mais prático-valorativas do que lógico-axiomático. No processo judicativo
decisório intervêm dimensões práticas a dois níveis: para vencer a distância entre a norma que é geral e abstracta e o
caso que é particular e concreto e para a determinação da especifica relevância do caso concreto. Assim, o juiz não se
pode eximir a um juízo autónomo sobre o mérito do caso.
Ao nível metodológico (as coisas não deveriam ser como se sustentava) surgiram movimentos
metodológicos de orientação prática, como a livre investigação científica do direito, movimento do direito do direito
livre, jurisprudência dos interesses, jurisprudência sociológica, jurisprudência da valoração.
Vejamos algumas características comuns a estas correntes de orientação prática:
Recusam o intelectualismo lógico e teorético do positivismo e afirmam que o direito e o pensamento
jurídico pertencem à esfera axiológico normativa e pratico - emocional.
Recusam o formalismo e afirmam o finalismo, o direito tem a ver com a vida, com a realidade social e
nele emergem os problemas e no interesse da qual devem ser resolvidos. A complexificação das sociedades
industrializadas com a alteração das condições sociais faz surgir novos problemas que reclamam novas soluções. O
direito há-de ser pensado de modo a realizar os fins e os valores subjacentes a essa nova realidade.
Com estas correntes alteram-se os valores últimos que o direito deveria servir. No positivismo o direito
deveria servir a segurança, a certeza. Estas novas correntes sem descurar a segurança preocupam-se com a justiça.
Defendiam que a afirmação de uma segurança estrita não deve conduzir a soluções impostas.
Reconhecem a existência de lacunas. M esmo quando é possível resolver um caso por mediação de uma
norma, na interpretação dessa norma temos sempre de recorrer a critérios normativos extra-textuais, aos fins, aos
interesses e valores sob pena de não compreendermos o sentido normativo das normas.
A interpretação já não é meramente filológico-gramatical.
M obilizam uma racionalidade prático-argumentativa em superação da racionalidade lógico-dedutiva do
positivismo.
No centro da reflexão metodológica já não estão as normas, mas o caso - problema com todas as suas
particularidades. Todos eles se centram na importância da decisão concreta porque é através dela que o direito se
realiza. Reconhece-se, assim, a importância da especificidade da função a cumprir pelo jurista decidente no horizonte
de um Estado de Direito. Função muito diferente da afirmada no terceiro momento do método jurídico em que o
jurista se limita a aplicar lógico-subsuntivamente a lei largando mão do silogismo judiciário.

a) Livre investigação científica do direito: “libre recherche scientifique du droit”, esta corrente surgiu em
França, tendo como principal representante François Gény. Ela vai combater o positivismo exegético, pretendendo,
todavia não cair em excessos. Por isso vem defender que sempre que seja possível decidir com base na lei então deve
ser mobilizada e interpretada. Subjectivamente privilegiando-se a vontade histórica do legislador, à semelhança do
que preconizava a escola exegética.
Só que esta corrente vem afirmar que o sistema do direito positivo não é pleno, é lacunoso. Por isso, Gény
reconheceu a importância de outras fontes de direito como o costume, a jurisprudência judicial e a dogmática e veio
invocar a “natureza das coisas”, ou seja, os princípios próprios de cada domínio jurídico para superar as lacunas do
sistema legal através de uma “livre investigação científica”.
Defendia-se que a normatividade jurídica só poderia ser compreendida por referencia a um par conceitual: o
primeiro o “donué” (o dado) e o “construit” (o construído). O dado é formado por um conjunto de dados reais,
históricos, racionais e ideias, competindo à ciência do direito a sua investigação com os dados, Gény recuperou a
importância do contexto de emergência dos problemas (algo que tinha sido afirmado ao nível do pensamento jurídico
medieval mas que o positivismo tinha apagado). Ao nível dos dados reais falamos das circunstâncias de tempo, lugar
e modo da humanidade nas suas diversas expressões (ex. realidade onde o homem vive, a sua constituição física,

65
etc.). Dados históricos são as tradições enquandrantes da vivência de uma dada comunidade. Os dados racionais
reconduzem-se a princípios universais, necessários e imutáveis do direito natural clássico que resultariam da própria
natureza humana. Os dados ideias são as aspirações humanas, fermento dinamizador garantindo o progresso do
direito positivo.
O direito revelado nesses dados era depois submetido a uma elaboração teórica com vista à sua
objectivação e formulação praticáveis, ou seja, para o tornar adequado às concretas exigências da vida social e assim
surgiu o construído. Este oferecia as “fontes formais do direito positivo” devendo a lei ser interpretada e aplicada de
acordo como os “donnés”. Por isso se diz que só na ciência que investigava o direito revelado nos dados e não na
técnica nos depararíamos com o momento materialmente constitutivo do direito.
Acontece é que os dados são factores pré-juridicos, mas não são o próprio direito, são elementos para a
constituição do direito mas não são direito constituído.
Por outro lado o construído pressupõe já o direito previamente constituído na sua essência, uma vez que a
técnica não é materialmente constitutiva pelo que se conclui: aquilo que a ciência não revela, a técnica também não
chega a constituir. Há assim, um espaço entre o dado e o construído, espaço que é justamente preenchido pela
constituição e realização do direito. E foi isto que Gény não compreendeu. Este autor não compreendeu o problema
da constituição da normatividade jurídica que verdadeiramente resulta da dialéctica que se entretem entre o dado e o
construído.
Deste modo o movimento falhou o seu propósito tendo Gény acabado por afirmar que o direito positivo era
o único direito verdadeiro, ou seja, afirmou aquilo que pretendia criticar, o positivismo.

b) Movimento do direito livre: (freirechtsbewegung) M ovimento que surge na Alemanha nas primeiras
décadas do século XX. Trata-se de um movimento e não de uma escola, uma vez que não tem um carácter sistemático
ou organizado. Os seus principais autores são Ehrlich, Kantorowicz, Carl Schmitt ou Isay.
Num sentido amplo direito livre identifica todo o direito que se constituía para além ou independentemente
do direito legislado, da lei.
Quer este seja uma objectiva pressuposição (ex. direito vigente na vida real, direito natural) quer seja o
resultado da criação do jurista - julgador na realização do direito mediante critérios normativos extra legais ou com
base na sua autónoma e pessoal procura do justo.
Num sentido estrito identificava-se apenas com o direito jurisprudencial.
Apesar de surgir no interior do próprio pensamento jurídico e não directamente provocado por quaisquer
movimentos externos (filosóficos, políticos, etc.) o facto é que não se pode ignorar o contexto em que nascera. O
homem passou a reconhecer-se com outras dimensões para além do intelectualismo teorético. Surge, assim, uma
critica ao racionalismo em experiências filosófico - culturais, como a voluntarista (alem da razão deve reconhecer-se
a vontade). O intencionismo (a combater a lógica estaria a intuição), o vitalismo (combatendo o racionalismo), ou o
niilismo (negando o acesso à verdade). Ao nível social as grandes transformações provocadas pela I guerra mundial
que vinha “abanar” com a ordem existente. Ao nível jurídico a segurança jur ídica passa a confrontar-se a intenção de
justiça e a exigência de um direito materialmente fundado.
Essencialmente este movimento afirmava a necessária liberdade do jurista na procura do direito, uma
margem de decisão responsável que não podia ser eliminado pela codificação e pelo silogismo judiciário.
O movimento caracterizou-se pelo seu combate aos postulados do método positivista. Contra o postulado de
identidade entre direito e lei afirmava-se a existência de fontes extra legais. Além do direito legal havia de se
reconhecer também o direito consuetudinário, aquele que provinha das decisões judiciais e o elaborado pelo
pensamento jurídico. Do direito assim criado livremente (livre de lei) justamente se diria “freies r echt”. Assim, com o
direito legal concorria o direito livre pelo que o direito e lei passavam também a distinguir-se. Por outro lado, a
normal legal deixa de ser o único critério de solução dos casos jurídicos concretos criticando-se o postulado da

66
exclusividade da lei como critério jurídico. Contra o postulado da plenitude lógica do sistema ou do princípio da
suficiência da lei, este movimento vem afirmar a natureza lacunosa da lei e é precisamente a existência de lacunas
que vem justificar a necessidade de afirmação do direito livre.
O movimento do direito livre criticou também a racionalidade positivista (lógico-formal). A tarefa do juiz
não pode ser meramente cognitiva, terá de ser prática em que este tem de fazer valorações de carácter axiológico-
material. O direito deixa de pertencer ao domínio da razão teorética e passa a pertencer ao domínio da razão prática.
O direito e o pensamento jurídico manifestam assim uma unidade intencional que era quebrada pelo positivismo.
Este movimento veio criticar também a aplicação lógico-subsuntiva do direito, o que se pretende não é uma
solução lógica, mas sim, uma solução justa, materialmente adequada ao caso. Veio admitir explicitamente a
possibilidade de decisões contra legem. Tal admite-se sempre que o sentido da norma em causa se não revelasse
inequívoco ou aceitável. Este sentido seria inaceitável, provinha de um tempo há muito passado e realizado em
convicções jurídico-sociais ultrapassadas ou porque o cumprimento da norma legal se traduzia numa lesão grave do
sentimento do direito – ideia de direito e de justiça, de tal maneira que o poder estadual existente ao tempo da decisão
não teria provavelmente prescrito a solução enunciada na lei. Isay entendia que a decisão contra legem aí seria um
mal menor perante a possibilidade de lesão da ideia de direito e de justiça. Outro casos em que era admitido afastar a
lei era ainda nas situações de as partes chegarem a acordo. Como decidiria o juiz nestes casos? Deveria decidir no
sentido que presumisse ser a orientação do poder estadual actual e na impossibilidade de determinar esse sentido
decidia segundo o direito livre - criaria mesmo ele direito.
Este movimento deu grandes contributos ao pensamento jurídico:
 Disse que o direito não se reduzia à lei;
 Evidenciou a existência de lacunas;
 Relevou a decisão concreta;
 M ostrou que na realização do direito não intervêm apenas factores lógico - formais mas também factores
axiológicos, emocionais e teleológicos.
Todavia a proposta deste movimento é inaceitável porque levaria ao subjectivismo e arbítrio. Na base da
realização do direito estava a voluntas e não a ratio. As decisões eram formadas com base numa jurisprudência dos
sentimentos.
Criticou a racionalidade teorética, lógico formal, mas pressupôs erradamente que esta era a única
racionalidade disponível e como alternativa afirmou o irracionalismo voluntarista. A decisão era formada segundo
uma intuição de justiça concreta, não sendo racionalmente fundada. M etaforicamente Pinto Bronze diz que este
movimento disse que “O Rei ia nú mas não foi capaz de o vestir”.
Não é possível abdicar de uma racionalidade que oriente o julgador na tarefa de realização do direito. Todas
as decisões jurídicas têm de ser judicativas e como tal racionalmente fundamentadas. Não basta a dimensão de
voluntas é preciso a dimensão do juízo da adequada fundamentação da decisão. Na sua fase derradeira, Isay
continuou a apontar a decisão concreta radicada na voluntas do seu autor como centro do discurso metodológica, mas
admitia já a mobilização à posteriori da norma legal para controlar e eventualmente ratificar a decisão.

c) Jurisprudência dos interesses: “interessenjurisprudenz” (inspiração sociológico-finalista).


Também designadas por escola de Tubingen é uma corrente da metodologia jurídica que se impôs no início
do século XX, com inspiração sociológico-finalística. O seu caput scholae é Philip Heck. Esta escola é marcada pelo
equilíbrio das suas propostas o que justificam a sua ampla aceitação um pouco por toda a parte (entre nós, foi
pioneiro M anuel de Andrade) já que combina o respeito pela tradição com a abertura e inovação. Combateu o
formalismo conceitualista da jurisprudência dos conceitos, mas também os excessos do movimento do direito livre.
Vejamos algumas notas caracterizadoras:

67
Centra a análise e a compreensão do direito na categoria dos interesses: é a expressão que traduz todas as
pretensões que se manifestam na vida em sociedade e são socialmente relevantes, tanto de ordem material como de
ordem espiritual. os interesses desempenham três funções:
1- São causa das normas – interesses causais, os interesses manifestam-se sempre em conflito e
era essa situação que estava na génese do direito, se os interesses surgiam em conflito era necessário que o direito
ponderasse os interesses e resolvesse o conflito.
2- São também objecto das normas legais: estas visavam proteger e delimitar interesses. Por isso
se diz que os interesses são objecto de valoração das normas legais.
3- Eram ainda critério ou fundamento de valoração da norma porque a norma visa solucionar o
conflito de interesses, a partir da ponderação desses mesmos interesses - veremos que a principal critica a esta escola
se dá aqui, já que ela não distingue objecto e fundamento. Ela não fez apelo a princípios (verdadeiros fundamentos
das normas).
Princípio da obediência do juiz à lei, o juiz é um súbdito do Estado e como tal, deve obediência à lei: a
vontade comunitária impõe-se à vontade particular. A lei tem por objectivo solucionar um certo conflito de interesses
pelo que é constituída por duas dimensões: uma prescritiva ou imperialista e uma material constituída pelos interesses
(interessentheorie). Só se compreenderia verdadeiramente a lei se se consciencializassem os vários interesses em
conflito e qual é que o legislador fez prevalecer.
Reconhecem a existências de lacunas reais (e já não aparentes) porque consideravam que as leis eram
incompletas e, por vezes, contraditórias, pelo que não se esperava que o juiz obedecesse literalmente à lei. Ele
participaria também na constituição do direito. Ele devia aplicar a lei aos casos previstos, devia corrigir as normas
deficientes e deve até criar normas novas. Inclusivamente através de uma ponderação pessoal dos interesses. Por isso,
se diz, que o juiz não deve uma obediência cega à lei, mas sim uma obediência pensante conforme os interesses em
conflito.
O pensamento jurídico não tinha uma intenção teorética ou de puro conhecimento, mas teria uma
intenção eminentemente prática, competir-lhe-ia fundamentalmente orientar a prática do direito. Isto porque o direito
não é um mero dado, algo que se tenha de aprender de fora, mas como solução de problemas prático normativos, o
direito nunca será objecto mas prática solução de problemas.
Quanto ao método proposto pela jurisprudência dos interesses baseia-se em dois pólos - a interpretação das
normas e a integração de lacunas.
Quanto à teoria da interpretação podemos salientar como momentos fundamentais:
1º-No primeiro momento sendo a lei uma decisão de um conflito de interesses, o jurista deveria investigar o
conteúdo da lei e além disso verificar os interesses que teriam sido determinantes (os interesses causais). Esta seria
uma interpretação histórica em que se tinha de recorrer aos trabalhos preparatórios, só que não se vai já não
subjectivismo histórico, ou seja, o que se procura já não é a vontade histórica (a psicológica) do legislador, mas sim
uma vontade normativa que ia ao encontro da ponderação de interesses, havia que se atender alem dos motivos aos
interesses. Assim podia-se interpretar para além e mesmo contra a letra da lei. Esta tinha só um valor indiciário e não
normativo. O que revela agora é identificar os interesses causais da norma. Afirma-se claramente o elemento
teleológico. Era necessário considerar os fins e os interesses subjacente à norma;
2º- Depois de conhecidos os interesses causais, o jurista deveria compreender o juízo de valor legal, deveria
identificar o interesse ao qual o legislador havida dado preferência. M omento que só em abstracto se s epara do
primeiro.
3º- Averiguados os interesses causais e reconhecida a ponderação legal sobre eles o intérprete estava em
condições de compreender a verdadeira vontade normativa da norma legal. Esta resultava de uma determinada
ponderação de um certo conflito de interesses e só a esta vontade normativa da norma se deveria obediência. Já não é
uma vontade histórica-psicológico mas sim uma vontade normativa.

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O facto de o jurista decidente dever obediência à vontade normativa da norma implicava duas
consequências metodológicas importantes:
a) A aplicação da norma não seria lógico subsuntiva como acontecera no positivismo, pois o jurista
decidente teria de fazer sempre um juízo autónomo sobre o mérito da causa. Ele iria comparar o conflito de interesses
ponderado na norma com o conflito de interesses subjacente no caso concreto e averiguar se entre estes dois conflitos
de interesses havia ou não uma semelhança suficiente. Pelo que se poderá dizer que o juízo decisório tinha sempre a
índole de um juízo analógico, ou seja, a realização do direito para esta escola far-se-ia por mediação de um juízo
analógico. Todavia, Heck não qualificou claramente os dois pólos desta dialéctica como dois problemas: o problema
da norma e o do caso. Ele contrapunha a decisão legal do conflito e a decisão judicial do caso.
b) Possibilita um novo resultado interpretativo (proposta mais moderada) - a interpretação correctiva,
podendo o decidente desrespeitar a letra da lei para respeitar o seu sentido prático - normativo resultando numa
decisão formalmente contra legem, mas materialmente de acordo com o direito, isto é, secundum ius. É um dever de
obediência inteligente ou pensante à norma. O fundamento desta interpretação correctiva seria certo? O não frustrar a
própria extensão normativa da norma. Alterar-se-ia o conteúdo expresso na norma que o julgador ia aplicar sempre
que a situação real dos interesses fosse do mesmo tipo da regulada pelo legislador, mas, em concreto se oferecesse em
termos não previstos por este devido a alteração temporal das circunstancias, por os casos serem excepciona is.
Divergência que justificaria que se decidisse de modo diferente do que prescrita formalmente a lei para com isso
realizar a intenção da lei. Heck deu-nos alguns exemplos interessantes que mostram a necessidade desta obediência
inteligente 1 – caso na carruagem de um comboio estivesse a proibição de entrada de cães e ap arecesse um homem
com um gato com uma trela, poderia entrar? 2 – caso um medico desse uma ordem à enfermeir a de as 17h sem falta
dar um soporífero a determinada pessoa e aquele encontre esta a dormir, ainda assim, deveria cumprir essa ordem? 3-
O dono de uma casa decide dar uma festa e ordena ao mordomo que todos os convidados, para entrarem, devem
deixar a bengala na entrada. Se alguns deles não trouxer bengala deverá ser impedido de entrar?

Quanto à integração de lacunas:

Hoje não falamos em lacunas. Falamos sim em realização do direito por mediação da norma e realização do
direito sem mediação da norma. Neste último caso estamos perante o desenvolvimento transsistemático do direito.
M as há que reconhecer o mérito à jurisprudência dos interesses que afirmou a existência de lacunas reais e
não de lacunas meramente aparentes, contrariamente às orientações tradicionais reconhece, assim, que o sistema não
é fechado, dizendo que a lei não previa e regulava todos os conflitos de interesses que na comunidade deveriam ser
regulados. Heck dizia que o juiz deve conhecer os interesses da comunidade não só através de lei, mas também pela
sua própria experiência de vida, para além de dizer que a lei não tinha considerado todos os interesses da comunidade
dignos de protecção. Heck recusou a possibilidade do preenchimento de lacunas através do desenvolvimento lógico-
conceitual do sistema como defendia a jurisprudência dos conceitos através da generalização das normas positivas.
Negava tal possibilidade porque entendia que, para além desse método se revelar muitas vezes incorrecto e falacioso
os problemas jurídicos da vida não se resolviam por inferências lógicas mas por uma ponderação de interesses.
Assim, os fundamentos da decisão não seriam conceitos ou construções lógicas mas práticos juízos de valor, aqueles
que estavam contidos na lei. Assim dever-se-ia integrar as lacunas no sentido do legislador investigando os interesses
subjacentes para chegar aos juízos de valor constitutivos: assim, o juiz está vinculado aos juízos de valor mesmo das
normas que não são imediatamente aplicáveis. No fundo era reconhecer o princíp io do artigo 1 do código suíço em
que o juiz deveria preencher as lacunas do mesmo modo que o faria o legislador. Vejamos quais as consequências
desta concepção.
Vejamos na prática como o juiz deveria proceder para integrar as lacunas: primeiro deveria recorrer à
analogia, as normas legais seriam aplicadas ainda a casos por elas não directamente previstas desde que a igualdade

69
da situação dos interesses no caso previsto e no não previsto justificasse a aplicação do mesmo juízo de valor que
fundamentava a decisão legal do caso previsto. Temos, assim, uma analogia que não é lógica ou conceitual (em que
basta que o caso se subsuma ao mesmo contexto lógico), mas teleológica: há neste caso uma igualdade da situação
dos interesses levando a um mesmo juízo de valor. Em segundo lugar, caso não fosse possível resolver o problema
por recurso à analogia, o julgador deveria ter em atenção os juízos de valor dominantes na comunidade jurídica. Em
terceiro lugar, em desespero de causa deveria decidir de acordo com os seus juízos de valor pessoais, através de uma
“valoração pessoal”, fazendo ele uma ponderação pessoal de interesses.
Ora, esta solução é inaceitável porque, em ultimo caso, caía-se num subjectivismo.

Criticas dirigidas à jurisprudência dos interesses:


1- Ela apresentou uma insuficiência da sua base sociológica – os interesses por três motivos:
1 - Apenas considerou os interesses em situação de conflito, esquecendo-se que os interesses podem
apresentar-se em situações de convergência. Há situações de comunidade de interesses (ex. interesse de sócios numa
sociedade que ainda requer regulação por parte do direito?);
2 - Ela não faz uma análise acabada dos interesses, ela não disse qual o tipo e natureza dos interesses em
conflito (seriam eles particulares? Públicos?)
3 - Não considerou que há outros factores sociais, para além dos interesses igualmente causais do direito
como as situações de poder, de confiança, de responsabilidade em que os sujeitos estão também uns perante os
outros, não podendo o direito deixar de os revelar.
2- Manifestou uma insuficiência criteriológica: não soube nunca distinguir o objecto da valoração do
fundamento da valoração. Ambos se resumiam aos interesses. Esta corrente não compreendeu que o fundamento não
está ao lado ou no mesmo plano do objecto, mas, acima dele, ela incompreendeu a diferença essencial que distingue o
fundamento normativo do seu objecto de valoração. O fundamento não é um dado de verificação empírica, mas uma
expressão de uma validade regulativa de carácter axiológico e ideal, assim por exemplo o valor da justiça, da
igualdade, da confiança, da dignidade humana não são interesses ao lado de outros interesses, mas valores perante
interesses, situando-se acima destes. Algo que levará depois à afirmação da jurisprudência da valoração numa
tentativa de superar esta corrente.
3- Manifestou ainda uma insuficiência sistemática: apesar de o método proposto se basear em
ponderações de carácter analógico, esta corrente reservou a tematização da analogia para o problema das lacunas: tal
como tinha feito o positivismo. Hoje sabemos que a analogia é imprescindível não só ao nível do problema das
lacunas, mais que toda a realização do direito pressupõe a ponderação de carácter analógico.
Esta corrente não conseguiu compreender adequadamente o sistema jurídico, não considerando a plenitude
de estratos que constitui o sistema jurídico, nem a dialéctica que entre eles se entretece, nem a especifica
intencionalidade que os autonomiza.
No fundo, a jurisprudência dos interesses é ainda um movimento de inspiração claramente normativista e
nas situações em que não havia uma norma pré - disponibilizada pelo sistema ela acabou por cair no casuísmo, uma
vez que as decisões não eram devidamente fundamentadas. Á medida que vai deixando de pisar o terreno firme das
normas, as propostas desta escola vão-se tornando cada vez mais claudicantes não dando aos problemas uma solução
satisfatória.
4- Critica filosófica: esta corrente revelou apenas dimensões que podessem ser avaliáveis empiricamente.
Só essas seriam constitutivas do direito. Como é o caso dos interesses que, como fact os sociais que são podiam ser
empiricamente analisáveis. Ela excluiu a ideia de espiritualidade ou idealidade ou só considerava esta dimensão
quando esta se manifestavam nos factos sociais e que revela um finalismo instrumental radicados no positivismo
social. Daí que Orlando de Carvalho diga que a jurisprudência dos interesses não nos propiciou uma principiologia.
Como resposta a esta crítica poder-se-ia afirmar que a jurisprudência dos interesses considerava não só os interesses

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materiais mas também os ideias, os éticos, religiosos, de moralidade, de justiça, equidade, etc. Só que se o conceito
de interesse abrange tudo o que importa aos homens, então o conceito de interesse tem uma amplitude que abrange
tudo, sendo por isso inutilizável. Há ainda a considerar que tais interesses ideias só como interesses de expressão
empírica são considerados, pelo que as intenções ideias que dão conteúdo a esses interesses não são resolvidas. Serão
como motivos – fins, depois são identificados sem diferenciação aos interesses em geral. Só vistos como meros factos
e não validades fundamentantes. Assim enunciar interesses ideais é uma contradição e é negar o que se afirma. O
interesse é subjectivo vai referido ao sujeito interessado e é exclusivo só para o interessado tem sentido reivindica-lo.
Já o ideal é universal e não exclusivo. Daí que ao falar em interesse ideal vão estas características misturadas o que é
incomportável. O que no fim torna inevitável a opção - ou pelo interesse, ou pelo ideal. Esta corrente optou
claramente pelo interesse. É este nivelamento do ideal com o material que leva a concluir que para a jurisprudência
dos interesses só são factores de direito aqueles factores empiricamente sociais, logo, uma continuidade do cientismo
empirista causalista do positivismo. Há uma funcionalização social do direito. O legislador apenas acrescentava ao
relevo sociológico um critério jurídico formal - o da vontade imperativa do legislador que seria materialmente
determinada pelos factores sociais. Só estes e mais nada decidiriam da determinação material do jurídico. Sem
legislador não haveria direito mas determinantes dessa vontade seriam só os interesses. Trata-se de um positivismo
sociológico que vê o direito como instrumento para afirmação dos interesses sociais. A valoração jurídica só importa
enquanto possa ser reduzida em termos sociológicos. Assim, escapa a esta corrente o momento da determinação
normativa que é insusceptível de se definir e apreender apenas por referência aos factores sociais relevantes.

d) O socialismo radical e a jurisprudência da valoração: com estas críticas surgem correntes


metodológicas que pretendem superar a jurisprudência dos interesses. Essa superação deu-se, por uma dupla via.
Quer por uma corrente de carácter sociológico que dirigiu a sua crítica à insuficiência de base sociológica quer por
uma corrente de carácter axiológico que se traduziu na crítica filosófica.
Na corrente sociológica podemos distinguir:
1- O pensamento jurídico causal de M üller-Erzbach, torna ainda mais explicita a ideia de que as
presunções jurídicas têm sempre na sua base factores sociais. Leva a cabo uma mais profunda pesquisa dos factores
da vida que determinam o direito e relevou os interesses, não só em situações de conflito mas também em situações
de convergência. Considerou ainda outros factores causais para além dos interesses, como as situações de domínio ou
poder, as de confiança, as de responsabilidade. Todavia, também este pensamento não distinguiu o objecto do critério
da valoração, sendo um e outro os interesses ou factores sociais. Há uma carência de princípios orientadores da
valoração.
2- Diversos realismos, como do realismo Escandinavo e o “legal realism” Americano e m que a
racionalidade teorética-explicativa substitui a normatividade pela factualidade para antecipar a decisão jurídica.
3- Jurisprudência Sociológica de Pound, para este autor eram também os interesses a estar na génese do
direito. Para as sociedades sobreviverem e se desenvolverem era necessário equilibrar os interesses concorrentes, já
que todos os interesses que se manifestavam eram igualmente legítimos. A função do direito era a de tornar
compossíveis todos os interesses. Todavia Pound não nos diz quais os critérios que deveriam determinar essa procura
de um equilíbrio de todos os interesses, o direito passava a ser um instrumento acrítico da dinâmi ca social remetido
para um decisionismo político a que apenas se devam indicadores sociológicos. Temos a afirmação de uma
racionalidade tecnológica em que o juiz era a longa manus do poder executivo. Trata-se aqui da primeira tentativa de
constituir o pensamento jurídico como uma tecnologia em que o valor é substituído pelo interesse e o fundamento
pela procura de certos efeitos úteis

Na corrente axiológica afirmou-se a jurisprudência da valoração onde figuram autores como Esser ou
Hubmann. Para esta corrente o jurídico tem uma intenção de validade ao serviço de que está o próprio legislador.

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Intenção que se há-de afirmar também no domínio metodológico, sem deixar de reconhecer o relevo condicionante
dos factos sociais, que são pressuposto e objecto de valoração, negou-lhes o estatuto de fundamentos constituintes da
valoração. Tais fundamentos hão-de ser valores autónomos e princípios práticos. Afirmou o direito como uma
axiologia e defendeu que a sua realização deveria cumprir aqueles valores e princípios inerentes ao próprio direito.
Por isso se diz que substituiu o teleologismo pela teleonomologia.
Em rigor houve uma mutação da índole e das características do pensamento jurídico metodologicamente
comprometido. Hoje podemos dizer que o direito deixou de ser um objecto e passou a ser um problema.
O sistema jurídico é hoje aberto e o pensamento jurídico participa na constituição da normatividade jurídica
vigente. Desapareceu a diferenciação afirmada pelo positivismo entre a intenção do direito e a intenção do
pensamento jurídico segundo o qual aquela era normativa e esta mesma teorética. Hoje reconhece-se uma unidade
intencional, tendo ambos uma intenção prático - normativa.
A dogmática deixou de ser compreendida como uma dogmática conceitual, que apenas se dedicava a
descrever em termos sistemáticos o direito vigente passando a ser uma dogmática da fundamentação, chamada a
elaborar modelos práticos orientadores e desoneradores da função de realização do direito que cabe ao decidente.
A racionalidade atinente à realização do direito é hoje uma racionalidade pratica, baseada na dialéctica
entre sistema e problema. Do que se trata é de pôr em confronto dois problemas: o do caso concretamente decidendo
e a dimensão problemática do estrato do sistema mobilizado. Em substituição da compreensão normativista do direito
podemos dizer que hoje domina uma compreensão jurisprudencialista do direito que assenta em vários pressupostos,
a ideia de compreensão do homem como pessoa, a re- compreensão da praxis sendo a relação a revelar a de sujeito-
sujeito e não sujeito-objecto.
O direito é uma tarefa confiável à disponibilidade do homem e este há-de projectar-se tal como se
compreende na sua realização. O direito não pode deixar de referir-se a uma controvérsia historicamente situada. O
direito só o é verdadeiramente quando se afirma como uma validade que satisfaça a igualdade e a dignidade.
O caso é hoje o prius metodológico – é o ponto de partida do percurso do jurista e ele é também a
perspectiva metodológica. M esmo que para o caso se possa mobilizar uma norma esta deve ser vista na perspectiva
do caso e não o caso com perspectiva da norma.

II- O modelo de realização judicativo - decisória do direito

1. Dialéctica entre sistema e proble ma:

Castanheira Neves entende que a racionalidade especificamente jurídica


apresenta quatro dimensões. Ela é uma validade pressuposta que por razoes de
economia, de esforço, tende a objectivar-se numa dogmática e ela é uma
proble matização praxistica que não dispensa uma me diação judicativa. Castanheira
Neves considera que estas quatro dimensões podem ser reduzidas a duas: as duas
primeiras dimensões identificam o sistema e as duas últimas identificam o problema.

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A racionalidade especificamente jurídica há-de afirmar-se no âmbito da
dialéctica que se estabelece entre o pólo sistema e o pólo problema. Racionalidade que
se há-de espelhar no esquema metódico. Há uma dialéctica entre estes dois pólos porque
eles são em si mesmos contrários (mas não contraditórios), isto porque o sistema na sua
ideia pura radica o problema, exclui a contingente interrogação desintegrante que é o
problema. Tal como o problema, na sua ideia pura, exclui o sistema porque o sistema é
uma unitária racionalização integrante, ou seja, o problema manifesta sempre uma força
centrifuga enquanto que o sistema manifesta uma força centrípeta. Mas estes dois pólos
não são contraditórios. Caso houvesse uma contradição não seria possível a sua
convergência. Na verdade eles são contrários, eles têm intenções diferentes, mas são
integráveis na sua dinâmica enredando-se numa dialéctica, vejamos cada um desses
pólos.

a) Sistema:

Antes da normatividade moderna não havia uma ideia explicitada de sistema,


porque o sistema implica uma unidade integrante que não se confunde com a mera soma
das partes que o compõem. Foi com o positivismo que surgiu a ideia de sistema. Para o
positivismo o sistema é fechado, ele é auto-suficiente, ele é pleno, ou sejam sem
lacunas, consistente, sem antinomias ou contradições e unidimensional – composto
apenas por um estrato, o estrato das normas. Hoje o sistema não é compreendido desta
forma. Em primeiro lugar sabe-se que ele não é pleno – existem problemas que
reclamam uma solução de direito e para os quais não existe uma norma pré
disponibilizada no sistema. Trata-se daquilo que tradicionalmente se designava por
lacunas. Podemos afirmar que as lacunas foram um problema novo, que surgiu com o
positivismo o que hoje é um problema sem sentido. Se não há uma norma susceptível de
ser mobilizada coloca-se um problema de desenvolvimento transsistemático do direito.
Isto porque o sistema é aberto ele é constituendo pelo próprio problema. É necessário
referir o sistema jurídico ao exterior. Ele dialoga com os problemas jurídicos concretos
e a própria realidade jurídica que faz emergir os problemas passou a ser considerada um
estrato do sistema. O sistema esta em permanente reconstituição para poder satisfazer as
exigências que lhe são colocadas pelos casos concretos atento a sua infugibilidade os
princípios normativos, um dos estratos do sistema, não estão nas nuvens, são princípios
que estão aí, no prático. Dai que seja por mediação da experiência dos casos que se vão

73
excogitando esses princípios normativos, contribuindo estes para a contínua
refundamentação do sistema.
O sistema é também insuficiente porque se compreende que existe direito para
além do sistema de direito positivo. Ele é ainda pluridimensional, isto é, ele é composto
por uma multiplicidade de estratos. Mas qual a necessidade de mobilização do sistema?
É que a resolução de um caso concreto deve implicar sempre o respeito por dois
objectivos essenciais: a justiça material que vai referida ao problema concreto. A
resolução de um caso há-de apresentar-se materialmente justa. Mas esta justeza não
basta, não podemos esquecer o sistema já que é necessário que se alcance uma justeza
normativa, isto é, uma adequação da solução ao sistema da validade normativa.
Vejamos os vários estratos que constituem o sistema jurídico.

Princípios normativos: são os fundamentos da decisão judicativa, são os


fundamentos do próprio sistema. São os princípios normativos que conferem ao sistema
a característica da materialidade, isto é, dizemos que o sistema é material porque radica
em princípios normativos, são exemplos os princípios da defesa, da culpa, contraditório,
confiança, boa fé.
É preciso, todavia, distinguir os princípios normativos dos princípios gerais do
direito afirmados por todas as correntes de cariz positivista e ainda pela jurisprudência
dos interesses (utilizados ao nível da analogia iuris). Eles eram meras inferências
lógicas feitas a partir das normas e, portanto, ainda normas, só que com um maior grau
de generalidade e abstracção.
Os princípios normativos também não se confundem com os critérios, embora
sejam condição de validade dos critérios. Os critérios vão ser uma concretização da
abertura que caracteriza os princípios. Os mais dos critérios são normas jurídicas gerais,
mas os critérios não são normas jurídicas. A jurisprudência judicial e a jurisprudência
dogmática também criam critérios.
As normas distinguem-se dos princípios porque as normas pretendem dar de um
modo directo a solução para os casos que prevêem, enquanto que os princípios
normativos apontam somente o caminho para essa solução, na medida em que indicam
o sentido prático que as soluções jurídicas devem assumir. Nos princípios encontramos
a expressão do sentido do próprio direito. É costume fazer-se uma classificação dos
princípios jurídicos em:

74
Princípios positivos  são aqueles previstos em normas legais, consagrados no
sistema pré-objectivado como são o princípio da liberdade de forma nos negócios
jurídicos – artigo 219º CC e o princípio do numerus clausus nos direitos reais – 1306º
CC;
Princípios transpositivos  princípios que podendo não estar enumerados em
normas legais são condições de validade e de sentido de certos ramos de direito, isto é,
determinam o carácter de determinados ramos jurídicos. É o caso do principio da
igualdade dos conjugues ou da não descriminação dos filhos nascidos fora do
casamento ao nível do direito da família, o principio do equilíbrio razoável das
prestações no âmbito dos contratos;
Princípios supra positivos  têm a ver com o sentido nuclear que se reconhece
ao direito numa determinada época. São os fundamentos últimos constitutivos do
sentido do direito, refira-se o princípio do reconhecimento da dignidade ética da pessoa
constitutivo de qualquer ordem jurídica. Esta classificação não é estanque já que um
principio pode ser simultaneamente positivo, transpositivo e suprapositivo, exemplo, o
principio da legalidade criminal, este está previsto na CRP, é como tal um principio
positivo, ele determina o carácter do direito penal, é como tal transpositivo. Além disso
vai ao encontro da dignidade ética da pessoa humana, como tal transpositivo.
Os princípios normativos são dotados de grande abstracção, admitindo várias
concretizações. Por exemplo, princípio da inviolabilidade da vida humana pode permitir
várias concretizações. Desta forma, esta concretização de princípios será levada a cabo
pelos critérios.

Coloca-se a questão se saber quando estamos perante um verdadeiro princípio


jurídico. Para que possa ser considerado como um verdadeiro principio jurídico terá de
ter notas de:
a) Juridicidade: apresentará esta nota quando for simultaneamente um principio
do direito e um principio de direito. Será um princípio do direito quando for um
principio vigente, isto é, quando for válido e eficaz no horizonte daquele sistema
jurídico “eles não podem viver nas nuvens”. Será um principio de direito quando estiver
em consonância com a ideia de direito partilhada na consciência jurídica geral da
comunidade em causa, ou seja, pela objectivação histórico-cultural da compreensão do
direito por parte de uma comunidade. Conjuntamente, tem de se ver nele um carácter
societário, isto é, poder ser convocado para orientar a decisão dos casos juridicamente

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relevantes. Ainda tem que apresentar um carácter integrante, ou seja, não pode
discriminar arbitrariamente (em termos prático normativos inaceitáveis) é por isso que o
princípio do “apartheid” não pode ser hoje considerado um principio normativo porque
discrimina arbitrariamente - é um mero princípio politico ideológico.
b) Justiciabilidade: susceptibilidade de os princípios jurídicos, serem
controlados em juízo. Exigência que apresenta uma nota formal, tem a ver com a
institucionalização de um processo, e uma nota material, é preciso que o princípio seja
susceptível de ser adequadamente controlado pela reflexão metodológica.
Outro problema é o de determinar a instância com legitimidade para criar,
constituir ou explicitar os princípios jurídicos. Castanheira Neves e Pinto Bronze
entendem que essa entidade é o pensamento jurídico do qual faz parte o legislador. Mas
ele não é o único com esta competência. É sobretudo à jurisprudência judicial que cabe
uma função desveladora dos princípios, pois ela detém a auctoritas social, ela é a viva
vox iuris (tem legitimidade forense), a instância a que está comedida a realização do
direito. Além de ter também legitimidade politica, pois é constitucionalmente
reconhecida. Há que acentuar que os princípios não operam apenas quando não houver
um critério mobilizável pré-objectivado no sistema, elas intervém sempre ainda que de
modo mais difuso no caso de a realização do direito se processar por mediação de um
critério pré disponível, caso contrario corria-se o risco de não se entender a norma.
Outro problema é o de poderem ocorrer antinomias entre os princípios e as
normas legais. Como o ius não se reduz à lex há que analisar o problema das relações
entre os princípios e as normas. Não esquecendo que:
As normas têm nos princípios os seus fundamentos;
A maior proximidade das normas face à realidade nem sempre determinará a
sua pertinência para os casos decidendos, caso optássemos por uma óptica jusnaturalista
em caso de conflito entre norma legal e principio jurídico, preferia-se sempre o
segundo, numa óptica positivista optar-se-ia sempre pelo primeiro. Mas este problema
não se pode resolver com estes postulados.
No caso de um conflito insanável com princípios fundamentais (ex. apartheid,
que viole a dignidade da pessoa humana) não poderá deixar-se de privilegiar o princípio
e recusar a aplicação da norma. Fora destas questões limite, as antinomias podem ser
superadas recorrendo a certos operadores.
O primeiro é o cânone da interpretação das normas conforme os princípios: à
semelhança do cânone da interpretação da lei ordinária conforme a CRP, segundo o qual

76
se deverá preferir, in concreto, o sentido da norma que melhor se harmoniza com
princípios por ela pressupostos, o que contribui para eliminar muitas das possíveis
contradições. Pode acontecer que apareçam normas a limitar ou superar princípios que
antes se afirmavam sem restrições de um modo prático-normativamente fundamentado
(exº: 334ºCC).
Os princípios, devido à sua indeterminação e do carácter prático - normativo da
sua função, não estão uns com os outros numa relação de lógica binária ( de A ou não
A), antes se articulam em termos complexos, podendo acontecer que princípios em
abstracto incompatíveis, se relevem, in concreto, passíveis de harmonização (ex.
principio da culpa e do risco ao nível da responsabilidade civil) ou o inverso principio
em abstracto compatíveis que, em concreto, vão colidir (ex. em certos litígios os
princípios da celeridade e da garantida de defesa). Algo que leva à impossibilidade de
absolutização de qualquer valor ou principio jurídico. Como tal só uma lógica prático-
material se revela capaz de articular adequadamente a elasticidade e indeterminação dos
princípios. Mas a mobilização, pelo decidente, de princípios normativos não subverterá
o seu especifico sentido atendendo a sua indeterminação? Pinto Bronze considera que
tal não acontecerá desde que se verifique uma tripla garantia
 Intencional: concordância entre a decisão e o principio em causa;
 Institucional: modo de ser do próprio processo judicial num Estado de Direito
em que tanto o juiz como as partes controlarão em concreto a realização dos princípios;
 Metodológica: justiciabilidade dos princípios.

Normas: trata-se do momento de objectivação do sistema jurídico no horizonte


de um sistema de tipo do nosso. As normas são critérios jurídicos gerais e abstractos
que visam solucionar imediatamente um determinado conjunto de problemas. Para o
normativismo a norma era uma premissa lógica destinada a uma aplicação formal. Este
entendimento é hoje indefensável – a mobilização de uma norma como critério de
decisão impõe que se apele aos fundamentos que materialmente a densificam e
teleologia que ela visa. Daí que a norma só será prestável caso se considere por uma
analogia entre a relevância normativa do problema do caso e do problema decidido pela
norma. A norma não constitui mais o prius metodológico como aconteceu no
positivismo. Hoje o ponto de partida do discurso jurídico é o caso concreto. A norma
não é vista já como uma premissa lógica mas como um eventual critério de solução de
um caso juridicamente relevante.

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Já vimos que os princípios normativos são mais extensos do que as normas que
os concretizam, ou seja, eles poderiam ser sempre concretizados por outras normas mais
ou menos diferentes em razão do grau de indeterminação desses princípios. Isto
ajuda-nos a compreender que a norma jurídica, ao lado de uma dimensão racional – o
seu fundamento nos princípios jurídicos, tem uma decisão imperativa, decisória, volitiva
ou de autoridade. Elas são prescritas numa opção politica e estratégica. Elas têm va lor
vinculante que advém da legitimidade e da autoridade de quem as impõe. Assim, o
momento de criação é indispensável já que o grau de abstracção dos princípios é muito
maior do que o das normas, o mesmo principio pode ter diversas concretizações (todas
possíveis) então é nesse momento legislativo que o legislador vai optar por uma dessas
concretizações por razões politico-estratégicas. Tarefa de criação que vem ajudar o juiz
na sua tarefa já que pode lançar mão destas normas em vez de lançar mão directame nte
de um princípio. Em suma, a validade afirmada nos princípios não impõe
necessariamente um certo direito positivo. A relação entre o princípio e a norma não é
uma relação de necessidade mas sim possibilidade. O direito positivo não é um
resultado necessário de validade normativa. Ele não se deduz dessa validade, embora
tenha de se mostrar nela fundado e ser perante ela possível.

Juris prudência: hoje afirma-se uma separação de poderes no sentido de uma


interdependência de poderes e não no sentido rígido do positivismo. Entende-se hoje
que o legislador tem a prerrogativa mas não tem o monopólio da criação do direito. No
momento da resolução do caso concreto o juiz também está a criar direito. Ora, se o
julgador também cria direito então a jurisprudência não pode deixar de afirmar-se como
um estrato do sistema.
Nas palavras de C. Neves ele é uma objectivação e estabilização de uma
experimentada realização do direito, com o valor que resulta de uma presunção de
justeza, dessa realização e que só poderá ser posta em causa por posições diferentes ou
contrárias de acordo com o ónus da contra-argumentação.

Dogmática e doutrina: hoje a dogmática não é meramente reprodutiva,


propondo modelos de decisão para os problemas jurídicos (sobretudo para os que vão
emergindo inovadoramente) que vão auxiliar o juiz na resolução dos casos concretos.
Temos, assim, uma dogmática autenticamente constitutiva. Razão pela qual as sentenças
dos juízes e as peças forenses dos advogados, os pareceres dos jurisconsultos não se

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limitam a invocar normas legais e invocam muitas vezes posições da doutrina. Muitas
vezes o caso concreto é precisamente resolvido de acordo com estas posições (sobretudo
quando não há norma ou esta é susceptível de várias interpretações).

Realidade jurídica: é a consideração da realidade jurídica, não apenas como


campo de aplicação do direito, mas como um estrato do sistema, que nos permite
afirmar que o sistema é aberto e é por isso que podem surgir casos radicalmente novos,
que não podem ser reconduzidos ao sistema jurídico pré - constituído, mas que são
juridicamente relevantes. Por exemplo, novas formas contratuais como o “know- how”,
o “factoring”, “sponsoring” as “warrants”. Tudo manifestações de que a realidade
jurídica é um estrato do sistema - é ela própria que faz surgir o direito.

Regras procedime ntais: há um conjunto de regras procedimentais que o jurista


deve utilizar para poder desempenhar, de modo adequado, a tarefa que lhe está cometida
- a da realização do direito. Pois só com elas conseguirá articular adequadamente os
diferentes estratos do sistema. No fundo são as legis artis, as regras próprias do ramo
jurídico, certas operações técnico - argumentativas (ex. técnicas de inquirição das
testemunhas) - posição de P. Bronze. C. Neves - não considera este estrato.

Vejamos agora as presunções de que beneficiam os vários estratos do sistema.


Todas elas são diferentes e elidíveis, isto é, podem ser afastadas desde que se
fundamente esse afastamento (ex. os princípios beneficiam de uma presunção de
validade mas tal é elidível uma vez que os mesmos estão sujeitos à erosão do tempo). O
que é valido num momento pode deixar de o ser noutro.
Assim, os princípios beneficiam de uma presunção de validade.
As normas beneficiam de uma presunção de autoridade relacionada com a
legitimidade politico-jurídica de quem as impõe.
Os precedentes jurisdicionais são decisões anteriores de casos concretos, não
sendo entre nós vinculativos como nos países anglo-saxónicos. Mas se as decisões
jurisdicionais forem consideradas prático-normativamente adequadas pela comunidade
jurídica elas serão consideradas vigentes. Quando se resolve um caso, há que atender
aos casos já resolvidos, no fundo é o princípio da igualdade que aqui está em causa. Se a
decisão anterior for adequada não há razão para o decidente não largar mão do princípio
da inércia e decidir da forma como o caso já tinha sido decidido considerando o

79
precedente procedente. Por isso eles gozam de uma presunção de justeza, presume-se
que constituem uma decisão judicativa do caso concreto, isto é, uma decisão
materialmente justo – adequada ao caso, e uma decisão normativamente adequada, isto
é, adequada ao sistema.
Os modelos práticos de decisão propostos pela dogmática gozam de uma
presunção de racionalidade; a realidade jurídica goza de uma presunção de eficácia; os
bordões procedimentais gozam de uma presunção de prestabilidade. Todas estas
presunções se sintetizam na (presunção de vigência) jurídica. “Direito há só um, o
vigente e mais nenhum” – Pinto Bronze.
Há que acrescentar que o sistema jurídico não se apresenta em termos estáticos,
mas dinâmicos, havendo uma constante dialéctica entre os diferentes estratos que o
entretecem.

b) O problema (caso juridicame nte decidendo): o problema traduz a


intencionalidade problemática dos casos decidendos para cuja solução se exigem os
juízos decisórios que mobilizarão como fundamento o sistema. Mas a solução só será
correcta se for adequada à problematicidade dos casos. Apesar de o problema não ser
uma aporia (problema não solúvel, não se divisa o iter a percorrer), ele é sempre a
expressão de um obstáculo, de uma dúvida nascida na relação entre uma pressuposição
(com as suas exigências de cumprimento) e uma situação real que resiste a esse
cumprimento. Assim, um problema é uma questão que a experiência suscita para o qual
se não divisa imediatamente uma solução, mas para o qual é possível encontrar uma
solução mediata. Assim, nos problemas nós pressupomos sempre um referente que dá
sentido à realidade, caso contrário nem nos apercebíamos que tínhamos um problema.
Por isso, ficam excluídos dos problemas os que nada sabem (burros) e os que tudo
sabem (deuses).
Para o positivismo o problema não era mais do que um conjunto de factos
empíricos que se encontravam previstos na hipótese da norma e era a identificação
desses factos concretos com a hipótese da norma que justificava a aplicação lógico-
dedutiva da norma ao caso. Não se encaravam os problemas como casos específicos que
reclamavam uma solução materialmente fundada. Hoje vemos o problema como um
caso único e infungível que tem de entrar em diálogo com o sistema. Reconhece-se hoje
que é necessário relevar o mérito específico do caso porque os casos não podem ser
vistos como meros correlatos das normas.

80
A realidade não constitui os seus casos para eles corresponderem integralmente à
hipótese da norma. A realidade transcende sempre a imaginação do legislador. Como tal
o problema não é hoje um conjunto de factos empíricos que se subordinam a uma
norma. Vejam-se as seguintes situações: a) pode surgir um caso que contenha todos os
elementos típicos previstos num tipo legal e não obstante a norma que prevê aquele tipo
legal não vai ser mobilizada para a resolução daquele caso porque com aqueles
elementos típicos concorrem outros que dão uma fisionomia particular ao caso e
justificam uma solução diferente da prevista na norma; b) pode surgir um caso que não
esteja previsto em nenhuma norma e não obstante nós vamos mobilizar uma norma
porque entre o problema do caso e o subjacente à norma há uma intencionalidade
analógica.
O problema é o prius metodológico e o modus metodológico, é o ponto de
partida e a perspectiva de actuação do jurista. Como o sistema é aberto, estando em
permanente constituição, não podemos dizer que só são jurid icamente relevantes os
problemas que se enquadram em arrimos dogmáticos pré-objectivados. Temos de
relevar também o direito que não é mas devia ser.
O caso traduz-se, assim, num problema que será um problema jurídico, porque
se pressupõe a juricidade. O que permite qualificar um problema como juridicamente
relevante é o sentido específico que se reconhece ao direito. Como diz Heidegger o
problema é sempre perguntar algo a algo por algo. É um perguntar porque se enuncia o
problema através de uma pergunta; perguntar algo – o sentido, a intencionalidade do
problema, a algo – o objecto problemático, por algo, o pressuposto, o fundamento, a
juricidade que dá sentido e leva fazer a pergunta. O sentido que se pergunta ao objecto
perguntado é um sentido de direito.
Ele há-de ser um problema jurídico concreto – situação concreta vivida por
pessoas determinadas que podem ter posições divergentes em relação ao problema. O
carácter concreto do problema jurídico traduz a ideia de que parte da situação
pressuponde a juridicidade e voltando depois à situação. O discurso é uma circular mas
não quer dizer que seja tautológico, sendo uma espiral – o caso surge-nos como um caso
concreto porque o problema se põe numa certa situação e para essa situação. O contexto
de emergência do caso e a situação concreta vão ser determinantes para definir a
relevância jurídica concreta daquele problema.
Em conclusão, cada caso é composto por determinadas circunstancias concretas
que fazem dele um caso único e infungível, isto é, um caso que e xige um juízo

81
autónomo sobre o seu mérito específico. É á luz deste juízo que temos de encontrar para
o caso uma solução materialmente adequada. Por isso é que o caso-problema é objecto
de metodologia – o caso é antes de mais um problema e sendo-o é um problema
jurídico, ele pressupõe o sistema jurídico e as suas exigências constitutivas e é um
problema jurídico concreto. O seu contexto de emergência e a situação concreta vão ser
determinantes para determinar a sua relevância. Assim, o caso objecto é um problema
jurídico concreto.

2. O esquema analítico do modelo metódico:

Trata-se do modelo que o julgador deve seguir para reso lver os casos com que se
depara. Isto implica o respeito por dois objectivos: a justiça material, isto é, a adequação
do problema concreto. A solução do caso há-de apresentar-se como materialmente justa,
mas tal não é suficiente, uma vez que não podemos esquecer o sistema e, por isso, é
necessário que se alcance também a justiça normativa, isto é, a adequação ao sistema.
Divide-se em dois grandes momentos. A questão de facto e a questão de direito. Cada
um destes dois momentos divide-se, por sua vez, em outros dois momentos.

A- Questão de facto:
Comporta dois momentos fundamentais:
- A determinação do âmbito de relevância jurídica do caso: a primeira coisa que
o jurista deve fazer é saber se o caso coloca ou não uma questão de direito. Partindo do
caso, o jurista vai pressupor o sistema, para com base nessa pressuposição saber se está
ou não perante um caso jurídico. Na verdade, cada caso é composto por um conjunto de
facto. O jurista deve analisá- los e seleccionar aqueles que são relevantes para o direito e
aqueles que não o são. Depois de determinar os factos que são juridicamente relevantes
para o direito, o juiz vai enquadrar o caso num determinado campo dogmático. Estamos
aqui perante aquilo a que chamamos de qualificação. Em suma, do que se trata é de
delimitar e determinar o âmbito e o conteúdo de relevância jurídica do problema
jurídico concreto.
- A comprovação do âmbito de relevância jurídica do caso: é fundamentalmente
o problema da prova, é este o momento da prova. Sabemos que quaisquer factos que

82
sejam alegados terão que ser provados. Mas, em termos metodologicamente correctos, a
prova não deve ser compreendida como a procura da demonstração científica de uma
verdade teorética, autónoma do juízo de decisão jurisdicional, como defendia o modelo
moderno- iluminista. Havia uma autonomização dos aspectos jurídicos dos momentos
factuais. O Problema da prova era reduzido à averiguação científica de puros factos. A
prova deve ser sim compreendida como a comprovação de uma verdade prática
intersubjectivamente significante. Há hoje uma revitalização da concepção
argumentativa, que já não teorética, da prova jurídica. A prova deixa de ser uma prova
de factos puros e passa a ser a específica comprovação que os problemas jurídicos,
como problemas práticos exigem. Assim, a verdade jurídica é uma verdade prática e não
uma verdade científica. Ela é uma verdade em si mesma função da intenção
especificamente jurídica, isto é, dos objectivos práticos que o direito se propõe na
resolução dos problemas jurídicos.
Não se trata, na verdade prático-jurídica, de uma verdade menos exigente do que
a verdade científica, mas de uma verdade distinta. É uma verdade dialógica,
intersubjectiva, que aflora numa relação sujeito-sujeito.

B – a questão de direito:
Também ela comporta dois momentos fundamentais: a da questão de direito em
abstracto e a da questão de direito em concreto. A primeira tem por objecto a
determinação do critério jurídico que haverá de orientar e fundamentar a solução do
caso concreto. A segunda é o problema do próprio juízo concreto que há-de decidir esse
caso.

B1 – questão de direito em abstracto: aqui o jurista vai resolver do is problemas,


num primeiro momento vai olhar para o sistema e determinar o critério jurídico que
hipoteticamente o há-de orientar na resolução do caso concreto. Este é o problema da
selecção do termo aplicável, num segundo momento o juiz tem de interpretar a norma
mobilizável, interpretação esta que será orientada pelo caso.
B2 – questão de direito em concreto: neste momento vai fazer-se a
experimentação que confirma ou infirma a justeza da mobilização do critério feito no
momento anterior. É neste momento que o juiz vai proferir o juízo decisório que vai por
fim a controvérsia concreta.

83
Apesar desta distinção, não podemos reparar na actividade do juiz estes
momentos. Esta distinção é mais didáctica expositiva que metodológica. Há uma
incindível unidade entre as duas questões. Assim, a selecção do critério jurídico não
pode desligar-se do sentido de solução que é solicitado pelo caso. Pois o critério só na
solução vai obter a sua confirmação. Por outro lado, a solução concreta não poderá
deixar de ser o resultado da assimilação do critério pelo juízo decisório concreto. Há
uma constante dialéctica entre elas. Pinto Bronze considera que a analogia está presente
em todos estes momentos. Na questão de facto e no primeiro momento – o da
determinação do âmbito de relevância jurídica do caso - temos um momento de
objectivação e um momento de qualificação. No de objectivação está presente a
analogia de objectivação tematizante – o decidente tem de olhar para o complexo dos
factos e verificar quais os relevantes e quais os irrelevantes, pressupondo sempre as
exigências constitutivas da normatividade. Há aqui uma dialéctica entre sistema e
problema. O jurista vai ter de recortar o âmbito de relevância do problema e, para isso,
vai confrontar o problema autonomizado com a intencionalidade problemática do direito
que permite objectivar aquele problema. Dai que já neste primeiro momento exista
analogia. No momento de qualificação verifica-se analogia de qualificação
especificante. Neste momento, o jurista vai enquadrar o problema objectivado num
campo temático preciso, vai confrontar aquele problema com a intencionalidade
problemática da normatividade, eis a analogia. No segundo momento de comprovação
da relevância jurídica do caso verifica-se aqui a analogia de comprovação
problematizante. No âmbito da prova, visto como uma forma de uma verdade prática, as
partes vão tentar trazer à correspondência o pré-objectivado e qualificado problema
jurídico e a intencionalidade problemática da juridicidade circunstancialmente relevante
- mais uma vez a analogia. No âmbito da questão de direito em abstracto, aquando da
determinação do critério e/ou fundamento aplicável verifica-se aqui a analogia de
disquisição explicitante. Esta solução tem um carácter meramente hipotético e
pressupõe um prévio juízo sobre o mérito específico do caso concreto.
Baseia-se no juízo de confrontação entre a intencionalidade problemática do
caso concreto e a intencionalidade problemática do problema que o critério
seleccionado tipifica - novamente temos uma analogia. Esta norma seleccionada será
depois interpretada e a interpretação é também ela analogia. Não é hoje possível falar-se
de interpretação em abstracto. A interpretação tem de ser feita sempre por referência às
especificidades do caso.

84
Na questão de direito em concreto o critério e / ou fundamento é submetido a
uma experimentação de modo a proferir-se o juízo decisório está aqui presente a
analogia de fundamentação ajuizante. Do que se trata é ver se há ou não uma
semelhança suficiente entre o problema do caso e a intencionalidade problemática de
estrato do sistema mobilizável – uma vez mais, a analogia.
Assim, segundo Pinto Bronze, a analogia está sempre presente em todos estes
momentos. Isto porque na realização do direito o jurista está sempre a comparar o
problema do caso com o problema do sistema.

Relação entre o caso e a norma: sabemos já que o caso visto como um


problema jurídico concreto é o prius e o modus metodológico. Quando dizemos que o
caso é o prius metodológico significa que a reflexão metodológica vai partir do caso, é
ele o ponto de partida. Quando dizemos que o caso é o modus significa que ele é a
perspectiva da reflexão metodológica. Ele é ponto de partida e perspectiva.
É a partir do caso que se desenvolve todo o esquema metódico. É esta a posição
que adoptamos hoje, mas as coisas nem sempre foram assim.
Para o positivismo o prius metodológico era a norma, sendo o caso não mais que
um conjunto de factos empíricos que se identificava com a hipótese da norma. A norma
era aplicada ao caso em termos lógico-subsuntivos através do silogismo judiciário em
que a norma era a premissa maior e o caso a premissa menor e a conclusão nada
acrescentava ao que já constava das premissas (da í que a interpretação da norma cabia
aos grandes sábios - aos hessenprofessoren - enquanto que a aplicação da norma era
deixada para o jurista decidente, considerando-se uma tarefa menor). Qual deve então
ser o prius metodológico? O caso ou a norma? Em suma, enquadra totalmente a norma
a decisão concreta do caso ou é a normatividade da norma função da concreta
problematicidade convocada pelo caso? Em ambas as posições o caso é o objecto. Mas
na primeira a norma é o prius metodológico, enquanto que na segunda é o caso o prius -
a norma não terá um sentido normativo que subsiste em abstracto, mas só quando a
norma é interrogada pela problemática do caso é que oferecerá a sua normatividade!
Para responder a esta questão vejamos as posições de alguns autores:

 Para Muller e Fikentscher, o caso é o objecto da metodologia, mas ele não é o


prius metodológico. Para estes autores, nos caos de existência de norma jurídica
aplicável, ou seja, fora do domínio das lacunas e do autónomo desenvolvimento do

85
direito, essa norma definirá o quadro de possibilidades normativas de realização do
direito que a invoque como critério. Só que essa norma-texto é apenas um elemento
para a realização jurídica, sendo necessária a sua concretização.
Muller sustenta a teoria do modelo de concretização. Este autor distingue entre
texto normativo (normtext) e a norma (a normatividade obtida pela concretização).
Distingue ainda programa da norma (normprogramm) que é definido legalmente e o
domínio normativo (normbereich) ou âmbito de aplicação da norma que é afirmado no
plano jurídico social. O texto da norma ou texto normativo é o programa da norma.
Qual o método proposto por este autor?
Partir-se-ia do texto da norma, é ele o prius metodológico, que vai definir os
sentidos possíveis dessa norma e as possibilidades de aplicação da norma em causa.
Depois vamos convocar uma espécie de elementos de concretização que podem ser
dogmáticos, técnico-jurídicos, jurídico-teóricos, etc. Estes elementos de concretização
são sempre mobilizados em função das exigências do caso concreto e das suas
características particulares. Assim de entre os sentidos possíveis de aplicação da norma
nos fazemos intervir estes elementos. Este é o processo de concretização e através dele,
chegamos a uma norma concretizada que é a norma de decisão. Esta é uma categoria
metodologicamente muito importante porque é esta norma da decisão que nos vai dar a
solução do caso. Daí o nome de teoria do modelo de concretização.
Analisando esta teoria concluímos que: o ponto de partida é ainda a norma. É a
consideração da norma que faz desenvolver o esquema da realização do direito. Mas
Müller tem também em conta as características especificas de cada caso concreto, sendo
as mesmas necessárias para a realização do direito, não estamos já no âmbito de uma
legalismo estrito, não estamos perante uma tarefa da aplicação do geral ou particular,
nem de subsunção da espécie a um género porque se releva já a autonomia do caso
concreto.
Fikentschen sustenta a teoria do “Fallnorm” (norma do caso). Não fala da norma
da decisão, mas fala da norma do caso concreto – a “fallnorm”. Para este autor o direito
só o é verdadeiramente quando cumprir simultaneamente uma exigência de justiça
como igualdade e uma exigência justiça material (adequação concreto material da
decisão). A primeira exigência alcança-se quando a decisão for adequada ao sistema e a
segunda quando a decisão for adequada ao caso. Como harmonizar estas duas justiças?
Para este autor vamos partir da norma e vamos interpreta- la em termos tradicionais, mas
depois vamos cruzar essa norma com o caso concreto que a mobilizou e partindo da

86
norma, mas sem perder de vista o caso concreto, vamos tentar adequar a norma ao caso.
Mas esta adequação tem limites, por nós não podemos ultrapassar os sentidos possíveis
da norma sob pena de violar a justiça e a igualdade. Não estamos sempre limitados pela
consideração do sistema jurídico. Chegamos então a um ponto de equilíbrio, ponto em
que não podemos adequar mais a norma ao caso sob pena de violarmos o sistema. Este é
o ponto de retorno hermenêutico e é este ponto que nos dá um sentido da norma do
caso, isto é, a solução do caso concreto, harmonizando-se as duas justiças.

 Autores como Viehmeg, Perelman, Wieacker, Kriele e Esser sustentam que o


prius metodológico pertence ao caso.
Esser entende que perante um caso concreto o juiz tem, antes de mais, de
arriscar um juízo prévio sobre a decisão que considera adequada ao caso. Num segundo
momento o juiz dirigir-se-á ao sistema e vai procurar um critério susceptível de
comprovar a decisão a que ele chegou previamente segundo aquele processo intuitivo. É
aqui importante a categoria da pré-compreensão. O juiz tem uma pré-compreensão do
sistema e é com base nele que vai arriscar uma decisão para depois procurar no sistema
o critério que lhe permita confirmar a decisão que arriscou. A própria interpretação é
determinada pela pré - compreensão porque o jurista escolhia o elemento interpretativo,
qualquer que ele seja, que lhe permitisse sustentar a decisão a que previamente tinha
chegado (ex. se houver norma pré disponibilizada privilegiará o elemento literal). No
fundo tudo parte do caso, em primeiro lugar está sempre o caso e pode parecer que deste
modo se hiperboliza a importância do caso mas a decisão proposta por Esser é sempre
composta por duas dimensões:
1 - Controlo de justeza, actua no primeiro momento em que arrisca uma decisão.
Nos termos deste controlo, a decisão tem de ser adequada ao caso concreto, tem de ser
uma decisão justa;
2- Controlo de concordância, actua num segundo momento, quando se procura o
critério que fundamenta a posição avançada inicialmente. Nos termos deste controlo a
decisão tem de ser adequada no sistema jurídico, tem de ser mostrar admissível perante
o sistema jurídico.
Kriele (pensamento da decisão racional - argumentativa e justa) vai recuperar a
importância da razão prática para o pensamento jurídico. Entende que as normas
jurídicas só serão correctamente interpretadas se permitirem uma justa decisão do caso

87
concreto. Segundo este autor há dois momentos da realização do direito. Um ir e vir de
primeiro grau e um ir e vir de segundo grau.
No ir e vir de primeiro grau o jurista, partindo do caso concreto, formula uma
“hipótese de norma” como seu critério atendendo à compreensão que ele tem do sistema
jurídico e aos efeitos possíveis a que essa norma conduzirá, tendo sempre em atenção
que aquilo que se pretende é alcançar uma solução justa. Este primeiro momento tem
como pólos o caso e a hipótese da norma.
No ir e vir de segundo grau os pólos já são a norma hipotética e em critério pré -
objectivado do sistema. Neste momento o juiz vai partir da hipótese da norma,
formulada no momento anterior e vai procurar no sistema jurídico um critério pré-
objectivado que corresponda aquela hipótese da norma. Se alguma corresponder será
esse o fundamento da decisão. Mas, de acordo com este autor a possibilidade de se
encontrar no sistema uma norma que corresponda a hipótese de norma formulada é raro,
uma vez que as normas do sistema têm um grau de abstracção que as afasta do carácter
concreto da hipótese da norma formulada atendendo apenas ao caso. Assim, quando não
encontrar essa norma no sistema pré objectivado o jurista deve recorrer aos precedentes
jurisdicionais, que beneficiam de uma presunção de justeza, presunção essa elidível
através da consideração dos efeitos a que conduz a aplicação do precedente em causa.
Se tal precedente, através da sua mobilização conduzir a uma solução injusta ele não
deve ser mobilizado. No caso de não existir tal precedente ou de o mesmo não ser
aplicável, o autor admite o recurso aos critérios elaborados pela dogmática. Critérios
que beneficiam de uma presunção de racionalidade, presunção esta mais fraca do que a
dos precedentes. Se também não for possível recorrer a estes critérios doutrinais, o
jurista orientar-se-á pelos princípios ético - argumentativos da razão prática.
Conclusões:
a) Apesar de Muller e Fikentscher verem a norma como o prius metodológico,
não podemos dizer que eles sejam legalistas, porque eles relevam adequadamente o
mérito do caso concreto. Não recorrem ao silogismo judiciário como acontecia no
positivismo.
b) Apesar de Esser e Kriele verem o caso como o prius metodológico, não
podem ser acusados de converter o pensamento jurídico numa casuística, pois o
problema concreto emerge sempre no horizonte do sistema, o problema convoca sempre
o sistema. Caso que é condicionado pelo sistema, uma vez que estes autores olham
sempre para o sistema para sustentar a decisão tomada com base nesse caso concreto. O

88
que não quer dizer que apenas sejam conside rados como juridicamente relevantes os
casos que possam ser reconhecidos ao sistema.

Qual então a posição a tomar? Aquela que vê o caso como prius metodológico
ou aquela que vê a norma como esse prius? Perante perpectivas apresentadas por
autores de igual mérito não podemos dizer sem mais que uns estão mais certos do que
os outros. No entanto, há hoje algumas razões para entendermos que o caso deve ser
visto como o prius metodológico e como a perspectiva metodológica.
A) Todo o sistema metodológico se inicia com a questão de facto – o jurista tem
de analisar os factos e perceber o que está em causa nesse caso concreto. Quando o
jurista olha para o sistema à procura de uma norma, a norma que o mesmo vai mobilizar
é seleccionada em função das especificidades do caso concreto;
B) a interpretação feita dessa norma é feita não em abstracto mas atendendo às
particularidades do caso;
C) A delimitação do espaço livre do direito é feita não a partir do sistema mas a
partir do caso. Naqueles casos que são inteiramente novos, o juiz vai ter de saber se são
ou não casos juridicamente relevantes. Este é o problema de juridicidade.

Inte rpretação Jurídica

A interpretação deve ser vista como um acto metodológico de determinação do


sentido normativo de uma fonte jurídica. Este acto tem como objectivo a utilização
adequada de uma norma do sistema. Como critério orientador da solução do caso
jurídico concreto.
A interpretação jurídica deve ser vista como uma interpretação constitutiva, no
sentido em que ela contribui para a criação da própria juricidicidade vigente. Isto é
assim porque a interpretação não é feita em abstracto. Ela é feita tendo em conta as
exigências concretas do problema jurídico a resolver. Mas o facto de considerarmos que
a interpretação é também ela constitutiva da normatividade jurídica vigente. Levanta-se
o problema de saber qual a legitimidade do poder judicial para criar direito no quadro de
um Estado de direito que postula o principio da legalidade e o principio da separação
dos poderes. Na verdade, estes princípios não podem ser vistos em termos formais. Eles
devem ser perspectivados numa intencionalidade material. O principio da legalidade e

89
da obediência à lei não deve hoje ser entendido como uma estrita e formal obediência à
lei. Trata-se, sim, de uma obediência ao direito. Também o principio da separação dos
poderes não é hoje entendido como era no positivismo. Hoje fala-se em
interdependência de poderes. Por outro lado, a plausibilidade do juízo decisório para
resolver um caso jurídico concreto, está sempre dependente de uma fundamentação
adequada. Está sempre dependente da racionalidade mobilizada.
O pensamento jurídico tradicional distingue quatro problemas no âmbito da
interpretação:
a) O objecto;
b) O objectivo;
c) Os elementos;
d) Os resultados;

a) Objecto da interpretação: está em causa saber o que se interpreta. Para


o pensamento jurídico tradicional o objecto da interpretação é a norma - texto, ou seja, o
texto das normas legais. A norma é considerada como texto. Como tal à questão de
saber o que se interpreta, a resposta seria um texto jurídico. O texto da norma não se
identifica com a letra da norma. O texto é composto por dois segmentos: a letra e o
espírito. A estes dois elementos correspondem diferentes elementos da interpretação. À
letra corresponde o elemento literal, ao espírito correspondem os elementos, históricos,
sistemáticos e teleológico. O elemento teleológico era rejeitado pela escola da Exegese
e só foi afirmado por Savigny na segunda fase. Para a teoria tradicional a le tra conferia
por si só um sentido à norma que era um sentido pré-jurídico. Havia situações
excepcionais em que a letra era clara e inequívoca (in claris verbis non fit
interpretanda). Nestes casos prescindia-se da interpretação, não sendo necessário
interpretar a norma. Se a letra não fosse clara e inequívoca o que aconteceria na larga
maioria dos casos, era necessário recorrer aos outros elementos da interpretação
conformadores do espírito (histórico, sistemático e teleológico) para determinar de entre
o circulo de sentidos possibilitados pela letra da lei qual o sentido que melhor se
adequava à vontade do legislador. Savigny afirmava que “a interpretação é a
reconstrução do pensamento que se exprime na lei contanto que ele seja cognoscível na
própria lei”.

90
Há, assim, a assunção do postulado segundo o qual a letra da lei afirma um
sentido pré jurídico o que depois o espírito aditará o sentido jurídico. Esta teoria da
interpretação radica em três pressupostos:
1- Carácter constante do valor linguístico de qualquer texto, ou seja, o valor
linguístico de um texto é sempre o mesmo, independentemente do contexto em que
surge esse texto.
2- Inalterabilidade do significado das expressões linguísticas comuns
quando usadas num texto jurídico, ou seja, essas expressões linguísticas teriam o
mesmo sentido que têm quando usadas na linguagem.
3- Autoridade do sentido filológico-gramatical em relação ao apenas à
posteriori apurável sentido jurídico, ou seja, existiria um sentido filológico comum que
é um sentido primeiro ao qual depois se acrescenta um sentido jurídico.
Estes três pressupostos são inaceitáveis e é a sua inadmissibilidade que
conduzirá à rejeição desta teoria da interpretação. O primeiro é falso quando dissocia o
texto do seu contexto de emergência. Isto porque o se ntido ou o valor linguístico de um
texto está sempre dependente do contexto 4 , do momento histórico e do interlocutor a
que se dirige. As expressões podem ter determinado sentido num contexto e outro
diferente noutro contexto. O Segundo é também falso ao cindir os sentidos comuns e
jurídico de uma dada preposição, isto porque as palavras comuns quando utilizadas num
texto jurídico adquirem um sentido próprio que é o sentido normativo (ex. conceito
jurídico penal de coisa). A electricidade em linguagem comum não será uma coisa, mas
para efeitos penais a electricidade deve ser considerada uma coisa para efeitos do seu
furto). O terceiro é também inaceitável ao contrapor na norma em anterior sentido
comum e em ulterior sentido jurídico, isto porque não é possíve l determinar um sentido
pré jurídico numa dada preposição o que há, é, desde o inicio, um sentido unitário e que
é um sentido jurídico, sentido que há-de ser determinado tendo em conta o sistema
jurídico e as exigências constitutivas do caso que mobiliza aquela norma. Daí que se
conclua pela inadmissibilidade desta teoria, uma vez rejeitados os pressupostos em que
ele se baseia. Uma vez mais, aqui se vê a dialéctica entre problema e sistema. Na
verdade, a norma não pode ser interpretada em abstracto como se pretendia na teoria
tradicional em que a interpretação resultava do jogo abstracto entre a letra e o espírito
da lei. A interpretação deve ser feita tendo em conta as particularidades do caso e é por

4
Do chamado “jogo de linguagem” (wittgenstein) em que certo texto emerge.

91
isso que não podemos aceitar a ideia de que quando a le tra fosse clara e inequívoca não
era necessária a interpretação. Ela é sempre necessária, desde logo porque a norma é
geral e abstracta e o caso é particular e concreto. Daí que mesmo um texto claro tenha
que ser interpretado. A afirmação da clareza do próprio texto resulta já de um processo
interpretativo, não sendo admitido o velho brocando in claris verbis, non fit
interpretanda.
Hoje entende-se que o objecto da interpretação não é a norma texto, ou seja, a
norma enquanto corpus semântico que comunica um sentido literal, mas sim a norma
problema, isto é, a norma enquanto regra prática normativa que se revela apta para
orientar a solução de um problema ou de um série de problemas a que se reconhece
relevância jurídica.
Por outro lado, na interpretação da norma vamos confrontar o problema do caso
com o problema subjacente à norma (ao estrato do sistema mobilizado) por isso, em
rigor, não podemos distinguir interpretação de analogia. A interpretação é também
analogia.

b) Objectivo/finalidade da inte rpretação: Pretende-se responder à questão


o que é a interpretação visa determinar? O que com ela se visa atingir.
Tradicionalmente, em resposta a esta pergunta, contrapunham-se duas teorias contrárias:
1- Teoria subjectivista: com a interpretação pretendia-se averiguar a
vontade do legislador (vontade histórico-psicológica) que se exprime no texto da lei.
Assim o objectivo essencial da interpretação seria o de reconstruir o real pensamento do
legislador histórico formulado na lei.
2- Teoria objectivista: a interpretação deve procurar obter o sentido
objectivamente assimilado pelo texto da lei, independentemente da vontade real do seu
autor.
O ponto comum entre ambas é a consideração do texto como objecto de
interpretação. As divergências estão essencialmente na consideração do que é o espírito
da lei (no âmbito da cisão tradicional entre letra e espírito), para a teoria subjectivista
seria a vontade do legislador, para a objectivista o sentido inerente à própria norma. Daí
que a primeira se dirija sempre ao legislador e a segunda à lei, baseando-se em
concepções diferentes do que é o direito. Para o subjectivismo é ele um conjunto de
imperativos imputáveis ao legislador que imporia por sua livre decisão politica. Para o

92
objectivismo, pelo contrário, o direito é uma ordem objectiva em que se assimila o
projecto comunitário de uma intencionalidade própria, em que as leis são tomadas em si
e não como livre criação de alguém .
Estas teorias mobilizaram diferentes argumentos a seu favor. O subjectivismo ao
procurar a vontade do legislador histórico afirmou a segurança jurídica e o principio da
separação de poderes, mas poderia originar uma inaceitável fossilização do direito se
mediasse um longo período de tempo entre a entrada em vigor da norma e a ocorrência
do caso concreto que mobiliza essa mesma norma. O objectivismo ao tratar apurar o
sentido da lei afirmava a diminuição temporal das leis e deste modo concorria para
realizar a historicidade do direito e a sua conformação à vida, visando mais a justeza ou
a rectidão das soluções. No entanto, era susceptível de criar o perigo do arbítrio judicial.
Atendendo a estas razões acabaram por se afirmar teorias mistas ou de síntese. O
legislador português, no artigo 5º do Código Civil, exprime uma atitude deste tipo,
sobretudo na intenção que transparece dos trabalhos preparatórios. Aí fala-se de dois
momentos fundamentais a ter em conta: o intérprete deveria primeiro promover o
sentido histórico que o legislador tivesse atribuído à lei (subjectivismo). Se esse
momento não fosse decisivo (e atendendo sempre ao limite do nº2) haveria de
recorrer-se a outros elementos, orientando-se em último termo pela presunção do
legislador razoável (nº3 objectivismo). O nº1 denota este carácter misto através dos
critérios que propõe: “circunstancias em que a lei foi elaborada” – subjectivismo;
“condições especificas do tempo em que é aplicada”, aceitação do valor- limite do texto
(nº2). Objectivismo tal como a presunção de legislador razoável do nº3.
Mas nós sabemos hoje que o objecto da interpretação não é a norma-texto, como
consideravam aquelas duas teorias, mas a norma problema, por isso a contraposição que
hoje avulta é a de interpretação dogmática versus interpretação teleológica.
A interpretação dogmática refere a norma ao sistema jurídico adequadamente
compreendido na sua pluralidade de estratos. Ela tende por isso a formalizar o direito.
A interpretação teleológica procurava determinar a teleologia da norma partindo
da ideia do direito como intenção prática que se pretende ver realizada. Ela te nde por
isso a instrumentalizar ou funcionalizar o direito.
Mas, a dogmática hoje não é conceitual, mas sim uma dogmática de
fundamentação - ela tem uma intenção prática, elabora critérios para a resolução dos
casos jurídicos mais complexos. Por outro lado a teleologia de que se fala hoje é uma
teleonomologia, isto é, os fins que o direito quer ver realizados não são fins

93
heteronomamente impostos, mas são as intenções práticas que desde o início
caracterizam o direito enquanto direito. Os fins são os referentes de sentido que
modelam a própria normatividade e esses referentes têm de ser convocados para
fundamentar as decisões. Vemos, então, que a interpretação dogmática acentuou a
dimensão do sistema ao passo que a interpretação teleológica acentua a dimensão do
problema. Mas, sabemos hoje que o sistema só nos interessa atento a sua
intencionalidade problemática e se a dogmática tem essa função prática e a interpretação
teleológica considera os fins que são intrínsecos ao direito e que modelam a própria
normatividade, então não há uma verdadeira contraposição entre estas duas formas de
interpretação. Elas não se contrapõem mas sim complementam-se. Na ideia de que deve
ser revelada, quer a dimensão axiológica do direito, quer a singularidade do caso
concreto.

c) Ele mentos da interpretação: a teoria tradicional considera que esses


elementos eram quatro: gramatical, histórico, sistemático e teleológico. O texto da
norma que era o objecto da interpretação, era composto por dois elementos: a letra e o
espírito da lei. A cada destes elementos correspondiam diferentes elementos da
interpretação. A letra correspondia o elemento gramatical, ao espírito correspondiam os
elementos histórico, sistemático e teleológico. Na compreensão tradicional, o elemento
básico da interpretação era o elemento gramatical. Era no quadro definido pelo
elemento gramatical que eram chamados a actuar os outros elementos da interpretação.
A letra da lei tinha um valor negativo: delimitaria a interpretação, sendo apenas
admitidos os sentidos da lei que fossem possíveis segundo o texto, e um valor positivo
de entre os sentidos possíveis, seria mais forte o que melhor correspondesse ao texto.
Com a jurisprudência dos interesses subvalorizou-se o elemento gramatical e
sobrevalorizou-se o elemento teleológico, o que permitiu a interpretação correctiva. Nos
termos desta interpretação correctiva, face às especificidades das circunstancias
concretas, o decidente inconsiderava a letra da lei para respeitar a vontade normativa da
norma. Ao nível da teoria tradicional, se subsistisse uma indeterminação insuperável ao
nível da consideração da letra recorrer-se-ia ao espírito da norma constituída pelos
restantes elementos: o elemento histórico, analisando a génese do preceito, através dos
trabalhos preparatórios, a historia do direito e das partes legislativas, as circunstancias
sociais do seu aparecimento. O elemento sistemático tem a ver com a compreensão da
norma no seu contexto, incluindo o preceito no domínio jurídico de que faz parte e ate

94
na unidade da ordem jurídica. O elemento teleológico impõe que o sentido da norma se
determina pela ratio legis, isto é, função do seu objectivo prático.
Qual a relação entre os diversos elementos da interpretação? Como é que os
mesmos se conjugam? Não podemos dar a esta questão uma resposta em abstracto O
relevo dos elementos da interpretação só pode ser determinado em face ao caso
concreto. Terá maior relevo aquele elemento que, perante o problema do caso concreto,
tiver maior força argumentativa na utilização da norma como critério de solução
daquele problema. Em abstracto não se pode dizer qual delas terá maior relevo, é o caso
que solicita a afirmação de um elemento em relação aos outros. Daí que não seja
qualquer possibilidade de hierarquização entre os vários eleme ntos em abstracto.

d) Resultados da interpretação: o que é que se obtém com a


interpretação? Tendo em conta a distinção tradicional entre letra e espírito da lei
podem-se verificar uma de três hipóteses:

1- Inte rpretação declarativa: a letra e espírito coincidem totalmente, ou


seja, o significado gramaticalmente enunciado pelo texto exprime adequadamente o
sentido que lhe é imputável pelos outros elementos da interpretação.
2- Inte rpretação restritiva: a letra é mais ampla do que o espírito. Aqui
vai restringir-se o sentido textual da lei para coincidir com o espírito.
3- Inte rpretação extensiva: a letra é menos ampla do que o espírito. Vai
alargar-se o sentido textual imediato da lei dentro dos seus sentidos possíveis para o
fazer coincidir o espírito. Note-se que não alargamos sem mais a letra, mas apenas no
sentido mais imediato, não se indo alem dos sentidos possíveis, caso contrário,
entendia-se que já estávamos no domínio da analogia.
Para além destes resultados interpretativos podemos falar de mais dois ad mitidos
pela teoria tradicional:
i. Inte rpretação ab-rogante ou revogatória: quando a conciliação entre a
letra e espírito da lei se mostra impossível, ou porque a expressão é absolutamente
incorrecta (caso pouco provável) ou porque há uma contradição insaná vel entre as duas
disposições legais. Nestes casos, o intérprete deve desconsiderar a norma em causa.
ii. Inte rpretação enunciativa: quando atribuímos à norma um sentido que
não está expresso na norma, mas que ele virtualmente admite, uma vez que chegamos a

95
esse sentido através de argumentos lógicos, como os clássicos argumentos a pari (por
identidade de razão) a fortiori (por maioria de razão), a contrario, ad absurdum, etc.

Todos estes resultados da interpretação cabiam no quadro dos objectivos


tradicionais da interpretação, fosse o definido pelo subjectivismo, fosse o definido pelo
objectivismo. Mas com a acentuação da interpretação teleológica surgiram novos e mais
ricos resultados, que têm de comum o facto de aceitarem já a preterição do texto a favor
do cumprimento efectivo da intenção prático-normativa da norma. A jurisprudência dos
interesses tinha já chamado a atenção para a interpretação correctiva pela qual se admite
que o intérprete viole ou sacrifique (corrija o texto da lei para respeitar a vontade
normativa da norma), sempre que, por exemplo, por alteração das circunstâncias que
estiveram na base do preceito, o respeito pelo teor verbal implicasse a frus tração
daquela intenção prático- normativa.
Hoje falamos também de redução e extensão teleológica.
Na redução teleológica exclui-se do campo de aplicação de uma norma casos
que estão abrangidos pela sua letra com fundamento na teleologia imanente à mesma
norma. Por exemplo, a norma que prescreve em geral a anulabilidade de “negócios
consigo mesmo”, a sua teleologia é a defesa do interesse do representado contra o
prejuízo que o representante lhe fosse provocar em seu benefício. Este fundamento
excluirá a aplicação da norma a uma doação feita pelo representante a favor do
representado. O negócio estaria abrangido pela hipótese da norma, mas à teleologia
importa que o seu regime não se aplicasse neste caso já que a sua aplicação resultaria
em prejuízo àquele “a quem se propunha proteger”. No nosso ordenamento - artigo 261º
CC - tal negócio não era anulável mesmo atendendo apenas à letra do preceito.
Na extensão teleológica, alarga-se o campo de aplicação de uma norma, com
fundamento na sua teleologia a casos que não estão abrangidos pela sua letra. Como
exemplo, o caso decidido pelos tribunais Alemães em que uma viúva pretende obter do
responsável pela morte do conjugue a compensação pela perda de uma pensão da
segurança social que obteria se o marido estivesse vivo, sendo que a norma aplicável
não abrangia na sua letra esta compensação preterida: no entanto, foi concedido
atendendo à teleologia da norma.
É preciso não confundir a redução e extensão teleológica com a interpretação
restritiva e interpretação extensiva. Nestas últimas, o que se pretende é uma
coincidência entre a letra e o espírito da lei. A interpretação é feita em abstracto. Na

96
redução e extensão teleológicas procede-se à interpretação mesmo para além dos
possíveis sentidos do texto, atendendo à teleologia da norma. Aqui a interpretação não é
feita em abstracto. Vamos confrontar a norma com o caso e depois, atendendo à
teleologia da norma, vamos ver se ela deve ou não ser mobilizada para resolver aquele
caso. O que se faz é colocar face a face dois problemas – os suscitados pelo caso
concreto e o implicado pela norma. Estamos perante um discurso analógico.

Conclusões:

 A interpretação não pode ser feita em abstracto. A norma é sempre


mobilizada em função do caso concreto. Só no momento da aplicação é que sabemos
como podemos interpretar o preceito em causa. Por isso, não faz hoje sentido falar de
interpretação restritiva e extensiva porque estas pressupõem tão só o jogo entra a letra e
o espírito da norma. É também por isso que hoje se diz que só no momento que
tradicionalmente se designava por aplicação da norma, que era posterior ao da sua
interpretação, é que está terminada a tarefa da interpretação. Hoje reconhecemos a
existência de um continuum entre o que tradicionalmente se designava por
interpretação, integração e aplicação. Entendemos hoje que a interpretação se consuma
na decisão concreta e a interpretação que se faça de uma norma vai contribuir para
enriquecer e reconstituir essa norma.
 Toda a interpretação radica em ponderações de carácter analógico. Vamos
proceder a um confronto entre problema tipificado pela norma e o prob lema suscitado
pelo caso concreto.
Da análise do problema da interpretação retiramos um argumento que sustenta
a ideia de que o caso é o prius e o modus metodológico.
Na interpretação jurídica não se trata de compreender e explicitar o texto de
uma norma legal mas sim de utilizar adequadamente uma norma do sistema como
critério orientador na solução de um caso jurídico concreto o que significa que o
problema da interpretação não é hoje um problema hermenêutico-cognitivo mas sim
pratico normativo. O que se pretende é obter uma solução justa atendendo às
particularidades do caso concreto. Hoje não queremos entender o sentido textual de uma
norma mas verdadeiramente interpretá-lo.

A questão de direito e m abstracto:

97
O problema que está aqui em causa é o da norma aplicável, isto é, o problema da
determinação do critério jurídico que hipoteticamente vai orientar o decidente na
resolução do caso concreto.
Há desde logo duas ideias a reter:
Esse critério terá de ser encontrado tendo em conta a intencionalidade
problemática do caso concreto. Temos de partir das especificidades do caso e, tendo-as
em conta, procurar um critério de solução;
Vamos procurar este critério no horizonte do sistema jurídico em que se
coloca aquele problema. Mais uma vez estamos perante a dialéctica entre sistema e
problema.
Quando o jurista parte para a procura de uma norma pode obter uma de duas
respostas:
a) Uma resposta afirmativa: encontra uma norma que hipoteticamente o vai
auxiliar na resolução do caso;
b) Uma resposta negativa: não encontra uma norma que o auxilie. Tal pode
acontecer porque, como sabemos, o sistema não é pleno, ele tem limites, não nos dá
sempre um critério de solução para o caso. É, por isso que se fala de dois campos de
realização do direito:
Realização do direito por mediação da norma;
Realização do direito sem mediação da norma. Este último problema é o
tradicionalmente designado problema das lacunas.
Todavia o sistema está sempre presente, mesmo nos casos em que não
encontramos no sistema uma norma por mediação da qual possamos resolver o
problema concreto.
Isto é, pressupondo as exigências do sistema que podemos afirmar que aquele
caso é um caso juridicamente relevante e é um caso radicalmente novo.
Qual então o critério que o jurista há-de seguir para escolher a norma? Será
considerada aplicável a norma ou normas do sistema jurídico que forem hipoteticamente
adequadas para o tratamento judicativo-decisório do caso ou problema jurídico a
resolver.
Dizemos hipoteticamente porque a selecção da norma é se mpre hipotética. A
norma seleccionada é apenas uma hipótese de solução do caso concreto, é um projecto
de solução. Isto porque a norma seleccionada ao nível da questão de direito em

98
abstracto vai ser depois submetida a uma verdadeira experimentação metodológica ao
nível da questão de direito em concreto. Só neste último momento é que vamos
confirmar ou infirmar a justeza da mobilização da norma que fizemos no momento da
questão de direito em abstracto.
Dizemos que a norma aplicável será a norma adequada quando respeitar duas
coordenadas:
Coordenada sistemática: a norma aplicável há-de mostrar pela sua própria
aplicabilidade que o caso concreto é assimilável pelo sistema jurídico. Respeita-se o
postulado da igualdade;
Coordenada problemática: a intencionalidade da norma mobilizada há-de ser
susceptível de relevar a intencionalidade problemática do caso concreto. Respeita-se o
postulado da justiça material.
Quando ou em que termos podemos dizer que a norma é adequada neste sentido,
ou seja, quando é que ela cumpre estas duas coordenadas? Para o pensamento jurídico
tradicional o problema era solucionado em termos simplistas: o caso era visto como um
conjunto de factos empíricos e sempre que estes factos coincidissem com os factos
presentes na hipótese da norma, a norma em causa seria lógico-subsuntivamente
aplicada ao caso concreto.
Mas a concepção positivista esquece que a realidade é sempre mais rica que a
imaginação do legislador. Quando os casos surgem na realidade, surgem com
características particulares que fazem com que não se identifiquem totalmente com as
hipóteses das normas criada pelo legislador. No fundo, a realidade jurídica não constitui
os seus casos para corresponderem logicamente aos conceitos previamente traçados nas
normas. Por um lado há casos que preenchem todos os elementos previstos num certo
tipo legal, mas que para alem desses apresentam outros elementos que concorrem com
os primeiros, dando um sentido particular ao caso, reclamando para o caso uma solução
diferente da prevista na norma. Por outro lado há casos que não têm todos os elementos
previstos no tipo legal mas que são casos análogos aos previstos na norma e que
solicitam por isso uma solução igual à prevista na norma em causa.
Por tudo isto rejeitamos a teoria positivista, os casos jurídicos concretos nunca
surgem na realidade como surgem nas normas!
Temos sempre de partir do caso e quando olhamos para o caso concreto vemos
que ele é constituído por vários elementos factuais ou circunstanciais de facto. Vejamos
agora esses elementos factuais.

99
Os casos apresentam as chamadas circunstâncias exemplares. São os elementos
do caso concreto que se identificam com os elementos do tipo legal. Eram apenas estes
os elementos que a teoria positivista considerava esquecendo que para alem destes há
outros mais.
No caso há também as circunstâncias do caso que são os elementos do caso
concreto que lhe dão uma fisionomia particular e individual. Circunstâncias que não
estão directamente previstas nos tipos legais, que sem retirarem necessariamente o
carácter típico daquele caso fazem dele um caso único e infungível a exigir uma decisão
que só a ele convém (ex. factores de determinação da medida da pena como é o
comportamento anterior e posterior do autor do crime, a intencionalidade do dolo, etc.).
É pelo facto de os casos apresentarem “circunstâncias do caso” que não
podemos vê- los como meros correlatos lógicos da hipótese da norma.
Mas, no caso concreto podem surgir também circunstâncias irrelevantes em
geral: circunstâncias que serão sempre irrelevantes quaisquer que sejam as perspectivas
jurídicas pelas quais o caso venha a ser considerado. Podem surgir ainda circunstancias
que sendo irrelevantes para a aplicação de certos tipos se mostram já relevantes para a
aplicação de outros tipos. Podem ainda participar do caso circunstâncias que referem o
caso simultaneamente o caso simultaneamente a vários tipos legais. Pode haver também
circunstâncias que dão ao caso uma fisionomia e um relevo jurídico de todo imprevistos
pelos tipos legais disponíveis.
Em conclusão a mobilização de uma norma tem de ser sempre precedida de um
juízo autónomo sobre o mérito específico do caso decidendo, juízo que é insusceptível
de se fundamentar na norma que se considere aplicável (caso exista). A norma não
poderá dizer por exemplo que as circunstâncias para si irrelevantes não sejam relevantes
para outro sentido jurídico que o caso possa assumir. Nem a totalidade das normas o
poderão fazer, já que se poderá dizer sempre que se trata de um caso omisso, não
previsto no sistema mas que tem relevo jurídico. Não são as normas que definem o
jurídico, elas não delimitam por si mesmas a juridicidade (temos sempre que partir da
analise do caso). Por outro lado sabemos que as normas são prescritas apenas na
previsão das hipóteses típicas, o que não exclui a possibilidade da sua aplicação a casos
não formalmente previstos e o seu afastamento a casos juridicamente previstos pela
norma. Estas são as situações de extensão e redução teleológica.
Podem também existir casos que apresentam elementos que os reconduzem a
mais de uma norma e só atendendo às especificidades do casos é que nós podemos optar

100
por uma norma ou combinar as normas de modo a alcançarmos um resultado jurídico
unitário para o caso.
Por outro lado há situações em que procedemos à aplicação indirecta de uma
norma, por recurso a argumentos a contrario e à analogia. Quando procedemos à
aplicação analógica é porque consideramos que apesar de não haver identidade entre o
problema do caso e o tipo de problema da norma, a semelhança entre os dois problemas
supera as diferenças e justifica a mobilização da norma para a resolução daquele caso.
Quando recorremos ao argumento a contrario é porque consideramos que a divergência
entre o problema do caso e o tipo de problema da norma é tal que implica para aquele
caso um tratamento oposto ao previsto na norma. Só é possível optarmos por um destes
processos se atendermos às particularidades do caso a partir de um juízo autónomo
sobre o caso concreto pelo qual se atende no seu sentido juridicamente relevante.
Em conclusão, o que decide da mobilização ou não de uma norma para resolver
o caso concreto não é a identidade de situações entre a situação prevista na hipótese da
norma e a situação concreta, mas sim o confronto entre problemas: o do caso concreto e
o tipo de problemas na norma. Deste modo para seleccionar uma norma que
hipoteticamente possa auxiliar o jurista na resolução do caso ele terá de primeiro fazer
um juízo prévio sobre o mérito especifico do caso, depois terá de assumir a norma, não
como uma norma-texto, mas sim como uma norma-problema. Seguidamente vai
confrontar o problema do caso concreto com a intencionalidade problemática da norma
(o problema típico abstracto pressuposto na norma). Por fim, ele vai decidir se vai ou
não mobilizar a norma para a resolução daquele caso. A norma deve ser mobilizada se o
problema do caso e a intencionalidade problemática da norma forem análogos, ou seja,
aqui atenta-se à analogia entre os problemas. Concluímos, mais uma vez, que a
realização do direito logo a este nível de selecção da norma aplicável é perpassada por
considerações de carácter analógico.
Depois de o jurista ter seleccionado ele vai interpreta- la, ou seja, determinar o
seu exacto sentido hipotético- normativo, o que já estudamos. Depois de seleccionada a
norma e determinado o seu sentido normativo da norma aplicável o jurista vai
submete- la a uma experimentação no âmbito da questão de direito em concreto.

A questão de direito e m concreto:

101
Chegados à questão-de-direito em concreto, podemo-nos encontrar numa de
duas situações: ou encontrámos no sistema jurídico uma norma aplicável e a questão-de-
direito em concreto será resolvida por mediação dessa norma ou não obstando o relevo
jurídico do caso concreto não encontrámos no sistema jurídico uma norma que possa
auxiliar o decidente na resolução do caso. Nesta hipótese estamos no âmbito da
realização do direito por autónoma constituição normativa. Vamos analisar uma destas
situações:

a) A realização do direito por mediação da norma : podemos distinguir


quatro momentos : (1) o momento da relevância, (2) o momento da teleologia, (3) o
momento dos fundamentos e (4) o momento da consideração dos resultados da decisão.
Este último momento é eventual. Estes momentos distinguem -se apenas
didacticamente, formando, na prática uma unidade dialéctica da concreta realização do
direito por mediação da norma.
1- Momento da relevância: neste momento, o juiz vai confrontar o âmbito de
relevância material da norma mobilizada, isto é, a relevância hipotética com o âmbito de
relevância material do caso decidendo, isto é, a relevância concreta. A partir desse juízo
de confrontação podemos chegar a uma de três conclusões:  A relevância material do
caso é fundamentalmente assimilada pela relevância material da norma;  A relevância
material do caso só parcialmente e de certo modo é assimilada pela relevância material
da norma; A assimilação não é possível.

Assimilação normativa da relevância: se concluirmos que o âmbito de


relevância material do caso é total ou parcialmente assimilado pelo âmbito de relevância
da norma podemos estar perante um dos seguintes tipos de assimilação:
a) Assimilação por concretização: todos os elementos fundamentais da
relevância concreta do caso estão presentes na relevância hipotética da norma
mobilizada. Estaremos perante uma directa assimilação do caso pela norma. Sem que
isso nos faça esquecer a distância entre a norma que é geral e abstracta e o caso que é
individual e concreto. Pelo que tal assimilação não significa uma identificação entre os
factos constitutivos do caso concreto e os factos que compõem a hipótese da norma (a
lógica identificação que corresponde ao esquema subsuntivo da aplicação do direito). A
assimilação significa sim uma concretização.

102
b) Assimilação por adaptação:
 Extensiva: a relevância material do caso tem um sentido intencional análogo
ao da relevância material da norma, mas a relevância material do caso é mais ampla que
a da norma, ou seja, os elementos que integram a relevância concreta excedem os
elementos que integram a relevância hipotética (o caso tem mais elementos do que os
previstos na norma) Exemplo: um menor deslocado, os pais estão vivos mas não
“disponíveis” para conceder a autorização necessária em muitos actos de vida corrente
que vão alem dos previstos no 127º CC. Põe-se o problema da validade de um desses
actos: ora a alínea a) prevê a possibilidade de o menor praticar actos de administração
ou disposição de bens que adquiriu por trabalho e se é certo que a relevância material do
caso excede a da norma o facto é que o seu sentido intencional não deixa de ser análogo
– a situação de necessária autonomia em que se encontra o menor, quando deslocado do
seio da família é uma situação da mesma linha de relevância material da que é
correlativa ao direito de disposição dos rendimentos do trabalho, pois é apoiando-se a si
próprio que governa a sua vida.

Restritiva: os elementos que compõe o âmbito da relevância material do caso


são menos do que aqueles que a norma releva. No entanto, os dois âmbitos de
relevância não deixam de ser análogos o que autoriza a que a norma se possa ter por
critério jurídico dessa relevância concreta menos ampla. Exemplo, o caso da relações
jurídico contratuais fácticas nos quais as particularidades de certas relações as justificam
que a estas lhes seja aplicado o regime jurídico das relações contratuais, não obstando a
ausência de uma declaração negocial expressa ou tácita. Tal como acontece no caso em
que uma pessoa presta determinada informação errada. Normalmente nenhuma
consequência jurídica daí há a retirar, mas no caso de se tratar de um profissional, que
presta essa informação erra sobre matéria que é objecto da sua profissão. Atendendo ao
caso concreto e às expectativas geradas na outra parte, poder-se-á aplicar- lhe as regras
da responsabilidade contratual, apesar de não existir contrato entre ambos. Aqui a
relevância material do caso só de forma restrita ou limitada realizava a relevância
jurídica contratual mas de forma suficientemente análoga para justificar as normas
contratuais como critério jurídico.

Não devemos confundir a assimilação extensiva e a restritiva com as tradicionais


interpretação extensiva e restritiva. Estes resultados tradicionais exprimem a tipificação

103
de um conjunto de relações entre a letra (a expressão verbal) e o espírito (pensamento
normativo) da lei. Relações pensadas em abstracto, independentemente do caso
concreto. Ora, no momento da experimentação da norma - hipótese que estamos agora a
considerar não salientamos essa relação abstracta entre a letra e o espírito, o
fundamental é o juízo analógico entre a relevância material do caso jurídico concreto e a
relevância material hipotética da norma. Situamo- nos no plano da concreta realização
do direito, questionando em que medida e como a norma, compreendia no seu sentido
problemático , poderá ser critério juridicamente adequado a problematicidade do caso
concreto. Daí que a assimilação por adaptação (extensiva ou restritiva) vá mais ao
encontro da extensão e redução teleológicas, só que nestes últimos casos não estamos só
a comparar âmbitos de relevância, estamos já a considerar a teleologia da norma.

c) Assimilação por correcção: aqui a assimilação da relevância material do caso


pela norma exige uma correcção do âmbito da relevância típica da norma (para que
possa assimilar a relevância do caso) Para que se proceda a esta assimilação é
necessário que se verifiquem dois pressupostos: 1. o caso seja atípico, ou seja, a
relevância material do caso seja atípica; 2. se conclua que se vio laria a intencionalidade
normativa da norma se não se desse ao caso atípico a solução que a norma previu para o
caso típico, ou seja, a relevância tipificada, mostra-se inadequada, porque insuficiente
ou incoerente à intenção problemática da norma. Inadequação que justifica
juridicamente a correcção para que se cumpra a intencionalidade normativa da norma.
Mas a assimilação por correcção tem limites  O caso tem de ser atípico mas não pode
ser uma excepção, se o for, não podemos convocar essa norma. Também não
podemos convocar a norma se o caso não integrar de todo o âmbito de relevância da
norma. Isto acontece nas situações em que nos encontramos perante aquilo que
tradicionalmente se designava por lacunas ou perante uma situação de norma obsoleta.
Neste último caso, a norma mantém-se formalmente em vigor, mas não pode ser
convocada porque perdeu a eficácia, os problemas que a realidade apresenta são
diferentes daqueles para os quais a norma foi pensada.
A assimilação por correcção pode ser:
Sincrónica: quando no momento da criação da norma, o legislador, estava em
condições de prever a situação atípica e não o fez de modo que é necessária esta
correcção. Exemplo, a norma que define o domicilio dos funcionários públicos – artigo
87º CC, já que atendendo a duas situações relevantes o domicilio será referido quer à

104
sede do serviço onde o funcionário desempenha a sua função, que à residência habitual.
Mas no caso de ele estar em comissão prolongada noutra localidade, ou seja, ausente da
sede e da residência habitual. A norma não considerou esta situação atípica, logo há que
proceder-se a uma correcção de forma a adequar-se à sua intenção normativa, fixar o
domicilio no local do exercício efectivo da função ou da residência efectiva.
Diacrónica: o surgimento do caso atípico resulta da alteração da realidade
histórico social. Quando o legislador prescreve uma norma ele atende a uma
determinada realidade histórico-social, se essa realidade se altera (e é normal que tal
aconteça pois a realidade é dinâmica) vai provocar o surgimento de problemas que o
legislador não considerou. O legislador não podia considerar estes novos problemas
porque no momento da criação da norma a realidade era outra diferente da que existe no
tempo do caso. Daí que seja necessária a correcção, exemplo, a norma que diz que o
aluno tem direito a adiamento do exame por internamento hospitalar. Se nas urgências
não havia uma cama livre e o aluno foi enviado para casa, apesar de reunir todas as
condições para ficar internado, ele deve ter direito ao adiamento. É um caso atípico e
frustrar-se- ia a intenção normativa da norma se não déssemos a solução prevista na
norma. Para saber aqui se é uma correcção sincrónica ou diacrónica poder-se-á recorrer
aos trabalhos preparatórios de modo a analisar se o legislador estava em condições, à
época da criação da norma, de prever a situação atípica.

Não assimilação pela norma da relevância do caso: pode acontecer que a


assimilação da relevância material do caso pela relevância material da norma não seja
possível. Não podemos esquecer que os casos têm as suas especificidades e as normas
não são infinitamente elásticas. A realidade é dinâmica e coloca hoje problemas que não
se colocavam no momento em que o legislador criou a norma. Pode acontecer que uma
norma esteja formalmente em vigor e, no entanto, não seja convocada para resolver
casos concretos porque a realidade coloca problemas novos, de outro tipo. A norma
tornou-se, assim, obsoleta. Estamos perante um caso desses quando houve uma
alteração das circunstâncias histórico-sociais a que a norma vai referida ou porque já
não existia ou porque mudaram radicalmente, dai que ela já não possa adaptar-se à nova
situação, nem mesmo mediante correcção. Exemplo, a norma que pressupunha estrutura
patriarcal da família é obsoleta porque essa realidade sofreu uma mutação significativa.
A família como realidade sociológica e jurídica é hoje a pequena família e, isto, não

105
suscita os mesmos problemas que se suscitava no âmbito da grande família, nos
problemas novos.
Com isto revela-se a importância de um elemento estruturante de ordem jurídica
- a realidade jurídica. Ele não é um elemento passivo, antes se impõe à normatividade
jurídica. Assim, nos casos da norma obsoleta e das tradicionais lacunas nós estamos
perante o problema da realização do direito sem mediação da norma, ou seja, perante o
problema da realização do direito por autónoma constituição normativa.

2- Momento da teleologia: aqui nós vamos continuar o confronto entre a


norma e o caso, mas agora vamos dar especial atenção à teleologia da norma, isto é, aos
fins que a norma visa alcançar. É neste momento da redução e extensão teleológica.
Como já vimos não as podemos confundir com a interpretação extensiva e restritiva.
Nestas compara-se a letra e espírito da lei, considerando-se a norma em si mesma de
forma abstracta. Na redução e extensão teleológica a interpretação da norma é feita por
referência a um caso concreto. Confrontamos a norma e o caso e, depois, atendendo à
teleologia da norma, vemos se a norma deve ou não ser mobilizada para resolver o caso.
Adequadamente compreendidas as coisas a redução e extensão teleológicas
correspondem à assimilação por adaptação restritiva e extensiva, embora não se
confundam. Nestas o que está em causa é o confronto entre os âmbitos de relevância da
norma e caso. Naqueles também confrontamos a norma com o caso, mas para alem do
âmbito de relevância consideramos a teleologia da norma.
Relembramos que estes momentos apenas se distinguem para efeitos didácticos,
havendo uma dialéctica constante entre todos eles.

3- Momento dos fundamentos: as normas não têm apenas um determinado


âmbito de relevância e uma teleologia, elas têm também fundamentos que lhes
conferem validade. As normas vêem-se, por isso, duplamente transcendidas no processo
de realização do direito. Transcendidas por referencia ao caso concreto e ainda por
referencia aos princípios em que se fundamentam as normas.
Na verdade, os princípios normativos são constantemente no processo de
realização do direito. Por um lado, só compreendemos verdadeiramente o sentido de
uma norma se a referirmos a princípios. Por outro lado temos de referir a norma aos
princípios para vermos se ela está ou não em consonância com os princípios que a
sustentam.

106
Os princípios normativos são um estrato do sistema e são os fundamentos da
normatividade do sistema. É por isso que as normas têm de se mostrar sempre em
consonância com os princípios.
As normas manifestam uma indeterminação e abertura e a sua determinação e
objectivação é feita por referência aos princípios. É neste âmbito que se fala de uma
interpretação conforme os princípios. Nesta interpretação, passa-se da ratio legis à
fundamentante ratio iuris.
Quando procedemos à interpretação da norma se esta estiver em consonância
com os princípios que a fundamentam então a realização do direito não levanta
quaisquer problemas a esse nível. Mas pode acontecer que a norma não se encontre em
plena consonância com os princípios que a fundamentam e aqui podemos distinguir
duas situações conforme a incoerência entre a norma e o princípio seja mais ou menos
profunda: a) correcção da norma conforme os princípios : ao referir-se a norma aos
princípios verifica-se que os princípios que vão pressupostos pela norma e que a
fundamentam têm um sentido diferente do manifestado pela norma. Isto pode acontecer
por dois motivos - o legislador errou quando prescreveu a norma, isto é, assumiu os
princípios em sentido errado ou, os princípios fundamentantes da norma sofreram uma
alteração histórica do seu sentido, sendo que a consonância existente ao inicio deixou de
existir.
Nestas hipóteses estamos perante uma coerência falhada exigindo-se por isso
uma correcção. A jurisprudência dos interesses ao falar da interpretação correctiva faz
uma proposta idêntica à que estamos agora a tratar, só que enquanto que aquela
correcção era determinada pela relevância autónoma reconhecida ao caso, aqui a
correcção é determinada pelos fundamentos da norma.
Nestes casos de contradição entre a norma e os princípios em que se
fundamenta, a interpretação conforme os princípios, converte-se em correcção da norma
conforme os princípios, cujo objectivo é recuperar a coerência normativa falhada, sendo
apenas possível na medida e nos limites dessa coerência a recuperar.
B) Preterição e supe ração da norma pelos princípios: nestes casos não é
possível a correcção. A norma não se mostra apenas falhada na referência aos seus
fundamentos (por isso ou alteração destes) mas está em contradição com os
fundamentos de validade que devia respeitar. Nestes casos, segundo a ideia de que num
estado de direito material devemos dar preferência à justiça em detrimento da certeza e
segurança jurídica, devemos dar preferência aos princípios e resolver o caso

107
directamente com base nestes. Neste âmbito podem proferir-se decisões que violem a
norma, mas que respeitem o direito enquanto validade, isto é, decisões contra legem
mas secundum ius – de acordo com o sentido de validade do direito. Algo que é
admitido pelo próprio sistema jurídico vigente como co nsequência da sua juridicidade,
pelo que esta questão não se confunde com o problema da lei injusta – problema
referido ao sentido do direito. No nosso problema trata-se de dar preferência á ratio
iuris perante a ratio legis.
Fala-se de preterição quando os princípios que a norma viola já constituíam o
sistema jurídico ao tempo da prescrição da norma em causa pelo legislador. Fala-se de
superação quando os princípios que a norma viola tiverem sido assumidos pelo sistema
jurídico num momento posterior à prescrição da norma em causa, ou porque surgiu um
princípio novo ou porque os princípios já existentes adquiriram um novo sentido. Neste
caso, estamos perante uma norma que está formalmente em vigor, mas que perdeu a sua
vigência porque deixou de ser válida, tratar-se-á de uma norma caduca.

A interpretação conforme a constituição: este cânone interpretativo teve a sua


origem numa intenção de conservar as normas legais no quadro da constitucionalidade
(excluindo a sua inconstitucionalidade). Tradicionalmente entendia-se que com a
interpretação se alcançava um círculo de sentidos possíveis para a norma e, desse
círculo, devíamos lançar mão deste cânone interpretativo e dar preferência ao sentido
que se mostrasse mais compatível com os preceitos constitucionais. Mais tarde, passou
a entender-se o cânone no sentido de este exigir uma compreensão das normas que
permitisse integrá-las hierarquicamente no sistema jurídico como um todo, de forma a
não existirem problemas de insconstitucionalidade (tal como vimos para a interpretação
conforme os princípios, substituindo estes pela normatividade constitucional). Mas,
entendia-se que a interpretação conforme a constituição não podia iludir a
inconstitucionalidade das normas. Não era admissível que, perante uma norma
inconstitucional, lhe fossemos imputar por interpretação um sentido de forma a
compatibiliza- la com a constituição. Não se admitia, portanto, a correcção conforme a
constituição, neste sentido Gomes Canotilho. Castanheira Neves não concorda
inteiramente com esta teoria. Entende o autor que devemos considerar duas situações
distintas:
1. Se as normas violam de forma clara a constituição ela deve ser obviamente
considerada inconstitucional;

108
2. Se a norma não viola, de forma irrecuperável a constituição, nós devemos
corrigi- la, procedendo-se a uma correcção conforme a constituição, actuando de uma
maneira análoga à correcção conforme os princípios. Recupera-se na norma a
constitucionalidade falhada (por erro ou alteração circunstancial) mas que estava
presente na sua intenção. Com isto não é ferida a particular dignidade da normatividade
constitucional já que essa normatividade é afirmada através da correcção e, também
porque a norma corrigida não era tão grave que tivesse de ser alvo de sanção de
inconstitucionalidade.
4. Momento da conside ração dos resultados de decisão (mome nto eventual):
a questão que se coloca é a de saber se o concreto resultado social da decisão deve ser
considerado um factor metodológico a ter em conta para o sentido final da decisão. O
mesmo é pôr a questão de saber se a decisão jurídica concreta, para além de ter de ser
normativamente fundamentada, ou seja, adequada ao sistema e materialmente justa, ou
seja, adequada ao problema, não deverá ser também socialmente justificada (oportuna
ou aceitável) atendendo aos seus previsíveis resultados. Em suma, deverá a decisão ser
também socialmente oportuna? Autores como Kriele ou Teubner respondem
positivamente.
Caso respondemos afirmativamente trata-se de um novo cânone ou critério de
interpretação - o cânone da consideração dos resultados da decisão. De acordo com este
paradigma consequencialista na decisão concreta, o juiz devia ter em conta os resultados
ou efeitos sociais da decisão.
Estes efeitos sociais da decisão não se confundem com os fins ou efeitos que
dizem respeito à teleologia das normas, ou seja, os efeitos que a norma prevê e pretende
realizar. Digamos que efeitos internos. O que aqui está em causa são outros efeitos - os
efeitos que a decisão concreta é susceptível de produzir na realidade social consoante
ele se oriente neste ou naquele sentido, são os chamados efeitos externos, sucessivos ou
ulteriores ou reais (ex. efeitos jurídicos decorrentes de condenação do réu ao pagamento
de determinada quantia ou os efeitos quanto à habitação do réu resultantes da decisão
que dê procedência a uma acção de despejo). Deverá o juiz, ao decidir, relevar estes
efeitos da decisão?
Caso entendemos que sim, o juiz deve fazer sempre um juízo de prognose ou
previsão empírico-social. O juiz deve prever os efeitos que a aplicação da norma em
causa àquela situação concreta vai desencadear. São três as funções que podemos
atribuir a este cânone

109
 Função crítica: o juiz configura uma decisão e depois convocava o cânone da
consideração dos efeitos da decisão. A consideração desses efeitos funcionaria como um
sinal ou alarme que poria em causa a correcção ou justeza da decisão sempre que se
concluísse que os efeitos sociais da decisão seriam manifestamente indesejáveis ou
gravemente negativos. O que terá alguma analogia com a “golden rule” da “common
law” segundo a qual será de excluir um sentido de “state law” que conduza a resultados
absurdos, injustos ou imorais.
Função selectiva, optativa ou complementar: através da interpretação da
norma encontrar-se- ia um circulo de sentidos possíveis para a norma, depois
convocar-se-ia o cânone da consideração dos efeitos da decisão para, de entre esses
sentidos possíveis, escolher aquele que produzisse os melhores efeitos sociais ou os
efeitos que tenham o mais alto grau de desejabilidade.
Função reconstitutiva: a consideração dos efeitos da decisão alteraria a global
intencionalidade metodológica da decisão jurídico concreta.
Na verdade, as duas primeiras funções poderiam actuar em termos de
complementariedade, no âmbito do esquema metódico por nós proposto. Podemos
pensar o direito como uma validade e dizer que ele se realiza de acordo com o esquema
metódico que temos estudado e, depois, convocar a consideração dos efeitos nas suas
funções critica e complementar. Mas a terceira função implica uma alternativa: se
convocarmos a função reconstitutiva deixamos de ver o direito como uma validade e
passamos a entende- lo com base numa ideia de eficácia e oportunidade. A terceira
função leva- nos a afastar o modelo por nós defendido e a adoptar o modelo tecnológico.
Ora, nós já rejeitamos a racionalidade tecnológica com racionalidade especificamente
jurídica, porque ela nega aquilo que o direito verdadeiramente é - uma validade. Por isso
teremos de negar esta função reconstitutiva.
Mas será que podemos convocar este cânone para ele cumprir apenas as suas
duas primeiras funções?
Vejamos argumentos a favor do paradigma consequencialista:
1- Hoje tende a afirmar-se o carácter material e teleológico de realização do
direito. Alguns autores entendem que a convocação do paradigma consequencialista
pode integrar-se neste movimento de combate ao formalismo positivista. Algo afirmado
desde a jurisprudência dos interesses.
2- As decisões jurídicas são chamadas a actuar num determinado contexto social
e, por isso, não se pode ignorar o objecto social das decisões.

110
3- A consideração dos efeitos das decisões eliminaria a ideia da
irresponsabilidade do julgador na concreta aplicação do direito, chamando-o a assumir a
responsabilidade.
4- Sabemos hoje que a realização do direito não é uma mera operação formal.
Intervêm sempre valorações pessoais do julgador. A subjectividade do julgador está
sempre presente nas suas decisões. Certos autores ente ndem que o modo de controlar tal
subjectividade e de racionalizar as decisões é atender aos efeitos sociais das mesmas.
5- Se o juiz também cria direita, ou seja, se a função judicial tem poder
normativo criador dando origem ao “richterrecht”, então a sua actividade deve pautar-se
pelas mesmas intenções e critérios que orientam a prescrição legislativa. Assim,
também o julgador deve orientar-se pelos efeitos à semelhança do legislador.
6- Reconhecermos que o juiz assume uma tarefa de constituição do direito
coloca o problema da legitimidade da sua actuação, no quadro de um estado de direito
material onde se afirmam os princípios da separação dos poderes e da legalidade.
Entendem alguns autores que a forma de legitimar a actuação do juiz seria afirmar como
critério de decisão a consideração de certos efeitos sociais.

Vejamos agora alguns argumentos contra este paradigma:


1- O sistema jurídico tornar-se-ia contingente e perderia a sua autonomia.
2- A aceitação deste paradigma atentaria contra o postulado da obediência do
juiz à lei, uma vez que a consideração dos efeitos relevaria por decisão autónoma do
juiz e, possivelmente contra os efeitos jurídicos legais.
3- Cairíamos num puro casuísmo, este paradigma atentaria contra a certeza e a
segurança do direito e sacrificaria os princípios da igualdade e da universalidade.
4- O juízo de prognose que se impõe ao juiz é muito complexo (haveria de
envolver a consideração dos efeitos dos efeitos, assim como os efeitos secundários) e o
juiz não dispõe dos quadrantes técnicos que o legislador dispõe quando considera os
efeitos de uma prescrição legislativa. Por outro lado os efeitos já foram considerados no
momento da prescrição pelo legislador.
5- A ideia, de que, a consideração dos efeitos contribuía para a racionalização
das decisões é falsa. A consideração dos efeitos não é a consideração de quaisquer
efeitos, é a consideração dos efeitos desejáveis ou pretendidos e isto implicará sempre
uma opção por parte do juiz. Deste modo não afastamos as valorações subjectivas do

111
julgador, antes as convocamos. Desta maneira se coloca, agora contra esta tese, o
problema da legitimação dessas valorações por parte do decidente.
Castanheira Neves questiona se, apesar de adoptarmos o modelo normativo, este
não admitirá a consideração do cânone da consideração dos efeitos da decisão para
cumprir aquelas duas primeiras funções - a função complementar e a função critica.
De acordo com a função complementar ou selectiva há um círculo de sentidos
possíveis para a norma e dentro desse círculo o jurista deveria escolher aquele que
produzisse os melhores efeitos sociais. Mas esta função parte de um pressuposto errado
– entende que o modelo normativo por nós adoptado conduz sempre a uma
indeterminação decisória. A solução alcançada através deste modelo nunca excluiria
possibilidades alternativas. Assim, o modelo decisório apenas oferecia um leque de
soluções dentro do qual íamos fazer intervir a consideração dos efeitos da decisão.
Assim, os critérios normativos e os critérios dos efeitos seriam conciliáveis e os limites
daqueles acabavam mesmo por justificar a complementaridade deste. Só que as coisas
não são deste modo. Esta forma de ver as coisas reduz o modelo normativo a uma mera
interpretação textual que era própria do método jurídico. Hoje sabemos que as coisas
não se passam assim. O modelo metódico por nós proposto não conduz a essa
indeterminação decisória. Através dele é possível chegar a uma decisão concreta que se
fundamenta no juízo, tendo sempre em conta a intencionalidade problemática do caso,
dai que não faça sentido esta função complementar.
Por outro lado, a referida complementaridade seria, no fundo, uma verdadeira
alternativa ao modelo proposto, porque as decisões acabariam por não ser tomadas com
fundamento normativo numa validade jurídica vinculante, mas sim, com o objectivo de
se cumprirem as finalidades de um programa social (os efeitos sociais, a considerar
como desejáveis implicam um certo programa social ou um certo finalismo social)
definido exteriormente ao sistema jurídico ou mesmo contra ele, do qual será autor
inteiramente desvinculado o decidente ou as posições sociais de que faço eco. Assim
aquilo que se pretende como uma relação de complementaridade revela-se, na verdade,
como uma relação de alternativa. Ora, isto é inaceitável e, por isso, devemos rejeitar o
paradigma consequencialista nesta sua função complementar.
De acordo com a função crítica a consideração dos efeitos da decisão serviria
como alarme ou sinal que poria em causa a justeza da decisão a que o juiz chegava
sempre que se concluísse que os efeitos dessa decisão eram indesejáveis ou negativos.
A questão que se coloca é a de saber se devemos aceitar esta função, se devemos aceitar

112
este cânone como critério de correcção do modelo normativo. C. Neves entende que
também não podemos aceitar esta função porque a sua aceitação levar-nos-ia à aceitação
da ideia de que o direito é aquilo que é útil ao povo e esta ideia conduziria à
instrumentalização do direito que ficaria ao serviço de uma ideologia ou de um poder o
que conduziria inevitavelmente à arbitrariedade. Ex. se a consideração de
indesejabilidade dos efeitos referentes à habitação do réu que resulta da declaração de
desepejo prevalecerem contra a procedência concreta dos fundamentos jurídicos do
despejo, o que tal significa é a subordinação das valorações normativas do sistema às
contingentes valorações sociais do juiz e, como tal, a perda da validade do sistema e da
axiologia que ele implica, instrumentalizando as decisões , a um finalismo social.
Além de que levará a um casuísmo já que os efeitos a considerar não vão pré
valorados no sistema, serão efeitos possivelmente sempre diferentes atendendo à
situação decisória. Com o que se abriria a porta a uma jurisprudência da realidade,
transformado-se o poder do juiz num poder discricionário e absoluto. Mas, também não
podemos cair no extremo oposto e defender a ideia de fiat iustitia pereat mundus
“acabe-se o mundo mas faça-se justiça”, uma vez que o direito não se pode assumir
como uma ética da convicção, mas sim como uma ética de responsabilidade e esta
manda ter em conta as consequências da própria acção, ou seja, as consequências da sua
realização concreta. Mas as consequências que temos de considerar são os fins inerentes
à própria intencionalidade do direito enquanto direito. As intenções práticas que desde o
início caracterizam o direito são estes os fins que o julgador deve considerar e não os
efeitos sociais ou ideais da realização do direito. Em suma, o que se exige ao juiz é que
decida de modo a que as consequências da sua decisão judicativa não infirmem mas
confirmem o sentido da normatividade. É a essa teleologia que o juiz deve atender na
realização concreta do direito. Concluímos deste modo que esta função critica não é
também aceitável e que este quarto momento da consideração dos efeitos da decisão não
deve ser autonomizado na concreta realização do direito.

c) A realização do direito por autónoma constituição normativa: perante um caso jurídico


concreto, depois de determinado e comprovado o seu âmbito de relevância - questão de facto - vamos proceder à
questão de direito em abstracto onde se resolvem dois problemas - selecção de um critério jurídico aplicável e
interpretação.
M as, pode acontecer que a questão de direito em abstracto não obtenha solução, isto é, não encontrarmos no
sistema uma norma susceptível de ser mobilizada para a resolução daquele caso concreto.
Há aqui duas ideias que devemos reter:

113
1- O direito não se confunde com o sistema das normas positivas, nem sequer com o sistema jurídico global
constituído e vigente num qualquer momento histórico;
2- O juiz não pode abster-se de proferir uma decisão com fundamento na falta de um critério jurídico
aplicável, algo que o nosso artigo 8º/1 CC prescreve formalmente, podendo mesmo os juízes ser criminalmente e
civilmente responsáveis pela denegação de justiça.
Assim, o juiz vai ter de proferir uma decisão judicativa sem ter uma norma que o oriente na resolução desse
problema. Entramos no campo da realização do direito sem a mediação da norma, isto é, na realização do direito por
autónoma constituição normativa, ou seja, através de um juízo decisório em que o julgador tem autónoma
responsabilidade pela constituição dos próprios critérios e fundamentos do seu juízo. Note-se que no âmbito da
realização do direito por mediação da norma o jurista também opera a uma constituição normativa, só que nestes
casos, embora a decisão não surja da mera da aplicação da norma, o certo é que a decisão terá sempre a norma por
referência. A decisão está vinculada à norma. No âmbito da autónoma constituição normativa podemos distinguir
duas hipóteses:
 A ausência de uma norma positiva não significa uma total abertura ou um vazio normativo para o juízo
decisório. Não podemos esquecer que o sistema jurídico vigente, para alem das normas, é constituído também por
princípios e pelos critérios doutrinais e jurisprudenciais. Pode, então, acontecer que o juiz não encontre uma norma
mas possa recorrer a outro estrato do sistema para resolver o problema com que se depara. F alamos aqui de
integração intra-sistemática seguramente com uma autonomia constitutiva maior do que aquela que se reconhece ao
nível da realização do direito por mediação da norma.
Pode acontecer que não só exista norma como também não exista nenhum princípio, nem critério
jurisprudencial ou doutrinal que sustente o juízo decisório que o caso para si reclama. O caso é inteiramente novo, no
sentido em que o sistema constituído e vigente não sustenta essa decisão. Neste caso, estaremos perante uma
constituição normativa transsistemática. Assim, podem surgir casos inteiramente novos, que sejam juridicamente
relevantes. M as nós não podemos pensar que todos os casos são juridicamente relevantes. Assim sendo sustenta-se o
problema dos limites da juridicidade, porque se o sistema const ituído e vigente não define só por si o direito então
teremos de definir também os limites do direito para podermos saber quando é que o caso é um caso jurídico exigindo
para si uma solução de direito. Em suma, trata-se de ver quais as relações humanas abr angidas pelo direito e quais as
que não são.

Problema dos limites da juridicidade: este problema é correlativo de um espaço livre do direito. Falar dos
limites da juridicidade é perguntar até onde a realidade humana é objecto do direito ou se deverá cons iderar atingida
por ele. Há-de haver relações humanas abrangidas pelo direito e, outras que não estão abrangidas por ele. Daí que
haja um espaço do direito e um espaço livre do direito.
Não podemos confundir estes espaços (de direito e livre de direito) com o problema da limitação
sociológica dos espaços de não direito. Estes espaços são abrangidos pela intencionalidade própria do direito, mas,
por razoes sociológicas o direito se abstém de regular. Aqui há uma retracção, abdicação ou abandono do direito a
domínios que, em principio não seria de excluir. Ex.: Situações de discriminação ou legalização de certos
comportamentos como a IVG.
Enquanto que a questão dos limites da juridicidade tem a ver com os limites do direito que o seu próprio
sentido implica.
A posição do positivismo em relação ao problema dos limites da juridicidade:
Para a escola histórica, que deu origem à jurisprudência dos conceitos, a delimitação da juridicidade era
feita em termos formalmente dogmáticos com base na ideia da plenitude lógica do sistema. Pela interpretação das
normas obtinham-se certos conteúdos jurídicos, através dos quais se criavam conceitos que se agrupavam em

114
sistemas de conceitos. O sistema era assim, pleno, auto-subsistente e, sem lacunas. Como tal se o caso não
encontrasse solução no sistema do direito positivo então ele devia ser considerado juridicamente irrelevante e cairia
no espaço livre do direito. Para a escola da exegese a delimitação da juridicidade era feita em termos formalmente
lógicos por recurso ao p rincípio do universal negativo. Partia do pressuposto que o legislador tinha ponderado e
previsto todas as situações da vida. Se surgisse um caso que não encontrasse resposta no sistema das normas positivas
significava que o legislador o tinha ponderado mas lhe tinha dado uma resposta negativa (ex. nega o direito que se
quer fazer valer; considera licito o comportamento que se quer sancionar). Com isto acabava por se negar a existência
de um espaço livre de direito. O sistema jurídico abrangia toda a vida do homem. Apesar das diferenças podemos
considerar que as soluções a que chegam as duas escolas são semelhantes.
Vejamos a crítica a estas concepções: contra o principio do universal negativo foram enunciadas objecções
contra a sua própria validade lógica - adiantou-se que é inadmissível pensar-se que o legislador ponderou todas as
situações da vida concreta e lhes deu uma solução positiva ou negativa. Por outro lado, estas escolas exprimem uma
concepção de direito que é hoje inadmissível – a ideia positivista de que o direito se identifica com a lei. Hoje
sabemos que os casos jurídicos não são só aqueles que o sistema prevê. A ausência de previsão legal de uma
determinada questão não nos pode fazer concluir forçosamente que aquele caso não tem relevância jurídica. A única
conclusão que podemos tirar quando não existe uma norma aplicável é a de que o legislador não considerou a
questão, tendo nós de procurar a solução para alem do sistema jurídico positivo. Há muito se sabe que o sistema não é
pleno e fechado, mas sim lacunoso e aberto.
Os próprios autores positivistas acabaram por reconhecer a existência de lacunas, lacunas que eram
meramente aparentes, isto é, susceptíveis de serem integradas por uma correcta recolocação da norma no sistema
através de analogias legais e da analogia iuris e, num segundo momento o problema da delimitação da juridicidade
acaba por se confundir com o problema das lacunas.
Na verdade, o problema das lacunas é o problema correlativo ao próprio positivismo. Antes de se falar de
um sistema pleno em que os códigos dão resposta a todos os problemas, o problema não era o das lacunas mas sim, o
da determinação do direito subsidiário, isto é, o problema de saber quais as fontes de direito a que subsidiariamente se
podia recorrer quando o corpo principal da legislação se mostrasse insuficiente. A diferença está em que neste ultimo
problema trata-se de determinar o elenco das fontes do direito mobilizáveis como critérios para a realização do
direito, enquanto que no problema das lacunas vai pressuposto a ausência de uma fonte ou critério para essa
realização. O problema das lacunas só surge com o positivismo da codificação que marca a rigidez dessa fontes
convocáveis - apenas a lei. Hoje não faz sentido falar de lacunas visto que entendemos que o sistema é aberto.
Falamos sim de realização do direito sem mediação da norma. Só fez sentido falar de lacunas quando se pressupõe
um sistema pleno e fechado.
O que era então uma lacuna para o positivismo? O positivismo reconhece como lacuna aqueles casos
relativamente aos quais se pudesse concluir que a lei quer submeter à sua disciplina, sendo, no entanto, essa lei
omissa, incompleta ou contraditória quanto ao regime a que esses casos se deveriam submet er. Esta é a posição de
Zitelmann. Este autor entende que para a definição de uma lacuna devemos partir da interpretação da norma jurídica.
Haverá uma lacuna sempre que se chegar à conclusão que o caso deverá ser resolvido de acordo com aquela norma
mas a norma não nos diz os termos exactos pelos quais a questão deve ser resolvida. No fundo, a norma dá-nos
apenas o tipo de solução mas não nos indica qual das possibilidades devemos escolher no caso concreto – definição
de lacuna extraída da própria norma.
Outros autores tentaram definir as lacunas recorrendo às rationes iuris. Estas são os princípios consagrados
no sistema e/ ou fins e juízos de valor imanentes às normas legais. Haveria uma lacuna sempre que de acordo com
estas rationes o problema devesse ter uma resposta no sistema positivo e não a tivesse. Outros autores definem lacuna
recorrendo a essa ideia de teleologia imanente às próprias normas legais.

115
Em conclusão, todas estas posições pretendem definir uma lacuna a partir do próprio sistema. Vejamos
algumas críticas a estas concepções que definem lacunas a partir do próprio sistema. Estas posições não têm em conta
que podem surgir caos inteiramente novos, que não podem ser reconduzidos ao sistema já constituído e que são
juridicamente relevantes. Esquecem que esses casos dão origem, que por via jurisprudencial quer doutrinal a novos
institutos jurídicos. Ex. : abuso do direito, enriquecimento sem causa, responsabilidade pelo risco - surgem pelo
trabalho da jurisprudência e da doutrina.
Esquece ainda que há casos que exigem um regime especial, diferente do previsto na lei, isto é, há casos
que a decisão com base na lei é possível mas não é materialmente adequada. Por último esquece que há lacunas que
não resultam do facto de o legislador não ter previsto o caso, mas sim da evolução das circunstâncias histórico-
sociais. A realidade é dinâmica e a própria realidade jurídica é um estrato do sistema, por isso há lacunas que não
podem ser definidas a partir do sistema constituído.
Tudo isto nos permite tirar uma conclusão: a determinação daquilo que tradicionalmente se designava por
lacuna só é possível mediante um juízo autónomo sobre o mérito do caso concreto. Deste modo, vemos que o critério
de delimitação da juridicidade terá de definir-se na perspectiva do problema e não do sistema. É o problema e não o
sistema que vai delimitar a juridicidade. Se nós temos de olhar para o caso e se é o problema que vai delimitar a
juridicidade nós temos de encontrar um critério que nos permita olhar para o caso e dizer se ele é ou não um caso
juridicamente relevante. Nós vamos olhar para o problema e depois teremos de pressupor alguma coisa. M as aqui não
vamos ter o sistema positivo a funcionar como memória pré disponível como acontece na realização do direito por
mediação da norma. Nós vamos então pressupor a própria ideia de direito (isto porque uma lacuna é sempre resultado
de um juízo normativo, que atendendo à problematicidade do caso concreto e à sua relevância jurídica, conclui pela
inaplicabilidade de qualquer norma positiva a esse caso porque nenhuma oferece uma solução materialmente
adequada ao caso, isto é, uma solução adequada ao sentido jurídico concretamente relevante). Teremos de ter em
atenção às três condições de emergência do direito e depois vamos ver se elas se verificam ou não em relação ao caso
concreto. Quais são essas três condições?
a) Condição mundano social: o mundo é só um e os homens são muitos pelo que se colocará sempre o
problema da partilha desse mundo e esta partilha suscita conflitos;
b) Condição humano-existencial: o homem vive no mundo numa tensão dialéctica entre personalidade e
comunidade, isto é, para se realizar plenamente o homem tem por um lado de afirmar a sua individualidade e por
outro lado tem necessidade de se integrar na comunidade. Há aqui uma tensão de contrários, um conflito.
Estas duas condições mostram que é necessária uma ordem que venha regular os conflitos, mas esta ordem
não tem de ser necessariamente uma ordem jurídica. É a terceira condição que exige que essa ordem seja jurídica.
c) Condição ética: a ordem que se convoca há - de reconhecer cada homem com uma inelimitável dignidade
ética.
São estas as três condições que temos de pressupor para vermos se estamos perante um caso juridicamente
relevante. Não haverá juridicidade, não estaremos no domínio do direito e não se verificarem as condições
enunciadas. Só quando relativamente a uma situação concreta estiver em causa a repartição de um espaço social em
que se revele a dialéctica entre a autonomia e a integração comunitária do homem e que convoque a afirmação ética
do homem como pessoa é que estamos perante um caso juridicamente relevante.
É pela referência à primeira condição que se diz que o domínio do jurídico é a exterioridade, o mundo das
relações exteriores e não a intimidade. É em consideração à segunda condição que se afirma que o domínio da estrita
afirmação da subjectividade em que seja pura manifestação da autonomia ou liberdade pessoal (sem estar em causa a
integração comunitária) não tem a ver com o direito. E é com fundamento na terceira condição que certas relações,
em situações sociais de sentido comunitário mas em que não releva o reconhecimento impositivo da pessoa, se
excluem do direito ex. relações de amizade e amor.
Quais as consequências deste pensamento?

116
a) O problema da delimitação da juridicidade pressupõe sempre um juízo autónomo sobre o mérito
específico do caso, por isso o problema da delimitação da juridicidade é também um argumento para considerar que o
caso é o prius metodológico. A delimitação da juridicidade tem um carácter concreto. Só analisando a situação
concreta é que podemos dizer se estamos ou não perante um caso jurídico.
b) Significa que a priori nós não podemos definir o espaço livre do direito, não podemos delimitar os
domínios em que nunca intervirá. M esmo nos domínios da religião, da moral, da convivência familiar não se exclui
que possam surgir casos juridicamente relevantes.
Vejamos agora os limites da realização do direito por autónoma constituição normativa, para que possamos
dizer que ainda estamos no âmbito da realização do direito:
1. Limites objectivos: são os que temos vindo a analisar. Só vamos proceder à realização do direito
por autónoma constituição normativa se concluirmos que estamos perante um verdadeiro caso jurídico;
2. Limites funcionais: a autónoma constituição normativa é apenas uma modalidade de realização do
direito pelo que também ela tem de convocar a racionalidade especificamente jurídica.
3. Limites politico-constitucionais: dividem-se em dois grupos:
a. Reserva de legislador: concorrem aqui os princípios do Estado de Direito e o da separação dos
poderes e ainda o principio democrático. A tarefa do juiz, na concreta realização do direito, não se confunde com a
tarefa do legislador. Este actua de acordo com uma intencionalidade estratégica, enquanto que à concreta realização
do direito compete a intencionalidade da validade axiológico-normativa que o direito é chamado a manifestar.
Quando decide sem mediação de norma o juiz, não pode aproveitar esse facto para impor um programa ideológico
constitutivo por opções políticas particulares. Ao juiz não cabe a intervenção politico-social mediante uma atitude
reformadora e de planificação social. M as como nem sempre será fácil distinguir o jurídico do politico, sobretudo nas
grandes questões – as que implicam opções importantes de cunho também ético, religioso ou politico, ou questões
cuja solução convoque mais razoes de oportunidade do que fundamentos de validade. Aqui o princípio democrático
justificará que o decidente assuma uma auto-limitação no sentido da “judicial self restraint” a favor do legislador
vendo nelas questões políticas a que se absterá de impor uma solução juridicamente decisória. Desta forma se
preserva o princípio da independência judicial já que se afasta o decidente de tomar posições em questões, para que
não está preparado institucionalmente nem é funcionalmente competente, em que se correria o risco de menor
legitimação e autoridade, fomentando a perda na confiança social na sua função pela discutibilidade da decisão.
b. Reserva de lei: a CRP, nos artigos 164º e 165º, prevê matérias que são da exclusiva competência
da AR.
Limites normativo-jurídicos: decorre do facto de existirem no nosso ordenamento certos princípios que
têm uma função delimitadora, impedindo em certas circunstâncias a autónoma constituição normativa. Por ex.:
Principio da liberdade criminal ou domínios definidos por um numerus clausus.
Limites normativo-técnicos: há certos casos que implicam conhecimento puramente técnico e, como tal,
devem ser remetidos para um acto legislativo, porque o julgador não tem competência para os decidir.

Critérios e fundamentos da autónoma constituição normativa

Temos agora de encontrar o critério que oriente o julgador na sua tarefa de realização do direito sem
mediação da norma. Esse critério é a analogia – critério que mobiliza como que numa aplicação indirecta uma norma
ou uma decisão que prevêem directamente outros casos que não o que vai ser decidido. Norma e decisão que passam
a ser critérios para um juízo decisório que, em principio, não caberia no seu âmbito de relevância jurídica.

1.Características da analogia:

117
Analogia é etimologicamente um pensamento que pretende realizar a assimilação, a concordância, a
correspondência, através do logos de entidades diferentes numa unidade, isto é, é um pensamento que procura
encontrar semelhanças entre entidades diferentes. Para que possa existir têm de se verificar três características
fundamentais:
a) As entidades que se comparam são heterogéneas e a analogia não pode anular a sua autonomia e
especificidade, isto é, apesar da analogia as entidades têm de permanecer na sua diferença;
b) Os dois termos que se comparam têm de se situar no mesmo nível e pensamento e a conclusão tem de ser
também ela nivelada. O discurso deve situar-se sempre no mesmo nível. É por isso que se diz que a analogia é um
tipo de pensamento que discorre de particular para o particular - não há mutação de nível.
c) É necessário que haja um fundamento específico de integração que é o “tertium comparationes” a
justificar a racionalidade de associação na diferença.

2.O objecto da analogia:


O objecto da analogia identifica-se sempre com os casos jurídicos - o que comparamos são os casos
jurídicos. Isto pode causar alguma estranheza se tivermos em conta as tradicionais analogia legis e analogia iuris dos
sistemas de legislação como o nosso. Na analogia legis estabelece-se uma relação de semelhança entre um caso e uma
norma. Deste modo há uma mutação ao nível do pensamento, porque a norma é geral e abstracta e o caso é particular
e concreto. Na analogia iuris estabelece-se uma relação de semelhança entre um caso e um princípio geral de direito,
que é inferido de um conjunto de normas. Há também aqui uma mutação de nível.
Castanheira Neves entende que a analogia legis, tal como era concebida pelo positivismo não é verdadeira
analogia entre leis ou normas. M as entende que nessa analogia podemos dizer que estamos perante um confronto de
casos. De um lado o caso-tema, isto é, o caso concreto, de outro lado, temos o caso foro, isto é o caso tipificado e
resolvido pela norma ou um caso anteriormente resolvido num precedente jurisprudencial. Castanheira Neves entende
que a analogia iuris não é verdadeira analogia porque há uma mutação de nível e a analogia tem de ser sempre feita
num raciocínio do particular para o particular.
Pinto Bronze não concorda com esta posição, se dissermos que a analogia iuris não é analogia, então temos
de dizer que a analogia legis também não é analogia, porque se há mutação do nível quando comparamos um caso
concreto com um principio geral de direito, também há mutação de nível ao compararmos um caso com uma norma.
Para este autor não há uma mutação de nível. Na analogia legis os termos que se comparam são dos
problemas: o problema do caso concretamente decidendo e o problema subjacente à norma. Na analogia iuris os
termos que se comparam são igualmente dois problemas: o problema concretamente decidendo e a intencionalidade
normativo-problemática do principio geral de direito. Hoje não devemos falar de princíp ios gerais do direito, mas sim
de princípios normativos e também nestes, segundo P. bronze, o que releva é a sua intencionalidade problemática.
Para este autor, no fundo, toda a analogia é analogia iuris, no sentido de que a tertium comparationes, isto é, o
fundamento que justifica a associação na diferença é o próprio sentido do direito. É o constituendo conjunto das
exigências constitutivas da normatividade jurídica vigente. Toda a analogia é orientada pela ideia de Direito.

3. O sentido da analogia:
O sentido da analogia é aquele que resulta do principio da inércia, ou seja, se há um caso previsto e
solucionado pelo sistema e o juiz tem perante si um caso análogo, então faz todo o sentido que dê ao caso análogo a
solução prevista no sistema. Quem entender que a solução prevista pelo legislador não é adequada no caso concreto é
que terá o ónus da contra-argumentação, tentando argumentar convenientemente que apesar da analogia do caso, a
solução jurídica deve ser diferente da que foi dada ao caso anterior.
Deste forma garante-se a continuidade consistente e a objectividade, diminuindo o risco de decidir.
Broekman afirmava que a analogia transforma os riscos aceitáveis e a incerteza em expectativas razoáveis.

118
4. A índole intencional da analogia:
A questão que se coloca é a de saber se a analogia tem uma índole puramente lógica ou se tem uma índole
argumentativa. A conclusão hoje irrecusável é a de que a analogia não pode ser puramente lógica. Exige sempre uma
orientação e fundamentação metalógica (só são puramente lógicas as analogias exactas ou matemáticas e não as
analogias praticas nas quais se inclui a jurídica). Isto acontece porque os termos que se relacionam não são iguais mas
sim heterogéneos. A relação feita no raciocínio analógico é de semelhança ou de correspondência e não de identidade
ou igualdade. Não podemos convocar a lógica para justificar que a solução dada a um caso deve ser a solução a
defender para outro. Temos de convocar um fundamento que justifique que, apesar das diferenças entre os dois
termos, a semelhança há-de prevalecer. Este não será, então, um pensamento lógico, mas sim, um pensamento
argumentativo.

5. O fundamento normativo da analogia:


Hoje, adoptando uma perspectiva axiológico - normativa entendemos que o fundamento da analogia é o
principio da igualdade enquanto expressão imediata do principio da justiça, segundo a formulação clássica do
principio da igualdade “devemos tratar igualmente o que é igual e diferentemente o que é diferente”. Deste modo, se
os casos são semelhantes, então devemos ter soluções semelhantes. Neste sentido converge a generalidade do
pensamento jurídico mas não a sua unanimidade. Para o positivismo legalista o fundamento da analogia não era o
princípio da igualdade. O recurso à analogia ou estaria excluído p orque se o caso não estivesse previsto no sistema
cai no espaço livre do direito ou, então, o seu fundamento estaria na vontade expressa ou presumida do legislador.
Seria esse o verdadeiro fundamento jurídico da analogia, sendo o principio da igualdade um mero fundamento
político.
Esta é uma posição inaceitável, uma vez que lhe está subjacente uma concepção inaceitável do direito – a
ideia de que o direito se identifica com a lei. Numa perspectiva racionalista do fundamento da analogia, defendida por
Bobbio e Betti, que também tem características positivistas, o direito é visto como um sistema, que é um sistema
racional. Numa primeira fase estes autores entendem que o fundamento da analogia está na coerência interna do
sistema que exige que casos semelhantes sejam tratados e regulados de um modo semelhante. Numa segunda fase, o
fundamento é visto numa norma implícita no sistema, ou, como exigido pelo sistema enquanto sistema. Esta norma
implícita seria válida porque actua como pressuposto de validade ou funcionamento do sistema no sentido de que,
sem elas o ordenamento jurídico não poderia nem ser constituído, nem conservar-se. A analogia não teria, assim, um
carácter inovador, apenas concorrendo para a explicação da normatividade jurídica do sistema.
Ao conceber-se assim a analogia exclui-se o seu carácter inovador, concorrendo apenas para explicitar a
imanente normatividade do sistema. Nestas posições a juridicidade identifica-se com a normatividade imanente ao
sistema positivo. Tese que se nos apresenta inaceitável. A normatividade não se reduz ao normativo-jurídico
prescrito.

6. O critério da analogia:
Dissemos que o fundamento da analogia é o princípio da igualdade, mas este principio tem aqui um carácter
meramente formal, não nos fornecendo, por si só, um critério que nos permita saber quando dois casos são iguais ou
diferentes. É necessário encontrar um critério material que, completando o princípio da igualdade, nos permita saber
quando é que estamos perante dois casos semelhantes.
Esse critério permitirá saber com que sentido se há-de compreender a igualdade fundamentante. Para tal
existem duas orientações no pensamento jurídico.

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a) Orientação de tipo sistemático - dedutivo - vem na linha da jurisprudência dos conceitos. Segundo esta
orientação há analogia quando o caso decidendo e o caso previsto pela norma se possam integrar na mesma categoria
dogmática ou no mesmo conceito jurídico (ex. o raciocínio por analogia que resulta da semelhança entre o contrato e
o testamento, para a aplicação ao testamento de algumas disposições dos contratos previstos na lei, retira a validade
do facto de que o termo de referencia da semelhança - a categoria do negócio jurídico é razão suficiente para aplicar
ao testamento essas disposições) ou então o critério encontrar-se-ia num princípio jurídico contido noutra norma de
grau superior ao da norma que se convocava para a aplicação analógica desde que esta fosse uma expressão daquela
norma-princípio.
Esta concepção é inaceitável porque a analogia é sempre uma procura de sem elhanças entre dois termos que
se situam no mesmo nível de pensamento e o que nós temos na orientação dedutivista apresentada não é mais do que
uma tarefa de subsunção conceitual ou categorial. A analogia pressupõe uma relação de particular a particular, d e
semelhante a semelhante e não esta subsunção. Além de que esta subsunção altera o nível já que se faz do geral para
o particular.

b) Orientação de índole prático-argumentativa e de sentido prudencial ou teleológico: deverá ser a


orientação a seguir. De acordo com a mesma devemos recorrer à analogia quando, por um lado, a intenção de
juridicidade dos dois casos for semelhante – dimensão problemática. E, por outro lado, chegamos à conclusão de que
a solução prevista para o caso-foro (aquela que está tipificada na norma) é adequada ao tratamento judicativo do
caso-tema, no sentido de satisfazer as expectativas normativas da sua solução - dimensão judicativa. Só este segundo
momento poderá garantir que a hipótese é de analogia e, não, por exemplo, de juízo a contrario. Será o caso em que
concluímos que a intencionalidade problemática dos dois casos é semelhante, mas que a solução prevista na norma
não é adequada à resolução do caso concreto. Aqui rejeitar-se-á a analogia e poder-se-á recorrer, se for caso disso, ao
tal argumento à contrario.
Concluímos então que o critério da analogia pressupõe dois momentos: um momento de analogia
problemática e um momento de analogia judicativa, de uma conjugação sobre a validade ou invalidade do juízo
analógico, M omentos que actuam numa dialéctica, onde apenas didacticamente é possível a sua distinção. Neste
sentido Castanheira Neves e com grande afinidade Esser e Heller.

7. Distinção entre analogia e interpretação extensiva:


O pensamento jurídico tradicional distingue interpretação extensiva de analogia através de duas ideias
básicas: primeiro, para o pensamento tradicional, a letra definiria um circulo de sentidos possíveis para a norma.
Depois recorria-se aos outros elementos da interpretação conformadores do espírito para determinar, de entre aquele
circulo de sentidos, qual o que melhor se adequava à vontade do legislador.
Tendo em conta esta distinção entre a letra e o espírito podiam verificar-se três situações diferentes:
a) Interpretação declarativa: quando a letra e espírito coincidirem totalmente;
b) Interpretação restritiva: quando a letra fosse mais ampla que o espírito, restringia-se a letra da lei para
que esta coincidisse com o espírito;
c) Interpretação extensiva: quando a letra é menos ampla do que o espírito e alarga-se o sentido textual mais
imediato da letra da lei, dentro dos sentidos possíveis, para o fazer coincidir com o espírito.
Sempre que se ultrapassasse o círculo de sentidos permitidos pela letra deixava-se de estar no campo da
interpretação para passarmos para o campo da analogia. Havia analogia quando se atribuísse a um caso não previsto
na norma a mesma solução que a norma previa para um caso semelhante.
Ora, hoje, considerarmos que não é possível fazer uma distinção entre analogia e interpretação extensiva. A
distinção que tradicionalmente era feita radicava na ideia de que a letra da lei comunica um sentido pré jurídico ao

120
qual depois se vai juntar um sentido jurídico. Hoje, não podemos aceitar esta ideia: a interpretação nunca pode ser
feita em abstracto, terá de ser feita em concreto, tendo em contas as especificidades do caso decidendo. Ora, esse tal
sentido pré determinado é já um resultado da interpretação.
Deste modo, a interpretação extensiva é um resultado interpretativo que verdadeiramente não existe hoje,
porque hoje não faz sentido distinguirmos entre a letra e espírito da lei (ainda estamos a fazer interpretação até onde
esse processo impute um sentido normativo-jurídico à norma. Pelo que o sentido de norma delimitada pela
interpretação é o limite da interpretação Ela delimita-se a si própria). A interpretação faz-se a partir do confronto
entre o caso previsto na norma e o caso concretamente decidendo. Se assim é, então toda a interpretação tem uma
base analógica. A analogia é um momento da interpretação. Sem um juízo analógico não é possível fazer-se a
interpretação da norma. Por sua vez a interpretação é ela mesma um pressuposto da analogia. Nós não conseguimos
proceder ao confronto entre o caso previsto na norma e o caso concret o se estivermos já a proceder à interpretação.
Deste modo não é possível distinguir interpretação de analogia. Elas formam uma unidade no processo de realização
do direito. M ais uma vez vemos que toda a realização do direito é perpassada por considerações de carácter
analógico.
M as se não é possível distinguir interpretação da analogia e se toda a realização do direito é analógica, qual
é, então, o fundamento da distinção entre a realização do direito por mediação da norma e a realização do direito sem
mediação da norma? Isto porque a utilizarmos indiferentemente quer quando existe norma, quer quando não há. A
resposta a esta questão leva-nos à distinção entre dois tipos de analogias:
a) Analogias imediatas ou próximas: são as que se verificam quando se convoca como critério imediato
uma norma;
b)Analogias mediatas ou distantes: são as que se verificam quando não existe nenhuma norma no sistema
que possa ser mobilizada como critério jurídico. É destas que temos falado ao nível da autónoma realização do
direito.

8. O problema da aplicação analógica das normas excepcionais:


O artigo 11º do CC proíbe a aplicação analógica das normas excepcionais, apesar de admitir a sua aplicação
extensiva. O problema que se coloca é o de saber se se justifica esta proibição da analogia de normas excepcionais.
Estão aqui em causa as analogias mediatas ou distantes.
Vejamos os argumentos invocados pelo pensamento tradicional para justificar a proibição de aplicação
analógica de normas excepcionais:
a) Se as normas são excepcionais elas são impostas pela autoridade contra a razão jurídica e, como tal não
seria legítimo, nem faria sentido estende-las ou desenvolve-las, porque lhes faltaria precisamente a razão jurídica para
o alargamento da solução prevista nessas normas a casos que não estivessem nelas directamente previstos;
b) Argumento lógico: se as normas são excepcionais só valem, por definição, para os casos que prevêem e
não para outros. De contrário seria generalizar o que é singular;
c) Outro argumento parte da competência exclusiva do legislador para decidir do âmbito de aplicação de
normas excepcionais. Elas caracterizar-se-iam por uma colisão com princípios fundamentais da ordem jurídica pelo
que a sua aplicação alargada rectius analógica, significaria um atentado ainda maior a esses princípios. Daí que a
aplicação analógica fosse ilegítima através de decisão jurídica não legislativa.
Vejamos agora a critica aos argumentos adiantados:
a) Quanto ao primeiro argumento, a ser ele exacto, e, quando levado ao extremo, determinaria não só a
exclusão da analogia relativamente às normas excepcionais como em todos os casos em que não houvesse norma que
pudesse ser mobilizada, ou seja, sempre que estivéssemos no âmbito da realização do direito sem mediação de norma;

121
b) Quanto ao segundo argumento ele tem um carácter puramente lógico e, como sabemos, o pensamento
jurídico dos nossos dias já não consente tal formalismo. Nas palavras de Heck “ao jurídico não compete servir a pura
racionalidade, mas a vida”.
c) Quanto ao terceiro argumento C. Neves entende que a preterição de princípios jurídicos fundamentais
não pode determinar a exclusão da analogia de normas excepcionais em absoluto. Pode, quanto muito, apenas limitar
essa admissibilidade da analogia.
Vejamos agora os argumentos convocados para admitir a analogia de normas excepcionais:
a) O artigo 11º CC parte, desde logo, de um pressuposto falso porque não é possível distinguir interpretação
extensiva de analogia. Tal não é metodologicamente possível, como já vimos;
b) A ideia de igualdade que se convoca para justificar a analogia em geral também deve ser aqui invocada.
Nós podemos encontrar casos não previstos numa norma excepcional mas em que a própria razão de ser da norma
justifica a sua aplicação analógica, tal como justificaria caso essa norma não fosse excepcional. O que não quer dizer
que seja fácil o exacto reconhecimento dessa mesma razão de ser e que não se deva ser exigente na delimitação do
âmbito analógico que se apoia nessa razão de ser, para que a pretexto de uma analogia legitima não se subvertam os
princípios ou regras jurídicas excepcionais. Ex.: o nosso código civil adopta uma concepção subjectiva da posse,
distinguindo possuidor de detentor. É o caso do arrendatário ou comodatário que é um mero detentor. No ent anto
existem regras que lhe conferem a possibilidade de lançar mão dos meios de tutela possessória. Trata-se de uma
norma de carácter excepcional. O dr. Henrique M esquita entende que, num contrato promessa em que o promitente
comprador fica a deter a coisa, este deve poder lançar mão dos meios de tutela possessória contra qualquer violação à
sua detenção - aplicando analogicamente aquela regra excepcional 5.
c) Na verdade, apesar da dificuldade e do rigor necessários, tal não deve ser obst áculo à realização da
analogia nos casos em que tal é a solução normativa correcta. A exclusão da analogia para aplicar a solução comum
poderá conduzir a soluções absurdas e contrárias ao direito. É a própria ideia de justiça material que impõe em certos
casos a aplicação analógica da norma excepcional. M uitas vezes elas são exigíveis com fundamento num princípio
normativo-jurídico que se impõe ao próprio legislador e cuja aplicação em concreto não lhe é legitimo abordar por
aquele artigo. Canaris afirma que quando o legislador impõe ao juiz que trate de modo diferente casos juridicamente
semelhantes obriga-o a uma infracção contra o supremo mandamento da ideia de direito - o mandamento da
igualdade de tratamento.
Daí que o fundamento normativo da analogia não se suspende perante as normas excepcionais e uma
solução contrária a realização da analogia seria não só absurda como mesmo contra legem. Dai C. Neves conclui pela
não existência de uma proibição de analogia de normas excepcionais. Isto com duas limitações - não será possível a
aplicação analógica se estivermos perante uma situação de privilegio ou de radical exclusividade.
C. Neves questiona entre o valor a atribuir à exclusão prevista no 11º do CC e considera que as disposições
legais sobre questões metodológicas têm um peso relativo porque a resolução dessas questões não é da competência
do legislador, mas sim, do pensamento jurídico e daí que só devam ser tidas em conta se se encontrarem consonantes
com o modo como o pensamento jurídico as compreende.
Pinto Bronze considera que os artigos 8º a 11º do CC são orgânica e materialmente inconstitucionais.
Organicamente, porque manifestam um desvio de competências da instância que as gerou: o legislador usurpou uma
tarefa que é de outrem. M aterialmente, porque as normas em causa não se mostram em conformidade com dimensões
estruturantes do estado-de-direito, isto é, não se mostram em conformidade com o reconhecimento da autonomia e do

5
Uma vez que a razão de ser que naquelas normas atribuem ao mero detentor a possibilidade de lançar
mão dos meios de tutela possessória é a mesmo que se coloca nesta situação. Entende aquele autor que se
trata de uma situação que o legislador devia ter previsto e não previu e, como tal defende a aplicação
analógica daquelas prescrições excepcionais à situação do promitente -comprador a quem foi
antecipadamente entregue a coisa. Até porque a coisa passará no futuro para a sua propriedade, o que não
acontece no comodato.

122
sentido, quer da normatividade jurídica, quer do específico pensamento encarregado de realizar o direito. Embora este
autor considere que a inconstitucionalidade orgânica é mais fraca do que a material porque os diversos poderes e as
funções que titulam são hoje interdependentes e porque o próprio legislador faz parte do pensamento jurídico -
também o integraria. Assim sendo, talvez o legislador tenha o direito de dizer uma palavra sobre estas questões,
respeitando as dimensões que compõe o estado de direito – tal como o entende o pensamento juridico constitucional,
ou seja, ao pronunciar-se deve consagrar a autonomia do direito e do pensamento encarregado de o realizar, ou seja,
deve consagrar aquilo que é metodologicamente correcto atendendo ao actual estado de direito. Este autor defende
então que:
a) O artigo 203º CRP deva dizer que os tribunais são independentes e estão apenas sujeitos ao direito e à lei;
b) O artigo 202º CRP devia integrar num novo nº3 em que afirmava que o problema da realização do direito
é da autónoma competência dos tribunais que deverão pressupor dialecticamente o mérito jurídico do caso, o pré-
objectivado sistema jurídico e o deveniente sentido da juridicidade. Este novo nº3 determinaria a revogação dos
artigos 8º, 9º, 10º e 11ºCC.

9. O problema da proibição da analogia em relação às normas penais incriminadoras:


O que está aqui em causa é o princípio da legalidade criminal. Este princípio continua a enunciar-se hoje da
mesma forma que foi enunciado por Feuerbach quando surgiu nullu m crimen, nulla poena sine lege (não há crime
sem pena, nem pena sem lei). No entanto, não podemos aceitar que, sob esta fórmula inalterada, permanecesse
também a intenção normativa subjacente ao princípio tal como ele era no período moderno - iluminista, quando se
afirmou.
Isto porque a concepção do direito e da lei, a concepção do direito penal e o entendimento metodológico da
concreta realização do direito são hoje bem diferentes daqueles que se afirmavam na época iluminista e que eram
pressupostos pela intenção originária do princípio. A ideia subjacente a este princípio, no período ilum inista,
implicava o reconhecimento da identificação entre direito e lei, de que a realização do direito se reduz à aplicação
lógico-subsuntiva das normas positivas aos casos concretos. Sabemos hoje que estas ideias do legalismo Iluminista
não são aceitáveis - o direito já não se identifica com a lei, a juridicidade não se identifica com a legalidade. Ao nível
da realização do direito sabemos também que ela tem hoje um carácter concreto e constitutivo da própria
juridicidade. Pelo que o princípio da legalidade criminal só pode significar hoje o que for compatível com o diferente
sentido da juridicidade.
No entanto, o princípio da legalidade criminal continua a ser hoje um princípio fundamental no âmbito do
direito penal. Vejamos então quais as funções que este principio cumpre:
Função de garantia: o princípio cumpre esta função de modo a que se preserve a segurança jurídica e o
que se respeite a liberdade dos cidadãos. Trata-se de uma função formal de garantia. Garantia contra o exercício
ilegítimo, abusivo ou incontrolável do ius puniendi estadual. Já que impõe a esse poder uma regra de competência,
que define as condições formais do exercício e lhe demarca os seus limites. Trata-se, portanto, de uma função
negativa.
Função material e positiva: o princípio é visto como uma manifestação de justiça material ao nível do
direito penal. É a inferência de uma ideia que está subjacente a todo o direito - a ideia da dignidade da pessoa
humana.
Este princípio está consagrado na Constituição no seu artigo 29º e também no artigo 1º do Código Penal
(além de estar consagrado em todas as declarações dos direitos do homem como a DUDH de 1948 ou a CEDH de
1950). Trata-se, portanto, de um princípio positivo. Por outro lado ainda, ele vai ao encontro da dignidade ética da
pessoa, como tal, é um princípio supra positivo.

Vejamos agora os corolários normativos do princípio da legalidade:

123
Nullen crimen, nulla poena sine lege scr ipta, isto é, não pode haver crime, nem pena, sem uma lei escrita
- corolário que afirma a exclusividade da lei e a correlativa inadmissibilidade de outras fontes como fundamento de
incriminação e da punição. Esta ideia entende-se perfeitamente no período positivista - se não havia direito sem lei,
então também não havia incriminação e punição sem lei. M as, hoje, sabemos que o positivismo se encontra superado
e essa superação também assumida no direito criminal não pode deixar de se repercutir no entendimento do princípio.
Não podemos hoje entender que do conteúdo da lei se vai deduzir o sentido da decisão. Sabemos que a realização do
direito não se resume a meras subsunções. Subsunções que o positivismo defendia já que para esta concepção a lei
não era só o imediato fundamento da incriminação como oferecia exclusivamente toda a normatividade incriminant e
e punitiva, ou seja, essa normatividade es gotar-se-ia no conteúdo textual da lei criminal. Esta identificação é de todo
insustentável. Na verdade, a determinação do sentido dos vários tipos legais de crime e dos critérios da ilicitude e da
culpa só será conseguida com recurso a elementos trans-textuais e transpositivos que são o resultado da elaboração
doutrinal e judicial. No fundo, são direito jurisprudencial. Deste modo, temos de concluir pela existência de um
direito criminal de constituição extra legal, pelo que terá de negar-se que a lei seja a única fonte do direito criminal.
Assim, a lei, é para o juiz penal uma fonte de conhecimento entre muitas outras.

Nullen crimen, nulla poena sine legem praevia: isto é, não pode haver crime nem pena sem uma lei
prévia. Este corolário significa a proibição da retroactividade criminal in malam partem (em desfavor do arguido). A
questão que se coloca é a de saber se a proibição da rectroatividade vale apenas em relação à lei ou se valerá também
em relação ás possíveis mudanças de orientação da jurisprudência jurisdicional incriminadora e punitiva,
nomeadamente perante as alterações da jurisprudência estabilizada dos Supremos Tribunais. Isto porque a decisão
concreta em que essa mudança se verifique significa a imposição a um comportamento que não era considerado como
crime no momento em que foi cometido pela jurisprudência, de um juízo criminal positivo. Num profundo
reconhecimento da função constitutiva da realização jurisdicional do direito.
Vejamos os argumentos a favor da aplicação da proibição da rectroactividade à jurisprudência:
1. A ideia de confiança e segurança jurídico criminais;
2. O principio da igualdade de tratamento. Dizem os defensores desta ideia que, para o arguido, é
indiferente se há uma nova lei depois do facto ter sido praticado ou se há uma mudança jurisprudencial. Daí que os
princípios supra-mencionados fazem com que também, em relação à jurisprudência se afirme a proibição da
rectroatividade.
Vejamos agora os argumentos contra:
1. Não podemos esquecer que mais importante que o valor da segurança jurídica é o valor da justiça
material e isto só se alcança se a decisão concreta se adequar ao mérito especifico do caso e a considerações das
correntes jurisprudenciais anteriores poderão constituir um impedimento a que se alcance em concreto essa justiça
material. Qual então a posição a adoptar? Castanheira Neves defende que devemos tentar estabelecer uma
concordância prática entre a exigência de se alcançar uma decisão adequada ao mérito especifico do caso concreto e a
de se excluir tanto quanto possível a rectroatividade em concreto.

Nullen crimen, nulla poena sine lege certa: exige-se que a lei penal seja determinada na sua formulação
prescritiva e no seu conteúdo normativo. A lei penal devi a funcionar como critério autónomo e suficiente da
incriminação e como fundamento vinculante da decisão concreta. A norma devia ser o critério imediato da decisão e
esta resultava da mera aplicação lógico-formal da norma ao caso. M as hoje sabemos que a lei penal contem conceitos
normativos, conceitos indeterminados e cláusulas gerais (o pluralismo cultural e ideológico recusa a rígida definição
de critérios jurídicos. Esse pluralismo postula uma normatividade flexível e adaptável, além de que o direito penal
tem de se manter aberto às exigências do juízo pericial, é também difícil definir de modo formalmente preciso os
bens jurídicos criminalmente tuteláveis). Por outro lado não podemos excluir a especifica autonomia da mediação

124
constitutiva do concreto juízo incriminador. Deste modo a determinação normativa exigível hoje ao direito criminal
situa-se entre uma rígida pré determinação e uma total indeterminação. Na verdade é admissível uma certa
indeterminação normativa, desde que não esteja ausente uma tomada de posição legislativa capaz de se impor como
fundamento vinculante e critério de controlo da decisão.

Nullen crimen, nulla poena sine lege stricta: é este corolário que estabelece a proibição da aplicação
analógica das normas penais incriminadoras. É este o corolário capital quando analisamos a questão da analogia. A
ideia subjacente a este corolário é a seguinte: é ao legislador que compete exclusivamente a definição dos
comportamentos que podem constituir um crime e tipifica-los em normas penais. Ao juiz compete apenas a aplicação
estrita dessas normas. Deste modo não é legitimo aplicar a norma penal para além dos casos que ela prevê. Não se
pretende com este impedir a interpretação das normas penais, o corolário da lei stricta implica sim a não aplicação da
norma penal para além do que haja de considerar-se uma sua aplicação directa ou imediata possibilitada pela
interpretação. Daí se entende que este corolário proíbe apenas a sua aplicação analógica. Pelo que, a exigência central
do princípio da legalidade neste seu corolário teria o seu critério na distinção entre interpretação e analogia. Daí que
se converta num problema metodológico.
Não podemos avançar para uma discussão esclarecedora do problema se não atendermos ao verdadeiro
fundamento do princípio da legalidade criminal. Foram apontados vários fundamentos ao longo dos tempos:
Fundamento político: a certa altura da evolução do direito penal abandonaram-se as teorias retributivas
dos fins das penas e afirmam-se as teorias relativas. A partir desse momento a construção de um tipo legal de crime
deixa de ter um fundamento ético e a cominação de uma pena passa a encarar-se numa ideia de utilidade social. Deste
modo, o direito penal passa a ser o resultado de uma decisão do poder político. Por sua vez a afirmação de uma estrita
separação dos poderes fazia com que só o poder legislativo, eleito pelo povo e como tal de índole democrático -
representativa (visão contratualista do poder), pudesse restringir os direitos e as liberdades dos cidadãos. Por outro
lado, esse poder só podia afirmar-se através de uma forma que garantisse os valores da liberdade, da igualdade e da
segurança. Essa forma era a lei. Ela garantia a liberdade (de origem representativa e de carácter abstacto) a igualdade
(na sua abstracta generalidade) e excluía a incriminação arbitrária ou retroactiva, garantindo a confiança e a
segurança jurídica. Daí o porquê de se afirmar que não há crime nem pena sem lei. Fundamento que se esteve na
origem do princípio então hoje longe de ser satisfatório como seu fundamento decisivo. Subsiste apenas como
fundamento histórico (explica uma origem mas não explica um sentido). Além disso el e é exterior ao relevo jurídico-
criminal do princípio, já que não oferece a compreensão a sua natureza constitutiva face ao próprio direito criminal.
Fundamento dogmático jurídico: está relacionado com a função de prevenção geral negativa ou de
intimidação que se atribuía às penas. Feuerbach apresentou a sua teoria da coacção psicológica. Os crimes e as penas
que lhes correspondiam deviam previamente ser determinados em leis para que todos as conhecessem e soubessem o
mal que correspondia ao cometimento de um crime, a pena actuava, então, como uma ameaça. Fundamentação que
entrou em crise quando o direito penal voltou a convocar uma intenção ético-retributiva e quando à prevenção geral
se veio a preferir a prevenção esp ecial. Além de que o pressuposto de conhecimento da lei penal e do cálculo que se
faria entre os benefícios do crime e o prejuízo da pena eram ingénuos. Assiste-se, hoje, no entanto, a reafirmação de
uma prevenção geral (positiva). Algo que C. Neves continua a considerar ingénua devia à indeterminação que é
essencial à incriminação, como pela não imediata acessibilidade desta para os comuns dos cidadãos, sobretudo nos
domínios da nova criminalidade.
Há também quem entenda que o princípio da legalidade é exigido pelo carácter fragmentário do direito
penal. Se afirmando este principio poderíamos saber que estávamos perante uma ausência de criminalização e não
perante uma lacuna a integrar, também não pode ser aceite porque são coisas diferentes: um tem a ver com o
conteúdo da incriminação (carácter fragmentário) e o outro com o modo de incriminação. Quanto muito com este
fundamento apenas se exigia uma incriminação stricta e já não os outros corolários. Outros aut ores ainda, como

125
Walter Sox, vêem o fundamento da legalidade criminal no princípio da culpa: não há pena sem culpa e só podemos
afirmar que há culpa se em causa estiver um comportamento previamente previsto na lei como crime. Se não há pena
sem culpa chegar-se-ia ao não há pena sem lei, pois sem lei não era possível culpa. C. Neves critica esta posição
dizendo que o ponto de referencia para a censura da culpa não é a lei mas a proibição da acção em causa e esta radica
o seu sentido censurável num plano translegal, sobretudo na ética social, logo o principio da culpa não sustenta o
segundo termo do principio nulle poena sine lege porque o conhecimento da pena não é pressuposto da culpa ou do
corolário de proibição de analogia porque o delito análogo não deixa de ter uma juridicidade pressuposta a de
analogia que pode bastar para a culpa ou ainda o corolário da lex previa já que a culpa não é excluída se caso fosse
ilícito ainda que não tip ificada. O princípio da legalidade criminal e o princípio da culpa são princípios
completamente diferentes.

Fundamento axiológico normativo: a dignidade da pessoa humana é o fundamento de todo o direito. É


pelo direito assumir que cada um de nós é verdadeiramente p essoa que ele se afirma como uma ordem de validade e
ainda como uma ordem finalisticamente estratégica ou socialmente eficaz constituída como ordem de validade, vai
nela implicado um principio de igualdade entre as pessoas (que se articula nas dimensões da autonomia e de
participação) e um principio de responsabilidade das pessoas umas perante as outras (que se articula nas dimensões
de solidariedade e corresponsabilidade). As dimensões negativas (de autonomia e corresponsabilidade), ao contrário
das positivas que postulam um continuum normativo impõe limites e proibições, logo é necessário impor um limite
nos seus limites. Limites dos limites que se hão-de assumir em dois planos: no plano material - só são de admitir os
impedimentos de realização que sejam indispensáveis à realização de todos -princípio de mínimo; no plano formal:
há a reconhecer um principio de formalização - exigéncia de uma institucionalização formal dos limites. O plano
material projecta-se ao principio da fragmentariedade do direito penal, enquanto que o plano formal se projecta no
principio da legalidade criminal. O que nos leva a concluir com C.Neves que a dignidade da pessoa humana é um
último termo e, também ela, o fundamento do principio da legalidade criminal.

Vimos então que o corolário da lei stricta do princípio da legalidade criminal só é possível através da
distinção entre analogia e interpretação. Hoje sabemos que essa distinção não é possível porque todo o direito é
perpassado por considerações de carácter analógico. Assim, também no direito penal não há de ser possível afastar a
analogia porque toda a interpretação é analógica. Chegamos a uma conclusão: o princípio da legalidade criminal é um
princípio fundamental no Estado-de-Direito mas não é possível darmos cumprimento em termos metodológicos a este
princípio no seu corolário que proíbe a analogia.
Como é que havemos, então, de cumprir este princípio da legalidade criminal? Já vimos que não será
através de uma solução metodológica. M as o fundamento jurídico conhece uma outra dimensão que não pode deixar
de ser mobilizada como factor na procura de uma solução para o nosso problema, referimo-nos à dimensão dogmática
ou doutrinal. A solução há-de então ser dogmática ou doutrinal. A dogmática surge com uma função mediadora e de
controlo entre a lei e o juízo, fazendo uma reelaboração e reconstrução normativa e sistemática da lei e definindo
modelos e estruturas que orientem e estabilizem o juízo.
Para que esta solução dogmática seja possível é necessário que se cumpram quatro condições:
1. Condição legal: o juízo incriminatório tem de ter como fundamento imediato uma norma legal, ou
seja, o juízo incriminatório concreto há-de mostrar-se secundum legem. Tal não exclui que ele seja obtido em termos
metodologicamente correctos, ap enas se exige que o julgador tenha presente que está a realizar um direito de que se
esperam particulares garantias, devendo por isso, estar especialmente atento, actuando com objectividade, rigor e na
mais circunscrita determinação do âmbito objectivo da norma. O princípio da legalidade deverá ser um forte
argumento de auto-controlo que se impõe igualmente ao legislador para que se possa cumprir esta condição;

126
2. Condição dogmática em sentido restrito: deve ter-se em conta a elaboração dogmática e
jurisprudencial dos diversos tipos legais de crime. Uma elaboração dogmática prévia às concretas decisões
incriminatórias permite um controlo que a legalidade, por si só, não garante, já que aquela elaboração transcende a
mera legalidade, propondo critérios críticos de interpretação antecipando uma moldura das suas possibilidades. Ela
supera a indeterminação material do tipo que só seria determinado na realização judicativo-decisória, propondo um
modo de determinação no plano dogmático que se interpõe como controlo entre a caracterização legal do tipo e a
realização do direito. Só que esse critério não é ainda suficiente pois pode estar-se perante uma interpretação que o
tipo já não pode controlar não é por si assimilado devido à sua indeterminação. Tal coloca nova questão – essa
indeterminação que assim se admite não remeterá uma vez mais para a determinação ao nível da realização concreto
do direito? Não necessariamente se for pensável um critério dogmático complementar que permite controlar esses
casos suscitados pela indeterminação do tipo.
3. Adequação sistemática: a decisão e a sua fundamentação não podem opor-se ao sistema. Com esta
condição excluímos a arbitrariedade e salvaguardamos o princípio da igualdade. Assim, o resultado terá de se adequar
sistematicamente (excluindo-se o árbitro) e a fundamentação terá de se adequar ao s istema no sentido de poder ser
generalizável sendo utilizado para a resolução de outros problemas (principio da igualdade). Ora, estas máximas
especificam-se em quatro tópicos: 1. Continuidade do sistemático desenvolvimento conceitual: o julgador não é
obrigado a manter-se nas significações típicas usuais se tal for justificado pelo contexto – só que deverá atender a que
essas novas posições se possam repetir em circunstancias idênticas, ou seja, haverá de ponderar a admissibilidade da
sua continuidade no sistema; 2. Toda a valoração não compatível com o sistema ou que não o implique é arbitrária; 3.
Igualdade de tratamento ou valoração para casos analógicos; 4. Carácter decisivo da interpretação generalizável.
4. É necessário afirmar-se uma garantia institucional dirigida ao controlo do princípio da legalidade
criminal, que controle as decisões em sede de recurso. Falamos do controle jurisprudencial da unidade de direito, a
que é chamado o STJ, sem nunca cair no erro de uma uniformidade da jurisprudência que ia na intenção dos assentos,
mas numa material unidade do direito que possa submeter a concreta realização do direito a critérios prévios de
enquadramento e controlo.

É esta a posição defendida por C. Neves que adverte para o facto de que com o cumprimento destas
condições não teremos uma solução de segurança absoluta, que afaste todas as dúvidas. Tal não é possível no
universo prático que não conhece a exactidão matemática. Casos de dúvida sempre existirão, mas a conjugação destas
quatro condições oferece uma possibilidade de controlo bastante importante para garantir a objectividade e o carácter
restritivo da incriminação, bem como o seu carácter não discriminatório e a previsibilidade do s eu resultado. Como
conclusão geral há que afirmar que o princípio da legalidade criminal só é possível de cumprir pela mobilização de
todas as instâncias do universo jurídico. Não é só tarefa do legislador ou só do juiz, mas, de todo o pensamento
jurídico.

Os imediatos fundamentos normativos:

A analogia é o critério que o julgador deve convocar na realização do direito por autónoma constituição
normativa. M as, como vimos ela tem limites e, como tal o recurso à analogia nem sempre é possível. Nestes casos o
julgador tem de convocar o processo originário de constituição do direito, lançando mão dos imediatos fundamentos
normativos. Em primeiro lugar recorrerá aos princípios constitutivos do sistema jurídico vigente, também recorrendo
à consciência jurídico geral enquanto síntese de princípios e valores normativos que, na comunidade, dão sentido ao
direito (num nível essencialmente jurídico os valores e princípios que dão sentido ultimo ao direito ex. dignidade da
pessoa humana), valores e princípios que vão obtendo uma determinação nos princípios jurídicos fundamentais (Ex.
princípio do estado de direito), lançando mão também da ideia de que o julgador deve actuar como se fosse legislador

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no sentido de que o julgador não pode cair num casuísmo, devendo actuar segundo a exigência de máxima
generalização possível. É este o sentido que se deve dar ao cânone tradicional do julgador decidir como se fosse
legislador, presente no art. 10º/3 CC e não a perspectiva normativista da prévia opção de uma norma-critério
normativo geral e abstracto para depois a aplicar ao caso concreto segundo o esquema lógico-subsuntivo.

O Problema Constitucional:
O problema da legitimação da jurisdição no quadro do Estado de Direito

O percurso que fizemos levou-nos a afirmar que a actividade do decidente é constitutiva da própria
normatividade, isto é, o juiz cria direito. Sendo assim, põe-se o problema da legitimidade da criação do direito pela
via jurisprudencial no horizonte de um estado de direito onde se afirma o principio da separação dos poderes. As
coordenadas deste problema são três:
1. A realização judicativo-decisória do direito é constitutiva da normatividade;
2. A constituição da normatividade jurídica ocorre num estado de direito em que se afirma a separação dos
poderes;
3. Todo o poder deve ser num estado de direito limitado juridicamente;

M as, sabemos já que o princípio da separação dos poderes não é hoje entendido em termos rígidos e
formais como foi elaborado por M ontesquieu. Hoje fala-se não tanto em separação dos poderes mas sim, em
interdependência de poderes - nega-se a epígrafe do artigo 111ºCRP.
M as o que é um Estado de Direito? É um Estado que tem no Direito o seus pilares estruturantes. É um
Estado que reconhece o Direito como a afirmação de valores fundamentais, como fundamento da própria dignidade
da pessoa humana. Sendo assim tem que haver uma instancia que afirme e garanta esses valores e essa mesma é a
função jurisdicional. Os outros poderes têm funções políticas, programáticas e organizatórias. O poder juridicional
tem a função de assumir o direito na sua singulariedade e autonomia, acabando deste modo por limitar os outros
poderes.
M as não estaremos aqui perante uma ap oria? É que a função jurisdicional é a afirmação de um poder e,
como tal, também de ser controlado. Como é que procedemos então ao controle da função jurisdicional? Como se
desfaz esta aparente ap oria?
Antes de respondermos a esta questão vejamos primeiro o que é a jurisdição no horizonte de um Estado de
Direito, ela não é a mera aplicação lógica de um direito pré feito mas também não é uma pura decisão que radique
apenas na vontade de quem a profere. Num Estado de Direito a jurisdição profere juízos decisórios e, sabemos que se
é verdade que a decisão dever ao máximo reconduzida ao juízo, também sabemos que o juízo não apaga totalmente a
decisão, no juízo decisório há esses dois segmentos irredutíveis, devendo o juízo reconduzir a decisão necessária à
fundamentação exigível. Deste modo o juízo decisório no seu segmento de decisão é sempre a manifestação de um
poder, de uma voluntas. Como vamos então controlar e legitimar esse poder? Deve haver desde logo um controlo de
carácter institucional que se faz de varias formas: a)Através da organização judiciária, a própria hierarquia dos
tribunais; b) através do processo que estabelece limites e garantias; c) através do sistema de recursos. Tudo isto
contribui para se controlar o segmento da decisão.
Questão que se coloca é o de saber como se controla o juízo.
Podemos dizer que o juízo tem de coincidir com o que é comunitariamente justo, por isso, o controlo faz-se
pela via do consenso. M as o consenso é sempre contingente e é uma categoria sociológica, pelo que se perderia a
autonomia do direito. Outra forma de legitimação é a ideia de participação, isto é, aceita-se a decisão porque se
participou nela, neste sentido Luhmann. Esta ideia conduz-nos, de facto, à aceitabilidade da decisão, mas não
necessariamente à validade fundamental do juízo. Como resolver estão o problema? Como controlar o juízo? A forma

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de conduzir o decidente a um juízo válido é a metodologia: a legitimidade do juízo está na metodologia, isto é, no
caminho racionalmente percorrido pelo juiz para se alcançar uma solução material e normativamente adequada.

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