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ESTUDOS EM HOMENAGEM A
CARLOS ALBERTO
MENEZES DIREITO
RENOVAR
Rio de Janeiro. São Paulo
2003
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
ISBN 85-7147-350-1
CDD 341.61
o Princípio da Solidariedade I
A. Dumas
1. Individualismo e solidariedade
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3 U. Eco, Entrevistas sobre o Fim dos Tempos, realizadas por C. David et al.,
Rio de Janeiro, Rocco, 1999, p. 208 e ss.
4 A referência é ao estudo de J. Burckhart, Die Kultur der Renaissance in
Italien, apud I.Watt, Mitos do Individualismo Moderno, Rio de Janeiro, Zahar,
1996, p. 128. Watt chama a atenção para o fato de que a maioria dos mitos do
mundo ocidental origina-se de figuras clássicas ou bíblicas. Diversamente, três
dos mitos do individualismo (Fausto, Dom Quixote e Don Juan) são criações
modernas que apareceram na literatura em um período não superior a 40 anos
(1587-1616). O quarto e mais famoso, Robinson Crusoe, seria criado em 1719.
No século XIX, com o crescente domínio do novo individualismo, caracterizado
pelo fato de que se passa a crer e aspirar - ser possível percorrer caminhos
individuais, esses quatro mitos difundiram-se pelo Ocidente, adquirindo status
de universalidade.
s Cf. C. M. da Silva Pereira, Instituições de direito Civil, v. II, l3 a . ed., Rio de
Janeiro, Forense, 1994, p. 58.
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jurídico a expressão 'carta política', porque suscita uma perigosa leitura que aca-
ba por relegar a Constituição a um programa longínquo de ação ... ".
7 Que o princípio da solidariedade seja daqueles que mais se presta a servir
como oxigênio da Constituição, conferindo unidade de sentido e auferindo a
valoração da ordem normativa do sistema constitucional, é o entendimento ex-
presso por P. Bonavides, Curso de direito constitucional, 7a . ed., São Paulo, Ma-
lheiros, 1998, p. 259.
8 Neste sentido, P. Perlingieri, La personalità umana nell'ordinamento giuridi-
co, Napoli, ESI, 2 a . ed., 1982, p. 161: "Alia luce dei principio solidaristico devono
essere lette non soltanto le altre norme costituzionali ma tutto l'ordinamento giu-
ridico C... )".
9 Artífices desta tese são, entre outros, Georg Simmel e Norbert Elias. Cf. L.
Waizbort Corg.), Dossiê Norbert Elias, São Paulo, Edusp, 1999, p. 104: "Para
eles, indivíduo e sociedade são conceitos complementares não apenas logicamen-
te, mas também em sua realização. A pluralidade dos indivíduos produz, através
de suas relações mútuas, o que se denomina unidade do todo, isto é, a SOciedade;
mas aquela pluralidade não seria imaginável sem esta unidade".
10 É a do chamado homo non clausus Csive sociologicus) N. Elias, Norbert Elias
por ele mesmo (1990), Rio de Janeiro, Zahar, 2001, p. 97 e ss. foi um dos maiores
defensores dessa última corrente, qual o concebe o indivíduo como fundamen-
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talmente em relação com um mundo que não é ele mesmo ou ela mesma, com outros
objetos e em particular com outros homens."
11 Metaforicamente, do mesmo modo que uma norma, para ser jurídica, não
pode existir sozinha, porque o que a torna jurídica é, exatamente, o fato de
pertencer a um ordenamento jurídico e não o contrário, como demonstrou Kel-
seno Para uma explicação da obra de Hans Kelsen e, especialmente, desse aspec-
to da teoria positivista V. N. Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico (1950),
São Paulo-Brasília, UNB-Polis, 1989, passim. Julgou-se interessante fazer tal pa-
ralelismo em razão da similitude das situações, no sentido de que a dedicação ao
estudo da norma jurídica bem como o do homem enquanto indivíduo solitário
provavelmente ofuscou, durante longo tempo, o verdadeiro objeto da pesquisa
em ambos os campos: o ordenamento jurídico e seus problemas, decorrentes
justamente da pluralidade de normas, na Ciência do Direito e a alteridade e seus
desafios, em razão da coexistência necessária e constitutiva ("fundamental", se-
gundo Elias) dos seres humanos, qualidade inafastável nos estudos das Ciências
Humanas e Sociais, ainda quando se pretenda tratar apenas do indivíduo.
12 H. Arendt, A Condição Humana (1958), Rio de Janeiro-São Paulo, Forense
Universitária, 9" ed., 1999, p. 188. Em sentido semelhante, F. Savater, ao men-
cionar a "sociedade boa", aduz que "não há unidade de destino no universal, mas
pluralidade universalizada de destinos particulares" (Ética como Amor-Próprio
(1988), São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 142).
13 M. Ridley, As Origens da Virtude. Um Estudo Biológico da Solidariedade
(1996), Rio de Janeiro, Record, 2000, passim. Segundo o Autor, "a sociedade
funciona não porque a inventamos intencionalmente, mas por ser um produto
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que te fazem" e está contida nos versos bíblicos "urge dar vida por vida, olho por
olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura,
ferida por ferida, golpe por golpe" (Êxodo, 21, 23-25). Apesar do evidente cará-
ter prático, a sua principal imperfeição é a de não conseguir dar fim à violência,
quando esta se estabelece. Cristo, no sermão da Montanha, a substituiu pelo
novo mandamento: "Tendes ouvido o que foi dito: olho por olho, dente por
dente. Eu, porém, vos digo: não resistais ao ma1. Se alguém te ferir a face direita,
oferece-lhe também a outra" (Mateus, 5, 38-39), pregando, desse modo, a lei do
amor a todos, inclusive aos inimigos (Mt, 5,43-44). Já a Regra de Ferro, muito
inferior do ponto de vista ético, prescreve: "Faz aos outros o que quiseres, antes
que te façam o mesmo". Muito interessante é a exposição dessas e de outras
regras éticas, encerradas nos diversos padrões de comportamento, feita por C.
Sagan, "As Regras do Jogo", in Bilhões e Bilhões, São Paulo, Cia das Letras, 1998,
pp.197-209.
19 Foi a regra inspiradora, no século XX, do comportamento de Mahatma
Gandhi e Martin Luther King, líderes de movimentos de desobediência civil ou
não-cooperação pacífica, aconselhando a não pagar a violência com violência, mas
a suportá-la sem obediência ou submissão. (V. C. Sagan, o.1.u.c.).
20 Assim, F. Ewald, Foucault, a Norma e o Direito, Lisboa, Veja, 2000, 2 a ed.,
pp. 146, que complementa: "Ela [a regra 'de prata'] não me obriga a sair de mim
mesmo, faz do outro um outro eu próprio. Não aliena a minha vontade na de um
outro; obriga-me apenas a considerar-me como um outro para o outro. Não hie-
rarquiza; supõe, pelo contrário, que cada um seja o igual do outro". Grifou-se.
21 A referência é a T. Hobbes, Elementos de Direito Natural e Político, apud F.
Ewald, o.l.u.c. Hobbes afirma que as desigualdades nunca são suficientemente
grandes para impedir que cada um tenha o poder de matar qualquer outro. Para
ele, a supor que os homens fossem mesmo desiguais, não haveria medida comum
que permitisse apreciar e hierarquizar suas diferenças. Na ausência dessa refe-
rência, é preciso admitir a igualdade (de direitos).
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22 A medida é dada pelo "bom pai de família", hoje chamado "homem médio".
Em irônica acusação à igualdade formal garantida pela lei, famosa é a frase de
Anatole France, segundo a qual "a lei, em sua majestosa eqüidade, proíbe tanto
o rico quanto o pobre de dormir debaixo das pontes, de esmolar pelas estradas,
de furtar o pão."
23 F. Ewald, op. cit., p. 148.
24 Não obstante a famosíssima trilogia revolucionária Liberté, egalité e fraterni-
té, é de se notar a ausência deste último termo na Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, de 1789. Por outro lado, a trilogia reaparece no art. 10 da
Declaração Universal dos Direitos do Homem, da ONU, 1948: "Todos os seres
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meçar cooperando, e, a cada jogada, fazer exatamente o que o seu oponente fez
na rodada passada: se ele coopera, você cooperai se ele trai, você trai. Com o
passar do tempo, as outras estratégias se "autodestroem" (excesso de crueldade
I ou de bondade, quando nunca ou sempre se coopera) e essa regra, semelhante à
lei de Talião, vence. Para mais detalhes, v. o supracitado texto de Carl Sagan.
I 37 V. nota 16, supra.
38 A título exemplificativo, o sufrágio universal só foi estabelecido, de uma vez
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do século XX} dos poderes legais que o iriam permitir atuar politi-
camente. Seus progressos sociais mostraram-se lentos} modestos e
vacilantes diante do poder instituído pelo Estado e pela Família. O
indivíduo burguês então manifestava} e iria manifestar por longo
tempo} profunda debilidade no que tange ao seu poder individual}
mostrando-se estruturalmente fraco para lutar pela defesa de seus
direitos.
A lógica assistencialista} por isso mesmo} perdurou por longo
tempo e} quando não pôde mais ser reconduzida às formas originá-
rias de caridade e beneficência} foi atribuída ao Estado} através de
um conjunto de normas pelas quais este deveria prover as necessi-
dades do trabalhador} fazendo-o beneficiário da previdência social}
quando um acidente} a doença ou a idade interrompesse sua ativi-
dade remunerada. A noção de solidariedade passou a se estabelecer
em torno da oposição eficiente-deficiente} considerando que a pes-
soa vive de seu trabalho} cabendo-lhe} porém} ser assistida pelo
Estado (isto é} por todos) quando não mais puder trabalhar 39 .
Bem outra é a tábua axiológica trazida pelas longas constituiçõ-
es do século XX} elaboradas e promulgadas após o término da 2 a
Guerra Mundial. No novo cenário} o valor fundamental deixou de
ser a vontade individual} o suporte fático-jurídico das situações pa-
trimoniais que importava regular} dando lugar à pessoa humana e à
dignidade que lhe é intrínseca. No caso brasileiro} esta mudança de
perspectiva se deu por força do art. 1°} III da Constituição Federal
de 1988 e da nova ordem que ela instaura} calcada na primazia das
situações existenciais sobre as situações de cunho patrimonial.
Ao contrário do que pode parecer} elevar a dignidade da pessoa
humana (e o desenvolvimento da sua personalidade) ao posto má-
ximo do ordenamento jurídico constitui opção metodológica opos-
ta a do individualismo das codificações. A pessoa humana} no que
se difere diametralmente da concepção jurídica de indivíduo} há de
por todas, em 1848. V., para tais considerações, M. Perrot (org.), História da
Vida Privada, vai. 4 - Da Revolução Francesa à Primeira Guerra (1987), São
Paulo, Companhia das Letras, 1991, p. 415-417.
39 F. Ewald, "L'étatization du social fait disparaí'tre le social", in www.galerie-
sociale.com, consultado em 06.05.2001.
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A CONFERÊNCIA DE RECONHECIMENTO DE TEXTO (OCR) NÃO FOI REALIZADA.
PESQUISA REALIZADA PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
É PROIBIDA A REPRODUÇÃO OU A TRANSMISSÃO, CONFORME LEI DE DIREITOS AUTORAIS.
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Fundamentos do Direito Privado, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1998, p.
49.
57 P. Ricoeur, "Le concept de responsabilité. Essai d'analyse sémantique", inLe
Juste, Esprit, 1992, pp. 41-70. Do mesmo Autor, v., ainda, Lectures 2 - La
contrée des philosophes, Paris, Seuili, 1992, espec. pp. 265-319.
58 A. Tunc, La responsabilité civile, Paris, Economica, 2 a ed., 1989, p.2, para
quem "l'importance actuelle de la responsabilité civile tient aussi aufait que l'on
accepte de moins en moins le malheur. C' est une constatation, non un reproche".
59 J. F. de Castro Farias,A Origem, cit., p. 143-5.
60 J. A. da Silva, Curso de direito constitucional positivo, 9 a ed., rev. e amp1.,
São Paulo, Malheiros, 1993, p. 707.
61 Cf. A. Giddens, A Terceira Via, Rio de Janeiro, Record, 2000, p. 126. Para
uma extensa análise do tema, recomenda-se a obra fundamental de F. Ewald,
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L'État-Providence, Paris, Seuil, 1986, passim. Numa perspectiva crítica aos wel-
fare states como expressão do princípio da solidariedade, v. U. Reifner, "The lost
penny - social contract Law and Market Economy", in T. Wilhelmsson, S. Hur-
ri (coords.), From dissonance to sense: welfare states Expectations, Privatizations
and Private Law, Brookfieid, Ashgate, 1999, pp. 117-75, em particular pp. 120-
3.
62 P. Bonavides, Curso, cit., p. 523.
63 J. Rivera, "Sobre la evolución contemporánea de la teoría de los derechos dei
hombre", apud N. Bobbio, A Era dos Direitos, (1990), Rio de Janeiro, 1992, p.
12.
64 A expressão é de U. Eco, Entrevistas, cit., p. 208.
65 P. Virilio, The Information Bomb, London, Verso, 2000, p. 2.
66 Entretanto, já no início do século E. Burke afirmava que "a sociedade é uma
parceria não só entre os que estão vivos, mas entre os que estão vivos, os que
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estão mortos e os que estão por nascer" (Reflections on the Revolution in France,
London, Dent, 1910, pp. 93-4, apudA. Giddens,A Terceira Via, cit., p. 131).
67 A este respeito, v. a análise pioneira de H. Jonas, The Imperative of Responsi-
bility: In Search of an Ethics for the Technological Age, Chicago, University of
Chicago Press, 1984, passim.
68 Segundo A H. V. Benjamin, "Responsabilidade Civil pelo Dano Ambiental",
in Revista de Direito Ambiental, nO 9, 1998, pp. 17-18, em situações em que o
eventual dano possa ser irreversível, de difícil reversibilidade ou de larga escala,
o princípio da precaução onera o degradado r em potencial com o dever de provar
a inofensividade da atividade por ele proposta.
69 Seria o caso, por exemplo, das empresas agrícolas que visam difundir o em-
prego de organismos geneticamente modificados. A corrente favorável à exten-
são do princípio é representada por P. Kourilsky e G. Viney, que elaboraram, em
1999, um relatório sobre o tema, a pedido do primeiro-ministro francês. Na
ocasião, os Autores propuseram a seguinte definição, a ser incorporada em futu-
ros textos legais: "O princípio da precaução define a atitude que deve observar
toda pessoa que toma uma decisão concernente a uma atividade a qual possa
razoavelmente se supor que acarrete um perigo grave à saúde ou à segurança das
gerações atuais ou futuras, ou ao meio ambiente. Esta atitude se impõe especial-
mente aos poderes públicos, que devem fazer prevalecer os imperativos de saúde
e segurança sobre a liberdade das trocas entre os particulares e entre os Estados.
Ele ordena que se tomem todas as providências permitidas, por um custo econô-
mico e social suportável, para detectar e avaliar o risco, reduzi-lo a um nível
aceitável e, se possível, eliminá-lo, além de informar as pessoas envolvidas e
recolher suas sugestões sobre as medidas que serão adotadas para tratá-lo. Estas
medidas de precaução devem ser proporcionais à amplitude do risco e podem ser
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7. Conclusão
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elaborar uma lista mais ou menos satisfatória dos direitos do homem, mas man-
ter sem desfalecimento o direito de ser homem."
78 P. Ricoeur, "Quo Vadis? Un entretien avec Paul Ricoeur par Y.B.Rayona", in
Labirinth, voI. 2, winter 2000, http: h2hopel. phl. univie. ac. at/ - iaf/Labi-
rinth/2000/ricoeur.html, onde Ricoeur justifica sua preferência pela expressão
"cada um" em lugar do termo "outro".
79 O fato social é intrinsecamente caótico, desorganizado; a liberalidade, pura-
mente eventual. O direito, ao contrário, é exigível e é isto que torna a solidarie-
dade um princípio diferente. Como seria possível obrigar alguém a ser solidário?
Não seria o mesmo que querer exigir o sentimento de fraternidade entre as
pessoas? A dificuldade está unicamente em se continuar atribuindo à solidarieda-
de um caráter essencialmente beneficente. Não se quer exigir que alguém sinta
algo de bom pelo outro; apenas que se comporte como se o sentisse. Um único
exemplo será o bastante para demonstrar que não há dificuldades em se exigir,
não apenas do Poder Público mas também dos particulares, o dever de respeito
e solidariedade para com o(s) outro (s). O patrão que dava a seu empregado
favorito, além do salário, uma quantia a mais às vésperas das festas natalícias foi,
durante algum tempo, julgado bondoso, generoso, solidário. O legislador, enten-
dendo que não devia contar com esse comportamento voluntário, e que devia
estendê-lo a todos os empregados, estabeleceu a "obrigação de ser solidário" aos
empregadores, por ocasião do Natal, determinado o pagamento do chamado 13°
salário.
80 U. Eco, Cinco Escritos, cit., p. 95.
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