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METODOLOGIA DO DIREITO
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1- Questões Prévias
Castanheira Neves, define o “Direito” como «uma solução possível para um problema necessário»,
dirigindo ao «jurista», e até ao «Direito», três questões matriciais:
1. Porquê? – questiona-se aqui o fundamento da ordem de Direito; pretende encontrar-se, então, aquilo que
valida (dá validade) ao Direito como ordem.
2. Para quê? – pergunta-se pela função social do Direito; há uma alusão à exigência de assumir uma
criticamente a realização histórico-concreta da ideia de direito.
3. De que modo? – indaga-se qual o método para a realização do direito; é aqui colocada a enfâse no problema
metodológico de saber qual o caminho que culmina na decisão jurídica.
A problemática que nos ocupará reconduz-se a esta última questão: qual o método utilizado realizar o direito?
No fundo, pretende reproduzir-se o caminho, a trajetória, o percurso, etc. a realizar pelo julgador para a
realização do direito em concreto.
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De acordo com a etimologia da palavra, a metodologia pode definir-se como: “a razão (ou o pensamento)
intencional de um método”.
A metodologia visa compreender, de forma racional (logos), o método (odos) pelo qual se pretende
(meta) realizar o direito.
A este respeito, Fernando José Bronze vem propor um neologismo – “metodonomologia”. Às três
dimensões acima explanadas acresce uma quarta: o “nomos” – o juízo decisório concreto.
No fundo, o que se pretende é sublinhar que a metodologia deve desenvolver a reflexão sobre o método de
realização do direito sem perder de vista o caso concreto, a realidade jurisprudencial de aplicação do direito.
Neste contexto coloca-se uma questão: que relação intencional (meta) se estabelece entre o pensamento
(logos) e o processo (odos)? Na metodologia está implícita uma relação intencional entre a
racionalidade/pensamento e o percurso/caminho – de que modo elas se influenciam?
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Se o direito se diferencia universalmente como direito ao constituir e realizar uma específica ordem de
validade, já o sentido concreto da validade que constitui e realiza varia historicamente. Situem-se então as
conceção que foram atrás expostas:
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Nestes termos, a metodologia jurídica não se propõe a construir, sem mais, um método, mas também não
se limita a conhecer e descrever o método praticado: Verdadeiramente, o que se pretende é refletir sobre o
problema da realização do direito tal como ela decorre na prática, para criticamente a orientar. Portanto, a
índole da metodologia não será:
a) Índole prescritiva (relação de exterioridade construtiva) – não pretende impor um método às práticas;
b) Índole descritiva (relação de imanência constitutiva) – não se limita a descrever as práticas.
A índole crítico-reflexiva que reconhecemos à metodologia implica que ela assuma como ponto de partida
a prática realização do direito, dirigindo-se a ela reflexivo-criticamente.
O autor de “Doing What Comes Naturally” convoca, a respeito da temática sobre que versamos, o conceito de
“comunidades interpretativas”.
experiências coletivas autossubsistentes definidas por critérios de “correção profissional”, no seio das
quais surgem projetos interpretativos e rotinas institucionalizadas.
Segundo Stanley Fish, poderia falar-se numa comunidade interpretativa de juízes, a qual se distinguiria da
comunidade interpretativa dos advogados, da comunidade interpretativa dos juristas académicos, da
comunidade interpretativa dos não juristas, etc... As comunidades interpretativas traduzir-se-iam num
conjunto dinâmico de referentes (cânones, códigos linguísticos, etc.) em permanente reformulação, com uma
capacidade decisiva de assimilação-conversão de padrões exteriores. Porque assim seria, toda e qualquer
tentativa de reflexão metodológica com uma intenção prescritiva ou crítica estaria condenada à
improdutividade de um cálculo teorético, dominado por códigos discursivos estranhos à prática em que
pretende intervir. Apenas seria admissível uma análise explicitante, respeitadora do dito “what comes
naturally”. Portanto, aos demais juristas (designadamente, os juristas académicos) não competiria refletir
criticamente sobre a prática decisória dos juízes.
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5- O Problema Metodológico
Daí que se fale, aqui, numa “unidade profunda do pensamento jurídico”: o legislador e o intérprete não
fazem senão partilhar os momentos sucessivos duma mesma tarefa. Na linha deste entendimento, tentou-se
também aproximar convergentemente os métodos legislativo e judicativo, no sentido de uma intenção
metódica global. A este respeito falar-se-ia em “unidade do método jurídico”, este que deveria ser cumprido
tanto pela “criação” como pela “aplicação” do direito, e realizar-se-ia através da “metodologia jurídica
global”.
Mas esta posição mostra-se excessiva. Com efeito, ela só teria viabilidade se houvesse de aceitar-se uma de
duas teses redutivistas:
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Portanto, concluímos que a prescrição legislativa e a decisão judicativa concreta não podem ser vistas como
um todo unitário; são duas realidades que se diferenciam:
A) Diferenciação estrutural:
Prescrição legislativa: as normas legislativas são regras imperativas;
Direito como thesis – sistema de regras político-sociais de organização e reforma.
Decisão concreta: o direito surge como critério e fundamento:
Direito como nomos – normatividade que valida a decisão concreta.
B) Diferenciação sistemática:
Prescrição legislativa: sistema de regulamentação (lex);
Decisão concreta: sistema axiológico (ius).
Para a determinação do campo temático da metodologia importa versar sobre o problema do sentido atual
da função judicial, da jurisdição e do juiz. Como vimos, o logos (pensamento) não deve limitar-se a descrever
a praxis, indo mais longe numa reflexão crítica acerca dessa praxis (propugnamos uma relação de
reconstrução crítico-reflexiva entre o logos e o método).
É exatamente isso que nos propomos fazer de seguida: analisar criticamente os modelos de realização
concreta do Direito propostos. Quanto a esta questão são várias as conceções existentes, todas elas
compreendendo a jurisdictio de forma distinta. Podemos qualificá-los segundo vários critérios, sendo o
primeiro deles o critério da autonomia do direito.
Esta questão suscitou a elaboração de modelos de juridicidade, entre os quais aqueles que se apresentam
de seguida:
A) Normativismo legalista:
Este modelo surgiu no seio do liberalismo e iluminismo, fruto da conceção antropológica que durante
esse período se construi. A autonomia humana emerge, neste período, como valor supremo, em
superação da ordem teológico-metafísica transcendente aceite anteriormente. Esta centralidade da
autonomia humana repercutiu-se num enfoque na razão e liberdade humanas. Neste contexto,
surgem duas tendências do pensamento: o individualismo e o racionalismo.
Este racionalismo assenta na “razão cartesiana”: fundamentada nos seus axiomas e sistematicamente
dedutiva nos seus desenvolvimentos. Toda esta nova conjuntura veio exigir a institucionalização de
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um novo poder. O sentido fundante desse novo poder foi: o “contrato social”. Em consequência da
instituição deste novo poder e da afirmação dos valores já expedidos, a legalidade torna-se radical: o
direito seria a lei, e unicamente a lei. Da igualdade, liberdade e demais interesses racionais resultavam
direitos subjetivos, por intermédio do contrato social.
Ora, do que foi dito decorre claramente a afirmação da autonomia do direito: para o normativismo o
direito é autónomo porque constitui um sistema de normas gerais e abstratas pensado e constituído
antes do problema concreto. A sua aplicação prática resultava de um mero juízo lógico-dedutivo; as
normas criadas em abstrato pelo poder instituído pelo contrato social (o único poder legitimado para
criar o direito) projetavam-se na realidade dos factos subsuntivamente.
B) Funcionalismo:
O referente deste modelo é, já não o indivíduo, mas antes a sociedade como fenómeno específico, com
uma estrutura, componentes e uma dinâmica próprios. Neste âmbito, o direito é funcionalizado à
estruturação, regulação e à organização operatória global da sociedade, perdendo a sua autonomia
intencional e material.
O direito converte-se, então, num instrumento ao serviço de exigências provindas das instâncias e
forças políticas, sociais, culturais, económicas, etc. Trata-se da político-socialização do Direito.
Esta elaboração surge com a emergência do Estado Providência e do “social” como critério de todos
os problemas humanos. Um dos meios jurídicos utilizados por este modelo de Estado é a legislação,
que se torna um instrumento da própria ação política. A lei funcionalizada político-socialmente passa
a revestir novas formas (além da clássica lei geral e abstrata), como a “lei-plano” e a “lei-providência”.
Em suma, a autonomia do direito é aqui postergada para segundo plano, já que aquele passa a ser um
instrumento de prossecução dos fins do Estado.
C) Jurisprudencialismo:
Esta conceção é uma conceção que pode dizer-se “do homem-pessoa”: o Direito, com a sua
normatividade axiologicamente fundada, está ao serviço de uma prática pessoalmente titulada e
historicamente concreta, com a intenção de realização do homem no seu direito e no seu dever ou na
sua responsabilidade.
Esta é uma perspetiva de imanência microscópica, já que o Direito é convocado pelo homem concreto
que vive e comunitariamente convive os acontecimentos práticos. A centralidade já não recai sobre a
lex em si mesma, mas sim sobre o ius, como ordem normativo-axiológica de validade que sustenta os
juízos práticos decisórios. O direito readquire a sua autonomia, assumindo-se como ordem de
validade, associada a exigências de sentido e a valores.
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Feito o enquadramento geral destes três modelos de realização do direito, importa agora atentar
especificamente em cada um deles:
A) Normativismo
O normativismo legalista nasceu do individualismo contratualista e foi exponenciado pelo jusracionalismo.
Vejam-se, então, as três dimensões deste modelo:
1. A sistematização:
A projeção da razão axiomático-sistemática moderna no pensamento jurídico repercutiu-se, como
referido, na criação de sistemas conclusos de normas que se sustentavam em axiomas ético-racionais
(axiomas=verdades inquestionáveis universalmente válidas, muitas vezes utilizadas como princípios na
construção de uma teoria ou como base para uma argumentação; a palavra deriva da grega axios, cujo
significado é digno ou válido) e em postulados antropológico-racionais.
Estes sistemas, porque fechados, não permitiam outra aplicação concreta que não aquela que é
veiculada pelo silogismo jurídico. A construção deste modelo assente num sistema fechado fundado
na racionalidade antropológica deveu-se ao pensamento de personalidades como Hugo Grócio,
Pufendord, Thomasius e Wolff.
2. A legalidade:
Os sistemas conclusos referidos eram construídos como sistemas de normas legais. Com a
codificação, o direito passou a resumir-se exclusivamente à lei. A ideia de legalidade e a ideia de
sistema conjugavam-se para dar lugar ao normativismo legalista.
Pela legalidade imputava-se a constituinte titularidade do direito exclusivamente ao legislador; pelo
sistema postulava-se no direito uma racionalidade intencional. Essa racionalidade intencional
implicava que o direito fosse abstrato-dogmaticamente determinável, isto é, que pudesse ser
conhecido apenas através de uma estrita exegese, complementada por uma lógico-formal
conceitualização. Em suma, esta é a época do “direito-lei”.
3. O paradigma da aplicação:
A realização do direito no seio do modelo normativista tinha necessariamente que ocorrer através de
uma lógico-dedutiva aplicação das normas legais. O juiz assumia-se como operador impessoal,
anónimo e fungível dessa aplicação.
A este respeito pode falar-se em dualismo normativista: (1) o direito só podia ser conhecido nas
normas legais; (2) a aplicação do direito é subsuntiva porque ele já é completamente conhecido
previamente. O direito pressuposto nas normas, tal como aí se objetifica e manifesta, apenas se repete
na solução concreta: à realização do direito não é conhecida qualquer dimensão constitutiva
(criadora), porquanto o direito resume-se exclusivamente à lei. Admitir-se uma mediação
juridicamente constitutiva da realização do direito seria afirmar que o direito afinal não existia
apenas nas normas do sistema.
Consequentemente, o direito deve realizar-se por mera “aplicação”, a qual opera segundo um esquema
que garante a relação entre o geral da norma e o particular do caso sem implicações constitutivas: esse
esquema seria o da lógica dedutiva, através do silogismo e da subsunção.
Nesta linha, entedia-se que a realidade histórico-social não se oferecia como um acervo disperso de factos,
mas antes como unidades de acontecimentos histórico-socialmente estruturados. Toda esta elaboração
visava, no seu âmago, alcançar a estanque separação dos poderes: o legislador criava o direito e o juiz
limitava-se a aplicá-lo (não devendo assumir qualquer papel criador): devia ser tão-só a “boca da lei”,
limitando-se a versar sobre a matéria de facto.
Na passagem do século este modelo foi posto em causa pelo movimento metodológico reformador que
se vinha afirmando. A análise da sentença judicial permitiu concluir pelo não cumprimento do paradigma do
normativismo na realidade. Negou-se, assim, a validade desse paradigma, tendo emergido novos modelos,
nomeadamente os construídos pelo “movimento do direito livre”, pela “jurisprudência dos interesses”, pela
“jurisprudência sociológica”, etc. A esta falha acresceu a crítica de que o normativismo, ao sustentar um
sistema fechado em si mesmo, alienava o direito da realidade social e furtava-se aos compromissos político-
sociais, económicos, etc. emergentes.
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B) Funcionalismo
O funcionalismo, como modelo de realização do direito, pode fazer-se assentar em três pressupostos:
1. A funcionalidade:
Na modernidade, os fins deixaram de ser expressão teleológica de uma ordem onto-axiológica para
passarem a ser simples manifestações de pretensões subjetivas. Relativamente a esses fins, a ação
pretende-se funcional ou técnica, isto é, capaz de alcançar os objetivos e produzir os efeitos
pretendidos.
Na modernidade o homem surge como ser dinâmico e evolutivo, capaz de novidade. Reconhecendo a
sua intervenção transformadora, o homem passa a ter uma visão do mundo axiologicamente neutra.
Daí que o próprio direito tenha assumido como parâmetros a funcionalidade, a eficiência, a
performance: era com base neles que se julgava a ação/comportamento.
2. A razão instrumental:
A racionalidade finalística (instrumental) vem contrapôr-se à racionalidade axiológica. A razão radica
agora na utilidade do comportamento para alcançar um resultado. Deixa de se perguntar ao direito
se o comportamento é moralmente bom ou recto e passa a perguntar-se se ele é útil.
Tudo isto se resume numa simples afirmação: a fundamentação cede à instrumentalização, a validade
cede à eficácia ou eficiência e os valores cedem aos fins.
3. O compromisso ideológico:
A razão instrumental implicou a libertação da política, o pragmatismo filosófico e o utilitarismo social.
O que especificamente carateriza o funcionalismo jurídico é a sua particular atitude perante o direito: o
funcionalismo pergunta “para serve o direito?” e não “o que é o direito?”. O direito é um mero instrumento e
não uma ordem autónoma em si.
O funcionalismo, nos termos expostos, assume diferentes modalidades, designadamente:
Funcionalismo político: o direito é compreendido como um instrumento político, devendo assumir um
determinante objetivo político. Este funcionalismo ocupa um lugar à parte porque foi elaborado com base
num específico compromisso ideológico: o neomarxismo. O jurista político seria condição necessária para a
existência de uma nova sociedade política, assente nos ideais neomarxistas.
Funcionalismo social: distinguem-se duas sub-modalidades:
Funcionalismo social tecnológico: os modelos são, já não revolucionários, mas estratégicos,
orientados por critérios de performance. O direito e o pensamento jurídico são perspetivados
como uma “social engineering”, sendo a realização concreta do direito levada a cabo nos termos
da “teoria da decisão”.
Funcionalismo social económico: a sociedade e toda a prática social são consideradas segundo a
estrutura do mercado. Assim sendo, o direito só teria sentido na perspetiva da eficiência
económica (da maximização da riqueza).
-Funcionalismo sistémico: o direito é visto como um subsistema social, seletivo e estabilizador de expetativas,
segundo um código binário de lícito/ilícito, legal, ilegal...
A consequência para a função judicial de tudo isto não podia deixar de ser a seguinte: o paradigma deixa
de ser a aplicação (como ocorria no normativismo legalista) e passa a ser o da decisão. Essa decisão deve ser
orientada por um princípio de optimização na realização de um certo objetivo, escolhendo-se a solução em
função dos efeitos que melhor realizem esse objetivo. A “decisão” é, exatamente, a escolha de uma entre várias
opções, daí que se fale aqui em “paradigma da decisão”.
[Neste contexto, compreende-se o apertado diálogo do funcionalismo jurídico com a ciência política, com a sociologia e
outras ciências sociais. O próprio funcionalismo pretendia assumir-se como ciência social – a ciência de controlo social.]
O “juiz político” pressuposto exerceria uma função decisória essencialmente funcional, teleológica,
instrumental, evolutiva e pragmática: a solução mais justa seria a mais adequada ao objetivo proposto pelo
planificador social.
Assistir-se-ia ao declínio da “rule of law”, a qual seria superada pelo “judicial-power model”, no qual o juiz é
constitutivamente interventor, criador das soluções exigidas pelos fins e interesses sociais, tendo grande
autonomia. A sua nova missão imporia que atuasse além do campo delimitado pela lei, que deixasse de ser
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um aplicador passivo de regras e princípios pré-estabelecidos; ao invés, ele passaria a colaborar na realização
de finalidades sociais e políticas, comparando as alternativas e decidindo mediante a escolha de uma delas.
A este modelo apõem-se diversas críticas:
O direito é submetido a uma radical instrumentalidade.
É rejeitada a autonomia do direito.
O funcionalismo pode representar, mais do que uma conceção do direito, uma alternativa ao direito qua
tale, podendo questionar-se se essa seria efetivamente uma correta via alternativa.
O juiz é, no fundo, um militante político ou um administrador discricionário, com todos os problemas que
isso acarreta para a realização da “justiça”.
São renunciados os valores e princípios, o sentido e as garantias que se vinculam ao Estado de Direito.
Em suma, o que deverá perguntar-se é: os benefícios porventura retirados deste modo de realização do
direito compensarão as perdas capitais que serão o seu preço?
C) Jurisprudencialismo
Esta terceira alternativa recusa os extremos dos dois modelos anteriores: nem se trata da autonomia formal
do normativismo, nem do instrumentalismo exponenciado do funcionalismo.
O que propugna é, isso sim, a autonomia de uma validade normativa material que se realiza no
homem-pessoa.
São pressupostos deste modelo:
1. A antropologia axiológica:
Convoca uma recompreensão do próprio homem, com uma mais profunda reflexão quanto ao sentido
com que nos deveremos compreender e às exigências do nosso compromisso de coexistência. Afirma-
se o “homem-pessoa”, com todas as implicações axiológicas e éticas do sentido de “pessoa”. No
sentido de “pessoa” postula-se a sua dignidade absoluta, mas nega-se a sua identificação ao
“indivíduo”: recusa-se o individualismo.
Ademais, essa dignidade implica um recíproco reconhecimento e compromissos comunitários (pois
ser pessoa é viver em comunidade) o que se traduz não só numa ética perante a pessoa como
igualmente a responsabilidade ética da pessoa em relação ao universo humano: o ser humano surge,
além de sujeito de direitos, também como sujeito de deveres.
2. A exigência de fundamento:
O fundamento de validade convocado radica no postulado do sujeito ético, com a sua liberdade
reconhecida enquanto pessoa e assim com a sua igualdade entre iguais.
3. A instituição de uma validade:
O Direito só o é autenticamente com a instituição de uma validade (algo que o legitime como ordem),
nem é tão-só objeto normativo para uma determinação estritamente racional (normativismo), nem
mero instrumento de um finalismo heterónomo (funcionalismo), mas sim axiológico-normativo fim
em si mesmo: ele próprio é um valor na validade que exprime. Esta validade convoca valores e
princípios jurídicos que se manifestam na consciência axiológico-normativa decorrente da
consciência jurídica geral da comunidade histórico-cultural.
A indeterminação normativa que é própria da fundante validade propugnada exige uma determinação de
índole dogmática a que são chamadas as normas legais, com a complementariedade da reelaboração
doutrinal e dos contributos jurisprudenciais.
“Essa validade dogmaticamente determinada (através da lei, da doutrina e da jurisprudência) enfrenta uma
concreta problematização praxística nos casos decidendos, a exigir uma mediação judicativa que realize a
validade nessa prática. A dialética entre sistema e problema é a racionalidade jurídica a considerar” A Linhares
O sistema jurídico começa sempre por delimitar e pré-determinar o campo e tipo de problemas suscetíveis
de surgimento; a experiência problemática, por sua vez, vem alargar-se e aprofundar-se, em termos de fazer
emergir novos problemas, implicando novas respostas. Daqui se concluir que o Direito numa será um dado,
mas sim verdadeiramente um problema.
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As normas jurídicas positivas têm limites objetivos, intencionais, temporais e de validade, pelo que o
sistema jurídico tem necessariamente que ser mais amplo. Os valores e princípios normativos que são
fundamentos regulativos do próprio sistema são os últimos critérios de realização do direito.
Neste contexto, devem considerar-se 2 momentos na realização do direito:
A norma legal deve ser interpretada de acordo com a normatividade fundamentante constitutiva do
sistema jurídico, referenciada às intenções axiológicas da consciência jurídica geral.
A norma legal deve dialogar com as exigências específicas do caso concreto [o valor hipotético aferido
previamente em função da axiologia do sistema e da ratio legis é submetido a uma experimentação
problemático-decisória em referência à relevância jurídico material do caso concreto, podendo concluir-se pela
adequação do sentido hipotético, pela analogia entre a solução que dele resulta e a solução exigida pelo caso ou
pela sua inadequação (caso em que a solução deverá ser autonomamente constituída)].
Desta dialética conclui-se ser indispensável uma mediação judicativa a realizar pelo operador em concreto
(o juiz). Por isso se fala, aqui, em paradigma do juízo (não numa lógica aplicação, como no normativismo, nem
numa estrita decisão, como no funcionalismo). Por “juízo” entende-se julgamento, no sentido de ponderação
prática, e o seu critério são fundamentos, aqueles em que a normatividade do sistema de validade se
manifeste e determine.
Uma metodologia só chega a ser tematizada quando a prática racional do domínio que lhe corresponde se
tenha tornado problemática, e na forma específica de um problema de 2º grau.
O jurista realiza o direito resolvendo os problemas jurídicos concretos, e o problema da metodologia
é o da própria realização do direito que se cumpre e tem por conteúdo a resolução desses concretos
problemas jurídicos. No fundo, perguntamo-nos pela problematicidade jurídica em si mesma.
Ora, a problemática, exige a verificação de uma situação de crise. Assim também nos problemas de 2º grau: a
realização do direito é convocada quando se coloca um problema prático, isto é, quando há uma crise numa
situação jurídica concreta; a metodologia só é chamada quando, havendo sido convocada por um problema
prático, a própria realização do direito é posta também em crise, tornando-se ela própria um problema.
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6.1- O Pós-Positivismo
Com o positivismo a criação político-material do direito, o pensamento e a metodologia dos juristas tinham-
se por puramente jurídicos, nos termos seguintes:
O direito seria só o direito positivo:
Exclusão de qualquer juridicidade com fundamento materialmente pressuposto e indisponível ou
natural (metafísico, antropológico, axiológico...);
Compreensão do direito positivo como o direito vertido nas prescrições dos órgãos político-
socialmente legitimados para criar direito.
O direito positivo relevaria normativo-juridicamente como forma:: o direito seria a estrutura ordenadora
da vida social, a considerar em abstração da matéria social ordenada ou sem referência a quaisquer intenções
materialmente práticas (fossem elas a exigência da justiça, os valores ou os fins político-sociais). Porque
assim era, o pensamento jurídico compreendia a interpretação do direito em sentido estritamente dogmático
ou lógico-sistemático, e não em sentido teleológico.
O pensamento jurídico dirigia-se teoricamente ao direito, considerado como objeto: ao pensamento
jurídico cabia conhecer o direito que é (de iure condito) e não o direito que deve ser (de iure condendo). O
objetivo metodológico era meramente cognitivo, de índole dogmática e formal (o jurista limita-se a conhecer
o direito, tal como o legislador o criou, e a aplicá-lo lógico-dedutivamente : “Método Jurídico”).
Esta conceção metodológica do pensamento jurídico positivista foi posta em causa por uma sucessiva
compreensão metodológica “post-positivista”:
A teoria positivista da aplicação do direito é metodologicamente insustentável: a análise da aplicação tão-
só lógica revelou que ela é (na verdade) determinada por ponderações normativas e intenções práticas
exigidas pelo mérito jurídico particular do caso. Daqui podem retirar-se duas conclusões:
O pensamento jurídico pode ser visto como ciência no conhecimento dogmático de normas abstratas,
mas há que reconhecer jurisprudência na decisão concreta;
A jurisprudência envolvida na decisão concreta é normativamente constitutiva no seu decidir
concreto. O direito afirmado na decisão concreta não é a mera e repetitiva reprodução do direito
abstrato aplicando, e sim uma reconstitutiva concretização, integração e desenvolvimento prático-
normativo desse direito abstrato, segundo as exigências do caso.
Em suma: “A jurisprudencial decisão concreta revela-se também, afinal, criadora de direito.”
O direito não é só forma, mas intenção material, e a índole do pensamento jurídico não é simplesmente
lógico-analítica mas normativo-teleologicamente constitutiva: o direito é, e deve ser, um regulativo material,
comprometido em valores, fins e interesses.
A realização do direito não pode fazer-se unicamente através dos critérios do direito positivo: a
interpretação jurídica não pode prescindir da referência a fatores ou a elementos normativos extratextuais e
transpositivos.
Portanto, o objeto intencional e o sentido problemático da metodologia apenas podem ser
adequadamente compreendidos no contexto de superação do positivismo.
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O juízo jurídico tem a função de reconduzir a decisão necessária (pois a controvérsia emergente do caso
jurídico tem que ser resolvida) à fundamentação necessária (na medida em que a decisão deverá justificar-se perante
os seus destinatários). A decisão é intrinsecamente manifestação da vontade humana, pelo que o juízo cumpre
aqui a função de lhe conferir racionalidade fundante.
De facto, ao juízo jurídico compete reverter a voluntas à ratio.
Isto sem prejuízo de não ser possível a realização do direito exclusivamente através do juízo: a decisão
será sempre necessária neste processo. Por muito que o juízo confira racionalidade à realização do direito,
não se pode negar que um momento decisório: por um lado, a realização do direito é efetuada por um poder
(o poder jurisdicional) que, como tal, tem que ter um espaço de atuação, não devendo ser cingido a uma
racionalidade previamente determinada (caso contrário colocar-se-ia um problema de separação de
poderes); por outro lado, haverá sempre que ser tomada uma decisão que, como resultado da atuação
humana, é insuscetível de ser absolutamente dominada pela ratio: há circunstâncias concretas que assumirão
maior ou menor relevância consoante o caso e consoante a visão do julgador.
Ora, se o juízo constitui e exprime uma fundamentação, terá de implicar decerto fundamentos e
critérios. Além dos fundamentos e critérios empírico-factuais relativos ao caso decidendo, serão
fundamentos e critérios aqueles prescritos pelo direito positivo vigente (normas, princípios, etc.). Assim
sendo, o juízo é o “ato” que simultaneamente converte a lex em decisão e reconduz a decisão a uma
fundamentação.
Portanto, o juízo é o objeto intencional da metodologia jurídica: ele é a ponte entre o direito positivo
vigente (a juridicidade) e a decisão concreta (a realização do direito em concreto).
!!! O “caminho” realizado pelo juízo será o definido por um modelo metódico. É sobre esse modelo metódico
que versa o nosso estudo subsequente. O modelo metódico referido compreende dois momentos:
1. Momento formal: esquema operatório a seguir (o “caminho”);
2. Momento material: racionalidade específica que através desse esquema se faz juízo decisório.
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Por “ratio” pode entender-se a relação entre certa conclusão e certos pressupostos, materiais ou formais,
que discursivamente a sustentam, conferindo-lhe sentido ou concludência. Uma conclusão diz-se, assim,
racional quando é sustentável pela referência a certos pressupostos, através de uma mediação estrutura do
pensamento.
Portanto, na antítese da “razão” temos a “intuição” ou a “emoção”, enquanto atitudes vivenciais sem
mediação do pensamento e, portanto, sem pressupostos de fundamentação e justificação. Isto permite-nos
dizer que a racionalidade é caraterística de tem ou se propõe ter validade objetiva, a qual se afere pela
capacidade de fundamentação e pela criticabilidade da mediação racional-discursiva das afirmações desse
pensamento.
Suscita-se então a questão: Qual é a racionalidade pressuposta pelo jurista? Qual a racionalidade
praticada pelo jurista ao desenvolver a sua atividade jurídica? Em que sentido é que se pode dizer racional a
realização do direito? De que tipo é o logos da metodologia?
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A) Racionalidades em Geral
1- Racionalidade Lógico-Formal
Há aqui um recurso à “lógica formal”: ciência da verdade de proposições com fundamento unicamente
na forma.
Dois exemplos de modelos históricos que convocaram esta racionalidade lógico-formal são o jusracionalismo
moderno e o normativismo do séc. XIX. Vejam-se os seus traços essenciais:
a) Jusracionalismo Moderno: o jusracionalismo moderno, configurado por nomes com Wolff, Hobbes,
Pufendorf e Grócio, convocou a racionalidade lógico-formal para erigir um sistema assente no direito
natural. O direito natural revelar-se-ia em axiomas antropológicos (= enunciado que procurava captar
o que era essencial no Homem), empírico-naturalisticamente descobertos. Tais axiomas, ético-
racionalmente assumidos, seriam o ponto de partida para um processo de dedução lógica: do axioma
obter-se-ia o sistema normativo mediante uma desimplicação lógica. Os princípios e normas que
constituíam o sistema eram, portanto, “extraídos” do axioma que fundava o sistema; esse processo de
“extração” traduzia-se na realização de um conjunto de deduções lógicas. [Ex.: para Hobbes o axioma
advindo do direito natural consistia na “natureza iminentemente social do Homem”. Desta “premissa”
eram extraídas todas as normas e princípios que constituíam o sistema jurídico.]
b) Normativismo Dogmático: com o normativismo do séc. XIX o silogismo judiciário ganhou absoluta
centralidade no campo da racionalidade. O silogismo judiciário traduzia-se, exatamente, na utilização
da subsunção e da lógica estritamente formal para retirar conclusões através da articulação entre dois
enunciados relacionados entre si. As normas seriam interpretadas em abstrato para que no momento da
sua aplicação a subsunção operasse pura e simplesmente, sem mais. Entendia-se, então, que o Direito
devia ser conhecido na sua abstração, não devendo o momento de aplicação implicar qualquer tarefa
constitutiva. Consequentemente, o aplicador do direito (juiz) limitar-se-ia a verificar se os factos são
subsumíveis à norma (previamente interpretada em abstrato). Este foi o esquema que, em traços gerais,
conformou o “Método Jurídico”. O silogismo judiciário referido apresentaria a seguinte estrutura:
Premissa maior » Norma = previsão + consequência (A tem como consequência B)
Premissa menor » Subsunção do caso à previsão da norma (C subsume-se a A)
Conclusão » Aplicação da consequência da norma ao caso (C tem como consequência B)
A racionalidade teorética traduz-se num discurso de referência objetiva: pretende obter-se uma “verdade”
objetiva, buscando-se o direito-objeto à realidade. O cognitivismo jurídico mobiliza sempre um discurso
teorético e a estrutura sujeito-objecto que lhe corresponde;
Sujeito: uma intenção cognitiva (de contemplação, explicação, compreensão) que, enquanto tal, se
dirige ao direito;
Objecto: o Direito (Direito assim mesmo pressuposto e referido como uma realidade auto-
subsistente).
Esta conceção pode ser resumida no princípio filosófico propugnado por Thomas de Aquino “adequatio
rei et intellectus”, que significa, numa tradução aproximada, “a verdade é a adequação da inteligência à
realidade”. Em suma, em todo o objectivismo jurídico o direito vai pressuposto como objecto, como uma
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entidade objectivamente subsistente (seja social, seja normativo-cultural). Por isso, essa realidade admite a
interrogação (e a discussão) sobre o seu modo-de-ser (o que é o direito?) para que a aplicação prática possa
ter lugar.
2.1- Teorético-Especulativa
Os princípios e os valores (que os princípios normativamente especificam) aparecer-nos-iam como entidades
absolutamente transcendentes (com uma racionalidade e uma organização próprias), que o sujeito deveria
apenas contemplar; o aplicador do direito lê-interpreta essa realidade absoluta, a-histórica e universal
(realidade com uma racionalidade inscrita nela própria) sem ter que a reconstruir, com o intuito de a verter
num sistema normativo capaz de fundamentar as soluções prático-argumentativamente construídas para as
controvérsias. Em suma, a resolução dos casos concretos resultava de um processo
especulativo/intelectual (contemplação»speculum), em que o aplicador do direito procurava adequar os
princípios e valores transcendentes à realidade decidenda.
Jusnaturalismo pré-moderno: fala-se a este respeito num “monismo metódico”: a realidade (o “Ser”)
abrange tanto os objetos físicos e materiais como os princípios e valores transcendentes. O direito descobrir-
se-ia, então, sucessivamente, através do conhecimento dessa realidade objetiva na sua plenitude e perfeição.
Ora, a projecção destes princípios (obtidos metafisicamente) na prática das acções humanas exige uma
mediação argumentativa (realizada pelo julgador) que culmina numa construção de juízos-julgamentos não
necessários (apenas prováveis ou verosímeis). Deste modo, a experiência de autonomização do direito
transforma-se em tarefa prática de resposta a controvérsias, tudo com base na mera contemplatio.
A partir do século XX esta confiança na ciência começa a ser abalada, devido ao aparecimento de
fenómenos no campo do saber, que põe em crise a autossegurança que a ciência tinha. A destabilização das
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certezas em que repousava esta racionalidade deu lugar ao surgimento de autores que vieram mostrar que a
própria indutividade do método científico era um ideal irrealizável. Quem deu a estocada final nessa matéria
foi Karl Popper provando que o objeto da ciência não consiste em desenvolver preposições de veracidade a
propósito do mundo, pois, o que o cientista faz não é desenvolver teorias a explicar como o mundo é, o que
ele faz verdadeiramente é desmentir as teorias existentes. Popper dizia que a partir de uma amostra é
impossível formar uma lei geral e, assim, este pensamento dá origem à teoria da falsificabilidade.
2.3- Técnico-Funcional
Neste âmbito a realidade é considerada como condição e possibilidade para a consecução de certos fins
propostos ou programados, segundo uma relação funcional (função-efeitos) ou um esquema técnico (meio-
fim) – o sujeito contempla a realidade com o intuito de compreender a possibilidade de realização de certos
fins ou de produção de certos efeitos. Assim sendo, a validade traduz-se na adequação ou aptidão do objeto-
direito para a prossecução do fim visado, havendo racionalidade sempre que se conclui pela eficácia ou
eficiência.
2.3.1- Funcionalismos Materiais (Hans Albert, Teoria da decisão de Walde e Killian, F. Ost)
*ver pág. 23.
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Efetivamente, a ratio prática traduz-se numa atividade comunicativa, numa relação entre sujeitos
segundo um esquema sujeito-sujeito: manifesta-se numa troca comunitária e dialógico-dialética de
argumentos. Pretende-se, portanto, a validade em sentido prático. Assim sendo, esta é uma racionalidade
dirigida menos à razão, em si, e mais às razões mobilizáveis na sua situada dialética prática de uma
controvérsia.
Antes de mais, é interessante voltar a Aristóteles para perceber o que seria essa prudência como virtude;
O filósofo situa esta virtude da prudência precisamente naquilo que ele diz a parte da alma que se volta para
as coisas que mudam, que são contingentes, que sendo assim podiam ser de outra maneira; tudo aquilo que
era necessário, portanto, tudo aquilo que não muda só poderia ser contemplado, mas quando estamos no
domínio da experiência aí as próprias práticas do sujeito fazem parte da sua própria experiência ou da
experiência que ele está a procurar determinar: o que temos é claramente é um discurso sujeito-sujeito.
Porquê? Porque essa prudência tem a ver com a virtude de agir e decidir em concreto perante os casos
e as situações; é uma virtude voltada para a ação e decisão em concreto, mas uma resposta que seja racional;
e ser racional aqui significa ser comunicável, ou seja, que as razões que vão fundamentar essa resposta
possam ser intersubjetivamente partilháveis e ser discutidas dialogicamente (em diálogo) e ao serem
discutidas também podem ser controladas na sua racionalidade.
Aquilo que aqui se desenvolve é uma tentativa de discutir essas razões, esses fundamentos construindo
argumentos que possam persuadir o nosso interlocutor, ou seja, estamos numa prática de argumentação; a
verdade prática é uma verdade que não se consegue através da contemplação, mas sim, através de uma troca
de argumentos que aparecem em diferentes graus, mais verossímeis ou persuasivos do que outros
argumentos; portanto, esta racionalidade não implicará uma lógica formal, mas sim, uma lógica do
provável/verosímil, que é exatamente a dialética (uma disciplina sustentada numa estrutura de
comunicação de argumentos; a dialética parte de proposições que são apenas prováveis, pois tem exatamente
a ver com as coisas que mudam, algo de contingente).
A dialética é a lógica do provável e do verosímil, mas quando essa lógica é utilizada para convencer o
auditório, essa dialética converte-se em retórica (a retórica é uma das dimensões da dialética para dirigir a
um certo auditório – estamos a falar de uma retórica que parte da dialética).
Este discurso sujeito-sujeito entrou em declínio com a viragem moderna; de tal modo que quando chegamos
ao século XIX já não encontramos na formação jurídica qualquer traço destes discursos dialéticos; o
pensamento jurídico ao querer ser ciência vai querer separar-se do seu objeto – o direito -, pelo que não é
uma intenção normativa que está aqui em causa, mas sim uma intenção cognitiva.
Na segunda metade do século XX, reuniram-se condições para reabilitar a racionalidade prática, para
reabilitar o pensamento prático, o discurso prático. O que aconteceu foi o resultado de vários fatores, entre
os quais a tal crise da razão moderna, que consiste em grande parte no reconhecimento de que para além
da racionalidade científica (sem pôr em causa a sua importância) mostrar que há consoante as práticas que
nós desenvolvemos, diferentes racionalidades. Pois, o discurso científico não serve para tudo,
designadamente, quando estamos a pensar em ações humanas.
“Então, o que vai acontecer é que se vão recuperar estes modelos pré-modernos; vamos encontrar um
autor alemão que procura pensar o Direito a partir de uma perspetiva dominantemente tópica, que o direito
tem a ver com casos, pensar o Direito através de casos, logo, muito diferente do discurso demonstrativo e
lógico-dedutivo, mas que falha quando estamos a pensar ações e decisões humanas, pelo que temos de
repensar a racionalidade e um desses modos é recuperar alguns discursos usados pela tópica; ao mesmo
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tempo também temos (no início dos anos 60) um autor belga que vem no fundo, numa linha mais geral, falar
da nova retórica experimentada a partir de um direito; Steven Tomin vem reconstruir o que é um argumento;
no final dos anos 50, princípio dos anos 60, começa-se falar de racionalidade prática e de um esforço de
recuperação da prática e, por maioria de razão, recuperando-se também a metodologia voltada para a prática
dos problemas. As soluções jurídicas nunca são obtidas por dedução, é pois, um artifício criado pelo
positivismo legalista do século XIX que procurou defender o silogismo subsuntivo; a racionalidade prática
é uma racionalidade de prática de argumentos, com uma estrutura dialética (dialógica).”
Nos anos 70 começa a falar-se da reabilitação da filosofia prática, perceber que a racionalidade jurídica
é uma racionalidade prática – prudência.
Só que há aqui uma questão a ter com conta, esta reabilitação da filosofia prática não é um regresso puro e
simples ao contexto pré-moderno, nem podia ser assim, porque não há uma projeção idêntica ao que
encontrámos na época pré-moderna.
Época Pré-Moderna: há uma ordem última de princípios e de valores que dá sentido a tudo isto, e
essa ordem não é uma criação humana e por tudo isso é uma ordem necessária, indisponível, eterna;
seria, portanto, uma prática comum a todas as civilizações – todos vivem na convicção que de há uma
ordem das coisas, que há princípios imutáveis e que, portanto, não estão dependentes da criação
humana.
Segunda metade do Séc. XX: tudo isto relativamente a uma ordem natural, indisponível e necessária
está ausente quando se recupera a dialética, a retórica e a tópica, esses valores são criações humanas!
Assim, se os valores últimos são criações humanas, então, podem não ser universais; os princípios
jurídicos são, portanto, criações humanas que se vão transformando e enriquecendo historicamente, num
determinado círculo histórico (claro que isto é uma afirmação que podemos fazer hoje sem esquecer que há
tentativas de recuperar visões jurídicas; fala-se, hoje, num neojusnaturalismo, por exemplo).
Mas, como é que estamos vinculados a esses valores? Se são criações humanas, podemos dispor deles, logo
não estamos verdadeiramente vinculados – há aqui um equilíbrio a estabelecer entre aquilo que nós podemos
dizer uma autovinculação e uma autodisponibilidade; estes valores estão abertos à transformação, mas essa
transformação é um processo lento, pois, não é um sujeito que rompe, de per si, com estes valores; como
também percebemos que politicamente não seja possível romper com este horizonte de valores, pois as
opções do sistema político têm que conviver com este horizonte de princípios que enforma a comunidade em
que esse sistema político está inserido.
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procedimental e finalista. Uma tendência que, de resto, se começara a manifestar logo no início da
modernidade e se acentuou a partir do iluminismo.
Na verdade, como já tivemos ocasião de mencionar, o homem moderno deixou de referir a acção prática a
uma ordem de sentido onto-teleológica. O Homem passa a ver nos fins uma mera manifestação de pretensões
subjectivas e na acção uma possibilidade causal (funcional ou técnica) de desencadear como efeitos esses
fins. Os fins deixam de ser a expressão teleológica de uma ordem onto-axiológica e a acção humana, por eles
orientada, passa a analisar-se em termos de eficácia ou mesmo eficiência na consecução dos fins ou
objectivos.
Paralelamente, a recusa de ordens ou sistemas de valores absolutos que se foi acentuando desde a
modernidade e a simultânea problematização da verdade suscitada pela ciência conduziram ao abandono
das filosofias do fundamento e ao descrédito da investigação dos fundamentos últimos.
Porém, para Castanheira Neves, não está hoje excluída a possibilidade de uma fundamentação material,
seja em sentido geral, seja em termos especificamente axiológicos. Ponto é que se não assimilem os
fundamentos a objectos-pressupostos ou entidades absolutamente transcendentes e autónomas perante o
sujeito, compreendendo-os antes, adequadamente, como autopressuposições humanas de sentido, i.e.,
expressões do auto-transcender fundamentante do homem em resposta ao porquê do sentido e do
valor (e à pergunta pelo bem e pela justiça). Aroso Linhares, também o defende, dizendo que «os valores
úlimos são criações humanas» (pág 20).
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Segundo a compreensão do direito que se tornou tradicional a partir da modernidade, o Direito é um objecto
a que o pensamento jurídico se dirige numa intenção teorética, cuja índole varia de acordo com o tipo de
objectualidade atribuída ao direito:
Índole ontológico-dogmática, no caso de o direito se identificar com um objecto-Ser;
Índole normativo-dogmática, se for reconduzido a um objecto-norma;
Índole empírica, se o direito for entendido como um objecto-facto.
São duas as notas fundamentais desta impostação:
Objectivismo: porque o direito é considerado um objecto pré-existente e pré-dado ao jurista.
Cognitivismo: na medida em que o jurista se dirige a esse dado concluso com uma mera intenção
cognitiva, pelo que os problemas jurídicos se convertem em problemas de conhecimento e a
juridicidade passa a assumir-se numa intenção de verdade.
Esta racionalidade foi adoptada pelas seguintes concepções do direito e pensamento jurídico:
1.1- Jusnaturalismo Normativista:
Via o direito como objecto, porque pressuposto em entidades ontológicas (o cosmos) ou antropológicas (a
natureza do homem). Caberia ao jurista aceder a esses dados objectivos da razão, “para com base neles
construir lógico-dedutivamente um sistema coerente de regras de direito, mobilizável depois também
conceitual-logicamente e silogístico-subsuntivamente para resolver os problemas jurídicos”.
1.2- Positivismo Jurídico:
O Direito seria um objecto prescritivamente imposto pelo legislador (direito positivo), que o jurista deveria
conhecer e nele subsumir os casos concretos.
1.3- Realismo Jurídico:
O Direito seria um facto social ou psico-social, expresso em práticas e discursos dos membros da sociedade,
ou até no conjunto das decisões proferidas pelos juízes. Substitui-se a normatividade pela factualidade: o
direito é aquilo que é e não o que devia ser. A decisão jurídica explica-se por causas sociológicas e
psicológicas, e assim a ciência do direito deveria, não apenas estudar as normas jurídicas, mas também
aqueles comportamentos-decisões, enquanto explicáveis por um certo conjunto de factores, de modo a
conseguir prever esses mesmos comportamentos no futuro (racionalidade teorética).
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2- Racionalidade Tecnológica/Instrumental
Trata-se de um tipo de racionalidade que dominou grande parte do século XX. Para esta racionalidade, o
pensamento jurídico é compreendido, já não como uma teoria, mas sim como uma tecnologia, uma
engenharia social (social engineering); e o direito como um instrumento para atingir certos fins sociais.
Estas correntes remetem o direito ao domínio das ciências sociais, diluindo a sua autonomia e a sua
normatividade.
“O pensamento jurídico é convocado para, através do direito, definir as soluções mais oportunas ou
úteis e instrumentalmente adequadas ou eficazes” C Neves.
“A utilidade, com a sua índole pragmática e a sua racional eficiência prefere à axiológica justiça e à sua
apelativa normatividade, e a performance prevalece sobre a validade. Em conformidade, o jurista deixa de ser
o prudente (ver pág. 18) e passa a ser o engenheiro ou técnico social que encara a prática como um meio
causador de efeitos. Os valores são substituídos pelos fins (subjectivos), os fundamentos normativos pelos efeitos
empíricos e a legitimação axiológica pela legitimação com base nos efeitos” L. Vale
Hans Albert tentou transpor para o universo prático o modelo epistemológico do racionalismo crítico de Karl
Popper, procurando empregá-lo na resolução de problemas da prática social.
Tinha em vista a possibilidade de uma crítico-racional organização e orientação sociais através da
normatividade jurídica. O direito passa a ser olhado como uma estratégia político-social funcional e
finalisticamente programada, assinando-se ao jurista a tarefa de descobrir os fins da sociedade no contexto
histórico-cultural em que se integra, para elaborar os modelos de solução dos problemas jurídicos, que
mais eficazmente permitam realizar aqueles objectivos. Ou seja, para a consecução do programa político-
social da sociedade, constroem-se projectos de solução dos casos de direito.
Isto é feito segundo um modelo científico, obedecendo aos princípios da congruência (as soluções têm
de ser sistematicamente possíveis no contexto social em que se inserem); realizabilidade (as soluções têm se
der viáveis, ou seja, susceptíveis de realização); e explicabilidade (a construção e aplicação deve ser passível
de esclarecimento pelo pensamento científico).
Estas propostas têm de ser depois experimentadas, e só serão adotadas se os seus resultados se mostrarem
satisfatórios.
Em suma, estamos perante uma verdadeira tecnologia social sem carácter axiológico-normativo.
No plano da decisão, esta concepção deu origem ao modelo da teoria analítica da decisão, segundo o qual
a decisão seria uma causa de efeitos, e que portanto tem de ser avaliada em função deles. A decisão é “a
escolha finalística entre diversas possibilidades de acção tendo em conta os efeitos de cada uma dessas
possibilidades ou alternativas relativamente ao fim ou fins pretendidos”. A intenção da teoria analítica é,
assim, a de racionalizar as decisões através da definição de regras, com o objetivo de maximizar a sua
utilidade e oportunidade – tendo elaborado para tal uma lista hierarquizada de soluções, de acordo com
regras de probabilidade.
A referida “teoria da decisão” começa por observar que o tradicional método dogmático-normativo não seria
o determinante das decisões concretas, não passando de uma forma de legitimação a posteriori dessas
decisões. Daí que tal método pudesse ser legitimamente substituído. Ademais, o próprio sistema jurídico
atual justificaria essa substituição, com a sua contínua passagem de leis conservadoras e orientadas por
regras para leis de sentido evolutivo e orientadas pelos efeitos (Walde), e com o avanço de leis orientadas
funcionalmente e o recuo de leis constituídas clássico-condicionalmente (Killian).
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Portanto, tudo dependeria do fim da norma, na medida em que seria ele que se assumiria como parâmetro
para ajuizar negativa ou positivamente dos possíveis efeitos alternativos.
Este modelo de racionalidade levou a uma descaracterização da função judicial, patente no modelo do juiz
tecnocrata. Para o autor, no quadro dos actuais Estados Sociais de Direito, nos quais vigora uma justiça
científica, eminentemente finalística e com uma índole programática, o juiz deveria ser um agente ou
executante do projecto político-social desenhado pelo legislador, e não um terceiro imparcial. O juiz
prossegue tacticamente a estratégia do legislador, como uma sua “longa manus”.
Neste contexto, o juiz atua não só no momento da controvérsia, mas também antes e depois: antes, o juiz está
investido numa missão de prevenção, de aconselhamento, de orientação; depois, o juiz mantém-se
responsável pelos interesses em causa e pode rever as suas decisões. Como se vê, a função judicial surge com
uma nova configuração: a “nova missão” do juiz impor-lhe-ia uma atuação além do campo fechado dos
direitos subjetivos determinados na lei.
Neste âmbito, também o direito teria de sofrer uma alteração: as obrigações cujo respeito o juiz deveria
assegurar passam a assumir a forma de diretivas flexíveis ou standards e os direitos subjetivos assumem-se
como simples interesses. Na base de tudo isto estaria, sempre, a ideologia tecnocrática, com a sua legitimação
pela performance ou eficiência: uma coisa é boa se ela se mostra adequada ao fim prosseguido. A lógica da
performance acaba por se sobrepor à própria desejabilidade do objetivo prosseguido, de tal forma que a
relação valorada ou normativa seria substituída por uma relação causal. Toda esta mutação transformaria o
juiz em administrador e levaria à instrumentalização do direito.
Levados até às últimas consequências, destes modelos resultará um sistema político-jurídico em que o
Direito deixa de ser uma normatividade de garantia com uma axiologia própria, a função judicial passará a
ter como escopo a intervenção político-social. Verificando-se estas circunstâncias, desapareceria o Estado de
Direito como o conhecemos, transformando-se este num Estado de Mera Administração: a função judicial
acabaria convertida numa função executiva.
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A) Racionalidade Tópico-Retórica
Traduz-se num pensar dialético (alicerçado num raciocínio) de controvérsias praticas que mobiliza as
referências prático-culturais perfilhadas pelos membros esclarecidos de uma certa comunidade histórica, em
ordem a operar com esses critérios segundo uma argumentativa dialética inventada situacionalmente, na
qual participam os interessados no problema, com o objetivo de chegar a um consenso.
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Em suma, a racionalidade tópico-retórica, construído por Viehweg, partia dos problemas concretos,
mobilizando a seu respeito os lugares-comuns que se lhes aplicassem. Por “lugares-comuns” (ou “topoi”)
haverá que compreender argumentos estandardizados aceites por todos os membros de uma comunidade
histórica (ou pela maioria ou pelos mais qualificados).
B) Racionalidade Argumentativa
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Porém, Castanheira Neves distingue a retórica da argumentação: à primeira vai associada o sentido
pejorativo do pensamento clássico de manipular um auditório; por outro lado, a argumentação apenas se
centra nas regras do argumentar.
A retórica “não é bastante para desvelar a intencionalidade predicativa do direito e do pensamento
metodológico-jurídico” (Pinto Bronze).
Alexy
Desenvolveu a teoria do caso especial, segundo a qual o discurso jurídico é um caso particular do discurso
prático geral, demarcando-se apenas pelo facto de com afirmações e decisões jurídicas não se pretender a
absoluta correção, mas apenas que as mesmas sejam corretas à luz dos pressupostos do ordenamento
jurídico vigente. Ou seja, não basta uma comunicação correta, mas é necessário uma comunicação conforme
a esses pressupostos.
Segundo o autor, a racionalidade da prática é uma racionalidade discursiva (se a prática humana é discursiva,
também a racionalidade humana o será), pelo que é necessário apurar as regras que racionalizam esse
discurso – tendo assim elaborado um “código da razão prática”, composto por regras de argumentação que
devem ser observadas nos processos de justificação. A argumentação jurídica está sujeita a este código, pelo
que a correção e não arbitrariedade de uma decisão jurídica dependem do respeito pelas regras da
argumentação (mas, para além disto, está ainda sujeito à observação dos especiais vínculos jurídicos). Nas
palavras do autor, “um enunciado normativo é válido ou verdadeiro, se puder ser o resultado de um
determinado proceder, o proceder do discurso racional”.
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A) Racionalidade Hermenêutica
O filósofo norte-americano deu uma refundamentação ao entendimento da juridicidade que era veiculado
pela racionalidade hermenêutica. Os pontos-chave do seu pensamento eram os seguintes:
À racionalidade jurídica corresponderia uma racionalidade “de valor”, na medida em que toda a
comunidade jurídica se deveria orientar por um “ideal de integridade” – os agentes do direito deveriam
agir e decidir de forma consistente e coerente, segundo determinados princípios orientadores de
conduta.
O direito deveria ser pensado como um “model of principles”: o sistema jurídico seria um sistema global
de princípios ético-jurídicos em que sempre se haveria de procurar o fundamento para uma única solução
válida (aquela que se mostrava correta e justa in casu).
As decisões jurídicas admitiriam argumentos “de política” a nível legislativo, mas deveriam fundar-se tão-
só em argumentos “de princípios” a nível judicial.
A validade normativo-jurídica das decisões afirmar-se-ia pela sua inserção consistente e coerente no
sistema normativo do direito. Os casos decidendos teriam de puder ser compreendidos, através dessas
decisões, numa coerência normativa com o sistema do direito.
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Aqui a racionalidade das decisões vai depender também de critérios não jurídicos. O julgador deveria
convocar vários “códigos” (a moral, a ética, a política, o direito, etc.) com base nos quais iria avaliar a
questão decidenda. Com base nessa avaliação seria proferida uma decisão dita única, porquanto seria a
única plausível tendo em conta todos esses códigos: seria a decisão mais justa e correta no caso
especificamente em causa.
Aroso Linhares
Para Dworkin, o critério proposto de racionalidade na decisão é a sua coerência com as demais (law as
integrity); porém, para C. Neves a coerência, mesmo normativa, não pode ser o critério decisivo da validade
das decisões jurídicas, pois tal implicaria desatender à problematicidade específica do caso.
O nosso professor rejeita a racionalidade finalística ou instrumental, uma vez que o direito não se pode
conceber como um instrumento de realização de fins exteriores ao próprio direito.
Porém, significa isto que o direito é uma mera afirmação simbólica de valores, desinteressado do modo como
estes se repercutem na prática? Não!
Segundo Castanheira Neves, de acordo com uma concepção devidamente atualizada, a racionalidade
teleológica traduz uma «preocupação pelo objetivo intencional da ação concreta e pela normatividade que a
fundamenta» e «procura hoje pôr em correspondência as ações que se praticam e os fundamentos que
intersubjectivamente se lhe adequam, ou seja, intenta estabelecer analogias entre aqueles e estes».
Os valores no direito são intenções de realização concreta, e como tal o direito preocupa-se com a alteração
da realidade que a afirmação desses valores produz. Os fins em causas são, precisamente, as intenções
práticas materialmente constitutivas do próprio direito (e não quaisquer escopos sociais pré-definidos).
Assimilado, como é curial, a uma ética da responsabilidade, o direito não pode ignorar os fins, naquela
categórica atitude de indiferença pelos resultados da acção que é timbre de uma ética da consciência
(também dita da convicção ou da intenção). Mas isso não significa que deva cair no extremo oposto e erigir
as consequências sociais em critério decisivo das decisões judicativas a proferir, nos termos de uma ética dos
resultados. O carácter teleológico da racionalidade especificamente jurídica só pode reportar-se, por
conseguinte, a uma verdadeira teleonomologia, ou seja a uma teleologia dos fins específicos do nomos
jurídico (ou seja, na realização do direito é preciso considerar o telos do nomos).
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A) Prático-Material:
É uma racionalidade prática, ou seja, segue um esquema sujeito/sujeito e a validade apenas se pode avaliar
segundo um critério de maior ou menor razoabilidade e não de verdade/falsidade; e material, na medida em
que o que torna racional uma dada solução jurídica é a sua conformidade com determinados valores
normativos.
Portanto, é uma racionalidade prático-material de cariz axiológico, pois os fundamentos que a tornam
racional são valores.
B) Teleonomológica:
Como vimos, apesar desta referência material a uma axiologia fundamentante, o direito não se desinteressa
da realidade, e por isso a racionalidade jurídica não dispensa uma consideração dos fins – aqui
compreendidos enquanto as intenções constitutivas e regulativas da própria juridicidade.
C) Argumentativa:
Como também já vimos, a racionalidade jurídica é racionalidade argumentativa, uma vez que os critérios e
fundamentos convocados para resolver uma controvérsia são sempre objeto de uma exposição dialética, ou
seja, são mobilizados através de argumentos. Esta é uma argumentação material, referida àquela axiologia
normativa e ao problema concreto.
D) Dialética:
Caracteriza-se ainda por uma dialética entre o sistema e o problema. O sistema identifica-se com a validade
normativa do direito, que se vai objetivando numa dogmática; já o problema corresponde à controvérsia
juridicamente relevante, que requer uma mediação judicativa.
O sistema é expressão da validade normativa vigente estabilizado numa dogmática, e que se apresenta com
carácter aberto, ou seja, é redensificado na prática; já o problema é expressão da intencionalidade
problemática do direito, ou seja, é um problema jurídico concreto, cuja solução o juiz terá de encontrar
recorrendo ao sistema. É este o principal contributo de Castanheira Neves: não se pode pensar o sistema
sem o problema e o problema sem o sistema, e por isso a racionalidade jurídica é marcada por um ir e vir
entre estes dois pólos.´
E) Analógica:
Para Pinto Bronze, a dialética sistema-problema é uma analogia.
Essa dialética acaba por se traduzir numa mediação entre dois problemas – o problema jurídico concreto e
o problema jurídico intencionado pelo critério/fundamento relevante mobilizado. A racionalidade jurídica é
assim uma racionalidade analógica, uma racionalidade que discorre de particular a particular, ou seja, entre
dois pólos ao mesmo nível, através de um termo de comparação.
O objetivo da analogia é o de encontrar semelhanças entre essas duas entidades, o que orienta a analogia é
a procura da semelhança na diferença. Transposto isto para o direito, o objetivo da racionalidade analógica é
o de encontrar semelhanças entre os dois problemas (o problema do caso e o do critério) à luz do direito,
susceptíveis de prevalecerem sobre as diferenças e que justifiquem uma solução do problema concreto
semelhante à resposta dada pelo critério jurídico ao problema que leva pressuposto.
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Quando estamos a falar da racionalidade especificamente jurídica podemos dizer que, não obstante ser uma
racionalidade prática, se assume explicitamente autónoma.
A racionalidade específica e autonomamente jurídica possuí uma certa “tectónica” [do grego tektonikós, -ê,
-ón, relativo à construção, construtor, carpinteiro, ou seja, possuí uma certa “arquitectura”]. É, assim,
composta por determinadas dimensões:
A) Dimensão Axiológica
B) Dimensão Problemática
C) Dimensão Dogmática
D) Dimensão Judicativo-Decisória (Praxística)
A) Dimensão Axiológica:
A racionalidade jurídica tem a ver com a experiência de uma ordem de validade/de valores que no
fundo nos remete para o horizonte da comunidade, através de um processo de especificação, isto é, a
validade comunitária precipita-se no mundo prático do direito através de uma experiência
especificamente institucionalizada (o sistema jurídico que, em cada momento histórico, estabiliza
uma certa validade).
A validade comunitária que estamos aqui a falar é uma validade comunitária projetada neste
problema e que vai servir de padrão para este problema. O “padrão ed comparação” há-de ser
oferecido por essa validade comunitária (por um lado, teremos uma ordem de validade comunitária).
B) Dimensão Problemática:
Importa também considerar uma outra dimensão, que é a dimensão do problema/controvérsia que
se situa num pólo oposto à primeira dimensão.
Essa controvérsia tem identidade virtual de um litígio, porque esses sujeitos partilham essa situação
e têm legitimidade para firmar posições diferentes pressupondo um horizonte, um ponto comum (o
direito vigente).
Então, temos como duas primeiras componentes da racionalidade especificamente jurídica uma dimensão
axiológica e, por outro lado, uma dimensão problemática (controvérsias práticas) que se tornam
importantes quando reconhecemos nelas um problema de bilateralidade e de comparabilidade.
Essa estrutura da controvérsia dá-nos a chave para perceber que os sujeitos ao serem assim tratados, estão
a ser tratados como autênticos sujeitos-pessoas, num sentido especificamente jurídico (reconhecer a esses
sujeitos autonomia para firmar a diferença em condições que permitam desenvolver um percurso que nós
sabemos ser contraditório e estabelecer, assim, um verdadeiro diálogo de razões).
C) Dimensão Dogmática:
É ainda necessário considerar a dimensão institucional ou dogmática. Porquê? Porque essa
dimensão se compõem através de práticas que são práticas de estabilização – práticas que vão em
diferentes níveis/estratos/patamares estabilizando a validade, os compromissos práticos de uma
validade.
Isto quer dizer que essa dimensão de estabilização dogmática nos leva a um esforço de compreensão
que tem como expressão principal o sistema jurídico, ou seja, é como se em cada comunidade se
desenvolvessem práticas de estabilização que levam a uma objetivação de fundamentos e critérios
constitutivos do sistema jurídico (pluridimensional, com diversos patamares/dimensões).
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A dimensão axiológica da validade está inevitavelmente associada à dimensão dogmática da qual vai
resultar a possibilidade de reconhecer em cada momento histórico o direito vigente, através
precisamente da institucionalização de um sistema: a validade é completada por uma dimensão
estabilizadora/institucional. Em cada ordem jurídica há práticas de estabilização da validade.
Temos, assim, uma (a) dimensão axiológica e, no pólo oposto, uma (b) dimensão problemática. Entre
ambas, existem mais duas dimensões: (c) uma dimensão dogmática e uma (d) dimensão judicativa.
Daqui podemos perceber o seguinte: responder ao problema concreto implica sempre fazer uma espécie de
dialética entre o novo (os casos não são sempre iguais, trazem sempre algo de novo) e o velho, o velho é um
elemento de tradição que se manifesta no próprio sistema, sem esquecer a sua novidade.
Quando consideramos o sistema jurídico percebemos que esse sistema é constituído por vários estratos
(princípios normativos, normas legais, jurisprudência judicial, jurisprudência dogmática e a realidade
jurídica)
SISTEMA JURÍDICO
Principios Normas Legais
Jurisprudência Doutrina
Realidade Jurídica
Isto significa que responder à especificidade do problema, significa mobilizar esse sistema na sua pluralidade
e aqui há que chamar a atenção para uma distinção: entre fundamentos e critérios.
Por que é que algumas componentes/dimensões do sistema devem ser tratadas como fundamentos
e outros como critérios? Isto porque tratar como fundamentos e tratar como critérios não é a mesma
coisa.
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!) O fundamento jurídico é um referente, é sempre aquilo que se invoca para sustentar um elemento;
representam no universo da prática jurídica essas exigências de sentido que têm de estar presentes.
Os princípios são sempre tratados como exigências a serem prosseguidas. Quando a reflexão
dogmática se dirige aos princípios e reflete sobre eles, então, essa reflexão também pode ser
considerada um fundamento, mas noutro plano, no plano da doutrina (exposição dogmático-
doutrinal desse princípio). (Ex: no caso do princípio da autonomia privada estamos perante a exigência de que, por
exemplo, quando estamos perante relações entre sujeitos privados, se respeite a autodeterminação dos privados, Estamos
a dizer que estas exigências são exigências fundamentais que não podem ser violadas. Dai que nós possamos dizer que
estamos perante um fundamento).
!) Os critérios jurídicos são operadores técnicos que pode ser imediatamente convocados para resolver um
determinado tipo de problemas, que pré-esquematizam soluções, antecipam problemas que podem surgir,
está em causa uma antecipação da dimensão problemática e do tratamento judicativo dessa dimensão
problemática. Como e faz essa antecipação?
Se se está perante uma norma legal, torna-se evidente que ela prevê um problema ou uma situação
que pode ocorrer, definindo uma série de qualidades ou caraterísticas. Se assim é, faz sentido que se
possa dizer que uma norma legal, sendo um programa voltado para o futuro, deverá ser levada a sério
não como um fundamento, mas sim como um critério.
Quando não temos um programa de “hipótese-estatuição”, e temos um programa final (“para quê?”),
a lei não deixa de antecipar certas situações que podem ocorrer, pois, quando a lei seleciona fins e
aciona meios para prever esses finas a lei não deixa de antecipar elementos dessa realidade
(elementos antecipados em abstrato pela lei)
Então, a norma legal, enquanto elemento do sistema jurídico deve ser sempre tratada como um
critério (há aqui sempre a previsão de um problema, que pode ser mais ou menos rigorosa).
Também se poderá dizer que certos modelos da doutrina também devem ser tratados como critérios;
a doutrina aí está a estabelecer critérios, mas diferentes dos critérios legislativos e jurisprudenciais.
Não decide casos, reflete sobre eles; reconstrói reflexivamente certas situações ou problemas que
podem ocorrer, propondo soluções para esses problemas, muitas vezes posteriormente às normas e
outras vezes antecipando-se às normas. São, também critérios jurídicos.
«Esta divisão entre fundamentos e critérios é apresentada muitas vezes através de uma imagem suficientemente expressiva:
no fundo essa imagem corresponde à uma ideia de que, quando eu estou a considerar um caso, aquele caso é único e
diferente de todos os outros e, por isso, a tarefa que tenho de fazer enquanto julgador é percorrer um território que nunca
foi atravessado. Por isso, acrescentamos à dimensão de validade uma dimensão dogmática; então o julgador para
atravessar o território dispõe de dois tipos de apoios: os fundamentos e os critérios. Isto significa que os fundamentos devem
ser levados a sério como se fossem uma bússola, ou seja, os fundamentos manifestam exigências de sentidos relevantes. Mas
aquele que atravessa aquele caminho tem outros apoios no plano metodológico: os critérios, que funcionaram como
itinerários ou mapas, porque nos critérios ter-se-ia uma antecipação mais ou menos pormenorizada da realidade. E esses
mapas são sempre antecipações de problemas que podem ocorrer (se tiver uma mapa saberei que se poderei caminhar
para a esquerda ou para a direita; no fundo com uma mapa ou itinerários eu tenho uma antecipação dos problemas que
podem ocorrer nessa travessia). Não quer dizer que esses mapas ou itinerários me dêem a solução, mas fornecem as
diretrizes.» Aroso Linhares
Nota: As intenções dos princípios não estão premeditadas em abstrato; este sentido só se descobre em pleno
quando se responde ao caso concreto, quando se mobiliza esse princípio. Sabemos que certos problemas
concretos mudaram significativamente o entendimento que a comunidade jurídica tinha de certos princípios
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(por exemplo, o pp. aa autonomia privada não foi sempre entendido da mesma maneira, em certos contextos
políticos e culturais este princípio era entendido em termos formais, ou seja, entendia-se que a liberdade de
contratar era quase absoluta; no entanto, este entendimento foi alterado em nome das exigências da
comunidade, dando um outro sentido a esta autonomia).
Portanto, os princípios não estão definidos em abstrato, vão-se projetando na realidade, vão sendo
circularmente alimentados pela realidade (estamos a falar de círculo produtivo: orientam as práticas, mas as
práticas vão-se refletir no conteúdo dos princípios). – É como se fossem dois pólos irredutíveis.
Evidentemente que quando estou a distinguir princípios, normas, critérios da doutrina, jurisprudência e da
realidade jurídica estou a dizer que cada um desses estratos dá um contributo claramente diferente do outro.
B) As normas jurídicas correspondem a uma objetivação da normatividade jurídica que beneficia de uma
presunção de autoridade (autoridade no sentido de poder político-constitucional).
C) Os critérios da jurisprudência judicial beneficiam de uma presunção de justeza/de correção, ou seja que
foi uma decisão adequada ao caso (justeza no sentido de adequação ao concreto).
Se se usam determinados critérios aos quais se atribuem determinadas presunções não há que justificar o
porquê de os usar/seguir, pois, eles fazem parte do direito vigente, pois, são elementos do sistema.
Mas fala-se de presunções porque não estão em causa estatuições absolutas, mas sim presunções
relativas e refutáveis: o que significa que de alguma forma o julgador vai estar em condições de afastar estes
fundamentos ou estes critérios se na verdade estiver em condições de mostrar, relativamente ao caso
concreto que tem de decidir, que esses critérios são desadequados. «Se eu sigo os critérios, não tenho que dizer
porque sigo, pois, são critérios do direito vigente, mas se me afasto deles eu tenho um ónus de contra-
argumentar, mostrando com toda a clareza, o porquê de me afastar dos critérios, fundamentar o seu
afastamento (a justificação tem, portanto, de ter implacavelmente rigorosa)» Aroso Linhares.
«Evidentemente que quando, no quadro do esquema metódico, pensamos assim a racionalidade jurídica, levando a sério
que o sistema é a explicitação da validade comunitária e que o problema está associado a uma dimensão judicativa (...). É
perfeitamente possível perceber que quando o julgador que enfrenta um problema concreto, tal como o caminhante tem de
atravessar um caminho desconhecido, é importante perceber se tem em seu poder um mapa/itinerário ou não. Obviamente
que o primeiro passo do julgador será sempre o de procurar no sistema um critério, mas posteriormente terá que o
trabalhar no caso (dialética sistema-problema).
Num sistema como o nosso – romano-germânico – o critério que primeiramente vai procurar é um critério legal,, uma vez
encontrada a norma ele terá que a experimentar em concreto e relacioná-la com os princípios; para vencer as
indeterminações das normas o julgador terá que estar atento à experiência judicial (decisões anteriores) e também à
doutrina, para que a experimentação seja uma experimentação conseguida;
No sistema de common law não é o critério seguido em primeira linha a norma, mas sim a uma decisão judicial, um
precedente vinculante. Este jurista não se deve ficar só pela mobilização do precedente, deve relacioná-lo com os princípios
e com os outros critérios; de facto, no fundo há uma abordagem do sistema que é diferente no seu início, mas depois, o
tratamento do sistema obedece a uma experimentação semelhante (dialética sistema-problema).» Aroso Linhares
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Conhecidas as diversas racionalidades que, em geral e especificamente no domínio jurídico, foram elaboradas
e propostas ao longo dos tempos, impõe-se perguntar:
O Método Jurídico do séc. XIX, que emergiu na conjuntura exposta, carateriza-se por três notas capitais:
A pretensão-exigência de conferir ao pensamento jurídico a sua autonomia discursiva;
O carácter prescritivo e normativo do Método;
A ambição de racionalizar teoreticamente a prática.
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Este sistema surgiria como algo que se apresenta à ciência do direito como um todo já constituído.
Consequentemente, a função do pensamento jurídico caberia apreender ou conhecer esse direito posto tal
como ele se apresentava – conceção teorética. Como nas ciências naturais, pretendia-se, pura e simplesmente,
conhecer a realidade das coisas (e não, portanto, criá-la).
O pensamento jurídico veio assumir a autonomia do seu discurso propondo-se a observar e apreender o
direito – numa relação sujeito-objeto – de tal forma que ficasse assegurada a coerência interna do próprio
sistema. Esta era, então, uma perspetiva puramente jurídica, que visava um conhecimento simultaneamente
jurídico e científico do Direito.
Para a realização da sua finalidade (permitir uma aplicação objetiva e formal do direito), associavam-se à
técnica jurídica do Método duas tarefas-fins complementares (cujo objetivo era, exatamente, fixar em
abstrato o direito aplicável, de modo a que, em concreto, ele fosse aplicado de forma puramente lógica, e não
constitutiva):
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mais a juridicidade, mediante criação de categorias normativas coerentes. Dentro deste sistema haveria
ainda que encontrar o “centro lógico”, isto é, aquilo que une as diversas proposições normativas integradas
naquela categoria específica. Deste “centro lógico”, e segundo um exercício de síntese, chegar-se-ia a uma
proposição única, ainda mais geral e abstrata, que consagrava o que era verdadeiramente nuclear naquela
categoria. Estas proposições seriam os designados “princípios normativos”. Note-se, porém, que os princípios
não eram, para a conceção do séc. XIX, direito vigente, mas sim enunciados obtidos do direito vigente que
permitiam sintetizar a juridicidade, em termos de simplificar abstratamente o sistema.
A) Momento Científico
Esta primeira operação assenta na conhecida distinção operada pelo pensamento jurídico do séc. XIX entre
jurisprudência inferior e jurisprudência superior [NOTA: o conceito “jurisprudência” é aqui usado como
sinónimos de “ciência do direito”]:
O pensamento jurídico inicia a sua atuação partindo do “direito dado” (imputado quer à elaboração político-
legislativa quer às forças históricas); esse direito será (1) convertido em proposições jurídicas
(necessariamente gerais e abstratas), as quais serão subsequentemente (2) agrupadas em categorias
normativas das quais se extraem enunciados de abstração e generalidade máximas (os princípios). Através
deste processo, aquele “direito dado” transforma-se em “direito-dogma”.
Por sua vez, este “direito-dogma” é o objeto da intervenção da jurisprudência superior, a qual se carateriza
por uma função de agregação em “estádios superiores”: com base no direito dado já organizado em normas
e princípios (3) identificar-se-ão agora os institutos e conceitos que conformam o sistema, de modo a
elaborar-se um sistema conceitual rigoroso que viesse a permitir uma posterior racionalização teorética da
prática.
Estas três etapas correspondem aos momentos acima enunciados: simplificação qualitativa, simplificação
quantitativa e construção de um sistema conceitual.
Em suma: os materiais do direito-objeto que constituíam o ponto de partida seriam convertidos em
proposições normativas e princípios, sendo com base nelas elaborados institutos e conceitos que
conformariam o sistema.
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B) Momento hermenêutico
No momento científico, a ciência do direito pegou no direito posto e transformou-o num sistema jurídico
conceitual lógico e coerente internamente (completo, unitário e fechado). Segue-se, então, a interpretação
das normas jurídicas que constituem esse sistema, de modo a que os respetivos sentidos sejam fixados em
abstrato, a priori, permitindo uma ulterior aplicação puramente lógico-dedutiva.
Esta interpretação será, necessariamente, uma interpretação dogmática: interpretar é atribuir à norma-texto
um sentido único e integrá-la no sistema-pirâmide em que a norma se insere. Porque assim é, a interpretação
acaba por realizar a tarefa de explicitar o próprio sistema.
Assume-se aqui uma conceção radicalmente constitutiva da textualidade: não há direito antes do texto e das
componentes linguístico-estruturais que o caraterizam: o direito só vale como estrutura formal, pelo que só
se fala verdadeiramente em direito quando se está perante uma norma jurídica geral e abstrata (composta
por uma hipótese e pela correlativa estatuição). Antes da conversão da normatividade retirada da realidade
em normas jurídicas (simplificação qualitativa) não há verdadeiramente direito.
Nas palavras de Castanheira Neves: “(...) a significação jurídica é constituída exclusivamente pelo texto e só no
texto, no seu conteúdo significativo (...)”.
Decorrente desta conceção do Método Jurídico é a teoria tradicional da interpretação. Note-se que partindo
embora do Método Jurídico, a teoria tradicional da interpretação lhe sobreviveu, subsistindo mesmo após a
superação daquele. Há, aliás, quem ainda hoje advogue esta conceção da interpretação jurídica, ainda que,
evidentemente, com os necessários ajustes ao entendimento atual do direito.
Impõe-se, a este respeito, responder a quatro questões matriciais:
Qual o objeto da interpretação? » o que é que se interpreta?
Qual o objetivo da interpretação? » porque é que se interpreta?
Quais os elementos da interpretação? » como é que se interpreta?
Quais os resultados da interpretação? » para que é que se interpreta?
A) Objeto da Interpretação
A interpretação teria como objeto, segundo a teoria tradicional, o texto normativo-prescritivo das normas
jurídicas formalmente prescritas. De forma linear: à questão de saber o que se interpreta responder-se-ia “o
texto jurídico”.
Esta conceção decorre de um específico circunstancialismo, no qual se identificam específicas origens
culturais e particulares fatores políticos determinantes.
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A origem cultural tem a ver com a conceção do direito e com o pensamento jurídico medievais. Sabe-se que
o pensamento medieval se submetia a um princípio de autoridade, o que implicava que o pensamento jurídico
se constituísse essencialmente como interpretação dos textos de autoridade – designadamente o Corpus Iuris
Civilis e o Corpus Iuris Canonici. E nesta perspetiva, o pensamento jurídico assumiu-se como interpretação
de textos: o direito oferecia-se enunciado em textos e através desses textos obter-se-iam todos os critérios
jurídicos para a prática jurídica. Assim sendo, o direito é compreendido como uma normatividade que se
infere de fontes prescritivo-textuais. Por outro lado, o modus de que se socorria este pensamento era o que
lhe era oferecido pela escolástica: métodos da lógica aristotélica e da retórica.
Quanto aos fatores políticos, há que considerar os que resultam do legalismo contratualista-constitucional
assumido pelo positivismo jurídico. Para o positivismo legalista o direito reduzia-se ao direito (im)posto nas
leis e essas leis identificavam-se com o seu texto – porque é no texto da lei que se exprime o imperativo do
legislador e manifesta vinculativamente a sua autoridade legislativa. Pretendia-se, deste modo, salvaguardar,
por um lado, a segurança jurídica, e, cumprir, por outro, o princípio da separação de poderes. Pelo que o
objeto da interpretação haveria de ser a expressão textual da norma legal.
Sucede que a conceção textual do objeto da interpretação jurídica é suscetível de duas especificações:
1. Sentido hermenêutico de texto jurídico: a significação jurídica a atingir pela interpretação exprime-se
“através” do texto, mas não “é” o texto. Isto é: o texto surge como “ícone” ou objetivação cultural da
significação jurídica, mas esta constitui-se para além dele, transcendendo-o; e essa transcendência decorre,
nomeadamente, do relevo do contexto significante em que a norma se insere, da pré-compreensão do
referente e da situação histórico-concreta da compreensão. Portanto, a “norma” exprime-se pelo texto, mas
vai além do seu sentido filológico (o seu sentido literal).
Foi este o sentido imputado ao texto jurídico pelo pensamento jurídico medieval
2. Sentido positivista de texto jurídico: o texto da norma não é compreendido em termos meramente
expressivos, mas antes em termos constitutivos – a significação jurídica não é exprime “através” do texto,
mas sim “no” texto; ela “é” o próprio texto. Isto determinará que o direito positivo se tenha por auto-suficiente
e fechado em si, excluindo o recurso a critérios normativos além dele próprio, no momento da interpretação.
Consequentemente, o direito posto encontra unicamente o seu sentido jurídico interpretando na sua formal
expressão escrita.
É este o sentido atribuído ao texto pela Escola Histórica de Savigny.
A perspetiva hermenêutica traduz a procura do direito através de uma fonte jurídica; já a perspetiva
positivista, correspondendo à pura exegese, é tão-só a análise da significação textual da fonte jurídica.
Este entendimento positivista do texto jurídico tem uma consequência de suma importância para a
metodologia associada à teoria tradicional da interpretação: à interpretação jurídica não seria lícito imputar
à fonte normativa um sentido jurídico que não pudesse corresponder a um dos sentidos textual-
gramaticamente ou literalmente possíveis da fonte interpretada.
Pode-se falar aqui numa função negativa do teor literal da lei: só se estaria a fazer interpretação se o
sentido normativo imputável à fonte-norma fosse um dos sentidos possíveis do seu texto enquanto tal; todos
os sentidos que caíssem fora do domínio dos sentidos suscetíveis de corresponder ao texto jurídico não
poderiam, em caso algum, ser convocados pelo intérprete.
!Em suma: a teoria tradicional da interpretação via no texto normativo o objeto da interpretação mas, mais
do que isso, via nesse texto a própria norma – ele não é mera forma de manifestação da norma jurídica; ele é
a própria norma. Assim, estamos aqui em face de uma compreensão constitutiva do texto: as significações
normativas não existem antes dele, estando, isso sim, imanentes nesse texto. Daqui decorria o ponto de
partida absolutamente fundamental desta conceção: todas as significações que não tivessem
correspondência no texto da lei não poderiam ser consideradas como interpretações desse texto. Fala-se aqui
em função negativa do teor literal (elemento gramatical).
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B) O Objetivo da Interpretação
Em resposta a esta questão, a doutrina dividiu-se em duas conhecidas orientações contrárias:
O ponto comum entre estas teorias é a consideração do texto como objeto da interpretação; o ponto de
divergência está no que uma e outra pretendem “retirar” do texto: o ponto de divergência é a diferente
conceção do espírito: se para o subjetivismo o espírito da lei se identificava com a vontade do legislador, já
para o objetivismo esse espírito traduzir-se-ia no sentido imanente à própria norma.
A orientação subjetivista foi historicamente a primeira, surgindo associada ao pensamento de Savigny
(como bem se compreende, já que o autor via no Direito o desiderato da História), bem como ao legalismo
pós-revolucionário francês (pois se o Direito era unicamente aquele criado pelos órgãos legitimados pelo
povo, então a norma deveria ter o sentido que o legislador lhe quis conferir). A orientação objetivista, por
sua vez, surge já na segunda metade do séc. XIX, como consequência de um outro contexto cultural e de uma
distinta conceção do direito.
Esta polémica, mesmo quando nela hoje ainda se insiste, perdeu muito da sua rigidez inicial. Predominam,
aliás, atualmente, as “teorias mistas”. É até este o tipo de perspetiva que parece ter sido acolhido no nosso
art. 9º CC.
Chegados aqui, importa agora identificar o objetivo concretamente prosseguido pela teoria tradicional da
interpretação: esta alinhava-se com as conceções subjetivistas, em certos aspetos, e com as conceções
objetivistas, em outros.
Atribuía à interpretação dos textos jurídicos o objetivo de obter as premissas lógico-jurídicas para
uma subsequente aplicação lógico-dedutiva do texto-lei – em vista a pretensão de racionalizar
teoricamente a prática. Portanto, podemos encontrar claramente indícios objetivistas: o centro da
interpretação seria a norma em si mesma, pois esta era o próprio direito, e não uma sua mera
manifestação.
Porém, esta interpretação semântica pretendia também descortinar a significação do enunciado das
normas legais que o legislador optou por consagrar. Se o direito era, tão-só, o direito posto pelo
poder legislativo e o direito que resultava do desenvolvimento das forças históricas, então o sentido
a imputar-lhe haveria que ser o sentido querido pelo legislador histórico.
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C) Os Elementos da Interpretação
Savigny veio propor uma distinção fundamental de significações referidas ao texto jurídico:
i) Elemento gramatical: este elemento da interpretação refere-se à letra ou teor verbal do texto jurídico
interpretando, aqui assumindo na sua relevância filológico-gramatical;
ii) Elemento histórico: o elemento da interpretação agora em causa olha o texto jurídico na sua relevância
histórica, como algo vinculado às circunstâncias históricas do seu aparecimento e ao percurso que culminou
na sua produção-constituição;
iii) Elemento sistemático: este elemento interpretativo traduz a preocupação com a unidade lógico-estrutural
da norma – o texto jurídico deve ser considerado como um todo – e com a ratio sistematicamente imanente
– haverá que proceder à inserção dogmática daquele todo (norma jurídica) no sistema conceitual a que
pertencente; portanto, neste momento o texto é encarado na sua relevância lógico-sistemática;
iv) Elemento teleológico: o elemento da interpretação agora versado ocupa-se com o motivo ou o fim da
norma, estando comprometido com elementos materiais como os interesses, as valorações, as intenções
ideológicas, etc. – daí a sua consideração como elemento “extratextual”.
O elemento gramatical é, evidentemente, o elemento básico da interpretação na conceção tradicional, tanto
porque o texto é o objeto da interpretação, como porque é na expressão textual que se cumpria o cânone da
autonomia do objeto. E, nesta linha, este elemento acaba por se impor com uma prioridade analítica e
cronológica e com uma força prescritiva, já que dele decorre, nos termos expostos, a relevância negativa da
letra da lei: o teor verbal do texto delimitaria a interpretação, só sendo admissíveis os sentidos da lei que
fossem possíveis segundo o texto. A este valor negativo acresce um valor positivo ou seletivo: de entre os
sentidos possíveis, o intérprete deveria privilegiar o que melhor ou mais naturalmente correspondesse ao
texto.
Refira-se, a este respeito, que o valor negativo referido foi compreendido segundo perspetivas distintas:
Teoria da fronteira da interpretação (Larenz): o sentido literal a extrair do texto assinala o limite da
interpretação propriamente dita: tudo o que se cumpre fora desse campo já não pode ser entendido como
interpretação da lei, mas antes como desenvolvimento judicial do Direito;
Teoria da alusão ou da expressão mínima (Engisch): o teor literal da lei consiste no núcleo com o qual tem
de haver uma mínima correspondência verbal_ a interpretação realizada teria de encontrar no texto da lei
uma mínima alusão ou correspondência, ou seja, o sentido obtido com a interpretação deve ter, pelo menos,
uma qualquer expressão na letra da lei, ainda que imperfeita ou incompleta. [NOTA: esta parece ser a conceção que
veio a ser acolhida pelo nosso legislador no nº 2 do art. 9º CC]
Na verdade, deve entender-se que estas duas compreensões são dois momentos de um juízo global.
De qualquer das formas, podemos dizer que este valor negativo do elemento gramatical permitia, por
inteleção inversa, encontrar o círculo de sentidos possíveis/permitidos: seriam todos aqueles que não
houvessem sido excluídos por não terem correspondência no texto.
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Portanto, o valor negativo do elemento gramatical permite apontar os candidatos negativos (domínio da
“certeza negativa”), enquanto que o valor positivo desse elemento convoca a distinção entre candidatos
positivos e candidatos neutros (domínios da “certeza positiva” e da “dúvida possível”).
Sublinhe-se, neste contexto, que enquanto ao valor negativo do elemento gramatical é apontado um valor
normativo (em nenhum caso podem os sentidos considerados como candidatos negativos ser mobilizados
pelo intérprete), ao valor positivo deste elemento é apenas reconhecido um valor indicativo (os sentidos não
considerados como candidatos negativos sempre poderão ser convocados, sendo que apenas com a
consideração dos elementos histórico e sistemático se concluirá qual deles o que verdadeiramente melhor
correspondência tem no texto ou o que se impõe no contexto daquela norma).
Depois do 1º momento do processo interpretativo, que consiste na consideração do elemento gramatical,
seguir-se-ia o 2º momento, no qual seriam considerados, em simultâneo, os demais elementos. Neste
momento subsequente, o intérprete opera somente dentro do campo dos sentidos possíveis, procurando
eliminar essas várias alternativas para chegar a um único sentido: o sentido a conferir à norma interpretanda.
O elemento histórico, por sua vez, traduzia-se na consideração da génese do preceito interpretando, tendo
em conta tanto os materiais ou trabalhos preparatórios da sua elaboração legislativa, como a circunstância
jurídico-social do seu aparecimento, bem como a história do direito e as fontes legislativas.
O elemento sistemático, por sua vez, implicaria a consideração da unidade e coerência jurídico-sistemáticas:
a norma seria compreendida em função do seu contexto, sobretudo pela sua inclusão no instituto ou domínio
jurídico de que faz parte. É também neste momento que são considerados os lugares paralelos. Ora, este
elemento não intenciona em si mesmo sempre o mesmo. Por um lado, pode pensar-se com ele a lógica do
legislativo programa histórico (interpretação subjetivista); por outro lado, pode pensar-se com ele a unidade
racional do sistema de normas em que a norma legal se integra (interpretação objetivista).
O elemento teleológico, por último, impunha que o sentido da norma se determine pela ratio legis – a razão-
de-ser da própria norma. Este elemento era considerado, pela conceção tradicional, como um elemento
extratextual, e, por isso, foi inicialmente recusado tanto por Savigny como pela Escola da Exegése. A respeito
deste elemento podem identificar-se duas fases no pensamento de Savigny:
Este elemento adquiriu, com o decurso do tempo, uma crescente importância, de tal forma que foi a partir
dessa tendência que se desenvolveu a evolução da teoria tradicional da interpretação. No limite, foi em
virtude da centralidade assumida por este elemento que se deu a superação da teoria tradicional. Esta
evolução é patente, aliás, nos diversos sentidos que o elemento teleológico foi assumindo:
1. Fim histórico-psicologicamente visado pelo legislador;
2. Intenção normativa que um “legislador razoável” imputaria à norma;
3. Intenção normativa que segunda a opção-valoração legislativa perante os interesses causais em conflito
seria imputável à norma;
4. Fundamento normativo-jurídico decorrente dos valores e princípios normativos constitutivos direito.
Estes sucessivos sentidos do elemento teleológico evidenciam a passagem de um sentido puramente
exegético-hermenêutico da realização do direito para um sentido normativo; a passagem de um objetivo
dogmático para um objetivo teleológico do pensamento jurídico; a passagem de uma interpretação enquanto
ato metódico autónomo para uma interpretação constitutiva, inserida na atividade de realização do direito.
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D) Os Resultados da Interpretação
Todos estes resultados da interpretação cabiam no quadro dos objetivos tradicionais da interpretação, fosse
o definido pela orientação subjetivista – caso em que o “espírito da lei” se identificaria à “vontade do
legislador” –, fosse o proposto pela orientação objetivista – caso em que o “espírito da lei” corresponderia ao
“sentido imanente na norma”.
Com a acentuação da interpretação teleológica, os resultados da interpretação enriqueceram-se de outros
tipos de grande relevo prático. Ainda no seio da teoria tradicional, com o reconhecimento de certo relevo ao
elemento teleológico, veio admitir-se, mais tarde, uma Interpretação Extensiva/Restritiva Teleológica: o
sentido determinado representa um alargamento ou restrição da letra da lei, ainda dentro dos sentidos
possíveis, com o intuito de se realizar o fim imanente à norma.
Esta interpretação extensiva ou restritiva teleológica não se confunde, note-se, com as “Extensão Teleológica”
e “Redução Teleológica”, que vieram a ser assumidas posteriormente, já fora do domínio da teoria tradicional
da interpretação:
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positivista, nos seus pressupostos, mas também uma revolução no que diz respeito ao próprio conceito do
direito.
No campo metodológico, esta viragem dá-se por intermédio do relevo crescente conferido ao elemento
teleológico na interpretação jurídica. Neste contexto, o debate objetivismo vs subjetivismo é substituído pela
contraposição interpretação dogmática vs interpretação teleológica.
Esta distinção não se confunde com a anterior oposição entre subjetivismo e objetivismo, na medida em não
pode dizer-se, nem que o subjetivismo esteja necessariamente conexionado com uma interpretação
dogmática, nem que o objetivismo convoque, necessariamente, uma interpretação de sentido teleológico.
Apesar de se ter verificado, temporalmente, uma (quase) coincidência entre a viragem para os fins e a
assunção de uma perspetiva objetivista, a verdade é que o objetivismo apenas determina uma “atualização”
do teor verbal da norma jurídica, de modo a que a interpretação das prescrições normativas dependa
unicamente do seu sentido intrínseco, e não do contexto histórico em que elas foram elaboradas. Noutro
prisma, também a interpretação subjetivo-histórica admitirá uma versão teleológica, se nela se revelar
menos a averiguação do volitivo-psicológico pensamento do legislador e mais a intenção normativa
determinada pelos fins práticos que o moveram – falar-se-ia aqui, nas palavras de Heck, em interpretação
“histórico-teleológica”.
Deste modo, não só as duas distinções não se confundem, como a polémica subjetivismo vs objetivismo
pode ser pensada apenas do âmbito da interpretação dogmática. Acresce ainda que a interpretação
dogmática não implica a rutura com uma intenção teorética do pensamento jurídico (tal como era a intenção
do positivismo jurídico), enquanto que a interpretação teleológica opta claramente por uma intenção prática
sem sentido próprio. Por último, a interpretação dogmática aproxima-se da tendência “formalista” do
pensamento jurídico, ao passo que a interpretação teleológica convoca uma tendência “finalista” desse
pensamento.
Vejam-se agora as principais correntes metodológicas que determinaram decisivamente a viragem para os
fins e para uma interpretação teleológica.
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A resolução destes problemas implicaria a exigência de que o julgador se orientasse no sentido de uma
juridicamente correta ponderação de interesses socialmente afirmados e conflituantes, pelo que:
por um lado, haveria que buscar na realidade social os interesses envolvidos e articulá-los com as
opções do legislador, em ordem à solução dos casos concretos (problemas normativos);
por outro lado, haveria que verter as conclusões retiradas dessa investigação numa dogmática, de
modo a auxiliar também a solução dos casos concretos (problemas de formulação).
Nesta elaboração foram recolhidos os seguintes contributos para a evolução do pensamento jurídico:
Enfâse nos fins da norma (aqui considerados sob a veste de “interesses”);
Realização da interpretação em concreto, partindo da perspetiva do caso;
Relevância indiciária da letra da lei (e já não uma relevância negativa rigorosa);
Admissibilidade da interpretação corretiva.
Podem, no entanto, apontar-se algumas falhas, que determinaram a evolução para novas correntes:
Ao ver na norma um juízo sobre um conflito de interesses, Heck não autonomiza a valoração inerente à
norma: segundo esta perspetiva, a norma jurídica resolveria um conflito de interesses individuais/egoísticos,
não se lhe apontando um qualquer juízo de valor;
A fundamentação propugnada encerra-se num movimento circular ou paradoxal: o objeto da valoração
seriam os interesses de decisão (critérios da decisão legislativa) e o fundamento dessa valoração seriam os
interesses em geral (interesses sociais), de tal forma que não era possível distinguir o objeto do fundamento;
A Jurisprudência dos Interesses esteve longe de oferecer uma proposta suficientemente elaborada:
Apenas considerou os interesses em situação de conflito, esquecendo que podem apresentar-se
também mais ou menos extensa ou intensamente em convergência;
Não cuidou da análise dos referidos interesses;
Não se abriu a outros fatores igualmente causais do direito (que podem ser a “causa” das prescrições
legislativas), como as “situações de poder”, a “confiança”, a “responsabilidade”.
Não conseguiu compreender adequadamente a problemática do sistema jurídico: não são
reconhecidos, nem a pluralidade de estratos que reconhecemos à ordem jurídica, nem a particular
dialética que a anima, nem a específica intencionalidade que a autonomiza
Temporalmente, o que se seguiu à Jurisprudência dos Interesses foi um claro extremar dos campos: por um
lado, tornou-se explícita a opção pela interpretação teleológica; por outro lado, e em sinal contrário, assiste-
se a uma radicalização da opção incondicional pela intenção dogmática.
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A linha de orientação exata só pode ser, pois, aquela em que as exigências de sistema e de pressupostos
fundamentos dogmáticos não se fechem numa auto-suficiência, e antes se abram a uma intencionalidade
materialmente normativa que, na sua concreta e judicativo decisória realização, se oriente por aquelas
mediações dogmáticas mas que também as problematizar e reconstitua. Foi esta conceção que se pretendeu
estar na base na “Jurisprudência da Valoração”.
Larenz propõe-se a ultrapassar algumas das debilidades da Jurisprudência dos Interesses, de modo a
elaborar um sistema mais completo e fundamentado mas mantendo o caráter material da metodologia
prosseguida.
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No contexto de uma perspetiva teleonomológica (que é, como veremos infra, a que propugnamos) à norma
jurídica é apontada, indubitavelmente, uma dimensão estratégica ou finalística: as normas jurídicas
(sobretudo, as normas legais) são determinadas por finalidades político-sociais, já que a elaboração
legislativa tem, evidentemente, por detrás de si programas sociais que se pretendem efetivar. Não obstante,
deve ser também certo que as opções estratégicas consagradas nas normas jurídicas estão, em todo o caso,
limitadas pelas exigências de sentido, que conformam o sistema.
Com efeito, seriam sempre inadmissíveis e intoleráveis as normas jurídicas que desconsiderassem a
axiologia da ordem jurídica em favor de objetivos puramente finalísticos.
Do que foi dito resulta o afastamento da conceção de “norma-texto”, em favor da assunção de um conceito de
“norma-problema” – a norma vai além da texto jurídico e encerra em si mesma a dialética sistema-problema.
“Entre o problema judicando e a norma-critério que hipoteticamente se lhe adequa, cava-se uma distância
que só poderá ser vencida por uma metodonomologicamente irrepreensível mediação, que por isso mesmo
deve atender ao mérito singular do caso e à exacta relevância problemática (ao telos; ratio legis) e axiológica
(à arché; ratio ius) da mencionada norma-critério (…)” P. Bronze
Segundo a Teoria Tradicional, eram possíveis vários resultados de interpretação: declarativa, extensiva,
restritiva, enunciativa e abrogante.
Estes resultados respeitavam uma condição máxima, inviolável: os sentidos obtidos haveriam de ter um
mínimo de correspondência no texto da lei (salvo o caso excecionalíssimo, e raro, da interpretação
abrogante). E assim teria que ser na medida em que o elemento gramatical assumia a referida “relevância
negativa”: operava somente no campo dos sentidos não excluídos pelo elemento gramatical.
Os resultados interpretativos que daqui poderão resultar variam consoante a conceção teleológica adotada:
Teleotecnologia (conceção teleológica que se basta com os fins), admite os seguintes resultados:
Interpretação Corretiva;
Extensão Teleológica;
Redução Teleológica.
Teleonomologia (conceção teleológica que atende aos fins e aos valores), admite os seguintes resultados:
Interpretação Corretiva;
Extensão Teleológica;
Redução Teleológica;
Interpretação Conforme os Princípios.
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Começámos por caraterizar o Método Jurídico do séc. XIX e a teoria da interpretação por ele proposta, a
“teoria tradicional da interpretação”. A eles foram apontadas as falhas que determinaram a sua superação
com a viragem para o séc. XX (“viragem teleológica”). Atentámos, por fim, aos contornos específicos desta
superação, sobretudo ao nível específico da teoria da interpretação, e nas correntes metodológicas que se lhe
sucederam e que se assumiram como alternativas. Agora, importa caraterizar devidamente a interpretação
jurídica nos termos em que ela é atualmente considerada, fechando-se, deste modo, o ciclo iniciado.
A mudança de perspetiva que temos vindo a referir implica, desde logo, que se postule o caso como prius
metodológico: o caso a superar a cisão interpretação-aplicação e a levar a sério o continuum da realização do
direito.
Significa isto que a interpretação jurídica só será entendida em termos metodologicamente corretos se for
vista como a determinação normativo-pragmaticamente adequada de um critério jurídico (retirado do
sistema jurídico vigente) para a solução do caso decidindo.
NOTA: sublinhe-se que falamos aqui de “critério” e não de “fundamento”, visto que apenas os critérios são
interpretáveis, sendo os fundamentos elementos a convocar nessa interpretação:
Critérios: operadores técnicos que pré-esquematizam a solução (normas, jurisprudência, doutrina);
Fundamentos: elementos que conferem concludência racional a um discurso problematicamente judicativo
(princípios).
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Sabendo-se que o caso é o prius metodológico, pergunta-se: qual o objeto rigorosamente da interpretação
solicitada pelo caso, a realizar segundo a intencionalidade problemática que este constitui?
a interpretação terá como objeto os “critérios” de resolução do caso, e, num sistema de Civil Law como
o nosso, esses critérios serão, antes de mais, as normas legais; consequentemente o objeto imediato
da interpretação serão essas normas – concretamente, a norma aplicável in casu.
E em que termos deverá ser considerada essa norma interpretanda? O modelo tradicional respondia a esta
questão de forma simples: o objeto da interpretação seria o texto da norma jurídica.
Mas, o problema da interpretação jurídica não é um puro problema hermenêutico (de apreensão do
significado ou sentido das palavras), mas antes um problema normativo (de constituição ou criação do direito
em concreto). Então, o objeto da interpretação há-de ser correlativo a esta índole do problema: deixamos de
considerar como objeto da interpretação a “norma-texto” (o corpus ou expressão de uma significação) e
passamos a vê-lo na “norma-problema” (a normatividade que é veiculada por intermédio daquele corpus).
No fundo, o que se pretende interpretar não é a “forma” da norma jurídica, pois que essa forma é
insuficiente (e pode até ser defeituosa) para veicular a normatividade pretendida; pretende-se, isso sim,
interpretar o “conteúdo” da norma jurídica, a concreta juridicidade que se pretende criar com a sua
elaboração.
Esta compreensão do objeto da interpretação implica um particular modo de interpretação, o qual haverá de
ser orientado pelo objectivo de atingir, na norma aplicável, a normatividade prático-jurídica solicitada pela
problematicidade concreta do caso decidendo, de modo que essa normatividade seja materialmente
adequada à sua solução judicativa. Este objetivo pode, no entanto, ser atingido de modos diferentes ou
segundo especificações diversas deste modelo geral de interpretação.
As propostas de efetivação deste modelo interpretativo dividem-se em duas categorias, cuja distinção radica
na forma como é vista a relação metodológico-jurídica entre o caso concreto (prius metodológico e ponto de
partida da interpretação) e a norma aplicável ao caso (objeto da interpretação).
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Esser distingue a obtenção real da decisão da sua fundamentação, concluindo que o julgador optará pelo
fator de interpretação que possa justificar a decisão encontrada segundo as exigências normativas do caso
concreto. Esta decisão já seria suscetível de um controlo material (porquanto já havia sido encontrada com
base em considerações práticas e jurídico-materiais); com a convocação de uma norma legal, e sua respetiva
interpretação, permitir-se-ia ainda o seu controlo do ponto de vista do direito positivo. Esta decisão concreta
orientar-se-ia, então, por um pré-juízo da justa solução do caso, sendo posteriormente identificado o direito
positivo que possibilitaria fundamentar essa decisão, para efeitos de controlo.
Schaap formulou uma conceção ainda mais radical: coloca-se exclusivamente em concreto,
compreendendo todo o direito sob a perspetiva do caso. A própria lei é concebida como “decisão concreta”
de “casos jurídicos futuros”. A decisão jurídica em geral é vista como o resultado de uma techné judicativa
que procura fundamentos para um caso concreto numa concreta e histórico-social situação de diálogo.
Castanheira Neves não considera absurdas as posições de Muller e Fikentsher, uma vez que estes autores,
apesar de verem a norma como prius metodológico, não deixam de tomar em consideração as especificidades
do caso, afastando-se de uma posição legalista.
Porém, aproxima-se mais de Esser e Kriele, que consideram o caso como prius e ponto de partida
metodológico, afastando-se de Schaap, não caindo num casuísmo, uma vez que a decisão jurídica deve ter em
conta o sistema jurídico.
Para Castanheira Neves, o ponto crucial do pensamento metodológico-jurídico jurisprudencial está no
modo de compreender e assumir metodicamente a dialética entre sistema e problema, enquanto
coordenadas metodologicamente complementares.
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Ao se falar do método jurídico do Séc. XIX, tem-se a ideia de que este tinha sido superado, no entanto, na
segunda metade do Séc. XX, há quem entenda que se tornou possível defender um outro método jurídico que
seria alternativo do primeiro. O Doutor Linhares não entende que assim seja, embora não haja duvida que a
tal perspetiva tem hoje uma força imensa, com enorme projeção na prática.
(Ver: Linhares, «Princípios e casos difíceis» (in Material de Apoio), pp. 14-20; 2.2)
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Neste 4º tema vamos tentar perceber qual o modelo metódico que a perspetiva jurisprudencialista oferece.
Trata-se de compreender o problema da realização do direito em concreto e de uma realização que se
quer judicativa ou judicativo-decisória.
Falamos aqui criticamente sobre o modo como o julgador deve decidir! Procuramos encontrar uma
resposta para que em cada caso se possa oferecer uma solução da controvérsia que seja judicativa (expressão
da autoridades), e, ao mesmo tempo, que seja uma resposta que se quer oferecer como realização de uma
certa validade, através da estabilização dessa validade que é oferecida pelo sistema (dimensões: validade,
axiológica, dogmática, praxístico-problemática) que será agora posta em prática através de uma decisão.
O modelo metódico de realização do direito que nos propomos definir assimila uma racionalidade jurídica
que se estrutura em duas dimensões – a dimensão do sistema e a dimensão do problema – e que opera
segundo uma particular dialética que dinamiza essas dimensões estruturais.
O Sistema é a “unidade de totalização normativa” que se analisa em quatro estratos distintos entre si e
relacionados num todo integrante:
Princípios: integra os princípios normativo-jurídicos positivos, transpositivos e suprapositivos. É neste
estrato em que a intenção axiológico-normativa do sistema se assume, em que está presente a sua validade
fundamentante,
Normas Legais: inclui todas as normas prescritas numa opção político-estratégica, que provêm da
legitimidade e autoridade político-jurídicas. Este é, então, o momento de prescrição positiva, o qual sempre
seria indispensável, já que a validade afirmada nos princípios não impõe necessariamente um certo direito
positivo, porque admite sempre várias determinações (cabendo ao legislador “escolher” aquela que se quer
consagrar legalmente) e porque o direito positivo é função da contingente realidade histórico-social (o
direito positivo constituir-se-á em resposta a essa realidade).
Daqui resulta que a relação entre validade (estrato dos princípios) e positividade (estrato das normas)
não é uma relação de necessidade, mas antes de possibilidade: o direito positivo funda-se na validade
normativa e deve ser possível perante ela, mas não é um resultado necessário dessa validade (outros seriam
possíveis). Daí que não possa prescindir-se da mediação constitutiva que é a positivação. E esta positivação
haverá que ser realizada por uma autoridade, pois só assim a normatividade criada poderá impor-se como
vinculativa, afastando quaisquer outras determinações possíveis ao abrigo da validade vigente.
Jurisprudência: integra as decisões jurisprudenciais tomadas anteriormente. Este é o momento de
objetivação e estabilização de uma já experimentada realização problemático-concreta do direito. O valor
normativo deste estrato decorre de uma presunção de justeza que lhe está associada.
Doutrina: engloba os resultados de uma elaboração jurídica livre e de uma normatividade que apenas se
sustenta na própria racionalidade fundamentada. Não há aqui uma validade diretamente vinculativa, como
nos princípios, nem uma autoridade político-prescritiva, como nas normas legais, nem mesmo uma
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autoridade jurídica, como na jurisprudência. A dogmática doutrinal elabora-se, em grande medida, a partir
das normas legais e das posições jurisprudenciais, assimilando ainda os princípios normativos. E assim ela
orienta a determinação explicante e reconstrutiva dessas normas e jurisprudência, conferindo ao sistema
uma racional e decisiva objetivação.
Então, nesse sistema praxístico pluridimensional temos: os princípios (que devem ser tratados como
fundamentos), as normas legais, a jurisprudência e a doutrina (que devem ser tratadas como critérios): é com
eles que o juiz constrói a sua resposta, elabora o seu juízo decisório, dando assim a solução ao problema
concreto que lhe é apresentado.
Critério legislativo: corresponde a um pré-juízo, a uma vinculação metodológica.
Critério jurisprudencial: quando tenho um possível tratamento como antecipação de problema, um
problema que pela positiva ou negativa posso comparar ao meu problema, posso fazer um juízo
analógico genuíno porque comparo um caso concreto a outro caso concreto.
Critério doutrinal: trata-se de mobilizar uma teoria dogmática que seja identificada com um problema
e que dá resposta a esse problema. Algumas propostas doutrinais são retiradas da jurisprudência e
vice-versa. Há um importante contributo da doutrina de reflexão sobre os princípios. Mas esta
reflexão não tem de fornecer critérios, a doutrina fornece critérios, mas também não deixa, quando
se dirige a princípios, de se referir a fundamentos.
1.2. O Problema
1.3. A Dialéctica
O sistema começa sempre por delimitar e pré-determinar o campo e o tipo de problemas jurídicos. Assim
sendo, num primeiro momento, os problemas possíveis começam por ser aqueles pressupostos pelo sistema,
e os modos de os considerar serão aqueles que sejam correlativos de soluções/respostas por ele oferecidas.
No entanto, o problema vem alargar e aprofundar aquele primeiro pólo, vem exigir novas perguntas e outros
sentidos para as respostas: não é visto como uma experiência que se pretende resolver segundo uma solução
já disponível no seio do sistema (este era o entendimento tradicional – pretendia subsumir-se a problemática
concreta a uma das soluções previstas em abstrato no sistema); ao invés, assume uma autonomia própria,
pelo que ele convocará não uma solução previamente elaborada (já disponível no sistema) mas uma solução
nova ou inovadora, adaptada às suas especificidades. Pois cada caso concreto é único e irrepetível.
Isto, obviamente, sem descurar o sistema como ponto de partida e como contexto delimitador.
Deste modo, o surgir de novos problemas leva a um enriquecimento do sistema. As intenções anteriores
(princípios e critérios normativos) subsistem, mas agora relativizadas às novas intenções, de tal modo que
se impõe a necessidade de ordenar as novas com as antigas. Ou seja, impõe-se uma integração de todas as
intenções num todo congruente. Esta nova solução passará a integrar ela própria o sistema, o qual fica assim
enriquecido e aprofundado.
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Sintetizando;
o problema veio interrogar o sistema (pois, na sua unicidade, implica um esforço de
recompreensão dos fundamentos e critérios já existentes) e, subsequentemente veio enriquecê-
lo;
o sistema, por seu lado, delimita, nos seus fundamentos, o domínio do jurídico e oferece critérios
abstratos de solução a serem experimentados na prática.
a normatividade já posta (apresentada pelo sistema) e normatividade constituída (implicada pelo
problema) haverão, depois, de se diluir num todo congruente.
“Daí que o sistema jurídico não seja um dado (pressuposto) e sim uma tarefa (objetivo), já que há-de assimilar
sempre uma nova experiência problemática e assumir numa totalização congruente novas intenções
normativas de que, através dessa experiência, o direito se vai enriquecendo.” C. Neves
Pinto Bronze aponta um novo estrato do sistema: o “estrato dos arrimos procedimentais”, em que
poderíamos integrar os argumentos a contrario, a pari, a fortiori, etc. A este estrato está associada uma
“presunção de prestabilidade”: a sua vinculatividade decorre da sedimentação da experiência profissional.
Nesta perspetiva pensa-se todo o esquema metódico partindo de uma racionalidade analógica: o esquema
metódico surge numa perspetiva de comparação, assumindo-se como um juízo analógico entre o conhecido
(o sistema) e o até ali desconhecido (problema).
Ao julgador incumbe comparar as compreensões dos princípios, as leituras das normas legais e os
precedentes jurisdicionais já existentes com as especificidades do caso. Os juízos decisórios seriam,
assim, ponderações analógicas que comparam o mérito do problema concretamente judicando e a
intencionalidade problemática do corpus iuris vigente.
Com base nas considerações expostas, Pinto Bronze verte a dialética sistema problema-problema na
designada “equação metodonomológica”: um esquema segundo o qual se compreendia, quase de forma
matemática, essa dialética, na sua matriz analógica.
Esta “equação” trouxe até nós os seguintes contributos:
veio dar relevância aos juízos dos mediadores subjetivos, enquanto modo de pré-modelar o caso
decidindo: estes juízos encontram no “direito dos juízes” (jurisprudência e doutrina) uma das suas
projecções mais notáveis;
papel nuclear desempenhado pela norma como modelo de todos os outros critérios, o que só é
concebível porque a norma-critério em causa, libertando-se de uma suposta significação
formalmente auto-subsistente, se nos expõe como norma-problema.
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Questão-de-Facto
1- Determinação da relevância jurídica do caso;
2- Qualificação jurídica;
3- Comprovação/Prova dos elementos daquela relevância e dos seus efeitos
Questão-de-Direiro
1-Questão-de-direito em abstrato (determinação do critério hipoteticamente aplicável);
2- Questão-de-direito em concreto (experimentação do critério no caso).
Juízo Decisório
3. A Questão-de-Facto
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“No plano global, a controvérsia jurídica tem a ver com o modo como ambos os sujeitos em controvérsia,
referindo-se ao mesmo direito, tomam posições diferentes perante a mesma situação da vida que ocorreu (ex:
enquanto o arrendatário entende que deverá ser o senhorio a realizar as obras, o senhorio entende que tem de
ser o arrendatário). No entanto, estamos perante uma questão de facto, ainda não pergunto que direitos e
deveres cada uma das partes têm. Nesta fase ainda só nos questionamos acerca de quais os problemas em causa.
Aqui já há perspetivas jurídicas porque ao fazer esta pergunta o julgador mobiliza vários critérios e tudo isso é
normativo e jurídico.” A. Linhares
Perante esta dualidade, caberá ao julgador (terceiro imparcial) construir uma terceira narrativa, baseada
nos factos, retirados de uma, de outra ou de ambas as narrativas das partes, que efetivamente se deram como
comprovados; é essa narrativa que será definitiva e que será a reconstrução final.
É aqui por demais evidente o caráter prático do momento probatório, em oposição à natureza teorética
que lhe era atribuída na época moderna: o juiz não se propõe a encontrar uma descrição exata, rigorosa e
científica dos factos, tal como aconteceram na vida real; ao invés, procura, isso sim, através de uma atividade
comunicativa com as partes, identificar, no universo da factualidade envolvida pelo caso, os factos
juridicamente relevantes que se podem considerar como comprovados.
Esta é, sem dúvida, uma verdade prática (derivada de uma relação sujeito-sujeito e que se propõe ser
verosímil, provável, razoável), e já não uma verdade teorética (decorrente de uma relação sujeito-objeto e
que se pretende assumir como dogma absoluto e indiscutível).
A este respeito, autores há que fazem assentar o momento probatório na seguinte distinção:
“Story in the trial”: narrativa dos factos tal como eles (supostamente) aconteceram, que será
diferente do ponto de vista da acusação e do ponto de vista da defesa (é a historia do que aconteceu fora
do tribunal e que é relevante, a que esta a ser reconstituída) ;
“Story of the trial”: narrativa dos factos reconstruída pelo julgador, aquilo que se dá como provado
após a consideração das narrativas rivais das partes; sendo composta por uma diversidade de
elementos: elementos invocados pelas partes, elementos normativos, entre outros... (é a historia que
se desenvolve no tribunal, é aquilo que aconteceu no foro quando se estava a reconstituir a história que era
anterior a essa prática.)
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Nos termos expostos, quando o juiz considera os materiais apresentados pelas partes, peritos, testemunhas,
(as diferentes versões da historia) ele vai “filtrar” a sua relevância.
Por outro lado, a “story of the trial” é composta por mais elementos além das narrativas rivais das partes. E
isto é assim, precisamente, porque estamos no domínio de uma racionalidade prática, uma vez que a prova
não é um puro juízo descritivo, de índole científica, mas antes um juízo em si mesmo normativo, que decorre
da dialética sistema-problema, na medida em que a narrativa elaborada pelo julgador foi o resultado, não
só da consideração das narrativas das partes (problema), mas também do respeito pelas disposições
normativas que disciplinam a matéria da prova (sistema).
Como se compreende, o juízo final de índole probatória não será um juízo puramente descritivo, mas é
também um jurídico. (Ex: Se para a conceção teorético-moderna se teriam como provados todos os factos que
efetivamente houvessem acontecido, já para a conceção prático-normativa atualmente acolhida não poderá o juiz num
processo considerar como prova um facto X que, apesar de efetivamente ter acontecido, só pode ser comprovado por
um meio de prova não admitido. Por outro lado, se para a conceção teorético-moderna nunca se poderiam dar como
provados factos sobre os quais não houvesse certeza absoluta, já para a conceção prático-normativa o juiz haverá de
considerar como provado o facto Y que, apesar de não se conseguir comprovar factualmente de forma decisiva, é objeto
de uma presunção legal de prova, a sua verificação é tão-só provável, verosímil).
4. A Questão-de-Direito
Quando eu digo que há uma questão de direito a resolver, a minha preocupação será encontrar um critério
que seja hipoteticamente aplicado ao caso, um critério que hipoteticamente assimile a relevância do caso
concreto que tenho para decidir.
Aqui podem ocorrer duas situações: ou há ou não há critério.
1. Há um critério no sistema jurídico em que o problema se põe;
2. Não há um critério no sistema jurídico em que o problema se põe;
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Sendo que o sistema jurídico é aberto e em contínua reconstituição, pode acontecer que nem sempre
haverá um critério jurídico pré-definido aplicável ao caso. Nessa situação, o julgador haverá de criar essa
solução com base nos fundamentos (princípios) que conformam o sistema jurídico (que continua a ser o
horizonte de resolução desses problemas!).
Como é que o juiz encontra a tal norma legal hipoteticamente adequada a assimilar o problema em causa?
Será possível tratar isto metodologicamente? Este é o chamado problema da determinação da norma
hipoteticamente aplicável.
Neste domínio, o ponto de partida que importa considerar é o de que o caso concreto é, nos termos expostos,
o prius metodológico: parte-se do caso e vai-se procurar a norma hipoteticamente aplicável.
“é «aplicável» a norma ou normas do sistema jurídico que forem hipoteticamente adequadas para o
tratamento judicativo-decisório do caso ou problema jurídico a resolver”. C Neves
A utilização do advérbio “hipoteticamente” serve, precisamente, para reforçar que a “norma aplicável”
constitui uma hipótese de solução do caso concreto, que depois será submetida a uma experimentação
metodológica no momento da questão-de-direito em concreto.
E este raciocínio só pode ser entendido no seio de uma racionalidade prática, o critério aplicável não é
identificado em abstrato e aplicado subsuntivamente em concreto; ele é selecionado de forma abstrata como
projeto de solução, mas só será efetivamente aplicado se convocado, em concreto, pela solução judicativa
adequada ao caso decidendo.
O problema reside, exatamente, neste segundo ponto: quando ou em que termos se poderá dizer que uma
norma é problematicamente adequada ao caso decidendo?
Os casos jurídicos que a vida histórico-social suscita não se oferecem como bem definidas objetivações
das normas do sistema positivo de direito. Não há, efetivamente, uma correlação ou correspondência lógica
entre as hipóteses normativas (que enunciam factualidade “típica”) e os casos concretos verificados na
prática.
Portanto, por um lado: os casos decidendos podem ter elementos juridicamente relevantes não previstos pela
norma que se lhes venha a aplicar; por outro lado: os casos decidendos podem ter elementos juridicamente
relevantes que preenchem um certo tipo legal pertencente a uma norma que, acaba por não ser aplicada.
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Portanto: pode estar preenchida a hipótese normativa e não se aplicar a norma; e pode não estar
preenchida a hipótese normativa e aplicar-se, ainda assim, a norma.
Circunstâncias do caso: circunstâncias/elementos que dão ao caso carácter especial, que fazem dele um
caso infungível, próprio, único e irrepetível; como tal, não estão diretamente previstas nos tipos legais; sem
terem que excluir necessariamente o caráter “típico” do caso.
Circunstâncias juridicamente irrelevantes: circunstâncias/elementos que serão sempre irrelevantes,
quaisquer que sejam as perspetivas jurídicas pelas quais o caso venha a ser considerado.
Circunstâncias que conferem ao caso um relevo jurídico imprevisto: circunstâncias/elementos que, no seu
conjunto, referem o caso simultaneamente a vários tipos; ou que lhe dão uma fisionomia imprevista pelos
tipos legais disponíveis, atribuem ao caso um relevo que ainda não fora pensado pelo direito vigente.
Assim sendo, a aplicação de uma norma terá que pressupor um juízo autónomo sobre o caso (na
perspetiva da questão de direito), em que se vai, precisamente, fazer as distinções acima enunciadas, através
do qual se separa a relevância da irrelevância jurídicas, individualizando e circunscrevendo ao mesmo tempo
o caso.
!) Mas, este juízo implica também a consideração de que as normas legais correspondem à previsão dos
casos mais frequentes, comuns ou típicos;
pelo que não fica excluída a possibilidade de se decidir, concretamente, acerca da sua aplicabilidade
em termos diversos daqueles que imediatamente imporia o sentido significativo e conceitual das
normas, interpretável em abstrato.
Tal como defende Ekelof: “o sentido de uma norma e o seu domínio de aplicação nem sempre coincidem”. Esta
aplicabilidade diversa do sentido abstrato da norma poderá repercutir-se:
Aplicação da norma a casos que o sentido abstrato da norma não cobre;
Desaplicação da norma em casos cobertos pelo sentido abstrato da norma.
Podemos mencionar, a este respeito, as seguintes aplicações “desviantes” das normas:
- Aplicação extensiva: aplicação de uma norma a um caso decidendo, não obstante o caso ser integrado por
circunstâncias juridicamente relevantes que não preenchem o tipo conceitual previsto naquela norma (que
não integram a sua hipótese);
- Aplicação restritiva: desaplicação de uma norma a um caso decidendo que, todavia, é integrado por
circunstâncias que preenchem o tipo conceitual previsto na norma desaplicada (que integram a respetiva
hipótese);
- Interpretação corretiva: aplicação de uma norma a um caso decidendo que, apesar de não apresentar todas
as circunstâncias ou circunstâncias idênticas às do tipo, se entende inserível no escopo teleológico da norma;
- Desaplicação a casos particulares: desaplicação da norma a um conjunto de casos que, embora assimilados
pela hipótese da norma, contam com a concorrência de outras circunstâncias além das previstas no tipo
conceitual, que fazem deles casos particulares daquele tipo, aos quais não deve ser aplicado o regime geral
previsto na norma.
- Analogia: hipóteses em que a semelhança do caso decidendo relativamente aos casos previstos numa
determinada norma implica a aplicação do critério veiculado nesta norma àquele caso, apesar de ele não
integrar o tipo de casos previstos (ex: é semelhante por visa a proteção dos mesmos interesses);
- Argumentação a contrario: hipóteses em que a divergência do caso concreto decidendo relativamente aos
casos previstos numa determinada norma implica para aquele caso um tratamento normativo oposto ao
tratamento prescrito por esta norma para os casos nela previstos.
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- Situações de Concurso de Normas: casos em que a situação concreta a ter em conta oferece elementos para
que se possam dizer simultaneamente aplicáveis duas ou mais normas positivas, entre as quais terá que se
optar, na medida em que não é possível a sua aplicação simultânea ou convergente.
Só o sentido jurídico concreto do caso, compreendido com autonomia, poderá decidir daquela opção. Isto
porque a seleção da norma deverá repercutir-se na identificação do problema que, em abstrato, a norma visa
curar, de forma a averiguar se o problema suscitado no caso concreto pode ser devidamente solucionado
mediante aplicação dessa norma.
“O que decide é o confronto entre problemas (entre o tipo de problema da norma e a índole do problema concreto
do caso)e não a identidade de situações (a prevista na hipótese da norma e a situação concreta.)” C Neves.
E isto tem uma importante consequência: deixa de ser exigível uma rigorosa coincidência entre a
relevância hipotética da norma-prescrição e a relevância concreta do caso.
Uma última nota que se impõe é de que a “norma aplicável” não tem de ser necessariamente uma só norma,
podendo abranger-se aqui todas as normas a que o problema concreto se refira e que a realização do direito
convoca.
A norma, como critério jurídico, já não é encarada como “norma texto”, selecionada em função de uma
identidade de situações; mas antes, encarada como critério normativo adequado à concreta realização do
direito: a norma é um juízo de valor dirigido a um determinado problema, ao qual se associa uma solução,
esta que terá de ser compatível com os princípios do sistema sendo selecionada em virtude de um prévio
confronto de problemas.
Selecionada a norma aplicável (nos termos enunciados no ponto anterior) há que compreendê-la e determinar
o seu exato sentido hipotético-normativo. Nesta compreensão da norma concorrem três momentos:
i) Momento histórico;
ii) Momento problemático;
iii) Momento teleológico-sistemático.
i) Momento histórico
A norma jurídica, como produto normativo-cultural, não poderá decerto ser compreendida se não a
perspetivarmos pela coordenada histórica da sua emergência (a norma foi construída num certo tempo e para a
compreender tenho de a contextualizar historicamente; de compreender a tal realidade histórica que a norma pensou) ,
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Ao mobilizar o sistema o julgador conseguiu selecionar uma norma que lhe pareceu adequada. Agora irá
experimentá-la no caso.
Essa experimentação é feita a 4 momentos:
A) Momento da Relevância Material;
B) Momento Teleológico;
C) Momento dos Fundamentos;
D) Momento dos Resultados/Efeitos da Decisão (C. Neves rejeita a autonomia deste momento).
Estes momentos não estão separados num plano formal e estanque. São simultâneos e complementares.
O primeiro passo será o de realizar uma comparação entre o âmbito de relevância material da norma-
critério e o do caso decidendo. De facto, ambos objetivam uma relevância material, nos seguintes termos:
Norma jurídica: pressuposição hipotético-material (circunstâncias tipificadas em abstrato).
Caso concreto: intenção problemático-normativa (circunstâncias concretas com relevo jurídico).
i) Assimilação por concretização: todos os elementos fundamentais da relevância do caso estão presentes na
relevância da norma, ou seja, o caso concreto é uma concretização do caso da norma.
ii) Assimilação (parcial): porém, a assimilação pode não ser total, caso em que podemos ainda ter uma
assimilação por adaptação ou assimilação por correção.
por Adaptação: mantemo-nos ainda dentro da tipicidade da norma, ou seja, o sentido do caso é
assimilável ao sentido da norma; porém, não se verifica uma coincidência total entre os dois âmbitos
de relevância. Está em causa interpretar a norma para que esta abranja casos cujo âmbito de
relevância seja mais ou menos ampla que o dela.
Extensiva: a relevância material do caso é mais ampla do que o da norma; havendo, assim,
uma adaptação extensiva da norma ao caso [Ex.: o caso de um menor “deslocado” (os pais estão vivos
mas não estão “disponíveis” para conceder a autorização necessária aos atos da vida corrente do menor) – haverá
que se aplicar o art. 127º/a) CC (não se considerando nulos os atos praticados pelo menor só de per si) embora
não estejam em causa atos de administração de bens adquiridos por trabalho do menor, já que também aqui o
menor se apoia sobre si próprio, isto é, governa a sua própria vida autonomamente.]
Restritiva: a relevância material do caso é menos ampla do que o da norma; havendo, assim,
uma adaptação restritiva da norma ao caso [Ex.: as “relações jurídico-contratuais fácticas” gozam, em
casos especiais, da aplicação do regime jurídico das relações contratuais, apesar da ausência de uma verdadeira
declaração negocial, em virtude de o seu caráter especial as aproximar da relevância material das normas desse
regime aplicáveis.]
!Isto não se confunde com a interpretação extensiva ou restritiva, pois nessa os termos de
comparação são a letra e o espírito, determinados em abstracto!
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por Correção: aqui não basta uma adaptação. A índole do problema previsto pela norma e que
encontro ao nível do caso é análoga (é o mesmo problema), no entanto, o caso tem elementos que são
verdadeiramente atípicos, pelo que não me vou manter na tipicidade da norma. Ao invés da
adaptação, estou a atribuir à norma um sentido que seria excluído pela letra, pelo elemento literal, se
a letra tivesse a tal relevância negativa autónoma.
Para que se verifique o recurso à assimilação por correção, têm de estar verificados dois
pressupostos:
(1) a relevância material do caso deverá ser atípica relativamente à do critério;
(2)a relevância material da norma mostra-se insuficiente ou incoerente em relação à sua
própria intenção problemática.
Por outro lado, a correção enfrenta dois limites:
(1) o caso não pode ser excepcional;
(2) o caso não se pode mostrar em total desadequação com a norma (norma obsoleta ou
lacuna).
A assimilação por correção pode ser de dois tipos:
o Sincrónica: a atipicidade deriva de um erro do legislador, referindo-se ao tempo da norma
(pelo que poderia ter sido assimilada pelo legislador na prescrição da relevância material dessa
norma).
o Diacrónica: na maior parte dos casos, porém, a atipicidade é motivada pelo facto de a
realidade no tempo do caso ser diferente da que foi pressuposta no tempo da norma (a norma
que previu certo problema tornou-se parcialmente desajustada da realidade, parcialmente obsoleta).
iii) Não assimilação: a assimilação revela-se impossível, pelo que se tem de abandonar a norma. São os casos
em que a norma é ultrapassada pela realidade, tornando-se obsoleta (a norma prescreve um critério pressupondo
uma realidade que já não existe e que só relativamente a essa realidade tinha sentido). A norma deixa conseguir
juridicizar a realidade, de tal forma que ela não consegue a assimilação do caso, nem por adaptação, nem por
correção. Nas palavras de Aroso Linhares: “a norma foi superada pela sua própria realidade”.
B) Momento Teleológico
A normatividade jurídica, pressuposta no momento anterior, não é estática, antes se vai reconstruindo e
recompreendendo quando em confronto com os problemas convocados pelos casos concretos. Pelo que este
momento visa comparar o sentido teleológico-normativo da norma e a intencionalidade problemática do
caso, permitindo uma especificação teleológica da norma (que vai redensificando o seu sentido).
Neste momento, o aplicador irá atentar à ratio legis da norma, isto é, ao seu sentido fundamental. Esta
consideração parte do problema concreto e implica, as mais das vezes, o recurso a critérios auxiliares,
sobretudo a experiência jurisprudencial e a reflexão doutrinal, indo culminar na reconstrução da teleologia
da norma em referência ao caso (Como é que aquela norma tem vindo a ser mobilizada como critério de solução para
casos concretos?).
A determinação e especificação normativas que resultarão deste processo podem tomar múltiplas formas, as
quais podem ser o resultado de operações metodológicas típicas:
Extensão teleológica: inclusão no âmbito da norma casos que ela em princípio não incluiria (a norma
é o critério jurídico adequado ao caso, ainda que este seja por ela formalmente excluído);
Redução teleológica: exclusão do âmbito da norma de casos que ela formalmente incluiria ( A norma
não é o critério jurídico adequado ao caso, apesar este ser por ela formalmente incluído).
[Ex: o nosso ordenamento jurídico prescreve a regra geral da proibição do negócio consigo mesmo – art. 261º CC. Para estes efeitos,
é proibido o negócio que o representante legal (A) de um menor (B) celebre consigo mesmo (A) em representação do menor (B).
Embora formalmente o negócio fosse celebrado entre A e B, verdadeiramente é A quem atua dos dois lados do negócio. Esta
disposição visa, fundamentalmente, proteger os interesses do representado contra o prejuízo que através deste tipo de negócios o
representante lhe possa provocar em seu próprio benefício. Sucede, porém, que podemos desvelar pelo menos uma situação que
implica o sacrifício do teor formal da norma. Considere-se a hipótese de o negócio em causa consistir numa doação, efetuada pelo
representante (A) a favor do menor representado (B). Dúvidas não podem restar de que estamos em face de um negócio jurídico
(doação) celebrado entre alguém que é representante legal de outrem (A) e a pessoa que este representa (B), de tal forma que
encontramos o mesmo sujeito (A) dos dois lados do negócio – de um lado como doador (em nome próprio), e do outro como donatário
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(em nome do representado). Consequentemente, este é um caso indubitavelmente assimilado pelo art. 261º CC. Só que, ao aplicar-se
este preceito, estar-se-ia a prejudicar o representado (B), já que ficaria anulada a transmissão dos bens para o seu património. E isto
seria, evidentemente, contrário aos seus interesses. Só excluindo-se este caso do âmbito de aplicação do art. 261º CC se realiza a ratio
dessa norma (proteger os interesses do representado); a sua aplicação, ainda que formalmente adequada, é contrária à respetiva
teleologia. Como se vê, não se trata aqui de estender ou reduzir o âmbito material da norma, nem de corrigir esse âmbito com o intuito
de o adequar à índole problemática da norma. Verdadeiramente, o que há é a completa desconsideração do sentido formal da norma
(de forma que, se não fosse a justificação subjacente a este comportamento, estar-se-ia a violar o preceito legal), para permitir o
cumprimento da sua ratio em concreto.]
Note-se que estas operações não são feitas em abstrato; estende-se ou reduz-se a norma no plano teleológico
mas apenas para aquele caso. Fazê-lo significa atribuir à letra da lei um valor indiciário, indicativo.
Observe-se que estes casos seriam remetidos, no contexto da teoria tradicional da interpretação, para o
domínio da analogia. Não sendo subsumíveis aos sentidos literais possíveis da norma, ficariam fora do âmbito
da sua interpretação, pelo que tais casos só poderiam referir-se à norma através de uma sua aplicação
analógica, determinada pela similitude verificada
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compreendidos nos termos em que o são atualmente, pelo que a norma sempre poderia ter sido
elaborada de forma consoante e não contraditória com os respetivos fundamentos de validade;
o Superação da norma: a superação da norma decorrerá da verificação de uma contradição diacrónica,
ou seja, nos casos em que, devido a uma mutação ou evolução do sistema, os seus princípios sofreram
uma alteração, a qual veio implicar a desadequação da norma em relação à nova compreensão desses
princípios [é nesta sede que surge a questão dos “limites normativos temporais” das normas: as normas não
acompanharam a evolução na validade normativa do sistema, estando por isso “caducas” (no sentido lato da
palavra)].
!) Desde logo, é de referir que estaria em causa novo cânone metodológico, que surgiria num momento a
acrescentar aos já referidos. Neste momento haveria, então, que ponderar os efeitos sociais da concretização
da norma, note-se que não estamos aqui a lidar com os efeitos jurídicos [Ex.: uma ação de insolvência movida
contra uma grande sociedade comercial com peso substancial no mercado resultarão efeitos nefastos para os milhares
de trabalhadores (em decorrência da decisão despedidos) e, consequentemente, para os respetivos agregados
familiares; etc.]
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!) Todavia, não é pacífica a aceitação deste novo critério ou cânone metodológico. Vejam-se, então, os
argumentos invocados a favor e contra a sua aceitação:
!) Conclusão: Entendemos que o modelo normativo terá que prevalecer sobre um modelo tecnológico, posto
que aquele modelo normativo haverá que se referir, axiológico-normativamente, a uma validade (Considerar
os efeitos sociais da decisão é muito difícil e imprevisível. E essa previsão vai depender de qualificações na perspectiva do juiz, ou
seja, seria altamente subjectiva. O cânone não poderá valer por si próprio porque isto abriria imensas e infinitas portas, isto seria pôr
em causa o juízo jurídico, que passaria a ser orientado por uma racionalidade finalística.).
De facto, embora o Esquema Metódico actual não imponha conclusões únicas/necessárias, permite também
concluir que a indeterminação ou alternativa decisória não é hoje um resultado metódico necessário, aliás,
permite-nos afirmar que para um concreto caso haverá somente uma decisão (a mais justa) aplicável.
Dito isto, defendemos que o julgador, ao decidir, deve procurar que as consequências da sua decisão não
infirmem, mas confirmem concreto-realmente, o autêntico sentido da axiologia e da normatividade que
determinaram essa decisão.
Não vamos considerar os efeitos da decisão como verdadeiro cânone metodológico, a par da
relevância material, da teleológica e dos fundamentos de valoração.
É sim um elemento que vem pressuposto nos efetivos cânones metodológicos, designadamente no
domínio da problematização da concreta justeza material do caso.
Portanto, os autores jurisprudencialistas propugnam, como ficou já referido, pela não autonomização
deste cânone, vendo nele algo como que subjacente esquema metódico no seu todo, que não deverá
ser autonomizado como critério final de decisão.
Por último, é de referir que esta é uma questão longe de poder ser considerada respondida em pleno
ou dogmaticamente fechada.
4.2.2. A Realização do Direito por Autónoma Constituição Normativa (relevante para orais de melhoria)
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