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De la ley al derecho. México: Porrúa, 2003.

El iusnaturalismo actual - De M. Villey a J. Finnis. México: Fontamara, 2003.


Interpretación constitucional. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1993.
La injusticia extrema no es derecho - De Radbruch a Alexy. Buenos Aires: La
Ley - U.B.A., 2004.
Las causas dei derecho. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1983.
Los princípiosjurídicos - Perspectivas jurisprudenciales. Buenos Aires: Depalma,
2000.
Perspectivas iusfilosóficas contemporâneas - Ross-Hart-Bobbio-Dworkin-Villey.
Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1991.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Vigo, Rodolfo Luis


Interpretação jurídica : do modelo juspositivista-legalista do século XIX às novas
perspectivas / Rodolfo Luis Vigo ; apresentação do Prof. Luiz Carlos de Azevedo ;
tradução de Susana Elena Dalle Mura ; revisão e notas de Alfredo de J. Flores. - São
Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2005.

Título original: Interpretación jurídica (Del modelo iuspositivista legalista


decimonónico a las nuevas perspectivas)
ISBN 85-2O3-2723-O

1. Hermenêutica (Direito) I. Azevedo, Luiz Carlos de. II. Flores, Alfredo de J. III.
Título.
05-1217 CDU-340.132.6

índices para catálogo sistemático: 1. Interpretação jurídica : Direito 340.132.6


RODOLFO LUIS VIGO

INTERPREIAÇÃO
JURÍDICA
Do modelo juspositivista-legalista
do século XIX às novas perspectivas

Apresentação
Luiz Carlos de Azevedo

Tradução
Susana Elena Dalle Mura

Revisão e notas
^redo de J. Flores

REVISTA DOS TRIBUNAIS


INTERPRETAÇÃO JURÍDICA
Do modelo juspositivista-legalista
do século XIX às novas perspectivas

Rodolfo Luís Vigo

Apresentação: Luiz Carlos de Azevedo


Tradução: Susana Elena Dalle Mura
Revisão e notas: Alfredo de J. Flores

© desta edição: 2005

EDITORA REVISTA DOS TRIBUNAIS LTDA.


Diretor Responsável: Carlos Henrique de Carvalho Filho

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Impresso no Brasil (05 - 2005 )

ISBN 85-203-2723-0
Justificadamente
para Marita,
com exclusividade
APRESENTAÇÃO

1. Em outra oportunidade, dizíamos que embora seja próprio da ci­


vilização enfrentar a diversidade dos impulsos provocados pelo progresso,
nunca estes seriam de tal modo extremados quanto aqueles surgidos a par­
tir do final do século XIX, para ganhar ainda maior intensidade no curso do
século XX: neste longo entreato, o ambiente social conheceu profundas
alterações, decorrentes das descobertas científicas, do avanço tecnológi­
co, das novas modalidades de comunicação e da expansão e controle das
fontes de energia; mas, a par destas, somaram-se o entrechoque das idéias
políticas, a falência dos antigos regimes, a rebelião e conquistas das “mas­
sas populares”, o resultado catastrófico de uma Primeira Guerra Mundial,
à qual seguir-se-ia outra mais contundente ainda; no decorrer dessas expec­
tativas e perplexidades, foram se desfazendo velhos hábitos, abriram-se
novas opções de trabalho, criaram-se visões tanto positivas quanto negati­
vas, tanto arrebatadoras quanto simplesmente fantasiosas da realidade; nessa
escalada, a atração pela cidade fez despejar nos centros urbanos um contin­
gente humano inesperado, causando endemias provocadas pela incontida
expansão demográfica; e a deterioração ambiental constituiu uma das con­
sequências lógicas deste estágio, impondo regras tendentes a resguardar um
mínimo de condições à qualidade de vida.
A complexidade de todos estes fatores e dos muitos mais que se
lhes seguiríam teria de refletir sobre as relações socioeconômicas e, por
conseqüência, mais ainda, nas relações jurídicas e nos quadros legife-
rantes que lhes correspondessem, mesmo porque “democracia e tecno­
logia avançam mais depressa que as instituições necessárias para sus­
tentá-las” (R. Kaplan).
2. Visualizando esta seqüência; e enfrentando todos os problemas
e consequências que dela decorreram, no campo do direito, e, mais espe­
cificamente, no que diz respeito à interpretação jurídica, o Professor Ro­
dolfo Vigo traz uma análise profunda, oportuna e de indiscutível utilida­
de para a compreensão deste último tema, ao se estender sobre estes três
8 INTERPRETAÇÃO JURÍDICA

importantes fatores, que caminham correlatos: direito, justiça e seguran­


ça jurídica: só temos uma verdadeira manifestação do direito “quando se
alcança aquele mínimo de justiça por parte de um conjunto de princípios
e normas, o qual atribui ou reconhece direitos e deveres aos membros da
sociedade ou ainda define as condutas que podem, devem ou não devem
ser feitas. Agora, esse direito que se constituiu como tal desde a assimila­
ção da ciênciajurídica, ou seja, daquilo que o especifica desse modo, pode
alcançar diversos graus de perfeição ou acabamento. E precisamente aqui
que se inscreve a segurança jurídica, pois esta representa um fator que
modernamente é decisivo para estabelecer o melhor ou pior direito”.
Na verdade, de há muito a ciência do direito e a técnica hermenêuti­
ca se afastaram do critério interpretativo tradicional, aprisionado pelo texto
legal, para ceder e se ajustar às novas exigências sociais, culturais, políti­
cas e econômicas que foram se sucedendo no tempo. Se o direito não acom­
panha as transformações ocorridas no substrato social - e que tantas fo­
ram no período mencionado - e se insiste em permanecer na estrutura
formal do dispositivo, direito já sequer será e tomar-se-á inútil, afastado
da realidade presente, contraditório até.
Nos vários ensaios que compõem esta meritória contribuição para
uma compreensão atual da questão exegética, serão examinadas, grada­
tivamente, primeiramente as teorias hoje praticamente repelidas, referen­
tes ao sistema fundado no direito positivista, normatista-legalista e juri-
dicista: para os que o seguiam, a interpretação jurídica não era senão a
“reconstrução do pensamento ínsito na lei” (Savigny). Não criava nada
novo, o direito estavajá feito, ojuiz convertia-se num “ser inanimado, que
repetia as palavras da lei” (Montesquieu). E esta chegava a ponto de esta­
belecer, por exemplo, máximos e mínimos para as sanções, de acordo com
a maior ou menor gravidade da infração, impedindo o magistrado de ir
além destes ou daqueles, quaisquer que fossem as circunstâncias que
houvessem contribuído para a sua consumação.
Mostrava-se evidente, contudo, que diante daqueles novos impul­
sos que estavam a sacudir a passagem dos séculos, e que se acentuaram
no vigésimo, uma posição de tal modo hermética não resistiría a uma re­
flexão mais ponderada em termos de interpretação, mesmo porque, além
da dimensão reguladora, muitas outras convergiam para a sua construção,
traduzidas no exame dos fatos, dos valores, da linguagem, da lógica.
Daí que a teoria contemporânea, como assinala o Professor Vigo,
colocou de manifesto que toda tarefa dos juristas nos seus distintos mo­
APRESENTAÇÃO 9

dos de operar haverá de determinar, necessariamente, “a solução que re­


clama um caso concreto”. As diferenças entre o legislador e o juiz são
quantitativas: aquele se dirige a casos e pessoas indeterminadas, enquan­
to este atende e decide sobre casos e pessoas determinadas.
“Essa busca do realismo e de que o direito cumpra o seu fim intrín­
seco, insuflou todo o processo de um sentido pragmático, no qual o juiz
se converte num ativo diretor do litígio e tenta a solução justa do mesmo.”
Se o intérprete continua recorrendo às normas, servem-lhe, também,
para tanto, os princípios gerais do direito, a eqüidade, os costumes, a pos­
sibilidade de construir o seu convencimento e a sua versão, à luz dos fatos
colhidos e investigados, para finalmente, com a prestação jurisdicional
da qual se incumbe, realizar a tarefa que dele espera a sociedade.
3. Em época que coincide com vários dos trabalhos aqui tão bem
desenvolvidos pelo autor, participando de simpósio que reuniu alguns te­
mas de Direito Natural, tivemos a oportunidade de fornecer alguns subsí­
dios que se afinam com esta visão moderna da interpretação jurídica, em
especial no tocante à responsabilidade do juiz na elaboração e conclusão
de seu pensamento, os quais ousamos aqui relembrar, já que por mais de
uma passagem, naanálise das teorias de DworkineMichelVilley.bemcomo
no capítulo dos princípios gerais do Direito, o Professor Vigo reconhece
que o problema “está inevitavelmente vinculado ao jusnaturalismo”.
Com efeito, embora no desenrolar do trabalho interpretativo com­
pareçam princípios jurídicos positivos setoriais ou sistemáticos, há “ou­
tros direitos e deveres que o homem infere a partir da natureza humana;
neste último caso, estamos no campo do chamado direito natural”.
E acrescenta o autor: “Quando falamos de princípios de direito na­
tural, queremos aludir a esses âmbitos da justiça natural que determinam
e exigem certas ações ou omissões sociais. Eles constituem o núcleo
mesmo do jurídico inscrito na natureza humana, mas, por sua vez, reque­
rem muito das normas e princípios que integram o direito positivo, seja
tanto para adaptar-se às circunstâncias históricas, como para determinar
o meio escolhido entre os diferentes possíveis, ou ainda, para ganhar em
clareza e assegurar uma maior eficácia social”.
“Isto é, nota-se que o direito natural tem limites, obscuridade e in­
suficiências que exigem essas novas determinações estabelecidas pelos
homens, no que consiste o direito positivo, cujo fim é a ordem justa a es­
tabelecer-se nessa concreta sociedade política que rege”.
10 INTERPRETAÇÃO JURÍDICA

Retomando ao que então dizíamos, ao tratar dajurisprudência, e entre


os muitos sentidos que a palavra carrega, levantávamos aquele que de­
signa os métodos de interpretação e aplicação do direito: sob tal aspecto,
encontramos tanto a jurisprudência dos conceitos como a dos interesses
ou valores legais (Cabral de Moncada).
A primeira, consiste na interpretação das leis sob critério exclusiva­
mente logicista; por isto, preserva o culto da lei e representa o resultado
estrito da vontade do legislador. Estaríamos diante de um verdadeiro for­
malismo dogmático.
Para a segunda, no entanto, não basta a dedução lógica dos con­
ceitos: o juiz deve ir além, perquirindo sobre o interesse ou interesses
que o legislador pretendeu realmente estabelecer e proteger. E estes in­
teresses devem se encontrar em consonância com os fins e valores per­
tencentes ao meio social.
O juiz não é autônomo; e, muito menos, computador; não é produto
da cibernética nem instrumento desta; por isso, haverá de levantar da massa
de interesses postos a exame tanto aqueles relativos à natureza material,
que impulsionaram as pretensões em conflito, quanto aqueles que se re­
lacionam com os valores de caráter socioambiental, espiritual e cultural,
e que igualmente as provocaram.
Neste passo, ao juiz não bastará apenas deduzir, observando rigoro­
samente os silogismos da lógica. Sem desprezar o emprego do raciocínio
e do método no trabalho, a sua missão não se reduzirá a um mero exercí­
cio de técnica jurídica, porque o seu encargo se reveste de muito maior
importância e seriedade e, por isso mesmo, se toma muito mais gratifi-
cante; pois ao juiz caberá ^função de aproximar, tanto quanto possível, o
direito da vida.
Disse Del Vecchio que o direito tem por fim realizar o ideal ético na
vida social.
Nesse contexto, o empenho que o direito natural vem desenvolven­
do, pode-se afirmar, teve início com o próprio despertar da consciência
crítica da humanidade. E esta luta prosseguirá, na medida em que nos
depararmos com os desacertos, injustiças e imperfeições contidas nas
leis elaboradas por aqueles incumbidos de estabelecê-las e impô-las aos
cidadãos.
Neste ponto, vale recorrer ao pensamento de São Tomás de Aquino
quando este se estende sobre a lei e o direito natural: a lei se divide em três
APRESENTAÇÃO 11

estágios - é eterna, natural e humano-positiva. A primeira coloca-se “no


plano da divina sabedoria, enquanto dirige todas as ações e movimentos”.
Não pode ser conhecida diretamente pelo homem, por isso que a sua ma­
nifestação se revela pela lei natural; isto é, a “lei natural rege os movimentos
de cada uma das pessoas deste mundo, de acordo com a lei eterna”.
Assim, a lei natural constitui “a participação da lei eterna na cria­
tura racional”; derivando da lei eterna, manifesta-se pela razão natural,
de sorte que permite ao homem distinguir o que é bom e o que é mau. E
se manifesta, também, pela natureza humana, por suas tendências e in­
clinações.
Mas, a par da lei natural, imprescindível se mostra o concurso da lei
positiva; a lei natural abrange princípios e normas de caráter geral, en­
quanto a lei positiva, emanada da autoridade, procurará encontrar solu­
ção para hipóteses mais restritas e concretas, espancando as dúvidas e
imprecisões que a primeira não pôde resolver. E porque proveniente da
autoridade, a lei positiva dispõe de força coatíva, destinando-se a assegu­
rar a ordem e a justiça na sociedade onde é imposta.
Não obstante, a lei humano-positiva há de estar em consonância com
a lei natural; e, em terceiro estágio, com a lei eterna; porque, se estiver
contra, não será lei, mas apenas uma aparência de lei.
É o que acentua o Professor Vigo: “o direito positivo confirma, es­
clarece, garante e completa o “seu” natural, mas, na medida em que con­
tradiz o justo natural, perde juridicidade intrínseca, com o risco de ficar
reduzido a uma juridicidade meramente extrínseca e aparente”.
Mas, há ainda um outro ponto sobre o qual é preciso refletir o legis­
lador, ao estabelecer as leis para os cidadãos, há de agir naturalmente, isto
é, de acordo com a prudência, de conformidade com a sua aptidão habi­
tual, a qual irá capacitá-lo ao exame das realidades fáticas - posto que de
forma ainda abstrata -, proporcionando-lhe condições para distinguir e
determinar o que é bom e o que é mau; o que é permitido e o que é proibi­
do. E a norma positiva resultará deste “saber prudencial”, de sua aptidão
racional; no entanto, se esta norma colocar-se em contradição com as
exigências da justiça natural, se afrontar a ética ou a moral, não será ela,
então, senão uma amostra enganosa da lei.
E quanto ao juiz, encarregado de decidir as causas segundo as leis
dispostas pelo legislador, também ele se encontra sob o impacto das mes­
mas influências, de tal modo que, se os dizeres da lei contiverem injusti­
12 INTERPRETAÇÃO JURÍDICA

ça flagrante, não poderá curvar-se a sua execução; caber-lhe-á resistir, pois


não será possível “aplicar uma lei que violente suas convicções”.
Mas a verdade é que leis de tal modo desconformes com o ideal do
direito - e da justiça - só surgem em circunstâncias excepcionais, resul­
tando de situações igualmente incomuns; assim, por exemplo, quando um
determinado governo, a pretexto de preservação de suas instituições, passa
a reprimir, legalmente, este ou aquele grupo étnico que no país habita.
E é verdade, também, que, quando isto acontece, o juiz prudente e
munido daquela aptidão racional e clara não precisará deixar o cargo:
porque, resta evidente, a esta altura, deste cargo já terá sido afastado.
Mas o problema maior não se situa na excepcionalidade, mesmo
porque, como se viu, e ainda bem, tais aberrações não se repetem amiu-
dadamente. A questão de maior relevo se apresenta quando a lei é lacuno-
sa ou insuficiente, porque ficou parada no tempo, enquanto outros inte­
resses sociais se foram colocando, de tal modo que há de ser o problema
visualizado de outra forma, para que o caso concreto não se veja desam­
parado do seu animo.
Em tais casos, muito mais comuns, não poderá o juiz nem resolver
livremente - e tão só de acordo com o seu critério pessoal e subjetivo de
justiça - nem deverá ficar irremediavelmente adstrito e jungido aos limi­
tes da lei positiva vigente, nem à conclusão fatal do silogismo, nem à ex­
pressão particular de um conceito vago e impreciso de justiça.
Aqui é que deverá prevalecer o trabalho laborioso e incansável do
magistrado, do qual resultará nfrónesis, a prudência de sua conclusão,
produto de sólida elaboração ético-jurídica, fundamentada tanto na lei
quanto nos costumes, nos princípios gerais do direito e na eqüidade.
4. Passando a outros temas que com a tônica fulcral do trabalho se
relacionam, cuida o Professor Vigo, entre outros, da interpretação jurídi­
ca dos contratos; e, mais adiante, das “sentenças plenárias”, as quais se
aproximam da nossa uniformização de jurisprudência.
< a) Quanto ao primeiro, expõe o autor que no trabalho hermenêuti­
co a desenvolver, é preciso esclarecer o que ficou efetivamente conven­
cionado entre as partes: “o que, de modo verossímil, as partes entende­
ram ou puderam entender”. E, nesse ponto, poderão dissentir quanto o
“sentido literal dos termos”, ou seja, a verdade declarada; e, por outro lado,
“a intenção comum”, a vontade real.
APRESENTAÇÃO 13

A solução se encontra, como lembra, no antecedente romano, pela


voz de Papiniano: “admite-se que nos convênios há de se atender mais à
vontade dos contraentes do que às palavras” (D. 50,16,219); o ato jurídi­
co deve se ajustar às normas de direito e à vontade do agente, integrando-
se esta ao próprio conceito daquele; assim tem ocorrido por séculos, con­
sagrada a máxima no inciso l.° do art. 218 Código Comercial argentino;
no Brasil, nos arts. 85 e 112 dos Códigos Civis de 1917 e atual, de 2002:
atende-se mais à intenção, consubstanciada na declaração da vontade, do
que ao sentido literal da linguagem.
Aliás, “doutrina e experiência jurídica reafirmaram uma série de
regras com a finalidade de orientar o esforço interpretativo destinado
a fixar ou revelar” aquilo que as partes pactuaram: assim, o comporta­
mento destas, o caráter gramatical do contrato - devem ser entendi­
das as palavras no sentido que lhes dá o uso geral -, a função social, a
visão integral, a qualificação do qual ele se revestiu e, principalmen­
te, a presença da boa-fé.
Na verdade, que é a boa-fé senão a noção moral, estreitamente liga­
da à idoneidade, à correção de conduta, à honestidade de propósitos, ao
respeito à palavra empenhada para o fim de dar cumprimento aos respec­
tivos direitos e deveres decorrentes da relação jurídica estabelecida?
Ninguém, por princípio, efetua um contrato imbuído de má-fé; e se
assim procede, estará atuando contrariamente ao direito, em atentado à
intenção pura, isenta de dolo ou engano, a qual, justamente quando lím­
pida se mostra, dispensa prova, presume-se, simplesmente.
Ascendendo por igual ao Direito Romano (D. 50, 17, 57; Gaio,
Institutas, 1,4,62), a boa-fé resultou preservada e acentuada no Código
Civil brasileiro de 2002, quando ali vem disposto que “os contratantes
são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua
execução, os princípios de probidade e boa-fé” (art. 422)
Em recente artigo, o Professor Miguel Reale afirma que bem agiu o
legislador ao dar relevo ao princípio da boa-fé, “cerne e matriz da eticida-
de”, em época em que pouco ou nada se valorizam os princípios de fide­
lidade e lealdade no comportamento das pessoas perante o meio social
no qual atual e vivem.
b) No que diz com as “sentenças plenárias”, o Professor Vigo dis­
corre sobre os seus antecedentes, exemplificando com manifestações
dos tribunais argentinos, quando resolviam que “a jurisprudência ple­
14 INTERPRETAÇÃO JURÍDICA

nária é como a própria lei, segundo a qual os particulares devem orde­


nar a sua conduta e seus interesses”; é ela “algo intermediário entre lei
e sentença”, “com essência de lei e natureza de sentença”. Enfim, na sen­
tença plenária, “trata-se de impor aos juizes que construam seu raciocí­
nio decisório a partir daquela norma geral da premissa maior”. Altera,
assim, o modo habitual como raciocina o juiz, obrigando-o a fazer uma
escolha em geral e para o futuro, que é maneira de operar própria de quem
legisla e não de quem aplica a lei.
Indiscutivelmente, ponderáveis são os inúmeros argumentos que
sustentam esse critério, todos eles assinalados e examinados com percu-
ciência pelo autor, o qual, a final, embora reconhecendo que por elas se
pode “chegar a resolver alguns problemas de importância”, certo é que
“pretender fixar um único modo possível de interpretação é desconhecer
as características do raciocínio prático judicial, o qual, desde a premissa
maior da norma geral, permite escolher, entre as diferentes conclusões
possíveis que podem ser inferidas, aquela que se estima a mais justa”.
Em tempos passados, houve no direito lusitano, que aqui se apli­
cava, os assentos da Casa da Suplicação, o tribunal superior da época,
os quais agiam e determinavam como se leis fossem; e agora, mais que
a uniformização, a reforma judiciária, pretendendo estancar a soma
geométrica dos recursos, busca resolver a questão por meio das súmu­
las vinculantes.
Sem ingressar no mérito da providência adotada, permitimo-nos
acompanhar uma das críticas colocadas pelo Professor Vigo sobre as sen­
tenças plenárias, é certo, mas que tem correlação com o que acabamos de
mencionar: “o prestígio do Poder Judiciário não se mantém por evitar
contradições mas sim com juizes que procurem ser ‘justiça animada’ -
como pedia Aristóteles -, restabelecendo a igualdade entre as partes no
marco que deixa a lei e a totalidade do ordenamento jurídico...”; “a quali­
dade jurídica das tarefas próprias do Poder Judiciário é que determinará o
prestígio e o respeito da comunidade e não a simples e utópica pretensão
da uniformidade dos julgamentos”.
Com efeito, se cabe ao juiz, como dizia o mesmo filósofo: “de uma
linha cortada em partes desiguais, separar o pedaço que excede, ligando-
o ao pedaço menor, para que ambos se igualem” (Ética a Nicômaco, 5,4,
25), como poderá assim agir se tolhido na sua liberdade e criatividade, ao
examinar caso concreto já de antemão subsumido ao paradigma estabe­
lecido pela uniformidade prescrita para “casos futuros”, similares?
APRESENTAÇÃO 15

E há, ainda, um outro aspecto que nos parece importante acrescen­


tar: esta limitação ao exercício de julgar não se situará nas instâncias in­
feriores, indo atingir inevitavelmente a prolação do voto vencido, peran­
te os tribunais; se, em princípio, a tendência mais fácil e acomodada faz
que se acompanhe o pensamento já cristalizado em decisões anteriores,
as quais, por muitas vezes, parecem refletir o melhor critério, que dizer
de decisões impostas de antemão pela uniformidade ou vinculação? E,
no entanto, é no voto vencido que melhor se verifica a agilidade e versa­
tilidade jurisprudencial, tanto que nele se encontram as qualificadoras da
atualidade, realidade e oportunidade cuja atenção, exame e decisão o caso
concreto merece, e a que poderá ser distinta daquela que de maneira re-
mansosa vem sendo decidida.
A opinião desenvolvida no parecer minoritário, muitas vezes mais
cuidadosamente construído do que o próprio acórdão, que nada mais fez
senão repetir os anteriores, traz enorme significado à vivência da arte e
empenho de julgar, já que, aos poucos, aquele voto poderá ganhar apoio,
conquistar a turma e câmara julgadoras, impregnar-se às demais, refletir,
enfim, a nova orientação da Corte; o que não acontecerá se jungida a ação
do julgador - e o seu próprio raciocínio - “a partir da norma geral contida
na premissa maior”...
5. Completam a obra outros tantos ensaios de não menor relevo, den­
tre os quais, para concluir, vamos nos referir àquele que trata das “aproxi­
mações à segurança jurídica, já que ali se completa, em síntese exemplar,
o pensamento do Professor Rodolfo Vigo sobre este valor autônomo, fun­
damental, específico, anexo e adjetivo da própria justiça”.
Constitui a segurança jurídica “fator decisivo para estabelecer o
melhor ou o pior direito”, sendo imprescindível sua presença e atuação
ao aperfeiçoamento do direito positivo.
E para que isto ocorra, segue o elenco das exigências que irão com­
pô-la: a determinação em geral dos direitos, deveres, permissões; a pro­
mulgação das regras jurídicas; a publicidade e acesso ao conhecimento
das normas; a compreensão, isto é, a forma inteligível destas determina­
ções; a sua estabilidade e fácil cumprimento; a imparcialidade do tercei­
ro a quem cabe decidir; o acesso fácil a estes julgadores; a solução breve
e oportuna dos conflitos; a oportunidade da informação e do contraditó­
rio; a justificação das normas jurídicas e os modos regulamentares de sua
criação e revogação; a eficácia e poder coercitivo destas normas; o res­
guardo da legitimidade do poder político; o tratamento jurídico igualitá­
16 INTERPRETAÇÃO JURÍDICA

rio; a capacidade de respostas do direito vigente e a sua visão sistemáti­


ca; a disposição ao cumprimento dos deveres contido nas normas.
6. A todo direito há de corresponder um dever; mas isto não se dá
por mera operação matemática, nem se fundamenta unicamente na reci­
procidade lógica.
Há um sentido de grande profundidade na máxima, pois, como já se
viu, a qualquer pessoa é permitido distinguir o que é bom e o que é mau;
existe uma ordem moral apta a conduzir as suas tendências e inclinações,
a sua maneira de agir, ou de não agir, por inércia ou relutância. Além dis­
so, o direito de um vem limitado, de maneira que não se tome abuso, atin­
gindo o direito do outro; e a preposição ab fornece a idéia de que houve
esse afastamento do uso normal e regular do direito, de modo a romper o
equilíbrio que deve necessariamente perdurar entre os membros da mes­
ma comunidade social. São estes conceitos que soam claros e perceptí­
veis a qualquer um, já que adstritos e integrados às regras da convivência,
tanto que aos integrantes de qualquer sociedade organizada parece intei­
ramente justo respeitar seja a ordem moral ditada pela prudência e pela
razão, seja a ordem jurídica, disposta nos enunciados legais.
Mas estes conceitos pouco ou nenhum significado terão se tanto a
primeira quanto a segunda nada representarem para aqueles que compõem
essa mesma sociedade.
Por isso mesmo, nesta nova passagem entre séculos, quando são
ainda mais ingentes os desafios que se apresentam diante de um mundo
de tal maneira espetacular, mas, ao mesmo tempo, tão contraditório; quan­
do nunca fomos tantos, mas parece que nunca estivemos tão sós; quando
as facilidades de comunicação poderíam permitir uma solidariedade de
propósitos ainda maior, mas o que se vê é o recrudescimento dos egoís-
mos e das indiferenças; quando não se sabem quais e quantos cuidados
nos alcançarão, diante das questões oriundas dos novos quadros socioe-
conômicos, culturais e científicos, servindo de exemplo, neste último
campo, as incertezas proporcionadas pelos avanços nas áreas da genética
e da biologia; quando tudo isso acontece em rápida seqüência, parece mais
do que nunca necessária a preservação daqueles valores que nos são ínsi-
tos, inatos à condição humana, como, por igual, dos valores que o direito
ampara e que se resguardam e se protegem pelas determinações que en­
volvem a segurança jurídica.
7. Retomam-se, afinal, as considerações já antes referidas, e que
aqui se completam, quanto à oportunidade e atualidade dos ensinamen­
APRESENTAÇÃO 17

tos trazidos pelo Professor Kodolfo Vigo, salientando que o entusias­


mo com que foram lidos e modestamente por nós comentados, consti­
tuem muito pouco em comparação com a receptividade com que serão
acolhidos no meio jurídico brasileiro.
Anotem-se, ainda, as bem cuidadas tradução e revisão, respectiva­
mente de Susana Elena Dalle Mara e Alfredo de J. Flores, que permitiram
que a obra se tomasse mais conhecida e acessível no âmbito de toda a
América latina, promovendo, assim, a partir do direito, “espaços de en­
contros, conhecimentos e projetos”.
São Paulo, 31 de janeiro de 2005.

Luiz Carlos de Azevedo


Professor titular de História do Direito
da Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo
PRÓLOGO À EDIÇÃO BRASILEIRA

Seguramente não é difícil concordar sobre o quão distantes estive­


ram e estão, entre si, os países latino-americanos, inclusive com momen­
tos de distanciamentos graves e até beligerantes. Também é certo que, além
de irracionalidades e interesses locais, não faltaram instigadores estran­
geiros. De qualquer maneira, parece-nos evidente que para um futuro
melhor é necessário maior aproximação e entendimento ao menos daque­
las nações que a geografia, a história è a economia tomam muito próxi­
mas e reciprocamente dependentes. Sendo este um objetivo nacional, não
pode dar margens a que nos esquivemos, mantendo atitudes autistas e
chauvinistas. Se quisermos estar à altura das circunstâncias atuais, somen­
te nos resta assumir o esforço da tarefa com a confiança nos benefícios
comunitários por alcançar.
Não há dúvida de que nós, os juristas, somos uma peça-chave na­
quele projeto de consolidação do espaço regional. A Europa demonstra
a importância dos juristas e juizes na construção e manutenção da Co­
munidade Européia. Acima de satisfações pessoais, estamos convenci­
dos de que é preciso promover, a partir do direito, espaços de encontros,
conhecimentos e projetos. Dessa forma, é a partir de tal lógica que se
deve entender esta edição brasileira de meu livro Interpretação jurídi­
ca, tendo em conta que essas recíprocas traduções facilitarão inexora­
velmente os objetivos mencionados. Logicamente, não deixa de causar-
me uma grande satisfação o fato de ver tal obra numa língua próxima
mas diferente da materna; contudo, para além do plano emocional, a
razão nos confirma que é uma opção apropriada que esperamos se mul­
tiplique em cada um de nossos países e que frutifique em muitos novos
e proveitosos entendimentos.
Chegada a hora de agradecimentos, e ainda com o temor dos esque­
cimentos, devo mencionar o apoio das editoras implicadas, a Rubinzal-
Culzoni na Argentina e a Editora Revista dos Tribunais no Brasil, por sua
generosidade ao somarem-se ao presente projeto. Aos tradutores, Susana
20 INTERPRETAÇÃO JURÍDICA

Elena Dalle Mura e Alfredo de J. Flores, respectivamente professores na


Argentina e no Brasil, porque com humildade e dedicação assumiram a
árdua tarefa. Aos meus colegas brasileiros que encorajaram a obra, com
todo o calor que implicam a amizade e a vocação acadêmica.

O Autor
PRÓLOGO À EDIÇÃO ARGENTINA

A sugestão de alguns colegas amigos e a receptividade generosa por


parte da editora Rubinzal-Culzoni, tomaram possível que eu me animas­
se a editar na República Argentina este livro, no qual compilo artigos que,
embora já tivessem sido publicados (com uma única exceção), tinham o
inconveniente da dispersão e de que várias das revistas que os recolhe­
ram eram de escassa ou circunscrita distribuição.
O eixo de todos eles - de maneira direta ou indireta - é a temática da
interpretação jurídica e, conforme se verifica na teoria contemporânea
continental, o ponto de partida é o modelo dogmático do século XIX. É
que, para compreender o inspirador, transcendente e inquieto campo da
doutrina atual interpretativa, deve-se considerar que este constitui uma
atitude crítica ou superadora a respeito daquele modelo que configura­
ram a exegese francesa, o historicismo alemão, o primeiro Ihering e, ain­
da que com significativa variante, prolongou-se em Kelsen.
Muitas características daquela teoria juspositivista, que predomi­
nou na formação dos juristas e na operatividade do direito, entram em
crise depois da Segunda Guerra e se aprofundam nas três últimas déca­
das. Com efeito, e apenas com o propósito de mencionar algumas des­
sas mudanças que vêm alimentando nossos trabalhos, podemos lembrar
as seguintes:
1) procura-se superar a alergia e o ceticismo axiológico, que evita­
va toda impureza ética no saber jurídico, apoiando-se na reabili­
tação da razão prática;
2) a visão do direito reduzida a normas (na qual insistirá Hart) é
confrontada com os princípios jurídicos como núcleo da vali­
dade jurídica;
3) a preocupação obsessiva por um saber científico, objetivo e exato
é fraturada a partir da reivindicação do protagonismo por parte da
filosofia jurídica e do saber prudencial, concreto e circunstancial;
22 INTERPRETAÇÃO JURÍDICA

4) a perspectiva ingênua do sistema jurídico único, completo, coe­


rente e hierárquico perde entusiasmo e, em seu lugar, aponta-se
para a permanente tarefa de reconstrução e aporética do jurista;
5) a centralidade e o predomínio da lei, como fonte do direito, são
substituídos pela presença onicompreensiva e operativa da
Constituição;
6) a jurisprudência, definida como irrelevante e regulada nos títulos
preliminares dos Códigos Civis, é redescoberta como um momento
particularmente complexo, criador e culminante do direito;
7) a anterior confiança dogmática na autoridade resulta incompatí­
vel com uma sociedade pluralista e democrática que reclama
justificações racionais; e
8) para que a segurança seja o único valor jurídico e resultado es­
pontâneo da lei, importa exigir-lhe um papel mais modesto e ob­
jetivo ante a substância da justiça.
Parece-nos que as aludidas oito observações constituem os pontos
centrais que alimentam e expressam os artigos incluídos neste livro. No
entanto, é fácil notar que nos primeiros trabalhos, que datam de 1985,
muitas das propostas que logo se tomarão explícitas e firmes aparecem
tímidas e frágeis; por isso, insistimos que o artigo que inicia a obra é aquele
que com maior fidelidade e atualidade expressa nossas convicções na
matéria em estudo. O propósito essencial é oferecer algumas linhas mes­
tras do que chamaríamos uma teoria geral da interpretação jurídica, que
resulta idônea para projetar as distintas realidades jurídicas: uma lei, um
contrato, um testamento, um princípio jurídico etc.
Há alguns autores que não podem ser deixados de lado por quem quer
que busque compreender o panorama atuai em matéria de interpretação
jurídica; é certo que essa lista é cada vez mais numerosa e não é especifi­
cada em escolas. Mas, com essa advertência e sem ocultar preferências
ou influências pessoais, incluiriamos num lugar de destaque: Perelman
(pela superação do legalismo cientificista dogmático e na recuperação da
razão persuasiva), Villey (pela preocupação aporética e realista pelo jus­
to), Kalinowski (pelas contribuições à lógica, sem renunciar à metafísi­
ca), Dworkin (pela atenção centralizada nos princípios e direitos huma­
nos preexistentes), Finnis (pelo enriquecimento e renovação que fez da
ética clássica, em especial com a sua teoria dos “bens humanos básicos”)
e Alexy (devido a seus estudos no campo da razão prática).
PRÓLOGO À EDIÇÃO ARGENTINA 23

Quanto à teoria da interpretação jurídica, embora apareça como um


dos temas prediletos da filosofia jurídica e da teoria geral do direito, ao
qual são trazidas permanentemente notáveis contribuições, é mister que
ultrapasse esse âmbito e suscite o interesse e o enriquecimento dos ou­
tros âmbitos acadêmicos tradicionais: civil, comercial, penal, trabalhista
etc. Assim, com acerto, Alexy contrapõe duas concepções do sistema ju­
rídico - a constitucionalista e a legalista; e esta última identifica-a ele com
quatro observações:
a) norma em vez de valor;
b) subsunção em vez de ponderação;
c) independência do direito ordinário em vez de onipresença da
Constituição; e
d) autonomia do legislador democrático dentro do marco da Consti­
tuição em lugar da onipotência judicial apoiada na Constituição.
É notório que a opção do professor de Kiel será favorável ao consti-
tucionalismo, ao precisar seu modelo de sistema jurídico composto por
um lado passivo, regras e princípios, e por um lado ativo, cujo objetivo é
o procedimento racional na aplicação dessas regras e princípios. É que,
como sustenta Zegrebelsky, as características do ordenamento jurídico
atual já não são conformes à ideologia do positivismo e, ante a presença
dos princípios, perturba-se a confiança na ciência e se privilegia a prudên­
cia. Assim, estas autorizadas opiniões confirmam que a convocação para
renovar o modo como operamos o direito é de importância decisiva e es­
sencial; ademais, seus destinatários são todos os juristas que assumem sua
função com responsabilidade e que buscam cumpri-la do melhor modo.
Esperamos que esta modesta obra contribua para esse interesse dos
juristas em sua totalidade, sem precisar distinguir entre especializações.

O Autor
SUMARIO

Apresentação - Luiz Carlos de Azevedo..................................................... 7


Prólogo à edição brasileira.............................................................................. 19
Prólogo à edição argentina.............................................................................. 21

Capítulo 1

PROBLEMAS E TEORIAS ATUAIS


DA INTERPRETAÇÃO JURÍDICA

I. Introdução............................................................................................. 35
II. O modelo dogmático........................................................................... 36
1. A ontologia jurídica.................................................................... 37
2. Univocidade cognitiva............................................................... 37
3. O objeto da interpretaçãojurídica............................................ 37
4. Estrutura da interpretação jurídica............................................ 38
5. A Constituição............................................................................ 38
6. O sistema jurídico....................................................................... 39
7. Ontologismo verbal................................................................... 39
8. Confiança nos métodos interpretativos.................................... 40
III. Insuficiência do modelo dogmático. Novos problemas e propostas.. 40
1. Matéria da interpretação jurídica.............................................. 41
2. Sujeitos interpretativos.............................................................. 46
3. O saber jurídico como saber prático........................................ 47
4. As fontes do direito.................................................................... 49
5. Enfraquecimento do sistema..................................................... 51
6. Enfraquecimento da norma....................................................... 54
7. Importância da argumentação justificativa............................. 56
8. Sincretismo metódico................................................................. 58
9. Revalorização da filosofia jurídica........................................... 59
26 INTERPRETAÇÃO JURÍDICA

10. Variedade normativa................................................................. 61


11. Protagonismo social do juiz..................................................... 62

Capítulo 2

A INTERPRETAÇÃO JURÍDICA EM RONALD DWORKIN

I. Os princípios (the principies)............................................................ 64


II. A resposta correta (the one right answer)........................................ 66
III. Os direitos preexistentes (the background moral rights)............... 69
IV. A razão adjudicatória como razão prática........................................ 72
V. O sistema jurídico................................................................................. 75
VI. Conclusão.............................................................................................. 78

Capítulo 3

A INTERPRETAÇÃO JURÍDICA EM MICHEL VILLEY

I. Advertência inicial............................................................................... 80
II. Questões implicadas na interpretação jurídica................................ 82
III. O direito, objeto da interpretação jurídica........................................ 83
1. O direito em sentido original: o justo (to dikaiori)................ 83
2. O direito em sentido derivado: a arte jurídica......................... 84
IV. O saber jurídico-interpretativo: seu caráter teórico ou especula­
tivo ............................................................................................... 87
V. O método da interpretação jurídica: a dialética............................... 88
VI. As fontes do direito.............................................................................. 91
1. A natureza como fonte do direito............................................. 92
2. Teoria do direito positivo ou dos textos escritos (regula juris).. 95
VII. Avaliação crítica final........................................................................... 99

Capítulo 4

A INTERPRETAÇÃO DA LEI
COMO SABER PRUDENCIAL-RETÓRICO

I. Considerações e precisões introdutórias........................................... 102


1. A interpretação jurídica como saber prudencial..................... 102
SUMÁRIO 27

2. A interpretação jurídica e a interpretação da lei..................... 104


3. Interpretação, aplicação e criação.............................................. 104
4. Realidades jurídicas.................................................................... 107
a) Realidades jurídicas primárias e derivadas..................... 107
b) A lei....................................................................................... 107
II. Conceito de interpretação da lei................................................... 109
1. Esforço......................................................................................... 109
2. Metódico...................................................................................... 111
3. Razão prática............................................................................... 113
4. Determinação a partir do seu texto e demais elementos do
ordenamento jurídico e em relação a certas circunstâncias de
um “seu” de alguém............................................................. 115
5. Razões e argumentos que permitem respaldar e fundar a con­
clusão a que se chegou......................................................... 116
III. Conclusão.............................................................................................. 122

Capítulo 5

OS PRINCÍPIOS GERAIS DO DIREITO

I. Sua origem doutrinai........................................................................... 123


II. Recepção nos códigos.......................................................................... 124
III. Caracterização na doutrina jurídica contemporânea....................... 126
IV. Nossa posição...................................................................................... 127
1. Princípios jurídicos positivos setoriais.................................... 128
2. Princípios jurídicos positivos sistemáticos ou fundacio-
nais......................................................................................... 128
3. Princípios de direito natural...................................................... 129
V. Funções (ontológica, preceptiva e gnosiológica) dos princípios
gerais do direito........................................................................... 130
VI. Princípios e normas jurídicas, suas diferenças................................ 133
VII. Os princípios gerais do direito na criação e interpretação do di­
reito ............................................................................................ 134
VIII. Prioridade prática entre os princípios gerais do direito.................. 137
IX. Conclusão............................................................................................. 139
28 INTERPRETAÇÃO JURÍDICA

Capítulo 6

UMA TEORIA DISTINTIVA “FORTE”


ENTRE NORMAS JURÍDICAS E PRINCÍPIOS JURÍDICOS

I. Introdução............................................................................................. 141
II. Critérios distintivos entre normas e princípios jurídicos................ 143
1. O conteúdo................................................................................... 143
2. A origem...................................................................................... 144
3. A validade.................................................................................... 144
4. Capacidade de justificação......................................................... 144
5. A aplicação................................................................................. 145
6. O trabalho que exigem............................................................... 145
7. A identificação............................................................................ 145
8. A revogação................................................................................. 146
9. As exceções.................................................................................. 146
10. Os destinatários........................................................................... 146
11. Resolução de contradições........................................................ 146
12. O cumprimento........................................................................... 146
13. A estrutura lógica....................................................................... 147
14. Incorporação ao sistema jurídico............................................. 147
15. Compromisso histórico.............................................................. 147
16. Localização no ordenamento jurídico..................................... 147
17. Caráter operativo com a lógicaformal..................................... 148
18. O aporte à completude do sistema........................................... 148
19. Componentes.............................................................................. 148
20. Funções........................................................................................ 148
III. Conclusão............................................................................................. 149

Capítulo 7

INTERPRETAÇÃO JURÍDICA DOS CONTRATOS CIVIS

I. Precisões iniciais sobre a interpretação jurídica............................. 154


II. A interpretação do contrato dentro de uma teoria da norma jurí­
dica ................................................................................................ 156
III. Necessidade da interpretação da norma jurídica contratual.......... 158
SUMÁRIO 29

IV. As normas sobre interpretação previstas nos códigos..................... 159


V. Momentos na interpretação dos contratos........................................ 160
1. A norma jurídica acordada........................................................ 160
a) Os comportamentos das partes.......................................... 162
b) O caráter gramatical do contrato....................................... 162
c) O marco social..................................................................... 162
d) Visão totalizadora do contrato........................................... 163
e) A qualificação do contrato................................................. 163
f) A boa-fé................................................................................ 163
2. Validade e eficácia do contrato................................................. 164
3. Os direitos e os deveres derivados da norma jurídica contra­
tual ......................................................................................... 165
a) O justo comutativo.............................................................. 166
b) O caráter político do contrato............................................ 166
c) A boa-fé................................................................................ 167
d) O fim procurado pelas partes............................................ 167
e) O marco social..................................................................... 168
f) A favor da parte mais fraca................................................ 168
g) A obscuridade contratual................................................... 168
h) A renúncia não é presumida.............................................. 169
VI. Sobre a prioridade entre as distintas regras...................................... 169
VII. Análise comparativa da interpretação da norma jurídica legal e da
contratual.................................................................................. 170
VIII. Conclusão.............................................................................................. 171

Capítulo 8

INTERPRETAÇÃO JURÍDICA DOS TESTAMENTOS

I. Introdução............................................................................................. 172
II. A interpretação do testamento dentro de uma teoria da norma
jurídica........................................................................................... 174
III. Momentos na interpretação dos testamentos................................... 176
1. A voluntas defuncti..................................................................... m
a) Interpretação gramatical..................................................... 180
b) Visão unitária do testamento............................................. 180
30 INTERPRETAÇÃO JURÍDICA

c) Auxílio condicionado de prova extrínseca...................... 181


d) Distinção entre o conteúdo dispositivo e o não-dispositivo 181
2. A validade do testamento........................................................... 182
3. Projeção jurídica do testamento................................................ 184
IV. Análise comparativa da interpretação da norma jurídica contratual
e da testamentária....................................................................... 186

Capítulo 9

ORDEM PÚBLICA E ORDEM PÚBLICA JURÍDICA

I. Panorama doutrinário jurídico sobre a ordem pública................... 188


II. A respeito da “ordem” e do “público”.............................................. 191
1. Ordem.......................................................................................... 191
2. Pública......................................................................................... 193
III. A ordem pública.................................................................................. 193
IV. Ordem pública e moral....................................................................... 197
V. Ordem pública jurídica...................................................................... 199
VI. Natureza da ordem pública jurídica................................................... 200
VII. Modos de operar a ordem pública jurídica....................................... 201
VIII. Historicidade da ordem pública......................................................... 204
IX. Importância da ordem pública............................................................ 205

Capítulo 10

“RECURSO DE ACLARATÓRIA”:
SUAS QUESTÕES FUNDAMENTAIS

I. Natureza jurídica.................................................................................. 208


II. Fundamentos dos “recursos de aclaratória”................................... 212
III. Objeto do recurso................................................................................. 213
1. Erros materiais............................................................................ 213
2. Conceito obscuro........................................................................ 214
3. Suprir omissões.......................................................................... 215
IV. Resoluções suscetíveis de “recursos de aclaratória”....................... 216
V. Tramitação dos “recursos de aclaratória”....................................... 218
1. Início do recurso......................................................................... 218
SUMÁRIO 31

2. Instrução........................................................................................ 219
3. Quem aclara.................................................................................. 220
VI. Efeitos da interposição do “recurso de aclaratória” quanto ao ter­
mo para apelar.............................................................................. 222

Capítulo 11

“SENTENÇAS PLENÁRIAS”:
ANÁLISE CRÍTICA E SUBSTITUIÇÃO
PELA INICIATIVA LEGISLATIVA DO PODER JUDICIÁRIO

I. Introdução. Autocratas, legisladores e juizes................................... 224


II. Características das “sentenças plenárias”. Antecedentes................ 226
III. Razões utilizadas para justificadas “sentenças plenárias”.............. 229
IV. Conclusões............................................................................................ 234

Capítulo 12

CONSIDERAÇÕES JUSFILOSÓFICAS
SOBRE O “ABUSO DE DIREITO”

I. Propósito central.................................................................................. 236


II. A quebra do paradigma dogmático................................................... 236
1. Da univocidade cognitiva científica à diversidade do saber
jurídico.................................................................................... 238
2. Do saber jurídico como saber teórico ao saber prático........ 239
3. Do Direito como norma ao Direito com princípios.............. 240
4. Da suficiência da norma à sua incompletude......................... 240
5. Do sistema jurídico perfeito ao reconhecimento de suas im­
perfeições ............................... 241
6. Do juridicismo à admissão das impurezas do Direito........... 241
7. Da irrelevante interpretação à importância do raciocínio de
justificação............................................................................. 242
8. Da Constituição como programa político à sua caracterização
como norma jurídica............................................................ 243
9. Do Direito no âmbito legislativo ao Direito no âmbito judi­
cial .......................................................................................... 243
III. Precisões acerca do direito subjetivo................................................. 244
IV. Classificações dos direitos subjetivos................................................ 251
32 INTERPRETAÇÃO JURÍDICA

V. Os direitos individuais como absolutos............................................ 252


VI. Direitos e deveres jurídicos................................................................. 254
VIL Problema dos limites dos direitos subjetivos................................... 255
VIII. O abuso de direito................................................................................ 257
IX. O art. 1.071 do Código Civil argentino............................................ 260

Capítulo 13

APROXIMAÇÕES À SEGURANÇA JURÍDICA

I. A segurança jurídica na história........................................................ 266


II. Posições doutrinárias........................................................................... 268
1. Negativistas ou céticos............................................................... 268
2. A segurança jurídica como valor principal............................. 269
3. A segurança jurídica como valor autônomo ou específico ... 269
4. Assimilação da segurança jurídica à justiça........................... 270
5. A segurança jurídica como valor anexo ou adjetivo da jus­
tiça.......................................................................................... 271
III. Nossa posição........................................................................................ 271
IV. A segurança jurídica............................................................................. 273
1. Determinação em geral dos direitos, deveres e permissões... 273
2. Promulgação das regras jurídicas............................................ 274
3. Acesso fácil e permanente ao determinado juridicamente .... 274
4. Compreensão das determinações jurídicas............................. 275
5. Estabilidade das disposições jurídicas..................................... 276
6. Cumprimento possível e fácil das normas.............................. 276
7. Resolução dos conflitos jurídicos por terceiros imparciais ... 277
8. Facilidade de acesso aos juizes................................................. 277
9. Resolução dos conflitos no tempo oportuno.......................... 278
10. Possibilidade de defender pretensões ante os juizes............ 278
11. Justificação das normas jurídicas............................................ 279
12. Modos previstos de criação e revogação das normas........... 279
13. Eficácia das normas jurídicas................................................... 280
14. Existência no direito de um poder coercitivo........................ 280
15. Poder político legitimado democraticamente........ ................ 281
SUMÁRIO 33

16. Tratamento jurídico igualitário................................................. 282


17. Capacidade suficiente de respostas dodireitovigente............ 282
18. Visão sistemática do direito vigente........................................ 283
19. Disposição cidadã ao cumprimento de seusdeveres............... 284
20. Existência de uma moeda estável............................................. 285
V. Dimensão subjetiva da segurança jurídica........................................ 285
VI. Responsabilidade na obtenção da segurança jurídica...................... 286
VII. Conclusão.............................................................................................. 286

Capítulo 14

DESCRÉDITO E NECESSIDADE
DA FILOSOFIA DO DIREITO

I. Causas específicas do desinteresse jusfilosófico............................. 289


1. O dogmatismo da ciência jurídica moderna............................ 289
2. O idealismo da filosofia jurídica............................................... 290
3. O utilitarismo profissional......................................................... 291
II. Necessidade de uma determinada filosofia do direito.................... 292
1. Revelação da essência jurídica................................................... 292
2. Reconhecimento dos diferentes níveis do saber jurídico..... 293
3. A filosofia do direito como saber prático................................ 294
4. A filosofia jurídica possibilita a atitude crítico-valorativa do
jurista...................................................................................... 295
5. A filosofia jurídica esclarece a linguagem jurídica............... 297
6. É a filosofia jurídica a encarregada de assumir a lógica jurí­
dica.......................................................................................... 298
7. O jurista explícita ou implicitamente se alimenta de uma filo­
sofia jurídica......................................................................... 299
III. Conclusão............................................................................................... 301
Capítulo 1

PROBLEMAS E TEORIAS ATUAIS


DA INTERPRETAÇÃO JURÍDICA*

I. Introdução

A teoria da interpretação jurídica passa, especialmente no âmbito do


direito continental, por um momento de esplendor, talvez como nunca na
historiado pensamento jurídico. Boa parte da bibliografia jusfilosófica que
é hoje editada versa, de forma direta ou indireta, sobre aquela temática.
Os problemas se avolumam e as tentativas para solucioná-los se diversifi­
cam. Esse interesse extraordinário pela interpretação jurídica, claramen­
te visível nas duas últimas décadas do séc. XX, não é exclusivo de alguma
orientação em particular, mas, ao contrário, nele coincidem, superando os
matizes, tanto os jusnaturalistas como os juspositivistas, além das outras
variantes doutrinárias que tentam escapar desse tradicional e inevitável
divisor de águas. Além disso, também se verifica que muitos autores e es­
colas que despertam especial atenção na atualidade elaboraram suas teorias
a partir do problema interpretativo, ou reconhecendo-lhe um lugar essen­
cial, como, por exemplo, a hermenêutica jurídica (A. Kaufmann e W.
Hassemer), M. Villey, R. Dworkin, R. Alexy etc.
Seriam poucos os que hoje em dia aderiríam aos propósitos dos co­
dificadores civis, como o de regular com alcance geral as questões vin­
culadas à interpretação jurídica em seus Títulos preliminares, segundo
se nota nos Códigos Civis da Argentina ou da Espanha. Consoantes a es­
sas diretivas promovidas de forma típica pelo codificador do séc. XLX, os
programas de Direito Civil I ou Parte Geral que vigoram nas faculdades
de Direito incluem, com pretensão de obter respostas definitivas, o pro-

(’’ Conferência pronunciada por ocasião de minha incorporação à Academia


Nacional de Direito e Ciências Sociais de Córdoba (Argentina) em 1993 e
publicada em Anales, t. XXXII, 1993, Córdoba.
36 INTERPRETAÇÃO JURÍDICA

blema interpretativo. Entretanto, os tribunais reagem contra essa aspira­


ção, e assim, por exemplo, a Corte Suprema argentina decidiu que “a re­
gra de interpretação prevista no art. 16 do Código Civil (argentino) exce­
de os limites do âmbito do direito privado, posto que os transcende e se
projeta como um princípio geral vigente em toda a ordem jurídica inter­
na” (Decisões da Corte Suprema da Nação Argentina -312:1:957). E que
parece bastante claro que, na interpretação jurídica, põe-se em jogo a es­
trutura e a validade das diferentes fontes do direito, como também todo o
ordenamento jurídico e, por isso, compete seu estudo geral não só ao di­
reito civil, mas também à filosofia jurídica ou à teoria geral do direito, e se,
eventualmente, deve estar restrito a algum ramo do direito positivo, aque­
le que parece contar com maiores argumentos seria o constitucional (é esta
a opinião de Crisafulli e de Lucas Verdú).
No presente trabalho, partiremos de uma análise sucinta do que po­
deriamos chamar a teoria jurídica predominante em matéria de interpreta­
ção no mundo jurídico continental, quer dizer, o modelo “dogmático”
constituído basicamente pelas escolas exegética, histórica, o primeiro
período de Ihering e a jurisprudência dos conceitos, devendo acrescentar-
se, no séc. XX, a figura única de Kelsen - que, embora em alguns pontos
tenha rompido com aquela tradição positivista, também se pode dizer que
ele manteve coincidências fundamentais em muitos outros pontos. Dei­
xando de lado as ortodoxias e exames detalhistas, queremos fazer refe­
rência ao paradigma que imperou quase pacificamente no ensino e na prá­
tica do direito durante o séc. XIX e na primeira metade do séc. XX dentro
do sistema jurídico continental. Não obstante os certeiros e variados ata­
ques de que padeceu esse modelo, a ponto de o mesmo encontrar-se ago­
nizante no plano teórico, não deixa de surpreender a sobrevida que ainda
conserva na prática jurídica. Em grande medida, os atuais problemas e as
novas propostas ou perspectivas em matéria de interpretação jurídica sur­
gem em relação ou, melhor ainda, em confrontação com aquele paradig­
ma proposto desde a “moderna ciência jurídica” que nascera no séc. XIX.
Dito de outro modo, é a ruptura ou a insuficiência desse modelo positivis­
ta dogmático que inspira a uma configuração de propostas que superem,
ou melhor, se harmonizem com a realidade jurídica atual.

II. O modelo dogmático

Segundo a metodologia anunciada, vejamos as notas características


do citado paradigma.
PROBLEMAS E TEORIAS ATUAIS 37

1. A ontologia jurídica

O conceito de direito, que foi construído pela moderna ciência jurí­


dica, era estritamente positivista, normativista-legalista e juridicista. Com
efeito, não havia outro direito senão o positivo; este era criado pelo legis­
lador na forma de normas legais, e o direito se explicava e se compreendia
somente a partir do direito, rejeitando o jurista as impurezas irracionais e
anticientíficas de natureza política, ética ou axiológica. O direito era a
norma, melhor ainda: simplesmente a lei, pois só o Poder Legislativo con­
tava com capacidade jurígena para criar o direito. Assim sentenciaria
Windscheid - “Lei é a declaração emanada do Estado no sentido de que
alguma coisa será o direito”1 -, condenando toda distinção entre direito e
lei. Os problemas jurídicos e as conseqüentes soluções se estabeleciam
mediante o monopólio do legislador, enquanto dos juristas se exigia uma
atitude dogmática ante o direito legislado.

2. Univocidade cognitiva

O conhecimento em sentido estrito era o científico. Corresponden­


do ao clima positivista e antifilosófico do séc. XIX e ainda sob o modelo
perfeito de conhecimento que surgia das ciências físico-naturais, a dog­
mática se orientará para estabelecer o caminho que inexoravelmente de­
veria percorrer para alcançar o ansiado objetivo da ciênciajurídica. O cam­
po da criação ou do obrarjurídico ficava vedado para o conhecimento, dado
que nele predominavam a vontade e o relativismo axiológico. Mas tam­
pouco havia interesse por tentar o inútil esforço dos filósofos, preocupa­
dos com um mundo imaginário que fosse além do direito positivo empiri-
camente verificável. Se o jurista pretendia seriamente avocar-se o conhe­
cimento objetivo do direito, tinha somente a opção científica.

3. O objeto da interpretação jurídica

Savigny definiu, com o valor de uma verdade indiscutível, que a in­


terpretação jurídica consistirá na “reconstrução do pensamento ínsito da
lei”2 e Ihering a chamará de “jurisprudência inferior”, explicando que ela

(l) WINDSCHEID, B. Diritto dellepandette. Torino: 1930-VIII (v. 1,1, § 14).


<2> SAVIGNY, F. C. Sistema de derecho romano actual. La ciência dei derecho.
Buenos Aires: Losada, 1949. p. 82.
38 INTERPRETAÇÃO JURÍDICA

“não cria nada novo, nem pode fazer mais do que esclarecer os elementos
jurídicos substanciais já existentes”.3 Sem dúvida, uma tarefa menor e
carente de relevância jurídica, já que se limitava a repetir a lei sem trazer
nada de novo. Já havia imortalizado Montesquieu o ideal de juiz como “um
ser inanimado que repete as palavras da lei”.4 Laurent doutrinava: “Os
códigos não deixam nada ao arbítrio do intérprete; este já não tem por
missão fazer o direito: o direito está feito. Não existe incerteza, pois o di­
reito está escrito em textos autênticos”.5 Na França, para as improváveis
dúvidas que poderíam advir do Código, instituiu-se o référé legislativo.
Intérprete “autêntico” era chamado o legislador, de onde se inferia impli­
citamente a falta de autenticidade da interpretação feita por outros. O cos­
tume jurídico só teria valor interpretativo quando a lei assim o dispusesse.

4. Estrutura da interpretação jurídica

O modo como o intérprete deveria proceder tinha identidade logica­


mente com a estrutura de um silogismo dedutivo, de onde se observava que
a premissa maior era a lei, a premissa menor era o fato e, por fim, a conclu­
são era o conjunto de conseqüências dispostas na mesma lei. Note-se que se
tratava de um silogismo que alcançava a objetividade, o rigor e a simplicida­
de própria do saber teórico e, por isso, a conseqüência ou o resultado inter­
pretativo se deduzia asséptica, fácil e mecanicamente. Ao juiz era vedado
formular preferências, ampliações ou restrições em virtude das modalida­
des do caso ou de seu senso de justiça, pois ao intérprete se exigia simples­
mente que procedesse segundo o mecanismo formal da subsunção. Ensina­
va Demolombe: “Interpretar é descobrir, elucidar o sentido exato e verda­
deiro da lei. Não é mudar, modificar, inovar; é declarar, reconhecer”.6

5. A Constituição

Esta, mais que uma fonte do direito ou uma norma jurídica, era um
programa político dirigido ao legislador, que tinha a responsabilidade

(3) IHERING, R. Von. Espíritu dei derecho romano en las diversas etapas de
,su desarrollo. La dogmática jurídica. Buenos Aires: Losada, 1946. p. 132.
|4> Del espíritu de las leyes. Buenos Aires: Claridad, 1977. p. 194.
Cours élémentaire de droit civil. 1.1, p. 9.
<6) Cours de droit français. 1.1, p. 135.
PROBLEMAS E TEORIAS ATUAIS 39

de traduzi-la juridicamente, segundo os critérios incontroláveis de opor­


tunidade e conveniência. Ainda nas listas mais audaciosas das fontes do
direito inspiradas no modelo dogmático, não aparece a Constituição re­
conhecida entre elas. Lembremos que, na Europa e de modo recente na
década de 1920, inauguraram-se os sistemas de controle de constitucio-
nalidade, embora em geral sem atribuí-los aos Poderes Judiciários. Nos
países latino-americanos, onde o regime constitucional tinha sido co­
piado dos Estados Unidos, como no caso argentino, o controle de cons-
titucionalidade foi exercido com demasiada cautela por parte dos juizes.
O âmbito generoso dos atos políticos não-judiciais corroborava aquela
desconfiança quanto aos juizes.

6. O sistema jurídico

A missão da moderna ciência jurídica era partir do direito positivo e


proporcionar-lhe, através de procedimentos formais, unidade sistemáti­
ca. Puchta levantou a bandeira: “Construir com o direito positivo uma pi­
râmide de conceitos”; e a dogmática prescreverá a direção da ciência jurí­
dica: análise, síntese e sistema. A razão do legislador (exegese) ou a razão
do cientista (“jurisprudência dos conceitos”) contavam com níveis de per­
feição, previsão e clarividência que as tomavam insuspeitas de silêncios
ou incoerências. O Código Civil francês estimava desnecessário incluir
mecanismos de integração; daí que não titubearia ao proibir que, sob o pre­
texto de obscuridade ou silêncio do legislador, abstenha-se o juiz de deci­
dir. Savigny confiava na analogia jurídica para encontrar as respostas jurí­
dicas para qualquer problema. O direito positivo se encontrava dotado pelo
legislador ou pelo cientista das propriedades formais próprias de um ver­
dadeiro sistema: unidade, completude e coerência.

7. Ontologismo verbal

Era consubstanciai ao modelo supor que as palavras tinham um úni­


co, claro e preciso significado, de onde a sabedoria e o domínio lingüís-
tico do legislador e dos juristas preservavam a linguagem jurídica de im­
perfeições semânticas, sintáticas e pragmáticas. Ihering, a respeito do
“alfabeto jurídico universal”, incluído nas tarefas da técnica jurídica, as­
sinalou: “vinte e quatro signos asseguram o domínio de um tesouro ines­
gotável, sendo sua ordenação tão fácil e pouco complicada que, ao re­
produzir a palavra por meio de signos e a chave destes, ou seja, a escrita
40 INTERPRETAÇÃO JURÍDICA

e a leitura, podem fazer-se inteligíveis a um menino que chega a apro-


priar-se deles com toda a exatidão”.7

8. Confiança nos métodos interpretativos

Savigny completará o quadro metodológico a que deve recorrer o


intérprete agregando o gramatical e o lógico, que estabeleceu a exegese e
os elementos histórico e sistemático. O primeiro tem por objeto as pala­
vras de que se serviu o legislador para comunicar seu pensamento. O mé­
todo lógico se preocupa com esse pensamento enquanto procura elucidá-
lo, analisando suas diferentes partes e as relações entre elas. O elemento
histórico comparará a lei com o direito anterior ao seu estabelecimento. O
método sistemático visualizará a lei como parte do sistema, atendendo aos
laços que unem as instituições e as regras de direito. Ao intérprete não cabe
escolher entre esses elementos, mas sim recorrer aos quatro, dado que assim
“esgotará o conteúdo da lei”.8 O resultado interpretativo fica assegurado
através de um caminho rigorosamente prefixado.

III. Insuficiência do modelo dogmático. Novos problemas e pro­


postas

A caracterização precedente seguramente nos permite corroborar


fácil e espontaneamente o quão afastado está o modelo dogmático da rea­
lidade jurídica atual. E que, como iremos ver adiante, existem mil sinto­
mas no funcionamento do direito e nas convicções mais divulgadas entre
os juristas que revelam de maneira inequívoca a falência do descrito mo­
delo dogmático, o qual deixou de responder ao que efetivamente é o direi­
to e aos propósitos e expectativas que procura satisfazer. Ainda que não se
observe um modelo canônico que apareça com força e consenso suficien­
tes, permitindo reconhecê-lo como substituto do dogmático, não cabem
dúvidas de que as exigências deste - reiteremos - já não se respeitam na
prática jurídica; por outro lado, suas insuficiências consolidam o pedido
da doutrina em favor de sua superação, desde que não coincida com o
modelo a substituir. Por isso, mais que mostrar um modelo completo e
definitivo, propomo-nos a assinalar exemplos, sintomas ou recursos teó­
ricos que expõem claramente a fratura do modelo dogmático.

<7) Op. cit., p. 108.


(” Op. cit., p. 84.
PROBLEMAS E TEORIAS ATUAIS 41

1. Matéria da interpretação jurídica

Na dogmática, reduzia-se o objeto da interpretação às normas jurí­


dicas; como dissemos, o intérprete devia “reproduzir o pensamento do
legislador” ou “conceber pura e completamente o pensamento do legisla­
dor” (Savigny).9 Essa visão unidimensional da matéria, sobre a qual se
projeta e se constrói a interpretação, resulta fortemente impugnada. Com
efeito, estimamos que é possível descobrir até cinco dimensões na inter­
pretação jurídica, que seriam:
a) a propriamente jurídica ou reguladora;
b) afática;
c) aaxiológica;
d) a lingüística ou semiótica; e
e) a lógica.

a) Dimensão propriamente jurídica ou reguladora: A perspectiva


dogmática centrava sua atenção nesta dimensão, inclusive reduzindo-a às
normas jurídicas. No entanto, em nossos dias a doutrina e a jurisprudência
têm pouca dificuldade para reconhecer os princípiosjurídicos como um modo
específico de regular e juridicizar as condutas humanas, atribuindo-lhes um
determinado status deôntico (como proibidas, obrigatórias ou permitidas).
Isto é, o intérprete, ao procurar a regra ou medida jurídica adequada para
solucionar um problema, não somente pode recorrer às normas propriamente
ditas, mas também tem à sua disposição os princípios jurídicos. Mais preci­
samente, reconhece Perelman que uma das notas mais distintivas, que justi­
fica falar de uma nova etapa na interpretação depois da Segunda Grande
Guerra, seria o recurso aos princípios gerais do direito. O grande paladino
teórico atual dos princípios é o professor de Oxford R. Dworkin,10 que, ante
o modelo de Hart de reduzir o sistemaj urídico a um sistema de normas (system
qfrules), opõe sua visão na qual o sistemajurídico aparece basicamente como
um sistema de princípios. A jurisprudência européia continental, mesmo
aquela tradicionalmente vinculada à dogmática, como a francesa, foi dando

Op. cit., p. 82.


<l0> Cf. meu artigo Implicâncias de los princípios en la teoria jurídica de Ronald
Dworkin. Filosofia dei derecho. Santa Fe (Argentina): Universidad Nacio­
nal dei Litoral, 1993.
42 INTERPRETAÇÃO JURÍDICA

mostras da recepção dos princípios jurídicos e, assim, menciona-se a “revo­


lução” que significou para o ordenamento jurídico francês a decisão do
Conselho constitucional em 1971 que declarou operativos o Preâmbulo e as
Declarações revolucionárias.
De outra parte, lembremos também aqueles autores que ampliam o
âmbito regulador das condutas com os valores, de modo que, para estabe­
lecer se uma determinada conduta é proibida, permitida ou obrigatória
segundo o direito, não só cabe recorrer às normas e aos princípios, como
também cabe a remissão aos valores. Mesmo assim, vale acrescentar que
o intérprete nunca opera com uma norma isolada, mas, na realidade, faz-
se sempre presente em sua tarefa o ordenamento jurídico; por isso, é mui­
to apropriada a imagem de Cossio de que o direito, quando aplicado, é como
uma esfera em que há um ponto em que ela se apóia, mas sobre o mesmo
descansa o peso de toda a esfera.

b) Dimensãofática: Os fatos com que se defronta o intérprete jurídi­


co deixam de ser um problema esquecido ou simplesmente estudado por
processualistas, para converterem-se em tema de grande significado e in­
teresse desde a teoria geral do direito. O positivismo filosófico do séc. XIX
acreditava nos fatos puros; contudo, o fato original ou bruto é - como põe
de relevo Larenz11 - em parte abreviado e em parte completado pelo intér­
prete e, nesta tarefa, aparecem necessariamente valorações. Cueto Rúa,
ao fazer o prólogo do livro de J. Frank, Direito e incerteza, entende que tal
obra concentra “o interesse dos leitores num aspecto tão descuidado da
teoria jurídica, como o relativo à produção da prova” e, após sublinhar o
escasso interesse pela produção judicial da prova, conclui: “A realidade
de nossos tribunais, nesta matéria, é deplorável”.12
Para o paradigma dogmático, o objeto da interpretação era a nor­
ma, e os fatos não apresentavam dificuldades teóricas relevantes. Hoje
se insiste que o jurista não é alguém que descreve os fatos, mas um ver­
dadeiro “construtor” dos mesmos, segundo Hemández Gil.13 Mais ain­

(ll) LARENZ, K. Metodologia de la ciência dei derecho. Barcelona: Ariel, 1960.


p. 215; na edição de 1994, p. 275.
<l2> CUETO RÚA, J. Prólogo. In: FRANK, J. Derecho e incertidumbre. Méxi­
co: Fontamara, 1991. p. 19.
(l3) HERNÁNDEZ GIL, A. El abogado y el razonamiento jurídico. Madrid:
1975. p. 105.
PROBLEMAS E TEORIAS ATUAIS 43

da, chega-se a dizer que o momento de maior discricionariedade judi­


cial é o momento da definição jurídica dos fatos. O livro de J. Wroblewzki,
intitulado Sentido efato no direito,14 permite comprovar de modo inques­
tionável toda a riqueza e complexidade que supõe a abordagem dos fa­
tos jurídicos desde a teoria geral, a qual em nada coincide com os enfo­
ques levados a cabo pelos processualistas. Exemplifiquemos estes no­
vos adornos que assumem os fatos no direito com a chamada teoria da
insignificância no direito penal.

c) Dimensão axiológiccr. O juridicismo do modelo dogmático impe­


dia incorporar na teoria da interpretação jurídica a dimensão axiológica; é
que a inclusão desta implicava a renúncia às pretensões científicas ou a
incorporação ao reino da subjetividade, do irracional ou do voluntarismo.
Lembremos que, para Kelsen, a escolha que realizava o intérprete, ao criar
sua norma dentro do quadro de opções que lhe deixava a norma superior,
era um ato de vontade, racionalmente incontrolável.
Não somente se evoluiu até reconhecer que em toda tarefa e resulta­
do interpretativo havia de modo imprescindível um compromisso axioló-
gico, mas também que era possível ceder racionalmente a este, seja em
seus aspectos formais e/ou em seus aspectos substanciais. Um testemu­
nho insuspeito desta revalorização da ética normativa seriaE. Bulygin, para
quem, numa entrevista a Von Wright apresentada na revista espanhola Doxa
de 1992, assinala: “O cognitivismo ético parece ser a tendência dominan­
te em nossos dias; muitos autores contemporâneos, que escrevem sobre
temas éticos e políticos, consideram que os juízos de valores são (objeti­
vamente) verdadeiros ou falsos”.15
Outro testemunho insuspeito pode ser o de A. Aamio, que, após qua-
lificar-se como um “moderado relativista axiológico”, afirma: “Além dos
aspectos racionais, na interpretação jurídica se confere uma posição cen­
tral à teoria dos valores”.16 A irrupção transbordante do tema dos direitos
humanos, ou moral rights, forçou a levar em conta esse material axiológi­
co na interpretação, segundo se percebe em autores como Dworkin ou Nino;

1141 WROBLEWZKI, J. Sentido y hecho en el derecho. San Sebastián:


Universidad dei País Vasco.
<l5’ Revista Doxa, Alicante (Espanha), 1992, p. 390.
"6) Lo racional como razonable. Madrid: Centro de Estúdios Constituciona-
les, 1991. p. 18.
44 INTERPRETAÇÃO JURÍDICA

pois está claro que um ceticismo radical supõe remeter os direitos huma­
nos ao campo da pura retórica ou da luta política.
Parece que, hoje em dia, mais que posturas céticas em matéria ética
ou axiológica, predominam posições intersubjetivas (éticas do consenso,
do diálogo, comunitarismos etc.) ou objetivas (a nova escola do direito
natural de Grisez, Boyle, Finnis etc.). Até mesmo aquelas questões que
tentam desdobrar-se apenas no plano formal ou procedimental terminam
fazendo concessões que avançam sobre o material ou substancial.

d) Dimensão lingüística: Advertimos que um complemento neces­


sário para o funcionamento do modelo dogmático era sustentar uma con­
fiança absoluta nas possibilidades da linguagem, enquanto se ignoravam
os problemas semânticos, sintáticos e pragmáticos que o uso daquele com­
porta. Essa visão ingênua ou “mágica” (Camap) possibilitava que se pre­
tendesse que o intérprete repetisse exatamente a lei para o caso.
Embora os problemas da linguagem não tenham passado inadverti­
dos ao longo da história da filosofia, é indubitável que justificadamente se
denominou o séc. XX como o século da linguagem e, em particular, insis­
tiu-se na “guinada pragmática” experimentada pela filosofia contempo­
rânea. Para além de ênfases e exageros, a escola analítica converteu o pro­
blema da linguagem num problema inevitável para qualquer teoria da in­
terpretação jurídica, pois, como adverte Scarpelli, o jurista “a cada passo
deve determinar e criar significados, reconhecer, construir ou reconstruir
relações semânticas, sintáticas e pragmáticas”.17 A. Kaufmann ressaltou
que as contribuições da analítica seriam inevitáveis, ainda que destaque,
ao mesmo tempo, a insuficiência das mesmas.
A polêmica na Argentina entre S. Soler e G. Carrió reflete os dois modos
claramente identificáveis acerca da linguagem jurídica. Com efeito, lem­
bremos que o primeiro - em sintonia com o modelo dogmático - defendia
uma linguagem jurídica semelhante à linguagem matemática da geometria,
enquanto o segundo aconselhava - desde o campo analítico - resignação
ante os problemas com que inevitavelmente se defronta a linguagem jurídi­
ca, especialmente os do caráter vago, ambíguo e de textura aberta.
Essa falta de atenção e precisão lingüística resulta em que, particu­
larmente nós os juristas, venhamos a implicar-nos em discussões que gi­

(17) SCARPELLI, U. Semantica giuridica. Novíssimo Digesto Italiano, t. XVI,


1969. p. 994.
PROBLEMAS E TEORIAS ATUAIS 45

ram mais sobre palavras do que sobre conceitos ou realidades, dado que
chamamos coisas distintas com termos iguais, ou vice-versa. Não é de­
mais fazer referência à própria realidade argentina, onde assistimos uma
atitude transgressora em tomo da linguagem, que se projeta numa notável
ignorância, pobreza ou violação das regras da gramática do idioma espa­
nhol, ou seja, tudo o que perturba o uso da linguagem.

e) Dimensão lógica: A dogmática, na sua preocupação por uma ciên­


ciajurídica rigorosa e por confiar em resultados interpretativos plenamente
previsíveis e objetivos, pretendeu submeter a interpretação a uma lógica
própria do mundo matemático; explicitamente, Liard reclamará na Fran­
ça que os artigos do Código funcionem como teoremas. As meras exigên­
cias de uma lógica formal rigorosa bastavam para que, por meio de um
simples silogismo dedutivo, fosse possível ter o resultado interpretativo
que coincidia exatamente com a conseqüência prevista e desejada pela lei.
Foram variadas as tentativas de formular uma lógica especial do
mundo jurídico, seja entendida - precisa Bobbio18- como “lógica do di­
reito”, inserida no estudo da estrutura lógica das normas e do ordenamen­
to jurídico, sejacomo “lógica dos juristas”, cujo objeto são os raciocínios
ou argumentações que são concretizados pelos juristas. A ampla teoria de
G. Kalinowski19 neste ponto põe em relevo a presença da lógica formal
nos raciocínios e no saber interpretativo, mas, ao mesmo tempo, adverte
para a insuficiência da mesma, considerando que, além de argumentos de
“coação intelectual”, que são proporcionados ao jurista pela lógica for­
mal, menciona o pensador polonês que há também os argumentos “para-
lógicos”, caracterizados por sua capacidade persuasiva ou retórica, bem
como os argumentos “extralógicos”, ou propriamente jurídicos, enquan­
to constituídos por presunções, ficções etc. estabelecidas no direito.
Essa preocupação, que seria a de dotar os juristas de uma lógica que
facilite seu discurso correto e que, por sua vez, permita seu controle, teve
nas últimas décadas a contribuição de uma lógica específica das normas - a
lógicadeôntica, cujapatemidade é atribuída a Von Wright e a G. Kalinowski.
Ainda que a afirmação de Sidgwick nos possa parecer exagerada -
“Combater as falácias é a razão de ser da lógica” -, o certo é que, desde

(l8) BOBBIO, N.; COMTE, A. Derecho y lógica. Bibliografia de lógica jurídi­


ca (1936-1960'). México: Centro de Estúdios Filosóficos - UNAM, 1965.
Introducción a la lógica jurídica. Buenos Aires: Eudeba, 1973.
46 INTERPRETAÇÃO JURÍDICA

Aristóteles, a lógica inclui o estudo das falácias, ou seja, daqueles racio­


cínios inválidos, embora aparentemente corretos. No mundo jurídico,
quiçá por ignorância ou por hábitos adquiridos, abundam essas incorre­
ções, algumas vezes de boa-fé (paralogismos), outras com o propósito
de enganar (sofísmas).

2. Sujeitos interpretativos

No modelo dogmático, a tarefa interpretativa era desdobrada pelo juiz,


enquanto cumpria uma função meramente teorética ou cognitiva, decla­
rando o sentido outorgado pelo legislador à lei, cuja importância residia
em ser o passo inicial ou introdutório da ciência jurídica (Ihering). A inter­
pretação ficava categoricamente diferenciada da criação jurídica e era
assumida por um juiz preocupado em ser fiel ao legislador, identificando
seu pensamento e habilitando com isso o caminho para que a ciência re­
construísse sistematicamente o direito.
A teoria contemporânea mostrou que toda tarefa dos juristas - em seus
distintos modos de operar: ensinando, aconselhando, advogando ou pres­
crevendo - reduz-se a determinar ou individualizar a solução que reclama
um caso concreto; daí não se verificar uma diferença substancial entre o le­
gislador e o juiz, mas sim diferenças bem quantitativas; assim, aquele fala
imperativamente para pessoas e casos indeterminados, enquanto o juiz fala
imperativamente para pessoas e casos determinados.
Além dessa semelhança ou aproximação entre a função legislativa e
a judicial, são reconhecidos outros sujeitos ou agentes interpretativos que
definitivamente cumprem uma função técnica similar, qual seja a de pro­
jetar desde o direito a solução ou conduta jurídica que é necessário adotar,
não adotar ou que é permitido adotar para o caso. Assim também se assi­
nala a existência da “interpretação administrativa”, realizada pelo poder
da Administração, através de resoluções, decretos, circulares, e outras; bem
como da “interpretação consuetudinária”, cumprida pela sociedade atra­
vés de uma norma jurídica consuetudinária; e da “interpretação de con­
senso ou comutativa”, quando é a vontade das partes que determina a in­
terpretação jurídica numa norma jurídica individual que vigora entre elas
(por exemplo, num contrato).
As espécies de interpretações jurídicas citadas acima, ainda que se
diferenciem pelos distintos sujeitos ou agentes interpretativos, coincidem
no que tange ao resultado interpretativo, que se consagra numa norma ju­
PROBLEMAS E TEORIAS ATUAIS 47

rídica - geral ou particular mas há outros tipos de interpretação jurídica


que são realizados por outros sujeitos ou agentes, cujas interpretações não
assumem a forma de normajurídica, senão que, na realidade, tentam orien­
tar a criação de outras normas ou a realização de certas condutas. Assim,
por exemplo: a “interpretação doutrinária”, na qual se postula uma inter­
pretação por parte de estudiosos, cuja autoridade técnico-profissional e
objetividade lhe oferecem uma forte possibilidade de acolhida por parte
da comunidade de juristas a que se dirige; também podería falar-se de uma
“interpretação profissional ou advocatícia”, que embora realizada por es­
pecialistas como a anterior, tem a particularidade de responder ao interes­
se de certos sujeitos que são aconselhados ou defendidos ante os tribunais.
Em definitivo, o que queremos frisar neste ponto sobre os sujeitos
interpretativos é que, diante do modelo dogmático, em que a tarefa inter-
pretativa gerava temores pelos riscos inovadores ou críticos que podiam
assumir os intérpretes e que, por isto, era reconhecida de forma fictícia
somente ao juiz, vemos que contemporaneamente foram varridos aqueles
temores. Assim, com realismo se admite que é aí onde o direito está em
movimento - desde a Constituição ao escrito de um advogado em juízo -
concretizou-se uma interpretação jurídica, cuja análise se dá no âmbito de
uma teoria da interpretação. Parafraseando Villey, podemos dizer que o
direito é uma obra coletiva que começa no constituinte mas culmina no
juiz, quando com eqüidade estabelece a conduta justa. Textualmente es­
creve A. Ollero: “A tarefa jurídica consiste, pois, fundamentalmente num
trabalho de determinação (...) a determinação do direito remete, em prin­
cípio, à explicitação de um texto legal escrito, já a determinação da lei reen­
via a um texto radicalmente ontológico”.20

3. O saber jurídico como saber prático

O modelo dogmático estimulou um saber jurídico que se assemelha­


va aos saberes matemáticos. Desse modo, tinha a pretensão de que fosse
meramente cognitivo ou especulativo, desligado do campo do obrar hu­
mano e sem compromisso ético ou axiológico; por outro lado, deveria
subministrar saberes de certeza absoluta ou sem exceções, cuja obtenção
não transitasse por um caminho controverso, mas pacífico e linear. Essa

<2(l) Interpretación dei derecho y positivismo legalista. Madrid: Revista de


Derecho Privado, 1982. p. 45.
48 INTERPRETAÇÃO JURÍDICA

posição extrema da dogmática terminou gerando outros extremismos,


embora de tipo contrário; lembremos, a respeito, as postulações irraciona-
listas ou a-racionalistas de Isay (decisionismo), Dahn (jurisprudência de
sentimentos), Kantorowicz (direito livre) ou Gurvitch (direito intuitivo).
Perante os extremismos apontados, inicia-se, depois da Segunda
Guerra Mundial (Perelman), a reivindicação para que o jurista manifes­
tasse uma maneira de raciocinar ou de saber que se vinculasse, por dis­
tintas vias, à “antiga” razão prática da que falava Aristóteles e que impli­
cava rejeitar a visão reducionista da razão que apoiara o positivismo ju­
rídico. A tópica de Viehweg, a nova retórica de Perelman ou a dialética
de Villey se inscrevem claramente nessa corrente que, no campo dos
saberes sobre a práxis humana, chamou-se de “reabilitação da filosofia
prática”, isso a partir da obra coletiva publicada por Manfred Reidel na
Alemanha em 1972-1974, que leva esse mesmo título (Rehabilitierung
der praktischen Philosophie).
O saberjurídico integral, assemelhando-se aos saberes práticos, deve
orientar-se, sem complexos, à orientação de condutas humanas, enfren­
tando os polêmicos problemas axiológicos, resignando-se pela obtenção
de certezas prováveis e também se dispondo a solucionar as controvérsias
argumentativas. Para alguns, o saber jurídico ou o discurso dos juristas se
desdobra num plano pretensiosamente formal; assim, por exemplo: o con­
teúdo mínimo de direito natural de Hart; a moral interna do direito de Ful-
ler; a racionalidade mínima de Peczenik; a aceitabilidade racional de Aar-
nio ou as vinte e oito regras do discurso prático de Alexy. Dizemos que é
“pretensiosamente formal”, porque muitas das exigências ou característi­
cas que se dirigem ao saber ou raciocínio jurídicos, pretendendo não se
introduzir em questões substanciais, erram nesse intento. Tal é o caso in­
clusive de uma das teorias mais completas a esse respeito - referimo-nos
à teoria de Robert Alexy, que segundo a opinião insuspeita de Aarnio,
mistura exigências que “têm o caráter de direito natural” com outras que
têm “um matiz empírico”.21 Afora essas propostas, contamos com outras
que decididamente ingressam em requisitos ou notas substanciais. Tal é o
caso da escola realista clássica, com suas noções do justo natural e do sa­
ber prudencial (Hervada, Kalinowski); os princípios em Dworkin; os di­
reitos humanos em Nino, Peces-Barba ou Femández Galiano; ou as exi­
gências básicas da racionalidade prática de Finnis, entre outros.

(2n Op. cit., p. 253.


PROBLEMAS E TEORIAS ATUAIS 49

Ao afirmar-se o saber jurídico como saber prático, as pretensões ju-


ridicistas, que tentam explicar o direito somente a partir do puro direito,
são colocadas de lado, evitando contaminações políticas, éticas e outras.
Ao mesmo tempo, um saber prático tem como finalidade, mais próxima
ou mais afastada, dirigir as condutas humanas, preferindo umas e despres­
tigiando outras; quer dizer, a visão do jurista deixa de ser a de um especta­
dor que se dirige para o passado ou para algo concluído, para converter-se
numa visão de protagonista e orientada a introduzir na realidade uma con­
duta ou uma norma jurídica inédita.

4. As fontes do direito

O modelo dogmático operava reconhecendo uma única fonte do di­


reito: a lei, ainda que com alguma concessão teórica em favor de outras
fontes, como, por exemplo, o direito consuetudinário e o direito científico
em Savigny. O quadro atual se apresenta muito mais complexo do ponto
de vista teórico e pouco claro no plano prático. Para começar, temos de
relembrar o já mencionado mundo dos princípios gerais do direito, segun­
do a terminologia do codificador jusprivatista, ou princípios jurídicos,
segundo a linguagem da filosofia jurídica ou teoria geral do direito. Seu
caráter de fonte formal do direito, juntamente com outras fontes formais
de onde emergem normas jurídicas, foi consolidando-se e, em conseqüên-
cia, cabe ao jurista extrair uma solução jurídica não somente de normas
como também de princípios. A aparição desta nova fonte, à margem das
normas,22 gera grandes inquietudes por parte dos juristas, ao mesmo tem­
po em que amplia as faculdades interpretativas; mas quiçá muitos desses
temores têm relação com a escassa atenção doutrinária que se deu aos prin­
cípios, no que tange a esclarecer com certa objetividade seu conteúdo e
modo de aplicação. Para acalmar tantas interrogações provenientes espe­
cialmente do campo dos advogados litigantes, talvez fosse conveniente
recorrer ao exemplo do âmbito anglo-saxônico, onde não mais se discute
o uso dos princípios como fonte do direito e, contudo, não se constata que
seja aquele o reino da insegurança ou da arbitrariedade. Um exemplo do
avanço confuso e até contraditório dos princípios como fonte do direito é
o Código Civil espanhol, que, na reforma de 1974, reconheceu os princí-

1221 Cf. meu artigo Una teoria distintiva fuerte entre normas jurídicas y princípios
jurídicos. Revista de Doctrina y Jurisprudência de la Província de Santa
Fe, Panamericana, n. 2, p. 55.
50 INTERPRETAÇÃO JURÍDICA

pios gerais do direito como “informadores” da ordem jurídica e, contudo,


autoriza sua aplicação subsidiária diante da lei ou do costume.23
Deixando de lado os princípios e mantendo uma visão das fontes
vinculadas apenas às normas, igualmente se confirma quão afastadas es­
tão da realidade atual as teorias das fontes do direito que são elaboradas
com maior ou menor ortodoxia em relação ao modelo dogmático. Com
efeito, pensemos na Constituição, a respeito da qual se foi consolidando o
reconhecimento de que tem a natureza de uma verdadeira e específica
norma jurídica; lembremos o proposital título de Garcia de Enterría, A
Constituição como norma jurídica. Desta perspectiva, já não cabe enten­
dê-la como um mero programa político dirigido ao Poder Legislativo, que
era quem deveria traduzir tal programa como norma jurídica na oportuni­
dade e com as características que estimasse oportunamente. Tampouco
deve-se assemelhar a Constituição à lei, dada a sua supremacia estritamente
jurídica em relação à própria lei.
Também podemos exemplificar a ruptura da teoria dogmática das
fontes do direito com a alusão ao direito comunitário, com a referência à
sua presença operante dentro do ordenamento jurídico nacional, acima das
leis ou da Constituição.24 Além disso, a jurisprudência já não pode ser
definida como a norma individual que aplica a lei ao caso, porque exce­
dem amplamente essa caracterização certos tipos jurisprudenciais, como
as “sentenças plenárias” dos tribunais argentinos e a jurisprudência cons­
titucional; pois aquelas têm um alcance geral equivalente a uma lei inter-
pretativaque obriga, vinculando sentenças futuras, inclusive os juizes que
não compartilham o critério das “sentenças plenárias” ou que não se pro­
nunciaram; já as sentenças sobre o controle de constitucionalidade termi­
nam consagrando critérios jurídicos de eficácia geral, que chegam até a

<23) G. G. Valdecasas afirma que, admitindo nos princípios “su caracter informador
dei ordenamiento jurídico, resulta un contrasentido subordinados a las leyes
y costumbres por ellos informadas (...) en buena lógica, no puede, o no debe
existir contradicción entre los princípios informadores dei ordenamiento jurí­
dico y las normas particulares (leyes y costumbres) por ellos informadas. Y,
si tal contradicción existiera el conflicto debería decidirse a favor dei princi­
pio general, superior por su propia validez o fuerza intrínseca” (Los princípios
generales dei derecho en el nuevo título preliminar dei Código Civil. Anuário
de Derecho Civil, t. XXVIII, fase. II, n. 325).
<24> Cf. meu livro Interpretación constitucional. Buenos Aires: Abeledo-Perrot,
1993. p. 181-191.
PROBLEMAS E TEORIAS ATUAIS 51

invalidação de uma lei. Também com o direito consuetudinário, que foi


ignorado pelo Código francês e somente seria admitido pelo art. 17 do
Código Civil argentino, quando este afirma que “a lei se remetia ao mes­
mo, terminando por reconhecê-lo em seus modos supletivo e também re-
vogatório-, assim a reforma de 1968 do Código Civil não somente supri­
miu a condenação ao costume revogatório como também reconheceu a
validade jurídica do costume supletivo”.25
Esta visão renovada das fontes do direito podería também incorpo­
rar à análise o âmbito dos acordos coletivos de trabalho ou de certas nor­
mas de alcance geral ditadas por organismos ou entes da Administração
direta ou indireta (pensemos nas resoluções da Direção Geral Impositiva
argentina quanto a ingressos públicos, ou circulares - até telefônicas - do
Banco Central), mas não o estimamos necessário, dado avaliarmos que o
quanto argumentado serve para colocar em crise não somente a teoria exe-
gética unívoca das fontes do direito (direito = lei), mas também aquelas
teorias solidamente difundidas que ampliam o quadro das fontes formais
do direito com a lei, o costume jurídico, a jurisprudência e os atos jurídi­
cos; exemplifiquemos esta perspectiva com as obras argentinas mais usa­
das de Direito Civil I e com o livro de Cueto Rúa, Asfontes do direito, no
qual se reafirma aquela tipologia tetrapartite, ainda que no lugar dos atos
jurídicos se mencione a doutrina. A ânsia renovadora de uma doutrina vai
muito além de repensar o conjunto das fontes do direito, pois tenta refor­
mular um novo conceito em grande parte tomado do direito anglo-saxôni-
co, no qual se dilui a distinção entre fontes formais e materiais e se avança
identificando as fontes do direito com “toda razão que pode ser usada como
base justificativa da interpretação” (Aamio).26

5. Enfraquecimento do sistema

A obsessão savignyana por apropriar-se do direito, recompô-lo e tra-


duzi-lo sistematicamente equivalia a deixar constituída uma verdadeira

<25) O original art. 17 do Cód. Civil argentino prescrevia: “As leis não podem ser
revogadas, no todo ou em parte, senão por outras leis. O uso, o costume ou a
prática não podem criar direitos, senão quando as leis se referem a eles”,
enquanto a redação atual é a seguinte: “Os usos e costumes não podem criar
direitos senão quando as leis se refiram a eles ou em situações não reguladas
legalmente”. Cf. meu livro Integración de la ley. Buenos Aires: Astrea, 1978.
1261 Op. cit., p. 123.
52 INTERPRETAÇÃO JURÍDICA

ciência jurídica que se movia no plano do formal, ou seja, do estável, per­


manente e universal, deixando de lado o substancial e, conseqüentemen-
te, a mutabilidade, circunstancial e temporal. Essa visão sistêmica do di­
reito sofre um duro ataque na década de 1950 por iniciativa de Viehweg,
que, em seu pequeno mas sugestivo livro chamado Tópica e jurisprudên­
cia, irá contrapor - na esteira de Hartmann - dois modos de pensar o direi­
to: o modo sistemático e o modo aporético ou problemático. No primeiro,
privilegia-se o sistema, a partir do qual se analisa o problema ou uma in­
justiça, e tanto é assim que sua leitura mostra-se condicionada e até deter­
minada pelas categorias do sistema; pelo contrário, na perspectiva tópica
privilegia-se o caso e sua solução e, por isso, sua leitura é mais realista e a
solução mais adequada e eficaz. Não somente a hermenêutica colocou esta
preocupação central pelo caso em detrimento das exigências sistemáticas,
mas também a dialética de Villey, a prudência de Kalinowski, o método
hercúleo de Dworkin, e outros tantos autores também se inscrevem numa
similar orientação favorável ao problema e sua resolução.
Aquela dogmática perspectiva, ingênua e simplificada, que enten­
dia o direito “como um organismo lógico de instituições e definições jurí­
dicas” (Ihering) com uma “força expansiva lógica dos seus conceitos”,
complicou-se fortemente na doutrina atual. A análise lógica do sistema
jurídico serviu para manifestar seus diferentes defeitos lógicos: silêncios,
contradições e redundâncias. O legislador do ideário exegético, dotado de
uma racionalidade perfeita relacionada à sua capacidade de coerência e
previsibilidade onicompreensiva, soa como uma pueril antigüidade; do
mesmo modo soaria a confiança savignyana de que o sistema produzido
pela ciência tem, através da analogia, a totalidade das respostas jurídicas.
Essa confiança excessiva no direito positivo levou a extremos notáveis,
como coloca em destaque Blondeau: “Se o juiz se encontra na presença de
uma lei ambígua ou de leis contraditórias e não é capaz de entender clara­
mente o pensamento do legislador, terá motivos tão poderosos para abs­
ter-se como para atuare, conseqüentemente, para considerar essas leis como
não existentes, podendo, em conseqüência, rejeitar a demanda”.27
O ideal da plenitude hermética do direito positivo foi construído como
um verdadeiro dogma por Bergbhon mas, ainda no séc. XX, Kelsen insis­
te que não há lacunas ou, no máximo, para a teoria pura, pode-se falar de
lacunas axiológicas, enquanto a solução expressa ou tácita oferecida pelo

1271 Prefácio. Chrestomatie. p. XII.


PROBLEMAS E TEORIAS ATUAIS 53

ordenamento jurídico e sua norma geral de proibição ou de clausura (“tudo


o que não está proibido está permitido”) se estima incorreta em termos axi-
ológicos. Contudo, como sempre ocorre, a realidade pode mais que a fic­
ção e, assim, no começo e de modo temeroso e duvidoso, reconheceram-
se lacunas na lei, mas finalmente se abordaram as lacunas no ordenamen­
to jurídico normativo. Entre estas lacunas, cabe distinguir pelo menos as
seguintes: lacuna por ausência de norma (proposital ou não proposital;
original ou superveniente); lacunade reconhecimento (Alchourron e Buly-
gin - indeterminações semânticas do caso genérico previsto na norma
impedem determinar se o caso individual de que ocupa o jurista está ou
não incluído naquele); lacuna de conhecimento (Alchourron e Bulygin -
deficiências de informação no caso individual impedem determinar se este
coincide com o caso genérico definido por uma dada norma); lacuna por
conflito (Klug) ou colisão de normas (Engisch); e lacuna axiológica ou de
eqüidade (a aplicação da norma gera uma resposta manifestamente injus­
ta ou não-razoável). A admissão de uma lacuna leva ao problema de sua
integração e, a este respeito, as respostas geralmente passam pela analo­
gia, pela eqüidade, pelos valores e pelos princípios gerais do direito. Uma
classificação que traduz certa concepção juspositivista distingue (Bobbio)
entre métodos de auto-integração (princípios gerais e analogia) e méto­
dos de heterointegração (direito natural ou eqüidade). E que, segundo esta
classificação, ao que parece, insiste-se em que o ordenamento jurídico tem
um quadro definitivo e claro de normas e princípios gerais, extraídos via
generalização crescente a partir das mesmas normas; em definitivo, não é
mais que uma versão algo renovada ou suavizada do modelo dogmático.
Além do defeito da ausência de previsão normativa, cabe falar do
defeito de contradição ou de falta de coerência ou consistência entre as
normas, ou seja, quando, para os mesmos suportes fáticos, diferentes nor­
mas imputam conseqüências contrárias ou contraditórias. Em face deste
defeito, a doutrina propõe para resolver tais antinomias diferentes crité­
rios: hierárquico, temporal, especialidade, axiológico e de competência.
Um problema posterior surge quando a solução a que se chega ao escolher
um desses critérios é diferente se escolhermos algum outro critério; nesta
hipótese fática, estamos diante das chamadas “antinomias de segundo
grau”, e a dificuldade reside em qual dos critérios deve prevalecer.
Desdenha-se também a crença no legislador pleno e perfeitamente
racional ao assinalar outro defeito lógico do sistema jurídico, o da redun­
dância normativa; isto é, quando há mais de uma norma que consagra a
54 INTERPRETAÇÃO JURÍDICA

mesma solução para idêntico problema. Esta imperfeição de superabun-


dância ou falta de economia normativa, longe de gerar vantagens, provo­
ca sobrecargas desnecessárias na tarefa do jurista.

6. Enfraquecimento da norma

Além do referido enfraquecimento na visão sistêmica do direito,


confirma-se na prática jurídica o que se podería chamar de um enfraque­
cimento das normas, no sentido de que ficou para trás aquela pretensão de
que o jurista seria um mero repetidor mecânico e autômato da lei. Em pri­
meiro lugar, por via das possibilidades que oferecem a interpretação ex­
tensiva e a interpretação restritiva (inicialmente rejeitadas por Savigny),
onde ao menos teoricamente não há propriamente o afastamento da nor­
ma, mas simplesmente se admite junto àquela interpretação, que declara
exatamente o que quis dizer o legislador (interpretação taxativa), uma in­
terpretação que amplie esse significado e outra que o restrinja. Sem dúvi­
da, ao superar o essencialismo verbal, incrementaram-se as ofertas de re­
sultados interpretativos, segundo possibilita o próprio texto da norma,
colocando em dúvida a crença dogmática de que somente um resultado
interpretativo deriva validamente da norma.
Mas o enfraquecimento da norma se manifesta quando se postula a
interpretação revogatória ou corretora nas hipóteses fáticas em que, em­
bora não haja dúvidas de que o caso apresentado é passível de subsunção
à norma, a solução proposta por esta revela-se notoriamente injusta ou não-
razoável, pelo que importa juridicamente deixá-la de lado. Os argumen­
tos para dar respaldo a esta audaz operação do intérprete podem ser varia­
dos: o direito natural, os princípios jurídicos, a eqüidade, os direitos hu­
manos, a razoabilidade, o uso alternativo, a análise conseqüencialista, entre
outros. A presença operativa em todo o direito da Constituição facilita que,
através da invocação de valores ou princípios constitucionais, despresti-
gie-se ou invalide-se uma norma infraconstitucional.28
Outro modo grave de enfraquecimento da norma consiste no re­
curso à objeção de consciência com a intenção de evitar sua aplicação
em relação a um determinado sujeito. A peculiaridade desse modo

(28) Lembremos que a doutrina constitucional argentina admitiu a arbitrarieda­


de axiológica como causa de invalidação de normas jurídicas (Sagüés, Bidart
Campos etc.).
PROBLEMAS E TEORIAS ATUAIS 55

consiste em que um sujeito, a que se pretende aplicar uma norma, re­


sista a isso invocando exclusivamente argumentações de índole estri­
tamente pessoais. Lembremos o caso “Portillo”, que foi resolvido pela
Corte Suprema da Nação argentina, como também as propostas dou­
trinais (Gómez Pérez) de facilitar a abstenção judicial de atender um
caso em que o magistrado deva aplicar uma lei que violente suas con­
vicções mais íntimas e importantes.
Uma forte corrente “antiformalista” invadiu especialmente o campo
do direito processual, sendo suas bandeiras as de privilegiar a verdade
material ou a realidade e de não transformar as normas adjetivas num im­
pedimento ou obstáculo ao que se deve resolver substancialmente. Esta
perspectiva afetou de diferentes maneiras as instituições processuais, fle-
xibilizando-as e privilegiando o fim a que respondem e sem tolerar que se
convertam num fim em si mesmas; ao mesmo tempo, ampliou o âmbito e
a capacidade de atuação dos juizes. Por outro lado, é indubitável que esse
vento “antiformalista” excede o estritamente processual para projetar-se
sobre o direito substantivo. Exemplos do alcance dessa perspectiva anti­
formalista constituíram, em seu tempo, a recepção da indexação, a que
procede sem ter em conta o momento em que foi introduzida no processo,
a reclamação respectiva e, num exemplo mais atual, pode ser o chamado
princípio da “realidade econômica”.
Essa busca do realismo e de que o direito cumpra seu fim intrínseco
insuflou todo o processo de um sentido pragmático, no qual o juiz se con­
verte num ativo diretor do litígio e tenta solucioná-lo de forma justa. Me­
didas para melhor prevenção, despacho saneador, audiências conciliató­
rias, variedade crescente das cautelares, entre outras, são caminhos a que
o juiz recorre de forma ativa e de imaginativa, com a consciência de que
não é um mero convidado de pedra, mas foi encarregado pela sociedade
para que procure levar a paz jurídica aí onde se desatou um conflito de in­
teresses. Quanto àquela imagem de Pound, do jurista como “engenheiro
social”, ainda que possa ser objeto de reparos, não cabem dúvidas de que
parece arraigar-se. Em definitivo, as normas devem ser aplicadas pelo juiz,
mas este não é um mero construtor de silogismos quando o expediente passa
à sentença; pede-se que seja um jurista criativo, cuja responsabilidade não
se esgota ao declarar um vencedor, mas deve esforçar-se também pela con­
ciliação e o consenso. Todo o campo tão atual da chamada justiça alterna­
tiva, com meios de solução não tradicionais de conflitos, inscreve-se na­
quela visão pragmática do serviço de justiça e do direito.
56 INTERPRETAÇÃO JURÍDICA

7. Importância da argumentação justificativa

Assinala Atienza que, no contexto do direito atual, não parecem sus­


tentáveis nem o determinismo metodológico (as decisões jurídicas não
necessitam ser justificadas porque procedem de uma autoridade legítima
e/ou são o resultado de simples aplicações de normas gerais), nem tam­
pouco o decisionismo metodológico (as decisões jurídicas não podem ser
justificadas porque são puros atos de vontade).29 As sociedades democrá­
ticas impõem um esforço justificativo especial por parte daqueles que
exercem o poder. O mero argumento de autoridade já não satisfaz no âm­
bito de uma cultura que desconfia do poder e que se nutre do pluralismo.
Essas razões de índole política e social fortaleceram a necessidade de
motivação que pesa sobre os juizes; mais precisamente, autores como
Cappelletti aduzem em favor da legitimidade do Poder Judiciário, apoian-
do-se na responsabilidade que têm os juizes de justificar suas decisões.
Mas, além disso, a exigência de justificação descansa não somente
naquele interesse segundo um exercício democrático do poder, mas tam­
bém no interesse mais imediato dos destinatários da norma, que, por sua
vez, consagra um determinado resultado interpretativo. Desse modo, fi­
cam abertas as vias impugnatórias ante as instâncias judiciais superiores
por parte dos agravados pela decisão, os quais por sua vez tentarão rebater
os argumentos dados em apoio à mesma. A argumentação não só abarca a
necessidade de explicar ou descrever o caminho lógico-jurídico a que o
juiz recorreu para chegar à resolução que adotou, mas também a necessi­
dade de justificá-la substancialmente. A este respeito, Wroblewski e Ale-
xy advertiram sobre a necessidade de distinguir entre justificação externa
e justificação interna. Esta última faz referência aos mecanismos de infe­
rência já estabelecidos nas premissas, enquanto a justificação externa se
questiona sobre a validade das próprias premissas e as regras de inferên­
cia; logicamente as maiores dificuldades aparecem nesta última modali­
dade justificativa. Dizia Camelutti que a sentença que decide bem mas que
raciocina mal merece ser desqualificada juridicamente, com o que se su­
blinha que por meio de uma justificação apropriada se legitima não só o
agente que a ditou como também a norma. Uma argumentação apropriada
é aquela que satisfaz aos seguintes requisitos:

<29) ATIENZA, M. Las razones dei derecho. Madrid: Centro de Estúdios Cons-
titucionales, 1991. p. 25.
PROBLEMAS E TEORIAS ATUAIS 57

a) coerência, pois não entra em contradição consigo mesma nem com


decisões anteriores;
b) universalizável, pois vale para o caso e para todos os casos iguais
que pudessem apresentar-se;
c) sincera, pois não se apóia em mentiras ou falsidades reconhecidas;
d) eficiente, pois se orienta a dar respaldo concretamente à decisão
ou opinião exposta;
e) suficiente, pois expressa todos os argumentos fortes que se po­
dem aduzir em favor do resultado interpretativo defendido;
f) controversa, pois atende aos argumentos do interlocutor e tenta
rebatê-los racionalmente; e
g) contextualizada, pois argumenta a partir de um certo sistema ju­
rídico, uma comunidade lingüística, e assim por diante.
Esta necessidade de motivação, logicamente adequada, que recai
sobre os juizes abriu uma via de desqualificação particular das senten­
ças judiciais nos casos em que elas incorram no que Ghirardi chama de
“erros in cogitando".30
Ademais, abonaria a tese da argumentação justificativa a necessidade
de que as decisões interpretativas sejam submetidas ao juízo crítico-técnico
da comunidade científica. Autores como Perelman sublinharam essa neces­
sidade de persuasão ou convencimento das argumentações, enquanto se
dirigem a um auditório particular ou ao auditório universal. As éticas do
consenso, tão em voga em nossos dias, e autores como Habermas ou Apel se
inscrevem decididamente nessa perspectiva de sustentar a necessidade da
argumentação na procura do consenso, porque aí reside a verdade prática.
Ainda sem compartilhar posturas extremas que identificam a verdade com
o consenso, cremos que devemos apostar no consenso, enquanto apostamos
na racionalidade e razoabilidade do que postulamos, e então o consenso pode
ser a manifestação da verdade prática mais que a fonte constitutiva da mes­
ma. É oportuna a advertência de Kaufmann: “Consenso como fonte do di­
reito justo, direito justo como limite do consenso”.31

l30) GHIRARDI, O. Lecciones de lógica dei derecho. Córdoba (Argentina):


1982; idem, Lógica dei proceso judicial. Córdoba: Lemer, 1982.
<3I) KAUFMANN, A. La filosofia dei derecho en la posmodernidad. Bogotá
(Colômbia): Temis, 1992. p. 59.
58 INTERPRETAÇÃO JURÍDICA

Falamos da necessidade da argumentação justificativa, aludindo basi­


camente ao juiz-intérprete; contudo, o assinalado se estende a todos os ju­
ristas no momento de defender um certo resultado interpretativo. Mais ain­
da, uma teoria da argumentação jurídica completa não deve reduzir-se ao
âmbito da aplicação ou concreção individual particular do direito, mas deve
estender-se a todas as instâncias de criação jurídica com alcance geral.
Tratando de recapitular o exposto quanto às funções que a tarefa jus­
tificativa cumpre, pode-se ressaltar que elas seriam:
a) legitimadora, tanto do resultado como do sujeito interpretativo;
b) de controle por parte das instâncias revisoras;
c) informativa, ao explicar como e por que razão se adotou tal inter­
pretação;
d) persuasiva em relação aos destinatários diretos ou indiretos do
resultado proporcionado; e
e) pedagógica, ao contribuir à análise e conhecimento do direito.

8. Sincretismo metódico

O modelo dogmático, como já insistimos, confiava que o intérprete,


seguindo os métodos interpretativos indicados pelo legislador ou pelo cien­
tista, obteria inexoravelmente o resultado interpretativo verdadeiro ou
correto. Esta confiança metodológica soa, mais que uma ingenuidade, um
verdadeiro erro cognitivo quando se analisa a tarefa interpretativa.
Já o juiz da Corte Suprema de Justiça dos Estados Unidos, Benjamin
Cardozo, formulou explicitamente esta questão pelo método a que se recor­
re ao adotar uma decisão. A própria experiência do magistrado norte-ame­
ricano lhe mostrava que, na realidade, seguia os mais diversos métodos, pois
era seu propósito encontrar a solução justa, que guiava os passos a dar, mas
não havia um caminho definido com anterioridade. A hermenêutica jurídi­
ca (Esser, Kriele, Kaufmann) expressamente desqualificou o catálogo de
cânones interpretativos proporcionados por Savigny e, assim, K. Engisch
comprova que os tribunais procuram “escolher em cada caso aquele mé­
todo de interpretação que conduza ao resultado satisfatório”.32

<32) Apud KAUFMANN, A.; HASSEMER, W. El pensamiento jurídico


contemporâneo. Madrid: Debate, 1992. p. 129.
PROBLEMAS E TEORIAS ATUAIS 59

O realismo jurídico clássico ensina que o saber interpretativo é sa­


ber prudencial33 e, precisamente, a prudência jurídica se encarrega de
deliberar, escolher e ordenar certa conduta jurídica absolutamente cir­
cunstanciada e concreta. O juízo prudencial opera como uma espécie de
ponte entre certas exigências universais, ou seja, gerais, e certo proble­
ma que compromete determinados sujeitos situados num tempo e espa­
ço estabelecidos; por isso, aquele juízo define o “justo concreto”. Lem­
bremos que para Villey o berço do direito seria a retórica que os romanos
aprenderam dos filósofos gregos; por outro lado, uma das etapas subs­
tanciais do processo retórico constituía o momento “da invenção”, em
que se procurava descobrir os pontos de vista ou critérios que permiti­
ríam resolver o conflito posto em consideração.
Em definitivo, o intérprete tem a responsabilidade de determinar, cria­
tivamente e a partir de todo o direito, a inédita solução justa que dará ao caso
que deve dirigir ou resolver e, nesse esforço intransferível a que está conde­
nado, não pode esperar que de modo geométrico lhe surja o resultado inter­
pretativo. Vem ao caso lembrar a regra de Lesbos, que metaforicamente vin­
culou Aristóteles com a eqüidade, para dar a idéia de uma justiça adaptada
ao caso e que, por isso, é “melhor que uma classe de justiça”.34

9. Revalorização da filosofia jurídica

No quadro teórico do positivismo dogmático, parece compreensível


que se reconheça como único estatuto epistemológico apropriado o da
ciência. As pretensões de certeza, objetividade e segurança eram satisfei­
tas pelo conhecimento científico rigoroso. Neste ponto não é demais ter
em conta que todo o séc. XIX está marcado pelo furor científico, que, se­
guindo os ensinamentos de Comte, implicava o passo para a maturidade,
deixando para trás a infância, que correspondia ao saber teológico, e a ju­
ventude, que equivalia ao saber filosófico. Com acerto, assinala Hemández
Gil, referindo-se à Escola histórica, que “na ordem filosófico-jurfdicadeve-
se-lhe imputar, antes de tudo, sua falta de profissão de fé filosófica. Esta

<33) Com referência à prudência jurídica, pode-se consultar MASSINI, C. I. (La


prudência jurídica. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1983), como também o
meu artigo La interpretación de la ley como saber prudencial-retórico. El
Derecho, 19 abr. 1985.
<34> Ética a Nicómaco. livro 10.
60 INTERPRETAÇÃO JURÍDICA

falta de profissão de fé, ou melhor dizendo, sua manifesta aversão e ne­


gação da consideração filosófica”.35 Essa desconfiança para com a filo­
sofia jurídica vai traduzir-se em esforços, no final do séc. XIX, para cons­
truir uma teoria geral do direito (Merkel), que, no dizer de Radbruch, é
a “eutanásia da filosofia jurídica”. A mesma teoria pura do direito parti­
cipa desse preconceito filosófico que alcançará, com o Círculo de Vie­
na, uma formulação completa.
Desde os trabalhos de Stammler na Alemanha, Geny na França ou
Del Vecchio na Itália, no sentido de recuperar um espaço para o saber
jusfilosófico ou não estritamente científico, afastado de todo empirismo
e vinculado aos problemas axiológicos, muita água correu sob a ponte
dos juristas. Textual e fora de suspeita assinala Atienza: “Nos últimos
anos não somente não se produziu a ‘morte da filosofia’ preconizada para
fim dos sessenta por diversas tendências do pensamento, como também
assistimos a um verdadeiro auge dos estudos filosóficos e, quiçá, princi­
palmente dos que estavam mais questionados (a metafísica - ou ontolo­
gia - e a ética)”.36 Igualmente oportuno é lembrar o testemunho de
Dworkin desde Oxford, em que, além de rejeitar os juristas nominalis-
tas, reclama para a filosofia não um “papel secundário”, mas o de ser “o
nervo da reflexão sobre o direito”.
A margem das distintas posições que podem detectar-se no amplo
panorama da filosofia jurídica contemporânea, pareceríam perfilar-se como
seus problemas específicos, os seguintes:
a) o ontológico, encarregado de delinear um conceito de direito que
permita estabelecer sua especificidade em face de outras reali­
dades;
b) o axiológico, cujo objeto são aqueles critérios ou notas que re­
metem ao direito que deve ser ou ao direito preferível;
c) o gnosiológico jurídico, que tenta esclarecer as características do
saberjurídico e as suas distintas modalidades -jusfilosófico, cien­
tífico e prudencial ou técnico-operativo;
d) o lógico-jurídico, que estuda não só os raciocínios jurídicos como
também analisa logicamente tanto as normas como o ordenamento
jurídico; e

<35) Metodologia de la ciência dei derecho. Madrid: 1971. p. 115.


1361 Introducción al derecho. Barcelona: Barcanova, 1985. p. 367.
PROBLEMAS E TEORIAS ATUAIS 61

e) o semiótico jurídico, que considera a linguagem jurídica nas suas


dimensões semântica, sintática e pragmática.
Sem dúvida, no quadro temático descrito, as maiores resistências
aparecem quanto aos três últimos problemas, já que importante doutrina
contemporânea resistiría a essa tripla distinção e só reconhecería a teoria
da ciência jurídica ou a lógica jurídica.

10. Variedade normativa

Ainda que não haja uma vinculação direta com o problema interpre-
tativo, parece-nos interessante incluir no presente trabalho alguma refe­
rência às análises enriquecedoras que a teoria formulou quanto aos dife­
rentes tipos de normas jurídicas, que, em última instância, servem para
mostrar as mudanças que toda a teoria jurídica vive. Para o modelo dog­
mático não havia mais do que um tipo de norma: aquela que imputava um
ato coercitivo a certo ilícito; quer dizer, o direito não era mais que uma
técnica social baseada no poder coercitivo do Estado.
Contra esse reducionismo normativo, tipicamente kelseniano, em­
bora com antecedentes em Austin ou Ihering, reagirá Hart com a sua teo­
ria das regras primárias (estabelecem os deveres jurídicos) e das normas
secundárias (têm por objeto as primeiras, e se dividem em de adjudicação,
de alteração e de reconhecimento). Mas uma das críticas mais interessan­
tes oferece Bobbio quando, na década de 1970, confessa as insuficiências
dos estudos estruturais do direito e começa a perfilar o que passou a cha­
mar de uma teoria funcional do direito, cuja pergunta central é “o direito
serve para quê?”.37
O professor italiano, após comprovar que “na teoria geral do direito
contemporânea a concepção repressiva do direito é ainda predominante”,
chama a atenção para a necessidade de pensar o direito em termos preven­
tivos, estimulando certas condutas mediante instrumentos persuasivos e
especialmente mediante consequências favoráveis ou prêmios, nos casos
em que se levem a cabo as condutas desejadas. Esta inquietude manifesta­
da por Bobbio se dirige a todos os juristas e, portanto, também aos intér­
pretes, ainda que, talvez, não vislumbremos por ora como assimilá-la.

<37) Cf. meu livro Perspectivas iusfilosóficas contemporâneas - Ross-Hart-


Bobbio-Dworkin-Villey (Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1991), especial­
mente o artigo La teoria funcional dei derecho en Norberto Bobbio.
62 INTERPRETAÇÃO JURÍDICA

11. Protagonismo social do juiz

No modelo dogmático, o juiz ocupava um papel social decididamente


sem transcendência, pois a capacidade transformadora ou configuradora
social competia ao legislador, enquanto o juiz ascética e dogmaticamente
repetiría a norma geral no caso. Em nossos dias, nas sociedades perten­
centes ao modelo jurídico continental, como, por exemplo, a Argentina,
comprova-se um protagonismo notável do intérpretejurídico oficial: o juiz.
Com efeito, adverte-se uma espécie de permanente “judicialização” dos
mais variados conflitos, como se o âmbito apropriado para a resolução dos
problemas políticos, econômicos ou culturais fossem os tribunais.
Provavelmente essa “judicialização” dos conflitos possa explicar-se
a partir da realidade anônima das sociedades contemporâneas, onde o vazio
deixado pela ausência de uma ética social pretende ser preenchido com o
direito. E indubitável que esta pretensão dirigida ao direito resulte exces­
siva, dado que existe no mesmo uma impossibilidade intrínseca de ofere­
cer soluções efetivas a problemas não-jurídicos.
Apesar dos limites e possibilidades reais dos juizes, o certo é que
vemos um protagonismo dos mesmos que transcende o jurídico e que, por
sua vez, provoca inquietudes polêmicas.38 Mesmo em países como os Es­
tados Unidos, em que a estrutura institucional atribui ao Poder Judiciário
um papel que converte os juizes, com freqüência, em árbitros sociais, po­
líticos, econômicos ou culturais, há uma espécie de permanente questio­
namento, por não contarem os juizes com legitimidade democrática que
os habilite àquela função de controle sobre os outros poderes. O eloqüen-
te título do livro de Berger, Government by judiciary, de 1977, retoma
aquelas interrogações sobre o papel que os juizes cumprem a respeito da
ordem social. Talvez possamos concluir dizendo que a distância que se
comprova entre aquela definição de Montesquieu, dos juizes como seres
autômatos e inanimados, e o presente ativismo judicial marca também a
distância entre a teoria da interpretação do modelo dogmático e as linhas
predominantes da atual teoria da interpretação jurídica.

(38) Cf. meu artigo Poder judicial y democracia. In: BARRA, et al. En tomo a la
democracia. Santa Fe (Argentina): Rubinzal-Culzoni, 1990.
Capítulo 2

A INTERPRETAÇÃO JURÍDICA
EM RONALD DWORKIN*

Adverte Hart com acerto que, ainda que o ataque antipositivista de


Dworkin se dirija contra as três teses fundamentais do positivismo, ou
seja, a separação conceituai entre direito e moral, as fontes sociais do
direito e a discricionariedade judicial, aquele considera que este tem em
“seu centro, como inspiração principal, a teoria alternativa da adjudica­
ção, que se apresenta expressamente como uma alternativa à tese da dis­
cricionariedade judicial”.1
É nosso propósito analisar sucintamente não apenas a mesma teoria
dworkiniana sobre a interpretação jurídica, como também assinalar algu­
mas teses ou dificuldades que ela implica. Insistimos na importância me­
dular que tem o problema interpretativo em toda a obra do professor de
Oxford, a ponto de podermos sustentar que ela se estruturou, em suas li­
nhas mestras, polemizando com outras teorias interpretativa; logo, assim
declara o autor no prefácio de seu livro Law’s empirei “Este livro estabe­
lece em toda sua extensão a resposta que eu tenho desenvolvido, passo a
passo, durante vários anos; que o raciocínio legal é um exercício de inter­
pretação construtiva; que nosso direito consiste na melhor justificação de
nossas práticas legais como um todo; que consiste na história narrativa que
converte estas práticas no melhor que podem ser”.2

('* Artigo publicado na Rivista Intemazionale di Filosofia dei Diritto, Milano:


Giuffrè, IV serie, LXX, out.-dez. 1993.
HART, Herbert L. A. El nuevo desafio al positivismo jurídico. Sistema,
n. 36, p. 9, maio 1980.
(2) DWORKIN, R. Preface. Law's empire. Cambridge, Massachusetts: Harvard
University Press, 1986.

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