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Metodologia do Direito - Sebenta

Metodologia do Direito (Universidade de Coimbra)

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METODOLOGIA DO DIREITO

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I- INTRODUÇÃO (O PROBLEMA METODOLÓGICO)

1- Questões Prévias
Castanheira Neves, define o “Direito” como «uma solução possível para um problema necessário»,
dirigindo ao «jurista», e até ao «Direito», três questões matriciais:
1. Porquê? – questiona-se aqui o fundamento da ordem de Direito; pretende encontrar-se, então, aquilo que
valida (dá validade) ao Direito como ordem.
2. Para quê? – pergunta-se pela função social do Direito; há uma alusão à exigência de assumir uma
criticamente a realização histórico-concreta da ideia de direito.
3. De que modo? – indaga-se qual o método para a realização do direito; é aqui colocada a enfâse no problema
metodológico de saber qual o caminho que culmina na decisão jurídica.
A problemática que nos ocupará reconduz-se a esta última questão: qual o método utilizado realizar o direito?
No fundo, pretende reproduzir-se o caminho, a trajetória, o percurso, etc. a realizar pelo julgador para a
realização do direito em concreto.

2- A Dimensão da Validade Normativa e a Dimensão Metodológica


De entre as três questões acima elencadas, duas há que importa correlacionar entre si: o “porquê?” e o “de
que modo?”: ou seja, o problema do fundamento do direito está intrincadamente ligado ao problema da
realização do direito.
De facto, não se pode compreender um qualquer modelo metódico-jurídico sem refletirmos problemática e
criticamente sobre a sua intencionalidade no quadro global do pensamento jurídico: a compreensão de um
determinado método jurídico implica a reflexão acerca do próprio pensamento jurídico, isto é, do próprio
Direito como tal. Ora, a ligação entre estas duas questões – a problemática do direito e o método jurídico
– é operada pela metodologia.
De um modo esquemático, a questão exposta coloca-se da seguinte forma:

A dialética entre estes dois pólos é facilmente compreensível:


 por um lado, não podemos discorrer sobre o método jurídico sem lhe associar uma específica
intencionalidade (os pressupostos constitutivos do método radicam no fundamento do próprio
Direito como ordem);
 por outro, versar sobre o fundamento/validade do Direito pressupõe uma referência ao método
através do qual esse Direito é realizado concretamente.

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3- Metodologia Jurídica e o Conceito de Direito


No seguimento do que tem vindo a ser exposto, poderia colocar-se a seguinte questão:
“Qual é a conceção de «Direito» que sustenta a conceção metodológica propugnada?”
Por outras palavras, estar-se-ia a admitir que a reflexão metodológica mobiliza um conceito específico de
Direito. Ainda que se entenda que não é necessário que assim seja, importa distinguir duas noções:
- Conceito de classe: conjunto de caraterísticas cuja verificação é necessária para que se identifique uma
determinada figura;
- Conceito-arquétipo: experiência de aproximação em degraus, diferenciadora das ordens ou sistemas que
vão ocupando esses degraus.
O conceito de “Direito” proposto pelo britânico Hart era um conceito de classe: o autor identificou um
conjunto de caraterísticas cuja verificação era necessária para que uma dada ordem social pudesse ser
classificada como ordem de Direito. Esta é uma lógica de “tudo ou nada”: ou se encontravam preenchidas
todas as caraterísticas e se podia falar em ordem de Direito ou falhava uma ou mais dessas caraterísticas e
não se podia falar em ordem de Direito.
Por outro lado, Simmons, em crítica a esta conceção, propõe um conceito-arquétipo: há um conjunto de
traços gerais que caraterizam uma dada figura sendo as experiências sociais integradas nessa figura sempre
que se aproximem desse desenho genérico. Assim sendo, uma concreta realidade social pode ser qualificada
como ordem de Direito ainda que falhe numa das caraterísticas essenciais que lhe são assacadas, bastando
para tal que se aproxime suficientemente da noção genérica de “ordem de Direito”.
É esta última a conceção propugnada entre nós. Entende-se que a ordem de Direito é conformada por
“exigências de sentido”, sendo estas os elementos com base nos quais se julga a experiência social. Esta é
uma conceção axiológica, ancorada em valores/princípios (e não em características estanques).

4- Relações entre o Logos e o Método

4.1- Tipos de Relações

De acordo com a etimologia da palavra, a metodologia pode definir-se como: “a razão (ou o pensamento)
intencional de um método”.
 A metodologia visa compreender, de forma racional (logos), o método (odos) pelo qual se pretende
(meta) realizar o direito.
A este respeito, Fernando José Bronze vem propor um neologismo – “metodonomologia”. Às três
dimensões acima explanadas acresce uma quarta: o “nomos” – o juízo decisório concreto.
No fundo, o que se pretende é sublinhar que a metodologia deve desenvolver a reflexão sobre o método de
realização do direito sem perder de vista o caso concreto, a realidade jurisprudencial de aplicação do direito.
Neste contexto coloca-se uma questão: que relação intencional (meta) se estabelece entre o pensamento
(logos) e o processo (odos)? Na metodologia está implícita uma relação intencional entre a
racionalidade/pensamento e o percurso/caminho – de que modo elas se influenciam?

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São três os tipos de relações que aqui podem estar em causa:


a) Relação de exterioridade construtiva: o método é puro objeto da razão – o pensamento/racionalidade
impõe à prática um percurso/caminho que deve ser seguido para a obtenção de um resultado. Neste contexto,
o «método» corresponde a “um conjunto de procedimentos intelectuais ordenados segundo um plano
racional pré-estabelecido, aplicáveis a um dado domínio, em vista de um certo fim” (E.P. Haba). O método
surge, então, como um artifício racional, criado “de fora”, que se avalia pela sua aptidão para lograr o fim em
vista. Do exposto resulta claramente ser este um modelo prescritivo: um modelo que pré-determina um
método e cujo seguimento constitui critério de validade da prática.
b) Relação de imanência constitutiva: o método é o modus operandi da prática, apenas reconhecível a
posteriori através da sua análise explicitante. Ao invés do que acontece no tipo de relação atrás descrita, aqui
o método/percurso manifesta-se na prática, limitando-se a racionalidade a reproduzi-lo. Aqui “as práticas
têm a sua própria força”. Este é um modelo descritivo, que não impõe qualquer método, limitando-se a
descrever aquele que já existe na prática.
c) Relação de reconstrução crítico-reflexiva: o método, visto como uma decorrência da prática, é olhado com
uma atitude criticamente reflexiva. Aqui a racionalidade não impõe um método (ou percurso) à prática mas
também não se limita a descrever o caminho/método que dela decorre. A razão reconhece os dados
recolhidos da prática e pensa-os de forma crítica.

Se o direito se diferencia universalmente como direito ao constituir e realizar uma específica ordem de
validade, já o sentido concreto da validade que constitui e realiza varia historicamente. Situem-se então as
conceção que foram atrás expostas:

Às funções diversas enunciadas correspondiam, decerto, sistemas de valores, princípios fundamentantes e


estruturas institucionais também diferentes. Os pensamentos jurídicos revelam-se entidades culturalmente
históricas. Daí, pois, a profundas variações diacrónicas e as não menores diferenças sincrónicas do
pensamento jurídico.

4.2- Perspetiva Adoptada

Às perspetivas metódicas enunciadas em a) e b) podem apontar-se as seguintes críticas:


a) Relação de exterioridade construtiva: esta perspetiva ignora o sentido próprio da realização do direito (o
sentido problemático-concreto) e o método verdadeiramente exigido pela prática. Ao traduzir-se num prévio
enunciado de algoritmos metódicos, esta perspetiva não acomoda as necessidades materiais da realização do
direito, sendo, por isso, excessivamente formal.
b) Relação de imanência constitutiva: esta perspetiva não se adequa às exigências do nosso tempo, em que
não existe um consenso na prática. Limitando-se a descrever a prática efetiva da realização do direito, este
modelo esquece que, em face de uma pluralidade de práticas, é preciso uma reflexão crítica.
Apontados que estão os inconvenientes das duas relações método-logos mais radicais, importa agora
esmiuçar a c) relação de reconstrução crítico-reflexiva, com a qual concordamos. Não se pretende negar
a importância da atitude pró-ativa do pensamento jurídico, nem tão-pouco olvidar a relevância da análise da
prática para a criação de melhores soluções jurídicas; o que se pretende é demonstrar que nenhuma das
atitudes deve ser levada ao extremo: elas necessitam-se mutuamente.

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De facto, a reconstrução crítico-reflexiva propugnada deve operar em dois momentos:


1. Momento analítico (ou teórico-descritivo): descrição analítica da prática judicativo-decisória;
2. Momento normativo (ou prático-construtivo): prescrição de alternativas metódicas ao esquema vigente.

Nestes termos, a metodologia jurídica não se propõe a construir, sem mais, um método, mas também não
se limita a conhecer e descrever o método praticado: Verdadeiramente, o que se pretende é refletir sobre o
problema da realização do direito tal como ela decorre na prática, para criticamente a orientar. Portanto, a
índole da metodologia não será:
a) Índole prescritiva (relação de exterioridade construtiva) – não pretende impor um método às práticas;
b) Índole descritiva (relação de imanência constitutiva) – não se limita a descrever as práticas.
A índole crítico-reflexiva que reconhecemos à metodologia implica que ela assuma como ponto de partida
a prática realização do direito, dirigindo-se a ela reflexivo-criticamente.

4.3. A Proposta de Stanley Fish

O autor de “Doing What Comes Naturally” convoca, a respeito da temática sobre que versamos, o conceito de
“comunidades interpretativas”.
experiências coletivas autossubsistentes definidas por critérios de “correção profissional”, no seio das
quais surgem projetos interpretativos e rotinas institucionalizadas.

Segundo Stanley Fish, poderia falar-se numa comunidade interpretativa de juízes, a qual se distinguiria da
comunidade interpretativa dos advogados, da comunidade interpretativa dos juristas académicos, da
comunidade interpretativa dos não juristas, etc... As comunidades interpretativas traduzir-se-iam num
conjunto dinâmico de referentes (cânones, códigos linguísticos, etc.) em permanente reformulação, com uma
capacidade decisiva de assimilação-conversão de padrões exteriores. Porque assim seria, toda e qualquer
tentativa de reflexão metodológica com uma intenção prescritiva ou crítica estaria condenada à
improdutividade de um cálculo teorético, dominado por códigos discursivos estranhos à prática em que
pretende intervir. Apenas seria admissível uma análise explicitante, respeitadora do dito “what comes
naturally”. Portanto, aos demais juristas (designadamente, os juristas académicos) não competiria refletir
criticamente sobre a prática decisória dos juízes.

A esta conceção podem, contudo, ser apontadas críticas:


- Cada vez mais é posta em causa a unidade destes grupos e dos respetivos cânones e projeto interpretativo;
a comunidade de juízes não é hoje una, já que podemos reconhecer: o juiz-administrador (fruto do Estado
Providência), o juiz-centro do sistema (saído da reprocessualização pós-instrumental), o juiz-político, o juiz
da comunidade de princípios, o juiz-maximizador da riqueza, etc. Há hoje uma pluralidade radical dentro da
própria comunidade dos juízos.
-Muitas das elaborações académico-metodológicas têm hoje expressão prática, assumindo a forma de
correntes jurisprudenciais. Daqui resulta que não se pode separar de forma estanque a comunidade
interpretativa dos juízes e a comunidade interpretativa dos juristas académicos.

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5- O Problema Metodológico

5.1- O Campo Temático


À metodologia jurídica compete refletir criticamente o método da judicativo-decisória realização do
direito. Então, mas qual é o âmbito da realização do direito? O que é efetivamente realizar o direito?
 Sabe-se que a realização concreta do direito não se confunde com a mera aplicação de normas
pressupostas, mesmo que sejam as normas o critério dessa realização. De facto, na problemático-
concreta realização do direito concorrem momentos normativos-constitutivos que a transformam de
mera aplicação de normas em verdadeira criação de direito. Daí, aliás, que se reconheça como fonte
de direito a jurisprudência.

5.2- A Metodologia Jurídica Global (rejeição)


Esta conclusão não só põe em causa o esquema funcional do tradicional normativismo (a criação do direito
compete ao legislador e a sua aplicação compete ao juiz) como permite ainda um conceito alargado de realização
do direito. Efetivamente, uma conclusão nos termos que foram apresentados pode suscitar uma compreensão
específica da problemática aqui em causa. Isto porque se se propugna que a realização concreta do direito é
jurídico-normativamente criadora, então haveria também que admitir que a criação legislativa decidisse
questões jurídicas.
A legislação assumiria a sua vinculatividade, não só positivamente, mas também transpositivamente: a
positivação de normas jurídicas deveria ser vista como a consagração de uma interpretação determinante.
Nestes termos, a prescrição legislativa seria realizada mediante decisões jurídicas para uma pluralidade
abstrata de questões, pelo que o legislador só prescreveria nas leis juízos generalizados. Neste contexto
entendem-se as normas legais como decisórias posições sobre uma série de casos jurídicos.
Falar-se-ia, nos termos desta elaboração, numa realização do direito em sentido amplo, de modo a
abranger:
1) Prescrição legislativa: realização do direito em abstrato;
2) Decisão judicativa concreta: realização do direito em concreto.

Daí que se fale, aqui, numa “unidade profunda do pensamento jurídico”: o legislador e o intérprete não
fazem senão partilhar os momentos sucessivos duma mesma tarefa. Na linha deste entendimento, tentou-se
também aproximar convergentemente os métodos legislativo e judicativo, no sentido de uma intenção
metódica global. A este respeito falar-se-ia em “unidade do método jurídico”, este que deveria ser cumprido
tanto pela “criação” como pela “aplicação” do direito, e realizar-se-ia através da “metodologia jurídica
global”.

Mas esta posição mostra-se excessiva. Com efeito, ela só teria viabilidade se houvesse de aceitar-se uma de
duas teses redutivistas:

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Portanto, concluímos que a prescrição legislativa e a decisão judicativa concreta não podem ser vistas como
um todo unitário; são duas realidades que se diferenciam:
A) Diferenciação estrutural:
Prescrição legislativa: as normas legislativas são regras imperativas;
 Direito como thesis – sistema de regras político-sociais de organização e reforma.
Decisão concreta: o direito surge como critério e fundamento:
 Direito como nomos – normatividade que valida a decisão concreta.

B) Diferenciação sistemática:
Prescrição legislativa: sistema de regulamentação (lex);
Decisão concreta: sistema axiológico (ius).

C) Diferenciação de intencionalidades decisivas:


Prescrição legislativa: (1) autonomia juridicamente constitutiva (legislar é “criar” direito, ainda que em
respeito pelas dimensões positivo-constitucionais e axiológico-transpositivas do sistema); (2) função de
definir estratégias políticas e prescrever programas políticos-sociais (além da função de resolver problemas
jurídicos).
Decisão concreta: (1) vinculação jurídico-normativa (ainda que não se neguem momentos normativo-
jurídicos constitutivos à função de realização do direito, ela está densamente vinculada); (2) função de
resolução estrita de problemas jurídicos.

5.3- Modelos Alternativos da Realização Jurisdicional do Direito – Critério da Autonomia do Direito

Para a determinação do campo temático da metodologia importa versar sobre o problema do sentido atual
da função judicial, da jurisdição e do juiz. Como vimos, o logos (pensamento) não deve limitar-se a descrever
a praxis, indo mais longe numa reflexão crítica acerca dessa praxis (propugnamos uma relação de
reconstrução crítico-reflexiva entre o logos e o método).
É exatamente isso que nos propomos fazer de seguida: analisar criticamente os modelos de realização
concreta do Direito propostos. Quanto a esta questão são várias as conceções existentes, todas elas
compreendendo a jurisdictio de forma distinta. Podemos qualificá-los segundo vários critérios, sendo o
primeiro deles o critério da autonomia do direito.

A este respeito importa enunciar algumas notas acerca da praxis atual:


 transformação irreversível do sentido das leis: as leis são hoje prescrições de certas forças políticas que
no quadro do sistema político-estadual ou constitucional adquirem legitimidade e pelas quais se impõe um
programa de ação político-social;
 assunção deliberadamente programática de uma estratégia político-social no todo da realidade social:
também a praxis social se politizou.
Neste contexto, o problema que se coloca é o problema da autonomia do direito e da possibilidade
institucional da sua afirmação.

Esta questão suscitou a elaboração de modelos de juridicidade, entre os quais aqueles que se apresentam
de seguida:
A) Normativismo legalista:
 Este modelo surgiu no seio do liberalismo e iluminismo, fruto da conceção antropológica que durante
esse período se construi. A autonomia humana emerge, neste período, como valor supremo, em
superação da ordem teológico-metafísica transcendente aceite anteriormente. Esta centralidade da
autonomia humana repercutiu-se num enfoque na razão e liberdade humanas. Neste contexto,
surgem duas tendências do pensamento: o individualismo e o racionalismo.
 Este racionalismo assenta na “razão cartesiana”: fundamentada nos seus axiomas e sistematicamente
dedutiva nos seus desenvolvimentos. Toda esta nova conjuntura veio exigir a institucionalização de

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um novo poder. O sentido fundante desse novo poder foi: o “contrato social”. Em consequência da
instituição deste novo poder e da afirmação dos valores já expedidos, a legalidade torna-se radical: o
direito seria a lei, e unicamente a lei. Da igualdade, liberdade e demais interesses racionais resultavam
direitos subjetivos, por intermédio do contrato social.
 Ora, do que foi dito decorre claramente a afirmação da autonomia do direito: para o normativismo o
direito é autónomo porque constitui um sistema de normas gerais e abstratas pensado e constituído
antes do problema concreto. A sua aplicação prática resultava de um mero juízo lógico-dedutivo; as
normas criadas em abstrato pelo poder instituído pelo contrato social (o único poder legitimado para
criar o direito) projetavam-se na realidade dos factos subsuntivamente.

B) Funcionalismo:
 O referente deste modelo é, já não o indivíduo, mas antes a sociedade como fenómeno específico, com
uma estrutura, componentes e uma dinâmica próprios. Neste âmbito, o direito é funcionalizado à
estruturação, regulação e à organização operatória global da sociedade, perdendo a sua autonomia
intencional e material.
 O direito converte-se, então, num instrumento ao serviço de exigências provindas das instâncias e
forças políticas, sociais, culturais, económicas, etc. Trata-se da político-socialização do Direito.
 Esta elaboração surge com a emergência do Estado Providência e do “social” como critério de todos
os problemas humanos. Um dos meios jurídicos utilizados por este modelo de Estado é a legislação,
que se torna um instrumento da própria ação política. A lei funcionalizada político-socialmente passa
a revestir novas formas (além da clássica lei geral e abstrata), como a “lei-plano” e a “lei-providência”.
 Em suma, a autonomia do direito é aqui postergada para segundo plano, já que aquele passa a ser um
instrumento de prossecução dos fins do Estado.

C) Jurisprudencialismo:
 Esta conceção é uma conceção que pode dizer-se “do homem-pessoa”: o Direito, com a sua
normatividade axiologicamente fundada, está ao serviço de uma prática pessoalmente titulada e
historicamente concreta, com a intenção de realização do homem no seu direito e no seu dever ou na
sua responsabilidade.
 Esta é uma perspetiva de imanência microscópica, já que o Direito é convocado pelo homem concreto
que vive e comunitariamente convive os acontecimentos práticos. A centralidade já não recai sobre a
lex em si mesma, mas sim sobre o ius, como ordem normativo-axiológica de validade que sustenta os
juízos práticos decisórios. O direito readquire a sua autonomia, assumindo-se como ordem de
validade, associada a exigências de sentido e a valores.

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Feito o enquadramento geral destes três modelos de realização do direito, importa agora atentar
especificamente em cada um deles:

A) Normativismo
O normativismo legalista nasceu do individualismo contratualista e foi exponenciado pelo jusracionalismo.
Vejam-se, então, as três dimensões deste modelo:
1. A sistematização:
 A projeção da razão axiomático-sistemática moderna no pensamento jurídico repercutiu-se, como
referido, na criação de sistemas conclusos de normas que se sustentavam em axiomas ético-racionais
(axiomas=verdades inquestionáveis universalmente válidas, muitas vezes utilizadas como princípios na
construção de uma teoria ou como base para uma argumentação; a palavra deriva da grega axios, cujo
significado é digno ou válido) e em postulados antropológico-racionais.
 Estes sistemas, porque fechados, não permitiam outra aplicação concreta que não aquela que é
veiculada pelo silogismo jurídico. A construção deste modelo assente num sistema fechado fundado
na racionalidade antropológica deveu-se ao pensamento de personalidades como Hugo Grócio,
Pufendord, Thomasius e Wolff.
2. A legalidade:
 Os sistemas conclusos referidos eram construídos como sistemas de normas legais. Com a
codificação, o direito passou a resumir-se exclusivamente à lei. A ideia de legalidade e a ideia de
sistema conjugavam-se para dar lugar ao normativismo legalista.
 Pela legalidade imputava-se a constituinte titularidade do direito exclusivamente ao legislador; pelo
sistema postulava-se no direito uma racionalidade intencional. Essa racionalidade intencional
implicava que o direito fosse abstrato-dogmaticamente determinável, isto é, que pudesse ser
conhecido apenas através de uma estrita exegese, complementada por uma lógico-formal
conceitualização. Em suma, esta é a época do “direito-lei”.
3. O paradigma da aplicação:
 A realização do direito no seio do modelo normativista tinha necessariamente que ocorrer através de
uma lógico-dedutiva aplicação das normas legais. O juiz assumia-se como operador impessoal,
anónimo e fungível dessa aplicação.
 A este respeito pode falar-se em dualismo normativista: (1) o direito só podia ser conhecido nas
normas legais; (2) a aplicação do direito é subsuntiva porque ele já é completamente conhecido
previamente. O direito pressuposto nas normas, tal como aí se objetifica e manifesta, apenas se repete
na solução concreta: à realização do direito não é conhecida qualquer dimensão constitutiva
(criadora), porquanto o direito resume-se exclusivamente à lei. Admitir-se uma mediação
juridicamente constitutiva da realização do direito seria afirmar que o direito afinal não existia
apenas nas normas do sistema.
Consequentemente, o direito deve realizar-se por mera “aplicação”, a qual opera segundo um esquema
que garante a relação entre o geral da norma e o particular do caso sem implicações constitutivas: esse
esquema seria o da lógica dedutiva, através do silogismo e da subsunção.
Nesta linha, entedia-se que a realidade histórico-social não se oferecia como um acervo disperso de factos,
mas antes como unidades de acontecimentos histórico-socialmente estruturados. Toda esta elaboração
visava, no seu âmago, alcançar a estanque separação dos poderes: o legislador criava o direito e o juiz
limitava-se a aplicá-lo (não devendo assumir qualquer papel criador): devia ser tão-só a “boca da lei”,
limitando-se a versar sobre a matéria de facto.
Na passagem do século este modelo foi posto em causa pelo movimento metodológico reformador que
se vinha afirmando. A análise da sentença judicial permitiu concluir pelo não cumprimento do paradigma do
normativismo na realidade. Negou-se, assim, a validade desse paradigma, tendo emergido novos modelos,
nomeadamente os construídos pelo “movimento do direito livre”, pela “jurisprudência dos interesses”, pela
“jurisprudência sociológica”, etc. A esta falha acresceu a crítica de que o normativismo, ao sustentar um
sistema fechado em si mesmo, alienava o direito da realidade social e furtava-se aos compromissos político-
sociais, económicos, etc. emergentes.

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B) Funcionalismo
O funcionalismo, como modelo de realização do direito, pode fazer-se assentar em três pressupostos:
1. A funcionalidade:
 Na modernidade, os fins deixaram de ser expressão teleológica de uma ordem onto-axiológica para
passarem a ser simples manifestações de pretensões subjetivas. Relativamente a esses fins, a ação
pretende-se funcional ou técnica, isto é, capaz de alcançar os objetivos e produzir os efeitos
pretendidos.
 Na modernidade o homem surge como ser dinâmico e evolutivo, capaz de novidade. Reconhecendo a
sua intervenção transformadora, o homem passa a ter uma visão do mundo axiologicamente neutra.
Daí que o próprio direito tenha assumido como parâmetros a funcionalidade, a eficiência, a
performance: era com base neles que se julgava a ação/comportamento.
2. A razão instrumental:
 A racionalidade finalística (instrumental) vem contrapôr-se à racionalidade axiológica. A razão radica
agora na utilidade do comportamento para alcançar um resultado. Deixa de se perguntar ao direito
se o comportamento é moralmente bom ou recto e passa a perguntar-se se ele é útil.
 Tudo isto se resume numa simples afirmação: a fundamentação cede à instrumentalização, a validade
cede à eficácia ou eficiência e os valores cedem aos fins.
3. O compromisso ideológico:
 A razão instrumental implicou a libertação da política, o pragmatismo filosófico e o utilitarismo social.
O que especificamente carateriza o funcionalismo jurídico é a sua particular atitude perante o direito: o
funcionalismo pergunta “para serve o direito?” e não “o que é o direito?”. O direito é um mero instrumento e
não uma ordem autónoma em si.
O funcionalismo, nos termos expostos, assume diferentes modalidades, designadamente:
Funcionalismo político: o direito é compreendido como um instrumento político, devendo assumir um
determinante objetivo político. Este funcionalismo ocupa um lugar à parte porque foi elaborado com base
num específico compromisso ideológico: o neomarxismo. O jurista político seria condição necessária para a
existência de uma nova sociedade política, assente nos ideais neomarxistas.
Funcionalismo social: distinguem-se duas sub-modalidades:
 Funcionalismo social tecnológico: os modelos são, já não revolucionários, mas estratégicos,
orientados por critérios de performance. O direito e o pensamento jurídico são perspetivados
como uma “social engineering”, sendo a realização concreta do direito levada a cabo nos termos
da “teoria da decisão”.
 Funcionalismo social económico: a sociedade e toda a prática social são consideradas segundo a
estrutura do mercado. Assim sendo, o direito só teria sentido na perspetiva da eficiência
económica (da maximização da riqueza).
-Funcionalismo sistémico: o direito é visto como um subsistema social, seletivo e estabilizador de expetativas,
segundo um código binário de lícito/ilícito, legal, ilegal...

A consequência para a função judicial de tudo isto não podia deixar de ser a seguinte: o paradigma deixa
de ser a aplicação (como ocorria no normativismo legalista) e passa a ser o da decisão. Essa decisão deve ser
orientada por um princípio de optimização na realização de um certo objetivo, escolhendo-se a solução em
função dos efeitos que melhor realizem esse objetivo. A “decisão” é, exatamente, a escolha de uma entre várias
opções, daí que se fale aqui em “paradigma da decisão”.
[Neste contexto, compreende-se o apertado diálogo do funcionalismo jurídico com a ciência política, com a sociologia e
outras ciências sociais. O próprio funcionalismo pretendia assumir-se como ciência social – a ciência de controlo social.]
O “juiz político” pressuposto exerceria uma função decisória essencialmente funcional, teleológica,
instrumental, evolutiva e pragmática: a solução mais justa seria a mais adequada ao objetivo proposto pelo
planificador social.
Assistir-se-ia ao declínio da “rule of law”, a qual seria superada pelo “judicial-power model”, no qual o juiz é
constitutivamente interventor, criador das soluções exigidas pelos fins e interesses sociais, tendo grande
autonomia. A sua nova missão imporia que atuasse além do campo delimitado pela lei, que deixasse de ser

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um aplicador passivo de regras e princípios pré-estabelecidos; ao invés, ele passaria a colaborar na realização
de finalidades sociais e políticas, comparando as alternativas e decidindo mediante a escolha de uma delas.
A este modelo apõem-se diversas críticas:
O direito é submetido a uma radical instrumentalidade.
É rejeitada a autonomia do direito.
O funcionalismo pode representar, mais do que uma conceção do direito, uma alternativa ao direito qua
tale, podendo questionar-se se essa seria efetivamente uma correta via alternativa.
O juiz é, no fundo, um militante político ou um administrador discricionário, com todos os problemas que
isso acarreta para a realização da “justiça”.
São renunciados os valores e princípios, o sentido e as garantias que se vinculam ao Estado de Direito.
Em suma, o que deverá perguntar-se é: os benefícios porventura retirados deste modo de realização do
direito compensarão as perdas capitais que serão o seu preço?

C) Jurisprudencialismo
Esta terceira alternativa recusa os extremos dos dois modelos anteriores: nem se trata da autonomia formal
do normativismo, nem do instrumentalismo exponenciado do funcionalismo.
O que propugna é, isso sim, a autonomia de uma validade normativa material que se realiza no
homem-pessoa.
São pressupostos deste modelo:
1. A antropologia axiológica:
 Convoca uma recompreensão do próprio homem, com uma mais profunda reflexão quanto ao sentido
com que nos deveremos compreender e às exigências do nosso compromisso de coexistência. Afirma-
se o “homem-pessoa”, com todas as implicações axiológicas e éticas do sentido de “pessoa”. No
sentido de “pessoa” postula-se a sua dignidade absoluta, mas nega-se a sua identificação ao
“indivíduo”: recusa-se o individualismo.
 Ademais, essa dignidade implica um recíproco reconhecimento e compromissos comunitários (pois
ser pessoa é viver em comunidade) o que se traduz não só numa ética perante a pessoa como
igualmente a responsabilidade ética da pessoa em relação ao universo humano: o ser humano surge,
além de sujeito de direitos, também como sujeito de deveres.
2. A exigência de fundamento:
 O fundamento de validade convocado radica no postulado do sujeito ético, com a sua liberdade
reconhecida enquanto pessoa e assim com a sua igualdade entre iguais.
3. A instituição de uma validade:
 O Direito só o é autenticamente com a instituição de uma validade (algo que o legitime como ordem),
nem é tão-só objeto normativo para uma determinação estritamente racional (normativismo), nem
mero instrumento de um finalismo heterónomo (funcionalismo), mas sim axiológico-normativo fim
em si mesmo: ele próprio é um valor na validade que exprime. Esta validade convoca valores e
princípios jurídicos que se manifestam na consciência axiológico-normativa decorrente da
consciência jurídica geral da comunidade histórico-cultural.

A indeterminação normativa que é própria da fundante validade propugnada exige uma determinação de
índole dogmática a que são chamadas as normas legais, com a complementariedade da reelaboração
doutrinal e dos contributos jurisprudenciais.
“Essa validade dogmaticamente determinada (através da lei, da doutrina e da jurisprudência) enfrenta uma
concreta problematização praxística nos casos decidendos, a exigir uma mediação judicativa que realize a
validade nessa prática. A dialética entre sistema e problema é a racionalidade jurídica a considerar” A Linhares

O sistema jurídico começa sempre por delimitar e pré-determinar o campo e tipo de problemas suscetíveis
de surgimento; a experiência problemática, por sua vez, vem alargar-se e aprofundar-se, em termos de fazer
emergir novos problemas, implicando novas respostas. Daqui se concluir que o Direito numa será um dado,
mas sim verdadeiramente um problema.

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As normas jurídicas positivas têm limites objetivos, intencionais, temporais e de validade, pelo que o
sistema jurídico tem necessariamente que ser mais amplo. Os valores e princípios normativos que são
fundamentos regulativos do próprio sistema são os últimos critérios de realização do direito.
Neste contexto, devem considerar-se 2 momentos na realização do direito:
 A norma legal deve ser interpretada de acordo com a normatividade fundamentante constitutiva do
sistema jurídico, referenciada às intenções axiológicas da consciência jurídica geral.
 A norma legal deve dialogar com as exigências específicas do caso concreto [o valor hipotético aferido
previamente em função da axiologia do sistema e da ratio legis é submetido a uma experimentação
problemático-decisória em referência à relevância jurídico material do caso concreto, podendo concluir-se pela
adequação do sentido hipotético, pela analogia entre a solução que dele resulta e a solução exigida pelo caso ou
pela sua inadequação (caso em que a solução deverá ser autonomamente constituída)].
Desta dialética conclui-se ser indispensável uma mediação judicativa a realizar pelo operador em concreto
(o juiz). Por isso se fala, aqui, em paradigma do juízo (não numa lógica aplicação, como no normativismo, nem
numa estrita decisão, como no funcionalismo). Por “juízo” entende-se julgamento, no sentido de ponderação
prática, e o seu critério são fundamentos, aqueles em que a normatividade do sistema de validade se
manifeste e determine.

5.4- Modelos Alternativos da Realização Jurisdicional do Direito – Critério da Abertura do Sistema

Aqui distinguem-se fundamentalmente dois tipos de conceções:

6- O Objeto Intencional e o Sentido Problemático

Uma metodologia só chega a ser tematizada quando a prática racional do domínio que lhe corresponde se
tenha tornado problemática, e na forma específica de um problema de 2º grau.
 O jurista realiza o direito resolvendo os problemas jurídicos concretos, e o problema da metodologia
é o da própria realização do direito que se cumpre e tem por conteúdo a resolução desses concretos
problemas jurídicos. No fundo, perguntamo-nos pela problematicidade jurídica em si mesma.
Ora, a problemática, exige a verificação de uma situação de crise. Assim também nos problemas de 2º grau: a
realização do direito é convocada quando se coloca um problema prático, isto é, quando há uma crise numa
situação jurídica concreta; a metodologia só é chamada quando, havendo sido convocada por um problema
prático, a própria realização do direito é posta também em crise, tornando-se ela própria um problema.

Estamos hoje num momento histórico-cultural de investigação metodológico-jurídica porque o


pensamento jurídico está em crise. E este está em crise porque ruiu o sistema dogmático-conceitual próprio
do normativismo moderno e continuado no positivismo legalista que até aqui imperava.

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A este respeito, dois pontos fundamentais importa ter hoje presentes:


 O direito não é o “antes” da sua realização, pois só na sua realização adquire autêntica existência: “O
direito existe para se realizar” (...) O que não passa à realidade, o que não existe senão nas leis e sobre o
papel, não é mais do que o fantasma do direito” (Ihering)
 O nosso momento histórico-jurídico é um momento em que o positivismo se encontra superado:
 (1) O direito realizando não se encontra todo nas normas legais;
 (2) A realização do direito não se esgota na simples aplicação das prévias e positivas normas
jurídicas.

6.1- O Pós-Positivismo
Com o positivismo a criação político-material do direito, o pensamento e a metodologia dos juristas tinham-
se por puramente jurídicos, nos termos seguintes:
 O direito seria só o direito positivo:
 Exclusão de qualquer juridicidade com fundamento materialmente pressuposto e indisponível ou
natural (metafísico, antropológico, axiológico...);
 Compreensão do direito positivo como o direito vertido nas prescrições dos órgãos político-
socialmente legitimados para criar direito.
 O direito positivo relevaria normativo-juridicamente como forma:: o direito seria a estrutura ordenadora
da vida social, a considerar em abstração da matéria social ordenada ou sem referência a quaisquer intenções
materialmente práticas (fossem elas a exigência da justiça, os valores ou os fins político-sociais). Porque
assim era, o pensamento jurídico compreendia a interpretação do direito em sentido estritamente dogmático
ou lógico-sistemático, e não em sentido teleológico.
 O pensamento jurídico dirigia-se teoricamente ao direito, considerado como objeto: ao pensamento
jurídico cabia conhecer o direito que é (de iure condito) e não o direito que deve ser (de iure condendo). O
objetivo metodológico era meramente cognitivo, de índole dogmática e formal (o jurista limita-se a conhecer
o direito, tal como o legislador o criou, e a aplicá-lo lógico-dedutivamente : “Método Jurídico”).

Esta conceção metodológica do pensamento jurídico positivista foi posta em causa por uma sucessiva
compreensão metodológica “post-positivista”:
 A teoria positivista da aplicação do direito é metodologicamente insustentável: a análise da aplicação tão-
só lógica revelou que ela é (na verdade) determinada por ponderações normativas e intenções práticas
exigidas pelo mérito jurídico particular do caso. Daqui podem retirar-se duas conclusões:
 O pensamento jurídico pode ser visto como ciência no conhecimento dogmático de normas abstratas,
mas há que reconhecer jurisprudência na decisão concreta;
 A jurisprudência envolvida na decisão concreta é normativamente constitutiva no seu decidir
concreto. O direito afirmado na decisão concreta não é a mera e repetitiva reprodução do direito
abstrato aplicando, e sim uma reconstitutiva concretização, integração e desenvolvimento prático-
normativo desse direito abstrato, segundo as exigências do caso.
 Em suma: “A jurisprudencial decisão concreta revela-se também, afinal, criadora de direito.”
 O direito não é só forma, mas intenção material, e a índole do pensamento jurídico não é simplesmente
lógico-analítica mas normativo-teleologicamente constitutiva: o direito é, e deve ser, um regulativo material,
comprometido em valores, fins e interesses.
 A realização do direito não pode fazer-se unicamente através dos critérios do direito positivo: a
interpretação jurídica não pode prescindir da referência a fatores ou a elementos normativos extratextuais e
transpositivos.
Portanto, o objeto intencional e o sentido problemático da metodologia apenas podem ser
adequadamente compreendidos no contexto de superação do positivismo.

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6.2- A Decisão Judicativa


A realização do direito traduz-se numa concreta decisão judicativa, a qual comporta dois momentos:

O juízo jurídico tem a função de reconduzir a decisão necessária (pois a controvérsia emergente do caso
jurídico tem que ser resolvida) à fundamentação necessária (na medida em que a decisão deverá justificar-se perante
os seus destinatários). A decisão é intrinsecamente manifestação da vontade humana, pelo que o juízo cumpre
aqui a função de lhe conferir racionalidade fundante.
De facto, ao juízo jurídico compete reverter a voluntas à ratio.

Isto sem prejuízo de não ser possível a realização do direito exclusivamente através do juízo: a decisão
será sempre necessária neste processo. Por muito que o juízo confira racionalidade à realização do direito,
não se pode negar que um momento decisório: por um lado, a realização do direito é efetuada por um poder
(o poder jurisdicional) que, como tal, tem que ter um espaço de atuação, não devendo ser cingido a uma
racionalidade previamente determinada (caso contrário colocar-se-ia um problema de separação de
poderes); por outro lado, haverá sempre que ser tomada uma decisão que, como resultado da atuação
humana, é insuscetível de ser absolutamente dominada pela ratio: há circunstâncias concretas que assumirão
maior ou menor relevância consoante o caso e consoante a visão do julgador.

Assim se compreende a interconexão entre os dois momentos referidos.


“O juízo sempre será sustentado por uma decisão; a solução da ratio amparada pelas opções da voluntas.”
Só a decisão dirá qual a solução concretamente aplicada. Contudo, uma vez prescrita, a decisão deverá
revelar-se objetivo-racionalmente fundamentada: a decisão autoritária deve sustentar-se num juízo, num
raciocínio argumentativamente fundamentante.

Ora, se o juízo constitui e exprime uma fundamentação, terá de implicar decerto fundamentos e
critérios. Além dos fundamentos e critérios empírico-factuais relativos ao caso decidendo, serão
fundamentos e critérios aqueles prescritos pelo direito positivo vigente (normas, princípios, etc.). Assim
sendo, o juízo é o “ato” que simultaneamente converte a lex em decisão e reconduz a decisão a uma
fundamentação.

 Portanto, o juízo é o objeto intencional da metodologia jurídica: ele é a ponte entre o direito positivo
vigente (a juridicidade) e a decisão concreta (a realização do direito em concreto).

!!! O “caminho” realizado pelo juízo será o definido por um modelo metódico. É sobre esse modelo metódico
que versa o nosso estudo subsequente. O modelo metódico referido compreende dois momentos:
1. Momento formal: esquema operatório a seguir (o “caminho”);
2. Momento material: racionalidade específica que através desse esquema se faz juízo decisório.

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II- O PROBLEMA DO TIPO DE RACIONALIDADE


(num contexto dominado pela pluralidade das razões)

Por “ratio” pode entender-se a relação entre certa conclusão e certos pressupostos, materiais ou formais,
que discursivamente a sustentam, conferindo-lhe sentido ou concludência. Uma conclusão diz-se, assim,
racional quando é sustentável pela referência a certos pressupostos, através de uma mediação estrutura do
pensamento.
Portanto, na antítese da “razão” temos a “intuição” ou a “emoção”, enquanto atitudes vivenciais sem
mediação do pensamento e, portanto, sem pressupostos de fundamentação e justificação. Isto permite-nos
dizer que a racionalidade é caraterística de tem ou se propõe ter validade objetiva, a qual se afere pela
capacidade de fundamentação e pela criticabilidade da mediação racional-discursiva das afirmações desse
pensamento.
Suscita-se então a questão: Qual é a racionalidade pressuposta pelo jurista? Qual a racionalidade
praticada pelo jurista ao desenvolver a sua atividade jurídica? Em que sentido é que se pode dizer racional a
realização do direito? De que tipo é o logos da metodologia?

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A) Racionalidades em Geral

1- Racionalidade Lógico-Formal

A racionalidade lógico-formal, também designada racionalidade de pura discursividade, traduz-se na relação


entre proposições num modo de inferência necessária, segundo regras que exprimem uma estrutura
estritamente sintática.
Sintaxe: parte da linguística que se dedica ao estudo das regras que regem a organização e relacionação
dos constituintes das frases; portanto, a sintaxe abstrai-se quer do significado das palavras, quer do uso que
delas é feito.

Há aqui um recurso à “lógica formal”: ciência da verdade de proposições com fundamento unicamente
na forma.
Dois exemplos de modelos históricos que convocaram esta racionalidade lógico-formal são o jusracionalismo
moderno e o normativismo do séc. XIX. Vejam-se os seus traços essenciais:
a) Jusracionalismo Moderno: o jusracionalismo moderno, configurado por nomes com Wolff, Hobbes,
Pufendorf e Grócio, convocou a racionalidade lógico-formal para erigir um sistema assente no direito
natural. O direito natural revelar-se-ia em axiomas antropológicos (= enunciado que procurava captar
o que era essencial no Homem), empírico-naturalisticamente descobertos. Tais axiomas, ético-
racionalmente assumidos, seriam o ponto de partida para um processo de dedução lógica: do axioma
obter-se-ia o sistema normativo mediante uma desimplicação lógica. Os princípios e normas que
constituíam o sistema eram, portanto, “extraídos” do axioma que fundava o sistema; esse processo de
“extração” traduzia-se na realização de um conjunto de deduções lógicas. [Ex.: para Hobbes o axioma
advindo do direito natural consistia na “natureza iminentemente social do Homem”. Desta “premissa”
eram extraídas todas as normas e princípios que constituíam o sistema jurídico.]

b) Normativismo Dogmático: com o normativismo do séc. XIX o silogismo judiciário ganhou absoluta
centralidade no campo da racionalidade. O silogismo judiciário traduzia-se, exatamente, na utilização
da subsunção e da lógica estritamente formal para retirar conclusões através da articulação entre dois
enunciados relacionados entre si. As normas seriam interpretadas em abstrato para que no momento da
sua aplicação a subsunção operasse pura e simplesmente, sem mais. Entendia-se, então, que o Direito
devia ser conhecido na sua abstração, não devendo o momento de aplicação implicar qualquer tarefa
constitutiva. Consequentemente, o aplicador do direito (juiz) limitar-se-ia a verificar se os factos são
subsumíveis à norma (previamente interpretada em abstrato). Este foi o esquema que, em traços gerais,
conformou o “Método Jurídico”. O silogismo judiciário referido apresentaria a seguinte estrutura:
Premissa maior » Norma = previsão + consequência (A tem como consequência B)
Premissa menor » Subsunção do caso à previsão da norma (C subsume-se a A)
Conclusão » Aplicação da consequência da norma ao caso (C tem como consequência B)

2- Racionalidade Teorética (ou Cognitivista)

A racionalidade teorética traduz-se num discurso de referência objetiva: pretende obter-se uma “verdade”
objetiva, buscando-se o direito-objeto à realidade. O cognitivismo jurídico mobiliza sempre um discurso
teorético e a estrutura sujeito-objecto que lhe corresponde;
 Sujeito: uma intenção cognitiva (de contemplação, explicação, compreensão) que, enquanto tal, se
dirige ao direito;
 Objecto: o Direito (Direito assim mesmo pressuposto e referido como uma realidade auto-
subsistente).
Esta conceção pode ser resumida no princípio filosófico propugnado por Thomas de Aquino “adequatio
rei et intellectus”, que significa, numa tradução aproximada, “a verdade é a adequação da inteligência à
realidade”. Em suma, em todo o objectivismo jurídico o direito vai pressuposto como objecto, como uma

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entidade objectivamente subsistente (seja social, seja normativo-cultural). Por isso, essa realidade admite a
interrogação (e a discussão) sobre o seu modo-de-ser (o que é o direito?) para que a aplicação prática possa
ter lugar.

2.1- Teorético-Especulativa
Os princípios e os valores (que os princípios normativamente especificam) aparecer-nos-iam como entidades
absolutamente transcendentes (com uma racionalidade e uma organização próprias), que o sujeito deveria
apenas contemplar; o aplicador do direito lê-interpreta essa realidade absoluta, a-histórica e universal
(realidade com uma racionalidade inscrita nela própria) sem ter que a reconstruir, com o intuito de a verter
num sistema normativo capaz de fundamentar as soluções prático-argumentativamente construídas para as
controvérsias. Em suma, a resolução dos casos concretos resultava de um processo
especulativo/intelectual (contemplação»speculum), em que o aplicador do direito procurava adequar os
princípios e valores transcendentes à realidade decidenda.
Jusnaturalismo pré-moderno: fala-se a este respeito num “monismo metódico”: a realidade (o “Ser”)
abrange tanto os objetos físicos e materiais como os princípios e valores transcendentes. O direito descobrir-
se-ia, então, sucessivamente, através do conhecimento dessa realidade objetiva na sua plenitude e perfeição.
Ora, a projecção destes princípios (obtidos metafisicamente) na prática das acções humanas exige uma
mediação argumentativa (realizada pelo julgador) que culmina numa construção de juízos-julgamentos não
necessários (apenas prováveis ou verosímeis). Deste modo, a experiência de autonomização do direito
transforma-se em tarefa prática de resposta a controvérsias, tudo com base na mera contemplatio.

2.2- Teorético-Explicativa (das ciências empírico-analíticas)


Esta racionalidade resume-se à circunstância de cada elemento objetivo referenciado encontrar a sua razão
de ser ou fundamento explicativo em outros elementos objetivos, segundo uma certa conexão, conexão essa
universal e, por isso, necessária para todos os elementos objetivos da mesma natureza. Assim, o discurso
racional será válido se sustentado teoricamente numa experiência (empiricamente) comprovada.
Mas logo de seguida há que refletir criticamente sobre esse método (método científico), sobre o seu sentido
e sobre os seus limites; o modo científico de se desenvolver um comportamento ou um discurso sobre a
realidade passa pela observação de fenómenos, de observar repetições que supõe a manifestação de leis da
natureza; formula-se uma hipótese que depois será testada e que visa confirmar ou refutar/infirmar as
hipóteses anteriormente formuladas; a hipótese é uma tese potencialmente explicativa da realidade que visa
confirmar ou infirmar/refutar as hipóteses anteriormente formuladas; faz-se uma experimentação local para
se retirar determinadas conclusões (procedimento indutivo típico – descobrir causas a partir da
verificação de efeitos) – método da experimentação científica).
Reflexão crítica:
 na pretensão de descrever com objetividade os fenómenos da realidade, o certo é que este modelo
de racionalidade depende muito mais do procedimento metódico que observa do que
propriamente da correspondência com a realidade em si;
 à medida que a ciência se sofistica e que a realidade que procura descrever é cada mais difícil de
descortinar, torna-se mais claro que o objetivo da ciência é formular postulários cuja veracidade
seja reconhecida pela comunidade científica, na base de um conjunto de protocolos metódicos
que essa comunidade aceita (o que garante ao cientista a publicação do seu artigo numa revista é
o facto de ter atingido resultados no cumprimento escrupuloso que a ciência exige para formular
teorias);
 portanto, a cientificidade de um postulado depende de ele ter sido atingido com respeito pelo
procedimento metódico que segundo a comunidade científica permite asseverar com alguma
segurança uma conclusão científica; então, o que garante que há uma relação entre a tese
enunciada e a realidade que a suporta?

A partir do século XX esta confiança na ciência começa a ser abalada, devido ao aparecimento de
fenómenos no campo do saber, que põe em crise a autossegurança que a ciência tinha. A destabilização das

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certezas em que repousava esta racionalidade deu lugar ao surgimento de autores que vieram mostrar que a
própria indutividade do método científico era um ideal irrealizável. Quem deu a estocada final nessa matéria
foi Karl Popper provando que o objeto da ciência não consiste em desenvolver preposições de veracidade a
propósito do mundo, pois, o que o cientista faz não é desenvolver teorias a explicar como o mundo é, o que
ele faz verdadeiramente é desmentir as teorias existentes. Popper dizia que a partir de uma amostra é
impossível formar uma lei geral e, assim, este pensamento dá origem à teoria da falsificabilidade.

2.3- Técnico-Funcional
Neste âmbito a realidade é considerada como condição e possibilidade para a consecução de certos fins
propostos ou programados, segundo uma relação funcional (função-efeitos) ou um esquema técnico (meio-
fim) – o sujeito contempla a realidade com o intuito de compreender a possibilidade de realização de certos
fins ou de produção de certos efeitos. Assim sendo, a validade traduz-se na adequação ou aptidão do objeto-
direito para a prossecução do fim visado, havendo racionalidade sempre que se conclui pela eficácia ou
eficiência.

2.3.1- Funcionalismos Materiais (Hans Albert, Teoria da decisão de Walde e Killian, F. Ost)
*ver pág. 23.

2.3.2- Funcionalismo Sistémico (Luhman)


O que está na base da proposta do funcionalismo sistémico?
 A sociedade é um sistema total composto só por comunicações; há outros sistemas, também eles
totais e que funcionam para os demais como mero meio ambiente;
 Luhman: no coração de um sistema jurídico está o juiz; noutro ponto está o legislador e a mediar os
dois está a dogmática (doutrina).
A abordagem sistémica da realidade e, em particular da sociedade globalmente considerada (uma vez que é
neste campo social que ela mais releva para nós) mostra-se bastante ampla. Multiplicam-se as gerações e
tipologias de teorias (cibernéticas, autopoiéticas, etc.), de perspectivas (funcionalista, estruturalista, interaccionista,
etc) e de sistemas (abertos e fechados, naturais e humanos, transformadores de matéria, de energia ou de informação,
etc.) em todos os estudos dedicados ao assunto, muito por força da diversidade dos afluentes que engrossam
com o seu caudal aquilo que genericamente designamos por teoria dos sistemas (estruturalismo, cibernética,
teorias da informação e da comunicação, etc.).
Traço comum a todos os autores abrigáveis sob o largo guarda-chuva sistémico é a ideia de sistema como
conjunto unitário de elementos e das suas relações, bem como a utilização das categorias nucleares da
interacção, da globalidade, da organização e da complexidade.
No centro da teoria de Luhmann está a comunicação humana, todos os comportamentos humanos são
mediados pela comunicação, constituindo por isso mensagens com sentido para os envolvidos. O grande
problema social consiste pois na redução da ambiguidade significativa das comunicações, através da fixação
dos seus sentidos. Mas como o sentido depende, não dos agentes da comunicação, e antes dos sistemas
comunicativos em que se acham integrados, o processo de evolução da sociedade crescentemente complexa
salda-se na sua diferenciação em vários subsistemas, cada um dos quais com o seu código, e consequentes
programas de acção próprios. Todas as mensagens sociais são assim codificadas diferentemente pelos vários
subsistemas de modo a reduzir-se a complexidade societal.
Para o direito, em particular, os comportamentos são traduzidos em termos de licitude/ilicitude, do
mesmo modo que para a economia surgem como eficientes ou ineficientes e para a estética enquanto belos
ou feios.
Os sub-sistemas preservam-se na sua diferença sob pena de diluição no ambiente que os envolve. Luhmann
salienta que cada sistema gera a sua própria imagem (auto-representação), regula-se a si mesmo
(autonomia) e (re-)cria-se (autopoiese), a partir do seu interior.
Neste contexto,a racionalização associada surge tendo por objectivo, «a mera coordenação ou articulação dos
diversos comportamentos, em termos funcionais, com o propósito de reduzir os efeitos desagregadores
resultantes da multiplicidade de planos (e portanto da complexidade) com que eles se apresentam».

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3- Racionalidade Prática (racionalidade a seguir!)

A racionalidade prática distingue-se das duas anteriores:


 Racionalidade lógico-formal: a racionalidade prática não se limita a sustentar a solução apresentada
numa inferência lógico-dedutiva e/ou subsuntiva;
 Racionalidade cognitivista ou teorética: a racionalidade prática não funda a solução alcançada numa
referência objetiva da qual se extrai a normatividade (numa relação sujeito-objeto).

Efetivamente, a ratio prática traduz-se numa atividade comunicativa, numa relação entre sujeitos
segundo um esquema sujeito-sujeito: manifesta-se numa troca comunitária e dialógico-dialética de
argumentos. Pretende-se, portanto, a validade em sentido prático. Assim sendo, esta é uma racionalidade
dirigida menos à razão, em si, e mais às razões mobilizáveis na sua situada dialética prática de uma
controvérsia.

Antes de mais, é interessante voltar a Aristóteles para perceber o que seria essa prudência como virtude;
O filósofo situa esta virtude da prudência precisamente naquilo que ele diz a parte da alma que se volta para
as coisas que mudam, que são contingentes, que sendo assim podiam ser de outra maneira; tudo aquilo que
era necessário, portanto, tudo aquilo que não muda só poderia ser contemplado, mas quando estamos no
domínio da experiência aí as próprias práticas do sujeito fazem parte da sua própria experiência ou da
experiência que ele está a procurar determinar: o que temos é claramente é um discurso sujeito-sujeito.
Porquê? Porque essa prudência tem a ver com a virtude de agir e decidir em concreto perante os casos
e as situações; é uma virtude voltada para a ação e decisão em concreto, mas uma resposta que seja racional;
e ser racional aqui significa ser comunicável, ou seja, que as razões que vão fundamentar essa resposta
possam ser intersubjetivamente partilháveis e ser discutidas dialogicamente (em diálogo) e ao serem
discutidas também podem ser controladas na sua racionalidade.
Aquilo que aqui se desenvolve é uma tentativa de discutir essas razões, esses fundamentos construindo
argumentos que possam persuadir o nosso interlocutor, ou seja, estamos numa prática de argumentação; a
verdade prática é uma verdade que não se consegue através da contemplação, mas sim, através de uma troca
de argumentos que aparecem em diferentes graus, mais verossímeis ou persuasivos do que outros
argumentos; portanto, esta racionalidade não implicará uma lógica formal, mas sim, uma lógica do
provável/verosímil, que é exatamente a dialética (uma disciplina sustentada numa estrutura de
comunicação de argumentos; a dialética parte de proposições que são apenas prováveis, pois tem exatamente
a ver com as coisas que mudam, algo de contingente).
A dialética é a lógica do provável e do verosímil, mas quando essa lógica é utilizada para convencer o
auditório, essa dialética converte-se em retórica (a retórica é uma das dimensões da dialética para dirigir a
um certo auditório – estamos a falar de uma retórica que parte da dialética).

Este discurso sujeito-sujeito entrou em declínio com a viragem moderna; de tal modo que quando chegamos
ao século XIX já não encontramos na formação jurídica qualquer traço destes discursos dialéticos; o
pensamento jurídico ao querer ser ciência vai querer separar-se do seu objeto – o direito -, pelo que não é
uma intenção normativa que está aqui em causa, mas sim uma intenção cognitiva.

Na segunda metade do século XX, reuniram-se condições para reabilitar a racionalidade prática, para
reabilitar o pensamento prático, o discurso prático. O que aconteceu foi o resultado de vários fatores, entre
os quais a tal crise da razão moderna, que consiste em grande parte no reconhecimento de que para além
da racionalidade científica (sem pôr em causa a sua importância) mostrar que há consoante as práticas que
nós desenvolvemos, diferentes racionalidades. Pois, o discurso científico não serve para tudo,
designadamente, quando estamos a pensar em ações humanas.
“Então, o que vai acontecer é que se vão recuperar estes modelos pré-modernos; vamos encontrar um
autor alemão que procura pensar o Direito a partir de uma perspetiva dominantemente tópica, que o direito
tem a ver com casos, pensar o Direito através de casos, logo, muito diferente do discurso demonstrativo e
lógico-dedutivo, mas que falha quando estamos a pensar ações e decisões humanas, pelo que temos de
repensar a racionalidade e um desses modos é recuperar alguns discursos usados pela tópica; ao mesmo

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tempo também temos (no início dos anos 60) um autor belga que vem no fundo, numa linha mais geral, falar
da nova retórica experimentada a partir de um direito; Steven Tomin vem reconstruir o que é um argumento;
no final dos anos 50, princípio dos anos 60, começa-se falar de racionalidade prática e de um esforço de
recuperação da prática e, por maioria de razão, recuperando-se também a metodologia voltada para a prática
dos problemas. As soluções jurídicas nunca são obtidas por dedução, é pois, um artifício criado pelo
positivismo legalista do século XIX que procurou defender o silogismo subsuntivo; a racionalidade prática
é uma racionalidade de prática de argumentos, com uma estrutura dialética (dialógica).”
Nos anos 70 começa a falar-se da reabilitação da filosofia prática, perceber que a racionalidade jurídica
é uma racionalidade prática – prudência.
Só que há aqui uma questão a ter com conta, esta reabilitação da filosofia prática não é um regresso puro e
simples ao contexto pré-moderno, nem podia ser assim, porque não há uma projeção idêntica ao que
encontrámos na época pré-moderna.
 Época Pré-Moderna: há uma ordem última de princípios e de valores que dá sentido a tudo isto, e
essa ordem não é uma criação humana e por tudo isso é uma ordem necessária, indisponível, eterna;
seria, portanto, uma prática comum a todas as civilizações – todos vivem na convicção que de há uma
ordem das coisas, que há princípios imutáveis e que, portanto, não estão dependentes da criação
humana.
 Segunda metade do Séc. XX: tudo isto relativamente a uma ordem natural, indisponível e necessária
está ausente quando se recupera a dialética, a retórica e a tópica, esses valores são criações humanas!
Assim, se os valores últimos são criações humanas, então, podem não ser universais; os princípios
jurídicos são, portanto, criações humanas que se vão transformando e enriquecendo historicamente, num
determinado círculo histórico (claro que isto é uma afirmação que podemos fazer hoje sem esquecer que há
tentativas de recuperar visões jurídicas; fala-se, hoje, num neojusnaturalismo, por exemplo).
Mas, como é que estamos vinculados a esses valores? Se são criações humanas, podemos dispor deles, logo
não estamos verdadeiramente vinculados – há aqui um equilíbrio a estabelecer entre aquilo que nós podemos
dizer uma autovinculação e uma autodisponibilidade; estes valores estão abertos à transformação, mas essa
transformação é um processo lento, pois, não é um sujeito que rompe, de per si, com estes valores; como
também percebemos que politicamente não seja possível romper com este horizonte de valores, pois as
opções do sistema político têm que conviver com este horizonte de princípios que enforma a comunidade em
que esse sistema político está inserido.

Então hoje, a prática jurídica é vista como uma autopressuposição axiológico-normativamente


fundamentante e regulativamente constitutiva: os princípios jurídicos fundamentais, fruto da “consciência
jurídica geral” de uma certa comunidade, surgem como dimensão ético-jurídica do Direito, sendo certo que a
normatividade, ainda que neles inspirada, é criação humana, em vista das exigências sociais e das finalidades
a que se pretende atender (ordenação do mundo “solução possível para um problema necessário” C. Neves)

3.1- Racionalidade Axiológica vs Racionalidade Finalística


Castanheira Neves aclara que a racionalidade prática axiológica funda a acção em valores ou princípios,
supondo o agente como um sujeito de razão que compreende o mundo do ponto de vista da rectidão e
moralidade. Sendo assim, ele actua com base em determinados pressupostos axiológico-normativos porque
os tem por justos e válidos, acreditando, desta feita, no valor incondicional do comportamento que adopta -
legitimado que está por esses referentes de sentido que procura «actualizar» e manifestar,
independentemente dos resultados alcançados.
A racionalidade prática finalista possui uma ação orientada pelos fins que almeja atingir, e já não pelos
valores que pressupõe em termos fundamentantes e regulativos. Nesta hipótese, o homem deixa-se
determinar pelos prejuízos ou benefícios previsíveis da conduta adoptanda, seguindo uma máxima de
utilidade e eficácia, na produção dos efeitos consonantes com os fins pretendidos. Porque assim é, a prática
converte-se numa técnica e o agir, num fazer.
Hoje em dia, a crise dos fundamentos materiais, designadamente de sentido axiológico normativo,
alimentada pelo pluralismo radical das sociedades, pelo espírito democrático e a atitude crítica,
antidogmática e pós-metafísica do homem está na origem de um crescente apelo às racionalidades de tipo

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procedimental e finalista. Uma tendência que, de resto, se começara a manifestar logo no início da
modernidade e se acentuou a partir do iluminismo.
Na verdade, como já tivemos ocasião de mencionar, o homem moderno deixou de referir a acção prática a
uma ordem de sentido onto-teleológica. O Homem passa a ver nos fins uma mera manifestação de pretensões
subjectivas e na acção uma possibilidade causal (funcional ou técnica) de desencadear como efeitos esses
fins. Os fins deixam de ser a expressão teleológica de uma ordem onto-axiológica e a acção humana, por eles
orientada, passa a analisar-se em termos de eficácia ou mesmo eficiência na consecução dos fins ou
objectivos.
Paralelamente, a recusa de ordens ou sistemas de valores absolutos que se foi acentuando desde a
modernidade e a simultânea problematização da verdade suscitada pela ciência conduziram ao abandono
das filosofias do fundamento e ao descrédito da investigação dos fundamentos últimos.
Porém, para Castanheira Neves, não está hoje excluída a possibilidade de uma fundamentação material,
seja em sentido geral, seja em termos especificamente axiológicos. Ponto é que se não assimilem os
fundamentos a objectos-pressupostos ou entidades absolutamente transcendentes e autónomas perante o
sujeito, compreendendo-os antes, adequadamente, como autopressuposições humanas de sentido, i.e.,
expressões do auto-transcender fundamentante do homem em resposta ao porquê do sentido e do
valor (e à pergunta pelo bem e pela justiça). Aroso Linhares, também o defende, dizendo que «os valores
úlimos são criações humanas» (pág 20).

3.2- Racionalidade Procedimental/Formal vs Racionalidade Substancial/Material


No caso da racionalidade substancial/material, as validades que se pretendem manifestar são a expressão
de um fundamento material. A conclusão, ou decisão, ou pretensão, tem-se por válida porque justificada por
algo materialmente pressuposto, de natureza ontológica, antropológica, axiológica, sociológica. O essencial é
o conteúdo.
Por outro lado, para a racionalidade processual/formal as validades são legitimadas através do processo
(modo procedimento ou operatório) seguido. A conclusão, ou decisão, ou pretensão, tem-se por válida porque
a sua constituição resultou de um determinado procedimento. O essencial é o modo de obtenção.
O exemplo histórico mais expressivo de uma racionalidade substancial/material foi o “jusnaturalismo
clássico”. Tal conceção assentava numa racionalidade de tipo substancial na medida em que todo o sistema
era construído com base num fundamento de ordem ontológica – o Direito Natural, parte do cosmos e
imodificável pelo Homem.
A racionalidade processual/formal manifestou-se, nomeadamente, em correntes como o contratualismo e o
neo-contratualismo políticos. Estamos aqui em face de conceções segundo as quais a ordem vigente seria
legitimada pelo processo representativo que lhes deus origem: os titulares da soberania (povo) conferiria,
mediante “contrato”, a legitimidade para criar a normatividade aos seus representantes nomeados, não
relevando para efeitos de validade o conteúdo que estes viessem a dar a essa normatividade.

B) Racionalidades Especificamente Jurídicas

O problema da racionalidade jurídica traduz-se na questão de saber que tipo de racionalidade


especificamente corresponde ao pensamento jurídico na sua tarefa de realização do direito. Note-se que
todas as racionalidades aludidas têm sido assumidas pelo pensamento jurídico com o objetivo de cumprir
essa tarefa.
Dois fatores têm sido determinantes a este respeito:
1. Conceção do Direito pressuposta pelo pensamento jurídico;
2. Atitude intencional do pensamento jurídico perante o Direito.

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1- Racionalidade Lógico-Formal e Teorética

Segundo a compreensão do direito que se tornou tradicional a partir da modernidade, o Direito é um objecto
a que o pensamento jurídico se dirige numa intenção teorética, cuja índole varia de acordo com o tipo de
objectualidade atribuída ao direito:
Índole ontológico-dogmática, no caso de o direito se identificar com um objecto-Ser;
 Índole normativo-dogmática, se for reconduzido a um objecto-norma;
 Índole empírica, se o direito for entendido como um objecto-facto.
São duas as notas fundamentais desta impostação:
 Objectivismo: porque o direito é considerado um objecto pré-existente e pré-dado ao jurista.
 Cognitivismo: na medida em que o jurista se dirige a esse dado concluso com uma mera intenção
cognitiva, pelo que os problemas jurídicos se convertem em problemas de conhecimento e a
juridicidade passa a assumir-se numa intenção de verdade.

Esta racionalidade foi adoptada pelas seguintes concepções do direito e pensamento jurídico:
1.1- Jusnaturalismo Normativista:
Via o direito como objecto, porque pressuposto em entidades ontológicas (o cosmos) ou antropológicas (a
natureza do homem). Caberia ao jurista aceder a esses dados objectivos da razão, “para com base neles
construir lógico-dedutivamente um sistema coerente de regras de direito, mobilizável depois também
conceitual-logicamente e silogístico-subsuntivamente para resolver os problemas jurídicos”.
1.2- Positivismo Jurídico:
O Direito seria um objecto prescritivamente imposto pelo legislador (direito positivo), que o jurista deveria
conhecer e nele subsumir os casos concretos.
1.3- Realismo Jurídico:
O Direito seria um facto social ou psico-social, expresso em práticas e discursos dos membros da sociedade,
ou até no conjunto das decisões proferidas pelos juízes. Substitui-se a normatividade pela factualidade: o
direito é aquilo que é e não o que devia ser. A decisão jurídica explica-se por causas sociológicas e
psicológicas, e assim a ciência do direito deveria, não apenas estudar as normas jurídicas, mas também
aqueles comportamentos-decisões, enquanto explicáveis por um certo conjunto de factores, de modo a
conseguir prever esses mesmos comportamentos no futuro (racionalidade teorética).

Podemos apontar as seguintes críticas a estes modelos:


 No que toca ao jusnaturalismo racionalista e aos positivismos, estes, apesar de conceberem o
direito de modos diferentes, em ambos os casos constituia um sistema fechado e auto-subsistente,
que culminava numa aplicação racionalmente dedutiva ou lógico-subsuntiva. Assim, não podemos
aceitar este modelo de racionalidade: “na verdade, a resolução de problemas jurídicos redensifica a
própria normatividade jurídica, porque cada caso suscita sempre um juízo normativo autónomo. A
racionalidade especificamente jurídica terá de reflectir critico-reconstrutivamente a própria prática
judicativo-decisória dos concretos casos decidendos” (L. VALE).
 Relativamente ao realismo, acaba por adotar um ponto de vista externo relativamente ao direito, em
vez de orientar o jurista na sua tarefa prático-jurisprudencial, ou seja, não nos oferece uma
racionalidade jurídica. “O importante não é o conhecimento das condições exteriores/heterónomas
de que depende uma decisão jurídica, mas a compreensão e assunção das intenções e sentidos do
direito, a partir de uma perspectiva interna ... o jurista quer saber como deve julgar adequadamente
uma questão jurídica de acordo com a normatividade jurídica vigente” (L. VALE).

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2- Racionalidade Tecnológica/Instrumental

Trata-se de um tipo de racionalidade que dominou grande parte do século XX. Para esta racionalidade, o
pensamento jurídico é compreendido, já não como uma teoria, mas sim como uma tecnologia, uma
engenharia social (social engineering); e o direito como um instrumento para atingir certos fins sociais.
Estas correntes remetem o direito ao domínio das ciências sociais, diluindo a sua autonomia e a sua
normatividade.
 “O pensamento jurídico é convocado para, através do direito, definir as soluções mais oportunas ou
úteis e instrumentalmente adequadas ou eficazes” C Neves.
“A utilidade, com a sua índole pragmática e a sua racional eficiência prefere à axiológica justiça e à sua
apelativa normatividade, e a performance prevalece sobre a validade. Em conformidade, o jurista deixa de ser
o prudente (ver pág. 18) e passa a ser o engenheiro ou técnico social que encara a prática como um meio
causador de efeitos. Os valores são substituídos pelos fins (subjectivos), os fundamentos normativos pelos efeitos
empíricos e a legitimação axiológica pela legitimação com base nos efeitos” L. Vale

2.1- Conceção do Direito em Geral (Proposta de Hans Albert)

Hans Albert tentou transpor para o universo prático o modelo epistemológico do racionalismo crítico de Karl
Popper, procurando empregá-lo na resolução de problemas da prática social.
Tinha em vista a possibilidade de uma crítico-racional organização e orientação sociais através da
normatividade jurídica. O direito passa a ser olhado como uma estratégia político-social funcional e
finalisticamente programada, assinando-se ao jurista a tarefa de descobrir os fins da sociedade no contexto
histórico-cultural em que se integra, para elaborar os modelos de solução dos problemas jurídicos, que
mais eficazmente permitam realizar aqueles objectivos. Ou seja, para a consecução do programa político-
social da sociedade, constroem-se projectos de solução dos casos de direito.
Isto é feito segundo um modelo científico, obedecendo aos princípios da congruência (as soluções têm
de ser sistematicamente possíveis no contexto social em que se inserem); realizabilidade (as soluções têm se
der viáveis, ou seja, susceptíveis de realização); e explicabilidade (a construção e aplicação deve ser passível
de esclarecimento pelo pensamento científico).
Estas propostas têm de ser depois experimentadas, e só serão adotadas se os seus resultados se mostrarem
satisfatórios.

Em suma, estamos perante uma verdadeira tecnologia social sem carácter axiológico-normativo.

2.2- Teoria da Decisão Jurídica (a teoria da decisão de Walde e Killian)

No plano da decisão, esta concepção deu origem ao modelo da teoria analítica da decisão, segundo o qual
a decisão seria uma causa de efeitos, e que portanto tem de ser avaliada em função deles. A decisão é “a
escolha finalística entre diversas possibilidades de acção tendo em conta os efeitos de cada uma dessas
possibilidades ou alternativas relativamente ao fim ou fins pretendidos”. A intenção da teoria analítica é,
assim, a de racionalizar as decisões através da definição de regras, com o objetivo de maximizar a sua
utilidade e oportunidade – tendo elaborado para tal uma lista hierarquizada de soluções, de acordo com
regras de probabilidade.

A referida “teoria da decisão” começa por observar que o tradicional método dogmático-normativo não seria
o determinante das decisões concretas, não passando de uma forma de legitimação a posteriori dessas
decisões. Daí que tal método pudesse ser legitimamente substituído. Ademais, o próprio sistema jurídico
atual justificaria essa substituição, com a sua contínua passagem de leis conservadoras e orientadas por
regras para leis de sentido evolutivo e orientadas pelos efeitos (Walde), e com o avanço de leis orientadas
funcionalmente e o recuo de leis constituídas clássico-condicionalmente (Killian).

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Em alternativa ao tradicional método dogmático-normativo, a “teoria da decisão” propõe o seguinte método:

Portanto, tudo dependeria do fim da norma, na medida em que seria ele que se assumiria como parâmetro
para ajuizar negativa ou positivamente dos possíveis efeitos alternativos.

2.2- Concepção da Função Judicial (o modelo do juiz tecnocrata de François Ost)

Este modelo de racionalidade levou a uma descaracterização da função judicial, patente no modelo do juiz
tecnocrata. Para o autor, no quadro dos actuais Estados Sociais de Direito, nos quais vigora uma justiça
científica, eminentemente finalística e com uma índole programática, o juiz deveria ser um agente ou
executante do projecto político-social desenhado pelo legislador, e não um terceiro imparcial. O juiz
prossegue tacticamente a estratégia do legislador, como uma sua “longa manus”.

Neste contexto, o juiz atua não só no momento da controvérsia, mas também antes e depois: antes, o juiz está
investido numa missão de prevenção, de aconselhamento, de orientação; depois, o juiz mantém-se
responsável pelos interesses em causa e pode rever as suas decisões. Como se vê, a função judicial surge com
uma nova configuração: a “nova missão” do juiz impor-lhe-ia uma atuação além do campo fechado dos
direitos subjetivos determinados na lei.
Neste âmbito, também o direito teria de sofrer uma alteração: as obrigações cujo respeito o juiz deveria
assegurar passam a assumir a forma de diretivas flexíveis ou standards e os direitos subjetivos assumem-se
como simples interesses. Na base de tudo isto estaria, sempre, a ideologia tecnocrática, com a sua legitimação
pela performance ou eficiência: uma coisa é boa se ela se mostra adequada ao fim prosseguido. A lógica da
performance acaba por se sobrepor à própria desejabilidade do objetivo prosseguido, de tal forma que a
relação valorada ou normativa seria substituída por uma relação causal. Toda esta mutação transformaria o
juiz em administrador e levaria à instrumentalização do direito.

Podemos apontar as seguintes críticas a estes modelos (C. Neves):


 Concepção de Hans Albert: o Direito deixa de ser visto como um sistema normativo de validades,
para passar a ser um instrumento relativizado aos fins sociais que pretende atingir.
 Teoria da Decisão: não serve para orientar o juiz na sua tarefa judicativo-decisória, que deve ter
como fundamento a validade normativa. Por outro lado, a teoria da decisão oferece-nos um
modelo de racionalidade impraticável, uma vez que os princípios e fundamentos de valoração são
mutáveis no tempo; e a base de valoração é elaborada em abstracto, não permitindo a sua
adaptação ao caso concreto.
 Concepção da Função Judicial: “não pode aceitar-se que o juiz actue como uma mera longa manus
da função executiva, descurando as funções de garantia e perdendo o seu estatuto imparcial, para
se tornar agente do programa social servido pelo direito” (L. VALE).

Levados até às últimas consequências, destes modelos resultará um sistema político-jurídico em que o
Direito deixa de ser uma normatividade de garantia com uma axiologia própria, a função judicial passará a
ter como escopo a intervenção político-social. Verificando-se estas circunstâncias, desapareceria o Estado de
Direito como o conhecemos, transformando-se este num Estado de Mera Administração: a função judicial
acabaria convertida numa função executiva.

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3- Racionalidade Prática (Prático-Prudencial)


(*remissão pág. 19 e segs)

Segundo esta, o direito é uma validade axiológico-normativa da realização problemática, em que o


pensamento jurídico é chamado a resolver problemas práticos numa atitude prático-jurisprudencial.
No fundo, com a racionalidade prática o pensamento jurídico deixa de encarar o direito como um sistema
lógico fechado (racionalidades lógico-formais), ou como um “objeto” que se pretende conhecer para depois
aplicar (racionalidades teoréticas).
Na sequência das transformações de mentalidade ocorridas no séc. XX (com a crise do pensamento científico)
deixa de se crer em verdades. Assim, no domínio do Direito, já não se pretende obter soluções verdadeiras
(como se existisse uma única solução correta – a solução válida/verdadeira), mas sim soluções
razoáveis/verosímeis. Entende-se que o discurso jurídico é também um discurso de probabilidade, e não
de certeza.
Assim, em substituição da relação sujeito-objeto, agora a decisão jurídica surge no seio de uma relação
sujeito-sujeito: o julgador procura convencer os destinatários da sua decisão que esta é a mais razoável
dentre as várias possíveis – há aqui uma relação comunicativa: uma dialética.
Daí a extrema importância que o caso concreto surge neste contexto: é o contexto casuístico que permitirá
sustentar a decisão proferida, porquanto a normatividade se deverá ajustar ou adequar às circunstâncias de
cada caso.

3.1- De Índole Procedimental

A) Racionalidade Tópico-Retórica
Traduz-se num pensar dialético (alicerçado num raciocínio) de controvérsias praticas que mobiliza as
referências prático-culturais perfilhadas pelos membros esclarecidos de uma certa comunidade histórica, em
ordem a operar com esses critérios segundo uma argumentativa dialética inventada situacionalmente, na
qual participam os interessados no problema, com o objetivo de chegar a um consenso.

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Em suma, a racionalidade tópico-retórica, construído por Viehweg, partia dos problemas concretos,
mobilizando a seu respeito os lugares-comuns que se lhes aplicassem. Por “lugares-comuns” (ou “topoi”)
haverá que compreender argumentos estandardizados aceites por todos os membros de uma comunidade
histórica (ou pela maioria ou pelos mais qualificados).

 A tópica, quando aplicada ao domínio do Direito, considerava como “lugares-comuns” as normas


jurídicas, princípios, decisões jurisprudenciais, etc… (as fontes de direito). Tais tópicos serão os
argumentos utilizados na solução de problemas jurídicos, e que podem contar neste domínio com a
concordância geral.
 Assim sendo, partindo do caso e convocando a normatividade, o julgador deveria considerar as
posições apresentadas pelas partes, as quais iriam usar a retórica para justificar o seu raciocínio.
 O juiz surge quase como um “mediador”, que se limita a convocar os topoi aplicáveis in casu e a
procurar aproximar as pretensões das partes com recurso à retórica.

B) Racionalidade Argumentativa

A racionalidade argumentativa, como modelo discursivo, estrutura-se em redor de um acervo de categorias


nucleares, cumprindo-se no respeito por um conjunto de exigências éticas e na obediência a regras
pragmáticas. As categorias nucleares da racionalidade argumentativa, em torno das quais são criadas as
regras da argumentação, são as seguintes:
 A controvérsia: concreto problema jurídico;
 Os interlocutores: sujeitos da ação comunicativa;
 O auditório (micro e macro);
 O referente: sistema da normatividade jurídica vigente.
 O procedimento: trâmites que devem ser seguidos na troca de argumentos.

 Perelman: (A “Nouvelle Rhétorique”):


A recuperação da retórica na contemporaneidade ficou principalmente a dever-se a Chaim Perelman (Escola
de Bruxelas), cujo trabalho nos permite fazer a ponte entre a retórica e a argumentação.
Recuperou a racionalidade clássica da fundamentação argumentativamente convincente, que não
assenta em premissas verdadeiras ou falsas, mas sim em argumentos mais ou menos fortes. No domínio
dos discursos práticos (nos tribunais), trata-se de fundamentar pela via argumentativa, de acordo com a
lógica do preferível e diante de um auditório, as posições que se defendem.
A referência ao auditório tem um duplo sentido:
 Microauditório: composto pelos interlocutores imediatos do discurso, ou seja, as partes que
reclamam a decisão para a controvérsia.
 Macroauditório: auditório hipotético que funciona como referente intencional, que no caso do direito
é a comunidade jurídica em geral. Daí que Pinto Bronze afirme que a racionalidade desta
argumentação é “directamente proporcional ao grau de consonância que manifesta com os ‘valores
espirituais’ da ‘comunidade’ concretamente em causa”.

Quais os méritos da Teoria de Perelman:


 Explicitar a contextualização histórico-social da argumentação;
 Acentuar o significado do princípio da inércia (segundo o qual só tem o dever de fundamentar quem
pretender alterar o já pré-estabelecido no diálogo argumentativo – efeito desonerador);
 Valorizar o princípio do contraditório;
 Assim concebida, a retórica fica perto da argumentação, perdendo a sua marca persuasiva.

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Porém, Castanheira Neves distingue a retórica da argumentação: à primeira vai associada o sentido
pejorativo do pensamento clássico de manipular um auditório; por outro lado, a argumentação apenas se
centra nas regras do argumentar.
A retórica “não é bastante para desvelar a intencionalidade predicativa do direito e do pensamento
metodológico-jurídico” (Pinto Bronze).

 Alexy
Desenvolveu a teoria do caso especial, segundo a qual o discurso jurídico é um caso particular do discurso
prático geral, demarcando-se apenas pelo facto de com afirmações e decisões jurídicas não se pretender a
absoluta correção, mas apenas que as mesmas sejam corretas à luz dos pressupostos do ordenamento
jurídico vigente. Ou seja, não basta uma comunicação correta, mas é necessário uma comunicação conforme
a esses pressupostos.
Segundo o autor, a racionalidade da prática é uma racionalidade discursiva (se a prática humana é discursiva,
também a racionalidade humana o será), pelo que é necessário apurar as regras que racionalizam esse
discurso – tendo assim elaborado um “código da razão prática”, composto por regras de argumentação que
devem ser observadas nos processos de justificação. A argumentação jurídica está sujeita a este código, pelo
que a correção e não arbitrariedade de uma decisão jurídica dependem do respeito pelas regras da
argumentação (mas, para além disto, está ainda sujeito à observação dos especiais vínculos jurídicos). Nas
palavras do autor, “um enunciado normativo é válido ou verdadeiro, se puder ser o resultado de um
determinado proceder, o proceder do discurso racional”.

A estes modelos de racionalidade prática procedimental podem apontar-se algumas críticas:


 O fundamento das decisões judicativas é, para a racionalidade tópico-argumentativa, o consenso
persuasivo a posteriori. Sucede, porém, que o referido consenso deve ser visto como mero resultado
e não como fundamento. De facto, o decidir jurídico pressupõe uma validade a priori, que está antes
da própria decisão. Enquanto que o consenso denota a concordância de todos os indivíduos (com a
decisão já tomada), a validade traduz uma pressuposição trans-individual (com base na qual se
decidirá).
 Não pode sustentar-se uma igualdade ou paridade entre os “lugares-comuns” mobilizados no caso,
pois há uma hierarquia normativa que tem que ser considerada (por ex.: uma norma legal tem que
prevalecer sobre a consideração de “precedentes” judiciais).
 Na racionalidade argumentativa, a discussão é a única instância de controlo. Sucede, porém, que, na
realização judicativo-decisória do direito, essa instância de controlo tem que ser o terceiro imparcial
de uma autoridade institucional (o juiz). Ora, embora este terceiro deva ser instruído por aquela
discussão, a verdade é que ele tem autonomia judicativa – o juiz não pode limitar-se a ser um
mediador do debate entre as partes; ele tem que assumir uma postura autoritária e independente.
 O juízo que resultaria da aplicação dessa racionalidade seria válido se consistisse num juízo racional-
argumentativamente concludente. Todavia, o juízo decisório concreto terá de ser também
normativamente fundado no sistema jurídico vigente. Ou seja, o discurso do julgador não pode
obedecer simplesmente às condições e regras do discurso da razão prática, terá que realizar em
concreto a validade jurídica.
De tudo o que foi dito Castanheira Neves retira uma conclusão fundamental: a decisão judicativa deve ser
orientada por uma racionalidade que, sendo prática, se afirme acima de tudo como material (e não
procedimental, apesar de as regras procedimentais e a dinâmica dos argumentos também serem
importantes).

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3.2- De Índole Material

A) Racionalidade Hermenêutica

A hermenêutica, como racionalidade e como método, é um pensamento dirigido à compreensão ou


interpretação de sentidos culturais dos textos no âmbito de um determinado, histórico e integrante contexto
significante.
Transpondo o que foi dito para o domínio jurídico, de forma simplista: o julgador, deparando-se com um
caso concreto, iria interpretar a norma aplicável à luz do contexto específico desse caso.
Esta perspetiva acentua que estamos todos nós mergulhados no mundo e quando se trata de
compreender um texto ou um gesto que o outro faz, eu estou já (eu próprio) inserido num certo contexto; eu
vou dirigir-me sempre a um texto partindo de uma pré-compreensão (o nosso conhecimento/experiência
está sempre situado).
Dessa interpretação resultariam os critérios decisórios segundo os quais seria proferida a decisão; assim,
esta decisão seria “racional” se traduzisse uma interpretação da normatividade suscetível de se inserir na
ordem jurídica tal como ela é pensada naquele contexto histórico-social e cultural.
O que Gadamer procura com a hermenêutica como filosofia é chamar a atenção para a historicidade da
existência humana.

A pré-compreensão – quando se pensa em termos de pré-compreensão significa que eu vou dirigir-me a um


texto assumindo um pré-juízo (não parto do zero, de uma tábua rasa para conhecer as coisas, para
comunicar, parto sempre de uma compreensão prévia que tenho, porque estou situada no mundo), pelo que,
cada prática comunitária tem também as suas pré-compreensões: assim, quando nos dirigimos a um texto
estabelecemos com ele uma pré-compreensão, e que vai depois ser como que constitutiva da compreensão;
a grande novidade deste pensamento hermenêutico é no fundo a ideia de que o círculo pode ser produtivo,
não vicioso, porque o nosso modo de estar no mundo é circular.
Para a hermenêutica, realizar o direito é interpretar textos a partir de uma experiencia situacional
específica. Mas será que interpretar textos é realizar o direito? O texto não ser deve ser lido apenas com uma
intenção de reconstruir a intenção do autor real, mas sim a inserção do texto no determinado contexto
Em suma, a hermenêutica não se confunde com a filológico-gramatical interpretação dos textos legais,
levada a cabo pelos autores positivistas. O que está aqui em causa é o intuito de alcançar os sentidos culturais
que estão comunicados na normatividade (sobretudo, nos textos legais), a propósito de uma situação
concreta.

B) Racionalidade Narrativa de Dworkin

O filósofo norte-americano deu uma refundamentação ao entendimento da juridicidade que era veiculado
pela racionalidade hermenêutica. Os pontos-chave do seu pensamento eram os seguintes:
 À racionalidade jurídica corresponderia uma racionalidade “de valor”, na medida em que toda a
comunidade jurídica se deveria orientar por um “ideal de integridade” – os agentes do direito deveriam
agir e decidir de forma consistente e coerente, segundo determinados princípios orientadores de
conduta.
 O direito deveria ser pensado como um “model of principles”: o sistema jurídico seria um sistema global
de princípios ético-jurídicos em que sempre se haveria de procurar o fundamento para uma única solução
válida (aquela que se mostrava correta e justa in casu).
 As decisões jurídicas admitiriam argumentos “de política” a nível legislativo, mas deveriam fundar-se tão-
só em argumentos “de princípios” a nível judicial.
 A validade normativo-jurídica das decisões afirmar-se-ia pela sua inserção consistente e coerente no
sistema normativo do direito. Os casos decidendos teriam de puder ser compreendidos, através dessas
decisões, numa coerência normativa com o sistema do direito.

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 Aqui a racionalidade das decisões vai depender também de critérios não jurídicos. O julgador deveria
convocar vários “códigos” (a moral, a ética, a política, o direito, etc.) com base nos quais iria avaliar a
questão decidenda. Com base nessa avaliação seria proferida uma decisão dita única, porquanto seria a
única plausível tendo em conta todos esses códigos: seria a decisão mais justa e correta no caso
especificamente em causa.

 Aroso Linhares

«Quando eu estou a considerar o direito narrativo estou a considerar um conjunto de materiais


heterógenos, mas que vão ser articulados numa sequência que vai dar unidade a essa pluralidade ou a esse
caráter heterogéneo. A linguagem narrativa é uma linguagem que pode usar códigos muito diferentes, mas
usa-os para construir uma unidade coerente, vai dar unidade ao todo.
Quando se está a experimentar uma norma aquilo que ela fornece não é propriamente um esquema de
“hipótese-estatuição”, mas sim um esquema narrativo, aquilo que se deve fazer em concreto é confrontar a
relevância daquela tipificação narrativa com os acontecimentos que estão a ser narrados; a narrativa com
esta abertura que tem é talvez o género de discurso do nosso tempo que permite melhor dirigir-se à
pluralidade das nossas formas de existência, porque a narrativa cria esta aptidão de dar o testemunho dos
diferendos que nos separam e dar-lhes uma certa coerência.
Isto basta-nos para entendermos os seus limites quando a quisermos projetar no universo do direito (a
narrativa pode ter a capacidade de nos fazer esquecer do diferendo!).»

Para Dworkin, o critério proposto de racionalidade na decisão é a sua coerência com as demais (law as
integrity); porém, para C. Neves a coerência, mesmo normativa, não pode ser o critério decisivo da validade
das decisões jurídicas, pois tal implicaria desatender à problematicidade específica do caso.

C) Racionalidade Teleológica de Castanheira Neves

O nosso professor rejeita a racionalidade finalística ou instrumental, uma vez que o direito não se pode
conceber como um instrumento de realização de fins exteriores ao próprio direito.
Porém, significa isto que o direito é uma mera afirmação simbólica de valores, desinteressado do modo como
estes se repercutem na prática? Não!
Segundo Castanheira Neves, de acordo com uma concepção devidamente atualizada, a racionalidade
teleológica traduz uma «preocupação pelo objetivo intencional da ação concreta e pela normatividade que a
fundamenta» e «procura hoje pôr em correspondência as ações que se praticam e os fundamentos que
intersubjectivamente se lhe adequam, ou seja, intenta estabelecer analogias entre aqueles e estes».
Os valores no direito são intenções de realização concreta, e como tal o direito preocupa-se com a alteração
da realidade que a afirmação desses valores produz. Os fins em causas são, precisamente, as intenções
práticas materialmente constitutivas do próprio direito (e não quaisquer escopos sociais pré-definidos).

Assimilado, como é curial, a uma ética da responsabilidade, o direito não pode ignorar os fins, naquela
categórica atitude de indiferença pelos resultados da acção que é timbre de uma ética da consciência
(também dita da convicção ou da intenção). Mas isso não significa que deva cair no extremo oposto e erigir
as consequências sociais em critério decisivo das decisões judicativas a proferir, nos termos de uma ética dos
resultados. O carácter teleológico da racionalidade especificamente jurídica só pode reportar-se, por
conseguinte, a uma verdadeira teleonomologia, ou seja a uma teleologia dos fins específicos do nomos
jurídico (ou seja, na realização do direito é preciso considerar o telos do nomos).

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4- Racionalidade a Privilegiar (Perspectiva de Pinto Bronze)

A) Prático-Material:
É uma racionalidade prática, ou seja, segue um esquema sujeito/sujeito e a validade apenas se pode avaliar
segundo um critério de maior ou menor razoabilidade e não de verdade/falsidade; e material, na medida em
que o que torna racional uma dada solução jurídica é a sua conformidade com determinados valores
normativos.
Portanto, é uma racionalidade prático-material de cariz axiológico, pois os fundamentos que a tornam
racional são valores.

B) Teleonomológica:
Como vimos, apesar desta referência material a uma axiologia fundamentante, o direito não se desinteressa
da realidade, e por isso a racionalidade jurídica não dispensa uma consideração dos fins – aqui
compreendidos enquanto as intenções constitutivas e regulativas da própria juridicidade.

C) Argumentativa:
Como também já vimos, a racionalidade jurídica é racionalidade argumentativa, uma vez que os critérios e
fundamentos convocados para resolver uma controvérsia são sempre objeto de uma exposição dialética, ou
seja, são mobilizados através de argumentos. Esta é uma argumentação material, referida àquela axiologia
normativa e ao problema concreto.

D) Dialética:
Caracteriza-se ainda por uma dialética entre o sistema e o problema. O sistema identifica-se com a validade
normativa do direito, que se vai objetivando numa dogmática; já o problema corresponde à controvérsia
juridicamente relevante, que requer uma mediação judicativa.
O sistema é expressão da validade normativa vigente estabilizado numa dogmática, e que se apresenta com
carácter aberto, ou seja, é redensificado na prática; já o problema é expressão da intencionalidade
problemática do direito, ou seja, é um problema jurídico concreto, cuja solução o juiz terá de encontrar
recorrendo ao sistema. É este o principal contributo de Castanheira Neves: não se pode pensar o sistema
sem o problema e o problema sem o sistema, e por isso a racionalidade jurídica é marcada por um ir e vir
entre estes dois pólos.´

E) Analógica:
Para Pinto Bronze, a dialética sistema-problema é uma analogia.
Essa dialética acaba por se traduzir numa mediação entre dois problemas – o problema jurídico concreto e
o problema jurídico intencionado pelo critério/fundamento relevante mobilizado. A racionalidade jurídica é
assim uma racionalidade analógica, uma racionalidade que discorre de particular a particular, ou seja, entre
dois pólos ao mesmo nível, através de um termo de comparação.
O objetivo da analogia é o de encontrar semelhanças entre essas duas entidades, o que orienta a analogia é
a procura da semelhança na diferença. Transposto isto para o direito, o objetivo da racionalidade analógica é
o de encontrar semelhanças entre os dois problemas (o problema do caso e o do critério) à luz do direito,
susceptíveis de prevalecerem sobre as diferenças e que justifiquem uma solução do problema concreto
semelhante à resposta dada pelo critério jurídico ao problema que leva pressuposto.

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5- Racionalidade a Privilegiar (Perspectiva de Aroso Linhares)

Quando estamos a falar da racionalidade especificamente jurídica podemos dizer que, não obstante ser uma
racionalidade prática, se assume explicitamente autónoma.

5.1- A “Tectónica” do Universo Jurídico

A racionalidade específica e autonomamente jurídica possuí uma certa “tectónica” [do grego tektonikós, -ê,
-ón, relativo à construção, construtor, carpinteiro, ou seja, possuí uma certa “arquitectura”]. É, assim,
composta por determinadas dimensões:
A) Dimensão Axiológica
B) Dimensão Problemática
C) Dimensão Dogmática
D) Dimensão Judicativo-Decisória (Praxística)

A) Dimensão Axiológica:
 A racionalidade jurídica tem a ver com a experiência de uma ordem de validade/de valores que no
fundo nos remete para o horizonte da comunidade, através de um processo de especificação, isto é, a
validade comunitária precipita-se no mundo prático do direito através de uma experiência
especificamente institucionalizada (o sistema jurídico que, em cada momento histórico, estabiliza
uma certa validade).
 A validade comunitária que estamos aqui a falar é uma validade comunitária projetada neste
problema e que vai servir de padrão para este problema. O “padrão ed comparação” há-de ser
oferecido por essa validade comunitária (por um lado, teremos uma ordem de validade comunitária).

B) Dimensão Problemática:
 Importa também considerar uma outra dimensão, que é a dimensão do problema/controvérsia que
se situa num pólo oposto à primeira dimensão.
 Essa controvérsia tem identidade virtual de um litígio, porque esses sujeitos partilham essa situação
e têm legitimidade para firmar posições diferentes pressupondo um horizonte, um ponto comum (o
direito vigente).

Então, temos como duas primeiras componentes da racionalidade especificamente jurídica uma dimensão
axiológica e, por outro lado, uma dimensão problemática (controvérsias práticas) que se tornam
importantes quando reconhecemos nelas um problema de bilateralidade e de comparabilidade.
Essa estrutura da controvérsia dá-nos a chave para perceber que os sujeitos ao serem assim tratados, estão
a ser tratados como autênticos sujeitos-pessoas, num sentido especificamente jurídico (reconhecer a esses
sujeitos autonomia para firmar a diferença em condições que permitam desenvolver um percurso que nós
sabemos ser contraditório e estabelecer, assim, um verdadeiro diálogo de razões).

C) Dimensão Dogmática:
 É ainda necessário considerar a dimensão institucional ou dogmática. Porquê? Porque essa
dimensão se compõem através de práticas que são práticas de estabilização – práticas que vão em
diferentes níveis/estratos/patamares estabilizando a validade, os compromissos práticos de uma
validade.
 Isto quer dizer que essa dimensão de estabilização dogmática nos leva a um esforço de compreensão
que tem como expressão principal o sistema jurídico, ou seja, é como se em cada comunidade se
desenvolvessem práticas de estabilização que levam a uma objetivação de fundamentos e critérios
constitutivos do sistema jurídico (pluridimensional, com diversos patamares/dimensões).

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 A dimensão axiológica da validade está inevitavelmente associada à dimensão dogmática da qual vai
resultar a possibilidade de reconhecer em cada momento histórico o direito vigente, através
precisamente da institucionalização de um sistema: a validade é completada por uma dimensão
estabilizadora/institucional. Em cada ordem jurídica há práticas de estabilização da validade.

D) Dimensão Judicativo-Decisória (Praxística)


 A dimensão problemática vai dar origem à dimensão judicativa: se as controvérsias vão ser
tratadas na perspetiva do sistema jurídico (que, em cada momento histórico, estabiliza uma certa
validade) elas vão dar origem à dimensão a judicativa (que tem exatamente a ver com um dos componentes da
reflexão metodológica que é o juízo-julgamento);
 Portanto, a controvérsia vai ser tratada através de uma decisão, mas essa decisão não é uma mera
manifestação da vontade, essa decisão tem de ser uma decisão fundamentada no sistema jurídico,
que é expressão plausível dessa validade comunitária em cada momento histórico;
 Ou seja, para cada problema concreto torna-se exigível uma resposta que seja ela própria uma
realização plausível do sistema jurídico.
 É uma realização, porque neste plano intermédio em que temos a dimensão judicativa e a dimensão
estabilizadora, podemos dizer que a dimensão que se vai estabelecer entre estas duas dimensões é
uma relação dialética: o problema experimentado como caso, tratado na perspetiva de um juízo
futuro, vai-nos permitir interrogar o sistema na sua complexidade/pluridimensionalidade; uma
relação que é fundamentalmente de diálogo/circular, ou seja, o problema será o ponto de partida que
vai permitir interpelar o sistema, que vai permitir procurar uma solução no sistema, mas essa solução
terá que ser construída através da própria experiência do problema (problema-sistema).

Temos, assim, uma (a) dimensão axiológica e, no pólo oposto, uma (b) dimensão problemática. Entre
ambas, existem mais duas dimensões: (c) uma dimensão dogmática e uma (d) dimensão judicativa.
Daqui podemos perceber o seguinte: responder ao problema concreto implica sempre fazer uma espécie de
dialética entre o novo (os casos não são sempre iguais, trazem sempre algo de novo) e o velho, o velho é um
elemento de tradição que se manifesta no próprio sistema, sem esquecer a sua novidade.

5.2- Os Estratos do Sistema

Quando consideramos o sistema jurídico percebemos que esse sistema é constituído por vários estratos
(princípios normativos, normas legais, jurisprudência judicial, jurisprudência dogmática e a realidade
jurídica)

SISTEMA JURÍDICO
Principios Normas Legais

Jurisprudência Doutrina

Realidade Jurídica

Isto significa que responder à especificidade do problema, significa mobilizar esse sistema na sua pluralidade
e aqui há que chamar a atenção para uma distinção: entre fundamentos e critérios.
 Por que é que algumas componentes/dimensões do sistema devem ser tratadas como fundamentos
e outros como critérios? Isto porque tratar como fundamentos e tratar como critérios não é a mesma
coisa.

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!) O fundamento jurídico é um referente, é sempre aquilo que se invoca para sustentar um elemento;
representam no universo da prática jurídica essas exigências de sentido que têm de estar presentes.
 Os princípios são sempre tratados como exigências a serem prosseguidas. Quando a reflexão
dogmática se dirige aos princípios e reflete sobre eles, então, essa reflexão também pode ser
considerada um fundamento, mas noutro plano, no plano da doutrina (exposição dogmático-
doutrinal desse princípio). (Ex: no caso do princípio da autonomia privada estamos perante a exigência de que, por
exemplo, quando estamos perante relações entre sujeitos privados, se respeite a autodeterminação dos privados, Estamos
a dizer que estas exigências são exigências fundamentais que não podem ser violadas. Dai que nós possamos dizer que
estamos perante um fundamento).

!) Os critérios jurídicos são operadores técnicos que pode ser imediatamente convocados para resolver um
determinado tipo de problemas, que pré-esquematizam soluções, antecipam problemas que podem surgir,
está em causa uma antecipação da dimensão problemática e do tratamento judicativo dessa dimensão
problemática. Como e faz essa antecipação?
 Se se está perante uma norma legal, torna-se evidente que ela prevê um problema ou uma situação
que pode ocorrer, definindo uma série de qualidades ou caraterísticas. Se assim é, faz sentido que se
possa dizer que uma norma legal, sendo um programa voltado para o futuro, deverá ser levada a sério
não como um fundamento, mas sim como um critério.
 Quando não temos um programa de “hipótese-estatuição”, e temos um programa final (“para quê?”),
a lei não deixa de antecipar certas situações que podem ocorrer, pois, quando a lei seleciona fins e
aciona meios para prever esses finas a lei não deixa de antecipar elementos dessa realidade
(elementos antecipados em abstrato pela lei)
 Então, a norma legal, enquanto elemento do sistema jurídico deve ser sempre tratada como um
critério (há aqui sempre a previsão de um problema, que pode ser mais ou menos rigorosa).

 No caso da jurisprudência judicial, também se diria que estamos perante a antecipação de um


problema, mas aqui num sentido diferente, porque o critério jurisprudencial enquanto tal é uma
decisão que solucionou um certo caso no passado. Ora, esta decisão antecipa o problema através da
possibilidade de, no futuro, servir como exemplo.
 Portanto, agora não estamos já perante um problema tipificado em abstrato, mas sim perante um
problema tipificado em concreto: o que se tem é a decisão de um caso com a qual se poderá aprender.
Os precedentes são, então, critérios.

 Também se poderá dizer que certos modelos da doutrina também devem ser tratados como critérios;
a doutrina aí está a estabelecer critérios, mas diferentes dos critérios legislativos e jurisprudenciais.
Não decide casos, reflete sobre eles; reconstrói reflexivamente certas situações ou problemas que
podem ocorrer, propondo soluções para esses problemas, muitas vezes posteriormente às normas e
outras vezes antecipando-se às normas. São, também critérios jurídicos.

«Esta divisão entre fundamentos e critérios é apresentada muitas vezes através de uma imagem suficientemente expressiva:
no fundo essa imagem corresponde à uma ideia de que, quando eu estou a considerar um caso, aquele caso é único e
diferente de todos os outros e, por isso, a tarefa que tenho de fazer enquanto julgador é percorrer um território que nunca
foi atravessado. Por isso, acrescentamos à dimensão de validade uma dimensão dogmática; então o julgador para
atravessar o território dispõe de dois tipos de apoios: os fundamentos e os critérios. Isto significa que os fundamentos devem
ser levados a sério como se fossem uma bússola, ou seja, os fundamentos manifestam exigências de sentidos relevantes. Mas
aquele que atravessa aquele caminho tem outros apoios no plano metodológico: os critérios, que funcionaram como
itinerários ou mapas, porque nos critérios ter-se-ia uma antecipação mais ou menos pormenorizada da realidade. E esses
mapas são sempre antecipações de problemas que podem ocorrer (se tiver uma mapa saberei que se poderei caminhar
para a esquerda ou para a direita; no fundo com uma mapa ou itinerários eu tenho uma antecipação dos problemas que
podem ocorrer nessa travessia). Não quer dizer que esses mapas ou itinerários me dêem a solução, mas fornecem as
diretrizes.» Aroso Linhares

Nota: As intenções dos princípios não estão premeditadas em abstrato; este sentido só se descobre em pleno
quando se responde ao caso concreto, quando se mobiliza esse princípio. Sabemos que certos problemas
concretos mudaram significativamente o entendimento que a comunidade jurídica tinha de certos princípios

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(por exemplo, o pp. aa autonomia privada não foi sempre entendido da mesma maneira, em certos contextos
políticos e culturais este princípio era entendido em termos formais, ou seja, entendia-se que a liberdade de
contratar era quase absoluta; no entanto, este entendimento foi alterado em nome das exigências da
comunidade, dando um outro sentido a esta autonomia).
Portanto, os princípios não estão definidos em abstrato, vão-se projetando na realidade, vão sendo
circularmente alimentados pela realidade (estamos a falar de círculo produtivo: orientam as práticas, mas as
práticas vão-se refletir no conteúdo dos princípios). – É como se fossem dois pólos irredutíveis.

Evidentemente que quando estou a distinguir princípios, normas, critérios da doutrina, jurisprudência e da
realidade jurídica estou a dizer que cada um desses estratos dá um contributo claramente diferente do outro.

No plano metodológico esses estratos beneficiam de presunções de vinculação diferenciadas;


A) Os princípios beneficiam de uma presunção de validade (não posso chegar a uma solução em que as
exigências dos princípios saiam frustradas).

B) As normas jurídicas correspondem a uma objetivação da normatividade jurídica que beneficia de uma
presunção de autoridade (autoridade no sentido de poder político-constitucional).

C) Os critérios da jurisprudência judicial beneficiam de uma presunção de justeza/de correção, ou seja que
foi uma decisão adequada ao caso (justeza no sentido de adequação ao concreto).

D) Os critérios da doutrina beneficiam de uma presunção de racionalidade (e a vincular-nos aos limites


discursivos da sua concludência ou fundamentação críticas).

Se se usam determinados critérios aos quais se atribuem determinadas presunções não há que justificar o
porquê de os usar/seguir, pois, eles fazem parte do direito vigente, pois, são elementos do sistema.
Mas fala-se de presunções porque não estão em causa estatuições absolutas, mas sim presunções
relativas e refutáveis: o que significa que de alguma forma o julgador vai estar em condições de afastar estes
fundamentos ou estes critérios se na verdade estiver em condições de mostrar, relativamente ao caso
concreto que tem de decidir, que esses critérios são desadequados. «Se eu sigo os critérios, não tenho que dizer
porque sigo, pois, são critérios do direito vigente, mas se me afasto deles eu tenho um ónus de contra-
argumentar, mostrando com toda a clareza, o porquê de me afastar dos critérios, fundamentar o seu
afastamento (a justificação tem, portanto, de ter implacavelmente rigorosa)» Aroso Linhares.

«Evidentemente que quando, no quadro do esquema metódico, pensamos assim a racionalidade jurídica, levando a sério
que o sistema é a explicitação da validade comunitária e que o problema está associado a uma dimensão judicativa (...). É
perfeitamente possível perceber que quando o julgador que enfrenta um problema concreto, tal como o caminhante tem de
atravessar um caminho desconhecido, é importante perceber se tem em seu poder um mapa/itinerário ou não. Obviamente
que o primeiro passo do julgador será sempre o de procurar no sistema um critério, mas posteriormente terá que o
trabalhar no caso (dialética sistema-problema).

Num sistema como o nosso – romano-germânico – o critério que primeiramente vai procurar é um critério legal,, uma vez
encontrada a norma ele terá que a experimentar em concreto e relacioná-la com os princípios; para vencer as
indeterminações das normas o julgador terá que estar atento à experiência judicial (decisões anteriores) e também à
doutrina, para que a experimentação seja uma experimentação conseguida;

No sistema de common law não é o critério seguido em primeira linha a norma, mas sim a uma decisão judicial, um
precedente vinculante. Este jurista não se deve ficar só pela mobilização do precedente, deve relacioná-lo com os princípios
e com os outros critérios; de facto, no fundo há uma abordagem do sistema que é diferente no seu início, mas depois, o
tratamento do sistema obedece a uma experimentação semelhante (dialética sistema-problema).» Aroso Linhares

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III- O MÉTODO JURÍDICO

1. A Resposta do Discurso Jurídico do séc. XIX

1.1 Considerações iniciais

Conhecidas as diversas racionalidades que, em geral e especificamente no domínio jurídico, foram elaboradas
e propostas ao longo dos tempos, impõe-se perguntar:

 É possível construir um esquema metódico que se assuma inequivocamente como método de


realização do direito?
A esta pergunta respondeu-se, no séc. XIX, afirmativamente. Com efeito, o séc. XIX foi porventura o período
da história em que mais afincadamente se afirmou a ideia de que era possível estabelecer, com rigor e
precisão, um método de realização do direito; mais ainda: afirmou-se a ideia de que esse método seria único
e suscetível de prescrição.
Portanto, o pensamento jurídico relacionava-se com o método através de uma relação de exterioridade
construtiva, ao se propor a elaborar, a priori, um esquema metódico que se deveria impor à prática. É neste
contexto que se veio a afirmar o designado “Método Jurídico”.
Este foi o século da cientificidade, de tal modo que também as ciências sociais se viram contaminadas por
esse pensamento. Nesta linha, o pensamento jurídico passa a revestir um caráter teorético-cognitivista,
visando fundamentalmente conhecer o direito posto e elaborar um método para a sua realização conforme
com as regras da lógica e da certeza científicas.
É neste circunstancialismo que surge a “Escola Histórica do Direito” de Savigny. Com efeito, Savigny vem
defender uma distinção básica e rigorosa entre o direito (a juridicidade) e o pensamento jurídico (a
reflexão sobre aquela juridicidade).
A função cognitivista ou epistemológica do pensamento jurídico implicava uma relação sujeito-objeto, em
que a juridicidade surgia como algo já posto que deveria ser apreendido pelo pensamento jurídico tal como
se apresentava na realidade. Em suma, o pensamento jurídico pretendia pura e simplesmente “conhecer”,
não assumindo qualquer intencionalidade constitutiva ou normativa. O direito, por sua vez, era algo como
que imanente à própria realidade; algo que estava já “posto”.
E assim seria porquanto a Escola Histórica reconduzia o domínio jurídico a dois âmbitos:
 O Direito como expressão do desenvolvimento de forças históricas: como desiderato da História;
 O Direito como resultado do exercício prescritivo da autoridade: como produto da vontade
autoritária.

O Método Jurídico do séc. XIX, que emergiu na conjuntura exposta, carateriza-se por três notas capitais:
 A pretensão-exigência de conferir ao pensamento jurídico a sua autonomia discursiva;
 O carácter prescritivo e normativo do Método;
 A ambição de racionalizar teoreticamente a prática.

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1.2 A pretensão-exigência de conferir ao pensamento jurídico a sua autonomia discursiva


O pensamento jurídico do séc. XIX é um pensamento jurídico que se pretende autónomo, isto é, que se
destaca do direito em si mesmo (daí a separação estanque entre direito/pensamento jurídico).
Para tal, assiste-se à sobreposição de dois tipos de racionalidades jurídicas:

Este sistema surgiria como algo que se apresenta à ciência do direito como um todo já constituído.
Consequentemente, a função do pensamento jurídico caberia apreender ou conhecer esse direito posto tal
como ele se apresentava – conceção teorética. Como nas ciências naturais, pretendia-se, pura e simplesmente,
conhecer a realidade das coisas (e não, portanto, criá-la).
O pensamento jurídico veio assumir a autonomia do seu discurso propondo-se a observar e apreender o
direito – numa relação sujeito-objeto – de tal forma que ficasse assegurada a coerência interna do próprio
sistema. Esta era, então, uma perspetiva puramente jurídica, que visava um conhecimento simultaneamente
jurídico e científico do Direito.

1.3 O caráter prescritivo e normativo d’O Método


O pensamento jurídico do séc. XIX relacionava-se com o método da praxis mediante uma “relação de
exterioridade construtiva”: procurava-se prescrever, prévia e autonomamente, um modelo e processo que
deveriam ser cumpridos para uma realização do direito em termos especificamente jurídicos e corretos.
De forma simplista: o logos arrogava-se a tarefa de elaborar o esquema metódico que deveria ser,
imperativamente, observado na prática, sob pena de irracionalidade da decisão alcançada.

1.4 A ambição de racionalizar teoreticamente a prática


O Método Jurídico do séc. XIX pressupunha uma contraposição fundamental:

Para a realização da sua finalidade (permitir uma aplicação objetiva e formal do direito), associavam-se à
técnica jurídica do Método duas tarefas-fins complementares (cujo objetivo era, exatamente, fixar em
abstrato o direito aplicável, de modo a que, em concreto, ele fosse aplicado de forma puramente lógica, e não
constitutiva):

A) Tarefa de simplificação dos materiais disponíveis;


i) Simplificação qualitativa: conversão dos materiais dispersos em normas jurídicas:
Se o direito era também o produto da História, então o costume seria admitido como direito. Porém, para que
fosse possível a sua aplicação lógica, o direito consuetudinário haveria que ser vertido em normas jurídicas
gerais e abstratas. Pois, só era direito o conteúdo que estivesse vertido numa regra geral e abstrata, composta
por uma hipótese e pela consequente estatuição. Não revelava, aqui, o conteúdo da norma, mas tão-só a
forma que esse conteúdo assumia. Daqui, portanto, que houvesse um esforço de abstração, no sentido de
se obterem formas simples a partir da complexidade “natural” da normatividade.
ii) Simplificação quantitativa: agrupamento das proposições normativas obtidas.
As diversas normas gerais e abstratas obtidas segundo o exposto processo haveriam que, subsequentemente,
ser agrupadas em categorias, segundo os seus tipos-problemas. Pretendia-se, deste modo, simplificar ainda

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mais a juridicidade, mediante criação de categorias normativas coerentes. Dentro deste sistema haveria
ainda que encontrar o “centro lógico”, isto é, aquilo que une as diversas proposições normativas integradas
naquela categoria específica. Deste “centro lógico”, e segundo um exercício de síntese, chegar-se-ia a uma
proposição única, ainda mais geral e abstrata, que consagrava o que era verdadeiramente nuclear naquela
categoria. Estas proposições seriam os designados “princípios normativos”. Note-se, porém, que os princípios
não eram, para a conceção do séc. XIX, direito vigente, mas sim enunciados obtidos do direito vigente que
permitiam sintetizar a juridicidade, em termos de simplificar abstratamente o sistema.

B) Tarefa de construção de um sistema conceitual:


Pretendia-se, agora, o tratamento das objetivações (simplificações) alcançadas como condições de
possibilidade de uma prática racional. Não se pretende, todavia, criar soluções para casos concretos, mas
antes elaborar conceitos rigorosos, transversais a toda a normatividade, que permitam a resolução de
qualquer caso concreto. Entendia-se que apenas através da construção de um coerente sistema conceitual se
obterá um sistema unitário – as normas que o constituem só serão coerentes entre si se utilizassem a mesma
rede de conceitos.

1.5 Os dois momentos-operações d’O Método Jurídico


A) Momento científico: construção-sistematização conceitual
B) Momento hermenêutico: interpretação da normatividade cumprida rigorosamente em abstrato
C) Momento de aplicação lógico-dedutiva (*momento exterior)

A) Momento Científico
Esta primeira operação assenta na conhecida distinção operada pelo pensamento jurídico do séc. XIX entre
jurisprudência inferior e jurisprudência superior [NOTA: o conceito “jurisprudência” é aqui usado como
sinónimos de “ciência do direito”]:

O pensamento jurídico inicia a sua atuação partindo do “direito dado” (imputado quer à elaboração político-
legislativa quer às forças históricas); esse direito será (1) convertido em proposições jurídicas
(necessariamente gerais e abstratas), as quais serão subsequentemente (2) agrupadas em categorias
normativas das quais se extraem enunciados de abstração e generalidade máximas (os princípios). Através
deste processo, aquele “direito dado” transforma-se em “direito-dogma”.
Por sua vez, este “direito-dogma” é o objeto da intervenção da jurisprudência superior, a qual se carateriza
por uma função de agregação em “estádios superiores”: com base no direito dado já organizado em normas
e princípios (3) identificar-se-ão agora os institutos e conceitos que conformam o sistema, de modo a
elaborar-se um sistema conceitual rigoroso que viesse a permitir uma posterior racionalização teorética da
prática.
Estas três etapas correspondem aos momentos acima enunciados: simplificação qualitativa, simplificação
quantitativa e construção de um sistema conceitual.
Em suma: os materiais do direito-objeto que constituíam o ponto de partida seriam convertidos em
proposições normativas e princípios, sendo com base nelas elaborados institutos e conceitos que
conformariam o sistema.

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B) Momento hermenêutico
No momento científico, a ciência do direito pegou no direito posto e transformou-o num sistema jurídico
conceitual lógico e coerente internamente (completo, unitário e fechado). Segue-se, então, a interpretação
das normas jurídicas que constituem esse sistema, de modo a que os respetivos sentidos sejam fixados em
abstrato, a priori, permitindo uma ulterior aplicação puramente lógico-dedutiva.
Esta interpretação será, necessariamente, uma interpretação dogmática: interpretar é atribuir à norma-texto
um sentido único e integrá-la no sistema-pirâmide em que a norma se insere. Porque assim é, a interpretação
acaba por realizar a tarefa de explicitar o próprio sistema.
Assume-se aqui uma conceção radicalmente constitutiva da textualidade: não há direito antes do texto e das
componentes linguístico-estruturais que o caraterizam: o direito só vale como estrutura formal, pelo que só
se fala verdadeiramente em direito quando se está perante uma norma jurídica geral e abstrata (composta
por uma hipótese e pela correlativa estatuição). Antes da conversão da normatividade retirada da realidade
em normas jurídicas (simplificação qualitativa) não há verdadeiramente direito.
Nas palavras de Castanheira Neves: “(...) a significação jurídica é constituída exclusivamente pelo texto e só no
texto, no seu conteúdo significativo (...)”.

C) Momento (exterior) de aplicação


A aplicação aos casos concretos do direito que, graças aos dois momentos anteriores, se nos impõe como pré-
determinado em abstrato, haverá que ser uma aplicação alicerçada no esquema lógico do silogismo
subsuntivo, de modo a garantir a relação entre o geral e o particular sem implicações constitutivas-
normativas.
O resultado da aplicação nada deveria acrescentar ao direito (pois este só seria constituído em abstrato);
a aplicação seria, portanto, um momento exterior, uma mera técnica. Assim sendo, essa aplicação era
caracterizada por uma estrita logicidade ou dedutividade: o direito seria aplicado segundo um silogismo
subsuntivo para que o resultado obtido (a solução do caso concreto) se limitasse a afirmar em concreto o que
as normas jurídicas já afirmavam em abstrato: já que o direito deveria ser apenas aquele que estava contido
em normas jurídicas.
Daqui decorre uma exigência de isolar as tarefas da interpretação e da aplicação. Para tal, a interpretação em
abstrato haveria de chegar à determinação rigorosa de um único sentido para a norma interpretanda, de
modo a não deixara qualquer margem de discricionariedade ao julgador.

1.6 A Teoria Tradicional da Interpretação Jurídica

Decorrente desta conceção do Método Jurídico é a teoria tradicional da interpretação. Note-se que partindo
embora do Método Jurídico, a teoria tradicional da interpretação lhe sobreviveu, subsistindo mesmo após a
superação daquele. Há, aliás, quem ainda hoje advogue esta conceção da interpretação jurídica, ainda que,
evidentemente, com os necessários ajustes ao entendimento atual do direito.
Impõe-se, a este respeito, responder a quatro questões matriciais:
 Qual o objeto da interpretação? » o que é que se interpreta?
 Qual o objetivo da interpretação? » porque é que se interpreta?
 Quais os elementos da interpretação? » como é que se interpreta?
 Quais os resultados da interpretação? » para que é que se interpreta?

A) Objeto da Interpretação
A interpretação teria como objeto, segundo a teoria tradicional, o texto normativo-prescritivo das normas
jurídicas formalmente prescritas. De forma linear: à questão de saber o que se interpreta responder-se-ia “o
texto jurídico”.
Esta conceção decorre de um específico circunstancialismo, no qual se identificam específicas origens
culturais e particulares fatores políticos determinantes.

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A origem cultural tem a ver com a conceção do direito e com o pensamento jurídico medievais. Sabe-se que
o pensamento medieval se submetia a um princípio de autoridade, o que implicava que o pensamento jurídico
se constituísse essencialmente como interpretação dos textos de autoridade – designadamente o Corpus Iuris
Civilis e o Corpus Iuris Canonici. E nesta perspetiva, o pensamento jurídico assumiu-se como interpretação
de textos: o direito oferecia-se enunciado em textos e através desses textos obter-se-iam todos os critérios
jurídicos para a prática jurídica. Assim sendo, o direito é compreendido como uma normatividade que se
infere de fontes prescritivo-textuais. Por outro lado, o modus de que se socorria este pensamento era o que
lhe era oferecido pela escolástica: métodos da lógica aristotélica e da retórica.
Quanto aos fatores políticos, há que considerar os que resultam do legalismo contratualista-constitucional
assumido pelo positivismo jurídico. Para o positivismo legalista o direito reduzia-se ao direito (im)posto nas
leis e essas leis identificavam-se com o seu texto – porque é no texto da lei que se exprime o imperativo do
legislador e manifesta vinculativamente a sua autoridade legislativa. Pretendia-se, deste modo, salvaguardar,
por um lado, a segurança jurídica, e, cumprir, por outro, o princípio da separação de poderes. Pelo que o
objeto da interpretação haveria de ser a expressão textual da norma legal.

Sucede que a conceção textual do objeto da interpretação jurídica é suscetível de duas especificações:
1. Sentido hermenêutico de texto jurídico: a significação jurídica a atingir pela interpretação exprime-se
“através” do texto, mas não “é” o texto. Isto é: o texto surge como “ícone” ou objetivação cultural da
significação jurídica, mas esta constitui-se para além dele, transcendendo-o; e essa transcendência decorre,
nomeadamente, do relevo do contexto significante em que a norma se insere, da pré-compreensão do
referente e da situação histórico-concreta da compreensão. Portanto, a “norma” exprime-se pelo texto, mas
vai além do seu sentido filológico (o seu sentido literal).
Foi este o sentido imputado ao texto jurídico pelo pensamento jurídico medieval
2. Sentido positivista de texto jurídico: o texto da norma não é compreendido em termos meramente
expressivos, mas antes em termos constitutivos – a significação jurídica não é exprime “através” do texto,
mas sim “no” texto; ela “é” o próprio texto. Isto determinará que o direito positivo se tenha por auto-suficiente
e fechado em si, excluindo o recurso a critérios normativos além dele próprio, no momento da interpretação.
Consequentemente, o direito posto encontra unicamente o seu sentido jurídico interpretando na sua formal
expressão escrita.
É este o sentido atribuído ao texto pela Escola Histórica de Savigny.

A perspetiva hermenêutica traduz a procura do direito através de uma fonte jurídica; já a perspetiva
positivista, correspondendo à pura exegese, é tão-só a análise da significação textual da fonte jurídica.
Este entendimento positivista do texto jurídico tem uma consequência de suma importância para a
metodologia associada à teoria tradicional da interpretação: à interpretação jurídica não seria lícito imputar
à fonte normativa um sentido jurídico que não pudesse corresponder a um dos sentidos textual-
gramaticamente ou literalmente possíveis da fonte interpretada.
Pode-se falar aqui numa função negativa do teor literal da lei: só se estaria a fazer interpretação se o
sentido normativo imputável à fonte-norma fosse um dos sentidos possíveis do seu texto enquanto tal; todos
os sentidos que caíssem fora do domínio dos sentidos suscetíveis de corresponder ao texto jurídico não
poderiam, em caso algum, ser convocados pelo intérprete.
!Em suma: a teoria tradicional da interpretação via no texto normativo o objeto da interpretação mas, mais
do que isso, via nesse texto a própria norma – ele não é mera forma de manifestação da norma jurídica; ele é
a própria norma. Assim, estamos aqui em face de uma compreensão constitutiva do texto: as significações
normativas não existem antes dele, estando, isso sim, imanentes nesse texto. Daqui decorria o ponto de
partida absolutamente fundamental desta conceção: todas as significações que não tivessem
correspondência no texto da lei não poderiam ser consideradas como interpretações desse texto. Fala-se aqui
em função negativa do teor literal (elemento gramatical).

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B) O Objetivo da Interpretação
Em resposta a esta questão, a doutrina dividiu-se em duas conhecidas orientações contrárias:

O ponto comum entre estas teorias é a consideração do texto como objeto da interpretação; o ponto de
divergência está no que uma e outra pretendem “retirar” do texto: o ponto de divergência é a diferente
conceção do espírito: se para o subjetivismo o espírito da lei se identificava com a vontade do legislador, já
para o objetivismo esse espírito traduzir-se-ia no sentido imanente à própria norma.
A orientação subjetivista foi historicamente a primeira, surgindo associada ao pensamento de Savigny
(como bem se compreende, já que o autor via no Direito o desiderato da História), bem como ao legalismo
pós-revolucionário francês (pois se o Direito era unicamente aquele criado pelos órgãos legitimados pelo
povo, então a norma deveria ter o sentido que o legislador lhe quis conferir). A orientação objetivista, por
sua vez, surge já na segunda metade do séc. XIX, como consequência de um outro contexto cultural e de uma
distinta conceção do direito.

Esta polémica, mesmo quando nela hoje ainda se insiste, perdeu muito da sua rigidez inicial. Predominam,
aliás, atualmente, as “teorias mistas”. É até este o tipo de perspetiva que parece ter sido acolhido no nosso
art. 9º CC.
Chegados aqui, importa agora identificar o objetivo concretamente prosseguido pela teoria tradicional da
interpretação: esta alinhava-se com as conceções subjetivistas, em certos aspetos, e com as conceções
objetivistas, em outros.
 Atribuía à interpretação dos textos jurídicos o objetivo de obter as premissas lógico-jurídicas para
uma subsequente aplicação lógico-dedutiva do texto-lei – em vista a pretensão de racionalizar
teoricamente a prática. Portanto, podemos encontrar claramente indícios objetivistas: o centro da
interpretação seria a norma em si mesma, pois esta era o próprio direito, e não uma sua mera
manifestação.
 Porém, esta interpretação semântica pretendia também descortinar a significação do enunciado das
normas legais que o legislador optou por consagrar. Se o direito era, tão-só, o direito posto pelo
poder legislativo e o direito que resultava do desenvolvimento das forças históricas, então o sentido
a imputar-lhe haveria que ser o sentido querido pelo legislador histórico.

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C) Os Elementos da Interpretação
Savigny veio propor uma distinção fundamental de significações referidas ao texto jurídico:

i) Elemento gramatical: este elemento da interpretação refere-se à letra ou teor verbal do texto jurídico
interpretando, aqui assumindo na sua relevância filológico-gramatical;
ii) Elemento histórico: o elemento da interpretação agora em causa olha o texto jurídico na sua relevância
histórica, como algo vinculado às circunstâncias históricas do seu aparecimento e ao percurso que culminou
na sua produção-constituição;
iii) Elemento sistemático: este elemento interpretativo traduz a preocupação com a unidade lógico-estrutural
da norma – o texto jurídico deve ser considerado como um todo – e com a ratio sistematicamente imanente
– haverá que proceder à inserção dogmática daquele todo (norma jurídica) no sistema conceitual a que
pertencente; portanto, neste momento o texto é encarado na sua relevância lógico-sistemática;
iv) Elemento teleológico: o elemento da interpretação agora versado ocupa-se com o motivo ou o fim da
norma, estando comprometido com elementos materiais como os interesses, as valorações, as intenções
ideológicas, etc. – daí a sua consideração como elemento “extratextual”.
O elemento gramatical é, evidentemente, o elemento básico da interpretação na conceção tradicional, tanto
porque o texto é o objeto da interpretação, como porque é na expressão textual que se cumpria o cânone da
autonomia do objeto. E, nesta linha, este elemento acaba por se impor com uma prioridade analítica e
cronológica e com uma força prescritiva, já que dele decorre, nos termos expostos, a relevância negativa da
letra da lei: o teor verbal do texto delimitaria a interpretação, só sendo admissíveis os sentidos da lei que
fossem possíveis segundo o texto. A este valor negativo acresce um valor positivo ou seletivo: de entre os
sentidos possíveis, o intérprete deveria privilegiar o que melhor ou mais naturalmente correspondesse ao
texto.

Refira-se, a este respeito, que o valor negativo referido foi compreendido segundo perspetivas distintas:
 Teoria da fronteira da interpretação (Larenz): o sentido literal a extrair do texto assinala o limite da
interpretação propriamente dita: tudo o que se cumpre fora desse campo já não pode ser entendido como
interpretação da lei, mas antes como desenvolvimento judicial do Direito;
 Teoria da alusão ou da expressão mínima (Engisch): o teor literal da lei consiste no núcleo com o qual tem
de haver uma mínima correspondência verbal_ a interpretação realizada teria de encontrar no texto da lei
uma mínima alusão ou correspondência, ou seja, o sentido obtido com a interpretação deve ter, pelo menos,
uma qualquer expressão na letra da lei, ainda que imperfeita ou incompleta. [NOTA: esta parece ser a conceção que
veio a ser acolhida pelo nosso legislador no nº 2 do art. 9º CC]

Na verdade, deve entender-se que estas duas compreensões são dois momentos de um juízo global.
De qualquer das formas, podemos dizer que este valor negativo do elemento gramatical permitia, por
inteleção inversa, encontrar o círculo de sentidos possíveis/permitidos: seriam todos aqueles que não
houvessem sido excluídos por não terem correspondência no texto.

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A este respeito, Jellinek opera a seguintes distinção:

Portanto, o valor negativo do elemento gramatical permite apontar os candidatos negativos (domínio da
“certeza negativa”), enquanto que o valor positivo desse elemento convoca a distinção entre candidatos
positivos e candidatos neutros (domínios da “certeza positiva” e da “dúvida possível”).
Sublinhe-se, neste contexto, que enquanto ao valor negativo do elemento gramatical é apontado um valor
normativo (em nenhum caso podem os sentidos considerados como candidatos negativos ser mobilizados
pelo intérprete), ao valor positivo deste elemento é apenas reconhecido um valor indicativo (os sentidos não
considerados como candidatos negativos sempre poderão ser convocados, sendo que apenas com a
consideração dos elementos histórico e sistemático se concluirá qual deles o que verdadeiramente melhor
correspondência tem no texto ou o que se impõe no contexto daquela norma).
Depois do 1º momento do processo interpretativo, que consiste na consideração do elemento gramatical,
seguir-se-ia o 2º momento, no qual seriam considerados, em simultâneo, os demais elementos. Neste
momento subsequente, o intérprete opera somente dentro do campo dos sentidos possíveis, procurando
eliminar essas várias alternativas para chegar a um único sentido: o sentido a conferir à norma interpretanda.

O elemento histórico, por sua vez, traduzia-se na consideração da génese do preceito interpretando, tendo
em conta tanto os materiais ou trabalhos preparatórios da sua elaboração legislativa, como a circunstância
jurídico-social do seu aparecimento, bem como a história do direito e as fontes legislativas.

O elemento sistemático, por sua vez, implicaria a consideração da unidade e coerência jurídico-sistemáticas:
a norma seria compreendida em função do seu contexto, sobretudo pela sua inclusão no instituto ou domínio
jurídico de que faz parte. É também neste momento que são considerados os lugares paralelos. Ora, este
elemento não intenciona em si mesmo sempre o mesmo. Por um lado, pode pensar-se com ele a lógica do
legislativo programa histórico (interpretação subjetivista); por outro lado, pode pensar-se com ele a unidade
racional do sistema de normas em que a norma legal se integra (interpretação objetivista).
O elemento teleológico, por último, impunha que o sentido da norma se determine pela ratio legis – a razão-
de-ser da própria norma. Este elemento era considerado, pela conceção tradicional, como um elemento
extratextual, e, por isso, foi inicialmente recusado tanto por Savigny como pela Escola da Exegése. A respeito
deste elemento podem identificar-se duas fases no pensamento de Savigny:
Este elemento adquiriu, com o decurso do tempo, uma crescente importância, de tal forma que foi a partir
dessa tendência que se desenvolveu a evolução da teoria tradicional da interpretação. No limite, foi em
virtude da centralidade assumida por este elemento que se deu a superação da teoria tradicional. Esta
evolução é patente, aliás, nos diversos sentidos que o elemento teleológico foi assumindo:
1. Fim histórico-psicologicamente visado pelo legislador;
2. Intenção normativa que um “legislador razoável” imputaria à norma;
3. Intenção normativa que segunda a opção-valoração legislativa perante os interesses causais em conflito
seria imputável à norma;
4. Fundamento normativo-jurídico decorrente dos valores e princípios normativos constitutivos direito.
Estes sucessivos sentidos do elemento teleológico evidenciam a passagem de um sentido puramente
exegético-hermenêutico da realização do direito para um sentido normativo; a passagem de um objetivo
dogmático para um objetivo teleológico do pensamento jurídico; a passagem de uma interpretação enquanto
ato metódico autónomo para uma interpretação constitutiva, inserida na atividade de realização do direito.

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D) Os Resultados da Interpretação

Todos estes resultados da interpretação cabiam no quadro dos objetivos tradicionais da interpretação, fosse
o definido pela orientação subjetivista – caso em que o “espírito da lei” se identificaria à “vontade do
legislador” –, fosse o proposto pela orientação objetivista – caso em que o “espírito da lei” corresponderia ao
“sentido imanente na norma”.
Com a acentuação da interpretação teleológica, os resultados da interpretação enriqueceram-se de outros
tipos de grande relevo prático. Ainda no seio da teoria tradicional, com o reconhecimento de certo relevo ao
elemento teleológico, veio admitir-se, mais tarde, uma Interpretação Extensiva/Restritiva Teleológica: o
sentido determinado representa um alargamento ou restrição da letra da lei, ainda dentro dos sentidos
possíveis, com o intuito de se realizar o fim imanente à norma.
Esta interpretação extensiva ou restritiva teleológica não se confunde, note-se, com as “Extensão Teleológica”
e “Redução Teleológica”, que vieram a ser assumidas posteriormente, já fora do domínio da teoria tradicional
da interpretação:

2. A Superação Crítica do Método Jurídico (reconstituída a partir do momento


exemplar da interpretação)

2.1 A Viragem para os Fins

Com o decurso do tempo, assistiu-se a uma acentuação do sentido prático-teleológico da interpretação


jurídica. Com efeito, a viragem do séc. XIX para o séc. XX pode caraterizar-se como uma “viragem
teleológica”, na medida em que se dá um enfoque cada vez maior aos fins, num contexto em que o rigor
lógico e cientificidade perdem centralidade. Esta mutação não determinou, tão-só, a superação do modelo

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positivista, nos seus pressupostos, mas também uma revolução no que diz respeito ao próprio conceito do
direito.
No campo metodológico, esta viragem dá-se por intermédio do relevo crescente conferido ao elemento
teleológico na interpretação jurídica. Neste contexto, o debate objetivismo vs subjetivismo é substituído pela
contraposição interpretação dogmática vs interpretação teleológica.

Esta distinção não se confunde com a anterior oposição entre subjetivismo e objetivismo, na medida em não
pode dizer-se, nem que o subjetivismo esteja necessariamente conexionado com uma interpretação
dogmática, nem que o objetivismo convoque, necessariamente, uma interpretação de sentido teleológico.
Apesar de se ter verificado, temporalmente, uma (quase) coincidência entre a viragem para os fins e a
assunção de uma perspetiva objetivista, a verdade é que o objetivismo apenas determina uma “atualização”
do teor verbal da norma jurídica, de modo a que a interpretação das prescrições normativas dependa
unicamente do seu sentido intrínseco, e não do contexto histórico em que elas foram elaboradas. Noutro
prisma, também a interpretação subjetivo-histórica admitirá uma versão teleológica, se nela se revelar
menos a averiguação do volitivo-psicológico pensamento do legislador e mais a intenção normativa
determinada pelos fins práticos que o moveram – falar-se-ia aqui, nas palavras de Heck, em interpretação
“histórico-teleológica”.
Deste modo, não só as duas distinções não se confundem, como a polémica subjetivismo vs objetivismo
pode ser pensada apenas do âmbito da interpretação dogmática. Acresce ainda que a interpretação
dogmática não implica a rutura com uma intenção teorética do pensamento jurídico (tal como era a intenção
do positivismo jurídico), enquanto que a interpretação teleológica opta claramente por uma intenção prática
sem sentido próprio. Por último, a interpretação dogmática aproxima-se da tendência “formalista” do
pensamento jurídico, ao passo que a interpretação teleológica convoca uma tendência “finalista” desse
pensamento.

Vejam-se agora as principais correntes metodológicas que determinaram decisivamente a viragem para os
fins e para uma interpretação teleológica.

A) A Jurisprudência dos Interesses de Heck


Esta conceção metodológica compreendeu a lei como “solução valoradora de um conflito de interesses” e
associou ao direito a função normativa de tutela e realização de interesses sociais.
No que diz respeito à ciência do direito, Heck vem distinguir dois tipos de problemas:
Problemas normativos: problemas de decisão prática dos interesses (resolução de casos concretos de
conflitos de interesses).
Problemas de formulação: problemas de exposição sistemático-dogmática das soluções conferidas aos
problemas normativos.

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A resolução destes problemas implicaria a exigência de que o julgador se orientasse no sentido de uma
juridicamente correta ponderação de interesses socialmente afirmados e conflituantes, pelo que:
 por um lado, haveria que buscar na realidade social os interesses envolvidos e articulá-los com as
opções do legislador, em ordem à solução dos casos concretos (problemas normativos);
 por outro lado, haveria que verter as conclusões retiradas dessa investigação numa dogmática, de
modo a auxiliar também a solução dos casos concretos (problemas de formulação).

Nesta elaboração foram recolhidos os seguintes contributos para a evolução do pensamento jurídico:
 Enfâse nos fins da norma (aqui considerados sob a veste de “interesses”);
 Realização da interpretação em concreto, partindo da perspetiva do caso;
 Relevância indiciária da letra da lei (e já não uma relevância negativa rigorosa);
 Admissibilidade da interpretação corretiva.

Podem, no entanto, apontar-se algumas falhas, que determinaram a evolução para novas correntes:
 Ao ver na norma um juízo sobre um conflito de interesses, Heck não autonomiza a valoração inerente à
norma: segundo esta perspetiva, a norma jurídica resolveria um conflito de interesses individuais/egoísticos,
não se lhe apontando um qualquer juízo de valor;
 A fundamentação propugnada encerra-se num movimento circular ou paradoxal: o objeto da valoração
seriam os interesses de decisão (critérios da decisão legislativa) e o fundamento dessa valoração seriam os
interesses em geral (interesses sociais), de tal forma que não era possível distinguir o objeto do fundamento;
 A Jurisprudência dos Interesses esteve longe de oferecer uma proposta suficientemente elaborada:
 Apenas considerou os interesses em situação de conflito, esquecendo que podem apresentar-se
também mais ou menos extensa ou intensamente em convergência;
 Não cuidou da análise dos referidos interesses;
 Não se abriu a outros fatores igualmente causais do direito (que podem ser a “causa” das prescrições
legislativas), como as “situações de poder”, a “confiança”, a “responsabilidade”.
 Não conseguiu compreender adequadamente a problemática do sistema jurídico: não são
reconhecidos, nem a pluralidade de estratos que reconhecemos à ordem jurídica, nem a particular
dialética que a anima, nem a específica intencionalidade que a autonomiza

Temporalmente, o que se seguiu à Jurisprudência dos Interesses foi um claro extremar dos campos: por um
lado, tornou-se explícita a opção pela interpretação teleológica; por outro lado, e em sinal contrário, assiste-
se a uma radicalização da opção incondicional pela intenção dogmática.

Certo é que nenhum destes extremos é aceitável:


Radical teleologismo: a juridicidade conta com uma indispensável dimensão dogmática, exigida por:
 Intenção de unidade do sistema;
 Intenção de ordem e segurança normativas;
 Necessidade de pré-determinação dos critérios normativos para a prática jurídica;
 Necessidade de validade axiológico-normativa, radicada em fundamentos.
Radical dogmatismo: a juridicidade não se coaduna com o sacrífico de:
 Exigências teleologicamente materiais da justiça;
 Justeza problemático-concreta das soluções jurídicas.

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B) A Jurisprudência da Valoração de Larenz

A linha de orientação exata só pode ser, pois, aquela em que as exigências de sistema e de pressupostos
fundamentos dogmáticos não se fechem numa auto-suficiência, e antes se abram a uma intencionalidade
materialmente normativa que, na sua concreta e judicativo decisória realização, se oriente por aquelas
mediações dogmáticas mas que também as problematizar e reconstitua. Foi esta conceção que se pretendeu
estar na base na “Jurisprudência da Valoração”.
Larenz propõe-se a ultrapassar algumas das debilidades da Jurisprudência dos Interesses, de modo a
elaborar um sistema mais completo e fundamentado mas mantendo o caráter material da metodologia
prosseguida.

Deste modo, ficam ultrapassadas duas falhas da Jurisprudência dos Interesses:


Autonomiza-se a valoração normativa, ao lado da consideração dos interesses, reconhecendo-se a norma
como verdadeiro juízo de valor;
Fundamentam-se os interesses de decisão em valores, permitindo-se agora a distinção entre o objeto e o
fundamento da valoração.
Como bem se compreende, os valores que temos vindo a referir correspondem aos “princípios gerais de
direito”, os quais constituem as referências de validade últimas.
Esta conceção veio, então, introduzir as seguintes alterações:
Hierarquização dos fins-valores: ao invés do que sucedia na Jurisprudência dos Interesses, em que os
interesses, como entidades individuais, eram considerados como equivalentes entre si, na Jurisprudência da
Valoração os valores são considerados como exigências de sentido últimas, sendo-lhes reconhecida primazia
e uma ordenação específica;
Dualização do teleologismo: em alternativa a um teleologismo puramente de fins, a Jurisprudência da
Valoração vem propôr um teleologismo de valores e fins.

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2.2 A exigência de atender metodologicamente ao telos e à arché do nomos

No contexto de uma perspetiva teleonomológica (que é, como veremos infra, a que propugnamos) à norma
jurídica é apontada, indubitavelmente, uma dimensão estratégica ou finalística: as normas jurídicas
(sobretudo, as normas legais) são determinadas por finalidades político-sociais, já que a elaboração
legislativa tem, evidentemente, por detrás de si programas sociais que se pretendem efetivar. Não obstante,
deve ser também certo que as opções estratégicas consagradas nas normas jurídicas estão, em todo o caso,
limitadas pelas exigências de sentido, que conformam o sistema.
Com efeito, seriam sempre inadmissíveis e intoleráveis as normas jurídicas que desconsiderassem a
axiologia da ordem jurídica em favor de objetivos puramente finalísticos.
Do que foi dito resulta o afastamento da conceção de “norma-texto”, em favor da assunção de um conceito de
“norma-problema” – a norma vai além da texto jurídico e encerra em si mesma a dialética sistema-problema.

“Entre o problema judicando e a norma-critério que hipoteticamente se lhe adequa, cava-se uma distância
que só poderá ser vencida por uma metodonomologicamente irrepreensível mediação, que por isso mesmo
deve atender ao mérito singular do caso e à exacta relevância problemática (ao telos; ratio legis) e axiológica
(à arché; ratio ius) da mencionada norma-critério (…)” P. Bronze

2.3 Os novos tipos de resultados em um horizonte de um Teleologismo de Fins e Valores

Segundo a Teoria Tradicional, eram possíveis vários resultados de interpretação: declarativa, extensiva,
restritiva, enunciativa e abrogante.
Estes resultados respeitavam uma condição máxima, inviolável: os sentidos obtidos haveriam de ter um
mínimo de correspondência no texto da lei (salvo o caso excecionalíssimo, e raro, da interpretação
abrogante). E assim teria que ser na medida em que o elemento gramatical assumia a referida “relevância
negativa”: operava somente no campo dos sentidos não excluídos pelo elemento gramatical.

Porém, a conceção atual de interpretação jurídica reconhece a necessidade da consideração de elementos


extratextuais, e que o teor verbal da norma assume hoje um mero relevo indiciário ou heurístico.
Consequentemente, não ficam absolutamente arredados os sentidos sem correspondência na letra da lei,
os quais serão convocados, designadamente, pelo elemento teleológico, agora admitido abertamente.

Os resultados interpretativos que daqui poderão resultar variam consoante a conceção teleológica adotada:
Teleotecnologia (conceção teleológica que se basta com os fins), admite os seguintes resultados:
 Interpretação Corretiva;
 Extensão Teleológica;
 Redução Teleológica.
Teleonomologia (conceção teleológica que atende aos fins e aos valores), admite os seguintes resultados:
 Interpretação Corretiva;
 Extensão Teleológica;
 Redução Teleológica;
 Interpretação Conforme os Princípios.

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3. A Interpretação Jurídica como momento da concreta e problemático-decisória


realização do direito

Começámos por caraterizar o Método Jurídico do séc. XIX e a teoria da interpretação por ele proposta, a
“teoria tradicional da interpretação”. A eles foram apontadas as falhas que determinaram a sua superação
com a viragem para o séc. XX (“viragem teleológica”). Atentámos, por fim, aos contornos específicos desta
superação, sobretudo ao nível específico da teoria da interpretação, e nas correntes metodológicas que se lhe
sucederam e que se assumiram como alternativas. Agora, importa caraterizar devidamente a interpretação
jurídica nos termos em que ela é atualmente considerada, fechando-se, deste modo, o ciclo iniciado.

3.1 A Perspectiva do Caso como Prius Metodológico

A mudança de perspetiva que temos vindo a referir implica, desde logo, que se postule o caso como prius
metodológico: o caso a superar a cisão interpretação-aplicação e a levar a sério o continuum da realização do
direito.

O objeto problemático da discussão metodológica é o caso (é necessário abandonar a perspectiva tradicional


que começava com a perspectiva em abstrato). O caso não é apenas a controvérsia que se pretende resolver,
ele é um problema jurídico que, pela sua natureza única e irrepetível, irá despoletar uma reconstrução ou
desenvolvimento do próprio critério normativo aplicando. Uma vez que se pretende que o critério jurídico a
aplicar seja concretamente adequado ao circunstancialismo e caraterísticas do caso, então as suas
especificidades determinarão uma recompreensão daquele critério.
Mas, embora nós partamos do caso, vamos vê-lo a partir da perspetiva da norma: o Direito emerge através
dos problemas e da novidade dos mesmos, pelo que, quando se trata de trabalharmos o caso, o mesmo vai
ser visto na perspectiva da norma que vai definir o quadro de possibilidades ao nível da organização do
direito em concreto. A norma poderá ser insuficiente, no entanto, o quadro de possibilidades é afixado pela
norma. Partimos do caso para saber que a norma não é suficiente e precisa de ser concretizada, daí se falar
não na realização mas sim na concretização das normas, do direito.

Significa isto que a interpretação jurídica só será entendida em termos metodologicamente corretos se for
vista como a determinação normativo-pragmaticamente adequada de um critério jurídico (retirado do
sistema jurídico vigente) para a solução do caso decidindo.

NOTA: sublinhe-se que falamos aqui de “critério” e não de “fundamento”, visto que apenas os critérios são
interpretáveis, sendo os fundamentos elementos a convocar nessa interpretação:
 Critérios: operadores técnicos que pré-esquematizam a solução (normas, jurisprudência, doutrina);
 Fundamentos: elementos que conferem concludência racional a um discurso problematicamente judicativo
(princípios).

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 Sabendo-se que o caso é o prius metodológico, pergunta-se: qual o objeto rigorosamente da interpretação
solicitada pelo caso, a realizar segundo a intencionalidade problemática que este constitui?
 a interpretação terá como objeto os “critérios” de resolução do caso, e, num sistema de Civil Law como
o nosso, esses critérios serão, antes de mais, as normas legais; consequentemente o objeto imediato
da interpretação serão essas normas – concretamente, a norma aplicável in casu.
 E em que termos deverá ser considerada essa norma interpretanda? O modelo tradicional respondia a esta
questão de forma simples: o objeto da interpretação seria o texto da norma jurídica.
Mas, o problema da interpretação jurídica não é um puro problema hermenêutico (de apreensão do
significado ou sentido das palavras), mas antes um problema normativo (de constituição ou criação do direito
em concreto). Então, o objeto da interpretação há-de ser correlativo a esta índole do problema: deixamos de
considerar como objeto da interpretação a “norma-texto” (o corpus ou expressão de uma significação) e
passamos a vê-lo na “norma-problema” (a normatividade que é veiculada por intermédio daquele corpus).
No fundo, o que se pretende interpretar não é a “forma” da norma jurídica, pois que essa forma é
insuficiente (e pode até ser defeituosa) para veicular a normatividade pretendida; pretende-se, isso sim,
interpretar o “conteúdo” da norma jurídica, a concreta juridicidade que se pretende criar com a sua
elaboração.

3.2 Propostas de Efectivação do Modelo Interpretativo

Esta compreensão do objeto da interpretação implica um particular modo de interpretação, o qual haverá de
ser orientado pelo objectivo de atingir, na norma aplicável, a normatividade prático-jurídica solicitada pela
problematicidade concreta do caso decidendo, de modo que essa normatividade seja materialmente
adequada à sua solução judicativa. Este objetivo pode, no entanto, ser atingido de modos diferentes ou
segundo especificações diversas deste modelo geral de interpretação.
As propostas de efetivação deste modelo interpretativo dividem-se em duas categorias, cuja distinção radica
na forma como é vista a relação metodológico-jurídica entre o caso concreto (prius metodológico e ponto de
partida da interpretação) e a norma aplicável ao caso (objeto da interpretação).

A) Conceções que reconhecem à norma um sentido normativo auto-subsistente em abstrato


Estas propostas visam conciliar a coordenada normativista tradicional com as atuais exigências de um decidir
problemático-concretamente adequado. Ambos os autores entendem que, na existência de uma norma
jurídica aplicável, essa norma, interpretada segundo a hermenêutica jurídica tradicional e em referência ao
seu teor textual, definirá o quadro de possibilidades normativas da realização do direito. Só que a norma-
texto será apenas um elemento, necessário mas insuficiente, para a concreta realização do direito. Esta
realização implicará, além daquela norma, que se elabore a normativa concretização e a específica “norma de
decisão” adequadas ao caso concreto.
 Muller diz-nos que para concretizar a norma temos de reconhecer que por um lado o texto num sentido
de elemento gramatical vai definir o quadro de possibilidades de concretização desse direito (preservação
de uma das grandes exigências da teoria tradicional), e, por outro lado, que ao experimentarmos a norma em
concreto esta é insuficiente e por isso o julgador terá de se apoiar na doutrina estabilizada, convocar decisões
judiciais exemplares e certos elementos técnicos da realidade para compreender em pleno a norma para tirar
dela um critério para um caso concreto.

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 Fikentscher convoca uma ideia de “justiça” à qual associa dois sentidos:


 Justiça como igualdade: a igualdade na aplicação do direito estaria salvaguardada pela vinculação da
decisão do caso concreto ao sentido hermenêutico da norma legal (o sentido atribuído à norma legal seria o limite);
 Justiça como adequação ao caso concreto: adequação concreto-material dos juízos decisórios conseguir-
se-ia pela especificação da norma legal aplicável em referência normativo-material ao caso concreto.
O julgador tem de ter atenção a estas duas dimensões. Há um momento em que as dimensões aparecem
conciliadas e quando assim é o autor diz que o juiz obteve a “norma do caso”, isto é, um critério que é
simultaneamente capaz de preservar exigências de igualdade num certo plano de universalidade de
tratamento e ao mesmo tempo adequado ao caso concreto. Deste modo, a decisão jurídica, apesar de
adaptada ao caso, integrar-se-ia dentro da norma aplicável: ou dentro da sua letra (como na teoria
tradicional), ou dentro da sua teleologia (superando-se, neste ponto, a conceção tradicional).
Todavia, entende-se que a consideração do caso decidendo como prius metódico é incompatível com o
postulado da autonomia normativo-textual, pois a interpretação é indivisível da realização do direito em
concreto, pelo que sempre sairá gorada a tentativa de imputar à norma um sentido abstrato retirado do seu
texto. No plano metodológico, a prioridade deve ser dada ao caso.

B) Conceções que experimentam a norma na perspetiva do caso


 Kriele numa linha de recuperação da racionalidade prática entende que as normas jurídicas só serão
corretamente interpretadas se permitirem uma justa decisão do caso concreto: decisão ético-racionalmente
justificada pelos interesses fundamentais a ter em conta e pela atenção aos seus efeitos práticos. Quanto ao
modus jurídico desta decisão, decorreria, segundo o autor, nos seguintes termos:
1. Formulação de uma “hipótese de norma”;
2. Confrontação da norma hipotética com o direito positivo:
a) Há uma norma legal correspondente: essa norma constituirá o fundamento da decisão;
b) Não há norma legal correspondente: haverá que procurar-se um precedente judicial aplicável.
i) Há um precedente correspondente: esse precedente constituirá o fundamento da decisão;
ii) Não há precedente correspondente: o fundamento da decisão serão os princípios ético-práticos e
discursivo-argumentativos da razão prática.

 Esser distingue a obtenção real da decisão da sua fundamentação, concluindo que o julgador optará pelo
fator de interpretação que possa justificar a decisão encontrada segundo as exigências normativas do caso
concreto. Esta decisão já seria suscetível de um controlo material (porquanto já havia sido encontrada com
base em considerações práticas e jurídico-materiais); com a convocação de uma norma legal, e sua respetiva
interpretação, permitir-se-ia ainda o seu controlo do ponto de vista do direito positivo. Esta decisão concreta
orientar-se-ia, então, por um pré-juízo da justa solução do caso, sendo posteriormente identificado o direito
positivo que possibilitaria fundamentar essa decisão, para efeitos de controlo.
Schaap formulou uma conceção ainda mais radical: coloca-se exclusivamente em concreto,
compreendendo todo o direito sob a perspetiva do caso. A própria lei é concebida como “decisão concreta”
de “casos jurídicos futuros”. A decisão jurídica em geral é vista como o resultado de uma techné judicativa
que procura fundamentos para um caso concreto numa concreta e histórico-social situação de diálogo.

 Castanheira Neves não considera absurdas as posições de Muller e Fikentsher, uma vez que estes autores,
apesar de verem a norma como prius metodológico, não deixam de tomar em consideração as especificidades
do caso, afastando-se de uma posição legalista.
Porém, aproxima-se mais de Esser e Kriele, que consideram o caso como prius e ponto de partida
metodológico, afastando-se de Schaap, não caindo num casuísmo, uma vez que a decisão jurídica deve ter em
conta o sistema jurídico.
Para Castanheira Neves, o ponto crucial do pensamento metodológico-jurídico jurisprudencial está no
modo de compreender e assumir metodicamente a dialética entre sistema e problema, enquanto
coordenadas metodologicamente complementares.

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Isto é patente no esquema metódico:


a) O esquema metódico inicia-se com a questão-de-facto, em que o juiz olha para os factos e tenta perceber
o que está em causa no caso concreto;
b) Na questão-de-direito em abstrato, é a partir do caso e na perspetiva do caso, tomado nas suas
especificidades, que se vai selecionar a norma hipoteticamente aplicável;
c) A interpretação da norma não é feita em abstrato, antes em função das particularidades do caso;
d) A própria delimitação do espaço livre do direito é feita não a partir de qualquer norma, mas do caso, pois
é este que recoloca a questão dos limites da juridicidade e o problema do próprio direito.

4. A Teoria Standard da Argumentação (matéria excluída na avaliação repartida)

Ao se falar do método jurídico do Séc. XIX, tem-se a ideia de que este tinha sido superado, no entanto, na
segunda metade do Séc. XX, há quem entenda que se tornou possível defender um outro método jurídico que
seria alternativo do primeiro. O Doutor Linhares não entende que assim seja, embora não haja duvida que a
tal perspetiva tem hoje uma força imensa, com enorme projeção na prática.
(Ver: Linhares, «Princípios e casos difíceis» (in Material de Apoio), pp. 14-20; 2.2)

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IV- A PROPOSTA JURISPRUDENCIALISTA


DE UM MODELO («ESQUEMA») METÓDICO

Neste 4º tema vamos tentar perceber qual o modelo metódico que a perspetiva jurisprudencialista oferece.
Trata-se de compreender o problema da realização do direito em concreto e de uma realização que se
quer judicativa ou judicativo-decisória.
Falamos aqui criticamente sobre o modo como o julgador deve decidir! Procuramos encontrar uma
resposta para que em cada caso se possa oferecer uma solução da controvérsia que seja judicativa (expressão
da autoridades), e, ao mesmo tempo, que seja uma resposta que se quer oferecer como realização de uma
certa validade, através da estabilização dessa validade que é oferecida pelo sistema (dimensões: validade,
axiológica, dogmática, praxístico-problemática) que será agora posta em prática através de uma decisão.

1. A Dialéctica Sistema-Problema (remissão pág.32)

O modelo metódico de realização do direito que nos propomos definir assimila uma racionalidade jurídica
que se estrutura em duas dimensões – a dimensão do sistema e a dimensão do problema – e que opera
segundo uma particular dialética que dinamiza essas dimensões estruturais.

1.1. O Sistema Jurídico

O Sistema é a “unidade de totalização normativa” que se analisa em quatro estratos distintos entre si e
relacionados num todo integrante:
Princípios: integra os princípios normativo-jurídicos positivos, transpositivos e suprapositivos. É neste
estrato em que a intenção axiológico-normativa do sistema se assume, em que está presente a sua validade
fundamentante,
Normas Legais: inclui todas as normas prescritas numa opção político-estratégica, que provêm da
legitimidade e autoridade político-jurídicas. Este é, então, o momento de prescrição positiva, o qual sempre
seria indispensável, já que a validade afirmada nos princípios não impõe necessariamente um certo direito
positivo, porque admite sempre várias determinações (cabendo ao legislador “escolher” aquela que se quer
consagrar legalmente) e porque o direito positivo é função da contingente realidade histórico-social (o
direito positivo constituir-se-á em resposta a essa realidade).
Daqui resulta que a relação entre validade (estrato dos princípios) e positividade (estrato das normas)
não é uma relação de necessidade, mas antes de possibilidade: o direito positivo funda-se na validade
normativa e deve ser possível perante ela, mas não é um resultado necessário dessa validade (outros seriam
possíveis). Daí que não possa prescindir-se da mediação constitutiva que é a positivação. E esta positivação
haverá que ser realizada por uma autoridade, pois só assim a normatividade criada poderá impor-se como
vinculativa, afastando quaisquer outras determinações possíveis ao abrigo da validade vigente.
Jurisprudência: integra as decisões jurisprudenciais tomadas anteriormente. Este é o momento de
objetivação e estabilização de uma já experimentada realização problemático-concreta do direito. O valor
normativo deste estrato decorre de uma presunção de justeza que lhe está associada.
Doutrina: engloba os resultados de uma elaboração jurídica livre e de uma normatividade que apenas se
sustenta na própria racionalidade fundamentada. Não há aqui uma validade diretamente vinculativa, como
nos princípios, nem uma autoridade político-prescritiva, como nas normas legais, nem mesmo uma

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autoridade jurídica, como na jurisprudência. A dogmática doutrinal elabora-se, em grande medida, a partir
das normas legais e das posições jurisprudenciais, assimilando ainda os princípios normativos. E assim ela
orienta a determinação explicante e reconstrutiva dessas normas e jurisprudência, conferindo ao sistema
uma racional e decisiva objetivação.
Então, nesse sistema praxístico pluridimensional temos: os princípios (que devem ser tratados como
fundamentos), as normas legais, a jurisprudência e a doutrina (que devem ser tratadas como critérios): é com
eles que o juiz constrói a sua resposta, elabora o seu juízo decisório, dando assim a solução ao problema
concreto que lhe é apresentado.
 Critério legislativo: corresponde a um pré-juízo, a uma vinculação metodológica.
 Critério jurisprudencial: quando tenho um possível tratamento como antecipação de problema, um
problema que pela positiva ou negativa posso comparar ao meu problema, posso fazer um juízo
analógico genuíno porque comparo um caso concreto a outro caso concreto.
 Critério doutrinal: trata-se de mobilizar uma teoria dogmática que seja identificada com um problema
e que dá resposta a esse problema. Algumas propostas doutrinais são retiradas da jurisprudência e
vice-versa. Há um importante contributo da doutrina de reflexão sobre os princípios. Mas esta
reflexão não tem de fornecer critérios, a doutrina fornece critérios, mas também não deixa, quando
se dirige a princípios, de se referir a fundamentos.

1.2. O Problema

A dimensão “problema” consiste, fundamentalmente, nas circunstâncias e demais especificidades que


caraterizam um concreto caso. Tais elementos, específicos daquela questão decidenda e não repetíveis,
implicarão um juízo decisório normativamente adequado à sua problematicidade. Mais do que uma decisão
determinada por critérios e sustentada em fundamentos, haverá de ser pragmaticamente justa, sendo esta
uma justeza decisória concreta.

1.3. A Dialéctica

O sistema começa sempre por delimitar e pré-determinar o campo e o tipo de problemas jurídicos. Assim
sendo, num primeiro momento, os problemas possíveis começam por ser aqueles pressupostos pelo sistema,
e os modos de os considerar serão aqueles que sejam correlativos de soluções/respostas por ele oferecidas.
No entanto, o problema vem alargar e aprofundar aquele primeiro pólo, vem exigir novas perguntas e outros
sentidos para as respostas: não é visto como uma experiência que se pretende resolver segundo uma solução
já disponível no seio do sistema (este era o entendimento tradicional – pretendia subsumir-se a problemática
concreta a uma das soluções previstas em abstrato no sistema); ao invés, assume uma autonomia própria,
pelo que ele convocará não uma solução previamente elaborada (já disponível no sistema) mas uma solução
nova ou inovadora, adaptada às suas especificidades. Pois cada caso concreto é único e irrepetível.

Isto, obviamente, sem descurar o sistema como ponto de partida e como contexto delimitador.

Deste modo, o surgir de novos problemas leva a um enriquecimento do sistema. As intenções anteriores
(princípios e critérios normativos) subsistem, mas agora relativizadas às novas intenções, de tal modo que
se impõe a necessidade de ordenar as novas com as antigas. Ou seja, impõe-se uma integração de todas as
intenções num todo congruente. Esta nova solução passará a integrar ela própria o sistema, o qual fica assim
enriquecido e aprofundado.

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Sintetizando;
 o problema veio interrogar o sistema (pois, na sua unicidade, implica um esforço de
recompreensão dos fundamentos e critérios já existentes) e, subsequentemente veio enriquecê-
lo;
 o sistema, por seu lado, delimita, nos seus fundamentos, o domínio do jurídico e oferece critérios
abstratos de solução a serem experimentados na prática.
 a normatividade já posta (apresentada pelo sistema) e normatividade constituída (implicada pelo
problema) haverão, depois, de se diluir num todo congruente.

“Daí que o sistema jurídico não seja um dado (pressuposto) e sim uma tarefa (objetivo), já que há-de assimilar
sempre uma nova experiência problemática e assumir numa totalização congruente novas intenções
normativas de que, através dessa experiência, o direito se vai enriquecendo.” C. Neves

Daqui decorrem as características fundamentais do sistema jurídico:


aberto: é problematicamente aberto, não é uma entidade auto-subsistente, fechada em si mesma;
não pleno: não é intencionalmente auto-suficiente, ou seja, não apresenta soluções previamente
elaboradas para todos os casos da vida real;
autopoiético: é constituído pelos elementos que ele próprio cria, numa racionalidade prático-normativa
autónoma, isto é, renova-se continuamente do seu interior para o seu interior – a sua limitação implica a
reconstituição;
pluridimensional: é composto por vários estratos, interligados entre si.

2. A Recriação da Dialética Sistema-Problema por Pinto Bronze

Pinto Bronze aponta um novo estrato do sistema: o “estrato dos arrimos procedimentais”, em que
poderíamos integrar os argumentos a contrario, a pari, a fortiori, etc. A este estrato está associada uma
“presunção de prestabilidade”: a sua vinculatividade decorre da sedimentação da experiência profissional.
Nesta perspetiva pensa-se todo o esquema metódico partindo de uma racionalidade analógica: o esquema
metódico surge numa perspetiva de comparação, assumindo-se como um juízo analógico entre o conhecido
(o sistema) e o até ali desconhecido (problema).
 Ao julgador incumbe comparar as compreensões dos princípios, as leituras das normas legais e os
precedentes jurisdicionais já existentes com as especificidades do caso. Os juízos decisórios seriam,
assim, ponderações analógicas que comparam o mérito do problema concretamente judicando e a
intencionalidade problemática do corpus iuris vigente.

Com base nas considerações expostas, Pinto Bronze verte a dialética sistema problema-problema na
designada “equação metodonomológica”: um esquema segundo o qual se compreendia, quase de forma
matemática, essa dialética, na sua matriz analógica.
Esta “equação” trouxe até nós os seguintes contributos:
 veio dar relevância aos juízos dos mediadores subjetivos, enquanto modo de pré-modelar o caso
decidindo: estes juízos encontram no “direito dos juízes” (jurisprudência e doutrina) uma das suas
projecções mais notáveis;
 papel nuclear desempenhado pela norma como modelo de todos os outros critérios, o que só é
concebível porque a norma-critério em causa, libertando-se de uma suposta significação
formalmente auto-subsistente, se nos expõe como norma-problema.

“As específicas ponderações que entretecem a adequadamente visualizada realização judicativo-decisória do


direito têm sempre, como relata, dois problemas – o constitutivo do caso judicando e o intencionado pelo mais
ou menos amplamente constituído e/ou constituindo fundamento/critério circunstancialmente relevante, um e
outro ab origine marcados pela deveniente normatividade jurídica vigente.” P. Bronze

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Questão-de-Facto
1- Determinação da relevância jurídica do caso;
2- Qualificação jurídica;
3- Comprovação/Prova dos elementos daquela relevância e dos seus efeitos

Questão-de-Direiro
1-Questão-de-direito em abstrato (determinação do critério hipoteticamente aplicável);
2- Questão-de-direito em concreto (experimentação do critério no caso).

Juízo Decisório

3. A Questão-de-Facto

3.1 Momento de relevância jurídica do caso


O primeiro momento consiste no problematizar a relevância jurídica da situação histórico-concreta do caso
com que o julgador se depara. Trata-se de determinar, na globalidade da situação histórica em que o
problema concreto se situa, o âmbito e o conteúdo da relevância jurídica dessa situação problemática.
Noutras palavras: que questão ou questões, de entre todas as que possam colocar-se naquela controvérsia
específica, tem ou têm relevância para domínio do direito? (isto porque ao jurista são-lhe apresentados pedaços
de realidade e, daí, ele é que vai descortinar se algum desses pedaços terá ao não alguma relevância jurídica)

3.2 Momento da qualificação jurídica


O que se pretende, neste é inserir o problema jurídico concreto (pois já foi considerada a sua relevância
jurídica) num âmbito normativo específico. Agora, o jurista vai procurar inseri-lo num ramo jurídico (direito
penal, direito do trabalho, direito civil, direito público, etc…).
Depois, dentro do ramo jurídico convocado, haverá que situar a questão controversa num instituto ou figura
jurídicos, ou num regime específico (por exemplo, é um caso de erro sobre a vontade, de vicio de forma, de
reparação de um dano,…). Portanto, neste momento há que qualificar o problema.

3.3 Momento da comprovação/prova


Seguidamente, é necessário proceder à comprovação do considerado âmbito de relevância: para se
comprovar o relevo jurídico do caso, os factos alegados têm de ser provados. Esta comprovação deverá
dizer respeito tanto à efetivação/confirmação dos factos (os factos x, y e z verificaram-se mesmo?), como
ao seu conteúdo (os factos x, y e z, havendo verificando-se, ocorreram mesmo dos modos a, b e c?).

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O problema da prova é compreendido como problema da verdade jurídico-prática.


 Durante a modernidade, o pensamento jurídico de carácter teorético veio determinar que a prova
haveria de se reduzir à averiguação teorético-científica de puros factos, em tudo autónoma do juízo
decisório. Este conceito de prova representava a superação da clássica perspetiva argumentativa.
 Hoje assiste-se a uma intensa revitalização da conceção argumentativa da prova, deixa de ser uma
prova de factos puros, passando a consistir na comprovação dos factos que conformam os problemas
jurídicos. É hoje consensual que verdade jurídica é uma verdade prática, e não uma verdade teorético-
científica.
 E isto não implica, note-se, que a verdade que hoje se pretende alcançar seja menos exigente que a
verdade teorético-científica da modernidade, mas tão-só que ela é uma verdade distinta: em vez de
se propor a descrever os factos, puros e simples, pretende narrá-los nos termos em que eles relevam
para o domínio jurídico.
Neste contexto, de uma verdade prática, há que reconhecer o importante contributo da “racionalidade
narrativa”. Se, em termos gerais, não nos parece ser de perfilhar uma racionalidade deste tipo, a verdade é
que ela se mostra bastante prestável em sede de prova:
Em face de uma dada controvérsia jurídica, já considerada como juridicamente relevante e devidamente
qualificada, o julgador deparar-se-á com, pelo menos, duas “narrativas”: quando se está a reconstituir os
factos de uma controvérsia existem sempre duas versões que sustentam os argumentos dos sujeitos da
controvérsia, isto é, ao julgador o que é apresentado não é um conjunto de factos puros mas sim duas
narrativas dirigidas ao mesmo acontecimento, mas narrativas que são diferentes (a narrativa da acusação e
a narrativa da defesa).

“No plano global, a controvérsia jurídica tem a ver com o modo como ambos os sujeitos em controvérsia,
referindo-se ao mesmo direito, tomam posições diferentes perante a mesma situação da vida que ocorreu (ex:
enquanto o arrendatário entende que deverá ser o senhorio a realizar as obras, o senhorio entende que tem de
ser o arrendatário). No entanto, estamos perante uma questão de facto, ainda não pergunto que direitos e
deveres cada uma das partes têm. Nesta fase ainda só nos questionamos acerca de quais os problemas em causa.
Aqui já há perspetivas jurídicas porque ao fazer esta pergunta o julgador mobiliza vários critérios e tudo isso é
normativo e jurídico.” A. Linhares

Perante esta dualidade, caberá ao julgador (terceiro imparcial) construir uma terceira narrativa, baseada
nos factos, retirados de uma, de outra ou de ambas as narrativas das partes, que efetivamente se deram como
comprovados; é essa narrativa que será definitiva e que será a reconstrução final.
É aqui por demais evidente o caráter prático do momento probatório, em oposição à natureza teorética
que lhe era atribuída na época moderna: o juiz não se propõe a encontrar uma descrição exata, rigorosa e
científica dos factos, tal como aconteceram na vida real; ao invés, procura, isso sim, através de uma atividade
comunicativa com as partes, identificar, no universo da factualidade envolvida pelo caso, os factos
juridicamente relevantes que se podem considerar como comprovados.
Esta é, sem dúvida, uma verdade prática (derivada de uma relação sujeito-sujeito e que se propõe ser
verosímil, provável, razoável), e já não uma verdade teorética (decorrente de uma relação sujeito-objeto e
que se pretende assumir como dogma absoluto e indiscutível).

A este respeito, autores há que fazem assentar o momento probatório na seguinte distinção:
 “Story in the trial”: narrativa dos factos tal como eles (supostamente) aconteceram, que será
diferente do ponto de vista da acusação e do ponto de vista da defesa (é a historia do que aconteceu fora
do tribunal e que é relevante, a que esta a ser reconstituída) ;
 “Story of the trial”: narrativa dos factos reconstruída pelo julgador, aquilo que se dá como provado
após a consideração das narrativas rivais das partes; sendo composta por uma diversidade de
elementos: elementos invocados pelas partes, elementos normativos, entre outros... (é a historia que
se desenvolve no tribunal, é aquilo que aconteceu no foro quando se estava a reconstituir a história que era
anterior a essa prática.)

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Nos termos expostos, quando o juiz considera os materiais apresentados pelas partes, peritos, testemunhas,
(as diferentes versões da historia) ele vai “filtrar” a sua relevância.
Por outro lado, a “story of the trial” é composta por mais elementos além das narrativas rivais das partes. E
isto é assim, precisamente, porque estamos no domínio de uma racionalidade prática, uma vez que a prova
não é um puro juízo descritivo, de índole científica, mas antes um juízo em si mesmo normativo, que decorre
da dialética sistema-problema, na medida em que a narrativa elaborada pelo julgador foi o resultado, não
só da consideração das narrativas das partes (problema), mas também do respeito pelas disposições
normativas que disciplinam a matéria da prova (sistema).

Entre nós, são manifestações deste caráter normativo do momento probatório:


 O regime legal de restrições à prova (“provas proibidas” há certos elementos de facto que não podem ser trazidos
ao juiz; se esta prova fosse teorética e cientifica não haveriam estas restrições);
 As presunções legais de prova (implicando a inversão do ónus da prova);
 A distribuição do ónus da prova.

Como se compreende, o juízo final de índole probatória não será um juízo puramente descritivo, mas é
também um jurídico. (Ex: Se para a conceção teorético-moderna se teriam como provados todos os factos que
efetivamente houvessem acontecido, já para a conceção prático-normativa atualmente acolhida não poderá o juiz num
processo considerar como prova um facto X que, apesar de efetivamente ter acontecido, só pode ser comprovado por
um meio de prova não admitido. Por outro lado, se para a conceção teorético-moderna nunca se poderiam dar como
provados factos sobre os quais não houvesse certeza absoluta, já para a conceção prático-normativa o juiz haverá de
considerar como provado o facto Y que, apesar de não se conseguir comprovar factualmente de forma decisiva, é objeto
de uma presunção legal de prova, a sua verificação é tão-só provável, verosímil).

Em suma, diremos que a prova compreende duas dimensões:

4. A Questão-de-Direito

Quanto à importância da distinção da questão de direito em abstrato e da questão de direito em concreto:


 Em abstrato, parte-se do caso para selecionar hipoteticamente uma norma e para construir, com base
nela, um esboço, uma hipótese de solução para o caso, admitindo que aquela norma será plausível
para resolver o problema
 A prova disso só a poderei fazer em concreto, ou seja, depois haverá todo um processo de
experimentação que leva para a questão em concreto.
Em abstrato estamos perante a seleção da norma e compreensão do seu sentido. Primeiro sai-me um a
hipótese de experimentação e só depois a experimento em concreto.

4.1. A Questão-de-Direito em Abstrato (a determinação do critério hipoteticamente aplicável)

Quando eu digo que há uma questão de direito a resolver, a minha preocupação será encontrar um critério
que seja hipoteticamente aplicado ao caso, um critério que hipoteticamente assimile a relevância do caso
concreto que tenho para decidir.
Aqui podem ocorrer duas situações: ou há ou não há critério.
1. Há um critério no sistema jurídico em que o problema se põe;
2. Não há um critério no sistema jurídico em que o problema se põe;

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Sendo que o sistema jurídico é aberto e em contínua reconstituição, pode acontecer que nem sempre
haverá um critério jurídico pré-definido aplicável ao caso. Nessa situação, o julgador haverá de criar essa
solução com base nos fundamentos (princípios) que conformam o sistema jurídico (que continua a ser o
horizonte de resolução desses problemas!).

A) O problema da determinação da norma hipoteticamente aplicável

Como é que o juiz encontra a tal norma legal hipoteticamente adequada a assimilar o problema em causa?
Será possível tratar isto metodologicamente? Este é o chamado problema da determinação da norma
hipoteticamente aplicável.
Neste domínio, o ponto de partida que importa considerar é o de que o caso concreto é, nos termos expostos,
o prius metodológico: parte-se do caso e vai-se procurar a norma hipoteticamente aplicável.
 “é «aplicável» a norma ou normas do sistema jurídico que forem hipoteticamente adequadas para o
tratamento judicativo-decisório do caso ou problema jurídico a resolver”. C Neves

A utilização do advérbio “hipoteticamente” serve, precisamente, para reforçar que a “norma aplicável”
constitui uma hipótese de solução do caso concreto, que depois será submetida a uma experimentação
metodológica no momento da questão-de-direito em concreto.
E este raciocínio só pode ser entendido no seio de uma racionalidade prática, o critério aplicável não é
identificado em abstrato e aplicado subsuntivamente em concreto; ele é selecionado de forma abstrata como
projeto de solução, mas só será efetivamente aplicado se convocado, em concreto, pela solução judicativa
adequada ao caso decidendo.

Concentremo-nos agora na determinação da norma “hipoteticamente adequada”. Esta norma, já no seu


nível hipotético/abstrato, terá de respeitar as duas coordenadas metodológicas revelantes neste momento:
 sistemática: a norma aplicável há-de mostrar que o caso concreto é assimilável pelo sistema jurídico;
 problemática: a normatividade jurídica intencionada pela norma será suscetível de relevar no
contexto problemático-jurídico do caso concreto.

O problema reside, exatamente, neste segundo ponto: quando ou em que termos se poderá dizer que uma
norma é problematicamente adequada ao caso decidendo?
Os casos jurídicos que a vida histórico-social suscita não se oferecem como bem definidas objetivações
das normas do sistema positivo de direito. Não há, efetivamente, uma correlação ou correspondência lógica
entre as hipóteses normativas (que enunciam factualidade “típica”) e os casos concretos verificados na
prática.

Portanto, por um lado: os casos decidendos podem ter elementos juridicamente relevantes não previstos pela
norma que se lhes venha a aplicar; por outro lado: os casos decidendos podem ter elementos juridicamente
relevantes que preenchem um certo tipo legal pertencente a uma norma que, acaba por não ser aplicada.

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Portanto: pode estar preenchida a hipótese normativa e não se aplicar a norma; e pode não estar
preenchida a hipótese normativa e aplicar-se, ainda assim, a norma.

!) É fundamental considerar os vários elementos ou circunstâncias objetivo-factuais de um caso jurídico


concreto, em geral. Distinguem-se, neste domínio:
Elementos integrantes da hipótese legal/exemplares: são os elementos/factos reais que correspondem ao
tipo, elementos do caso concreto que reproduzem as características representadas no tipo, correspondências
plenas (a perspetiva normativista quando considerava os factos apenas tinha em atenção estas circunstâncias
exemplares, só estas podiam ser vistas sob o patamar da norma, só estas interessavam no caso).

Circunstâncias do caso: circunstâncias/elementos que dão ao caso carácter especial, que fazem dele um
caso infungível, próprio, único e irrepetível; como tal, não estão diretamente previstas nos tipos legais; sem
terem que excluir necessariamente o caráter “típico” do caso.
Circunstâncias juridicamente irrelevantes: circunstâncias/elementos que serão sempre irrelevantes,
quaisquer que sejam as perspetivas jurídicas pelas quais o caso venha a ser considerado.
Circunstâncias que conferem ao caso um relevo jurídico imprevisto: circunstâncias/elementos que, no seu
conjunto, referem o caso simultaneamente a vários tipos; ou que lhe dão uma fisionomia imprevista pelos
tipos legais disponíveis, atribuem ao caso um relevo que ainda não fora pensado pelo direito vigente.
Assim sendo, a aplicação de uma norma terá que pressupor um juízo autónomo sobre o caso (na
perspetiva da questão de direito), em que se vai, precisamente, fazer as distinções acima enunciadas, através
do qual se separa a relevância da irrelevância jurídicas, individualizando e circunscrevendo ao mesmo tempo
o caso.

!) Mas, este juízo implica também a consideração de que as normas legais correspondem à previsão dos
casos mais frequentes, comuns ou típicos;
 pelo que não fica excluída a possibilidade de se decidir, concretamente, acerca da sua aplicabilidade
em termos diversos daqueles que imediatamente imporia o sentido significativo e conceitual das
normas, interpretável em abstrato.

Tal como defende Ekelof: “o sentido de uma norma e o seu domínio de aplicação nem sempre coincidem”. Esta
aplicabilidade diversa do sentido abstrato da norma poderá repercutir-se:
 Aplicação da norma a casos que o sentido abstrato da norma não cobre;
 Desaplicação da norma em casos cobertos pelo sentido abstrato da norma.
Podemos mencionar, a este respeito, as seguintes aplicações “desviantes” das normas:
- Aplicação extensiva: aplicação de uma norma a um caso decidendo, não obstante o caso ser integrado por
circunstâncias juridicamente relevantes que não preenchem o tipo conceitual previsto naquela norma (que
não integram a sua hipótese);
- Aplicação restritiva: desaplicação de uma norma a um caso decidendo que, todavia, é integrado por
circunstâncias que preenchem o tipo conceitual previsto na norma desaplicada (que integram a respetiva
hipótese);
- Interpretação corretiva: aplicação de uma norma a um caso decidendo que, apesar de não apresentar todas
as circunstâncias ou circunstâncias idênticas às do tipo, se entende inserível no escopo teleológico da norma;
- Desaplicação a casos particulares: desaplicação da norma a um conjunto de casos que, embora assimilados
pela hipótese da norma, contam com a concorrência de outras circunstâncias além das previstas no tipo
conceitual, que fazem deles casos particulares daquele tipo, aos quais não deve ser aplicado o regime geral
previsto na norma.
- Analogia: hipóteses em que a semelhança do caso decidendo relativamente aos casos previstos numa
determinada norma implica a aplicação do critério veiculado nesta norma àquele caso, apesar de ele não
integrar o tipo de casos previstos (ex: é semelhante por visa a proteção dos mesmos interesses);
- Argumentação a contrario: hipóteses em que a divergência do caso concreto decidendo relativamente aos
casos previstos numa determinada norma implica para aquele caso um tratamento normativo oposto ao
tratamento prescrito por esta norma para os casos nela previstos.

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- Situações de Concurso de Normas: casos em que a situação concreta a ter em conta oferece elementos para
que se possam dizer simultaneamente aplicáveis duas ou mais normas positivas, entre as quais terá que se
optar, na medida em que não é possível a sua aplicação simultânea ou convergente.

Só o sentido jurídico concreto do caso, compreendido com autonomia, poderá decidir daquela opção. Isto
porque a seleção da norma deverá repercutir-se na identificação do problema que, em abstrato, a norma visa
curar, de forma a averiguar se o problema suscitado no caso concreto pode ser devidamente solucionado
mediante aplicação dessa norma.
“O que decide é o confronto entre problemas (entre o tipo de problema da norma e a índole do problema concreto
do caso)e não a identidade de situações (a prevista na hipótese da norma e a situação concreta.)” C Neves.
E isto tem uma importante consequência: deixa de ser exigível uma rigorosa coincidência entre a
relevância hipotética da norma-prescrição e a relevância concreta do caso.

Uma última nota que se impõe é de que a “norma aplicável” não tem de ser necessariamente uma só norma,
podendo abranger-se aqui todas as normas a que o problema concreto se refira e que a realização do direito
convoca.

B) A compreensão da norma enquanto norma-problema (os momentos)

A norma, como critério jurídico, já não é encarada como “norma texto”, selecionada em função de uma
identidade de situações; mas antes, encarada como critério normativo adequado à concreta realização do
direito: a norma é um juízo de valor dirigido a um determinado problema, ao qual se associa uma solução,
esta que terá de ser compatível com os princípios do sistema sendo selecionada em virtude de um prévio
confronto de problemas.

Selecionada a norma aplicável (nos termos enunciados no ponto anterior) há que compreendê-la e determinar
o seu exato sentido hipotético-normativo. Nesta compreensão da norma concorrem três momentos:
i) Momento histórico;
ii) Momento problemático;
iii) Momento teleológico-sistemático.

i) Momento histórico
A norma jurídica, como produto normativo-cultural, não poderá decerto ser compreendida se não a
perspetivarmos pela coordenada histórica da sua emergência (a norma foi construída num certo tempo e para a
compreender tenho de a contextualizar historicamente; de compreender a tal realidade histórica que a norma pensou) ,

Neste contexto, importa distinguir:


Pressuposto material: no contexto histórico específico que esteve pressuposto à norma e que, se afirma
como fator codeterminante da normatividade constituída através da norma;
 Realidade histórico-social: estrutura da realidade social que a norma tem pressuposta na mediação
da sua hipótese e perante os quais pretende tomar posição normativa;
 Consciência histórico-social: valores culturais, valências do ethos social e intenções político-
ideológicas, determinantes da transformação-constituição do direito;
 Sistema jurídico histórico-dogmático: sistema jurídico que estava dogmaticamente constituído ao
tempo da prescrição da norma e que ia, portanto, pressuposto por essa prescrição.
Génese jurídico-prescritiva: há ainda que considerar o acto constitutivo dessa norma, através do qual a
pressuposição material se converte num particular critério jurídico. É aqui decisiva a intencionalidade
normativa que esteve subjacente a esse ato criado.
 Decisão impositivo-dogmática: norma começa por ser o resultado de uma decisão autoritária, na qual
se afirma uma dimensão político-programática. [fundamentação]

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 Juízo problemático: racionalidade de fundamentação normativa, conexionada com a intenção de


validade do sistema (que se exprime nos princípios normativos). [motivação]

ii) Momento problemático


A problematicidade do caso exige a problematização da norma que lhe possa servir de critério: vou
considerar de uma forma direta o problema que a norma tipificou e a solução que ela lhe deu.
Portanto, é essencial que sejam explicitados tanto os pressupostos jurídicos desse problema como o sentido
problemático específico que o constitui e que vai implícito na solução.
 Para o problema que vai pressuposto pela norma, prescreve ela uma resposta-solução: (1) previsão
de um problema típico; (2) juízo judicativo (solução) sobre esse problema.
 A resposta-solução tem que ser sempre compreendida à luz do problema que se pretende resolver,
pois só partindo do conjunto (problema + solução) se compreendem os fundamentos que estiveram
na base da decisão autoritária em que consiste em norma.
 Assim, a compreensão da solução fixada na norma haverá de pressupor a compreensão prévia da
decisão-juízo inerente à norma, sendo que esta é, nos termos expostos, composta por duas
componentes: (1) a opção autoritária – entre várias respostas possíveis, o legislador optou por
consagrar aquela; (2) o fundamento normativo – a normatividade que se pretende realizar.

iii) Momento teleológico-sistemático


Para compreender a norma é necessário determinar quais os seus fins.
A norma jurídica é resultado de duas componentes:
Decisão: ato prescritivo que manifesta uma autoridade imperativa (vou determinar o motivo-fim que
determinou a opção do legislador – ratio legis)
Juízo: ato normativo-intencional da solução jurídica (vou determinar os fundamentos normativos (princípios)
que se pretendem concretizar – ratio ius)
Por um lado, o juízo assimila normativo-juridicamente a decisão, já que os fundamentos concretizados nas
normas foram aqueles que autoritariamente se decidiu concretizar. Por outro lado, a decisão está limitada
pelo próprio juízo, na medida em que ela sempre haverá de se situar no horizonte da coerência dos
fundamentos do sistema. Aliás, a teleologia que vai inerente à norma (os fins que o legislador pretendeu
prosseguir) poderá ceder perante os seus fundamentos (os princípios e valores que se pretendem fazer valer) .

Posto isto, o momento nuclear da determinação do sentido da norma é o “momento problemático”:


 o “momento histórico” converge nele (só é chamado numa perspetiva problemática, e já não de forma
completamente autónoma como se verificava na teoria tradicional);
 o “momento teleológico-sistemático” é por ele exigido (a compreensão da norma enquanto problema
implica a compreensão prévia dos fins e fundamentos que estiveram na base da consagração daquela
solução para aquele problema).

4.2. A Questão de Direito em Concreto (experimentação do critério no caso)

Resolvido problema da seleção e da determinação do sentido normativo da norma aplicável, segue-se o


problema do concreto juízo decisório (questão-de-direito em concreto). E neste momento duas vias
alternativas podem ser seguidas:

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4.2.1. A Realização do Direito por mediação da Norma

Ao mobilizar o sistema o julgador conseguiu selecionar uma norma que lhe pareceu adequada. Agora irá
experimentá-la no caso.
Essa experimentação é feita a 4 momentos:
A) Momento da Relevância Material;
B) Momento Teleológico;
C) Momento dos Fundamentos;
D) Momento dos Resultados/Efeitos da Decisão (C. Neves rejeita a autonomia deste momento).
Estes momentos não estão separados num plano formal e estanque. São simultâneos e complementares.

A) Momento da Relevância Material

O primeiro passo será o de realizar uma comparação entre o âmbito de relevância material da norma-
critério e o do caso decidendo. De facto, ambos objetivam uma relevância material, nos seguintes termos:
 Norma jurídica: pressuposição hipotético-material (circunstâncias tipificadas em abstrato).
 Caso concreto: intenção problemático-normativa (circunstâncias concretas com relevo jurídico).

Da comparação entre uma e outra podemos chegar a três conclusões:


i) Assimilação por Concretização
ii) Assimilação (parcial)
iii) Não Assimilação

i) Assimilação por concretização: todos os elementos fundamentais da relevância do caso estão presentes na
relevância da norma, ou seja, o caso concreto é uma concretização do caso da norma.

ii) Assimilação (parcial): porém, a assimilação pode não ser total, caso em que podemos ainda ter uma
assimilação por adaptação ou assimilação por correção.
 por Adaptação: mantemo-nos ainda dentro da tipicidade da norma, ou seja, o sentido do caso é
assimilável ao sentido da norma; porém, não se verifica uma coincidência total entre os dois âmbitos
de relevância. Está em causa interpretar a norma para que esta abranja casos cujo âmbito de
relevância seja mais ou menos ampla que o dela.
 Extensiva: a relevância material do caso é mais ampla do que o da norma; havendo, assim,
uma adaptação extensiva da norma ao caso [Ex.: o caso de um menor “deslocado” (os pais estão vivos
mas não estão “disponíveis” para conceder a autorização necessária aos atos da vida corrente do menor) – haverá
que se aplicar o art. 127º/a) CC (não se considerando nulos os atos praticados pelo menor só de per si) embora
não estejam em causa atos de administração de bens adquiridos por trabalho do menor, já que também aqui o
menor se apoia sobre si próprio, isto é, governa a sua própria vida autonomamente.]
 Restritiva: a relevância material do caso é menos ampla do que o da norma; havendo, assim,
uma adaptação restritiva da norma ao caso [Ex.: as “relações jurídico-contratuais fácticas” gozam, em
casos especiais, da aplicação do regime jurídico das relações contratuais, apesar da ausência de uma verdadeira
declaração negocial, em virtude de o seu caráter especial as aproximar da relevância material das normas desse
regime aplicáveis.]

!Isto não se confunde com a interpretação extensiva ou restritiva, pois nessa os termos de
comparação são a letra e o espírito, determinados em abstracto!

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 por Correção: aqui não basta uma adaptação. A índole do problema previsto pela norma e que
encontro ao nível do caso é análoga (é o mesmo problema), no entanto, o caso tem elementos que são
verdadeiramente atípicos, pelo que não me vou manter na tipicidade da norma. Ao invés da
adaptação, estou a atribuir à norma um sentido que seria excluído pela letra, pelo elemento literal, se
a letra tivesse a tal relevância negativa autónoma.
Para que se verifique o recurso à assimilação por correção, têm de estar verificados dois
pressupostos:
 (1) a relevância material do caso deverá ser atípica relativamente à do critério;
 (2)a relevância material da norma mostra-se insuficiente ou incoerente em relação à sua
própria intenção problemática.
Por outro lado, a correção enfrenta dois limites:
 (1) o caso não pode ser excepcional;
 (2) o caso não se pode mostrar em total desadequação com a norma (norma obsoleta ou
lacuna).
A assimilação por correção pode ser de dois tipos:
o Sincrónica: a atipicidade deriva de um erro do legislador, referindo-se ao tempo da norma
(pelo que poderia ter sido assimilada pelo legislador na prescrição da relevância material dessa
norma).
o Diacrónica: na maior parte dos casos, porém, a atipicidade é motivada pelo facto de a
realidade no tempo do caso ser diferente da que foi pressuposta no tempo da norma (a norma
que previu certo problema tornou-se parcialmente desajustada da realidade, parcialmente obsoleta).

iii) Não assimilação: a assimilação revela-se impossível, pelo que se tem de abandonar a norma. São os casos
em que a norma é ultrapassada pela realidade, tornando-se obsoleta (a norma prescreve um critério pressupondo
uma realidade que já não existe e que só relativamente a essa realidade tinha sentido). A norma deixa conseguir
juridicizar a realidade, de tal forma que ela não consegue a assimilação do caso, nem por adaptação, nem por
correção. Nas palavras de Aroso Linhares: “a norma foi superada pela sua própria realidade”.

B) Momento Teleológico

A normatividade jurídica, pressuposta no momento anterior, não é estática, antes se vai reconstruindo e
recompreendendo quando em confronto com os problemas convocados pelos casos concretos. Pelo que este
momento visa comparar o sentido teleológico-normativo da norma e a intencionalidade problemática do
caso, permitindo uma especificação teleológica da norma (que vai redensificando o seu sentido).
Neste momento, o aplicador irá atentar à ratio legis da norma, isto é, ao seu sentido fundamental. Esta
consideração parte do problema concreto e implica, as mais das vezes, o recurso a critérios auxiliares,
sobretudo a experiência jurisprudencial e a reflexão doutrinal, indo culminar na reconstrução da teleologia
da norma em referência ao caso (Como é que aquela norma tem vindo a ser mobilizada como critério de solução para
casos concretos?).

A determinação e especificação normativas que resultarão deste processo podem tomar múltiplas formas, as
quais podem ser o resultado de operações metodológicas típicas:
 Extensão teleológica: inclusão no âmbito da norma casos que ela em princípio não incluiria (a norma
é o critério jurídico adequado ao caso, ainda que este seja por ela formalmente excluído);
 Redução teleológica: exclusão do âmbito da norma de casos que ela formalmente incluiria ( A norma
não é o critério jurídico adequado ao caso, apesar este ser por ela formalmente incluído).
[Ex: o nosso ordenamento jurídico prescreve a regra geral da proibição do negócio consigo mesmo – art. 261º CC. Para estes efeitos,
é proibido o negócio que o representante legal (A) de um menor (B) celebre consigo mesmo (A) em representação do menor (B).
Embora formalmente o negócio fosse celebrado entre A e B, verdadeiramente é A quem atua dos dois lados do negócio. Esta
disposição visa, fundamentalmente, proteger os interesses do representado contra o prejuízo que através deste tipo de negócios o
representante lhe possa provocar em seu próprio benefício. Sucede, porém, que podemos desvelar pelo menos uma situação que
implica o sacrifício do teor formal da norma. Considere-se a hipótese de o negócio em causa consistir numa doação, efetuada pelo
representante (A) a favor do menor representado (B). Dúvidas não podem restar de que estamos em face de um negócio jurídico
(doação) celebrado entre alguém que é representante legal de outrem (A) e a pessoa que este representa (B), de tal forma que
encontramos o mesmo sujeito (A) dos dois lados do negócio – de um lado como doador (em nome próprio), e do outro como donatário

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(em nome do representado). Consequentemente, este é um caso indubitavelmente assimilado pelo art. 261º CC. Só que, ao aplicar-se
este preceito, estar-se-ia a prejudicar o representado (B), já que ficaria anulada a transmissão dos bens para o seu património. E isto
seria, evidentemente, contrário aos seus interesses. Só excluindo-se este caso do âmbito de aplicação do art. 261º CC se realiza a ratio
dessa norma (proteger os interesses do representado); a sua aplicação, ainda que formalmente adequada, é contrária à respetiva
teleologia. Como se vê, não se trata aqui de estender ou reduzir o âmbito material da norma, nem de corrigir esse âmbito com o intuito
de o adequar à índole problemática da norma. Verdadeiramente, o que há é a completa desconsideração do sentido formal da norma
(de forma que, se não fosse a justificação subjacente a este comportamento, estar-se-ia a violar o preceito legal), para permitir o
cumprimento da sua ratio em concreto.]

Note-se que estas operações não são feitas em abstrato; estende-se ou reduz-se a norma no plano teleológico
mas apenas para aquele caso. Fazê-lo significa atribuir à letra da lei um valor indiciário, indicativo.
Observe-se que estes casos seriam remetidos, no contexto da teoria tradicional da interpretação, para o
domínio da analogia. Não sendo subsumíveis aos sentidos literais possíveis da norma, ficariam fora do âmbito
da sua interpretação, pelo que tais casos só poderiam referir-se à norma através de uma sua aplicação
analógica, determinada pela similitude verificada

C) Momento dos Fundamentos


O sentido normativo da norma, que só se releva no caso, tem de ser sempre determinado de acordo com o
estrato dos princípios. Experimento a norma em concreto na perspetiva da sua ratio iuris, partindo da ideia
de que os princípios impõem limites de validade às normas.

Da consideração dos princípios poderão resultar, fundamentalmente, três tipos de conclusões:


Consonância: situação desejável, a solução que obtenho em concreto do caso através desta norma é uma
solução perfeitamente articulada com as exigências dos princípios, não se colocando aqui nenhum problema
metodológico.
Incoerência: a solução que obtenho em concreto do caso através da assimilação da norma é incoerente
(mas não contraditória) com os princípios.
 Pelo que haverá que se proceder a uma interpretação conforme os princípios: a norma será
compreendida nos termos da sua ratio ius e subsequentemente concretizada em concreto.
 Poderá também aqui convocar-se uma outra solução: a correção conforme os princípios: os princípios
que vão pressupostos na norma têm um sentido diverso do intencionado nessa norma, quando
referida ao caso concreto decidendo; ela é insuficiente ou errada para a realização desses princípios
no caso concreto. Podemos distinguir dois tipos de correções:
o Correção sincrónica: a correção é necessária porque os princípios foram assumidos pela norma
num sentido errado, embora pudessem ter sido corretamente assimilados nas normas ao tempo
da sua elaboração.
o Correção diacrónica: a correção é necessária porque os princípios, apesar de corretamente
assumidos pela norma ao tempo da sua elaboração, sofreram uma alteração (como que
“caducaram”) sendo no tempo histórico-social atual compreendidos de forma diversa da que
eram no momento daquela elaboração normativa.
Contradição: Integram-se aqui as situações em que a norma, mais do que referir errada ou
insuficientemente os princípios que a devem fundamentar, os contraria diretamente, é diretamente
incompatível com eles. Nestes casos, a preferência irá, indubitavelmente, para os princípios-fundamentos.
A este respeito, poderia opor-se a segurança jurídica a esta relevância atribuída à validade material. Todavia,
entendemos que:
(1) a “segurança” não pode prevalecer no caso de uma contradição insanável com a “justiça”;
(2) a legitimidade política não pode afastar ou preterir a validade normativa.
Se é verdade que cabe à legitimidade política optar entre as várias possibilidades da positiva determinação
prescritiva, não é menos verdade que essa decisão tem necessariamente que operar no campo definido pela
validade axiológico-normativa.
Centremo-nos agora nos tipos de resultados que poderão advir de situações de contradição:
o Preterição da norma: constituirá o resultado a alcançar em hipóteses de contradição sincrónica, isto
é, nos casos em que, ao tempo da elaboração da norma, os princípios jurídicos em causa já eram

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compreendidos nos termos em que o são atualmente, pelo que a norma sempre poderia ter sido
elaborada de forma consoante e não contraditória com os respetivos fundamentos de validade;
o Superação da norma: a superação da norma decorrerá da verificação de uma contradição diacrónica,
ou seja, nos casos em que, devido a uma mutação ou evolução do sistema, os seus princípios sofreram
uma alteração, a qual veio implicar a desadequação da norma em relação à nova compreensão desses
princípios [é nesta sede que surge a questão dos “limites normativos temporais” das normas: as normas não
acompanharam a evolução na validade normativa do sistema, estando por isso “caducas” (no sentido lato da
palavra)].

C1) A interpretação conforme a Constituição


Este cânone hermenêutico teve a sua origem numa intenção de preservação das normas legais no quadro da
constitucionalidade. Dessa intenção inicial passou-se, porém, a entender esse cânone como uma exigência de
compreensão e determinação hermenêutico-normativas das normas legais que as integrasse hierarquicamente no todo
do sistema jurídico.
Este entendimento assume, então, um sentido análogo à já referida “interpretação conforme os princípios”. Mas, a
diferença é que aqui a interpretação conforme a constituição não deveria iludir a inconstitucionalidade das normas
legais, imputando-lhes uma significação compatível com a Constituição.
Para Castanheira Neves, todavia, esta conclusão não é necessária, pois o autor entende que haverá efetivamente lugar a
uma interpretação conforme à Constituição que recupere nas normas legais a constitucionalidade falhada. A anulação
por inconstitucionalidade ficaria reservada para os casos de objetiva contradição (de uma verdadeira “rebeldia”), não
sendo aplicável nos casos em que a falha normativa que determina a inconstitucionalidade é superável.

D) Momento dos Resultados/Efeitos da Decisão


Há quem entenda que tem de haver um momento final em que se experimentam os resultados da decisão.
Todas as perspetivas funcionalistas admitem que o cânone dos efeitos deve valer autonomamente. Haverá
um momento final em que o julgador tem à sua disposição várias alternativas [por exemplo, numa ação de
despejo, vou fazer um juízo de prognose, considerar quais serão os efeitos sociais desse despejo que serão sentidos
consoante a situação do arrendatário (pobre, rico…); será que devo ter em atenção esses efeitos na decisão que vou
proferir?].
Segundo C. Neves: “o concreto juízo decisório deverá encontrar a sua validade nos fundamentos normativo-jurídicos que
convoque e assimile, [e] não a sua justificação nos efeitos político-sociais que se proponha ou realize”. Ora, a aceitação
metodológica da perspetiva fundamentalmente finalístico-consequencial, em que os efeitos seriam os
critérios de resolução ou em que se aceitaria como topos decisivo o da aplicação do direito orientada pelos
“efeitos”, traduzir-se na conversão do pensamento jurídico numa “engenharia social” e na conversão da
ciência jurídica numa “ciência social”.
Recusamos a radical alternativa normativismo/funcionalismo perfilhando uma conceção jurisprudencialista:
 O essencial aqui é perguntar: além de atender à normatividade jurídica vigente, a decisão deverá ainda
ser socialmente justificada em referência aos seus previsíveis resultados no contexto social? A resposta a esta
questão tende a ser positiva, mas será que isso implica o surgimento de um cânone metodológico autónomo?

!) Desde logo, é de referir que estaria em causa novo cânone metodológico, que surgiria num momento a
acrescentar aos já referidos. Neste momento haveria, então, que ponderar os efeitos sociais da concretização
da norma, note-se que não estamos aqui a lidar com os efeitos jurídicos [Ex.: uma ação de insolvência movida
contra uma grande sociedade comercial com peso substancial no mercado resultarão efeitos nefastos para os milhares
de trabalhadores (em decorrência da decisão despedidos) e, consequentemente, para os respetivos agregados
familiares; etc.]

Quanto à função metódica deste cânone, pode pensada em três sentidos:


Função crítica: o reconhecimento dos efeitos ou consequências manifestamente indesejáveis ou
gravemente negativas desempenharia uma função de alarme quanto à justeza da decisão;
Função seletiva: a consideração dos efeitos seria chamada a decidir, dentre as possíveis alternativas de
interpretação, a favor daquela que produzisse os melhores efeitos sociais;

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Função reconstrutiva: a ponderação dos efeitos viria determinar globalmente a intencionalidade


metodológica da decisão jurídica concreta – aqui estar-se-ia a propugnar um modelo científico-tecnológico
de racionalidade.

!) Todavia, não é pacífica a aceitação deste novo critério ou cânone metodológico. Vejam-se, então, os
argumentos invocados a favor e contra a sua aceitação:

!) Conclusão: Entendemos que o modelo normativo terá que prevalecer sobre um modelo tecnológico, posto
que aquele modelo normativo haverá que se referir, axiológico-normativamente, a uma validade (Considerar
os efeitos sociais da decisão é muito difícil e imprevisível. E essa previsão vai depender de qualificações na perspectiva do juiz, ou
seja, seria altamente subjectiva. O cânone não poderá valer por si próprio porque isto abriria imensas e infinitas portas, isto seria pôr
em causa o juízo jurídico, que passaria a ser orientado por uma racionalidade finalística.).

De facto, embora o Esquema Metódico actual não imponha conclusões únicas/necessárias, permite também
concluir que a indeterminação ou alternativa decisória não é hoje um resultado metódico necessário, aliás,
permite-nos afirmar que para um concreto caso haverá somente uma decisão (a mais justa) aplicável.

Dito isto, defendemos que o julgador, ao decidir, deve procurar que as consequências da sua decisão não
infirmem, mas confirmem concreto-realmente, o autêntico sentido da axiologia e da normatividade que
determinaram essa decisão.
 Não vamos considerar os efeitos da decisão como verdadeiro cânone metodológico, a par da
relevância material, da teleológica e dos fundamentos de valoração.
 É sim um elemento que vem pressuposto nos efetivos cânones metodológicos, designadamente no
domínio da problematização da concreta justeza material do caso.
 Portanto, os autores jurisprudencialistas propugnam, como ficou já referido, pela não autonomização
deste cânone, vendo nele algo como que subjacente esquema metódico no seu todo, que não deverá
ser autonomizado como critério final de decisão.
 Por último, é de referir que esta é uma questão longe de poder ser considerada respondida em pleno
ou dogmaticamente fechada.

4.2.2. A Realização do Direito por Autónoma Constituição Normativa (relevante para orais de melhoria)

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