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História do Direito e dogmática jurídica:

reflexão metodológica
Carlos Sardinha*

Introdução
1. Parece evidente que um curso de direito visa ministrar aos que o
frequentam os conhecimentos técnicos necessários ao exercício das várias
profissões jurídicas na sociedade em que se inserem. É, por conseguinte,
o conhecimento da ordem jurídica vigente que, antes de mais, deve ser
transmitido aos estudantes de direito. A ciência jurídica tem um cariz
dogmático-prático, ou seja, embora submetido, na sua formação, a um
processo histórico-cultural mais ou menos complexo, o direito, enquanto
tal, é definido pela sua vocação para ser aplicado numa determinada
época, para ser válido, vigente. E esta projecção sobre a realidade social
que caracteriza a essência do jurídico exige que a ciência que o estuda,
a ciência jurídica, adopte uma metodologia muito própria: o jurista ao
utilizar o direito para resolver os problemas que a vida submete à sua
apreciação pressupõe sempre a verdade intrínseca dos valores, princípios
e normas que é chamado a aplicar. No momento eminentemente jurídico
da decisão impõe-se ao aplicador-intérprete a respectiva fundamentação.
Ora esta fundamentação representa sempre um diálogo racional entre
o plano normativo-valorativo – que é pressuposto – e a singularidade
do caso concreto, segundo um método que podemos caracterizar como

*  Professor Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa,


Escola de Lisboa. Investigador do Católica Research Centre for the Future of Law.
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autoritário-decisório ou dogmático. Mas se é assim, se o direito só se


manifesta em sentido próprio no momento prudencial em que, por defi-
nição, toda e qualquer indagação histórica, enquanto tal, não tem sentido,
ou, pelo menos, tem um relevo claramente secundário e funcionalizado a
uma perspectiva dogmática, então cabe perguntar por que razão interessa
ao jurista estudar o direito numa perspectiva histórica e não apenas dog-
mática. Não será o método de investigação puramente histórico do direito
enquanto fenómeno sociocultural temporalmente localizado incompatível
com a natureza do direito? O direito não perderá, por assim dizer, o seu
carácter jurídico no momento em que se historifica, em que se fossiliza
no passado? É inegável que entre os chamados práticos do direito,
entre os juristas proprio sensu o contacto com as culturas jurídicas do
passado não deixa sempre de suscitar uma certa estranheza: a visão do
direito colhida na sua experiência profissional não lhes permite – pelo
menos imediatamente – vislumbrar qualquer afinidade entre o estudo
dos direitos de outras épocas e a ciência jurídica, a dogmática jurídica
em que diariamente se apoiam no exercício das suas funções. Sentem
que a forma mentis que adquiriram enquanto juristas é, de algum modo,
incompatível com as exigências metodológicas impostas por qualquer
apreensão dos direitos do passado. Ou seja – e em suma – sentem que
o estudo de tais direitos tem, afinal, um objecto diferente daquele que
conhecem como sendo o objecto próprio da ciência em que se forma-
ram e de que são peritos. Tende-se, por isso, a considerar a história do
direito como uma disciplina, em rigor, extrajurídica. E este carácter
não-jurídico do estudo de experiências jurídicas já historificadas impõe-
-se com particular insistência à sensibilidade dos práticos sempre que se
trata de direitos vigentes em épocas temporalmente muito afastadas da
actualidade. Este fenómeno, apesar de ser fácil de verificar, carece de
ser analisado. Dissemos já que quando o direito perde a sua vigência,
perde ipso facto o seu carácter jurídico, ou seja, quando se historifica
ainda é possível ao jurista apreender o conteúdo desse direito na medida
em que o alcance das suas normas transparece das respectivas fontes
de conhecimento, agora transformadas em documentos históricos. Mas
tal operação intelectual, ainda que, no seu espírito, possa manter, apa-
rentemente, semelhanças, com o método de conhecimento dogmático,
jurídico, em bom rigor não passa disso mesmo, de uma aparência. E
isto porque – mais uma vez o dizemos – falta a vigência que define a
essência do respectivo objecto: sem ela a distinção entre o dever-ser e
o ser que identifica a especificidade do direito enquanto ciência moral,
HISTÓRIA DO DIREITO E DOGMÁTICA JURÍDICA:
REFLEXÃO METODOLÓGICA 413

chamemos-lhe assim, desapareceu por completo, pela simples razão


de que o dever-ser se dissolveu no ser histórico. Deste modo, para
aplicar ao conhecimento do direito historificado o método próprio do
direito vivo, o método dogmático, o jurista tem de imaginar, pressupor
artificialmente que ele se mantém válido. E semelhante pressuposição
– seja ela consciente ou inconsciente – só dificilmente poderá aceitar-se
do ponto de vista metodológico, porque, muito simplesmente, leva o
jurista, a ignorar as exigências que a historificação impõe a um correcto
conhecimento do passado jurídico, as exigências próprias do método da
ciência histórica. Na verdade, muitas das instituições que encontramos
em tais direitos não são, de todo, enquadráveis nas categorias dogmáticas
modernas, ainda que estas sejam submetidas a um mais ou menos intenso
processo de abstracção, pelo que permanecem ininteligíveis aos olhos
do jurista actual. A tal estranheza de que falávamos há pouco suscitada
nos juristas, principalmente nos práticos, sempre que eram confrontados
com direitos passados se, muitas vezes, os leva a considerar os estudos
histórico-jurídicos como inúteis à formação jurídica, também, frequen-
temente, protege, de alguma forma, os documentos histórico-jurídicos
de uma abordagem e tratamento menos correctos do ponto de vista
científico. Dito de outra maneira: ao tentar conhecer as experiências
jurídicas de um passado distante através dos métodos próprios da ciência
jurídica – os únicos que, naturalmente, domina e a que está acostuma-
do – a insuficiência ou, mesmo, a inadequação de tais métodos impõe-se
necessariamente à sua consideração. Com efeito, tropeçará, desde logo,
em dificuldades de natureza linguística que o poderão impedir, sequer,
de decifrar o conteúdo dos documentos. E mesmo que consiga decifrá-
-los, o jurista não conseguirá, muito provavelmente, interpretá-los, ou
seja, fixar o seu exacto alcance jurídico na época em que se encontravam
vigentes, pois, para isso, precisa de conhecer, com um mínimo de rigor,
o contexto económico e social, enfim, histórico em que semelhantes
documentos foram produzidos. E esta insuperável estranheza condu-lo
imediatamente a considerar como não-jurídico o estudo de todas as expe-
riências jurídicas passadas que permanecem avessas a qualquer tentativa
de conhecimento alicerçada numa metodologia puramente dogmática.
Já no que respeita aos direitos não vigentes que, não obstante, mantêm
laços mais ou menos claros com o direito moderno, o jurista dos nossos
dias tende a aceitar mais facilmente a legitimidade do seu estudo, pela
simples razão de o seu conteúdo poder ser mais facilmente apreendido
através das categorias dogmático-jurídicas que domina.
414 CARLOS SARDINHA

2. A separação entre o estudo do direito vigente através de um método


dogmático e o estudo do direito não vigente através de um método
histórico é um fenómeno relativamente recente. Tal separação pressu-
põe não só um determinado conceito de direito, mas também um certo
entendimento do que é história e do seu papel em relação ao presente.
Com efeito, até ao século xix não é clara a distinção (se é que existe)
entre história do direito e dogmática jurídica. E isto porque a sensibili-
dade do jurista não conseguia vislumbrar imediatamente a existência de
um autêntico passado jurídico que devesse constituir o objecto de uma
disciplina independente, postulando, nessa medida, métodos próprios.
Passado e presente confundem-se frequentemente na prática jurídica
anterior ao século xix, nomeadamente na chamada época do domínio
do direito comum. Quando, por exemplo, um jurista medieval invocava
um passo do Digesto para resolver um determinado problema jurídico
que se impunha à sua consideração, é evidente que tal preceito, ainda
que formalmente fosse justinianeu, pertencia, em rigor a outra época
histórica: a sua aplicação à realidade medieval exigia um esforço de
interpretação lato sensu que, em último termo, conduzia, à sua mutação
semântica. Mas, precisamente, a existência de um sistema jurídico em
que as normas justinianeias se exprimiam numa validade que, bem vistas
as coisas, pouco tinha a ver com a originária, impedia o jurista medieval
de ter uma consciência clara do fenómeno da historicidade do direito,
pela simples razão de que a utilização formal das fontes justinianeias o
levava a aceitar a sua vigência, conduzindo, deste modo, a um conceito
simplista – chamemos-lhe assim – de validade. Por outro lado, antes do
século xix não se pode falar de um estudo científico do passado humano.
Não existe, com efeito, a preocupação sistemática de o reconstruir nos
seus múltiplos aspectos com base numa análise crítica das fontes dis-
poníveis. E esta acientificidade é particularmente nítida no domínio da
história das instituições, nomeadamente das instituições jurídicas, uma
vez que o respectivo estudo numa perspectiva histórica é perturbado,
frequentemente, pelo já referido conceito simplista de validade. Não é de
admirar, por isso, que o anacronismo seja apontado como um fenómeno
típico da historiografia pré-novecentista, especialmente da medieval. Por
outro lado, assiste-se, também, no século xix a uma mudança radical no
conceito de direito que, por sua vez, vai reforçar o divórcio, digamos
assim, existente entre o direito vigente e o direito não-vigente, historifi-
cado. O chamado positivismo jurídico, intimamente associado, como se
sabe, ao fenómeno da codificação, define direito como o conjunto das
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normas criadas pela vontade do legislador e que, por isso mesmo, são
garantidas pela força coactiva do Estado. Tende-se, por isso, a colocar
no centro do processo que conduz à génese da norma jurídica a vontade
abstracta do legislador, separando-a dos fundamentos históricos que
necessariamente a condicionam e explicam1. Só a razão pura pode,
por isso, ser aplicada ao conhecimento do direito vigente, no âmbito de
uma metodologia exegética, dogmática. Todos os fenómenos jurídicos
que não cabem neste conceito estrito de vigência não podem, por isso,
integrar o objecto desta ciência (a dogmática jurídica). Devem, neces-
sariamente, constituir um ramo do saber distinto, assente num método
não-jurídico, histórico: a história do direito. Nesta medida, facilmente se
compreende que, mais cedo ou mais tarde, se colocaria de forma intensa
o problema da legitimidade e da utilidade dos estudos histórico-jurídicos
nas faculdades de direito. Quando tais estudos, em razão do seu objecto
e método, tendem a afastar-se do direito vigente e respectiva doutrina,
é evidente que o jurista prático e o estudante não podem deixar de se
interrogar: será o estudo da história do direito mesmo indispensável à
formação do jurista2? Em que medida poderá tal disciplina influenciar o
exercício futuro da sua profissão?

3. O diagnóstico do problema metodológico básico da história do direito


não ficaria completo se nos limitássemos a identificar a contraposição
existente entre a história do direito entendida no sentido exposto e a
dogmática jurídica. A verdade é que durante a maior parte do século xix
dominou na Alemanha – ao contrário, por exemplo, do que sucedeu na
França – um terceiro modelo de relação, por assim dizer, entre o passado
jurídico e o estudo dogmático do direito vigente. Refiro-me ao método
da chamada Escola Histórica do Direito (Historische Rechtsschule)3.
A importância do contributo desta Escola para a formação da moderna
ciência jurídica europeia e para a criação de uma verdadeira e própria
história do direito justifica que lhe dediquemos uma especial atenção.

1
 Cf. K. Kroeschell, Deutsche Rechtsgeschichte, vol. 1: bis 1250, 13.ª ed., Colónia /
/ Weimar / Viena: Böhlau, 2008, p. 2.
2
  Idem, ibidem, p. 8.
3
  Para uma panorâmica geral, veja-se H. Thieme, Historische Rechtsschule, in: Han-
dwörterbuch zur deutschen Rechtsgeschichte, vol. II (1978), cols. 170 ss. e bibliografia
aí citada. Sobre o ambiente cultural em que surgiu a Escola Histórica, ver a síntese de
G. Dahm, Deutsches Recht. Die geschichtlichen und dogmatischen Grundlagen des
geltenden Rechts. Eine Einführung, 2.ª ed., Estugarda: Kohlhammer, 1963, pp. 117 s.
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A história do direito enquanto ciência «dogmaticamente orientada»:


Savigny e a Escola Histórica

I. O jusnaturalismo racionalista e as origens da Escola Histórica

a) Colocação do problema
1. Não é nem pode ser nossa intenção proceder aqui a uma análise
exaustiva da personalidade e obra do eminente jurista que foi Savigny ou,
sequer, da Escola por ele fundada. Não é esse o objecto do nosso trabalho.
Além disso – como, aliás, teremos ocasião de perceber já a seguir – a
complexidade de tendências e orientações, nem sempre concordantes,
que podemos identificar no seio da Escola Histórica, exige e justifica
um estudo autónomo e exclusivo deste tema. Aqui interessa-nos apenas
perceber, em geral, o contributo de Savigny e dos seus sequazes para a
cientificização da história do direito e o seu papel na formação de uma
renovada ciência do direito enquanto dogmática jurídica. Interessa-nos,
em suma, compreender o sentido em que, precisamente, esta escola do
direito se assume como uma escola histórica. Veremos que tal qualifi-
cação é tudo menos clara ou unívoca.

2. Quando deparamos com a expressão alemã Historische Rechtsschule


a nossa atenção concentra-se, desde logo, no adjectivo que define esta
escola jurídica como escola histórica. É esta, sem dúvida, a diferença
específica que se pretende sublinhar como sendo a decisiva na dis-
tinção desta escola das demais. Tal impressão confirma-se logo que
compulsemos os escritos de Savigny em que este traça o programa da
nova escola. Com efeito, em 1814 aparece a chamada Zeitschrift für
geschichtliche Rechtswissenschaft enquanto instrumento ao serviço de
uma nova concepção da ciência jurídica. O carácter revolucionário, por
assim dizer, da nova orientação está patente na primazia concedida ao
elemento histórico na fundamentação da ciência do direito, contrastando,
assim, com a metodologia própria do jusnaturalismo racionalista que,
desde o século xviii, pontificava nas universidades alemãs4. Como se

4
 Cf. P. Koschaker, Europa und das römische Recht, Munique / Berlim: Bieders-
tein, 1947, pp. 245 ss. Sobre o jusnaturalismo alemão no século XVIII, veja-se K.-H.
Ilting, Art. Naturrecht, in: O. Brunner (ed.), Geschichtliche Grundbegriffe: Historisches
Lexikon zur politisch-sozialen Sprache in Deutschland, vol. IV, Estugarda: Klett-Cotta,
2004, pp. 292 ss.
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sabe, esta escola propunha-se fazer do direito uma ciência segundo o


modelo próprio das ciências exactas. Ou seja: a missão do jurista seria
descobrir e demonstrar os princípios básicos em que necessariamente se
exprime a vida jurídica dos homens e, a partir deles, deduzir, segundo
uma lógica formal, as normas que devem reger a sociedade. A juridi-
cidade não é mais do que uma manifestação da razão pura aplicada
aos problemas específicos colocados pela convivência dos homens em
sociedade. Uma norma seria, por isso, jurídica, válida na exacta medida
em que fosse racional. É essa racionalidade que justifica a necessidade
dos homens se lhe submeterem. O conceito jusracionalista de validade
é, deste modo, independente quer da vontade política do Estado5 quer
de toda e qualquer autoridade que assente somente em razões de índole
histórico-cultural6; nestes casos podemos, quanto muito, falar apenas de
uma validade subalterna, ou seja, de uma validade que, enquanto tal,
deve exprimir sempre a validade jurídico-natural através de uma confor-
mação com os seus preceitos. Deste modo, a existência histórica concreta
dos diversos direitos positivos não teria, em si mesma, qualquer valor
jurídico decisivo, pois só o direito natural constituiria fonte autêntica de
juridicidade7. Na sua formulação mais pura, o jusnaturalismo racionalista
postulava, pois, a autonomia das normas de direito natural em relação
à fenomenologia histórico-jurídica: os princípios jurídico-naturais não
constituem abstracções induzidas a partir do estudo comparativo – numa
perspectiva diacrónica ou sincrónica – dos vários sistemas de direito
5
 Cf. P. Koschaker, Europa..., pp. 252 s.
6
  Um exemplo desta última hipótese é a validade do direito romano justinianeu
durante a Idade Média. Na base da recepção deste direito, da sua renovada utilização na
vida jurídica medieval não está a vontade política de Justiniano ou, sequer, o reconhe-
cimento do direito justinianeu como fonte de direito por parte dos soberanos medievais,
mas sim a ideia de Imperium e de Roma como expressão política da Cristandade que
permitia, por um lado, fixar uma linha de continuidade entre o imperador romano e o
imperador medieval, e, por outro, fundamentar a ideia de uma validade ininterrupta
do direito romano desde a Antiguidade até à Idade Média. Ou seja, o direito romano
justinianeu foi, realmente, válido na Idade Média, ainda que, à luz da crítica histórica
moderna, possamos indicar o fenómeno como um exemplo do por nós designado conceito
simplista de validade (ver supra).
7
  Daí que o direito natural, apesar de reivindicar a sua validade em relação ao direito
positivo, de exigir que este receba os seus princípios, tenha sempre permanecido um
direito de professores (Professorenrecht), criado e mantido apenas nos meios universi-
tários. A projecção do jusnaturalismo racionalista sobre a prática jurídica permaneceu
insignificante e operou quase sempre através da legislação por ele influenciada. Neste
sentido, P. Koschaker, Europa..., p. 251.
418 CARLOS SARDINHA

positivo, mas sim regras formalmente deduzidas a partir de evidências


ou axiomas jurídico-racionais8. É contra esta ideia de que as normas
jurídicas podem ser abstractamente deduzidas de princípios puramente
racionais que Savigny opõe a sua ciência histórica do direito9. Contudo,
se o método savigniano ataca o exclusivismo racionalista do jusnatura-
lismo de setecentos, a verdade é que não renuncia ao seu objectivo de
construir um direito ideal, científico. O método empregado para alcançar
este fim é que é diferente. E nesta orientação aproxima-se Savigny de
alguns epígonos do jusnaturalismo que, precisamente, pretendem atri-
buir ao direito romano um papel especial na revelação do conteúdo do
direito natural10.

3. Reconhecer a experiência jurídica romana como fonte de conheci-


mento privilegiada dos princípios de direito natural implica, forçosamente,

8
 Cf. F. Zwilgmeyer, Die Rechtslehre Savignys. Eine rechtsphilosophische und geis-
tesgeschichtliche Untersuchung (Leipziger rechtswissenschaftliche Studien 37), Leipzig:
Weicher, 1929, p. 2. Não é por acaso que Christian Wolff (1679-1754), um dos principais
representantes da escola jusracionalista, chegou a ensinar simultaneamente direito natural
e matemática. Chamando a atenção para este aspecto, H. Thieme, Die Zeit des späten
Naturrechts. Eine privatrechtsgeschichtliche Studie, in: ZRG.GA 56 (1936), p. 224; G.
Marini, Friedrich Carl von Savigny (Gli Storici 9), Nápoles: Guida Ed., 1978, pp. 13 s.
Para uma síntese do pensamento wolffiano e dos seus principais discípulos, Daniel
Nettelbladt (1719-1791) e Darjes (1714-1791), veja-se St. Buchholz, Art. Christian
Wolff, in: Handwörterbuch zur deutschen Rechtsgeschichte, vol. V (1998), cols. 1511 ss.;
F. Wieacker, Privatrechtsgeschichte der Neuzeit, unter besonderer Berücksichtigung der
deutschen Entwicklung, 2.ª ed., Gotinga: Vandenhoeck & Ruprecht, 1967, pp. 318 ss.; E.
Landsberg, Geschichte der deutschen Rechtswissenschaft, von R. Stintzing, vol. III, 1,
Munique / Leipzig: Oldenbourg, 1898, pp. 198 ss.; W. Neusüss, Gesunde Vernunft und
Natur der Sache: Studien zur juristischen Argumentation im 18. Jahrhundert (Schriften
zur Rechtsgeschichte 2), Berlim: Duncker & Humblot, 1970, pp. 35-55; C. Peterson,
Zur Anwendung der Logik in der Naturrechtslehre von Christian Wolff, in: J. Schröder
(ed.), Entwicklung der Methodenlehre in Rechtswissenschaft und Philosophie vom 16.
bis zum 18. Jahrhundert: Beiträge zu einem interdisziplinären Symposion in Tübingen,
18.-20. April 1996 (Contubernium 46), Estugarda: Steiner, 1998, pp. 177 ss.
9
 Cf. E. Wolf, Das Problem der Naturrechtslehre: Versuch einer Orientierung
(Freiburger rechts- und staatswissenschaftliche Abhandlungen 2), 3.ª ed., Karlsruhe:
Müller, 1964, pp. 181 s.
10
  Daí que Koschaker chegue a observar: «Ich glaube daher die nur scheinbar
paradoxe These vertreten zu dürfen: die deutsche Pandektistik war Fortsetzung des
Naturrechts mit anderen Mitteln» (= “Penso, pois, poder defender a tese apenas aparen-
temente paradoxal: a pandectística alemã foi continuação do direito natural com outros
meios”). Cf. Europa..., p. 269. Veremos melhor esta questão um pouco mais adiante.
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negar à razão pura o seu papel exclusivo enquanto fonte autêntica de


juridicidade. Aceita-se aqui – pelo menos implicitamente – que as nor-
mas jurídico-naturais podem ser reveladas através de um mero processo
histórico independente de qualquer dedução lógico-formal. E esta ideia
é tanto mais revolucionária se levarmos em consideração que o jusna-
turalismo racionalista é avesso à própria ideia de uma comparação de
sistemas jurídico-positivos como método de revelação dos princípios de
direito natural e, nesta medida, por maioria de razão, incompatível com
o reconhecimento de qualquer posição privilegiada a uma determinada
experiência jurídica. É inegável, contudo, que o construtivismo lógico-
-formal jusracionalista acabou, paradoxalmente, por facilitar o caminho
à nova tendência. O conceito jusracionalista de direito natural, apesar
do seu formalismo, mantém uma relação estreita com a ordem jurídica
positiva. Muitas vezes o esforço dedutivo do jurista concentra-se na
identificação das normas positivas que, na sua formulação, coincidem
com o resultado da demonstração lógico-formal11. Ou seja, assistimos,
de algum modo, a uma inversão metódica: o jusnaturalista, antes de
iniciar o processo demonstrativo, olha para a realidade da norma posi-
tiva e, só depois, é que vai verificar se o seu conteúdo resiste ou não à
crítica racional. Sacrifica-se, portanto, a pureza do método apriorístico
à necessidade prática de renovar criticamente a ordem jurídica positiva
e a respectiva dogmática. Deste modo, o jusnaturalismo racionalista,
que tinha nascido como um direito de professores (Professorenrecht),
estranho e, de algum modo, oposto à dogmática do ius commune, acaba
por contribuir para uma renovação do aparato jurídico-conceitual à dis-
posição do estudo sistemático do direito positivo. Esta atenção muito
peculiar dedicada ao direito positivo acabou, naturalmente, por estimular
uma investigação mais profunda do seu próprio ser e origem. Se algumas
normas positivas coincidiam com as normas naturais e outras não, isto
significa que durante o respectivo processo genético alguns elementos
irracionais acabaram por contaminar o seu conteúdo. Só um estudo crítico
da história do direito positivo poderia, por isso, esclarecer estas perplexi-
dades. Verifica-se, assim, em alguns discípulos de Christian Wolff uma
certa tendência para valorizar a história do direito como instrumento de
compreensão e renovação do direito positivo e como complemento da
racionalização do mesmo operada pelo aparato conceitual gerado pelo
esforço dedutivo jusracionalista.

 Cf. F. Zwilgmeyer, Die Rechtslehre Savignys..., p. 2.


11
420 CARLOS SARDINHA

b) Johann Stephan Pütter (1725-1807)


Este movimento iniciou-se na Universidade de Gotinga, centro de onde
irradiou, durante o século xviii, a renovação da ciência alemã em geral e
da ciência jurídica em particular, e o seu primeiro grande representante
foi Johann Stephan Pütter (1725-1807)12. Juspublicista13, discípulo de
Wolff durante ano e meio em Marburgo, foi Pütter, pouco tempo depois
da conclusão da sua licenciatura em Direito em 1744, logo chamado, em
1746, a exercer funções docentes na então ainda jovem Universidade de
Gotinga, mantendo-se aí até à sua morte, ocorrida em 180714. A figura de
Pütter é característica deste período de transição entre o jusracionalismo
e a Escola Histórica. A atenção que dedica ao direito positivo enquanto
fenómeno histórico condicionado pelas particularidades impostas pelo
tempo, cultura, religião e geografia15 afastam-no claramente do apriorismo

12
 Cf. G. Marini, Friedrich Carl von Savigny, pp. 14 ss.; N. Hammerstein, Jus und
Historie. Ein Beitrag zur Geschichte des historischen Denkens an deutschen Universitäten im
späten 17. und 18. Jahrhundert, Gotinga: Vandenhoeck & Ruprecht, 1972, pp. 309-374. Essa
renovação traduziu-se numa atenção muito peculiar concedida aos métodos histórico-críticos
no domínio das ciências do espírito (Geisteswissenschaften). Semelhante tendência, estranha ao
ambiente cultural dominante na Alemanha de então, explica-se, de algum modo, pela posição
política muito especial do Eleitorado (principado) de Hannover, a que Gotinga pertencia.
Constituído, desde 1714, em união pessoal com a Grã-Bretanha, a influência cultural deste
país fazia-se sentir aí com nitidez, sendo os grandes autores do empirismo e pragmatismo
ingleses bastante lidos nos círculos eruditos do Eleitorado. Esta abertura espiritual facilitou,
igualmente, a introdução nos meios universitários do pensamento de Voltaire e Montesquieu.
13
  No domínio do direito privado conhecem-se-lhe apenas uns Elementa juris Ger-
manici privati hodierni, Gotinga, 1748, 2.ª ed., 1776. Ver nota seguinte.
14
 Cf. M. Otto, Art. Johann Stephan Pütter, in: Neue Deutsche Biographie 21 (2003),
pp. 1 s. [versão online consultada a 04.04.2014: www.deutsche-biographie.de/sfz75338.
html]; D. Willoweit, Art. Johann Stephan Pütter, in: Handwörterbuch zur deutschen
Rechtsgeschichte, vol. IV (1990), cols. 114 ss.; L. Björne, Deutsche Rechtssysteme im
18. und 19. Jahrhundert (Münchener Universitätsschriften, Juristische Fakultät 59),
Ebelsbach: Rolf Gremer, 1984, pp. 18 ss. e 179; E. Landsberg, Geschichte der deutschen
Rechtswissenschaft, von R. Stintzing, vol. III, 1, pp. 331 ss.; W. Ebel, Der göttinger
Professor Johann Stephan Pütter aus Iserlohn (Göttinger rechtswissenschaftliche Studien
95), Gotinga: Schwartz, 1975, pp. 7 ss., passim; para uma lista dos escritos de Pütter
(publicados e não publicados) ordenados cronologicamente, cf. idem, ibidem, pp. 123 ss.;
sobre a figura e obra de Pütter como publicista, veja-se M. Stolleis, Geschichte des
öffentlichen Rechts in Deutschland, vol. I: Reichspublizistik und Policeywissenschaft,
1600-1800, Munique: C. H. Beck, 1988, pp. 312 ss.
15
  E aqui detecta-se uma manifesta influência de Montesquieu, autor amplamente
citado por Pütter. Veja-se F. Zwilgmeyer, Die Rechtslehre Savignys..., pp. 3 s., espe-
cialmente a nota 7.
HISTÓRIA DO DIREITO E DOGMÁTICA JURÍDICA:
REFLEXÃO METODOLÓGICA 421

lógico-formal do seu mestre. Ao contrário de Wolff, a obra de Pütter


revela a sua descrença na possibilidade ou, sequer, na utilidade de um
direito natural alicerçado exclusivamente na razão e, nessa medida, dotado
de uma validade eterna e imutável16. A sua ideia de direito natural não
é, como em Wolff ou Nettelbladt, auto-subsistente enquanto expressão
da razão pura (reine Vernunft), pois mantém uma verdadeira e própria
ligação genética com o direito positivo. Por outras palavras: o próprio
direito natural é ininteligível quando separado do direito positivo17. Não
se verifica, contudo, uma ruptura decisiva com o jusracionalismo, pois,
como dissemos, o aparato conceitual produzido por esta escola vai conti-
nuar a ser amplamente utilizado. É típica a preocupação de Pütter com a
racionalização do material jurídico-positivo, com a «“richtige Ordnung”
des Rechtsstoffes», nas palavras de Willoweit18: a apreensão do seu con-
teúdo só pode ser feita através das categorias lógico-formais descobertas
pela investigação jusracionalista. Não é por acaso, por exemplo, que este
Autor se recusa a considerar o conjunto inorgânico dos vários direitos
privados existentes na Alemanha como direito privado comum alemão
(gemeines deutsches Privatrecht)19. O conceito de direito privado comum
alemão não podia, enquanto tal, assentar apenas numa base empírica, pois
a multiplicidade dos direitos privados particulares retiraria, desde logo,
todo o valor operativo a semelhante conceito. Só mediante um processo
de abstracção seria possível legitimá-lo cientificamente. E tal abstracção
só seria científica na medida em que se alicerçasse num estudo crítico
dos vários direitos privados vigentes na Alemanha, o que, naturalmente,
implicaria a consideração dos elementos históricos que haviam presi-

16
  Apesar da sua investigação não ter incidido prioritariamente sobre o direito natural,
Pütter colaborou com o seu mestre Gottfried Achenwall (1719-1772), também professor
em Gotinga, na elaboração de uns Elementa juris naturae (1750). Cf. G. Achenwall / J.
S. Pütter, Anfangsgründe des Naturrechts (Elementa Iuris Naturae), hrsg. und überst.
v. J. Schröder (Bibliothek des deutschen Staatsdenkens 5), Frankfurt am Main / Lei-
pzig: Insel, 1995. A parte da obra da sua responsabilidade revela, de algum modo, a sua
nova concepção do direito natural e do método adequado a descobri-lo. Sobre a obra de
G. Achenwall, ver E. Landsberg, Geschichte der deutschen Rechtswissenschaft, von
R. Stintzing, vol. III, 1, p. 354.
17
 Cf. F. Zwilgmeyer, Die Rechtslehre Savignys..., pp. 2 ss.
18
 Cf. Art. Johann Stephan Pütter, in: Handwörterbuch…, col. 115.
19
  Pütter trata da questão no prefácio aos já referidos Elementa juris Germanici
privati hodierni, juntamente com outros problemas de índole metodológica. A isto se
reduz, praticamente, o valor desta obra. Cf. E. Landsberg, Geschichte der deutschen
Rechtswissenschaft, von R. Stintzing, vol. III, 1, pp. 335 s.
422 CARLOS SARDINHA

dido à sua formação. Assim, a densificação de tal conceito implicava,


por exemplo, identificar no direito privado então vigente os elementos
de origem romana recebidos durante o período da recepção, por forma
a conhecer o direito propriamente germânico, alemão20. Mas também,
por isso mesmo, recusa-se Pütter a cair na ingenuidade conceptualista
de considerar válido semelhante direito privado comum alemão. O valor
deste conceito situa-se apenas, por conseguinte, na pura esfera científica,
enquanto instrumento importante para a compreensão dos direitos priva-
dos particulares, esses sim dotados de vigência. Nestes termos, apesar
das diferenças apontadas, continua o pensamento jurídico de Pütter a ser
tributário do sistema de Wolff e Nettelbladt21. Pütter utiliza o conceito
de natureza das coisas (nature des choses, Natur der Sache, Natur der
Dinge)22 para exprimir esta renovada concepção do direito natural, típica
dos finais do século xviii. Algo de fundamental tinha já mudado em rela-
ção ao período anterior. Agora reconhecia-se à fenomenologia própria do
direito positivo, na sua complexidade histórico-cultural, o papel decisivo
na génese do direito. Ou seja: em último termo, o centro de gravidade
reside não já no direito natural, mas sim no direito positivo. Esta preo-
cupação de fundar cientificamente o estudo do direito, aprofundando,
por um lado, a investigação histórico-crítica do direito positivo, e, por
outro, dedicando grande atenção à exposição sistemática do respectivo
conteúdo através de um correcto aparato conceitual, aproxima claramente
Pütter de Savigny e da Escola Histórica. Mas antes há que aludir à obra
do grande discípulo de Pütter e imediato precursor da revolução científica
preconizada por Savigny e seus continuadores: Gustav Hugo.

c) Gustav Hugo (1764-1844)


1. A obra de Gustav Hugo vai contribuir decisivamente para consoli-
dar esta nova tendência metodológica e, deste modo, preparar o caminho
que conduzirá ao advento da Escola Histórica. Em Hugo concorrem
várias circunstâncias pessoais que vão fazer do seu espírito o símbolo

20
 Cf. H. Thieme, Die Zeit des späten Naturrechts. Eine privatrechtsgeschichtliche
Studie, in: ZRG.GA 36 (1936), p. 252.
21
 Cf. W. Neusüss, Gesunde Vernunft und Natur der Sache..., pp. 76 s.
22
  Esta expressão foi, possivelmente, usada pela primeira vez com este sentido por
Montesquieu no prefácio do seu Esprit des Lois, como forma de referir a diferença
do seu método histórico-pragmático em relação ao apriorismo lógico-formal típico da
tradicional abordagem jusracionalista. Neste sentido, H. Thieme, Die Zeit des späten
Naturrechts…, p. 231.
HISTÓRIA DO DIREITO E DOGMÁTICA JURÍDICA:
REFLEXÃO METODOLÓGICA 423

da nova sensibilidade científica. Gustav Hugo23 nasceu em Lörrach, no


Baden, sudoeste da Alemanha. Aí, na chamada Dreiländerecke (à letra,
esquina dos três países), existiu, desde sempre, um ambiente cultural
muito próprio, resultante da confluência da cultura alemã, francesa e
suíça. Concluída a instrução primária na sua terra natal, Hugo frequenta,
primeiro, o ginásio francês de Montbéliard24 (1776-1778), e, mais tarde,
o Gymnasium illustre em Karlsruhe (1779-1782). Adquiriu, deste modo,
uma mentalidade cosmopolita, o que veio favorecer a tendência do seu
espírito para o particular e empírico e a sua aversão pelas abstracções
racionalistas25. Em 1782 inicia os seus estudos jurídicos na Universidade
de Gotinga, concluídos, em 1788, com o doutoramento na Universidade
de Halle. A partir desse mesmo ano, exerce funções docentes em Gotinga,
onde permanecerá até à sua morte, ocorrida em 1844. A formação de
Hugo teve lugar, precisamente, nas duas universidades alemãs onde o
novo espírito histórico-empírico mais firmemente se instalara26. Ao lado
de Pütter, o grande mestre de Hugo em Gotinga não foi um jurista, mas
sim, significativamente, um historiador, Ludwig Timotheus Freiherr von
Spittler (1752-1810)27. Historiador eclesiástico e secular, distinguiu-se
23
 Cf. K. Luig, Art. Gustav Hugo, in: Neue Deutsche Biographie 10 (1974), pp. 26 s.
[versão online consultada a 04.04.2014: www.deutsche-biographie.de/sfz70210.html];
L. Björne, Deutsche Rechtssysteme…, pp. 35 ss. e 179 ss.; A. Buschmann, Ursprung
und Grundlagen der geschichtlichen Rechtswissenschaft. Untersuchungen und Inter-
pretationen zur Rechtslehre Gustav Hugos, Diss., Münster, 1963, pp. 19 ss.; H. Weber,
Gustav Hugo: vom Naturrecht zur historischen Schule. Ein Beitrag zur Geschichte der
deutschen Rechtswissenschaft, Gotinga: Vandenhoeck & Ruprecht, 1935, p. 83.
24
  Situada a sul de Belfort, Montbéliard pertencia então (até 1793) ao Ducado de
Württemberg, sendo conhecida na Alemanha pelo nome germânico Mömpelgard.
25
 Cf. H. Weber, Gustav Hugo: vom Naturrecht zur historischen Schule..., p. 58;
F. Zwilgmeyer, Die Rechtslehre Savignys..., p. 8; G. Marini, Friedrich Carl von Savigny,
pp. 35 s.; também, E. Landsberg, Geschichte der deutschen Rechtswissenschaft, von
R. Stintzing, vol. III, 2, pp. 1 s.
26
  Já vimos que a admiração pela cultura inglesa constituía um traço distintivo da
Universidade de Gotinga. Basta referir que Hugo chegou mesmo a verter para alemão
e a anotar o capítulo da obra de Gibbon History of the Decline and Fall of the Roman
Empire (Londres, 1776-1788) dedicado ao direito romano. A tradução, publicada em
1789, apareceu com o título «Eduard Gibbons historische Übersicht des römischen
Rechts (44. Kap. der Geschichte des Verfalls des römischen Reiches), Übersetzung aus
dem Englischen mit Anmerkungen». Cf. H. Weber, Gustav Hugo: vom Naturrecht zur
historischen Schule…, p. 83.
27
  Cf. D. Fleischer, Art. Ludwig Timotheus Freiherr von Spittler, in: Neue Deutsche
Biographie 24 (2010), pp. 715 s. [versão online consultada a 04.04.2014: www.deutsche-
-biographie.de/sfz80773.html]; E. Landsberg, Geschichte der deutschen Rechtswissenschaft,
424 CARLOS SARDINHA

este Autor pela atenção concedida à crítica das fontes no contexto de


uma interpretação dos factos históricos à luz dos circunstancialismos
sociais, religiosos e geográficos em que se inserem, permitindo, assim,
uma periodização científica da história. Segundo este método, devia o
historiador, antes de mais, investigar rigorosamente as fontes disponíveis,
recorrendo, para isso, ao subsídio da filologia como instrumento indis-
pensável à correcta fixação do seu conteúdo. A história não se podia,
contudo, reduzir a este esforço antiquarista: seria ainda necessário arrumar
os elementos obtidos através do estudo crítico das fontes nas categorias
hermenêutico-racionais que lhe dão verdadeiro significado científico.
Exige-se, portanto, um processo de indução que conduza, verdadeira-
mente, à elaboração da história enquanto interpretação significativa do
passado humano, susceptível de projectar luz sobre o presente e o futuro.

2. A tendência para atacar o jusnaturalismo racionalista, patente no


pensamento de Pütter, vai, com Hugo, aprofundar-se e adquirir uma fun-
damentação filosófica específica. Pütter, com o seu conceito de natureza
das coisas, tinha abalado os fundamentos da concepção jusracionalista
do direito natural. Hugo vai, agora, afirmar expressamente o contributo
decisivo da filosofia kantiana28 para a sua própria concepção de uma
jurisprudência verdadeiramente científica, capaz de superar, simulta-
neamente, as insuficiências do jusracionalismo e do puro empirismo
acrítico e assistemático. Segundo ele, o direito, na sua normatividade
material, não pode derivar, em si mesmo, da razão pura, que é, por isso
mesmo e necessariamente, formal29. O conhecimento da verdade jurídica,
se é inseparável das categorias racionais (a priori) em que se exprime,
não pode, também, prescindir dos dados empíricos (a posteriori) da
experiência social e histórica que fornecem o conteúdo, a matéria do
direito. Assim, ao negar este postulado da razão pura prática (Postulate
der reinen praktischen Vernunft), o direito natural jusracionalista não
passa, segundo Hugo, de vã e absurda especulação, pois acaba, no fim
de contas, por ignorar o problema essencial dos limites da razão pura e
das condições que legitimam a sua utilização: defender a validade de tal

von R. Stintzing, vol. III, 2, pp. 2 s.; G. Marini, Friedrich Carl von Savigny, pp. 18 s.;
37; F. Zwilgmeyer, Die Rechtslehre Savignys..., p. 4.
28
 Cf. L. Björne, Deutsche Rechtssysteme…, p. 37.
29
 Cf. A. Buschmann, Ursprung und Grundlagen der geschichtlichen Rechtswis-
senschaft…, p. 12.
HISTÓRIA DO DIREITO E DOGMÁTICA JURÍDICA:
REFLEXÃO METODOLÓGICA 425

sistema constitui, pois, uma verdadeira impossibilidade científica30. Daqui


resulta que a fundação de uma verdadeira e própria ciência jurídica seria
inseparável do estudo e conhecimento do direito positivo através de um
método que fosse capaz de captar a totalidade do seu ser, ou seja, desde
logo, que respeitasse, as regras próprias do ser jurídico na realidade do
seu fluir histórico. Chega-se, deste modo, à ideia fundamental de que sem
história do direito não pode, em último termo, existir ciência do direito
digna desse nome. E esta tem, por seu turno de consistir numa exposição
sistemática e ordenada dos conteúdos materiais revelados pelo direito
positivo na densidade do seu ser histórico. Deste modo, toda e qualquer
reflexão filosófica sobre o direito tem como único objectivo aprofundar
a compreensão e o domínio do direito positivo através da descoberta dos
conceitos e conexões sistemáticas que o seu conteúdo material consente.
É, precisamente, este programa metodológico que Hugo expõe na sua
obra «Lehrbuch des Naturrechts als einer Philosophie des positiven
Rechts, besonders des Privatrechts31».

3. Este programa metodológico vai ser aplicado por Hugo ao estudo


do direito romano. Ao lado da corrente jusnaturalista que, como sabemos,
dominou a reflexão sobre o direito desde finais do século xvii até finais
do século xviii, a maior parte das obras jurídicas vinda a lume durante
este período tratava do direito romano, podendo-se aqui distinguir duas
tendências distintas. Por um lado, e sob influência da renovada crítica das
fontes postulada pela historiografia e filologia setecentistas, desenvolveu-
-se uma abordagem antiquarista do direito romano. Ao entender-se o
direito romano, antes de mais, como um fenómeno histórico, procura-se,
em primeiro lugar, ordenar criticamente as fontes segundo a época da
sua aparição, interpretando-as à luz dos circunstancialismos específicos
que as enquadram e explicam. Continua-se, assim, um caminho que já
tinha sido iniciado na época do Humanismo com a chamada jurisprudên-
cia elegante (mos gallicus): através do recurso ao subsídio da filologia,
analisam-se criticamente os textos por forma a detectar alterações no

30
 Cf. F. Zwilgmeyer, Die Rechtslehre Savignys..., p. 7 s.
31
 Cf. G. Hugo, Lehrbuch des Naturrechts, Glashütten im Taunus: Auvermann, 1971,
pp. 1 ss. Trata-se de uma reimpressão da quarta e última edição da obra (Berlim, 1819),
publicada pela primeira vez em 1798. Veja-se, igualmente, a introdução de Th. Viehweg,
Einige Bemerkungen zu Gustav Hugos Rechtsphilosophie, pp. III ss.; F. Wieacker,
Privatrechtsgeschichte der Neuzeit, pp. 378 ss.; também, Gustav Hugo, in: G. Köbler,
Lexikon der europäischen Rechtsgeschichte, Munique: C. H. Beck, 1997, pp. 242 s.
426 CARLOS SARDINHA

conteúdo e significado das várias instituições e conceitos jurídicos. Com


base nestas descobertas poder-se-ia, então, distinguir na vida do direito
romano várias fases e fixar o sentido da respectiva evolução. Por outro
lado, temos a orientação dos autores do chamado direito comum que,
seguindo a tradição do escolasticismo medieval (mos italicus), se limi-
tavam a estudar o direito romano enquanto direito vigente, ignorando
ou subalternizando os problemas históricos que a abordagem crítica das
fontes necessariamente postulava. Esta tendência metodológica, então
dominante, correspondeu, na Alemanha, atendendo à recepção tardia do
direito romano aí operada, ao chamado usus modernus pandectarum32.
O método proposto por Hugo procura superar a aporia metodológica que
consistia, precisamente, em separar a investigação crítica da história das
fontes do direito romano do estudo dogmático das respectivas instituições.
No seu entender, só é possível um estudo verdadeiramente científico do
direito romano enquanto direito vigente, positivo quando se conhece
rigorosamente a respectiva evolução histórica, pois só assim seria pos-
sível descobrir a essência do seu ser, o espírito que a ele preside. Seria,
portanto, indispensável elaborar uma história das instituições do direito
romano com base numa história crítica das suas fontes33. Deste modo,
o que distingue Hugo da chamada jurisprudência antiquarista (antiqua-
rische Jurisprudenz) é que, para este Autor, a investigação antiquarista

32
  Sobre a romanística alemã em finais do século xviii, com uma descrição e comen-
tário às obras mais relevantes, veja-se A. Buschmann, Ursprung und Grundlagen der
geschichtlichen Rechtswissenschaft..., pp. 130 ss. Segundo este Autor (cf. p. 134), tais
obras podem ser arrumadas em três categorias: comentários (Kommentaren), exposições
sistemáticas sob a forma de manual (systematische Lehrbücher) e exposições de índole
histórica (geschichtliche Darstellungen). Mesmo as chamadas exposições históricas
do direito romano estavam, na maior parte dos casos, funcionalizadas às exigências
da prática, tendo por objectivo primordial facilitar a compreensão do direito vigente,
com sacrifício, muitas vezes, do rigor histórico-crítico da exposição. Veja-se, ainda,
F. Wieacker, Privatrechtsgeschichte der Neuzeit…, pp. 204 ss.; D. Liebs, Römisches
Recht. Ein Studienbuch, 6.ª ed., Gotinga: Vandenhoeck & Ruprecht, 2004, pp. 114 s.
33
  Refiram-se, por exemplo, as suas obras Commentatio de fundamento successionis
ab intestato (1785); De bonorum possessionibus commentatio (1788); Ulpiani Fragmenta
(1788, 5.ª ed., 1834); Pauli sententiae (1795); Römische Literärgeschichte (1812; 3.ª ed.,
1830); Ius civile anteiustinianeum (1815). Em todas estas investigações utiliza Hugo um
método histórico-crítico, segundo a orientação da Escola de Gotinga. Cf. F. Wieacker,
Privatrechtsgeschichte der Neuzeit…, pp. 380 s. Aspecto comum a estas obras é o valor
decisivo que é concedido ao acesso directo às fontes e respectiva crítica como condição
prévia de qualquer exposição científica sobre o direito. Daqui que alguns destes trabalhos
mais não sejam do que edições críticas de fontes (Ulpiani Fragmenta, Pauli Sententiae).
HISTÓRIA DO DIREITO E DOGMÁTICA JURÍDICA:
REFLEXÃO METODOLÓGICA 427

não é um fim em si mesmo, mas apenas um instrumento – ainda que


indispensável – para compreender o espírito do direito romano e, deste
modo, o próprio direito positivo34.

4. Já sabemos que o jusnaturalismo racionalista, enquanto sistema


autónomo em relação ao direito positivo, deduzido directamente a partir
da razão, constituía um simples direito de professores (Professorenrecht),
que só através da legislação dos monarcas iluminados podia aspirar a
qualquer espécie de positividade, de autêntica vigência. Deste modo,
os jusracionalistas viam na lei a fonte de direito mais importante, pois
apenas através da vontade do legislador seria possível influir sobre a
prática e os práticos, conformando-os às exigências do direito racional.
Ao demonstrar, nos termos vistos, a falsidade dos pressupostos metafí-
sicos em que assentava o jusracionalismo, Hugo afirmou a importância
do costume (Gewohnheitsrecht) enquanto fonte de direito, considerando
que a lei, no seu puro voluntarismo, perturbava a evolução natural do
direito, deformando a essência histórica do seu ser. É típica a crítica que
dirige à febril produção legislativa dos monarcas esclarecidos e à sua
ingénua pretensão de tudo querer regular35.

5. Em suma, podemos afirmar que Gustav Hugo, ao defender a


necessidade de fundar todo e qualquer conhecimento científico do direito
positivo na história do direito e ao valorizar o costume enquanto fonte
de direito, se apresenta como o mais directo precursor de Savigny e da
Escola Histórica. Colocando em causa os fundamentos metafísicos do
jusnaturalismo racionalista, Hugo propõe, assim, um novo método de
compreensão do direito que, sem rejeitar o contributo da investigação
conceitual herdada da época anterior, afirma a necessidade gnoseológica
de a combinar com o estudo do direito positivo, inconcebível, por seu
turno, sem o conhecimento da história das suas fontes e sistema. Estavam,
assim, lançados os fundamentos da ciência jurídica alemã do século xix,

34
  Acerca do antiquarismo e dos seus principais representantes, ver E. Landsberg,
Geschichte der deutschen Rechtswissenschaft, von R. Stintzing, vol. III, 2, pp. 48 ss.
Para as críticas de Hugo a esta tendência metodológica, veja-se, por sua vez, H. Weber,
Gustav Hugo: vom Naturrecht zur historischen Schule..., pp. 37 ss.
35
 Cf. F. Wieacker, Privatrechtsgeschichte der Neuzeit…, p. 379 s.
428 CARLOS SARDINHA

enquanto método simultaneamente filosófico, sistemático e histórico de


compreensão do direito vigente36.

II. O método de Savigny


1. O programa científico delineado por Savigny37 em 1814 no
seu famoso ensaio Vom Beruf unserer Zeit für Gesetzgebung und
Rechtswissenschaft38 e no artigo inicial da já referida Zeitschrift für ges-
chichtliche Rechtswissenschaft39, fundada em 1815, não representa uma
verdadeira inovação face às novas orientações metodológicas típicas do
período de crise do jusracionalismo e patentes, como se viu, nas obras
de Johann Stephan Pütter e, em especial, de Gustav Hugo. Antes se
assiste a um mero aprofundamento e consolidação das bases teóricas do
novo método, que, precisamente, veio a assumir em Savigny a sua mais
perfeita e acabada formulação. Primeiro que tudo, Savigny sublinha que
é impossível separar a ciência do direito em sentido próprio da história
do direito40, ou seja, qualquer conhecimento a priori em matéria jurídica,

36
  Idem, ibidem, p. 381.
37
  A bibliografia sobre Savigny é extensíssima. Veja-se, por exemplo, para além das
obras de G. Marini e F. Zwilgmeyer anteriormente citadas, H. Kiefner, Art. Friedrich
Carl von Savigny, in: Handwörterbuch zur deutschen Rechtsgeschichte, vol. IV (1990),
cols. 1313 ss.; Friedrich Carl von Savigny, in: G. Köbler, Lexikon der europäischen
Rechtsgeschichte..., pp. 519 s.; L. Björne, Deutsche Rechtssysteme..., pp. 9 ss., 60 ss. e
77 ss.; E. Landsberg, Geschichte der deutschen Rechtswissenschaft, von R. Stintzing,
vol. III, 2, pp. 186 ss.; F. Wieacker, Privatrechtsgeschichte der Neuzeit..., pp. 381 ss.;
H. Thieme, Der junge Savigny, in: Ideengeschichte und Rechtsgeschichte. Gesammelte
Schriften (Forschungen zur Neueren Privatrechtsgeschichte 25), vol. II, Colónia / Viena:
Böhlau, 1986, pp. 1057 ss.; idem, Savigny und das Deutsche Recht, in: ZRG.GA 80 (1963),
pp.  1 ss.; G. Marini, Savigny e il metodo della scienza giuridica (Pubblicazioni della
Facoltà di Giurisprudenza della Università di Pisa 13), Milão: Giuffrè, 1966.
38
 Cf. F. C. von Savigny, Vom Beruf unserer Zeit für Gesetzgebung und Rechtswis-
senschaft, 3.ª ed., Heidelberga: Mohr, 1840. A primeira edição, como referimos, é de
1814 e a segunda de 1828. Veja-se G. Marini, Friedrich Carl von Savigny, pp. 91 ss.
39
  Idem, Über den Zweck der Zeitschrift für geschichtliche Rechtswissenschaft, in:
Vermischte Schriften, vol. I, Berlim: Veit, 1850, pp. 105 ss.
40
  É famosa a frase de Savigny na sua recensão à obra de G. Hugo, Lehrbuch der
Geschichte des Römischen Rechts: «Bei dem vorliegenden Werke liegt eine höhere
Idee zum Grunde, nach welcher die ganze Rechtswissenschaft selbst nichts anderes ist,
als Rechtsgeschichte (...)» (= “Ao presente trabalho preside uma ideia mais elevada,
segundo a qual toda a ciência do direito, em si mesma, outra coisa não é senão histó-
ria do direito”). Cf. F. C. von Savigny, Recension des Lehrbuchs der Geschichte des
HISTÓRIA DO DIREITO E DOGMÁTICA JURÍDICA:
REFLEXÃO METODOLÓGICA 429

na linha do jusnaturalismo racionalista, é impossível41. Todo o estudo


científico do direito tem de basear-se, antes de mais, no estudo crítico
da sua história, pois o ser jurídico exprime uma evolução sem cesuras
em que passado e presente mutuamente se imbricam numa comunhão
de significado que juristas e historiadores têm por missão compreender
e revelar42. E este estudo crítico da história do direito significa que a
investigação do passado jurídico deve ser conduzida com base nos métodos
próprios da ciência histórica, recorrendo-se, nessa medida, por exemplo,
ao subsídio da filologia e diplomática como instrumentos indispensáveis
à interpretação científica dos documentos históricos-jurídicos. O objectivo
de tal processo hermenêutico é a fixação – o mais exacta possível – do
alcance e significado das normas jurídicas na época ou épocas e no
meio sociocultural em que vigoraram43. Exige-se, por conseguinte, uma
reconstrução da história dos diversos institutos com base numa análise
crítica das fontes jurídicas e não-jurídicas que permitem conhecer o seu
conteúdo ao longo da história. Ou seja, qualquer estudo do direito positivo
não pode prescindir da riqueza dos métodos histórico-críticos próprios
do chamado antiquarismo, ainda que não se possa esgotar aí44. Efecti-
vamente, para Savigny a investigação antiquarista não pode nem deve
constituir um fim em si mesmo, mas apenas um instrumento ao serviço
da compreensão e aperfeiçoamento do direito positivo45. Se o estudo
histórico-crítico das fontes é condição sine qua non para a construção de
uma verdadeira e própria ciência jurídica, a verdade é que não é condição
suficiente: para além disso, é ainda necessário introduzir um elemento
filosófico no conhecimento empírico-descritivo do passado jurídico.
E aqui Savigny, tal como Hugo, acusa a influência de Kant46. Já vimos que,
nos termos da teoria do conhecimento kantiana, a pretensão de alicerçar

Römischen Rechts von Gustav Hugo, 2te Ausg. Berlin 1799, 3te Ausg. Berlin 1806, in:
Vermischte Schriften, vol. V, Berlim: Veit, 1850, pp. 2 s.
41
 Cf. F. Zwilgmeyer, Die Rechtslehre Savignys..., p. 10.
42
 Cf. Wieacker, Privatrechtsgeschichte der Neuzeit…, p. 389; F. Zwilgmeyer, Die
Rechtslehre Savignys..., p. 10.
43
 Cf. D. Strauch, Recht, Gesetz und Staat bei Friedrich Carl von Savigny, Bona:
Bouvier, 1960, pp. 28 s.
44
  D. Liebs, Römisches Recht..., p. 116; D. Strauch, Recht, Gesetz und Staat…, p. 27.
45
  Sobre o antiquarismo, ver supra.
46
 Cf. F. Wieacker, Privatrechtsgeschichte der Neuzeit…, p. 385; também, H. Kiefner,
Art. Friedrich Carl von Savigny, in: Handwörterbuch zur deutschen Rechtsgeschichte,
col. 1319. Contra, K. W. Nörr, Eher Hegel als Kant. Zum Privatrechtsverständnis im
19. Jahrhundert (Rechts- und staatswissenschaftliche Veröffentlichungen der Görres-
430 CARLOS SARDINHA

a ciência jurídica apenas na razão pura traduz uma verdadeira e própria


impossibilidade metafísica; contudo, não nos podemos esquecer que o
kantismo repudia, de igual modo, o puro e simples empirismo: negar a
existência de categorias racionais a priori (e, nessa medida, puramente
formais) equivale a negar toda a possibilidade de conhecimento, a negar,
em suma, a capacidade do homem construir uma verdadeira ciência
do direito. O direito seria, nesta hipótese, estranho à própria ideia de
racionalidade, antes constituindo um mero produto do acaso histórico.
Savigny manifesta-se claramente contra semelhante cepticismo empírico-
-irracionalista, pois não rejeita a possibilidade de descobrir o direito ideal,
ou seja, racional a partir da investigação metódica do direito positivo na
historicidade do seu ser47. O objectivo da ciência jurídica é, precisamente,
descobrir a especificidade das conexões lógicas que caracterizam cada
instituto e o distinguem dos demais. Torna-se, deste modo, possível, com
base no conhecimento dessas conexões, determinar os princípios básicos
que enformam a essência de cada instituto, construindo-se, assim, os
conceitos jurídicos capazes de os exprimir sinteticamente48. Esta maneira
de ver não implica, porém, a aceitação de princípios ou normas de direito
natural. Tais conceitos ou conexões são sempre expressão da realidade
jurídico-positiva na sua evolução histórica e com ela têm, forçosamente,
de se conformar. A investigação das relações lógicas existentes entre estes
conceitos permite captar abstractamente o conteúdo do direito positivo na
sua forma sistemática49. Savigny procura, contudo, tal como o jusracio-
nalismo, elaborar um sistema jurídico racional e logicamente coerente.
Para Savigny, só partindo da realidade jurídico-positiva e sua história é
possível dar sentido material às reflexões sistemático-conceituais sobre o
direito, pois só assim se garante a respectiva legitimidade gnoseológica.
Em suma, apenas uma combinação da investigação histórico-crítica com
a investigação filosófica pode servir de base a uma autêntica ciência do
direito50. E dessa combinação vai, em rigor, nascer um novo método,
distinto quer da abordagem típica do antiquarismo, quer do apriorismo

-Gesellschaft, Neue Folge 58), Paderborn / Munique / Viena / Zurique: Schöningh,


1991, p. 18 ss.
47
 Cf. F. Wieacker, Privatrechtsgeschichte der Neuzeit..., p. 390; W. Neusüss,
Gesunde Vernunft und Natur der Sache..., p. 112.
48
 Cf. D. Strauch, Recht, Gesetz und Staat..., pp. 42 s.
49
 Cf. P. Koschaker, Europa..., p. 266. Sobre a importância metodológica do con-
ceito de sistema em Savigny, ver D. Strauch, Recht, Gesetz und Staat..., pp. 28 e 30.
50
 Cf. D. Strauch, Recht, Gesetz und Staat..., pp. 27 s.
HISTÓRIA DO DIREITO E DOGMÁTICA JURÍDICA:
REFLEXÃO METODOLÓGICA 431

racionalista. Um bom exemplo é a famosa obra de Savigny sobre a posse51.


Mais do que interpretar o direito vigente, na linha do método dogmático-
-prático próprio do usus modernus pandectarum, ou de reconstruir,
segundo preocupações puramente antiquaristas, a fisionomia da posse
no direito romano52, Savigny procura aplicar nesta matéria o princípio a
priori básico do direito segundo a filosofia kantiana: a vontade autónoma
(liberdade) do sujeito enquanto postulado da razão prática (Postulate
der praktischen Vernunft)53. Com efeito, se Savigny apoia sempre a sua
exposição nas fontes romanas (jurídicas e não jurídicas) de diferentes
épocas – acusando aqui preocupações evidentes de índole histórica – e,
em menor escala, nas fontes e doutrina posteriores54, a verdade é que
parte sempre da vontade de possuir (Besitzwillen, animus possidendi)
enquanto expressão da vontade autónoma do sujeito como princípio que
define a essência do instituto da posse, condicionando a interpretação e
selecção das referidas fontes às exigências de tal concepção. Ao recorrer
primordialmente às fontes romanas justinianeias e pré-justinianeias e, em
medida inferior, à doutrina da época do direito comum, Savigny revela que
a sua intenção não é limitar-se a interpretar o direito vigente segundo um
método dogmático-prático. Por outro lado, na medida em que condiciona
o estudo das fontes romanas a uma determinada concepção do instituto
da posse, influenciada, como vimos, pela filosofia kantiana do direito,
Savigny não procura reconstituir com exactidão histórico-crítica a visão
romana deste instituto55. O verdadeiro intuito de Savigny ao disciplinar
a investigação do material histórico relativo à posse de acordo com o
princípio da vontade de possuir enquanto derivação da autonomia do
sujeito (postulado da razão prática) só pode ser atingir um tratamento
dogmático ideal, metodologicamente absoluto desta figura. Ou seja,
não se procura tanto fundar uma verdadeira e própria história do direito
enquanto ciência que tem por objecto o estudo das experiências jurídicas

51
 Cf. Friedrich Carl von Savigny, Das Recht des Besitzes. Eine civilistische
Abhandlung, 4.ª ed., Gießen: Heyer, 1822. A primeira edição é de 1803. Sobre esta obra,
veja-se G. Marini, Savigny e il metodo della scienza giuridica, pp. 34 ss.
52
 Cf. F. Wieacker, Privatrechtsgeschichte der Neuzeit, p. 387. Ver, também,
G. Marini, Savigny e il metodo della scienza giuridica, p. 40 s.
53
 Cf. W. Neusüss, Gesunde Vernunft und Natur der Sache..., pp. 112 s.
54
  Veja-se, a este respeito, o instrutivo índice de fontes que integra esta obra.
Cf. Friedrich Carl von Savigny, Das Recht des Besitzes, pp. 524-539.
55
 Cf. Friedrich Carl von Savigny, in: G. Köbler, Lexikon der europäischen
Rechtsgeschichte, p. 519.
432 CARLOS SARDINHA

passadas, mas sim utilizar o conhecimento da evolução histórica das


instituições na construção de uma dogmática jurídica nova, cientifica-
mente fundada56. Este aspecto é muito importante para compreender o
significado da concepção savigniana do espírito do povo (Volksgeist)57
enquanto fundamento de todo o direito. É o que vamos ver de seguida.

2. Savigny defende, como vimos, que o ser do direito só se revela


através da sua história. A vontade do legislador, apoiada, ou não, em
qualquer forma de reflexão a priori sobre o direito à maneira do jus-
naturalismo racionalista e das monarquias iluminadas, não pode, nessa
medida, constituir autêntica fonte de direito. O direito forma-se a si pró-
prio segundo um processo comum aos demais elementos que exprimem
a cultura de um povo, como seja a língua ou os usos e tradições popula-
res58. Deste modo, para Savigny apenas o costume deve ser considerado
fonte autêntica de direito, pois só ele manifesta directamente a dinâmica
de produção jurídica inerente ao Volksgeist enquanto conjunto orgânico
das convicções profundas que definem o ser de um povo59. O direito
legislado é, nessa medida, um direito artificial que, por isso mesmo,
pressupõe sempre o substrato material do direito costumeiro. Ou seja,
só o costume pode, em último termo, dar verdadeiro conteúdo jurídico
ao direito legislado. Este, quanto muito, podia contribuir para facilitar
a aplicação do direito costumeiro, resolvendo, por exemplo, dúvidas
suscitadas pela interpretação das respectivas normas, transformando-se,
assim, num instrumento técnico ao serviço da consolidação da juridicidade
revelada através do costume60. A ideia de que a lei enquanto expressão
do poder arbitrário do legislador pode, por si só, criar direito em sen-
tido próprio, é, nesta medida, categoricamente recusada por Savigny61,
56
 Cf. F. Wieacker, Privatrechtsgeschichte der Neuzeit, p. 389.
57
  Sobre o conceito de Volksgeist, cf. K. H. L. Welker, Art. Volksgeist, in: Hand-
buch zur deutschen Rechtsgeschichte, vol. V (1998), cols. 986 ss.; veja-se, também, a
síntese de G. Köbler, Lexikon der europäischen Rechtsgeschichte, pp. 621 s. Não nos
esqueçamos de que foi Puchta e não Savigny quem, pela primeira vez, deu significado
jurídico a esta noção. Só mais tarde, e sob influência do seu discípulo, é que Savigny
a adoptou. Ver infra.
58
 Cf. F. Zwilgmeyer, Die Rechtslehre Savignys..., p. 24; também, G. Dahm, Deuts-
ches Recht..., p. 119.
59
 Cf. F. Zwilgmeyer, Die Rechtslehre Savignys…, p. 18.
60
  Idem, ibidem, pp. 12 s.
61
 Cf. A. Manigk, Savigny und der Modernismus im Recht, Berlim: Vahlen, 1914,
p. 197; igualmente, F. Zwilgmeyer, Die Rechtslehre Savignys…, p. 12.
HISTÓRIA DO DIREITO E DOGMÁTICA JURÍDICA:
REFLEXÃO METODOLÓGICA 433

pois, a ser assim, faltar-lhe-ia a ligação genética ao processo histórico


constitutivo do ser jurídico, sinteticamente expresso através do conceito
de Volksgeist. Convém, contudo, desfazer, desde já, um equívoco muito
comum: a noção de Volksgeist não pode, sem mais, ser interpretada num
sentido puramente empírico-sociológico como, erradamente, se chegou
a considerar62. E isto porque tal interpretação contradiz directamente
os pressupostos metafísico-gnoseológicos do pensamento savigniano.
É certo, como vimos, que, para Savigny, não existe direito fora do pro-
cesso histórico-cultural que o gera e mantém. A fonte, em último termo,
do respectivo conteúdo material reside, pois, nas forças invisíveis que
comandam o devir histórico. Mas também sabemos que, de acordo com
a lógica kantiana, existem certas categorias racionais, certos postulados
a priori sem os quais todo o conhecimento jurídico se revela metafisi-
camente impossível. Ou seja: sem esta dimensão propriamente racional
não pode, igualmente, existir direito, muito simplesmente porque o seu
conteúdo não é sequer pensável. Nesta medida, o direito exprime-se
sempre, forçosamente, sob forma racional, pelo que, em rigor, não existe
à margem da ciência jurídica enquanto investigação filosófico-racional
que tem por objecto o material jurídico-positivo historicamente revelado.
A dimensão racional do jurídico goza, assim, respeitados os respectivos
limites metafísico-gnoseológicos, de uma autêntica autonomia, sendo
através dos conceitos e sistema lógico por ela formulados que o direito
se torna, em rigor, inteligível, científico. A cientificidade do direito acaba,
deste modo, por integrar a sua própria essência, pelo que, faltando esta
racionalidade específica, não existe, sequer, juridicidade. Daqui resulta
que as convicções de um povo em matéria jurídica – no âmbito do
Volksgeist – se revelam, principalmente, através da respectiva produção
científica, nomeadamente da sua literatura jurídica e da legislação elaborada
com base nessa mesma ciência. Assim, em última medida, a convicção
comum do povo (die gemeinsame Überzeugung des Volks) – origem e
fundamento, segundo Savigny, de todo o direito – acaba, precisamente,
por se identificar com a comum opinião dos juristas responsáveis pelo
tratamento científico do direito que, por seu turno, modela e influencia
o conteúdo da legislação63. A isto se reconduz a noção savigniana de

  Chamando a atenção para este ponto, A. Manigk, Savigny..., pp. 197 s, nota 464.
62

 Cf. F. Zwilgmeyer, Die Rechtslehre Savignys..., p. 11.


63
434 CARLOS SARDINHA

Volksgeist64. Temos, assim, que o direito científico, descoberto com base


num método simultaneamente histórico e filosófico, se afirma, à seme-
lhança do jusnaturalismo racionalista, como um direito de professores
(Professorenrecht)65.

3. Estamos, agora, já em condições de compreender em que medida


a escola savigniana se assume como histórica. É evidente que esta
designação, em si mesma, pode facilmente conduzir a equívocos. Na
verdade, o objectivo primordial de Savigny não é, sem mais, como
se viu, o estudo do passado jurídico, dentro de uma lógica puramente
antiquarista. A investigação histórico-jurídica aparece sempre como um
simples instrumento ao serviço da construção de uma ciência jurídica
do direito vigente66. Ora esta cientificidade exprime-se, antes de mais,
no elemento filosófico, lógico-sistemático que enquadra e dá significado
dogmático ao material jurídico-positivo investigado na sua densidade
histórica. Ou seja, o resultado final do método savigniano não é nem o
puro conhecimento histórico-crítico das instituições jurídicas passadas,
nem, sequer, a recuperação, sem mais, destes direitos, com o objectivo
de os aplicar ao presente; é, isso sim, utilizar o estudo histórico do
direito positivo como ponto de partida de uma reflexão filosófica sobre
o direito. Só esta reflexão permite elaborar o direito ideal, científico que,
deste modo, não é, em si mesmo, produto empírico da história, mas sim
de um trabalho lógico-sistemático conduzido a partir do conhecimento
histórico do direito positivo. Daí que, para Savigny, a história do direito
só faça sentido na medida em que contribui para o objectivo principal
de construir uma dogmática verdadeiramente científica, susceptível
de ser posta ao serviço da vida jurídica actual. Trata-se, em suma, de
uma história do direito dogmaticamente orientada. Não é, por isso, de
admirar que o pensamento de Savigny acabe por conduzir, nos seus
discípulos, ao conceptualismo e à chamada jurisprudência dos conceitos

64
  Esta maneira de ver, ausente das primeiras obras de Savigny, integra-se na inflexão
idealista que marca a produção científica dos seus últimos anos, já sujeita à influência
do seu mais famoso discípulo, Puchta.
65
 Cf. P. Koschaker, Europa..., p. 268. Sobre o poder e influência dos professores
de direito na sociedade alemã novecentista, veja-se J. Q. Whitman, The Legacy of
Roman Law in the German Romantic Era: historical vision and legal change, Princeton:
Princeton University Press, 1990, pp. 92 ss.
66
 Cf. P. Koschaker, Europa..., p. 275; G. Dahm, Deutsches Recht..., p. 124.
HISTÓRIA DO DIREITO E DOGMÁTICA JURÍDICA:
REFLEXÃO METODOLÓGICA 435

(Begriffsjurisprudenz). A obra de Puchta (1798-1846), como se sabe, é


elucidativa a este respeito67.

Posição adoptada
1. As concepções de Savigny e da Escola Histórica – podemos dizê-
-lo – moldaram decisivamente a ideia do valor e função da história do
direito que, ainda hoje, predomina entre os práticos e os cultores de disci-
plinas dogmáticas. Na verdade, é comum considerar-se que a legitimidade
da investigação histórico-jurídica depende, de algum modo, da atenção
que dedica aos elementos históricos que integram o direito em vigor68.
O seu objectivo seria, por conseguinte, aprofundar o conhecimento do
direito vigente, estar ao serviço do aperfeiçoamento da respectiva dog-
mática e não apenas reconstruir criticamente as instituições jurídicas
passadas. A investigação histórico-jurídica deveria, por isso, ser cultivada
por verdadeiros e próprios juristas nas faculdades de direito e não apenas
por historiadores. No domínio das ciências histórico-jurídicas esta maneira
de ver é muito comum entre os romanistas, desde logo devido à ligação
existente entre o direito civil vigente e o direito privado romano69, ligação
reforçada, na Alemanha, pela docência conjunta do direito romano e de
uma disciplina dogmática, normalmente o direito civil. Para tanto con-
tribuiu, no pós-guerra, o estado de espírito expresso nas famosas críticas
de Paul Koschaker à por ele designada orientação neo-humanista (neu-
humanistische Richtung)70, crítica tanto mais significativa se recordarmos

67
  Sobre o pensamento e obra deste Autor, veja-se, por todos, F. Wieacker, Pri-
vatrechtsgeschichte der Neuzeit, pp. 399 ss.; também, E. Landsberg, Geschichte der
deutschen Rechtswissenschaft, von R. Stintzing, vol. III, 2, pp. 438 ss.
68
 Cf. P. Landau, Bemerkungen zur Methode der Rechtsgeschichte, in: Zeitschrift
für Neuere Rechtsgeschichte 2 (1980), p. 118. Landau designa esta forma de legitimar
a história do direito enquanto disciplina por «evolutionstheoretische Legitimation»
(= “legitimação evolutivo-teorética”).
69
 Cf. Seb. Cruz, Da «Solutio». Terminologia, conceito e características, e análise
de vários institutos afins, I – Épocas Arcaica e Clássica, Coimbra: Universidade de
Coimbra, 1962, p. XLVI: «Sempre que há uma desorientação entre os civilistas sobre
determinado problema, o Direito Romano tem uma palavra a dizer».
70
 Cf. P.  Koschaker, Europa..., pp. 290 ss. Veja-se, também, C. Sardinha, Die
rechtsvergleichende Erforschung der antiken Kaufvertragspraxis: Bedeutung, Aufgaben
und Methode. Ein Überblick, in: Zeitschrift für Altorientalische und Biblische Rechts-
geschichte 15 (2009), pp. 1 s.
436 CARLOS SARDINHA

que Koschaker foi um dos mais ilustres representantes desta tendência71.


Na verdade, Koschaker compreendia melhor do que ninguém que uma
neopandectística – chamemos-lhe assim – era, por assim dizer, cientifi-
camente impossível, atendendo aos progressos atingidos durante o século
xx pela investigação histórica, especialmente pela crítica das fontes72.
O ataque que dirigiu a esta orientação prendeu-se, antes de mais, com o
receio de que o direito romano deixasse de ser considerado uma disciplina
verdadeiramente jurídica e, nessa medida, pudesse vir a ser retirado dos
curricula das faculdades de direito. São, pois, razões de ordem didáctica
e não tanto científica que motivam Koschaker73. São típicas, a este res-
peito, as suas observações a propósito das dificuldades experimentadas
pelos práticos na consulta e utilização proveitosa das obras de direito
romano produzidas de acordo com os cânones histórico-críticos do neo-
-humanismo. Segundo ele, para um jurista prático consultar com proveito
um tratado de pandectas ou qualquer exposição dogmático-sistemática
do direito romano bastava-lhe apenas conhecer os rudimentos da língua
latina, indispensável à leitura das fontes romanas citadas no texto. Já
a literatura romanística produzida na época neo-humanista exigia, da
parte do leitor, o domínio dos métodos próprios da ciência histórica e
suas disciplinas auxiliares, o que, naturalmente, só estava ao alcance de
um círculo restrito de especialistas74. Defende, assim, o regresso a um
estudo dogmático-prático do direito romano, por forma a garantir o seu
lugar na formação dos futuros juristas.

2. Deve dizer-se que, em geral, esta maneira de ver – e não nos refe-
rimos, como é evidente, apenas aos métodos específicos da escola savig-

71
  Basta recordar os trabalhos por ele publicados no domínio do direito helenístico e
dos chamados direitos cuneiformes. Cf. Th. Folkers, Liste der Werke Paul Koschakers
zur orientalischen Rechtsgeschichte, in: J. Friedrich (ed.), Symbolae ad iura orientis
antiqui pertinentes Paulo Koschaker dedicatae (Studia et documenta 2), Leiden: Brill,
1939, pp. 243 ss.
72
 Cf. Europa..., p. 295.
73
  Efectivamente, afirma Koschaker, referindo-se à tendência neo-humanista: «Kein
Zweifel, daß sie die Prüfung vom Standpunkt der modernen Wissenschaft im Sinne
zweckfreier Wahrheitserforschung weit besser besteht als die historische Schule, die
historische und dogmatische Ziele vermengte» (= “Não há dúvida de que resiste muito
melhor ao exame do ponto de vista da ciência moderna, no sentido de uma investiga-
ção da verdade sem nenhum fim específico, do que a Escola Histórica, que misturou
objectivos históricos e dogmáticos”). Cf. Europa..., pp. 305 s.
74
 Cf. P. Koschaker, Europa..., pp. 308 ss.
HISTÓRIA DO DIREITO E DOGMÁTICA JURÍDICA:
REFLEXÃO METODOLÓGICA 437

niana – se encontra hoje ultrapassada. Aqui é necessário, uma vez mais,


sublinhar que a elaboração de trabalhos histórico-jurídicos deve obedecer,
em primeiro lugar, a preocupações de índole científica e não didáctica.
O objectivo do estudo de um direito passado é, sempre, a reconstrução
rigorosa desse mesmo direito – nos limites consentidos pelas respectivas
fontes – tal como existiu na época ou épocas em que vigorou. Não é,
por isso, legítimo, do ponto de vista científico, ignorar os problemas de
índole histórica suscitados pela interpretação das fontes e contentar-se
com uma imagem artificial do passado jurídico, sob o pretexto de ser
esse o método que melhor serve estudantes e práticos ou o único que se
adequa à sua formação. Para a falta de atractividade dos estudos histórico-
-jurídicos, em especial do estudo do direito romano e dos direitos antigos,
contribuiu, como não podia deixar de ser, a progressiva mas inexorável
decadência da formação humanística entre as novas gerações. Refiro-me,
desde logo, à falta de conhecimento das línguas e cultura clássicas que,
de algumas décadas a esta parte, tem vindo a afectar a quase totalidade
dos juristas e estudantes de direito. Esta amarga realidade, muito mais
nítida e grave do que nos tempos de Koschaker, levou grandes vultos da
ciência histórico-jurídica a tentar justificar a pura e simples existência
destas disciplinas no plano do seu interesse dogmático75, pois temia-se
que a falta de preparação da maioria dos juristas para compreender a
importância cultural de tais estudos conduzisse, inexoravelmente, ao fim
da investigação e docência histórico-jurídicas nas faculdades de direito.
Neste contexto, é, no entanto, oportuno recordar que são quase inexis-
tentes os exemplos de investigações histórico-jurídicas que contribuíram
directamente para a resolução de um problema de direito vigente76. Daqui
podemos concluir que a romanística das últimas décadas falhou um dos
principais objectivos que se propôs: contribuir para melhorar a formação
dogmática do jurista actual, participando, por essa via, no aperfeiçoamento

75
  Exemplo disto são os esforços do grande mestre da papirologia jurídica H.-J.
Wolff na defesa do estudo do direito grego antigo. Cf. H.-J. Wolff, Zur Bedeutung der
altgriechischen Rechtsgeschichte für die Rechtswissenschaft, in: E. von Caemmerer (et
alii) (ed.), ΞΕΝΙΟΝ. Festschrift für Pan. J. Zepos, anlässlich seines 65. Geburtstages am
1. Dezember 1973, vol. I., Atenas / Freiburg / Colónia: Ch. Katsikalis, 1973, pp. 757 ss.
Com efeito, o fenómeno de decadência cultural a que fizemos referência atingiu de forma
particularmente grave a investigação dos direitos antigos não romanos. Deve dizer-se
que, nos dias de hoje, mesmo na Alemanha, o estudo de tais matérias praticamente
desapareceu das faculdades de direito.
76
 Cf. P. Landau, Bemerkungen..., p. 118 s.
438 CARLOS SARDINHA

do direito vigente e respectiva ciência. Imprimir à história do direito em


geral e à romanística em particular uma orientação predominantemente
dogmática não chega, pois, para as legitimar cientificamente77.

3. Do exposto resulta que, em nossa opinião, a história do direito não


é uma ciência jurídica. Na verdade, como se sabe, uma ciência define-se
através do seu objecto e do respectivo método. Afirmar que a história
do direito é uma ciência jurídica implica admitir que partilha o mesmo
objecto e método destas ciências, o que não pode ser aceite. O objecto
das ciências jurídicas é o estudo do direito vigente através de um método
dogmático: visa-se, precisamente, alcançar o domínio da ordem jurídica
em vigor susceptível de permitir a sua expedita e rigorosa aplicação. Já a
história do direito tem como objecto o estudo das experiências jurídicas
passadas, ou seja, dos direitos que já não gozam de qualquer tipo de
vigência. O método a utilizar só pode ser, por conseguinte, o método
histórico, pois, como dissemos logo no início deste trabalho, quando um
determinado direito deixa de vigorar, de ser válido perde o seu carácter
jurídico. O estudo e a investigação desse direito não visam, portanto, a
sua aplicação, mas sim o simples conhecimento do mesmo enquanto
realidade puramente histórica, enquanto exemplo significativo de uma
experiência jurídica passada. Não pode, por conseguinte, aplicar-se aqui
o método dogmático, pois o próprio conteúdo normativo desse direito,
susceptível de ser conhecido através do estudo crítico das respectivas
fontes, perdeu todo e qualquer valor no plano do dever ser, antes se
reduzindo, por efeito da historificação, a uma mera realidade do domínio
do ser, a um puro facto desprovido de juridicidade. A hermenêutica das
respectivas fontes tem, pois, de obedecer a um método histórico-crítico
e não dogmático-prático ou valorativo78. Isto implica, por sua vez, que
não é cientificamente legítimo dogmatizar artificialmente instituições
ou normas pertencentes a direitos já historificados com o objectivo de
lhe conceder uma renovada vigência, assumindo-as, por exemplo, como
modelos para o direito em vigor79, susceptíveis de condicionar a sua
interpretação e aplicação, de resolver problemas discutidos na dogmática
77
  Idem, ibidem.
78
 Cf. F. Wieacker, Die Provinz der Rechtsgeschichte, in: H. Hübner (et alii) (ed.),
Festschrift für Erwin Seidl zum 70. Geburtstag, Colónia: Hanstein, 1975, p. 227.
79
 Cf. P. Landau, Bemerkungen..., p. 118. Este Autor fala, a este propósito, de
«modelltheoretische Legitimation» (= “legitimação modelo-teorética”) da história do
direito enquanto ciência.
HISTÓRIA DO DIREITO E DOGMÁTICA JURÍDICA:
REFLEXÃO METODOLÓGICA 439

moderna. Admitir isto significaria, precisamente, ignorar que cada direito,


cada instituição nasceu e vigorou numa época e circunstancialismo muito
específicos. É este enquadramento que lhe enforma o ser e conteúdo.
O objectivo da investigação histórico-jurídica é, exactamente, conhecer
este enquadramento da forma mais rigorosa possível, pois só assim é
possível reconstruir o significado e o alcance dos direitos passados. Não é
adoptar, consciente ou inconscientemente, um conceito simplista – porque
historicamente acrítico – de validade, como forma de enriquecer a dog-
mática moderna80. Assim, tal investigação não pode nem deve procurar
na dogmática do direito vigente a sua razão de ser enquanto disciplina.
Em bom rigor, a história do direito, atendendo ao seu objecto e meto-
dologia, tem, forçosamente, de ser considerada – com tudo o que isso
implica – parte integrante da ciência histórica. Esta afirmação, que, no
ambiente jurídico-cultural português pode parecer uma novidade, constitui
já – podemos dizê-lo – um dado adquirido na moderna reflexão metodo-
lógica sobre a história do direito. E tanto assim é, que o problema que,
nesta matéria, ainda suscita dúvidas não é tanto a autonomia da história
do direito em relação à dogmática jurídica, mas sim, verdadeiramente,
a questão de determinar qual a especificidade da investigação histórico-
-jurídica no seio das várias disciplinas de índole crítica que integram o
imenso campo da ciência histórica enquanto conhecimento puramente
empírico-crítico do passado humano. Verifica-se, na verdade, uma inter-
secção entre o objecto – e, por conseguinte, o método – das chamadas
ciências empíricas (Realwissenschaften) e a história do direito81. Assim,
por exemplo, não faz sentido tentar compreender o sentido e alcance da
literatura jurídica num dado período histórico sem levar em considera-
ção as características que, nessa mesma época, definem a literatura em
geral. Além disso, a interpretação de um texto histórico-jurídico implica,
forçosamente, um estudo filológico do mesmo, pois só assim é possível
fixar criticamente o alcance do léxico e estilo empregados na definição
do respectivo conteúdo. Ou seja, o objecto em sentido histórico-jurídico
constitui também, simultaneamente, um objecto em sentido histórico-

80
  Neste sentido, P. Landau, Bemerkungen..., p. 119. Veja-se, igualmente, H. Coing,
Aufgaben des Rechtshistorikers (Sitzungsberichte der Wissenschaftlichen Gesellschaft an
der Johann Wolfgang Goethe-Universität Frankfurt am Main 13,5), Wiesbaden: Steiner,
1976, pp. 161 s.
81
  Nesta linha, F. Wieacker, Die Provinz..., pp. 224 s.; idem, Zur Methodik der Rechts-
geschichte, in: R. Strasser (et alii) (ed.), Festschrift Fritz Schwind zum 65. Geburtstag.
Rechtsgeschichte, Rechtsvergleichung, Rechtspolitik, Viena: Manz, 1978, p. 359.
440 CARLOS SARDINHA

-literário e histórico-filológico82, sendo que os resultados da investiga-


ção de cada um destes aspectos se mantêm interdependentes, só assim
contribuindo para o completo esclarecimento do problema histórico em
questão. Deste modo, temos de concluir que o fenómeno histórico-jurídico
não pode ser separado do fenómeno histórico enquanto fenómeno social,
político, económico ou cultural; antes constitui um simples aspecto da
vida humana entendida na complexidade multifacetada do seu ser. Em
que sentido se poderá falar, então, de uma especificidade da história
do direito? Ninguém nega que se torna praticamente impossível levar a
cabo uma investigação frutuosa, numa dada época, do fenómeno social
no seu conjunto sem que se distingam no seu seio determinados sectores
ou áreas de interesse. Dito por outras palavras: é legítimo autonomizar a
história do direito em relação à história social como um todo, na medida
em que é possível e conveniente estudar esse todo social de um ponto de
vista jurídico. Isto pressupõe, naturalmente, que na vida social é possível
identificar um aspecto propriamente jurídico. Em nossa opinião – como
dissemos – este problema não se coloca, verdadeiramente, em relação
ao direito vigente que, na sua juridicidade, postula, necessariamente, um
método dogmático-valorativo de conhecimento83, susceptível de funda-
mentar a sua independência científica. Sabemos, no entanto, que certas
correntes, como o chamado realismo escandinavo ou o sociologismo,
recusam a independência do direito, na sua essência especificamente
valorativa, em relação aos fenómenos políticos, económicos e cultu-
rais que, em dado momento, definem uma sociedade84. É, no entanto,
significativo que mesmo os defensores destas correntes reconheçam a
necessidade de analisar autonomamente o aspecto jurídico da fenomeno-
logia social, embora no âmbito de uma abordagem puramente empírica85.
Resulta, portanto, clara – e por maioria de razão – a importância de uma
perspectiva jurídica no estudo da história social86. É necessário avaliar a
fenomenologia própria das sociedades passadas à luz da sensibilidade e

82
 Cf. F. Wieacker, Die Provinz..., p. 225.
83
  Sem se excluir, naturalmente, mas a título puramente subsidiário, a possibilidade
e utilidade de outras abordagens, nomeadamente de índole empírico-sociológica ou
económica.
84
 Cf. F. Wieacker, Zur Methodik..., p. 360.
85
  Nesta linha, F. Wieacker, Die Provinz..., pp. 226 s.
86
  Idem, ibidem, p. 227.
HISTÓRIA DO DIREITO E DOGMÁTICA JURÍDICA:
REFLEXÃO METODOLÓGICA 441

interesses específicos do jurista87. Com efeito, só o jurista, atendendo à sua


formação peculiar, está em condições de interpretar os factos históricos
nesta perspectiva muito especial. Mas, como é evidente, a sua formação
jurídico-dogmática ou mesmo a sua vivência pessoal do direito, desde
logo a que resulta da sua experiência profissional, tem de se funciona-
lizar, aqui, à metodologia empírico-crítica exigida pela investigação
histórica. Isto significa que tal formação só pode ser utilizada como dado
cultural, importante para moldar a sensibilidade muito própria requerida
pela investigação histórico-jurídica, mas não mais88. A função da histó-
ria do direito é, pois, captar o significado especificamente jurídico dos
diversos factos que integram a história social89. Ou seja, no seio de uma
hermenêutica histórica – com tudo o que isto implica do ponto de vista
metodológico – justifica-se, porém, uma hermenêutica especificamente
histórico-jurídica, capaz de contemplar de forma adequada o aspecto
jurídico dos fenómenos sociais. Estamos, portanto, apenas perante um
ramo da ciência histórica e não mais90.

4. Chegados a este ponto, deve colocar-se a questão: justifica-se,


realmente, que a história do direito seja leccionada nas faculdades de
direito por professores com formação predominantemente jurídica? Qual
a utilidade desta disciplina para os futuros juristas? Já vimos ser ponto
assente a independência da história do direito em relação à dogmática
jurídica enquanto ciência do direito vigente. Contudo, permanece, ainda,
87
 Cf. F. Wieacker, Zur Methodik..., p. 359 s. Segundo este Autor, a autonomia da
história do direito exprime-se, precisamente, «in einem besonderen Erkenntnisinteresse,
nämlich einer spezifischen Frage des Rechtshistorikers an vergangene Wirklichkeit»
(= “num interesse especial de conhecimento, nomeadamente numa interrogação específica
do historiador do direito dirigida à realidade passada”).
88
  Assim, não é legítimo condicionar o estudo dos direitos passados à utilização
de conceitos e categorias dogmáticas modernas. Cf. F. Wieacker, Art. Methode der
Rechtsgeschichte, in: Handwörterbuch zur deutschen Rechtsgeschichte, vol. III (1984),
col. 521. Cf. P. Landau, Bemerkungen..., p. 119; H. Coing, Aufgaben..., p. 161, que
reconhece, igualmente, o contributo que a experiência profissional específica do jurista
pode dar à investigação histórico-jurídica. Ver, também, F. Wieacker, Zur Methodik...,
pp. 369 s. Como afirma este Autor, só na fase inicial da investigação – «in der Phase der
‘Thematisierung’» (= “na fase da ‘tematização’”) – é legítimo, como pura hipótese de
trabalho, utilizar conceitos jurídicos modernos; logo que o progresso do trabalho revele
o anacronismo de tais categorias, deve o historiador do direito, imediatamente, esforçar-
-se por descobrir os conceitos jurídicos adequados à descrição da realidade estudada.
89
 Cf. F. Wieacker, Die Provinz..., p. 225.
90
 Cf. H. Coing, Aufgaben..., p. 155; P. Landau, Bemerkungen..., p. 119.
442 CARLOS SARDINHA

a dúvida: deve a docência e a investigação no âmbito desta disciplina


ser confiada a juristas ou a historiadores? Esta questão não é tão des-
propositada como, à primeira vista, poderá parecer91. Na verdade, a total
historificação desta disciplina92 implica, como vimos, o domínio dos
métodos de trabalho próprios da ciência histórica, o que, naturalmente,
não está ao alcance da maioria dos juristas. Com efeito, a pura e simples
formação técnico-jurídica ou dogmática não chega para conduzir uma
investigação histórico-jurídica séria e rigorosa, segundo os padrões da
ciência moderna. Mas implicará isto, forçosamente, retirar aos juristas a
responsabilidade de investigar e ensinar nesta área? Parece-nos que não.
Como atrás dissemos, justifica-se autonomizar a história do direito da
história social em geral apenas na medida em que a dimensão jurídica
dos fenómenos histórico-sociais deve ser objecto de um esforço cien-
tífico específico. Ora este esforço pode, com vantagem, ser conduzido
por juristas, pois, como vimos, são estes quem, antes de mais, possui a
sensibilidade cultural necessária à consideração do aspecto jurídico da
vivência social, mesmo no âmbito de uma investigação empírico-crítica
e não dogmático-valorativa. De qualquer modo, resulta clara a necessi-
dade de proporcionar uma formação adequada aos juristas que assumam
responsabilidades na investigação e ensino histórico-jurídicos93. Assim,
quem quiser dedicar-se ao estudo do direito romano deve adquirir um
domínio da língua latina que lhe permita mover-se com um mínimo de
desenvoltura nos textos das fontes. Aconselhável – mas não estritamente
necessário – é o conhecimento básico do grego. Além disso, o romanista
deve conhecer a história romana e, se possível, a greco-helenística.
O ideal seria estudá-las em conjunto, segundo o modelo alemão de uma
Alte Geschichte (história antiga), em que, precisamente, a Antiguidade

91
  Na Suécia, por exemplo, não é necessário possuir formação jurídica para se poder
leccionar história do direito. A questão, contudo, não é pacífica. Esta informação foi-me
transmitida através de e-mail (14.05.2014) pelo Prof. Mats Kumlien, Professor de História
do Direito na Univ. de Uppsala. Veja-se, também, P. Letto-Vanamo, Der praktische
Nutzen der Rechtsgeschichte – Eine finnische Variante zum Thema. In: J. Eckert (ed.),
Der praktische Nutzen der Rechtsgeschichte: Hans Hattenhauer zum 8. September
2001, Heidelberga: C. F. Müller, 2003, pp. 315 ss. Entre nós, na Faculdade de Direito
da Universidade Nova de Lisboa, as disciplinas histórico-jurídicas (História do Direito e
História das Instituições) são regidas por uma historiadora de formação. Ver www.fd.unl.
pt/servicos/docentes/Docentes_Principal.asp?Docente=ACS (CV consultado a 04.04.2014).
92
 Cf. P. Landau, Bemerkungen..., p. 119.
93
  Neste sentido, sublinhando a importância destas disciplinas auxilares, principalmente
as de índole filológica, ver F. Wieacker, Art. Methode der Rechtsgeschichte…, cols. 520 s.
HISTÓRIA DO DIREITO E DOGMÁTICA JURÍDICA:
REFLEXÃO METODOLÓGICA 443

Clássica é abordada de um ponto de vista predominantemente histórico-


-cultural e não filológico-literário (o domínio básico das línguas clássicas
é pressuposto)94. A investigação dos direitos cuneiformes implica, por
sua vez, conhecimentos do acádico e do sumério95. Destes exemplos
resulta que, para investigar seriamente no âmbito histórico-jurídico,
não chega, de maneira nenhuma, uma formação simplesmente técnico-
-jurídica ou dogmática; é preciso, ainda, adquirir os conhecimentos
histórico-filológicos adequados a uma hermenêutica verdadeiramente
científica das fontes históricas96, única capaz de permitir a descoberta
e compreensão dos tesouros jurídicos do passado. Só assim é possível
contribuir, efectivamente, para o progresso científico, no âmbito de uma
docência activa e esclarecida. Ao contrário do que se poderá pensar, o que
deixámos dito não implica encerrar a história do direito no Olimpo dos
sábios, transformando-a, assim, numa disciplina de curiosidades antiqua-
ristas, de velharias mais ou menos interessantes, mas, verdadeiramente,
inúteis para o jurista prático e sua formação. Com efeito, este problema
da utilidade da história do direito é uma questão que persegue, desde há
muito, a disciplina. Também na Alemanha se notam, desde há alguns
anos a esta parte, sinais preocupantes97. Apesar das condições de trabalho
e oportunidades de formação oferecidas, nesta área, pelas universidades
alemãs a alunos e investigadores continuarem a ser bastante boas, tem
vindo a decrescer o interesse das novas gerações pelos estudos histórico-
-jurídicos. São poucos os estudantes de direito que decidem frequentar

94
  Nas universidades alemãs o local adequado à realização destes estudos é o Institut
für Alte Geschichte e não, como resulta do exposto, o Institut für Klassische Philologie.
95
  Na Alemanha é possível obter estes conhecimentos através das disciplinas Einführung
in das Akkadische e Einführung in das Sumerische, ou equivalentes, e dos seminários
oferecidos pelo Institut für Altorientalistik (por vezes designado por Institut für Assyriologie
ou Institut für Altorientalische Philologie). O texto do Código de Hammurabi, excluído
o prólogo e o epílogo, serve, habitualmente, de base ao estudo introdutório do dialecto
babilónico antigo, forma clássica da língua acádica.
96
  Sobre o carácter essencialmente hermenêutico das ciências históricas e, por conse-
guinte, da história do direito, ver F. Wieacker, Zur Methodik..., pp. 361 ss. Mais do que
descobrir esquemas rigorosos de causa-efeito, é função da história reconstruir o ser do
homem no tempo partindo da interpretação dos textos e sinais não linguísticos herdados
do passado, no contexto de uma abordagem, por isso mesmo, não apenas semântica,
mas também semiótica.
97
 Cf. J. Eckert, Die Krise der Rechtsgeschichte und die Frage nach ihrem Nutzen
für die Theorie und die Praxis des Rechts. In: J. Eckert (ed.), Der praktische Nutzen der
Rechtsgeschichte…, pp. 121 ss.
444 CARLOS SARDINHA

os seminários histórico-jurídicos, único lugar em que se torna possível


adquirir uma formação verdadeiramente científica nesta área. Daí que,
mesmo no ambiente cultural alemão, se tenha sentido necessidade de
reafirmar o papel insubstituível da história do direito na formação dos
futuros juristas. Repare-se que a função da história do direito enquanto
disciplina não é contribuir para a formação especificamente dogmática
dos alunos, mas sim alargar os seus horizontes numa área culturalmente
relevante para o jurista. Assim, por exemplo, o estudo do direito romano
não pode nem deve ser justificado por referência à dogmática do direito
vigente, nomeadamente do direito privado. O direito romano deve ser
apresentado como um exemplo significativo de uma experiência jurídica
passada, elemento importante da herança jurídico-cultural da Humanidade
em geral e do Ocidente em particular, especialmente dos países com sis-
temas jurídicos pertencentes à família romano-germânica. Daqui resulta
que todas as áreas do direito romano – e não apenas certos capítulos do
direito privado – podem, legitimamente, constituir objecto de investigação
e ensino nas faculdades de direito. Isto implica, por seu turno, que não
é possível negar a utilidade do estudo de outras experiências jurídicas
relevantes do passado humano, desde logo porque só assim é possível
compreender a riqueza do direito enquanto fenómeno histórico-cultural
que é98. A necessidade de conservar a história do direito no âmbito das
faculdades de direito parece, por isso, fora de questão, sem que seja
necessário regressar à tradição savigniana de uma história do direito
dogmaticamente orientada99. O contributo específico desta disciplina
para a prática jurídica dos nossos dias depende, exactamente, da afir-
mação da sua natureza histórica. Ou seja, a história do direito contribui
utilmente para a formação do jurista na exacta medida em que o põe em

98
 Cf. H.-J. Wolff, Zur Bedeutung..., p. 757. Refiro-me, a título de exemplo, ao
direito grego antigo e aos chamados direitos cuneiformes. Igualmente importante, neste
contexto, é o estudo do direito hebraico antigo.
99
  Neste sentido, J. Brand, «Es ist verboten, alt zu sein». In: J. Eckert (ed.), Der
praktische Nutzten der Rechtsgeschichte..., p. 67. Os efeitos desta orientação continuam,
no entanto, a fazer-se sentir nos nossos dias. Com efeito, a investigação histórico-jurídica
nunca se conseguiu libertar totalmente da sua ligação preferencial ao direito privado,
descurando-se outros importantes sectores da história jurídica, nomeadamente a história
do direito público. Sintoma claro da persistência deste modelo é o facto, já apontado,
de, na Alemanha, se acumular a docência da história do direito com o ensino do direito
civil. Outra consequência nefasta deste estado de coisas é, por exemplo, a dificuldade
que a maioria dos juristas sente em compreender a importância do estudo de outras
experiências jurídicas da antiguidade distintas da romana.
HISTÓRIA DO DIREITO E DOGMÁTICA JURÍDICA:
REFLEXÃO METODOLÓGICA 445

contacto com aspectos relevantes das experiências jurídicas passadas.


Ora isto só é possível quando se respeita, na respectiva investigação,
o rigor histórico-crítico; quando, em suma, o direito vigente pode ser
autenticamente comparado com os direitos passados. Esta comparação
de normas, métodos de trabalho, soluções jurisprudenciais só se revela
profícua quando o respectivo circunstancialismo histórico (social, polí-
tico, económico...) é adequada e rigorosamente conhecido, pois apenas
assim pode o jurista moderno utilizar conscientemente – segundo uma
hermenêutica contemplativa e não aplicativo-dogmática100 – o rico espólio
cultural do passado jurídico, não só no âmbito jusprivatístico, mas em
todas as áreas do direito, incluindo o domínio da política legislativa. Em
suma: à semelhança do que sucede com a história em geral, a história do
direito é útil na medida em que, também ela, é, à sua maneira, magistra
vitae101. E é deste magisterium vitae que os juristas dos nossos dias não
podem, de modo nenhum, ser privados.

100
 Cf. F. Wieacker, Art. Methode der Rechtsgeschichte..., cols. 524 s.
101
  Segundo a conhecida sentença ciceroniana. Cf. M. Tullius Cicero, De Oratore,
2, 9, 36: «Historia vero testis temporum, lux veritatis, vita memoriae, magistra vitae.»

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