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PESQUISA REALIZADA PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.

É PROIBIDA A REPRODUÇÃO OU A TRANSMISSÃO, CONFORME LEI DE DIREITOS AUTORAIS.

Antônio Celso Alves Pereira


Celso Renato Duvivier de Albuquerque Mello
Organizadores

ESTUDOS EM HOMENAGEM A
CARLOS ALBERTO
MENEZES DIREITO

RENOVAR
Rio de Janeiro. São Paulo
2003

A CONFERÊNCIA DE RECONHECIMENTO DE TEXTO (OCR) NÃO FOI REALIZADA.


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Celso de Albuquerque Mello
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Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Carlos Alberto Menezes Direito


C284 Estudos em homengem a Carlos Alberto Menezes Direito - Organiza-
dores Antônio Celso Alves Pereira, Celso Renato Duvivier de Albuquerque
Mello. - Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
658p. ; 23cm.

ISBN 85-7147-350-1

1. Direito, Carlos Alberto Menezes, 1942- . 2. Juristas - Brasil. I. Pereira,


Antônio Celso Alves. lI. Mello, Celso Renato Duvivier de Albuquerque.

CDD 341.61

Proibida a reprodução (Lei 9.610/98)


Impresso no Brasil
Printed in Brazil

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o Princípio da Solidariedade I

Maria Celina Bodin de Moraes 2

"Un pour tous, tous pour uno li

A. Dumas

1. Individualismo e solidariedade; 2. A transformação de


fato social em valor; 3. Solidariedade como virtude e como
necessidade; 4. O princípio constitucional da solidariedade;
5. A solidariedade como meio de transformação social e de
promoção da pessoa humana; 6. Alguns resultados da apli-
cação do princípio; 7. Conclusão.

1. Individualismo e solidariedade

Se o século XIX foi, reconhecidamente, o século do triunfo do


individualismo, da explosão de confiança e orgulho na potência do
indivíduo, em sua criatividade intelectual e em seu esforço particu-

As idéias aqui apresentadas foram amplamente debatidas com o Prof. Bruno


Lewicki, a quem agradeço, ainda, o valioso auxílio na pesquisa bibliográfica.
2 Professora Associada do departamento de Direito da PUC-Rio e Professora
Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ.

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lar} o século XX presenciou o início de um tipo completamente


novo de relacionamento entre as pessoas} baseado na solidariedade
social- conseqüência da reviravolta} na consciência coletiva e na
cultura de alguns países europeus} decorrente das trágicas expe-
riências vivenciadas ao longo da 2 a Grande Guerra3 .
Tampouco possuem origens remotas os conceitos sociojurídi-
cos de indivíduo e individualidade. Diz-se que tais noções foram
apreendidas a partir de 1860} quando se apontou} em obra hoje
clássica} o renascimento italiano como o momento inicial da assun-
ção da idéia de uma "livre personalidade" em confronto com as
sociedades anteriores em que o homem "só se reconhecia como
parte de uma raça} um povo} partido} família ou corporação - só
mediante alguma das formas do coletivo"4.
Entre nós} até a promulgação da Constituição de 1988} a única
acepção jurídica do vocábulo solidariedade era a que remontava ao
Corpus jurís cívilís: solidários são aqueles sujeitos que} encontran-
do-se em um pólo da relação obrigacional} estão aptos a receber a
dívida inteira (quando a concorrência é de credores)} ou obrigados
a solvê-la integralmente (nos casos em que a multiplicidade de su-
jeitos se registra no pólo passivo). Pluralidade subjetiva e unidade
de objeto constituem} portanto} a essência do instituto da solida-
riedades do direito obrigacional.

3 U. Eco, Entrevistas sobre o Fim dos Tempos, realizadas por C. David et al.,
Rio de Janeiro, Rocco, 1999, p. 208 e ss.
4 A referência é ao estudo de J. Burckhart, Die Kultur der Renaissance in
Italien, apud I.Watt, Mitos do Individualismo Moderno, Rio de Janeiro, Zahar,
1996, p. 128. Watt chama a atenção para o fato de que a maioria dos mitos do
mundo ocidental origina-se de figuras clássicas ou bíblicas. Diversamente, três
dos mitos do individualismo (Fausto, Dom Quixote e Don Juan) são criações
modernas que apareceram na literatura em um período não superior a 40 anos
(1587-1616). O quarto e mais famoso, Robinson Crusoe, seria criado em 1719.
No século XIX, com o crescente domínio do novo individualismo, caracterizado
pelo fato de que se passa a crer e aspirar - ser possível percorrer caminhos
individuais, esses quatro mitos difundiram-se pelo Ocidente, adquirindo status
de universalidade.
s Cf. C. M. da Silva Pereira, Instituições de direito Civil, v. II, l3 a . ed., Rio de
Janeiro, Forense, 1994, p. 58.

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A este significado soma-se hoje um outro, muito mais abran-


gente e relevante. A Constituição, ao estatuir os objetivos da Repú-
blica Federativa do BrasiC no art. 3°, I, estabelece, entre outros
fins, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Ainda
no mesmo art. 3°, no inciso IH, há uma outra finalidade a ser atin-
gida, que completa e melhor define a anterior: a erradicação da
pobreza e da marginalização social e a redução das desigualdades
sociais e regionais. Tais objetivos foram destacados, no Texto
Constitucional, no Título I, denominado "Dos Princípios Funda-
mentais" e, como taC a sua essencialidade - qualidade do que é
essencial ou fundamental- faz com que desfrutem de preeminên-
cia, seja na realização pelos Poderes Públicos e demais destinatá-
rios do ditado constitucionaC seja na tarefa de interpretá-los e, à
sua luz, interpretar todo o ordenamento jurídico nacional.
Assim é que os incisos do art. 3° conclamam os Poderes a uma
atuação promocionaC através da concepção de justiça distributiva,
voltada para a igualdade substancial, vedados os preconceitos de
qualquer espécie. Não há espaço, no projeto constitucional, para a
exclusão; mas também não há lugar para a resignação submissa,
para a passiva aceitação da enorme massa de destituídos com que
(mal) convivemos. De acordo com o que estabelece o texto da Lei
Maior, a configuração de nosso Estado Democrático de Direito
tem por fundamentos a dignidade humana, a igualdade substancial
e a solidariedade social, e determina, como sua meta prioritária, a
correção das desigualdades sociais e regionais, com o propósito de
reduzir os desequilíbrios entre as regiões do país, buscando melho-
rar a qualidade de vida de todos os seus cidadãos.
A expressa referência à solidariedade, feita pelo legislador
constituinte, longe de representar um vago programa político ou
algum tipo de retoricismo 6 , estabelece um princípio jurídico inova-

6 Entre os autores que advogam a necessidade de negar este tipo de aproxima-


ção ao texto constitucional, principalmente na manipulação dos seus princípios,
destacam-se as palavras de G. Tepedino, "Premissas Metodológicas para a Cons-
titucionalização do Direito Civil", in Temas de Direito Civil, Rio de Janeiro,
Renovar, 1999, pp. 17-18: "Não se pode imaginar [ ... ] que os princípios consti-
tucionais sejam apenas princípios políticos. Há que se eliminar do vocabulário

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dor em nosso ordenamento 7} a ser levado em conta não só no mo"


mento da elaboração da legislação ordinária e na execução das po-
líticas públicas} mas também nos momentos de interpretação-apli-
cação do Direitos} por seus operadores e demais destinatários} isto
é} pelos membros todos da sociedade.

2. A transformação do fato social em valor

o ser humano existe apenas enquanto integrante de uma espé-


cie que precisa de outro(s) para existir (rectius) coexistir)9. A con-
cepção outrora dominante teve} por longo tempo} o homem como
um ser hermeticamente fechado ao mundo exterior} isolado} soli-
tário em seu mundo interior} como se fosse uma ilha: era o chama-
do homo clausus. Esta concepção foi abandonada em prol da com-
preensão a ela oposta} isto é} aquela segundo a qual o indivíduo
existe enquanto em relação com outros (o sentido da alteridade) e
com o mundo a ele externo 10.

jurídico a expressão 'carta política', porque suscita uma perigosa leitura que aca-
ba por relegar a Constituição a um programa longínquo de ação ... ".
7 Que o princípio da solidariedade seja daqueles que mais se presta a servir
como oxigênio da Constituição, conferindo unidade de sentido e auferindo a
valoração da ordem normativa do sistema constitucional, é o entendimento ex-
presso por P. Bonavides, Curso de direito constitucional, 7a . ed., São Paulo, Ma-
lheiros, 1998, p. 259.
8 Neste sentido, P. Perlingieri, La personalità umana nell'ordinamento giuridi-
co, Napoli, ESI, 2 a . ed., 1982, p. 161: "Alia luce dei principio solidaristico devono
essere lette non soltanto le altre norme costituzionali ma tutto l'ordinamento giu-
ridico C... )".
9 Artífices desta tese são, entre outros, Georg Simmel e Norbert Elias. Cf. L.
Waizbort Corg.), Dossiê Norbert Elias, São Paulo, Edusp, 1999, p. 104: "Para
eles, indivíduo e sociedade são conceitos complementares não apenas logicamen-
te, mas também em sua realização. A pluralidade dos indivíduos produz, através
de suas relações mútuas, o que se denomina unidade do todo, isto é, a SOciedade;
mas aquela pluralidade não seria imaginável sem esta unidade".
10 É a do chamado homo non clausus Csive sociologicus) N. Elias, Norbert Elias
por ele mesmo (1990), Rio de Janeiro, Zahar, 2001, p. 97 e ss. foi um dos maiores
defensores dessa última corrente, qual o concebe o indivíduo como fundamen-

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Do ponto de vista da moderna sociologia} portanto} o indiví-


duo} como taC não existe; coexiste} juntamente com os outros in-
divíduos. E porque sua relação com os semelhantes passou a ser
avaliada como constitutiva de sua existência} uma condição funda-
dora} não pôde ele mais ser estimado} como havia feito o pensa-
mento liberal-individualista} como uma pequena "totalidade"} uma
microcélula autônoma} auto-suficiente e auto-subsistente. Por ou-
tro lado} evidentemente} a noção não se esgota na espécie; cada ser
humano é único} em sua completa individualidade. Único e plural
a um só tempo} parte da comunidade humana} mas possuidor de
um destino singular l \ esta é a lei da pluralidade humana} referida
por H. Arendt: "Quem habita este planeta não é o Homem} mas os
homens. Pluralidade é a lei da terra"12.
O princípio de solidariedade é} pois} também} um fato sociaF3}
na medida em que não se pode conceber o homem sozinho -

talmente em relação com um mundo que não é ele mesmo ou ela mesma, com outros
objetos e em particular com outros homens."
11 Metaforicamente, do mesmo modo que uma norma, para ser jurídica, não
pode existir sozinha, porque o que a torna jurídica é, exatamente, o fato de
pertencer a um ordenamento jurídico e não o contrário, como demonstrou Kel-
seno Para uma explicação da obra de Hans Kelsen e, especialmente, desse aspec-
to da teoria positivista V. N. Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico (1950),
São Paulo-Brasília, UNB-Polis, 1989, passim. Julgou-se interessante fazer tal pa-
ralelismo em razão da similitude das situações, no sentido de que a dedicação ao
estudo da norma jurídica bem como o do homem enquanto indivíduo solitário
provavelmente ofuscou, durante longo tempo, o verdadeiro objeto da pesquisa
em ambos os campos: o ordenamento jurídico e seus problemas, decorrentes
justamente da pluralidade de normas, na Ciência do Direito e a alteridade e seus
desafios, em razão da coexistência necessária e constitutiva ("fundamental", se-
gundo Elias) dos seres humanos, qualidade inafastável nos estudos das Ciências
Humanas e Sociais, ainda quando se pretenda tratar apenas do indivíduo.
12 H. Arendt, A Condição Humana (1958), Rio de Janeiro-São Paulo, Forense
Universitária, 9" ed., 1999, p. 188. Em sentido semelhante, F. Savater, ao men-
cionar a "sociedade boa", aduz que "não há unidade de destino no universal, mas
pluralidade universalizada de destinos particulares" (Ética como Amor-Próprio
(1988), São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 142).
13 M. Ridley, As Origens da Virtude. Um Estudo Biológico da Solidariedade
(1996), Rio de Janeiro, Record, 2000, passim. Segundo o Autor, "a sociedade
funciona não porque a inventamos intencionalmente, mas por ser um produto

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como o mito de Robinson Crusoe na ilha deserta quis fazer crer l4


- e somente se pode pensar o indivíduo como inserido na socieda-
de} isto é} como parte de um tecido social mais ou menos coeso em
que a interdependência é a regra e} portanto} a abertura em direção
ao outro} uma necessidade 1s . Ser solidário} assim} é partilhar} ao
menos} uma mesma época} e} neste sentido} uma mesma história l6 .
Desta solidariedade de fato} objetiva} já se disse que ela é o que
permite distinguir "uma sociedade de uma multidão"17.
Se a solidariedade objetiva decorre da necessidade imprescin-
dível da coexistência} a solidariedade como valor deriva da cons-
ciência racional dos interesses em comum} interesses esses que im-
plicam} para cada membro} a obrigação moral de "não fazer aos
outros o que não se deseja que lhe seja feito"18. Esta regra} ressalte-

muito antigo de predisposições que desenvolvemos. Ela está} literalmente} na


nossa natureza" CP. 13).
14 Para uma interessante abordagem do mito de Robinson Crusoe} v. r. Watt}
Mitos} cit.} pp. 147-195} onde se faz} entre outras} a análise da ideologia indivi-
dualista difundida a partir da leitura feita por J-J. Rousseau Cespec. pp. 177-
185)} e as razões pelas quais demonstrou} em Emílio} grande apego ao persona-
gem de Daniel Defoe: "Esse livro será o primeiro que o meu Emílio irá ler e por
um longo período será toda a sua literatura". C... ) "em sua ilha} sozinho} sem
contar com a ajuda de companheiros nem de instrumentos necessários às diver-
sas artes} ele consegue assegurar sua própria sobrevivência} a própria segurança}
chegando mesmo a alcançar um certo bem-estar C... ). A situação que lá existe}
devo concordar} não é a do homem social; e portanto não é a de Emílio: mas é
justamente por esse estado que devemos avaliar todos os outros. O melhor meio de
nos livrarmos dos preconceitos} e de organizar o nosso pensamento em sua verda-
deira relação com as coisas} é nos vermos como um homem isolado} e julgar tudo
da maneira como ele poderia julgar} ou seja} conforme a utilidade das coisas para
ele." Grifou-se. Para Rousseau} a fonte da ordem social está nesta solidão.
15 Para E. Lévinas} Humanismo do Outro Homem} Rio de Janeiro} Vozes} 1993}
p. 117 e ss.} "todo humano está do lado de fora} dizem as ciências humanas. Tudo
está do lado de fora} ou tudo em mim é aberto".
16 A. Comte-Sponville} Pequeno Tratado das Grandes Virtudes} Rio de Janeiro}
Martins fontes} 1995} p. 98.
17 A. Comte-Sponville} Pequeno Tratado} cit.} p. 99.
18 Conhecida como a Regra de Prata. A Regra de Ouro} atribuída a Jesus de
Nazaré} é formulada em sentido positivo: "Faz aos outros o que desejas que te
façam" enquanto a Regra de Bronze} ou Lei de Talião} ordena: "Faz aos outros o

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se} não possui qualquer conteúdo material} enunciando apenas uma


forma} a forma da reciprocidade l9 } indicativa de que "a cada um
que} seja o que for que possa querer} deve fazê-lo pondo-se de
algum modo no lugar de qualquer outro" 20 .
Subjacente à idéia de reciprocidade está a da comunidade de
iguais} que} porém} sob o império da igualdade formal} é de ser
entendida} tanto fática como juridicamente} em determinado sen-
tido: faticamente} ressaltando que as desigualdades nunca são tão
relevantes assim 21 ; em sentido jurídico} menosprezando as desi-
gualdades de fato para que os homens possam considerar-se (em-

que te fazem" e está contida nos versos bíblicos "urge dar vida por vida, olho por
olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura,
ferida por ferida, golpe por golpe" (Êxodo, 21, 23-25). Apesar do evidente cará-
ter prático, a sua principal imperfeição é a de não conseguir dar fim à violência,
quando esta se estabelece. Cristo, no sermão da Montanha, a substituiu pelo
novo mandamento: "Tendes ouvido o que foi dito: olho por olho, dente por
dente. Eu, porém, vos digo: não resistais ao ma1. Se alguém te ferir a face direita,
oferece-lhe também a outra" (Mateus, 5, 38-39), pregando, desse modo, a lei do
amor a todos, inclusive aos inimigos (Mt, 5,43-44). Já a Regra de Ferro, muito
inferior do ponto de vista ético, prescreve: "Faz aos outros o que quiseres, antes
que te façam o mesmo". Muito interessante é a exposição dessas e de outras
regras éticas, encerradas nos diversos padrões de comportamento, feita por C.
Sagan, "As Regras do Jogo", in Bilhões e Bilhões, São Paulo, Cia das Letras, 1998,
pp.197-209.
19 Foi a regra inspiradora, no século XX, do comportamento de Mahatma
Gandhi e Martin Luther King, líderes de movimentos de desobediência civil ou
não-cooperação pacífica, aconselhando a não pagar a violência com violência, mas
a suportá-la sem obediência ou submissão. (V. C. Sagan, o.1.u.c.).
20 Assim, F. Ewald, Foucault, a Norma e o Direito, Lisboa, Veja, 2000, 2 a ed.,
pp. 146, que complementa: "Ela [a regra 'de prata'] não me obriga a sair de mim
mesmo, faz do outro um outro eu próprio. Não aliena a minha vontade na de um
outro; obriga-me apenas a considerar-me como um outro para o outro. Não hie-
rarquiza; supõe, pelo contrário, que cada um seja o igual do outro". Grifou-se.
21 A referência é a T. Hobbes, Elementos de Direito Natural e Político, apud F.
Ewald, o.l.u.c. Hobbes afirma que as desigualdades nunca são suficientemente
grandes para impedir que cada um tenha o poder de matar qualquer outro. Para
ele, a supor que os homens fossem mesmo desiguais, não haveria medida comum
que permitisse apreciar e hierarquizar suas diferenças. Na ausência dessa refe-
rência, é preciso admitir a igualdade (de direitos).

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bora não o sejam realmente) como iguais. Comunidade de iguais e


igualdade de interesses} contudo} ainda referenciados a valores ex-
clusivamente individuais} caros a indivíduos em condições de igual-
dade 22 e enquanto encerrados em sua individualidade. A única re-
gra de justiça (comutativa)} neste ambiente} permanece sendo a da
igualdade perante a lei.
Aos individualmente considerados vieram} porém} a se substi-
tuir os grupos organizados} as comunidades intermédias} as coleti-
vidades que têm} cada uma} o seu próprio interesse. Tudo passa a
se referir à sociedade} "uma referência que não tem outra referên-
cia a não ser ela própria"23 e que mantém a sua coesão através de
uma rede invisível de mútua interdependência. Principia a tomar·
forma uma igualdade de direitos fundada em valores sociais} fecun-
dada pela solidariedade sociaC que servirá de base à igualdade subs-
tancial e à justiça social.

3. A solidariedade como virtude e como necessidade

Antes de ser princípio jurídico} a solidariedade é também virtu-


de ético-teologal. Muitos} aliás} a entendem apenas sob este signi-
ficado} afirmando que seu sentido principal teria permanecido vin-
culado às suas origens estóicas e cristãs} principalmente as do cato-
licismo primitivo} cujos seguidores} por serem "todos filhos do
mesmo Pai"} deviam considerar-se como irmãos. Anoção de frater-
nidade seria a inspiração da solidariedade difundida na modernida-
de - época dos primeiros documentos de declaração de direitos 24

22 A medida é dada pelo "bom pai de família", hoje chamado "homem médio".
Em irônica acusação à igualdade formal garantida pela lei, famosa é a frase de
Anatole France, segundo a qual "a lei, em sua majestosa eqüidade, proíbe tanto
o rico quanto o pobre de dormir debaixo das pontes, de esmolar pelas estradas,
de furtar o pão."
23 F. Ewald, op. cit., p. 148.
24 Não obstante a famosíssima trilogia revolucionária Liberté, egalité e fraterni-
té, é de se notar a ausência deste último termo na Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, de 1789. Por outro lado, a trilogia reaparece no art. 10 da
Declaração Universal dos Direitos do Homem, da ONU, 1948: "Todos os seres

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- quando estavam na ordem do dia as idéias assistencialistas) pos-


tas em prática por meio da caridade e da filantropia 25 .
Não é difícil perceber a congruência entre os valores modernos
- expressos nas grandes codificações) em especial no Code Civil
francês de 1804 - e os ideais de caridade como emblema máximo
da solidariedade oitocentista. Naquele universo) era o Código Civil
que fazia as vezes de Constituiçã0 26 ) estabelecendo as "regras do
jogo" e propiciando) através delas) plena liberdade àquele que rep-
resentava o valor fundamental da época liberal: o indivíduo livre e
igual) submetido apenas à sua própria vontade 27. Dotado de um
"inteligente egoísmo"28) ele saberia tirar o melhor proveito possível
das suas atividades) seja como contratante ou proprietário) pouco
importando) à lei) se utilizava seus bens com propósitos malévolos
de prejudicar) ou se se abstinha de cuidar para que outrem não
perdesse sua vida) "em um acidente ou pela miséria"29.
Sob tais perspectivas) a solidariedade se vê premida por severas
restrições. A idéia de fraternidade) ainda que virtuosa) não se mos-
tra suficiente para representar o vínculo caracterizador de uma so-
ciedade que) pautada pelo pluralismo) cada vez mais compreende
distintas e sortidas culturas. Mais do que um sentimento fraternal
- como exigi-lo? - é o respeito pela diferença que deve sobres-

humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Eles são dotados de


razão e de consciência e devem agir uns em relação aos outros com espírito de
fraternidade" .
25 J. F. de Castro Farias, A origem do Direito de Solidariedade, cit., p. 188.
26 Este reconhecido caráter constitucional dos códigos civis modernos, que con-
tinham o "estatuto dos cidadãos", é analisado por M. Giorgianni, "O direito
privado e as suas atuais fronteiras" (1961), in Revista dos Tribunais, v. 747,
1998, p. 41 e ss.
27 A propósito, o conhecido texto de N. Irti, L'Età della decodificazione, Mila-
no, Giuffre, 1976, passim.
28 A expressão - cunhada por G. Radbruch - é citada por K. Hesse, Derecho
constitucional y derecho privado, Madrid, Civitas, 1995, p. 87.
29 A. Menger, apud S. Rodotà, "La promessa de los derechos", in Externado, v.
6, n. I, 1992, p. lI, em argumentação crítica em relação ao chamado "bom pai
de família" o qual, no entanto, seria, segundo o Autor, responsável por atos e
omissões crudelíssimos.

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sair} possibilitando a coexistência pacífica das diversas concepções


de vida 30 } cientes do que as distingue e do que as une - no caso} a
igual dignidade de todas as pessoas humanas 31 . Do mesmo modo}
o ato beneficente} ou caritativo} permanece sempre como uma li-
beralidade} uma opção que diz respeito apenas à consciência} não
se concebendo em termos de obrigação a não ser moral; ao passo
que a solidariedade} nos termos invocados pelo constituinte} é um
dever de natureza jurídica.
Cumpre reconhecer} além disso} que estando a idéia de solida-
riedade ligada à noção de comunidade de interesses} ela vale tanto
quanto valem os interesses subjacentes; se estes são qualitativa-
mente bons} fazem da solidariedade uma virtude mas} quando se
mostram inescrupulosos} a assemelham à lealdade devida} na pro-
teção da "cosa nostra"} pelos que integram as estruturas de associa-
ções mafiosas} que não podem deixar de ser consideradas social-
mente deletérias 3z • Neste sentido} ao defender os interesses de sua

30 Assim também conclui F. Ortega, Para uma Política da Amizade, Rio de


Janeiro, Relume Dumará, 2000, pp. 61 e ss., para quem "o ideal universalista da
fraternidade exclui, em princípio, qualquer inimizade ou hostilidade, o que é,
sem dúvida, uma quimera. Não se deve esquecer que as hostilidades mais violen-
tas, amargas e intensas acontecem com mais freqüência entre indivíduos que
apresentam semelhanças étnicas, ideológicas ou que estão aparentados do que
entre estranhos [ ... ] O suposto universalismo do discurso fraternalista encerra
uma lógica particularista que possibilitou historicamente o surgimento de políti-
cas nacionalistas, xenófobas e populistas".
31 Sobre esta igual dignidade, expõe J. A. y Flórez-Valdés, Los principias gene-
rales dei derecho y su formulación constitucional, Madrid, Civitas, 1990, p. 147,
recorrendo às lições de Hernández Gil: "( ... ) la persona, ante ai Derecho, ha
llegado a dar expresión unívoca a una dignidad que no es susceptible de medida
ni de variabilidad; toda persona, por seria, tiene el mismo coeficiente de digni-
dad." V., também, P. Perlingieri, para quem "os princípios da solidariedade e da
igualdade são instrumentos e resultados da atuação da dignidade social do cida-
dão" (Perfis do Direito Civil: Uma Introdução ao Direito Civil-Constitucional,
3 a ed., rev. e ampl., trad. bras. de M. C. de Cicco, Rio de Janeiro, Renovar, 1997,
pp. 37 e ss.).
32 A advertência é de A. Comte-Sponville, Pequeno Tratado, cit., p. 98 e de N.
Lipari, '''Spirito di liberalità' e 'spirito di solidarietà"', in Rivista trimestrale di
diritto e procedura civile, voU, 1997, pp. 9-10. Em sentido semelhante, S. Pirai-
no, em texto intitulado "La famiglia: cosí e se vi pare", após opinar que o termo

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comunidade, nada mais se faz do que defender a si próprio (isto é,


a seus próprios interesses) num perpétuo retorno, no melhor dos
casos, ao "egoísmo inteligente", de matriz eminentemente indivi-
dualista.
Ligado a este, há, ainda, um outro significado de solidariedade,
normalmente ignorado ou pouco conhecido. A solidariedade pode
ser vista, para além da virtude e do vício, como um comportamento
pragmático. As ações da vida quotidiana são, em grande medida,
determinadas pelo interesse pessoal consciente de cada um: "nós
retribuímos na mesma moeda ou agimos ao contrário porque espe-
ramos que nosso ato vá conseguir o que desejamos. Pagamos o mal
com o bem porque sabemos que assim podemos às vezes despertar
o senso de justiça das pessoas ou obrigá-las a ser agradáveis pela
vergonha experimentada"33. Cooperar ou trair, eis a questão. Se,
mesmo a longo prazo, o que seria de considerar-se o comportamen-
to ético - isto é, manter-se solidário - viesse a se mostrar auto-
destrutivo, caberia continuar considerando-o como tal, ou, ao con-
trário, cumpriria atribuir-lhe características negativas, como inge-
nuidade e tolice?
É o que a teoria dos jogos34 se propõe a analisar: qual é o valor
prático da cooperação e da solidariedade? Cooperar com o outro é

"família", hoje, tende a designar um "complesso di persone lega te fra loro da


qualche vincolo comune, di qualsiasi genere, con carattere di tendenziale stabili-
tà, che si esplichi in una comunanza di vita e di interessi e nella reciproca assis-
tenza", questiona se esta definição poderia ser estendida à família mafiosa, "la
cui natura patologica, tuttavia, ri vela i caratteri tipici della solidarietà, della
mutualità e dell'autorità, carattere quest'ultimo ormai obsoleto nella istituzione
giuridica" (in Il diritto di famiglia e delle persone, v. 27, n. 2, 1998, p. 468).
33 C. Sagan, "As Regras do Jogo", in Bilhões e Bilhões, São Paulo, Companhia
das Letras, 1998, p. 197 e ss. O autor continua: "As nações se reúnem ou explo-
dem armas nucleares, para que outros países não brinquem com elas ... " O tema
analisado neste texto refere-se à indagação se haveria ou não um meio de testar
códigos "éticos" concorrentes.
34 A teoria dos jogos atualmente vem sendo usada na tática militar, na competi-
ção empresarial, na redução da poluição ambiental e na elaboração de estratégias
de inibição de conflitos nucleares, entre outras utilidades. A respeito do tema v.,
entre outros, além do texto do c. Sagan citado na nota anterior, M. Ridley, As
Origens da Virtude, cit., capo III, e W. Guilherme dos Santos, Razões da Desor-
dem, Rio de Janeiro, Rocco, 1993, espec. p. 73 e ss.

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sempre melhor ou haverá momentos em que o desafio} a traição} a


denúncia se farão necessários para a nossa sobrevivência? O conhe-
cido dilema do prisioneiro apresenta-se aqui como um modelo ló-
gico-realista de comprovação da dificuldade de se agir solidaria-
mente} quando há recompensas em disputa 35 . Neste caso} em qual-
quer situação} entre as possibilidades oferecidas pelo jogo} a atitu-
de egoísta} de não-cooperação ( a denúncia)} mostra-se mais vanta-
josa para cada participante} de modo que nenhum deles pensaria
um instante antes de trair. E no entanto} se eles se traem} a situação
torna-se pior para ambos. Daí o dilema: "Quando examina o caso}
você compreende que} não importa o que o seu amigo venha a
fazer} para você a defecção é melhor do que a cooperação. Enlou-
quecedoramente} o mesmo vale para ele"36.

35 Sobre o chamado dilema do prisioneiro há extensa bibliografia. Há inúmeras


versões do dilema mas ele pode ser resumido da seguinte maneira: dois cúmpli-
ces em um crime são presos não em flagrante e, antes que consigam planejar uma
estratégia comum, são levados a celas separadas e ficam incomunicáveis. Para
que confessem, a polícia diz, a cada um, que o outro já confessou e o incriminou.
Nesta situação-limite, há 3 possibilidades: A e B não confessam; A e B confes-
sam; A alega inocência mas realmente incrimina B ou vice-versa (B se diz inocen-
te mas incrimina A). Eles sabem que se não confessarem e nem se acusarem
mutuamente a pena será leve (1 ano). Se ambos confessarem a pena será média
(5 anos). Se, porém, A testemunhar contra B, A sairá livre enquanto B receberá
uma pena pesada (20 anos). Do mesmo modo se B incriminar A, enquanto alega
inocência, B não terá nenhuma pena a cumprir e A será condenado. O dilema
está em que, se cooperarem entre si, ambos confessando, ou não confessando,
receberão penas leves (de 1 a 5 anos) e escaparão do pior, mas se um denunciar
o outro, o traidor não será punido e o traído terá 20 anos a cumprir. v., a propó-
sito, C. Sagan, "As Regras do Jogo", cit., p. 205.
36 C. Sagan, o.1.u.c. Durante muito tempo, o dilema do prisioneiro serviu para
comprovar, "cientificamente", a atitude intrinsecamente egoísta do ser humano
para com os seus semelhantes. No entanto, um sociólogo americano, R. Axelrod,
analisando o jogo num torneio interativo de computadores em rodízio contínuo,
por meio de simulações, chegou a uma diferente conclusão. De fato, quando a
situação é de repetição, isto é, quando se joga com o mesmo grupo de jogadores,
permitindo assim a acumulação de experiências sobre comportamentos passa-
dos, o dilema se dissolve em prol de uma estratégia vitoriosa. Esta estratégia,
conhecida como a regra "tit-for-tat" (pagar na mesma moeda), consiste em co-

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A solidariedade pode, então, ser compreendida sob diversas fa-


cetas: como um fato social do qual não podemos nos desprender,
pois é parte intrínseca do nosso ser no mundo; como virtude ética
de um reconhecer-se no outro (que "faz do outro um outro eu
próprio"37) ainda mais amplo do que a justa conduta exigiria (dar
ao outro o que é seu); como o resultado de uma consciência moral
e de boa-fé ou, ao contrário, de uma associação para delinqüir;
como comportamento pragmático para evitar perdas pessoais e/ou
institucionais. Fato social, virtude, vício, pragmatismo e norma ju-
rídica são os diferentes significados do termo. Do ponto de vista
jurídico, como mencionado, a solidariedade está contida no princí-
pio geral instituído pela Constituição de 1988 para que, através
dele, se alcance o objetivo da "igual dignidade social". O princípio
constitucional da solidariedade identifica-se, assim, com o conjun-
to de instrumentos voltados para garantir uma existência digna,
comum a todos, em uma sociedade que se desenvolva como livre e
justa, sem excluídos ou marginalizados.

4. O princípio constitucional da solidariedade

Ao protagonista do Código Civil, sujeito de direitos e proprie-


tário, cabia velar somente por seus familiares e por seus bens, apre-
sentando-se desvinculado (rectíus, desligado) do tecido social que
o envolvia. Embora a Revolução e seu documento jurídico, a Decla-
ração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, houvessem
trazido êxito para a burguesia ascendente, tratou-se, em certa me-
dida, de uma vitória abstrata. Individualmente, como cidadão, ain-
da não havia conquistado a plenitude de seus direitos políticos e
sociais 38 , carecendo, durante o século XIX e nas primeiras décadas

meçar cooperando, e, a cada jogada, fazer exatamente o que o seu oponente fez
na rodada passada: se ele coopera, você cooperai se ele trai, você trai. Com o
passar do tempo, as outras estratégias se "autodestroem" (excesso de crueldade
I ou de bondade, quando nunca ou sempre se coopera) e essa regra, semelhante à
lei de Talião, vence. Para mais detalhes, v. o supracitado texto de Carl Sagan.
I 37 V. nota 16, supra.
38 A título exemplificativo, o sufrágio universal só foi estabelecido, de uma vez

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do século XX} dos poderes legais que o iriam permitir atuar politi-
camente. Seus progressos sociais mostraram-se lentos} modestos e
vacilantes diante do poder instituído pelo Estado e pela Família. O
indivíduo burguês então manifestava} e iria manifestar por longo
tempo} profunda debilidade no que tange ao seu poder individual}
mostrando-se estruturalmente fraco para lutar pela defesa de seus
direitos.
A lógica assistencialista} por isso mesmo} perdurou por longo
tempo e} quando não pôde mais ser reconduzida às formas originá-
rias de caridade e beneficência} foi atribuída ao Estado} através de
um conjunto de normas pelas quais este deveria prover as necessi-
dades do trabalhador} fazendo-o beneficiário da previdência social}
quando um acidente} a doença ou a idade interrompesse sua ativi-
dade remunerada. A noção de solidariedade passou a se estabelecer
em torno da oposição eficiente-deficiente} considerando que a pes-
soa vive de seu trabalho} cabendo-lhe} porém} ser assistida pelo
Estado (isto é} por todos) quando não mais puder trabalhar 39 .
Bem outra é a tábua axiológica trazida pelas longas constituiçõ-
es do século XX} elaboradas e promulgadas após o término da 2 a
Guerra Mundial. No novo cenário} o valor fundamental deixou de
ser a vontade individual} o suporte fático-jurídico das situações pa-
trimoniais que importava regular} dando lugar à pessoa humana e à
dignidade que lhe é intrínseca. No caso brasileiro} esta mudança de
perspectiva se deu por força do art. 1°} III da Constituição Federal
de 1988 e da nova ordem que ela instaura} calcada na primazia das
situações existenciais sobre as situações de cunho patrimonial.
Ao contrário do que pode parecer} elevar a dignidade da pessoa
humana (e o desenvolvimento da sua personalidade) ao posto má-
ximo do ordenamento jurídico constitui opção metodológica opos-
ta a do individualismo das codificações. A pessoa humana} no que
se difere diametralmente da concepção jurídica de indivíduo} há de

por todas, em 1848. V., para tais considerações, M. Perrot (org.), História da
Vida Privada, vai. 4 - Da Revolução Francesa à Primeira Guerra (1987), São
Paulo, Companhia das Letras, 1991, p. 415-417.
39 F. Ewald, "L'étatization du social fait disparaí'tre le social", in www.galerie-
sociale.com, consultado em 06.05.2001.

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ser apreciada a partir da sua inserção no meio social) e nunca como


uma célula autônoma) um microcosmo cujo destino e cujas atitu-
des pudessem ser indiferentes às demais 4o .
Ao direito de liberdade da pessoa será contraposto - ou com ele
sopesado - o dever de solidariedade social) não mais reputado como
um sentimento genérico de fraternidade ou uma ação virtuosa que o
indivíduo poderia - ou não - praticar) dentro da sua ampla autono-
mia. Na medida em que não se pode conceber o mítico homo clausus)
cujo epíteto é o "indivíduo") tampouco podem existir direitos que se
reconduzam a esta figura ficcional. Os direitos só existem para ser
exercidos em contextos sociais) contextos nos quais ocorrem as rela-
ções entre as pessoas) seres humanos "fundamentalmente organiza-
dos" para viverem em meio a outros41 .
No quadro contemporâneo) marcado pela superação da dicoto-
mia clássica entre o direito público e o direito privado 42 ) perderam
relevo as concepções que consideravam o direito subjetivo) a prio-
ri) como um poder atribuído à vontade individuaC para a realização
de um seu interesse exclusivo - cabendo-lhe respeitar apenas uns
poucos limites externos) dispostos no interesse de terceiros ou da
coletividade. Ao contrário) as limitações deixam de constituir ex-
ceção e passam a contribuir para a identificação da função dos ins-
titutos jurídicos 43 .

40 Sob essa perspectiva, v. T. Negreiros, Fundamentos para uma Interpretação


Constitucional do Princípio da Boa-fé, Rio de Janeiro, Renovar, 1998, pp. 218-9:
"A síntese desta mudança converge para a substituição do indivíduo pela pessoa
- a dignidade da pessoa humana - como fundante de todo o sistema jurídico,
privado ou público ( ... ). Assim, a pessoa, nisto diferenciando-se do conceito his-
tórico-filósofico de indivíduo, não é dotada de uma 'liberdade independente da
realidade social': não é 'autônoma relativamente à sociedade'''.
41 N. Elias, Norbert Elias, cit., pp. 97-99 e H. Arendt, a Condição Humana,
cit., p.33 e passí111. Segundo Arendt, Platão e Aristóteles, por exemplo, não igno-
ravam nem subdimensionavam o fato de o homem não poder viver sem a compa-
nhia de homens; "eles simplesmente não incluíam tal condição entre as caracte-
rísticas especificamente humanas. Pelo contrário, ela era algo que a vida humana
tinha em comum com a vida animal razão suficiente para que não pudesse ser
fundamentalmente humana".
42 Sobre o tema, v., por todos, M. Giorgianni, "O Direito Privado", cit., p. 46.
43 Cf. P. Perlingieri, Perfis, cit., pp. 120-2.

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A própria noção de ordem pública} sempre invocada como limi-


te à livre atuação do sujeito} tem seu conteúdo redesenhado pelo
projeto constitucional- com particular ênfase às normas que tu-
telam a dignidade humana e que} por isso mesmo} ocupam a mais
alta hierarquia da ordem pública} o fundamento último do ordena-
mento constitucional44 .
Neste sentido} aponta-se a existência de uma cláusula geral de
ordem pública que seria expressão geral do princípio da solidarie-
dadé s . Equivale} porém} tal princípio} segundo a interpretação
mais conforme com a Constituição} ao instrumental adequado e
necessário a atribuir "a cada um o direito ao 'respeito' inerente à
qualidade de homem} assim como a pretensão de ser colocado em
condições idôneas para exercer as próprias aptidões pessoais} assu-
mindo a posição a estas correspondentes"46.
Enquanto se acreditou que a maneira mais adequada de tutelar
os seres humanos era aquela ligada à proteção de sua "essência"
individual} a expressão do jurista era de melancólica e desconsola-
da solidão: "o direito de ser homem contém o direito que ninguém
me impeça de ser homem} mas não o direito a que alguém me ajude
a conservar a minha humanidade"47. O princípio da solidariedade}
ao contrário} é a expressão mais profunda da sociabilidade que ca-
racteriza a pessoa humana. No contexto atual} a Lei Maior determi-

44 P. Perlingieri, La personalità, cit., p. 63. A esse respeito, J. J. Gomes Cano-


tilho, O provedor de justiça e o efeito horizontal de direitos, liberdades e garan-
tias, no debate que se seguiu à conferência proferida por ocasião do 20° Aniver-
sário do Provedor de Justiça, em Lisboa, 30.11.95, atentava para a inadequada
utilização que a doutrina civilista faz da expressão 'ordem pública': "Eu gostaria
que os civilistas começassem a dizer cláusulas contrárias a direitos, liberdades e
garantias. Em vez de andarmos a dizer cláusulas contrárias à ordem pública, os
civilistas deviam dizer cláusulas contrárias a direitos, liberdades e garantias, con-
cretamente plasmados da Constituição. ( ... ) Para que recorrer a fórmulas vagas
quando temos preceitos com maior densidade normativa e que podem ser apli-
cados? Deixemos a ordem pública e a boa fé para outras situações em que não
estão concretamente em causa direitos, liberdades e garantias."
45 P. Perlingieri, Perfis, cit., p. 122.
46 P. Perlingieri, Perfis, cit., p. 37.
47 Assim se expressava G. Solari, Individualismo e diritto privato, referido por
M. Giorgianni, "O Direito Privado", cit., pp. 41-42.

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na - ou melhor, exige - que nos ajudemos, mutuamente, a con-


servar nossa humanidade porque a construção de uma sociedade
livre, justa e solidária cabe a todos e a cada um de nós 48 .

5. A solidariedade como meio de transformação social e de


promoção da pessoa humana

Como já se acentuou, toda e qualquer situação subjetiva recebe a


tutela do ordenamento se e enquanto estiver em conformidade não
apenas com o poder de vontade do titular, mas também em sintonia
com o interesse social49 . O conceito de direito subjetivo, em conse-
qüência, encerra importantes limitações em si mesmo, devendo seu
exercício estar em consonância com os objetivos, os fundamentos e
os princípios estabelecidos pela normativa constitucional50 .
Para exemplificar esta mudança basta examinar o prototípico di-
reito subjetivo, a propriedade. No cenário solidarista, deixou ela de
ser definida como o espaço, externamente delimitado, no âmbito do
qual o proprietário teria ampla liberdade para desenvolver suas ativi-
dades e para a emanação da senhoria sobre o seu bem. A renovada
compreensão do instituto atribui a determinação do seu conteúdo
para o âmbito da concreta relação jurídica, observados os centros de
interesse extra proprietários e a exigência de exercício conforme a
função social, que se encontra definida pelo texto constitucionaiS!.

48 Para uma abordagem aprofundada deste aspecto, seja consentido remeter ao


meu artigo "Constituição e Direito Civil: Tendências", in Revista dos Tribunais,
voI. 779,p.47ess.
49 P. Perlingieri, Perfis, cit., pp. 121-2.
50 A figura do abuso do direito, normalmente definida como o exercício irregu-
lar de um direito reconhecido ou o desvirtuamento de sua função econômico-so-
cial, bem pode configurar-se como exercício de uma situação jurídica subjetiva
que ignore, ou contrarie, a função jurídica estabelecida, expressa ou implicita-
mente, de acordo com os princípios constitucionais. Para o exame da noção de
direito subjetivo, v. Archives de philosophie du droit, n. 9, "Le droit subjetif en
question",1964.
51 Cf. G. Tepedino, "Contornos constitucionais da propriedade privada", in
Temas de Direito Civil, Rio de Janeiro, Renovar, 1999, p. 280 e ss.

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Mtt
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No campo contratual a alteração não é menos relevante. Outro-


ra uma seara onde partes antagônicas dispunham de ampla liberda-
de para gravar - a ferro e fogo - os compromissos que suas von-
tades estipulassem) o princípio solidarista passa a se impor igual-
mente neste campo. Daí entender-se que o contrato deixou de ser
um simples instrumento de atuação da autonomia privada) para
desempenhar) também ele) uma função social. No novo modelo) o
enfoque não é mais voluntarista) voltando-se para a busca de um
concreto equilíbrio entre as partes contratantes) através inclusive
do balanceamento entre as prestações) vedada a excessiva onerosi-
dade) e para a observância imperiosa do princípio da boa-fé objeti-
va) fonte de deveres e de limitação de direitos para ambas as par-
tes 5Z •
Manifesta e profunda foi a transformação operada no âmbito
das relações familiares. Neste particular) relevante foi a constata-
ção do caráter instrumental das comunidades intermédias: se todas
as pessoas são igualmente dignas) nenhuma instituição poderá ter o
condão de sobrepor o seu interesse ao dos seus membros. A famí-
lia) portanto) não se acha mais fundada em rígidas hierarquizações)
preocupadas com a preservação do matrimônio do casal e do patri-
mônio familiar) para se revelar como o espaço privilegiado de reali-
zação pessoal dos que a compõem. Como exemplos desta nova
concepção) destacam-se) entre outros) a igualdade entre os cônju-
ges e a igualdade entre os filhos) a prevalência do melhor interesse
da criança e do adolescente) pessoas em desenvolvimento) e o regi-
me da prestação alimentícia) que deve ser determinado) não segun-
do qualquer avaliação de "culpa" na separação ou no divórci0 53 )

52 L. Mattietto) "O Direito Civil Constitucional e a Nova Teoria dos Contra-


tos") in G. Tepedino (coord.)) Problemas de Direito Civil-constitucional) Rio de
Janeiro) Renovar, 2000, pp. 179-180. Sobre o princípio da boa-fé objetiva e a sua
correlação com os ditames constitucionais, v. T. Negreiros, Fundamentos, cit.,
passim.
53 Neste sentido, G. Tepedino, "O papel da culpa na separação e no divórcio",
in Temas de Direito Civil, Rio de Janeiro, Renovar, 1999, p. 388. Os alimentos
expressam, portanto, somente solidariedade, e não punição, dada a improprieda-
de e injustiça de se punir alguém pelo desfazimento de uma sociedade, como a
sociedade conjugal.

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mas} obedecido o binômio necessidade-capacidade} como expres-


são da solidariedade no domínio familiar 54 .
De todos estes campos do direito civiC contudo} aquele em que
mais claramente se percebe o notável incremento das exigências da
solidariedade é o da responsabilidade civil. A propagação da res-
ponsabilidade objetiva no século XX} através da adoção da teoria
do risco} comprova a decadência das concepções do individualismo
jurídico para regular os problemas sociais55. A multiplicação de aci-
dentes} ditos anônimos} que deixavam a vítima completamente de-
sassistida} fez com que} paulatinamente} passasse a se atribuir res-
ponsabilidade não apenas em razão de manifestação culposa ou do-
losa} mas também em decorrência da atividade exercida (e dos be-
nefícios dela obtidos)} através das noções de risco-proveito e risco-
criado.
A responsabilidade civil - e já se começa mesmo a pôr em
dúvida tal denominação 56 - subverteu} assim} a antiga coerência

54 Para um exemplo da aplicação do princípio no âmbito familiar, v. importante


decisão da Corte de Cassação Italiana (Cassazione Sezione Prima Civile n. 2315
dei 16 marzo 1999, Preso Rocchi, Rei. Graziadei): 1l marito che abbia consenti to
alla fecondazione artificiale della moglie com seme altrui non puo successivamen-
te promuovere un'azione di disconoscimento della patemità. 1l principio di solida-
rietà prevale sul "favor veritatis". Na Revista Trimestral de Direito Civil, nO 1,
2000, pp. 125-161, publicou-se a íntegra do acórdão, sua tradução e os comen-
tários de H. H. Barboza, segundo a qual" ... como observado na decisão em pauta,
a boa-fé, correção e lealdade constituem um dever geral, não circunscrito às
relações obrigacionais, e assumem nas relações familiares o significado de expres-
são da solidariedade e confiança recíproca que lhes são inerentes" (p. 160). So-
bre a nova conformação da família, V. L. E. Fachin, Elementos Críticos do Direito
de Família, Rio de Janeiro, Renovar, 1999, p. 306: "Diversidade cuja existência
do outro torna possível fundar a família na realização pessoal do indivíduo que
respeitando o 'outro' edifica seu próprio respeito e sua individualidade no cole-
tivo familiar" e, mais recentemente, R A. Girardi Fachin, Em Busca da Família
do Novo Milênio, Rio de Janeiro, Renovar, 2001, espec. o Título II, "Direito de
Família e Sociedade Contemporânea", p. 75 e ss. Cf., tb., a posição de P. Perlin-
gieri, "I diritti del singolo quale appartenente ai gruppo familiare", in Rassegna
di diritto civile, 1982, p. 72 e ss.
55 J. F. de Castro Farias,A Origem do Direito de Solidariedade, cit., p. 135.
56 Em alguns países, como a Argentina por exemplo, usa-se comumente a ex-
pressão "Direito dos Danos" (Derecho de Danos). A respeito, V. R. L. Lorenzetti,

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do sistema} superando completamente} em diversos casos} o obje-


tivo de identificação do culpado - o responsável- pela responsa-
bilidade sem culpa} considerada por muitos como um verdadeiro
compromisso com a solidariedade sociaiS 7 • A partir da nova conota-
ção dada à noção de "acidente"} não mais um evento sempre atri-
buível ao acaso ou à fatalidade 58 } foi preciso abandonar a idéia} até
então axiomática} de que a responsabilidade só poderia ser invoca-
da como sanção por uma falta cometida.
Como corolário da marcada tendência de "solidarização" regis-
trada no instituto} em seguida ao contínuo incremento das hipóte-
ses de responsabilização independente de culpa} surgem os siste-
mas de seguridade social} cuja lógica representa a construção de
um direito calcado justamente na solidariedade social. A segurida-
de - também ela presente em um número crescente de setores} e
em alguns casos obrigatória - é vista como a principal tentativa de
superação do conflito entre socialização e individualizaçã0 59 . Não
por acaso} quando se trata dos deveres da coletividade} a doutrina
majoritária vem se concentrando na seguridade social} que tem
como um de seus postulados básicos a "solidariedade financeira"}
financiada que é} de forma direta ou indireta} por toda a sociedade}
nos precisos termos do art. 195 da Constituiçã06o . Elevada a máxi-
ma potência} a seguridade foi dar origem aos welfare states} cuja
premissa nuclear consiste justamente em reputar a sociedade res-
ponsável pelo destino de seus membros 6 ! .

Fundamentos do Direito Privado, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1998, p.
49.
57 P. Ricoeur, "Le concept de responsabilité. Essai d'analyse sémantique", inLe
Juste, Esprit, 1992, pp. 41-70. Do mesmo Autor, v., ainda, Lectures 2 - La
contrée des philosophes, Paris, Seuili, 1992, espec. pp. 265-319.
58 A. Tunc, La responsabilité civile, Paris, Economica, 2 a ed., 1989, p.2, para
quem "l'importance actuelle de la responsabilité civile tient aussi aufait que l'on
accepte de moins en moins le malheur. C' est une constatation, non un reproche".
59 J. F. de Castro Farias,A Origem, cit., p. 143-5.
60 J. A. da Silva, Curso de direito constitucional positivo, 9 a ed., rev. e amp1.,
São Paulo, Malheiros, 1993, p. 707.
61 Cf. A. Giddens, A Terceira Via, Rio de Janeiro, Record, 2000, p. 126. Para
uma extensa análise do tema, recomenda-se a obra fundamental de F. Ewald,

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Afora a seguridade, o século XX assistiu ao desenvolvimento de


novos direitos, os quais, na esteira dos direitos da liberdade e da
igualdade, vieram trazer uma nova dimensão, de fraternidade ou
solidariedade, às constituições e aos ordenamentos ocidentais de
um modo geral; daí se dizer que eles seriam direitos de "terceira
geração". Entre esses direitos, que não têm por destinatário um
indivíduo, um grupo ou um Estado específico, mas o próprio gêne-
ro humano, "num momento expressivo de sua afirmação como va-
lor supremo em termos de existencialidade concreta"62, foram in-
cluídos os direitos ao desenvolvimento, à paz internacional, à co-
municação e a um meio ambiente sadio e protegid063 .
Neles, afIora uma concepção de solidariedade que é resultante
de um anseio típico do século XX, quando pela primeira vez o
homem se deparou com a hipótese da destruição do planeta e do
esgotamento dos recursos naturais: o sentimento de estarmos, to-
dos nós, "a bordo de um mesmo barco"64, fustigado por ameaças e
tribulações globais que nos fazem, necessariamente, solidários uns
aos outros.
Estes sérios perigos, criados, na maior parte dos casos, pelo pró-
prio homem e por uma (tecno)ciência que vem se perdendo nos
excessos de um alegado progress0 6S , geraram um novo dever, para
o qual nossos antecessores não destinaram qualquer atenção: o res-
peito às gerações futuras 66 . A preocupação - expressa, quanto ao

L'État-Providence, Paris, Seuil, 1986, passim. Numa perspectiva crítica aos wel-
fare states como expressão do princípio da solidariedade, v. U. Reifner, "The lost
penny - social contract Law and Market Economy", in T. Wilhelmsson, S. Hur-
ri (coords.), From dissonance to sense: welfare states Expectations, Privatizations
and Private Law, Brookfieid, Ashgate, 1999, pp. 117-75, em particular pp. 120-
3.
62 P. Bonavides, Curso, cit., p. 523.
63 J. Rivera, "Sobre la evolución contemporánea de la teoría de los derechos dei
hombre", apud N. Bobbio, A Era dos Direitos, (1990), Rio de Janeiro, 1992, p.
12.
64 A expressão é de U. Eco, Entrevistas, cit., p. 208.
65 P. Virilio, The Information Bomb, London, Verso, 2000, p. 2.
66 Entretanto, já no início do século E. Burke afirmava que "a sociedade é uma
parceria não só entre os que estão vivos, mas entre os que estão vivos, os que

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meio ambiente, no art. 225 da Constituição, que impõe ao Estado


e à coletividade o dever de "defendê-lo e preservá-lo para as pre-
sentes e futuras gerações" - reflete a atual responsabilidade do
homem, cuja capacidade de causar danos é bem conhecida, tanto
no que se refere à extensão espacial, quanto à dimensão tempo-
ra1 67 .
Como conseqüência, aumentou em muito o interesse pelo
princípio da precaução, que visa a uma maior reflexão antes da
utilização de técnicas novas quando o contexto é de incerteza cien-
tífica 68 . Anteriormente levado em conta apenas em matéria am-
biental, hoje já se defende uma aplicação mais ampla, a ser obser-
vada por todos aqueles que detêm o poder de decisão sobre o ma-
nej o dos riscoS 69 .

estão mortos e os que estão por nascer" (Reflections on the Revolution in France,
London, Dent, 1910, pp. 93-4, apudA. Giddens,A Terceira Via, cit., p. 131).
67 A este respeito, v. a análise pioneira de H. Jonas, The Imperative of Responsi-
bility: In Search of an Ethics for the Technological Age, Chicago, University of
Chicago Press, 1984, passim.
68 Segundo A H. V. Benjamin, "Responsabilidade Civil pelo Dano Ambiental",
in Revista de Direito Ambiental, nO 9, 1998, pp. 17-18, em situações em que o
eventual dano possa ser irreversível, de difícil reversibilidade ou de larga escala,
o princípio da precaução onera o degradado r em potencial com o dever de provar
a inofensividade da atividade por ele proposta.
69 Seria o caso, por exemplo, das empresas agrícolas que visam difundir o em-
prego de organismos geneticamente modificados. A corrente favorável à exten-
são do princípio é representada por P. Kourilsky e G. Viney, que elaboraram, em
1999, um relatório sobre o tema, a pedido do primeiro-ministro francês. Na
ocasião, os Autores propuseram a seguinte definição, a ser incorporada em futu-
ros textos legais: "O princípio da precaução define a atitude que deve observar
toda pessoa que toma uma decisão concernente a uma atividade a qual possa
razoavelmente se supor que acarrete um perigo grave à saúde ou à segurança das
gerações atuais ou futuras, ou ao meio ambiente. Esta atitude se impõe especial-
mente aos poderes públicos, que devem fazer prevalecer os imperativos de saúde
e segurança sobre a liberdade das trocas entre os particulares e entre os Estados.
Ele ordena que se tomem todas as providências permitidas, por um custo econô-
mico e social suportável, para detectar e avaliar o risco, reduzi-lo a um nível
aceitável e, se possível, eliminá-lo, além de informar as pessoas envolvidas e
recolher suas sugestões sobre as medidas que serão adotadas para tratá-lo. Estas
medidas de precaução devem ser proporcionais à amplitude do risco e podem ser

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6. Alguns resultados da aplicação do princípio da solidariedade

Os tribunais brasileiros não tardaram em reconhecer a dimen-


são transformadora da solidariedade constitucional. Se até 1988 o
termo só surgia na jurisprudência na acepção obrigacionaC hoje o
Supremo Tribunal Federal traz à baila a solidariedade como um
dever jurídico de respeito) de âmbito coletivo) cujo objetivo visa
beneficiar a sociedade como um todo.
Um exemplo de aplicação) pela Corte) do princípio da solida-
riedade foi a desapropriação-sanção de um imóvel rural localizado
no Pantanal Mato-Grossense) calcada na imposição) derivada da
função social como limite interno ao direito do proprietário) de
utilização adequada dos recursos naturais e preservação da nature-
za local. Ao examinar o caso) o STF considerou o dever de respeito
à integridade do meio ambiente (art. 225) CF/88) como um "típico
direito de terceira geração") que consagra o princípio da solidarie-
dade e constitui "um momento importante no processo de desen-
volvimento) expansão e reconhecimento dos direitos humanos"7o.
Em outra situação) ligada à noção de solidariedade financeira
como um dos princípios da seguridade social) o STF considerou
inconstitucional artigo da Constituição fluminense que facultava
ao servidor público que não tivesse cônjuge) companheiro ou de-
pendente) legar a pensão por morte a beneficiários de sua indicação
- exorbitando o rol de beneficiários indicado no art. 201) V da
Constituição Federal. Entre os argumentos invocados para recha-
çar tal hipótese) sustentou-se que "essa absoluta liberdade de esta-
belecer) de instituir um beneficiário ( ... ) vai além do próprio con-
ceito de previdência social do servidor") aproximando-se "da noção
civilística da sucessão hereditária) não consentânea com a inspira-
ção da Carta Federal". Segundo o Ministro Relator) sendo obriga-

revistas a qualquer momento". Em artigo no Le Monde, publicado em


11.03.2000, o filósofo François Ewald criticou a conclusão de Kourilsky e Viney,
sustentando que o princípio da precaução só seria direcionado ao Estado, e não
aos particulares.
70 STF, Tribunal Pleno, MS 22.164-0/SP, ReI. Min. Celso de Mello, j. em
30.10.1995, pubI. Ement. v. 01809-05, p. 1155, v. u.

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tório o seguro social} a contribuição das pessoas que não possuem


dependentes faz diminuir a média de risco do segurador e suaviza
o encargo do custeio} a cargo de todos os contribuintes: "É essa
solidariedade} ou comunhão participativa} que se torna comprome-
tida} quando todos os associados passam a poder legar benefícios}
por ato de vontade própria} mesmo quando não mantenham cônju-
ge} companheiro ou dependente"71.
Outro exemplo da preocupação expressa do Supremo Tribunal
Federal com a solidariedade social situa-se no âmbito dos seguros
obrigatórios de danos pessoais causados por veículos automotores
de vias terrestres. Ao confirmar a constitucionalidade da determi-
nação do pagamento} por um consórcio das seguradoras que opera-
vam naquele ramo} de indenização nos casos de pessoas vitimadas
por veículos não identificados} com seguradora não identificada e
seguro não realizado ou vencido} a Corte aduziu que a Constituição
dá especial ênfase} dentre seus valores fundamentais} ao princípio
da solidariedade} "cuja realização parece haver sido implementada
pelo Congresso Nacional ao editar o art. 1° da Lei nO 8.441/92"}
origem da previsão combatida72.
O abandono da perspectiva individualista} nos termos em que
era garantida pelo Código Civil} e sua substituição pelo princípio
da solidariedade social} previsto constitucionalmente} acarretou
uma profunda transformação no âmago da própria lógica do direito
civil - que se faz notar nas mais recônditas minudências do siste-
ma. Com efeito} o legislador codicista estava voltado para garantir
a igualdade de todos perante a lei - igualdade representativa} à
época} de significativo avanço social-} posição que era} no entan-
to} incompatível com o reconhecimento de quaisquer aspectos par-
ticulares ou específicos} relativos aos destinatários das normas. Por
seu turno} o legislador constituinte teve a pretensão} apoiado nos
princípios da dignidade humana e da solidariedade social} de que-
rer enfrentar as desigualdades concretas do contexto da sociedade

71 STF, Tribunal Pleno, ADI 240/Rl, ReI. Min. Octavio GaUotti, j. em


26.09.1996, publ. Dl de 13.10.2000, v. u.
72 STF, Tribunal Pleno, ADIMC l003/DF, ReI. Min. Celso de Mello, j. em
01.08.1994, publ. Dl de 10.09.1999, v. u.

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brasileira contemporânea, ao propugnar, como objetivo fundamen-


tal da República - art. 3°, III -, a erradicação da pobreza e da
marginalização social.
Este é o epicentro do projeto solidarista, inscrito exatamente
nos princípios constitucionais fundamentais, e que começa lenta-
mente a ser realizado, não somente por meio de normas que indi-
retamente afrontam tais desigualdades mas agora, também, através
da destinação de recursos especificamente para tal fim. Assim, por
exemplo, a Emenda Constitucional nO 31, de 14 de dezembro de
2000, em que se cria o "Fundo de Combate e Erradicação da Po-
breza", com a finalidade de "viabilizar a todos os brasileiros acesso
a níveis dignos de subsistência", cujos recursos serão utilizados em
"ações suplementares de nutrição, habitação, educação, saúde, re-
forço da renda familiar e outros programas de relevante interesse
social voltados para a melhoria da qualidade de vida".
Sob o mesmo fundamento ético-social, isto é, de idêntica ratio
juris partiu a inclusão do direito à moradia, através da Emenda
Constitucional nO 26, de 14 de fevereiro de 2000, no rol dos direi-
tos sociais previstos no art. 6° da Constituição. No teor deste dis-
positivo constitucionaC aliás, está refletida a preocupação com a
proteção que deve ser assegurada aos mais fracos e aos desampara-
dos, dever do Estado e da coletividade, para a construção da "socie-
dade solidária".
A atuação do legislador ordinário, neste sentido, embora ainda
incipiente, merece ser louvada. Apenas para exemplificar, ressalte-
se a reformulação ocorrida na legislação reguladora da tutela aos
deficientes mentais, antes de caráter reconhecidamente repressor.
A Lei nO 10.216, de 6 de abril de 2001, substituiu o afastamento do
grupo social por um novo modelo assistencial em saúde mentaC
cuja finalidade precípua é a "reinserção social do paciente no meio
social". O seu art. 2° prevê, entre os direitos da pessoa portadora
de transtorno mental, o de ser "tratada com humanidade e respeito
e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar
sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comuni-
dade" (inciso lI), o de ter livre acesso aos meios de comunicação
disponíveis (VI), o de receber o maior número de informações a
respeito de sua doença e de seu tratamento (VII), o de ser tratada
pelos meios menos invasivos possíveis (VIII).

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7. Conclusão

Entre os mistérios da vida em sociedade, um dos mais sur-


preendentes, fenômenos que se mostra ainda mais extraordinário
em um país do Terceiro Mundo, relaciona-se com a manutenção da
ordem social- com suas relações de dominação, suas obrigações e
sanções, seus direitos e privilégios, imunidades, prerrogativas, in-
justiças - e que isto, esta (des )ordem se perpetue, apesar de tudo,
sem grandes esforços, mesmo quando as condições de existência
são inaceitáveis, intoleráveis e, por vezes, inacreditáveis.
Tal assombro foi chamado de "paradoxo da doxa"e se refere à
capacidade de absorção de situações degradantes e desumanas,
mas que passam, de algum modo, a ser vistas como admissíveis ou,
até mesmo, naturais, fazendo com que, surpreendentemente, não
haja um número muito maior de situações-limite, de extrema vio-
lência, revoluções, ou, ainda, de transgressões e subversões, revol-
tas, delitos e 10ucuras73 .
Explicou-se esta submissão paradoxal como resultante de uma
violência suave mas insensível, constante e permanente, invisível
perante suas próprias vítimas, a qual é exercida "pelas vias pura-
mente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou, mais
precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em úl-
tima instância, do sentimento"74.
É claro que não se trata de violência simbólica apenas. A domi-
nação também se manifesta, e com freqüência, por omissões e atos
ignóbeis e sórdidos, alguns deles monstruosos. Depoimentos terri-
ficantes foram colhidos, é notório, de sobreviventes de campos de
concentração nazistas. Como fora possível permanecer vivo em
uma ordem marcada pela arbitrariedade, discriminação e segrega-
ção racial, abjeção, desumanidade? Um destes sobreviventes narra

73 A situação foi descrita e intitulada por P. Bourdieu, A Dominação masculina


(1998), Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1999, p. 7.
74 P. Bourdieu, op. cit., pp. 7-8. A aparente contradição certamente origina-se
de variadas fontes e múltiplas causas; Bourdieu localiza como o exemplo paradig-
máticoo binômio dominação masculina-submissão feminina, mas esta relação
pode ser transposta para outros pares, tais como pais-filhos, patrão-empregados,
etc.

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um breve episódio: "Foi um Natal memorável para o mundo em


guerra; memorável para mim também) porque assinalou-se por um
milagre. Em Auschwitz) as várias categorias de prisioneiros tinham
o direito de receber pacotes de presentes vindos de casa - menos
os judeus. Aliás) de quem podiam recebê-los? De suas famílias)
exterminadas ou confinadas nos guetos remanescentes? Dos pou-
quíssimos que tinham escapado às rondas) escondidos em celeiros)
em sótãos) aterrorizados e sem um vintém? E quem sabia nosso
endereço? Para o mundo) nós estávamos mortos. E) no entanto) um
pacote me veio ter às mãos) por intermédio de uma corrente de
amigos) enviado por minha irmã e por minha mãe) que estavam
escondidas na Itália. ( ... ) O pacote continha uma espécie de choco-
late) biscoitos e leite em pó) mas descrever o seu real valor) o im-
pacto que teve sobre mim e sobre o meu amigo Alberto) está além
dos poderes da linguagem ordinária. No Campo) os termos comer)
alimento e fome tinham significados totalmente distintos dos
usuais. Esse pacote inesperado) improvável) impossível era como
um meteorito) um objeto caído do céu) prenhe de símbolos e com
um enorme momentum. Já não estávamos sós; um vínculo com o
mundo exterior tinha-se estabelecido) e havia coisas deliciosas para
ouvir durante dias e dias."75.
As palavras de Primo Levi talvez possam ser relidas à luz de
uma idéia aqui tantas vezes referida: a concepção da natureza fun-
damentalmente social da pessoa humana) a quaC mesmo se em con-
dições extremas de sofrimento) busca) espera e conta com o reconhe-
cimento dos demais para viver 76 . Essa "demanda aos semelhantes")
inevitável) irresistível) imperiosa necessidade da condição humana
implica) por sua vez) a aceitação de um compromisso essenciaF7) a

75 Trata-se de um pequeno trecho do conto "O Último Natal da Guerra", de


Primo Levi, incluído na antologia 30 anos do The New York Review of Books,
organizada por R. B. Silvers, B. Epstein e R. S. Hederman, Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1997, pp. 470-481, espec. 477-478.
76 No mesmo sentido, v. U. Eco, Cinco Escritos Morais, Rio de Janeiro, Record,
1997, p. 95: "Mesmo quem mata, estupra, rouba, espanca, o faz em momentos
excepcionais, mas pelo resto da vida lá está a mendigar aprovação, respeito, elo-
gios a seus semelhantes. E mesmo àqueles a quem humilha pede o reconheci-
mento do medo e da submissão".
77 F. Savater, Ética, cit., p. 186 e ss. Segundo o Autor, "o importante não é

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assunção de um dever para com o(s) outro(s) - para com cada um


(" chacun", na expressão de um filósofo78). Nessa medida, a solida-
riedade social, na jurisdicizada sociedade contemporânea, deixou
de poder considerar-se como resultante de ações erráticas e even-
tuais 79 , éticas ou caritativas, para se tornar um princípio geral do
ordenamento jurídico, com máxima força normativa, capaz de tu-
telar o respeito devido a cada um, cabendo exclusivamente à nor-
ma jurídica distinguir, no que for essencial, a (peculiar) singulari-
dade individual.
Uma das origens dessa perspectiva regulamentadora, relativa
ao princípio da solidariedade, certamente se pode reconduzir à im-
prescindibilidade da instância social, qualquer que seja ela, para
com o que é humano. Afinal, "assim como não conseguimos viver
sem comer ou sem dormir, não conseguimos compreender quem
somos sem o olhar e a resposta do outro. É o outro, é o seu olhar,
que nos define e nos forma"8o. É, de fato, através do reconhecimen-

elaborar uma lista mais ou menos satisfatória dos direitos do homem, mas man-
ter sem desfalecimento o direito de ser homem."
78 P. Ricoeur, "Quo Vadis? Un entretien avec Paul Ricoeur par Y.B.Rayona", in
Labirinth, voI. 2, winter 2000, http: h2hopel. phl. univie. ac. at/ - iaf/Labi-
rinth/2000/ricoeur.html, onde Ricoeur justifica sua preferência pela expressão
"cada um" em lugar do termo "outro".
79 O fato social é intrinsecamente caótico, desorganizado; a liberalidade, pura-
mente eventual. O direito, ao contrário, é exigível e é isto que torna a solidarie-
dade um princípio diferente. Como seria possível obrigar alguém a ser solidário?
Não seria o mesmo que querer exigir o sentimento de fraternidade entre as
pessoas? A dificuldade está unicamente em se continuar atribuindo à solidarieda-
de um caráter essencialmente beneficente. Não se quer exigir que alguém sinta
algo de bom pelo outro; apenas que se comporte como se o sentisse. Um único
exemplo será o bastante para demonstrar que não há dificuldades em se exigir,
não apenas do Poder Público mas também dos particulares, o dever de respeito
e solidariedade para com o(s) outro (s). O patrão que dava a seu empregado
favorito, além do salário, uma quantia a mais às vésperas das festas natalícias foi,
durante algum tempo, julgado bondoso, generoso, solidário. O legislador, enten-
dendo que não devia contar com esse comportamento voluntário, e que devia
estendê-lo a todos os empregados, estabeleceu a "obrigação de ser solidário" aos
empregadores, por ocasião do Natal, determinado o pagamento do chamado 13°
salário.
80 U. Eco, Cinco Escritos, cit., p. 95.

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to do outro que nos identificamos) é através da solidariedade) que


nos responsabilizamos: "ninguém deve permanecer em si: a huma-
nidade do homem) a subjetividade) é uma responsabilidade pelos
outros) uma vulnerabilidade extrema"81.
Só quase dois mil anos depois) as noções de respeito e amor ao
próximo e de solidariedade) provenientes dos mandamentos cristã-
os) embora já há muito extremamente conhecidas e difundidas)
começariam a tomar corpo como instrumentos jurídicos para a
construção da sociedade 82 . Cabe a pergunta: por que levamos tanto
tempo para atingir este amadurecimento? Provavelmente porque
somente a ordem democrática é capaz de garantir a solidariedade
social para todos) ao proibir a diferenciação discriminatória entre
"nós" e os "outros") sendo "os outros" quase sempre considerados
desumanos) bárbaros) primitivos) subomens) animais. O reconheci-
mento do "outro") como reconhecimento e respeito que se deve a
cada um) tão-somente pelo fato de ser pessoa) é um valor adquirido
muito recentemente na história da humanidade) valor que tem
como pressuposto inarredável o Estado Democrático de Direito.
Ao imputar) ao Estado e a todos os membros da sociedade) o
encargo de construir uma "sociedade solidária") através da distri-
buição de justiça sociaC o texto constitucional agregou um novo
valor aos já existentes) ao estabelecer natureza jurídica ao dever de
solidariedade) que se tornou passível) portanto) de exigibilidade.
Criou) assim) o Estado Democrático e Social de Direito) tanto por
atribuir valor social à livre iniciativa como por projetar a erradica-
ção da pobreza e da marginalização social) entre outras disposições.
O projeto de uma sociedade livre) justa e solidária contraria a
lógica da competição desmedida e do lucro desenfreado) presentes
em situações jurídicas subjetivas de cunho patrimonial (o ambiente
do ter) - situações próprias) aliás) de um sistema capitalista sem
qualquer moderação) sem valores sociais a proteger) onde vigora a
máxima) proveniente de conhecida expressão popular) de que é
"cada um por si e Deus por todos". Esta lógica foi) por determina-
ção constitucionaC substituída pela perspectiva solidarista) em que
a cooperação) a igualdade substancial e a justiça social se tornam

81 E. Lévinas, Humanismo, cit., p. 124.


82 U. Eco, Cinco Escritos, cit., p. 96.

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valores hierarquicamente superiores} subordinados tão-somente ao


valor precípuo do ordenamento} que está contido na cláusula de
tutela da dignidade da pessoa humana.
Não se trata} como já se advertiu em outra oportunidadé 3} so-
mente de impor limites à liberdade individual} atribuindo inteira
relevância à solidariedade social 84 ou vice-versa: o princípio cardeal
do ordenamento é o da dignidade humana} que se busca atingir
através de uma medida de ponderação que oscila entre os dois va-
lores} ora propendendo para a liberdade} ora para a solidariedade.
A resultante dependerá dos interesses envolvidos} de suas conse-
qüências perante terceiros} de sua valoração em conformidade com
a tábua axiológica constitucionaC e determinará a disponibilidade
ou indisponibilidade da situação jurídica protegida.
Estes} em breves linhas} os aspectos mais relevantes acerca da
solidariedade sociaC cuja importância - não apenas para a convi-
vência entre os homens} mas para a sua própria (co ) existência -
foi) séculos atrás} glorificada em versos que se tornariam célebres:
"No man is an island entire of itself; every man is a piece of the
continent} a part of the main. Any man}s death diminishes me} be-
cause I am involved in mankind} and therefore never send to know
for whom the bell tolls; it tolls for thee ( .. )"85.

83 "Constituição e Direito Civil", cit., pp. 57-63.


84 Já foi por muitos ressaltado quão temerária é a opção ideológica pelo princí-
pio geral da solidariedade dita "produtivista", a qual se presta a ser utilizada em
nome de interesses considerados "superiores", com a conseqüente "instrumenta-
lização" da pessoa humana, ou sua possível "reificação", diante de tais supostos
interesses. O valor "solidariedade", em nosso ordenamento jurídico, somente
estará tutelado enquanto permanecer a serviço da pessoa, reafirmando-se aqui a
subordinação das situações patrimoniais e a prevalência das situações exist-
enciais. Para alusões a esta temática, V. Rizzo, "Cultura Jurídica, Produção Cien-
tífica e Ensino do Direito na Itália do século XX", in Revista Trimestral de Direi-
to Civil, voI. 4, out-dez 2000, p. 103.
85 John Donne, Devotions upon Emergent Occasions, XVII, (1623). Homem
nenhum é uma ilha de si mesmo; cada um é uma peça do continente, uma parte
do todo: a morte de qualquer homem me diminui porque faço parte da humani-
dade e, assim, nunca mandes perguntar por quem os sinos dobram; eles dobram
por ti.

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