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REVISTA BRASILEIRA DE DIREITO PROCESSUAL - RBDPro


Diretores
Lúcio Delfino
Fernando Rossi

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A. João D’Amico Fredie Didier Jr.
Luiz Fernando Valladão Nogueira
Araken de Assis Glauco Gumerato Ramos Luiz Fux
Aristoteles Atheniense Gil Ferreira de Mesquita Luiz Guilherme Marinoni
Arruda Alvim Humberto Theodoro Júnior Luiz Rodrigues Wambier
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Carlos Henrique Bezerra Leite J.E. Carreira Alvim Marcelo Lima Guerra
Cassio Scarpinella Bueno J.J. Calmon de Passos (in memoriam) Maria Elizabeth de Castro Lopes
Chedid Georges Abdulmassih João Batista Lopes Mariângela Guerreiro Milhoranza
João Delfino Ovídio A. Baptista da Silva (in memoriam)
Claudiovir Delfino
Petrônio Calmon Filho
Daniel Mitidiero Jorge Henrique Mattar
Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias
Darci Guimarães Ribeiro José Alfredo de Oliveira Baracho (in memoriam) Sérgio Cruz Arenhart
Djanira Maria Radamés de Sá José Carlos Barbosa Moreira Sérgio Gilberto Porto
Donaldo Armelin José Maria Rosa Tesheiner Teresa Arruda Alvim Wambier
Eduardo Arruda Alvim José Miguel Garcia Medina Teori A. Zavascki
Conselho de Redação
André Menezes Delfino José Henrique Mouta Luiz Gustavo de Freitas Pinto
Bruno Campos Silva Leonardo Vitório Salge Marcus Vinícios Correa Maia
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Helmo Marques Borges Luciana Fragoso Maia Ricardo Delfino
Hugo Leonardo Teixeira Luciano Lamano Richard Crisóstomo Borges Maciel
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José Carlos de Araujo Almeida Filho Luiz Arthur de Paiva Corrêa Wanderson de Freitas Peixoto
Yves Cássius Silva
Conselho Internacional
Alvaro Pérez Ragone (Chile) Miguel Teixeira de Sousa (Portugal) Juan Montero Aroca (Espanha)
Edoardo Ricci (Itália) Paula Costa e Silva (Portugal)

R454 Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro. Ano 15,


n. 59, jul./set. 2007. Belo Horizonte: Fórum, 2007.

Trimestral
ISSN 0100-2589

Publicada do n. 1, jan./mar. 1975 ao n. 14, abr./jun.1978
pela Vitória Artes Gráfica, Uberaba/MG.
Publicada do n. 15, jul./set. 1978 ao n. 58, abr./ jun. 1988
pela Editora Forense, Rio de Janeiro/RJ.
Publicação interrompida em 1988 e retomada pela
Editora Fórum em 2007.

1. Direito Processual. I. Fórum

CDD: 347.8 CDU: 347.9

© 2010 Editora Fórum Ltda.


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Sumário

Editorial............................................................................................................................................7

DOUTRINA
Artigos

Do pressuposto único para incidência do princípio da fungibilidade dos


recursos no processo civil
Magno Federici Gomes, Marco Aurélio Abrantes Rodrigues.............................................11
1 Introdução.........................................................................................................................12
2 Do acesso amplo à jurisdição..........................................................................................12
3 Das formas dos atos processuais....................................................................................14
4 Dos princípios...................................................................................................................17
4.1 Distinção entre princípios e regras................................................................................18
4.2 Do princípio da fungibilidade........................................................................................19
5 Do princípio da fungibilidade recursal no âmbito do direito processual civil.......21
5.1 Do Código de Processo Civil de 1939............................................................................21
5.2 Da sistemática vigente.....................................................................................................22
5.2.1 Dúvida objetiva.................................................................................................................26
5.2.2 Da tempestividade...........................................................................................................30
5.2.3 Do procedimento a ser seguido em caso de incidência do princípio da
fungibilidade recursal......................................................................................................35
6 Conclusão..........................................................................................................................37
Referências.........................................................................................................................38

Institutos do direito comum no processo civil brasileiro


Enrico Tullio Liebman.................................................................................................................43
§1 Premissa.............................................................................................................................43
§2 Formação histórica do direito brasileiro.......................................................................44
§3 Resenha..............................................................................................................................53

Sistema de enjuizamento escalonado (ou procedimento judicial


funcionalmente escalonado). Repensando o modelo de processo
Glauco Gumerato Ramos............................................................................................................65

Pedido de reconsideração
Jonathan Iovane de Lemos.........................................................................................................69
1 Notas introdutórias..........................................................................................................69
2 Pedido de reconsideração – Elementos.........................................................................71
2.1 Conceito e conteúdo.........................................................................................................71
2.2 Origem e natureza jurídica.............................................................................................72
2.3 Hipóteses de cabimento...................................................................................................72
2.3.1 Preclusão............................................................................................................................73

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2.3.1.1 Preclusão para o juiz e para as partes – Alcance dos artigos 471 e 473 do CPC......74
2.3.1.2 Síntese................................................................................................................................77
2.4 Atos atacados pelo pedido de reconsideração.............................................................78
2.5 Prazo...................................................................................................................................79
2.6 Interposição simultânea com recurso e litigância de má-fé.......................................80
2.7 Legitimidade.....................................................................................................................81
2.8 Competência......................................................................................................................82
2.9 Aplicação do princípio da fungibilidade no pedido de reconsideração..................82
2.10 Efeitos.................................................................................................................................84
2.11 O princípio do contraditório e o pedido de reconsideração......................................85
2.12 Pedido de reconsideração e embargos de declaração.................................................86
3 Considerações finais.........................................................................................................87
Referências.........................................................................................................................87

Da crítica da dogmática jurídica à hermenêutica constitucional: reflexões


sobre a (in)eficácia das normas de proteção do meio ambiente saudável
Wilson Levy...................................................................................................................................91
Introdução.........................................................................................................................92
1 Delimitando o ponto de partida: o meio ambiente saudável como direito
fundamental......................................................................................................................93
2 A crítica da dogmática jurídica: as verdades pressupostas engessadas na
doutrina e a ineficácia das normas protetoras do meio ambiente.............................98
3 Caminhando para a solução do problema: a hermenêutica constitucional
ou “como a Constituição não pode continuar sendo uma estranha à
hermenêutica jurídica”..................................................................................................105
À guisa de conclusão......................................................................................................109
Referências.......................................................................................................................110

Técnica normativa estrutural das decisões jurisdicionais no Estado


Democrático de Direito
Joseli Lima Magalhães..............................................................................................................113
Considerações iniciais....................................................................................................113
1 A técnica processual e a vocação do nosso tempo para a jurisdição.......................114
2 A técnica processual e o falso dilema dos escopos do processo..............................115
3 Técnica estrutural do raciocínio judicial.....................................................................119
3.1 Aplicação do método dedutivo....................................................................................120
3.2 Controle da solução dedutiva.......................................................................................121
3.3 A solução nos casos considerados difíceis..................................................................123
Considerações conclusivas............................................................................................125
Referências.......................................................................................................................126

Os meios de defesa do executado após a nova sistemática da execução


civil por quantia certa contra devedor solvente
Rodrigo Lanzi de Moraes Borges............................................................................................129
1 Introdução.......................................................................................................................129
2 As inovações nos meios de controle dos títulos executivos.....................................130

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2.1 A impugnação à execução por quantia certa fundada em título judicial...............131
2.2 Os embargos do executado...........................................................................................137
2.3 A Defesa intraprocessual (exceção/objeção de pré-executividade).........................143
2.3.1 A defesa intraprocessual na fase de cumprimento de sentença e na execução
por título extrajudicial, após o advento das Leis nºs 11.232/05 e 11.382/06...........144
3 Conclusões.......................................................................................................................147
Referências .....................................................................................................................149

Súmula vinculante – Edição em matéria de Direito Administrativo e


instrumentos de controle
Daniela Juliano Silva, Luiz Carlos Figueira de Melo.........................................................153
1 Considerações iniciais....................................................................................................153
2 A Reforma do Judiciário e o instituto da súmula vinculante...................................154
3 A edição de súmulas vinculantes em matéria de Direito Administrativo –
Risco à ordem constitucional?......................................................................................156
4 Instrumentos de controle na edição da súmula vinculante.....................................159
5 Conclusão........................................................................................................................160
Referências.......................................................................................................................162

Tutela específica das obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa


Fábio Victor da Fonte Monnerat.............................................................................................163
1 Introdução.......................................................................................................................163
2 A reforma processual e a busca da efetividade..........................................................165
2.1 Direito Processual Civil e sua reforma: breve elenco dos princípios
“clássicos” e dogmas em crise......................................................................................166
2.1.1 O binômio condenação execução.................................................................................167
2.1.2 Princípio da preferência pela tutela específica...........................................................170
2.1.3 A efetivação das obrigações específicas e o princípio da atipicidade dos
meios executivos.............................................................................................................172
3 Medidas de caráter coercitivo.......................................................................................175
3.1 A multa.............................................................................................................................175
3.2 A questão da prisão civil para o cumprimento da decisão......................................179
4 O princípio da congruência e o art. 461, 5º, do CPC.................................................180
5 Coisa julgada na execução específica..........................................................................182
6 Mecanismos de defesa do executado...........................................................................182
7 Tutela específica das obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa
fundadas em título executivo extrajudicial................................................................184
7.1 Defesa do executado no processo de execução da tutela específica.......................185

Parecer

Exercício tardio de situações jurídicas ativas. O silêncio como fato jurídico


extintivo: renúncia tácita e suppressio
Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim..........................................................................................189
1 Síntese da causa..............................................................................................................189
2 Primeiras considerações................................................................................................191

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3 Primeiro momento: análise do caso sob o aspecto da vontade exteriorizada
pelo titular do direito (afirmado).................................................................................192
3.1 O negócio jurídico na teoria do fato jurídico..............................................................192
3.2 As formas de exteriorização da vontade como elemento fático dos atos
jurídicos em sentido amplo (dentre os quais os negócios jurídicos).......................194
3.3 O silêncio como exteriorização de vontade, pressuposto fático de negócios
jurídicos............................................................................................................................197
3.4 O caso sob consulta. Configuração da renúncia tácita. Comportamento
negocial concludente......................................................................................................200
4 Segundo momento: análise do caso sob o enfoque da situação da confiança
da consulente..................................................................................................................207
4.1 A incidência do princípio da boa-fé nas relações contratuais..................................207
4.2 O caso sob consulta. A suppressio. A situação de confiança da consulente.............211
5 Conclusão........................................................................................................................214

RESENHAS

MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito a sério: uma crítica


hermenêutica ao protagonismo judicial. Florianópolis: Conceito, 2010.
232 p. (Coleção Lenio Luiz Streck).
Adalberto Narciso Hommerding............................................................................................217

BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes instrutórios do juiz. 4. ed.


São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
Giovanna Sabino Guaritá Charafeddine...............................................................................229

Índice ...........................................................................................................................................231

Instruções de publicação para os autores..............................................................................237

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Editorial

A Revista Brasileira de Direito Processual tornou-se, a partir de setembro


do corrente ano, veículo oficial para a publicação de pesquisas do programa
de mestrado da Faculdade de Direito Prof. Jacy de Assis, da Universidade Federal de
Uberlândia. Trata-se de mais uma iniciativa voltada ao ajuste do periódico às
diretrizes da CAPES, sempre com o propósito de melhorar a sua qualidade
e respeitabilidade.
Esta edição traz nove ensaios doutrinários. Dela participam Magno
Federici Gomes, Marco Aurélio Abrantes Rodrigues, Otávio Domit (tradu-
zindo texto escrito por Enrico Tullio Liebman), Glauco Gumerato Ramos,
Jonathan Iovane de Lemos, Wilson Levy, Joseli Lima Magalhães, Rodrigo
Lanzi de Moraes Borges, Daniela Juliano Silva, Luiz Carlos Figueira de Melo
e Fábio Victor da Fonte Monnerat.
Já na seção “Parecer” vê-se importante contribuição do prestigiado
processualista Fredie Didier Jr., escrito em coautoria com a Professora
Daniela Bomfim.
Finalmente, duas resenhas são ofertadas como orientação de leitura.
É com alegria que ofertamos ao público mais esta edição da RBDPro.

Lúcio Delfino
Fernando Rossi

R. bras. Dir. proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 71, p. 7, jul./set. 2010

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DOUTRINA
Artigos

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Do pressuposto único para incidência do princípio da fungibilidade dos recursos no processo civil 11

Do pressuposto único para incidência do


princípio da fungibilidade dos recursos
no processo civil
Magno Federici Gomes
Pós-Doutor em Direito Público e Educação pela Universidade Nova de Lisboa – Portugal. Pós-
Doutor em Direito Civil e Processual Civil, Doutor em Direito e Mestre em Direito Processual pela
Universidad de Deusto – Espanha. Mestre em Educação pela PUC Minas. Coordenador do curso
de Direito da Nova Faculdade – Contagem/MG. Professor da PUC Minas – unidade São Gabriel –
e da Faculdade de Direito Padre Arnaldo Janssen. Advogado militante.

Marco Aurélio Abrantes Rodrigues


Juiz de Direito do Estado de Minas Gerais. Especialista em Direito Processual Civil pela PUC
Minas. Ex-assessor de Juiz de Vara Cível de entrância especial. Ex-assessor de Desembarga-
dor de Câmara Cível do TJMG. Ex-advogado do Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais
(BDMG). Ex-Procurador do Estado de Minas Gerais.

Resumo: Com espeque no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição da República


de 1988 (CR/88), todos têm direito à busca da tutela jurisdicional justa,
adequada e efetiva, de há muito se encontrando ultrapassada a estrita visão
de simples acesso aos diversos órgãos integrantes do Poder Judiciário, o
que reduzia o amplo acesso à jurisdição a um direito puramente formal.
Assim, o trabalho proposto examinará o pressuposto único para incidência,
na atualidade, do princípio da fungibilidade recursal, o que se fará, com
uso de metodologia teórico-documental, através de minuciosa análise de
obras doutrinárias e da jurisprudência. Nesse viés, ao se deparar o julga-
dor com a interposição de um recurso inadequado, mas constatando que
o equívoco da parte seria escusável, por existir dúvida objetiva decorrente
da falta de consenso doutrinário e/ou jurisprudencial acerca da modalidade
efetivamente cabível, o não-conhecimento do remédio processual importa
em empeço ao postulado do acesso amplo à jurisdição, pelo simples fato
da aludida dúvida objetiva. Deverá, então, ser aplicado o princípio da
fungibilidade, a fim de alcançar o escopo sócio-político-jurídico para o
qual deve converter o processo, independentemente da existência ou não
de má-fé processual.
Palavras-chave: Direito constitucional e processual. Amplo acesso à
jurisdição. Recurso inadequado. Dúvida objetiva. Princípio da fungibili-
dade recursal.
Sumário: 1 Introdução – 2 Do acesso amplo à jurisdição – 3 Das formas dos
atos processuais – 4 Dos princípios – 4.1 Distinção entre princípios e regras –
4.2 Do princípio da fungibilidade – 5 Do princípio da fungibilidade recursal
no âmbito do direito processual civil – 5.1 Do Código de Processo Civil de
1939 – 5.2 Da sistemática vigente – 5.2.1 Dúvida objetiva – 5.2.2 Da tempes-
tividade – 5.2.3 Do procedimento a ser seguido em caso de incidência do
princípio da fungibilidade recursal – 6 Conclusão – Referências

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12 Magno Federici Gomes, Marco Aurélio Abrantes Rodrigues

1 Introdução
Em sede processual, os recursos podem ser definidos como meios de
impugnação às decisões judiciais, aptos a ensejar seu reexame pelo mesmo
magistrado ou por outro de hierarquia superior, almejando obter seu escla-
recimento, integração, reforma ou anulação, tudo fundado na natural rea-
ção humana de desejo a um duplo julgamento e na possibilidade de erro ou
má-fé do julgador, segundo Theodoro Júnior (2009). De modo que recurso é
remédio processual disponibilizado às partes para, na mesma relação jurídica
processual e voluntariamente, impugnar decisões judiciais, almejando sua
reforma, invalidação, cassação, esclarecimento ou integração. Visa, ainda,
obstar a preclusão e a coisa julgada, mas induz à litispendência.
Nesse viés, exsurge o princípio da fungibilidade dos recursos com ine-
gável relevo para os operadores do direito processual civil e penal, haja vista
sua capacidade, através da permissão de se sanar equívoco na interposição do
recurso cabível contra uma decisão, de propiciar adequada solução para certas
situações que, por conta do formalismo excessivo, não se faria possível, em
rota de colisão com a cláusula constitucional do acesso amplo e justo ao Poder
Judiciário (art. 5º, inciso XXXV, da Constituição da República de 1988 – CR/88).
Consiste, pois, noutros termos, tal princípio na conversão de um
recurso erroneamente interposto pelo certo, o que se dá sob certas diretrizes.
Sem embargo, a solução dada pela franca maioria da jurisprudência
atual, inclusive do colendo Superior Tribunal de Justiça (STJ), como se verá
em momento oportuno, ainda se encontra jungida às amarras do diploma
que inaugurou o aludido princípio à sistemática processual civil, qual seja,
o Código de Processo Civil (CPC) de 1939, olvidando-se de que a realiza-
ção prática do direito material deve-se sobrepor ao rigor formal, sob pena de
desatendimento ao escopo social do processo de pacificação.
Assim, há muito vem defendendo Wambier (1992) o estudo a que se
propõe, isto é, dirigir-se ao exame do pressuposto único para incidência, na
atualidade, do princípio da fungibilidade recursal, o que se fará, com uso
de metodologia teórico-documental, por meio de minuciosa análise de obras
doutrinárias e arestos jurisprudenciais, esses a partir de 1973, com enfoque
às decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), do Tribunal de Justiça
de Minas Gerais (TJMG) e do STJ.
Por primeiro, será tratado o postulado constitucional do acesso amplo
à jurisdição, externando o seu conteúdo material, para, depois, examinar as
formas dos atos processuais ao lume daquele postulado. Na sequência, ultra-
passada a definição de princípios, distinguindo-os de regras, será enfocado
o princípio da fungibilidade recursal sob a égide das revogadas e vigentes
sistemáticas processuais civis, assentando o que determina, hodiernamente,
a sua incidência e finalizando com o procedimento a ser seguido nesse caso.

2 Do acesso amplo à jurisdição


Prevê a CR/88 a cláusula do acesso amplo à jurisdição, também
denominada princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, quando

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Do pressuposto único para incidência do princípio da fungibilidade dos recursos no processo civil 13

estabelece, em seu art. 5º, inciso XXXV, que “a lei não excluirá da apreciação
do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (BRASIL, 1988).
De início, impende mencionar a opção pelo termo “acesso à
jurisdição”, em vez de “acesso à justiça”, por ser essa última de variegados
significados, conforme lapidar observação de Leal (2009). Dessa forma:

Evitaremos aqui a expressão equívoca de “acesso à justiça” porque, como já escla-


recemos, a palavra justiça, quando assim posta nos compêndios de direito, pode
assumir significados vários que, a nosso ver, perturbam a unidade semântica e
seriedade científica do texto expositivo. É certo que o cognominado “acesso à jus-
tiça” nada tem a ver com o acesso aos direitos fundamentais do homem, porque
simploriamente definido como “algo posto à disposição das pessoas com vistas a
fazê-las mais felizes (ou menos felizes), mediante a eliminação dos conflitos que
as envolvem, com decisões justas”. Também a expressão “acesso à justiça” não é
a síntese de todos os princípios e garantias constitucionais do processo, porque
atualmente o modelo constitucional do processo democrático é que, por incorporar
o princípio da ampla defesa pelo direito-de-ação, é que gera o livre acesso à juris-
dição, como direito irrestrito de provocar a tutela legal (art. 5º, XXXV, CR/88).

A referida cláusula constitucional pontifica que todos, indistintamente,


têm direito à busca da tutela jurisdicional justa, adequada e efetiva, de há
muito se encontrando ultrapassada a estrita visão de simples acesso aos
diversos órgãos integrantes do Poder Judiciário, o que a reduzia a um
direito puramente formal. A propósito, Nery Júnior (2009) preleciona que:

Pelo princípio constitucional do direito de ação, além do direito ao processo


justo, todos têm direito de obter do Poder Judiciário a tutela jurisdicional ade-
quada. Não é suficiente o direito à tutela jurisdicional. É preciso que essa tutela
seja adequada, sem o que estaria vazio de sentido o princípio. Quando a tutela
adequada para o jurisdicionado for medida urgente, o juiz, preenchidos os
requisitos legais, tem de concedê-la, independentemente de haver lei autori-
zando, ou, ainda, que haja lei proibindo a tutela urgente.

A toda evidência, o jurisdicionado quer não apenas a proclamação de


seu direito subjetivo material, mas também o resultado útil dele imanente.
Daí por que a concepção hodierna de jurisdição é indissociável do postulado
da efetividade processual.
Assim, na atualidade, deve-se ter sempre em mira que o processo não
é um fim em si mesmo, mas sim instrumento destinado à realização prática
da tutela do direito material, garantindo-lhe a efetividade, com base na lição
de Gomes Neto (2005).
É bem por isso que Cappelletti e Garth (2002) informam que o acesso
efetivo à jurisdição vem, cada vez mais, erigido à condição de direito social. Em
assonância com a recorrente lição de Grinover, Cintra e Dinamarco (2002), para

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 67-68.

NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal: processo civil, penal e administrativo. 9. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 172.

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14 Magno Federici Gomes, Marco Aurélio Abrantes Rodrigues

a efetividade do processo mister faz-se: a) a admissão ao processo (ingresso em


Juízo), eliminando-se as dificuldades econômicas que impeçam ou desanimem os
jurisdicionados; b) o modo-de-ser do processo (observação ao devido processo
legal); c) a justiça das decisões (critérios justos de apreciação de provas, enqua-
dramento dos fatos em normas jurídicas); d) utilidade das decisões, (dando a
quem tem o direito, tudo e precisamente aquilo que tem direito de obter).
Num quadro tal, irrompe inexorável a importância social do estudo sob
exame, haja vista que o mesmo visa permitir o conhecimento do litígio em
sua totalidade, fazendo o Estado-juiz valer, nas especificidades do caso con-
creto, dos desideratos maiores contidos na CR/88, para que, enfim, atinja-se
o escopo sócio-político-jurídico para o qual se deve converter toda e qualquer
relação jurídica processual, conforme leciona Dinamarco (2008).
Não será demasiado, antes de prosseguir, averbar o entendimento diverso
do idealizador da teoria neo-institucionalista do processo. Nesse sentido:

Observe-se que o processo não busca “decisões justas”, mas assegura as partes
participarem isonomicamente na construção do provimento, sem que o impre-
ciso e idiossincrático conceito de “justiça” da decisão decorra da clarividência
do julgador, de sua ideologia ou magnanimidade. Afaste-se desde logo ser o
processo o “tema-ponte a interligar o processo civil com a justiça social” ou o
modo de fazer aflorar toda uma problemática inserida em um contexto social
e econômico, cuja solução coubesse à sapiência do juiz.

Sem embargo do notável saber de Leal (2009), reafirma-se aqui a con-


cepção de processo como instrumento de salvaguarda dos direitos individuais
e coletivos, sob a cura do Poder Judiciário (art. 5º, inciso XXXV, da CR/88),
redundando na realização prática de justiça, o que não decorre — é bem ver-
dade — da magnanimidade do julgador, mas da restauração da ordem jurí-
dica antes agredida pelo desrespeito ao direito de outrem; intento para cujo
alcance não bastaria a participação isonômica das partes.

3 Das formas dos atos processuais


Oliveira (1997), distinto Desembargador do Tribunal de Justiça do
Estado do Rio Grande do Sul (TJRS), conceitua o formalismo como a totalidade
formal do processo que compreende:

não só a forma, ou as formalidades, mas especialmente a delimitação dos


poderes, faculdades e deveres dos sujeitos processuais, coordenação da sua
atividade, ordenação do procedimento e organização do processo, com vistas
a que sejam atingidas as suas finalidades primordiais.

Como aglomerado da ordenação disciplinadora da atividade processual,


o formalismo exerce papel fundamental no estudo da tutela jurisdicional,
podendo ser referenciadas, à guisa de exemplo, algumas de suas funções,

LEAL. Teoria geral do processo, p. 68.

OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Do formalismo no processo civil. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 6-7.

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Do pressuposto único para incidência do princípio da fungibilidade dos recursos no processo civil 15

segundo o ensinamento do destacado magistrado cuja obra (1997) deve ser


estudada com particular atenção: a) indicar as fronteiras para o começo e o fim
do processo; b) circunscrever o material processual que poderá ser formado;
c) estabelecer dentro de quais limites devem cooperar e agir as pessoas atuan-
tes no processo para o seu desenvolvimento; d) emprestar previsibilidade ao
trâmite procedimental; e) delinear o poder do juiz, atuando como garantia de
liberdade contra o arbítrio do Estado-juiz, pois “a realização do procedimento
deixada ao simples querer do juiz, de acordo com as necessidades do caso con-
creto, acarretaria a possibilidade de desequilíbrio entre o poder judicial e o
direito das partes”; f) controle dos eventuais excessos de uma parte em face da
outra, atuando, por conseguinte, como importante instrumento de igualação,
ainda que formal, dos litigantes entre si, seja no plano normativo, estabelecendo
uma distribuição equilibrada dos poderes das partes, seja no plano de fato,
consolidando a paridade de armas e garantindo o exercício bilateral dos direi-
tos; g) formação e valorização do material fático de importância para a decisão
da causa; e, adita-se, h) determinar a forma, o momento e quais os julgados
podem adquirir a imutabilidade característica da coisa julgada.
Deflui daí a ilação de que se torna imperioso que os atos processuais sejam
praticados de molde a proporcionar a máxima garantia, sendo certo que, como
visto, malgrado existirem vozes em contrário, as formas são instituídas para
segurança dos jurisdicionados e não por mero capricho do legislador. Não se perde
de vista que a total ausência de forma conduziria à ineficiência do processo como
instrumento de entrega da tutela jurisdicional e de realização de justiça.
Entanto, como dito, o processo não é um fim em si mesmo, devendo o
Estado-juiz acatar a inobservância de determinada forma, desde que tenha
o ato atingido sua finalidade, sobrepujando-se, assim, o princípio da instru-
mentalidade das formas, em conformidade com o art. 250 do CPC. Oportuno
aqui transcrever o que ensina Dinamarco (2008), já que:

a instrumentalidade do processo é vista pelo aspecto negativo e pelo positivo.


O negativo corresponde à negação do processo como valor em si mesmo e
repúdio aos exageros processualísticos a que o aprimoramento da técnica
pode insensivelmente conduzir; o aspecto negativo da instrumentalidade do
processo guarda, assim, alguma semelhança com a idéia da instrumentalidade
das formas. O aspecto positivo é caracterizado pela preocupação em extrair
do processo, como instrumento, o máximo de proveito quanto à obtenção dos
resultados propostos (escopos do sistema); infunde-se com a problemática da
‘efetividade do processo’ e conduz à assertiva de que o processo deve ser apto
a cumprir integralmente toda a sua função sócio-político-jurídica, atingindo em
toda a plenitude todos os seus escopos institucionais.

Ora, se o que se espera e o que se quer é que o processo atinja suas fina-
lidades, impende proceder à relativização do valor das formas, utilizando-as
tão somente na exata medida do necessário àquela consecução, não sendo

OLIVEIRA. Do formalismo no processo civil, p. 7-8.

DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 377.

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“razoável que este pudesse ser desenvolvido sem que houvesse um mínimo
de controle sobre as atividades a serem desempenhadas pelas partes e pelo
próprio Estado-juiz”. Desse modo, a propalada lição de Liebman (1984), no
sentido de que “as formas são necessárias, mas o formalismo é uma defor-
mação”, sendo essa a razão pela qual a efetividade do processo “depende
menos das reformas legislativas (sem jamais ignorar sua importância), do
que da postura cultural dos operadores do direito”.
Em virtude disso, vem se entendendo que a grande reforma a ser levada
a efeito no Poder Judiciário, em caráter de extremada urgência, é a mudança
da mentalidade dos juízes, dada a frequência de “sentenças e acórdãos dos
tribunais recheados de citações eruditas, escritos em linguagem rebuscada e
centrados na discussão de formalidades processuais, dando pouca ou nenhuma
importância à questão justiça”.10 Dessa maneira:

Por outro lado, para que seja possível a aplicação do princípio da instrumentalidade
das formas, deve ser superada a visão tradicional do juiz neutro, substituindo-a
pela concepção do juiz diretor, concebido como autoridade dentro do processo,
que exercita seus poderes-deveres para a efetiva direção e comando das atividades
processuais, de modo a obter o esclarecimento dos fatos e a busca da verdade,
sem que fique preso ou amarrado ao papel de mero espectador.11 12

Conforme já assentado acima, a realização prática de justiça como


escopo do processo não dimana da magnanimidade do julgador, mas da res-
tauração da ordem jurídica através de sua decisão imperativa. Não obstante,
esse decisório deve ser fruto de um mínimo de sensatez por parte de seu prola-
tor, sob pena de se lograr resultados absurdos ou nada efetivos. Se é correto que
equidade ou direito justo inexistirão à margem da racionalidade normativa,
não é menos certo que tais objetivos não se consubstanciarão por atos irra-
cionais, desprovidos de um mínimo de responsabilidade quanto aos impactos
sócio-econômicos dos operadores do processo, já que não se perde do horizonte
que a obediência cega à lei fulmina o ideal de justiça. Logo, a racionalidade das
normas e dos operadores do direito são instrumentos coetâneos e umbilical-
mente ligados para a obtenção da justiça social por meio do processo.
Ao se dar continuidade ao raciocínio defendido, os recursos, a despeito
de apresentarem pressupostos de admissibilidade, destacando-se dentre

TEIXEIRA, Guilherme Freire de Barros. Teoria do princípio da fungibilidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
p. 48-49.

LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 1984. v. 1, p. 237.

GOMES NETO, José Mário Wanderley. O acesso à justiça em Mauro Cappelletti: análise teórica desta concepção como
“movimento” de transformação das estruturas do processo civil moderno. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris,
2005. p. 100.
10
DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 84.
11
TEIXEIRA. Teoria do princípio da fungibilidade, p. 63.
12
Importante registrar, outra vez, opinião em sentido parcialmente contrário do precursor da teoria neo-institucionalista
do processo: “Manifesta-se inquestionável que o parâmetro de ‘justiça social e econômica’ é estabelecido pela norma
formulada segundo os paradigmas pós-modernos de legitimidade democrática, não podendo, como almejam os
instrumentalistas, alçar o titular do órgão jurisdicional (o juiz) à condição de fundamento pensante da realização de
escopos meta-jurídicos do processo na realização de um ‘direito-justo’. A justiça social ou econômica é metateórica-
processual da lei democrática, e não dos operadores de um processo que fosse veículo de criação de paz social e
econômica, porque tal desiderato, na advertência weberiana, além de irreal, é onírico, uma vez que não há eqüidade
ou direito justo à margem da racionalidade normativa” (LEAL. Teoria geral do processo, p. 68).

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eles, por oportuno, a adequação e a singularidade, estão sujeitos a esses


abrandamentos, que visam evitar o formalismo estéril, impedindo, de tal
sorte, o acesso à jurisdição por equívoco escusável da parte interessada.
Importa mencionar, no ponto, que a admissibilidade do recurso subor-
dina-se aos chamados pressupostos recursais, dentre os quais se avultam, em
relevo para o presente estudo, a adequação e a singularidade. A adequação
traduz a existência de “um recurso próprio para cada espécie de decisão”,13
ao passo que a singularidade diz respeito à “impossibilidade de interposição
simultânea de mais de recurso”.14 Os pressupostos de admissibilidade recur-
sais são o objeto do juízo de admissibilidade, o qual opera no plano de validade
do ato recursal e precede, necessariamente, ao juízo de mérito do recurso.
Na confluência do exposto, o princípio da instrumentalidade das for-
mas é curial para proporcionar uma maior racionalidade ao sistema proces-
sual, evitando-se o excesso de formalismo e privilegiando a finalidade do
ato. Pode-se afirmar com a necessária certeza que o espectro do princípio da
fungibilidade recursal deita tentáculos no da instrumentalidade das formas
e dos atos processuais, consagrado nos arts. 154 e 244, ambos do CPC, nele
encontrando o fundamento de sua validade.
Digno de nota que, para alguns, em total rota de colisão com o que ora se
expõe, a aplicação do princípio da fungibilidade não se radica no princípio da
instrumentalidade das formas, já que ele, em verdade, não prescinde de erro.
Em outras palavras, Wambier (2005b) argumenta que, para que se receba
um recurso por outro, mister se faz a ocorrência de dúvida demonstrável por
convincentes fundamentos, é dizer, dúvidas objetivas, das quais, em assim se
concebendo, não se haveria falar, propriamente, em erro.

4 Dos princípios
Preleciona o mestre Reale (1991) que os princípios jurídicos consistem
no fundamento básico do sistema normativo, a “base de validade das demais
asserções que compõem dado campo do saber”.15 Em explanação mais por-
menorizada, assevera Bandeira de Mello (2006) que:

[...] é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele,


disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes
o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exa-
tamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe
confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que
preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há
por nome sistema jurídico positivo. 4. Violar um princípio é muito mais grave
que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa
não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema
de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade,

13
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil: teoria geral do direito processual civil e processo
de conhecimento. 50. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. v. 1, p. 569.
14
THEODORO JÚNIOR. Curso de direito processual civil, p. 569.
15
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 299.

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conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra


todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível
a seu arcabouço lógico e corrosão da estrutura mestra [...].16

Em posição de vanguarda, Ávila (2009) pontifica:

Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas


e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se
demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e
dos efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção.17

Os princípios são, em apertada síntese, o substrato das normas jurídicas,


irradiando pujante influência em sua formação, interpretação e integração.

4.1 Distinção entre princípios e regras


No sistema normativo, as normas são gênero do qual as regras e os
princípios são espécies, sobrelevando anotar a inviabilidade de sua formação
exclusiva por um ou outro.
No primeiro caso, ou seja, regras, pretendendo-se prever todas as situa-
ções acabaria por redundar numa eficiência prática limitada. Lado outro, a
indeterminação dos princípios poderia ocasionar elevada complexidade do
sistema, tornando-o falível do ponto de vista da segurança jurídica.
Por essa razão apresenta-se o sistema aberto, constituído por regras e
princípios, como o modo mais equilibrado na gênese de um sistema jurídico,
para que seja possível acompanhar a constante evolução social.
A distinção entre as espécies normativas está longe de ser tarefa de fácil
deslinde. Leciona Alexy (2001) que tanto as regras quanto os princípios são espé-
cies do gênero normas, porque ambas estabelecem um dever-ser e são formula-
das com a ajuda de expressões deônticas (permissão, obrigação e proibição).
Para distingui-los, propõem-se diversos critérios a serem utilizados,
como se assentará.
Quanto ao grau de abstração ou generalidade, os princípios são nor-
mas com um grau de abstração mais elevado, ao passo que as regras são
normas com nível baixo de abstração.
De acordo com Gomes (2006), os princípios são fundamentais no sistema
das fontes, já que são normas implícitas que adquirem função essencial no
ordenamento jurídico, ante seu status hierárquico, ou porque estabelecem
a estrutura do sistema jurídico como um todo. Ademais, os princípios têm
natureza normoteorética porque constituem a base das regras jurídicas.
Acrescenta Dworkin (2002) que os princípios apresentam uma dimen-
são que as regras não têm, é dizer, quando se mesclam a ponto de entrarem
em conflito, a solução será adotada a partir da força relativa a cada um no
caso concreto.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 912-913.
16

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 9. ed. São Paulo: Malheiros,
17

2009. p. 78-79.

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Ávila (2009) estabelece acerbada crítica contra esses parâmetros de distinção,


os quais resume em critérios do caráter hipotético-condicional, do modo final de
aplicação, do conflito normativo e do fundamento axiológico. Propõe critérios
outros de distinção entre as mencionadas normas jurídicas ou, segundo suas próprias
palavras, elementos outros de “dissociação”.18 O primeiro critério distintivo respeito
ao modo como as espécies normativas prescrevem o comportamento, in verbis:

Enquanto as regras são normas imediatamente descritivas, na medida em que


estabelecem obrigações, permissões e proibições mediante a descrição da con-
duta a ser adotada, os princípios são normas imediatamente finalísticas, já que
estabelecem um estado de coisas para cuja realização é necessária a adoção de
determinados comportamentos. Os princípios são normas cuja qualidade frontal
é, justamente, a determinação da realização de um fim juridicamente relevante, ao
passo que característica dianteira das regras é a previsão do comportamento.19

A duas, apresenta o critério da natureza da justificação exigida, a teor do


qual o intérprete há que ter em mira, no que concerne às regras, “uma avaliação
de correspondência da construção factual à descrição normativa e à finalidade
que lhe dá suporte”,20 ao passo que os princípios reclamam conexão “entre os efei-
tos da conduta a ser adotada e a realização gradual do estado de coisa exigido”.21
Em remate, Ávila (2009) diferencia as normas jurídicas através da
intensidade de contribuição para a decisão, vale dizer, as regras são normas
“preliminarmente decisivas e abarcantes”,22 conferindo uma específica solu-
ção para a decisão a ser adotada. Já os princípios consistem em normas “com
pretensão de complementaridade e de parcialidade”,23 limitando-se a contri-
buir para a tomada da decisão, o que será feito ladeado de razões outras.
De toda sorte, sem adentrar no acerto das diferentes posições doutriná-
rias ditas anteriormente, pode-se registrar que os princípios são normas com-
patíveis com vários graus de concretização, segundo os parâmetros fáticos e
jurídicos, enquanto as regras impõem, permitem ou proíbem uma conduta
específica, de forma imperativa, que é ou não cumprida. No caso de conflito,
os princípios podem ser harmonizados na casuística, sopesados consoante
seu valor em relação a outros princípios, ao passo que as regras, em tendo
validade, devem ser aplicadas exatamente como prescritas, pois não permi-
tem ponderações. Se não estão corretas, impõe-se sua alteração. Isso demons-
tra que a convivência dos princípios é conflituosa — coexistem —, enquanto a
das regras é antinômica — excluem-se —, como preleciona Canotilho (2000).

4.2 Do princípio da fungibilidade


A concepção de fungibilidade na seara jurídica diz respeito à possibi-
lidade de se substituir um instituto por outro, tanto sob o prisma do direito
material quanto do direito processual.
18
ÁVILA. Teoria dos princípios, p. 71.
19
ÁVILA. Teoria dos princípios, p. 73.
20
ÁVILA. Teoria dos princípios, p. 73.
21
ÁVILA. Teoria dos princípios, p. 74-75.
22
ÁVILA. Teoria dos princípios, p. 76.
23
ÁVILA. Teoria dos princípios, p. 76.

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20 Magno Federici Gomes, Marco Aurélio Abrantes Rodrigues

Com efeito, esclarece Lamy (2007), no âmbito do direito substancial, o


princípio da fungibilidade consiste na característica de um dado bem móvel
ou de uma prestação que podem ser substituídos por outros de mesma espé-
cie. De outra banda, no direito instrumental, a fungibilidade tem incidência
no âmbito dos recursos, neles autorizando o recebimento de um recurso por
outro, mesmo sendo incabível para impugnar determinado tipo de decisão,
evitando-se um odioso formalismo no juízo de admissibilidade de tais remé-
dios, capaz de acarretar numerosas injustiças que daí sobreviriam.
Além disso, aplica-se o princípio da fungibilidade nas tutelas de urgência —
art. 273, §7º, do CPC —, nas demandas possessórias — art. 920 do CPC —, e
ainda nos procedimentos — art. 295, inciso V, do CPC — e nas tutelas jurisdicio-
nais — por exemplo, “fungibilidade entre Ação Rescisória e Ação Anulatória”.24
Enfim, o princípio em tela tem larga aplicação no direito pátrio, inde-
pendentemente de expressa previsão legal, tendo em conta a mutabilidade da
sociedade, a exigir a evolução do direito, notadamente quando sua não-adoção
importe negativa de tutela jurisdicional, como esclarece Wambier (2005a):

Parece-nos inafastável a conclusão no sentido de que, estando presentes os pres-


supostos de incidência do princípio da fungibilidade (a que alude a doutrina
tradicional no campo dos recursos), deve este princípio incidir em todo o processo:
havendo dúvidas aferíveis pela ausência de unanimidade no plano da doutrina
e/ou no da jurisprudência) a respeito de qual seja o caminho adequado para se
formular determinado pedido num processo — dúvidas quanto ao veículo, quanto
à competência etc. —, não pode a parte ser prejudicada por isso.25

Uma das estudiosas que mais se dedicou ao estudo do princípio da fun-


gibilidade, Vasconcelos (2007), fornece o seu emprego no âmbito processual em
diversas dimensões, como a fungibilidade entre ações rescisória e anulatória,
entre ações rescisória e declaratória de inexistência, entre o mandado de segu-
rança e a reclamação, entre os embargos de terceiro e os embargos à execução,
entre os meios do contribuinte efetuar o depósito para suspender a exigibili-
dade do crédito tributário e entre os meios processuais para promover o ime-
diato processamento dos recursos especial e extraordinário retidos. Ademais,
na tutela de urgência, na intervenção de terceiros, no pré-questionamento e na
competência para a concessão do efeito suspensivo ou do efeito antecipatório
da tutela recursal à apelação. É o que se denomina fungibilidade de meios.26
24
LAMY, Eduardo de Avelar. Princípio da fungibilidade no processo civil. São Paulo: Dialética, 2007. p. 144.
25
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. O princípio da fungibilidade sob a ótica da função instrumental do processo.
In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; NERY JÚNIOR, Nelson (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005a. p. 792.
26
À guisa de exemplo no plano jurisprudencial, colhe-se julgado do colendo STJ, aplicando o princípio da fungibilidade
em viés alargado e sem a necessidade de estrito amparo legal: “EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO
DE INSTRUMENTO. PROCESSUAL CIVIL. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. NÃO-OCORRÊNCIA.
TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. REDIRECIONAMENTO. SÓCIO. EMBARGOS DE TERCEIRO. CABIMENTO
DE EMBARGOS DO DEVEDOR. PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS. TEMPESTIVIDADE DOS EMBARGOS.
PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE RECURSAL. POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO. RESPONSABILIDADE
DO SÓCIO VINCULADA AO EXERCÍCIO DE GERÊNCIA OU ATO DE GESTÃO. SÚMULA 7/STJ. AGRAVO
DESPROVIDO. 1. Não viola o art. 535 do CPC, tampouco nega a prestação jurisdicional, o acórdão que, mesmo sem
ter examinado individualmente cada um dos argumentos trazidos pelo vencido, adota, entretanto, fundamentação
suficiente para decidir de modo integral a controvérsia. 2. “Os embargos a serem manejados pelo sócio-gerente

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Do pressuposto único para incidência do princípio da fungibilidade dos recursos no processo civil 21

Isso reflete, inegavelmente, a novel dimensão conferida ao princípio da


fungibilidade, conforme a antes transcrita lição de Wambier (2005a), garan-
tindo ao jurisdicionado uma tutela mais justa e efetiva, a partir de posições
mais flexíveis fundadas em valores constitucionais fundamentais.

5 Do princípio da fungibilidade recursal no âmbito do direito


processual civil
É chegado o momento de analisar o princípio da fungibilidade recursal
com olhos postos no direito processual civil, o que se fará desde o seu nasce-
douro com o CPC de 1939 à sistemática vigente, tracejando as condicionantes
para sua aplicação.

5.1 Do Código de Processo Civil de 1939


O CPC de 1939 preconizava em seu art. 810 que, “salvo a hipótese de
má-fé ou erro grosseiro, a parte não será prejudicada pela interposição de um
recurso por outro, devendo os autos ser enviados à Câmara, ou Turma, a que
competir o julgamento” (BRASIL, 1939).
A previsão expressa sob a égide do CPC de 1939 era motivada pela com-
plexidade do sistema recursal, em razão da existência pródiga de recursos (ape-
lação, embargos de nulidade ou infringentes do julgado, agravo de instrumento,
agravo de petição, agravo no auto do processo, revista, embargos de declaração
e recurso extraordinário (art. 808, caput, do CPC de 1939), especialmente quando
se tratava de optar entre a apelação e o agravo de petição, segundo Martins
(1957). Sem falar da dificuldade em se identificar o teor da decisão.
Àquela época, era recorrente a interposição de agravo de petição quando,
a bem da verdade, o recurso correto seria o de apelação e vice-versa, tudo em
virtude da ambígua redação de alguns incisos do art. 842 e, sobretudo, do art. 846,
daquele digesto processual, quando ele referia-se a “decisões que impliquem a ter-
minação do processo principal, sem lhe resolverem o mérito” (BRASIL, 1939).
Ao revés do que se poderia alvitrar, a previsão explícita do princípio da
fungibilidade recursal não impediu que ocorresse enorme dissidência acerca
de sua aplicação, não se tendo logrado estatuir critérios objetivos para tal
mister, o que dava margem ao nefasto casuísmo.
Naquele tempo, a par da controvérsia quanto à necessidade da ausên-
cia tautócrona de erro grosseiro e de má-fé — tendo prevalecido a hipótese

contra quem se redirecionou ação executiva, regularmente citado e, portanto, integrante do pólo passivo da
demanda, são os de devedor, e não por embargos de terceiros, adequados para aqueles que não fazem parte da
relação processual. Todavia, em homenagem ao princípio da fungibilidade das formas, da instrumentalidade do
processo e da ampla defesa, a jurisprudência admite o processamento de embargos de terceiro como embargos
do devedor. Exige, para tanto, entre outras circunstâncias, a comprovação do implemento dos requisitos legais de
admissibilidade, notadamente quanto à sua propositura dentro do prazo legal” (EREsp nº 98.484/ES, 1ª Seção, Rel.
Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 17.12.2004). 3. Os sócios somente podem ser responsabilizados pelas dívidas
tributárias da empresa quando exercerem gerência da sociedade ou qualquer outro ato de gestão vinculado
ao fato gerador. 4. Na hipótese dos autos, o Tribunal de Justiça estadual entendeu que o sócio, contra o qual se
buscava o redirecionamento da execução fiscal, não participava da gerência, administração ou direção da empresa
executada. Assim, para se entender de modo diverso ao disposto no acórdão recorrido, é necessário o reexame do
conjunto fático-probatório contido nos autos, o que, no entanto, é vedado em sede de recurso especial, nos termos
da Súmula nº 7/STJ. 5. Agravo regimental desprovido” (BRASIL. STJ. 1ª Turma. AgRg no Ag nº 847.616/MG. Rel.
Min. Denise Arruda, julgado em 04 set. 2007. DJU, Brasília, p. 302, 11 out. 2007).

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22 Magno Federici Gomes, Marco Aurélio Abrantes Rodrigues

negativa ante o bom vernáculo da conjunção “ou” —, a exata delimitação dos


preditos institutos não ficou indene de dúvidas.
De toda sorte, prevaleceu o entendimento a teor do qual constituía erro
grosseiro a interposição de recurso ao arrepio de texto expresso da lei, ou
quando não houvesse, quer na doutrina, quer na jurisprudência, disceptação
acerca do recurso cabível.
Por sua vez, no tocante à má-fé, a divergência pairava dentre os estu-
diosos como Martins (1957) e Oliveira e Cruz (1949). Na árdua tarefa de se
conceituar a má-fé, destacou-se Pontes de Miranda (1960), para quem con-
substanciava a má-fé o uso do recurso impróprio de maior prazo, por se ter
perdido prazo do recurso cabível; valer-se do recurso de maior devolutivi-
dade para se alforriar à coisa julgada formal; ou, finalmente, protelar o feito,
lançando mão do recurso mais demorado.
No entanto, o critério preponderante, para caracterizar a má-fé proces-
sual do recorrente sustenta-se na inobservância do prazo do recurso próprio,
conforme aclara Nery Júnior (1997).

5.2 Da sistemática vigente


No atual CPC não foi repetida regra semelhante ao disposto no aludido
art. 810 do revogado Código instrumental de 1939, o que se deveu à pretensa
simplificação do novo sistema recursal, pelo que, acreditava-se, não mais se
teria por aplicável o princípio da fungibilidade dos recursos. É o que mencio-
na a exposição de motivos do CPC de 1973, ao dizer que:

É certo que, para obviar aos inconvenientes da interposição errônea de um recurso


por outro, o Código vigente admite o seu conhecimento pela instância superior
e ordena a remessa à câmara ou turma, desde que não esteja viciado por má-fé
ou erro grosseiro (art. 810). O Código consagrou, nesse preceito legal, a teoria do
‘recurso indiferente’ (Sowohls-auch-Theorie), como ensinam os autores alemães.
Esta solução não serviu, porém, para melhorar o sistema, porque a freqüência
com que os recursos, erroneamente interpostos, não são conhecidos pelo tribunal
evidenciou que a aplicação do art. 810 tem valor limitadíssimo (item 31).27

Num quadro tal, exaltou Jorge (2002) que, em face dessas duas premis-
sas — inexistência de previsão e simplicidade do sistema recursal — a dou-
trina e a jurisprudência negaram, de início e com tintas fortes, a existência do
princípio em comento.28 Trata-se, como se percebe, de decisões impregnadas
27
BRASIL, 1973, Exposição de Motivos do CPC.
28
Colhe-se da jurisprudência contemporânea ao limiar da vigência do Código de 1973: “EMENTA: PRINCÍPIO
DA FUNGIBILIDADE DOS RECURSOS NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 1973. INEXISTÊNCIA. NÃO
CONHECIMENTO, ASSIM, DE REMÉDIO PROCESSUAL INADEQUADO. No sistema do Código de Processo
Civil de 1973, em vigor, inexiste a fungibilidade de recursos, admitida no anterior, e, assim, a interposição de
um dos especificamente previstos, por outro, constitui erro grosseiro, o que impedirá o seu conhecimento na
instância superior” (SÃO PAULO. TJSP. 1ª Câmara Civil. Agravo de Instrumento nº 203.400. Rel. Des. Francisco
Negrisollo, julgado em 11 set. 1974. Revista dos Tribunais, 473/114); e, “EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO.
INTERPOSIÇÃO CONTRA DECISÃO QUE INDEFERE INICIAL. INADMISSIBILIDADE. HIPÓTESE DE
APELAÇÃO. PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE. SUPRESSÃO PELO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL VIGENTE.
I – O recurso cabível contra a sentença que indefere a petição inicial é o de apelação. II – O Código de Processo
Civil atual eliminou o princípio da fungibilidade dos recursos” (SÃO PAULO. TJSP. 3ª Câmara Civil. Agravo de
Instrumento nº 250.987. Rel. Des. Costa Manso, julgado em 06 maio 1976. Revista dos Tribunais, 491/87).

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Do pressuposto único para incidência do princípio da fungibilidade dos recursos no processo civil 23

do superado positivismo legalista, incompatível com a ordem constitucional


de 1988, conforme adiante se demonstrará.
Contudo, segundo a sabedoria popular, “o tempo é o senhor da
razão” e, logo, apercebeu-se que a propalada simplicidade do CPC de 1973 não
espancou todas as vicissitudes que os fatos concretos da vida ensejam, persis-
tindo as perplexidades de outrora no concernente aos recursos, o que levou os
operadores do direito a, após empreenderem melhor estudo, reverem sua posi-
ção, acatando a aplicação do princípio, ainda que à míngua de sua positivação.
E tal não poderia ser diferente. Moreira (1974) afirmou, com pioneirismo, que
“a solução não repugna ao sistema do novo Código, que não leva a preocupa-
ção do formalismo a ponto de prejudicar irremediavelmente o interesse subs-
tancial das partes por amor ao tecnicismo”,29 acrescentando, com olhos postos
no princípio da instrumentalidade das formas, que “se o erro de forma não
torna inaproveitável a própria ação, menos ainda a escolha de forma imprópria
para impugnar determinada decisão tornará inaproveitável o recurso”.30
Além disso, é de sabença geral que os princípios não demandam pre-
visão expressa na lei para sua aplicação. Por corolário lógico, tal fato não se
erigiria em óbice para a conservação da fungibilidade recursal, especialmente
porquanto remanesciam, como persistem, diversas situações em que a dúvida
sobre o recurso cabível estava e está presente, respectivamente.
Acerca da desnecessidade de norma expressa, é imperativo transcrever
a lição de Nery Júnior (1997), segundo o qual:

os princípios são, normalmente, regras de ordem legal, que muitas vezes decor-
rem do próprio sistema jurídico e não necessitam estar previstos expressamente
em normas legais, para que se lhes empreste validade e eficácia. Logo, mesmo
à falta de regras expressas, pode-se entender, em tese, que a fungibilidade dos
recursos não repugna ao sistema do CPC [...].31

Assim, se é certo que a resolução quanto à aplicação do aludido princí-


pio não demandou maiores esforços intelectuais, o mesmo não se pode dizer
acerca do estabelecimento dos requisitos para tal pretensão.
A problemática se resume em saber se há que se ter em mira os requisi-
tos adrede previstos no Código processual de 1939, ou se tais requisitos não
devem mais subsistir, não tendo chegado a um consenso, até os dias atuais,
doutrina e jurisprudência.
Anote-se, por oportuno, que o que não se pode admitir, em hipótese
nenhuma, é a aplicação temerária do princípio, como se extrai do Recurso
Especial nº 166.460/BA, com voto vencido de lavra do Min. Eduardo Ribeiro:

Tenho entendimento firme, ainda que isolado, no sentido de que a circunstância


de se tratar ou não de erro grosseiro não releva, frente ao direito vigente, para
aplicação do princípio da fungibilidade dos recursos. Peço vênia para transcrever
29
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1974. v. 5, p. 220.
30
MOREIRA. Comentários ao Código de Processo Civil, p. 220.
31
NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios fundamentais: teoria geral dos recursos. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1997. p. 112-113.

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24 Magno Federici Gomes, Marco Aurélio Abrantes Rodrigues

trecho do voto que, a propósito, proferi: “O Código vigente, como sabido,


não contém regra expressa sobre a possibilidade de converter-se, no recurso
cabível, aquele que houver sido equivocadamente manifestado, não havendo
reproduzido a norma constante do artigo 810 da lei processual de 1939. Ali se
previa que a parte não seria prejudicada pela interposição de um recurso por
outro, mas ressalvada a hipótese de má-fé ou erro grosseiro. Havendo este, não
se poderia fazer a conversão, já que o direito era explícito quanto ao ponto. À
míngua de norma análoga, a questão haverá de resolver-se com base na orien-
tação geral que se pode extrair do contido nos artigos 244 e 250 do CPC. Aí se
consagrou, de forma enfática, o princípio da instrumentalidade das formas.
Inexistindo cominação expressa de nulidade e não resultando prejuízo, o ato
será aproveitado. Não importa que escusável ou inescusável, grosseiro ou não
o erro. Se não decorreu gravame algum, releva-se e aproveita-se”. (BRASIL.
STJ. 3ª Turma. REsp nº 166.460/BA. Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito,
julgado em 10 dez. 1999. DJU, Brasília, p. 57, 17 abr. 2000)

Com a devida vênia, tal exegese só se afiguraria possível num sistema


em que, ao contrário do brasileiro, não se faz presente a unirrecorribilidade,32
quando então bastaria à parte manifestar seu intento recursal para ver sua
insurgência reexaminada.
Ora, a “fungibilidade não se destina a legitimar o equívoco crasso, ou
para chancelar o profissional inábil; serve, isto sim, para salvar o ato que,
diante das circunstâncias do caso concreto, decorreu de dúvida objetiva”.33
Sob as luzes desse posicionamento doutrinário que, de resto, é o de-
senho do entendimento da dogmática processual pátria, não se teria como
admitir a fungibilidade entre agravo regimental e embargos declaratórios,
salvo, excepcionalmente, quando expressamente a parte o requeresse e fosse
uma postura compreensível ante a complexidade da matéria. Fica claro que o
“erro inexplicável revela-se insuficiente para subtrair do recorrido o legítimo
direito a um juízo de inadmissibilidade do recurso impróprio”.34
Recentemente, o colendo STJ fez assentar que o princípio da fungi-
bilidade não é paladino para todos os males, enaltecendo a necessidade de
se observar, em sua aplicação, a princípios outros, de igual, ou quiçá, maior
magnitude, como o da taxatividade, o da singularidade e o da adequação.35
32
Também conhecido como princípio da unicidade ou singularidade, que determina só caber um único recurso por
vez, tendo em vista que ele é o adequado.
33
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de processo civil: processo de conhecimento. 7. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. v. 2, p. 512.
34
ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 94.
35
Nesse sentido: “EMENTA: PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO – AGRAVO REGIMENTAL – RECURSO ESPECIAL –
ART. 105, III, ‘A’ E ‘C’ – CONTRIBUIÇÃO SOCIAL PREVIDENCIÁRIA – REPETIÇÃO DO INDÉBITO – COMBINAÇÃO
DE ESPÉCIES RECURSAIS – AGRAVO REGIMENTAL COM PEDIDOS DE REFORMA E DE SUPRIMENTO DE
OMISSÕES E OBSCURIDADES – INADEQUAÇÃO – FUNGIBILIDADE IMPOSSÍVEL. 1. É pacífica a jurisprudência do
STJ quanto à possibilidade de conversão de embargos declaratórios em agravo regimental, quando atendidos os requisitos
da fungibilidade, especialmente a ausência de erro grosseiro e a adequação de forma, a tempestividade e a inexistência de
má-fé. 2. Não é possível admitir a fungibilidade quando o agravante faz reunir em uma única espécie recursal os elementos
distintos, diversos e indecomponíveis de agravo interno e de embargos declaratórios. A fungibilidade não alcança a mescla
de elementos categoriais de dois recursos diferentes em um só. Ofensa aos princípios da taxatividade, singularidade e
fungibilidade. 3. A flexibilização de formas, primado que rege a tolerância com certos desvios não-prejudiciais no trato
dos recursos, é de ser afastada quando se procede à autêntica criação de espécie nova. O recurso, além de direito da
parte, termina por retardar a fruição de um direito subjetivo, daí ser necessário maior rigor no manuseio dessa forma de
irresignação contra os provimentos judiciais. Agravo regimental não-conhecido” (BRASIL. STJ. 2ª Turma. AgRg no REsp
nº 741.541/SP. Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 18 dez. 2008. DJ-e, Brasília, 05 mar. 2009).

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Do pressuposto único para incidência do princípio da fungibilidade dos recursos no processo civil 25

Num quadro tal, fica claro que a fungibilidade recursal deve atender
a certos requisitos de aplicabilidade, para que a sua incidência não resulte,
repisa-se, em conflito com outros preceitos processuais, como o princípio da
singularidade recursal, consistente na impossibilidade de se atacar uma deci-
são, utilizando-se mais de um tipo de recurso ao mesmo tempo.
Ao se debruçar sobre o exame dos requisitos, tem-se que parte da juris-
prudência36 e da doutrina,37 ainda se orienta no sentido de que o princípio da
fungibilidade deva ser aplicado da mesma forma e com os mesmos requisitos
do codex revogado.
Lado outro, vozes não menos abalizadas propendem para a sua apli-
cação em face das necessidades e peculiaridades do sistema vigente, como
Wambier (1996) e Nery Júnior (1997), entendimento esse que parece o mais
técnico, permissa venia.
Não se deve tão somente transportar os requisitos do sistema pretérito
para o atual, já que a sistemática recursal foi mudada sobremaneira e o direito,
assim como a sociedade, encontra-se em constante evolução. Deve-se, isto
sim, fazer uso do tirocínio adquirido, estabelecendo-se concepção própria,
de molde a relegar os problemas do passado e atender às necessidades do
sistema vigente, em conformidade com Jorge (2002).
Ao se compreender desse modo, o afastamento, desde já, da inexis-
tência de má-fé, como requisito necessário para a aplicação do princípio, é
medida que se impõe, notadamente diante da dificuldade e do inseparável
casuísmo para sua definição. Em abono à tese, Wambier (1996) aduz que:

a má-fé era aspecto que tinha de ser enfrentado à luz do estatuto revogado, que
lhe fazia referência explícita, mas não, a nosso ver, à luz da lei vigente, que nem
menciona o princípio. Logo, parece que sua formulação deve ser a mais simples
e operativa possível. A má-fé, a nosso ver, deve ficar de fora.38

Adianta-se que, ainda que se tenha por aplicável a fungibilidade e, nada


obstante, esteja o recorrente agindo premido de má-fé, ele será alcançado
pela sanção geral dos arts. 17 e 18, ambos do CPC, devendo-se, entretanto,
conhecer-se do recurso, visto que, como cediço, a má-fé não se mete a rol den-
tre os requisitos de admissibilidade dos recursos, nos termos do escorreito
ensinamento de Nery Júnior (1997).
Ressalta-se, por conseguinte, desde já, em conclusão antecipada, que o
único requisito, como adiante se verá, a ser exigido para que se empregue o
princípio da fungibilidade é a dúvida objetiva.
36
Dessa maneira: “EMENTA: PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. IMPROVIMENTO. AGRAVO
REGIMENTAL. ERRO GROSSEIRO. PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE RECURSAL. INAPLICABILIDADE. I – O
princípio da fungibilidade recursal só é aplicável quando inocorre má-fé ou erro grosseiro por parte do recorrente. Na espécie
houve patente erro grosseiro. A ‘lex legum’, em seu art. 105, inciso II, letra ‘b’, expressamente, diz que cabe recurso
ordinário dos mandados de segurança decididos em única instância pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos
Tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando denegatória a decisão. II – Agravo regimental
improvido. Decisão, por unanimidade, negar provimento ao agravo regimental” (BRASIL. STJ. 6ª Turma. AgRg
no Ag nº 41684. Processo nº 1993.00.22046-2/SP. Rel. Min. Pedro Acioli, julgado em 27 set. 1993. DJU, Brasília,
p. 21893, 18 out. 1993, grifo próprio).
37
Ver em MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de processo civil. 2008, p. 512-513; e, SANTOS,
Ernane Fidélis dos. Manual de direito processual civil. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. v. 1, p. 707.
38
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. O novo regime do agravo. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996. p. 114.

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26 Magno Federici Gomes, Marco Aurélio Abrantes Rodrigues

5.2.1 Dúvida objetiva


Para Nery Júnior (1997), desde o sistema revogado, configura-se erro
grosseiro a interposição de um recurso errado, sendo que o correto encontra-se,
às escâncaras, no texto da lei.
Haverá erro grosseiro, igualmente, quando a doutrina ou jurisprudência
forem unânimes quanto ao recurso cabível para a espécie, ou a jurisprudência
não discrepar a respeito. Noutros termos, na lição de Jorge (2002), em sendo
a lei dúbia ou contraditória, além de conceituar uma decisão como sendo
outra, ou, ainda, se existe divergência na doutrina e/ou na jurisprudência, a
parte não incorrerá em erro grosseiro na agitação do recurso. Nesse mesmo
sentido, são as lições de, dentre tantos outros, Teixeira (2008) e Lamy (2007).
Tais situações, fazendo coro ao que defende Wambier (1992),39 por si só,
dão azo à incidência do princípio da fungibilidade recursal.
Dessa maneira, é de todo impertinente se distinguir ocorrência de
dúvida objetiva de inexistência de erro grosseiro, como faz, por exemplo,
Nery Júnior (1997). Para o renomado processualista, o erro grosseiro só inci-
dirá na ausência do requisito da dúvida objetiva, sendo que, para ele, existirá
dúvida objetiva quando o próprio código designa uma decisão interlocutória
como sentença ou vice-versa; quando a doutrina e/ou a jurisprudência diver-
girem quanto à classificação de determinados atos judiciais e, consequente-
mente, quanto à adequação do respectivo recurso para atacá-los; ou quando
o juiz profere um pronunciamento em lugar de outro.
Como se pode inferir, existindo, a título de exemplo, dissenso jurispruden-
cial acerca do cabimento de um determinado recurso, tal fato, por si só, permite a
incidência do princípio da fungibilidade, já que, em assim sendo, não se poderá
considerar tal como erro grosseiro, visto que delineada restou a dúvida objetiva.
Como o mestre Nery Júnior (1997), outros processualistas, ao definirem
dúvida objetiva, acabam por consagrar situações ensejadoras de erro grosseiro,
como é o caso do notável Desembargador do egrégio TJRS Portanova (2008).40

39
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Dúvida objetiva: o único pressuposto para aplicação do princípio da fungibilidade.
Revista de Processo, São Paulo, ano 17, n. 65, p. 56-74, jan./mar. 1992. p. 60.
40
A mesma contradição, concessa venia, cometem os Tribunais: “EMENTA: PROCESSO CIVIL. AGRAVO. LEI
8.038, ART. 28. DESCABIMENTO PARA ATACAR DECISÃO QUE ORDENA O DESENTRANHAMENTO DAS
CONTRA-RAZÕES AO RECURSO ESPECIAL. FALTA DE PREVISÃO LEGAL. FUNGIBILIDADE RECURSAL
NÃO ACOLHIDA. ERRO INESCUSÁVEL. AGRAVO DESPROVIDO. I – A sistemática processual vigente somente
prevê agravo de instrumento no Superior Tribunal de Justiça para viabilizar o seguimento do recurso especial
obstado na origem e nos casos em que funcione ele, por previsão legal, como órgão de segunda instância, sendo
descabido seu manejo contra decisão que ordena o desentranhamento das contra-razões ao recurso especial. II
– A fungibilidade recursal reclama, dentre outros pressupostos, que o erro seja escusável, como na hipótese de
fundada dúvida. Decisão. Por unanimidade, negar provimento ao Agravo Regimental” (BRASIL. STJ. 4ª Turma.
AGA 33557. Processo nº 1993.00.03898-2/SP. Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, julgado em 24 jun. 1993.
DJU, Brasília, p. 14256, 02 ago. 1993); e, “EMENTA: PROCESSUAL CIVIL. CONTRADIÇÃO ENTRE O VOTO-
CONDUTOR E A EMENTA DO ACÓRDÃO PROFERIDO PELO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL. EMBARGOS
DE DECLARAÇÃO: ADMISSIBILIDADE. APLICAÇÃO DA MULTA PREVISTA NO PARÁGRAFO ÚNICO DO
ART. 538 DO CPC: IMPOSSIBILIDADE. DECISÃO HOMOLOGATÓRIA DE ATUALIZAÇÃO DE CÁLCULOS
NO CURSO DA EXECUÇÃO. RECURSO CABÍVEL: AGRAVO DE INSTRUMENTO, E NÃO APELAÇÃO.
DÚVIDA OBJETIVA: INEXISTÊNCIA. ERRO GROSSEIRO: CONSTATADO. PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE
RECURSAL: INAPLICÁVEL. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. I – Não são protelatórios os embargos de
declaração interpostos com o fito de eliminar contradição existente entre o voto-condutor e a ementa do acórdão.
II – Embora não esteja inserto em nenhum dos dispositivos do código de processo civil em vigor, o princípio da
fungibilidade ainda rege o sistema recursal pátrio. O princípio da fungibilidade só tem aplicação quando o recorrente não
comete erro grosseiro. Para que o equívoco na interposição de recurso seja escusável é necessário que haja dúvida objetiva, ou
seja, divergência atual na doutrina ou na jurisprudência acerca do recurso cabível. Se, ao contrário, não existe dissonância ou

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Do pressuposto único para incidência do princípio da fungibilidade dos recursos no processo civil 27

De fato, ainda sob a égide do sistema revogado, já exortava Seabra


Fagundes (1946), no sentido de que se deveria sempre fechar os olhos para o
erro na interposição de um recurso, se presente estivesse a dúvida.
Por todo o exposto, crê-se que não há que se cogitar em diferenciar a
dúvida objetiva da inexistência de erro grosseiro, sendo aquela pressuposto
deste, motivo porque se antolha preferível a utilização do primeiro termo.
Nesse momento, impende apontar alguns casos em que os doutrina-
dores sustentam estar presente a dúvida objetiva: o ato do juiz que decide o
pedido de adjudicação de bens aos parentes do devedor (antiga remição de
bens) em execução; o ato do juiz que decreta, processualmente, o usufruto
forçado de imóvel ou de empresa; o ato de juiz que julga o incidente de falsi-
dade; a rejeição liminar da reconvenção ou da ação declaratória incidental; a
decisão sobre a remoção do inventariante, para Nery Júnior (1997); pronun-
ciamento que julga a exibição de documento ou coisa em poder de terceiro;
decisão que concede a antecipação de tutela com base no art. 273, §6º, do CPC;
resolução que julga a liquidação de sentença; decisão que julga a impugnação
ao cumprimento de sentença; dúvida entre o cabimento de agravo interno e
agravo regimental; dúvida entre o cabimento de embargos declaratórios e
agravo interno; dúvida entre o cabimento de embargos infringentes ou apela-
ção na execução fiscal, segundo Vasconcelos (2007); decisão sobre cabimento
da denunciação à lide; decisão que indefere oposição; julgamento da questão
de estado requerido incidentalmente (art. 265, inciso IV, alínea “c”, do CPC),
na lição de Wambier (2005b); dúvida entre o cabimento de embargos infrin-
gentes ou recursos de estrito direito; decisão que exclui litisconsorte do pro-
cesso; fungibilidade entre meios de destrancamento dos Recursos Especial e
Extraordinário retidos e entre meios de depósito para suspensão da exigibili-
dade do crédito tributário, em conformidade com Lamy (2007).
De fato, parte dos exemplos citados são de questionável juridicidade, além
de que alguns casos mencionados se fazem superados, na atualidade, por enten-
dimentos jurisprudenciais mais recentes e pelas também recentes reformas do
CPC. Contudo, a análise em pormenor a esse respeito, em virtude da riqueza de
argumentos a se expor, desbordaria dos lindes a que se propõe este trabalho.
Contrariamente, doutrinadores como Medina (2002), em franca maio-
ria, rejeitam a aplicação do princípio da fungibilidade dos recursos em tema
de recurso especial e de recurso extraordinário, dadas as peculiaridades
rigidamente positivadas na CR/88, outra não sendo a inteligência da juris-
prudência.41 É de se apontar aqui a posição divergente de Vasconcelos (2007)
já esta ultrapassado o dissenso entre os comentadores e os tribunais sobre o recurso adequado, não há que se invocar o princípio
da fungibilidade recursal. III – Constitui erro grosseiro a interposição de apelação, ao invés de agravo de instrumento,
contra decisão homologatória de conta de atualização efetuada no curso da execução. IV – Recurso Especial conhecido
e parcialmente provido para excluir a multa imposta. Decisão. Por unanimidade, conhecer do recurso e dar-lhe parcial
provimento” (BRASIL. STJ. 2ª Turma. REsp nº 117429, Processo nº 1997.00.05902-2/MG. Rel. Min. Adhemar Maciel,
julgado em 19 maio 1997. DJU, Brasília, p. 25514, 09 jun. 1997, grifo próprio). Por esses julgados, fica patente que, ao
se ter por caracterizado o erro grosseiro, acaba-se por se reportar à dúvida objetiva.
41
Em sentido equivalente: “EMENTA: PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO QUE NÃO ATACA TODOS OS FUNDAMENTOS DA
DECISÃO AGRAVADA. DESPROVIMENTO. I – Deixando o agravante de refutar fundamento suficiente a manutenção do
decisório agravado, nega-se provimento ao agravo regimental. II – Inaplicável o princípio da fungibilidade recursal para se convolar
em recurso extraordinário apelo originariamente interposto como recurso especial. III – Agravo regimental desprovido. Decisão. Por
unanimidade, negar provimento ao Agravo Regimental” (BRASIL. STJ. 1ª Turma. AGA 26016. Processo nº 1992.00.20452-
0/SP. Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, julgado em 05 maio 1993. DJU, Brasília, p. 11240, 07 jun. 1993, grifo próprio).

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28 Magno Federici Gomes, Marco Aurélio Abrantes Rodrigues

e Lamy (2007), em casos como os de decisões acerca do direito adquirido, do


ato jurídico perfeito e da coisa julgada, em que os recursos se oscilam quanto
ao amparo na Lei de Introdução ao Código Civil (LICC) ou na CR/88, sendo
certo que o trato da matéria é controvertido dentre os membros dos próprios
Tribunais Superiores competentes.
Destaca-se que, por óbvio, a dúvida deve ser objetiva, id est, não pode
jazer tão só no recôndito do recorrente, não se perdendo de vista, sem embar-
go, que, em havendo nova hipótese de dúvida, isto é, ainda não assinalada
em doutrina ou jurisprudência, desde que a parte apresente razões consis-
tentes, ter-se-á a incidência do princípio em tela. Ademais, a dúvida deve ser
atual, ou seja, descabe se cogitar na aplicação do princípio da fungibilidade
recursal se fenecido o dissenso doutrinário e/ou jurisprudencial de outrora a
respeito do recurso cabível, na preleção de Jorge (2002).
Em linha de remate, urge mencionar que a importância do princípio
da fungibilidade recursal se avultou após a edição da Lei nº 11.232/05, a
qual modificou a redação do §1º do art. 162 do CPC, nos seguintes termos:
“Art. 162. [...] §1° Sentença é o ato do juiz que implica alguma das situações
previstas nos arts. 267 e 269 desta Lei” (BRASIL, 1973).
É inegável que a mens legis dirigiu-se a considerar a implementação
definitiva na sistemática processual civil do processo sincrético, fixando-se as
fases de conhecimento e de cumprimento de sentença, bem como adaptando
o conceito de sentença, no sentido de que o juiz não mais acaba o ofício juris-
dicional com a sentença, porque deverá, de regra, cumpri-la.
Não se pode descartar, ante a literalidade do predito dispositivo
legal, a possibilidade de se alvitrar como sentença — e, como tal, recorrível
por apelação — todo e qualquer ato judicial que implique uma das situações
descritas nos arts. 267 e 269, ambos do CPC, em especial decisões com reso-
lução parcial do mérito (homologação de transação parcial, acolhimento de
prescrição quanto a certas parcelas de um débito etc.) ou, ainda, de exclusão
de litisconsorte e de indeferimento liminar da reconvenção. Em realidade, os
exemplos citados são, nessa análise, hipóteses claras de cabimento do recurso
de agravo de instrumento, mas, como visto anteriormente neste mesmo tópico,
a exegese a tal respeito não é uníssona em sede doutrinária. Isso, por si só,
rende ensanchas à incidência do princípio da fungibilidade, não se podendo,
encareça-se, conferir relevo a presente proposta ou mesmo a de um renomado
processualista, mas sim, insista-se, a ocorrência de dissenso respeitante ao
tema na doutrina e/ou na jurisprudência.
Como posição denominada intermediária, tem-se a lição de uma das
maiores processualistas brasileiras (2005b), a qual, a despeito de reconhecer
o cabimento do recurso de agravo nas hipóteses, pontua que, não obstante,
tratar-se-ia de sentenças, gerando perplexidade no jurisdicionado e, por tal
razão, ensejando a fungibilidade recursal:

Definimos sentença a partir do critério consistente em seu conteúdo. A nosso ver,


é este o critério que distingue sentença dos demais pronunciamentos judiciais,
como já dissemos. Assim, a decisão que indefere liminarmente a reconvenção

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Do pressuposto único para incidência do princípio da fungibilidade dos recursos no processo civil 29

é sentença, pelo critério do seu conteúdo, pois que o juiz proferirá decisão com
fulcro necessariamente num dos incisos dos arts. 267 ou 269, ou, mais especifi-
camente, arts. 267, I, IV, VI; 269, IV; 295, I a VI e parágrafo único, I a IV. Como
dissemos, o legislador especificou quais conteúdos fazem com que se possa
identificar um pronunciamento judicial como sentença. Estes possíveis conte-
údos estão previstos justamente nos incisos dos arts. 267, 269 e 295 do Código
de Processo Civil. Destes pronunciamentos, o recurso cabível é a apelação,
segundo o art. 513. Esta é a regra.
Excepcionalmente, se recorre de sentenças por meio de agravo.42

Parece que o pronunciamento judicial se erigirá à categoria de sentença


se, a par de conter as matérias previstas nos arts. 267 ou 269 do CPC (CPC,
162, §1º), der cabo a uma fase processual, o que pode, aliás, ser extraído da
interpretação, a contrario sensu, do art. 162, §2º, do CPC. Noutras palavras,
a decisão judicial não será tecnicamente sentença se estiver solucionando
questão incidental, a despeito de conter alguma das hipóteses plasmadas nos
arts. 267 ou 269, ambos do CPC, quando então se cuidará de decisão interlo-
cutória e, como tal, recorrível na forma do art. 522 do CPC.
Câmara (2008) fornece essa como sendo a interpretação a ser adotada,
mutatis mutandis:

Não me parece, porém, que seja assim. Estou convencido de que, apesar das
novas redações dos dispositivos legais, a sentença continua a ser, no direito pro-
cessual civil brasileiro, um ato final. Aceita a idéia de que existem três módulos
processuais distintos (o de conhecimento, o de execução e o cautelar), deve-se
considerar sentença o ato do juiz que, resolvendo ou não o mérito da causa,
tenha sido capaz de pôr termo a um módulo processual (no primeiro grau de
jurisdição). Em outros termos, isto significa dizer que o conceito de sentença,
afinal de contas, não se alterou, embora a Lei nº 11.232/05 tenha modificado o
texto legal como o fez.
[...] Atos de resolução parcial do mérito, que não determinam a extinção do
módulo processual em que proferidos, não são sentenças, mas decisões inter-
locutórias.43

Na mesma toada, Theodoro Júnior (2009):

[...] Se resolve qualquer dessas matérias, o ato judicial, sem dúvida, terá
enfrentado situação prevista ou no art. 267 ou no 269 do CPC. Mas seria com-
patível com o sistema de efetividade e celeridade do processo qualificar como
sentença, e permitir a interposição de apelação, antes que o mérito da causa
tenha sido completamente resolvido? As regras legais não podem ser lidas e
interpretadas isoladamente, fora do sistema a que se integram e em atrito com
a sua teleologia.

WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Os agravos no CPC brasileiro. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005b. p.
42

190; no mesmo sentido LAMY. Princípio da fungibilidade no processo civil, p. 150-151.


CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 17. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. v. 1, p. 410.
43

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30 Magno Federici Gomes, Marco Aurélio Abrantes Rodrigues

A reforma ficou a meio caminho; criou um grave problema e não cuidou de


dar-lhe solução, quer no campo da maior precisão do que deveria ser a sentença,
quer na adaptação do sistema recursal à nova definição de sentença.
Cabe ao intérprete a penosa missão de descobrir o caminho jurídico da superação
da deficiência normativa.
[...] Pela insuficiência teórica e operacional do conceito de sentença formulado
pelo §1º do art. 162, sua real delimitação há de ser feita por exclusão: só se deverá
considerar como sentença o ato decisório que não configurar decisão interlocu-
tória. Se se resolve questão incidente (questão que não encerra o acertamento,
nem põe fim à relação processual), o pronunciamento sobre qualquer tema
dentre os previstos nos arts. 267 e 269 não assumirá a categoria de sentença; será
decisão interlocutória, devendo sua impugnação ocorrer por meio de agravo,
e não de apelação.44

Conforme dito alhures, esses dois últimos juristas possuem razão, não
se descartando, porém, a possibilidade de uma decisão interlocutória gerar
efeitos próprios de uma sentença, como a formação de coisa julgada mate-
rial e o cabimento de ação rescisória, consoante exemplos fornecidos por
Dinamarco (2004) e Araújo (2007).

5.2.2 Da tempestividade
Não há como encerrar o exame dos requisitos para incidência do prin-
cípio da fungibilidade recursal sem tecer considerações acerca do prazo para
a interposição do recurso. Vale mencionar, se o recorrente deve obediência ao
prazo do recurso tido como adequado ou não.
Conforme já foi exposto, a tendência preponderante à verificação da ine-
xistência de má-fé pelo irresignante radica-se no fato de que ele deverá se valer
do prazo do recurso de menor tempestividade, exegese que valia para a siste-
mática revogada e, para aqueles que a ela se prendem, continua persistindo.
Noutros termos, para os seguidores dessa corrente, havendo dúvida, por exem-
plo, entre o cabimento do recurso apelatório e o de agravo de instrumento,
deverá o recorrente observar o prazo legal de 10 (dez) dias, previsto no art. 522
do CPC, e não o de 15 (quinze) dias do art. 508 do mesmo diploma.
Roga-se obsequiosa vênia a quem entende de forma diversa, considera-se
que tal exigência é um rematado absurdo, haja vista, como destacado acima, a
grande dificuldade para delinear a má-fé, o que gerava intensa celeuma desde
a sistemática passada, desaguando em critérios absolutamente subjetivos e
casuístas para tanto, o que não pode e não deve ocorrer em decisões judiciais.
Ademais, a má-fé, além de não se erigir em qualquer dos pressupostos
processuais que regem a admissibilidade dos recursos, deve ser punida na
forma dos arts. 17 e 18 do CPC ou, na fase executiva, na forma dos arts. 600 e
601, desse mesmo estatuto processual.
De modo que fica claro que o recorrente deve respeito ao prazo do
recurso efetivamente interposto.
44
THEODORO JÚNIOR. Curso de direito processual civil, p. 581.

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No entanto, para a esmagadora maioria da jurisprudência, o recurso


errado deve ser interposto no prazo do recurso tido por adequado. A juris-
prudência dominante adota esse, ora combatido, ponto de vista, como se
pode ver, inclusive, de recentes decisões do colendo STJ, órgão a que a CR/88
incumbiu de dar a correta, adequada e uniforme interpretação à legislação
infraconstitucional, no caso a processual.45
Da leitura atenta dos arestos transcritos, pode-se afirmar que seus ilus-
tres prolatores encontram-se por demais influenciados pelos restolhos do sis-
tema revogado de 1939.
Não se pode refrear o movimento de progresso pelo qual perpassa
o processo civil pela óptica paralisante do medo. É o que se pode dizer

Nesse sentido: “EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – EMBARGOS DO DEVEDOR – EXECUÇÃO DE TÍTULO


45

EXECUTIVO JUDICIAL – ART. 475 DO CPC ALTERADO PELA LEI 11.232/2005 – RECURSO CABÍVEL – AGRAVO
DE INSTRUMENTO – ERRO ESCUSÁVEL – FUNGIBILIDADE – ALEGAÇÃO DE PAGAMENTO NA FASE DE
EMBARGOS QUESTÃO NÃO SUSCITADA NA FASE DE FORMAÇÃO DO TÍTULO JUDICIAL – EXCESSO DE
EXECUÇÃO NÃO CONFIGURADO – DECISÃO TRANSITADA EM JULGADO. I – Embargos à execução fundados
em título executivo judicial, após a entrada em vigor da lei 11232/05, passam a ser denominados impugnação ao
cumprimento de sentença, devendo observar o procedimento previsto nos arts. 475-J e seguintes do CPC, que prevê
o recurso de apelação em caso de extinção da execução. II – Havendo fundada dúvida doutrinária e jurisprudencial sobre
qual o recurso cabível contra decisão que julgar os Embargos à execução, agora denominados impugnação, não há falar em erro
grosseiro se o recurso ajuizado de forma equivocada tiver sido interposto no prazo do recurso adequado, aplicando-se o princípio
da fungibilidade recursal. III – Transitada em julgado a sentença executada, descabe a discussão acerca da certeza
do título ou até mesmo de fatos impeditivos, extintivos ou modificativos do direito do exeqüente, se anteriores
ao provimento judicial exeqüendo, vez que a decisão executada está protegida pelo manto da coisa julgada”
(MINAS GERAIS. TJMG. 12ª Câmara. Apelação Cível nº 1.0079.06.289916-0/001. Rel. Des. Alvimar de Ávila, julgado
em 03 dez. 2008. TJMG, Belo Horizonte, Data da publicação 12 jan. 2009, grifo próprio); “EMENTA: AGRAVO
DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. LIQUIDAÇÃO DE SENTENÇA. APELAÇÃO. RECURSO
INADEQUADO. ERRO GROSSEIRO PRESENTE. FUNGIBILIDADE RECURSAL INVIÁVEL. RECURSO NÃO
PROVIDO. I – A fungibilidade recursal é excepcional e pressupõe a existência de dúvida objetiva quanto à espécie de recurso
cabível, não estar presente erro grosseiro e o recurso inadequado tenha sido interposto no prazo legal daquele que seria correto.
II – O provimento judicial que julga liquidação de sentença é decisão interlocutória e desafia agravo de instrumento
nos exatos termos do art. 475H do CPC. III – Diante da expressa previsão legal, a parte que interpõe apelação contra
o mencionado provimento judicial pratica erro grosseiro, o que impede a excepcional aplicação da fungibilidade.
4. Agravo de instrumento conhecido e não provido, mantida a decisão que negou recebimento à apelação por ser
recurso inadequado” (MINAS GERAIS. TJMG. 2ª Câmara. Agravo de Instrumento nº 1.0105.95.006479-7/001. Rel. Des.
Caetano Levi Lopes, julgado em 17 abr. 2007. TJMG, Belo Horizonte, Data da publicação 27 abr. 2007, grifo próprio);
“EMENTA: AÇÃO CIVIL. INDEFERIMENTO PARCIAL DA INICIAL. RECURSO DE AGRAVO. APELAÇÃO
INTERPOSTA. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE RECURSAL. OBSERVÂNCIA DO PRAZO.
PRECEDENTES. TEMPESTIVIDADE NÃO COMPROVADA. SÚMULA 7/STJ. I – Ainda que pertinente a existência
de dúvida quanto ao recurso a ser utilizado contra decisão que indefere parcialmente a inicial, na hipótese não se pode falar na
aplicação do princípio da fungibilidade recursal, que exige o cumprimento de mais dois requisitos: ausência de erro grosseiro e
que o recurso erroneamente interposto, tenha sido protocolado dentro do prazo do recurso que se quer seja admitido. Este último
requisito não pode ser comprovado dos elementos trazidos aos autos, uma vez que o recorrente não cuidou de juntar
a certidão da intimação da decisão atacada via tal recurso. Incidência da Súmula nº 7/STJ. II – Precedentes: REsp
nº 641.431/RN, Rel. Min. LUIZ FUX, DJ de 17/12/2004, REsp nº 117.429/MG, Rel. Min. ADHEMAR MACIEL, DJ de
09/06/1997, AgRg nos EREsp nº 588.006/SC, Rel. Min. HAMILTON CARVALHIDO, DJ de 13/12/2004. III – Agravo
improvido” (BRASIL. STJ. 1ª Turma. AgRg no REsp nº 920.389/RS. Rel. Min. Francisco Falcão, julgado em 17 maio
2007. DJU, Brasília, 31 maio 2007, p. 407, grifo próprio); e, finalmente, “EMENTA: PROCESSUAL CIVIL. RECURSO
ESPECIAL. INTERPOSIÇÃO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO AO INVÉS DE APELAÇÃO. INEXISTÊNCIA DE
MÁ-FÉ E ERRO GROSSEIRO. PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE. APLICABILIDADE. I – É possível sanar o equívoco
na interposição do recurso pela aplicação do princípio da fungibilidade recursal, se inocorrente erro grosseiro e inexistente má-
fé por parte do recorrente, além de comprovada a sua tempestividade. II – Informa o acórdão recorrido que o recorrente
interpôs recurso de agravo de instrumento em situação em que o juiz de 1º grau determinou o arquivamento, com
baixa na distribuição, situação em que seria cabível a apelação. Ocorre, entretanto, que ao apreciar os embargos
declaratórios opostos pelo ora recorrente contra a decisão terminativa, denominada de “despacho”, o próprio juiz
de 1º grau o induziu a erro, no que consignou que: “a irresignação dos autores traz ínsito o escopo de reforma do
decisório, vertendo-se, pois, contra os próprios argumentos de direito abraçados em sua fundamentação, insurgência
que não cabe na estreita via declaratória, havendo de conformar-se ao recurso cabível, precisamente o de agravo de
instrumento” (fl. 275). III – A indução à interposição de recurso equivocado pelo próprio órgão recorrido, aliada ao
prazo mais exíguo do agravo de instrumento, quando em comparação com a apelação, afasta a suspeita de má-fé
e o erro grosseiro, permitindo a aplicação do princípio da fungibilidade recursal. IV – Recurso especial provido”
(BRASIL. STJ. 1ª Turma. REsp nº 898.115/PE. Rel. Min. Teori Albino Zavascki, julgado em 03 maio 2007. DJU, Brasília,
p. 551, 21 maio 2007, grifo próprio).

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32 Magno Federici Gomes, Marco Aurélio Abrantes Rodrigues

daqueles, renovada vênia, que, até os dias de hoje, permanecem infensos à


exegese ora defendida.
Não será excessivo repisar que nada há que justifique essa exigência,
mesmo porque, a rigor, nem o diploma passado aludia a isso, bem como,
porquanto, e isto é irretorquível, o que se presume é a boa-fé.
O principal argumento dos que pensam dessa maneira é o de que, se
agitado o recurso errado, após o escoamento do prazo do remédio correto,
operada estaria a preclusão ou a coisa julgada, de tal sorte a impossibilitar a
aplicação do princípio da fungibilidade.
Ao se dissecar a questão posta com o bisturi do bom senso, vale dizer, a
ocorrência de preclusão ou de coisa julgada, Moreira (1968) adverte que, em vir-
tude do princípio da fungibilidade dos recursos, há que se abrandar essa regra:

O que se tem de reconhecer é que a lei abriu uma exceção à regra, segundo a
qual o escoamento in albis do prazo para o recurso cabível faz transitar em jul-
gado a decisão; ou, antes, que a res iudicata se forma sob condição resolutiva da
subseqüente interposição de recurso inadequado, mas conversível no adequado
por inexistência de erro grosseiro ou má-fé.46

A razão está a acompanhar, uma vez mais, o apontado mestre (1968). Em


verdade, fungibilidade, reitera-se, implica permuta. E, assim considerando,
o câmbio quanto ao recurso adequado há de ser pleno, englobando-se, por
natural consectário, seus prazos e procedimentos.47
Cumpre salientar que é dever do magistrado de, em nome do prin-
cípio da fungibilidade, receber um recurso por outro, visando, inclusive,
dar concretude ao postulado constitucional da efetiva tutela jurisdicional
(art. 5º, inciso XXXV, da CR/88). Não é admitido, em um Estado que se quer
Democrático de Direito, que o intérprete se atenha à literalidade de norma
infraconstitucional não mais existente, ou seja, pertencente ao sistema proces-
sual revogado (do Código de 1939), até porque “se assegurado o process em
texto democrático-constitucional, só nos restaria afirmar que o processo tem,
na atualidade, como lugar devido de sua criação a Lei Constitucional”.48
Ademais, a segurança jurídica demanda interpretação que favoreça ao
recorrente, tendo em vista a restrição de direitos e por se tratar de ramo do
direito público que, segundo basilar regra de hermenêutica, só admite tal
limitação quando houver norma explícita nesse sentido, em conformidade
com Maximiliano (1998).
Assim, tendo entendido a parte que o recurso adequado é o de apela-
ção, manejada que foi no décimo quinto dia, o remédio processual adotado
46
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Juízo de admissibilidade no sistema dos recursos cíveis. Rio de Janeiro, 1968. p. 51.
47
Nesse sentido é a melhor doutrina, valendo exaltar, dentre tantos outros: NERY JÚNIOR. Princípios fundamentais,
p. 142; PORTO, Sérgio Gilberto; USTÁRROZ, Daniel. Manual dos recursos cíveis. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2008. p. 61; LAMY. Princípio da fungibilidade no processo civil, p. 148; ASSIS. Manual dos recursos, p. 96;
MARINONI; ARENHART. Curso de processo civil, p. 513; WAMBIER. Os agravos no CPC brasileiro, p. 161-162; JORGE,
Flávio Cheim. Apelação cível: teoria geral e admissibilidade. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 233 et
seq.; VASCONCELOS, Rita de Cássia Corrêa de. Princípio da fungibilidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
p. 84 et seq.; e, TEIXEIRA. Teoria do princípio da fungibilidade, p. 157-158.
48
LEAL. Teoria geral do processo, p. 52.

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Do pressuposto único para incidência do princípio da fungibilidade dos recursos no processo civil 33

tem que ser havido como tempestivo, já que de quinze dias é o seu prazo para
interposição (art. 508 do CPC).
Ao entender o órgão julgar competente que o caso seria de recurso de
agravo, cujo prazo é de dez dias (art. 522 do CPC), mesmo assim deverá recebê-lo,
não se operando a preclusão temporal e nada importando a convicção pes-
soal do magistrado, uma vez que jamais se poderá olvidar que o princípio
da fungibilidade foi instituído em benefício da parte, e não do Estado. Não
se pode prejudicar os jurisdicionados por erro do próprio sistema, sendo
escorreita — não se cansa de insistir — a interposição do recurso impertinente
dentro do prazo que a norma jurídica instrumental lhe previu.
Não é só. A exigência do prazo menor, diverso daquele próprio do
recurso que a parte considerou cabível, afronta o princípio do devido processo
legal (art. 5º, inciso LIV, da CR/88) e o da ampla defesa (art. 5º, inciso LV, da
CR/88), por subtrair ao interessado o direito de recorrer em consonância com
as regras processuais.
Conforme se deixou entrever ao ensejo do capítulo 2 do presente
estudo, interpretação em sentido contrário do que se está a apregoar implica
malferir o postulado constitucional do acesso amplo à jurisdição (art. 5º,
inciso XXXV, da CR/88), sobrelevando trazer ao cotejo a magistral lição do
tantas vezes mencionado Nery Júnior (2009):

Em igual medida, todo e qualquer expediente destinado à dificultar ou mesmo


impedir que a parte exerça sua defesa no processo civil atenta contra o princípio
da ação e, por isso, deve ser rechaçado. Um exemplo que nos ocorre é o da apli-
cação do princípio da fungibilidade no processo civil. [...] Para que seja cumprido
o comando constitucional que garante o exercício do direito de ação, deve ser
aplicado o princípio da fungibilidade, substituindo-se o recurso erroneamente
interposto pelo que seria o correto, desde que presentes os requisitos da exis-
tência de dúvida objetiva sobre qual seria o recurso adequado e da inexistência
de erro grosseiro por parte daquele que pretende beneficiar-se da fungibilidade.
Estando presentes os requisitos para a incidência do princípio da fungibilidade
dos recursos no processo civil e o juiz deixar de aplicá-lo, estará infringindo o
princípio constitucional da garantia do direito de ação.49

Para além de todos os fundamentos jurídicos expostos, suficientes de per se


para amparar a tese colocada, convém sublinhar que ofende a lógica do razoá-
vel exigir que a parte utilize o menor prazo, se o do recurso por ela alvitrado
como correto é maior. A rigor, decisões fundadas em premissas desarrazoadas
assim também o são e, como tais, receberão a pecha da inconstitucionalidade,
por ferirem de morte o art. 5º, caput e inciso LIV, da CR/88 — previsão implícita
do princípio da proporcionalidade, citado sob o prisma de seu aspecto subs-
tancial — e o art. 13 da Constituição do Estado de Minas Gerais (CE-MG), o
qual prevê de maneira explícita o princípio da razoabilidade.
Importa registrar o fato de os especialistas apontarem diferentes sedes
para o princípio constitucional da proporcionalidade, tais como a cabeça,
NERY JÚNIOR. Princípios do processo na Constituição Federal, p. 177.
49

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o §2º, os incisos V, X e XXV do art. 5º, os incisos VI, VII, XXI do art. 7º, o
inciso XI do art. 37, todos da CR/88, além de outros. Como noticia Suppioni
de Aguirre (2005), o qual se encarrega de justificar a divergência como
fruto do recente “reconhecimento da positivação constitucional do princí-
pio”.50 Aliás, no ponto, importa transcrever a lição de Barroso (2006a):

O princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade, termos aqui empregados de modo


fungível, não está expresso na Constituição, mas tem seu fundamento nas idéias de devido
processo legal substantivo e na de justiça. [...] Em resumo sumário, o princípio da
razoabilidade permite ao Judiciário invalidar atos legislativos ou administrativos
quando: a) não haja adequação entre o fim perseguido e o instrumento empregado
(adequação); b) a medida não seja exigível ou necessária, havendo meio alternativo menos
gravoso para chegar ao mesmo resultado (necessidade/vedação do excesso); c) não haja
proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se perde com a medida é de
maior relevo do que aquilo que se ganha (proporcionalidade em sentido estrito).
O princípio pode operar, também, no sentido de permitir que o juiz gradue o peso da norma,
em uma determinada incidência, de modo a não permitir que ela produza um resultado
indesejado pelo sistema, assim fazendo a justiça do caso concreto.51 (grifo próprio)

Ao se acolher a lição transcrita, vê-se claramente que o juiz, ao aplicar


o princípio da fungibilidade recursal, deverá verificar a obediência ao prazo
do recurso efetivamente interposto, sob pena de inegável paradoxo e apli-
cação do princípio pela metade (adequação). Além de que, havendo o juízo
de admissibilidade positivo do recurso e em sendo constatado o emprego
de malícia processual pelo recorrente, limitar-se-á o magistrado a apenar o
mesmo (arts. 17 e 18 do CPC), sem lhe subtrair, todavia, o reexame da matéria
deduzida em Juízo em assonância com as regras processuais vigentes (neces-
sidade). Esses fatos, somados, ensejarão, aí sim, o conhecimento do litígio em
sua plenitude pelo Estado-juiz, conduzindo o processo ao efetivo cumpri-
mento de seu escopo sócio-político-jurídico e estabelecendo-o como lídimo
instrumento de entrega da tutela jurisdicional e de realização de justiça no
caso concreto (proporcionalidade em sentido estrito).
Adite-se, outrossim, que o estabelecimento da má-fé presumida, como
corolário do respeito ao prazo do recurso adequado, acaba por criar, como se
deixou entrever acima, pressuposto recursal inexistente no ordenamento jurí-
dico, o que ofende o princípio constitucional da anterioridade legal (art. 5º,
inciso II, da CR/88) e, em essência última, o próprio Estado Democrático de
Direito, assentado que é em ordenamento jurídico escrito, daí resultando que o
agir dos jurisdicionados não pode encontrar óbice outro que não o contido em lei.
Dito com outras palavras, é de todo ilegítimo que o Estado-juiz restrinja o direito
à tutela jurisdicional no recurso da parte sem amparo de lei em sentido estrito.
Na confluência do exposto, a não-aplicação do princípio da fungi-
bilidade recursal com o pressuposto único da dúvida objetiva importará

50
AGUIRRE, José Eduardo Suppioni de. Aplicação do princípio da proporcionalidade no processo civil. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris, 2005. p. 114.
51
BARROSO, Luís Roberto. A nova interpretação constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006a. p. 362-363.

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Do pressuposto único para incidência do princípio da fungibilidade dos recursos no processo civil 35

negativa aos princípios constitucionais da anterioridade legal, do acesso amplo


e efetivo à jurisdição, da segurança jurídica, do devido processo legal, em que se
insere o da proporcionalidade e da ampla defesa, previstos, respectivamente, nos
incisos II, XXXV, XXXVI, LIV e LV, do art. 5º da CR/88, além do postulado maior
do Estado Democrático de Direito, ele preconizado pelo art. 1º, caput, da CR/88.
E a maior força normativa dos princípios é de sabença geral, desde o
início do século XX, quando as “novas Constituições promulgadas acentuam
a hegemonia axiológica dos princípios, convertidos em pedestal normativo
sobre o qual assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas constitucio-
nais”.52 Cuida-se do denominado pós-positivismo, o qual tem como essência
a valorização dos princípios com vistas à edificação de um instrumental téc-
nico-jurídico aplicável aos diferentes problemas concretos. A esse respeito,
invoca-se, uma vez mais, a lição de Barroso (2006b):

A interpretação jurídica tradicional desenvolveu-se sobre duas grandes premissas:


(i) quanto ao papel da norma, cabe a ela oferecer, no seu relato abstrato, a solução
para os problemas jurídicos; (ii) quanto ao papel do juiz, cabe a ele identificar, no
ordenamento jurídico, a norma aplicável ao problema a ser resolvido, revelando a
solução nela contida. Vale dizer: a resposta para os problemas está integralmente
no sistema jurídico e o intérprete desempenha uma função técnica de conheci-
mento, de formulação de juízos de fato. No modelo convencional, as normas são
percebidas como regras, enunciados descritivos de condutas a serem seguidas,
aplicáveis mediante subsunção. Com o avanço do direito constitucional, as pre-
missas ideológicas sobre as quais se erigiu o sistema de interpretação tradicional
deixaram de ser integralmente satisfatórias. Assim: (i) quanto ao papel da norma,
verificou-se que a solução dos problemas jurídicos nem sempre se encontra no
relato abstrato do texto normativo. Muitas vezes só é possível produzir a resposta
constitucionalmente adequada à luz do problema, dos fatos relevantes, analisados
topicamente; (ii) quanto ao papel do juiz, já não lhe caberá apenas uma função de
conhecimento, voltado para revelar a solução contida no enunciado normativo. O
intérprete torna-se co-participante do processo de criação do direito, completando
o trabalho do legislador, ao fazer valorações de sentido para as cláusulas abertas
e ao realizar escolhas entre soluções possíveis.53

Por tudo o que se vem de dizer, deve-se garantir à parte o acesso à jurisdi-
ção sempre que haja dúvida, nada mais, nos termos da lição de Santos (2002).

5.2.3 Do procedimento a ser seguido em caso de incidência do


princípio da fungibilidade recursal
Feitas as considerações acerca da incidência do princípio da fungibilidade
recursal, cabe lançar apontamentos sobre a aplicação prática do princípio, mais
especificamente no que concerne ao órgão julgador competente para o intento e
o procedimento a ser adotado no caso da interposição errônea de um recurso.
52
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 264.
53
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito. Revista da Escola Nacional da
Magistratura, Brasília, ano 1, n. 02, p. 26-72, out. 2006b. p. 35.

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36 Magno Federici Gomes, Marco Aurélio Abrantes Rodrigues

A todas as luzes, a fungibilidade recursal toca ao exame dos pressupostos


que regem a admissibilidade de tais remédios processuais, daí resultando a
inafastável conclusão no sentido de que o seu emprego deve ser feito pelo
Juízo responsável pela admissibilidade do recurso efetivamente interposto.
Ultrapassado esse ponto, deve-se dizer que o procedimento a ser aplica-
do, após o emprego da fungibilidade recursal, não demanda maiores indaga-
ções, cabendo ao órgão julgador adaptar a sistemática do recurso interposto
ao do efetivamente cabível.
Certo é que a maior dificuldade no que se refere ao procedimento da
fungibilidade recursal cinge-se àqueles cabíveis contra decisórios de primeiro
grau, mais acentuadamente nos casos de troca entre a apelação e o agravo de
instrumento, recursos que concentram boa parte das hipóteses em que se vis-
lumbra a possibilidade de incidência do princípio sob exame, o que deflui da
diversidade dos órgãos judiciais competentes para o exame da admissibilidade.
É dizer, o agravo de instrumento deve ser dirigido diretamente ao Juízo ad
quem (art. 524 do CPC), enquanto a apelação se materializa por petição encami-
nhada ao Juízo a quo, prolator da decisão vergastada (art. 514 do CPC).
Assim, interposto agravo de instrumento em substituição da apelação,
o relator decidirá sobre a incidência do princípio da fungibilidade e, em caso
positivo, determinará a intimação das partes, especialmente do recorrido,
para a oferta de contraminuta, avocando junto ao Juízo a quo os autos princi-
pais e processamento do recurso, a partir daí, como se de apelação se cuidasse,
segundo procedimento previsto nos arts. 547 e seguintes do CPC.
Há quem defenda a intimação do recorrido, pelo relator, a fim de res-
ponder ao recurso e, instruído completamente o instrumento, levá-lo a julga-
mento pelo órgão colegiado como se fosse apelação, conforme Jorge (2002).
Igualmente, caso o colegiado, por ocasião do julgamento, entenda que o
agravo de instrumento deva ser recebido como apelação, deverá passar ao
imediato julgamento, a menos que nos autos não se façam presentes os ele-
mentos para tanto, na preleção de Teixeira (2008).
De outra forma, no caso de interposição de apelação no lugar do agravo
de instrumento, a questão deve ser aquilatada sob dois diferentes enfoques,
já que não se perde de vista o fato de o juízo de admissibilidade ser levado a
efeito pelos Juízos a quo e ad quem, sendo do último a palavra final.
Por primeiro, para Assis (2008), entendendo o Juízo a quo pela aplicação
da fungibilidade recursal, impor-se-á ao julgador a intimação do recorrente
para juntar as peças que formarão o instrumento e, ao depois, determinar sua
remessa à instância superior.
Como dito, o juízo de admissibilidade feito no Juízo a quo é provisório, o
que não impedirá que o órgão ad quem entenda de maneira diversa, afastando
o emprego do princípio da fungibilidade dos recursos ou, até mesmo, que o
recurso interposto é o próprio para a espécie. Em situações tais, bastará que
não receba o recurso na primeira hipótese e, na segunda, processará o recurso
que foi efetivamente interposto, mediante avocação dos autos principais,
acaso necessário.

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Do pressuposto único para incidência do princípio da fungibilidade dos recursos no processo civil 37

Por outro lado, inaplicada a fungibilidade recursal pelo Juízo primevo,


tal providência poderá ser adotada diretamente no tribunal, ensejo em que
o relator ou o colegiado julgará o recurso apelatório como agravo de instru-
mento, o qual já estará natural e suficientemente instruído. Se porventura o
recurso for inadmitido em 1º grau, bastará ao recorrente provocar a subida
do apelo mediante oportuno manejo de agravo de instrumento, em harmonia
com as disposições contidas nos arts. 522, 524 e seguintes, todos do CPC.
Em remate, é bom fincar que, havendo aplicação da fungibilidade
recursal, caberá ao órgão julgador adaptar a sistemática do recurso interposto
ao do efetivamente cabível, observando o procedimento de cada qual, nos
termos dos arts. 547 e seguintes do CPC.
Assim, interposta, por exemplo, apelação no lugar do agravo de ins-
trumento, a toda evidência se fará desvaliosa a providência reclamada pelo
art. 526 do CPC, haja vista que o Juízo a quo já tomou ciência da irresignação,
o que lhe viabiliza, de pronto, exercer juízo de retratação.
Outrossim, por não se desconhecer que as despesas processuais dos
recursos são calculadas de maneira díspar, certamente a parte interessada
deverá ser intimada para complementá-las, quando insuficientes (art. 511,
§2º, CPC), ou para levantá-las, se excessivas.
O que jamais se poderá ignorar é que, em qualquer hipótese de incidên-
cia do princípio da fungibilidade dos recursos, “eventuais dificuldades pro-
cedimentais não bastam para impedir a sua viabilização prática, devendo-se
fazer, sempre que necessário, as devidas alterações e adaptações no procedi-
mento e na tramitação do recurso”.54

6 Conclusão
Como visto, com espeque no art. 5º, inciso XXXV, da CR/88, todos têm
direito à busca da tutela jurisdicional justa, adequada e efetiva, de há muito
se encontrando ultrapassada a estrita visão de simples acesso aos diversos
órgãos integrantes do Poder Judiciário, o que reduzia o amplo acesso à juris-
dição a um direito puramente formal.
Nessa linha de raciocínio, o processo não é um fim em si mesmo,
devendo o Estado-juiz acatar a inobservância de determinada forma, desde
que tenha o ato atingido sua finalidade, sobrepujando-se, assim, o princípio
da instrumentalidade das formas.
A fungibilidade recursal é princípio decorrente da instrumentalidade
das formas e dos atos processuais que, por seu turno, decorre de postula-
dos maiores, que são os princípios do devido processo legal, do acesso
amplo e efetivo à jurisdição, da proporcionalidade e da razoabilidade, todos de
envergadura constitucional. É certo que aquele se faz presente no sistema
processual vigente de modo implícito, incidindo sempre que existente dúvida
objetiva sobre qual o recurso adequado a atacar uma decisão judicial.
Assim é que, à míngua de consenso doutrinário e/ou jurisprudencial
acerca do recurso cabível contra uma decisão — dúvida objetiva —, deverá o
TEIXEIRA. Teoria do princípio da fungibilidade, p. 162.
54

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38 Magno Federici Gomes, Marco Aurélio Abrantes Rodrigues

Poder Judiciário admitir e conhecer do recurso tido por incorreto, aplicando-se


a fungibilidade recursal através da ponderação entre os princípios da legali-
dade, do devido processo legal, da inafastabilidade do controle da jurisdição
e do Estado Democrático de Direito. Essa ponderação será propiciada pelos
princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, preservando os direitos
fundamentais das partes e garantindo-lhes uma tutela jurisdicional verda-
deiramente justa, adequada e efetiva. Tal conduta respaldará a idiossincrasia
normativa dos princípios constitucionais.
Bem por isso, tem-se como não-razoável a exigência de que o recor-
rente observe o prazo do recurso que se tem como apropriado pelo Poder
Judiciário, por total ofensa aos aludidos postulados, consolidando-se uma
aplicação mutilada do princípio da fungibilidade ou, em última análise, sua
própria negação.
Finalmente, ainda que se tenha por aplicável a fungibilidade, caso esteja
o recorrente agindo premido de má-fé, ele será alcançado pela sanção geral
dos arts. 17 e 18 do CPC, devendo-se, entretanto, conhecer-se do recurso,
visto que, como cediço, a má-fé não se mete no rol dos requisitos de admissi-
bilidade de tais remédios impugnativos.

The Unique Presupposition in the Application of the Principle of Fungi-


bility in Appeals in the Procedural Law
Abstract: In reference to article 5, XXXV, of the Brazilian Republic Constitu-
tion of 1988, which grants everyone rights of just, adequate and effective
jurisdiction, currently outdated in regards to the simple access to the various
organs of the Judiciary, thus reducing open access to jurisdiction as a purely
formal right. Therefore, the thesis will examine the unique presupposition in
the application of the principle of fungibility in appeals, in actuality, with the
use of a theoretical-documental methodology through the minute analysis
of the doctrinal documents and case law. Thus, the judge, presented with
an appeal deemed inadequate, noting that its equivocal nature would be
harmless because of the lack of consensus in doctrine and/or in case law in
regards to the modality made effectively possible, and resulting consequently
in the dismissal of the remedy as an obstacle to the principle of open access
to the jurisdiction, due to objective doubt, must apply the principle of the
fungibility, with the intent of reaching the social-political-juridical scope for
which the judicial proceeding must be converted.
Key words: Constitutional and Procedural Law. Open access to jurisdiction.
Inadequate appeal. Objective doubt. Principle of fungibility in appeals.

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Ementa: Processual Civil. Agravo que não ataca todos os fundamentos da decisão agravada.
Desprovimento. Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, julgado em 05 maio 1993. Diário de Justiça da
União, Brasília, p. 11240, 07 jun. 1993.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 1ª Turma. AgRg no Ag nº 847.616/MG. Ementa:
Preenchimento dos requisitos. Tempestividade dos embargos. Princípio da fungibilidade
recursal. Possibilidade de aplicação. Responsabilidade do sócio vinculada ao exercício de
gerência ou ato de gestão. Súmula nº 7/STJ. Agravo Desprovido. Rel. Min. Denise Arruda,
julgado em 04 set. 2007. Diário de Justiça da União, Brasília, p. 302, 11 out. 2007.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 1ª Turma. AgRg no REsp nº 920.389/RS. Ementa: Ação
Civil. Indeferimento parcial da inicial. Recurso de agravo. Apelação interposta. Aplicação
do princípio da fungibilidade recursal. Observância do prazo. Precedentes. Tempestividade
não comprovada. Súmula nº 7/STJ. Rel. Min. Francisco Falcão, julgado em 17 maio 2007.
Diário de Justiça da União, Brasília, p. 407, 31 maio 2007.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 1ª Turma. REsp nº 898.115/PE. Ementa: Processual
Civil. Recurso especial. Interposição de agravo de instrumento ao invés de apelação.
Inexistência de má-fé e erro grosseiro. Princípio da fungibilidade. Aplicabilidade. Rel.
Min. Teori Albino Zavascki, julgado em 03 maio 2007. Diário de Justiça da União, Brasília,
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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 2ª Turma. AgRg no REsp nº 741.541/SP. Ementa:
Processual Civil e Tributário – Agravo regimental – Recurso especial – art.105, III, “a” e
“c” – Contribuição social previdenciária – Repetição do indébito – Combinação de espécies
recursais – Agravo regimental com pedidos de reforma e de suprimento de omissões e
obscuridades – Inadequação – Fungibilidade impossível. Rel. Min. Humberto Martins,
julgado em 18 dez. 2008. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 05 mar. 2009.

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40 Magno Federici Gomes, Marco Aurélio Abrantes Rodrigues

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 2ª Turma. REsp nº 117429, Processo nº 1997.00.05902-2/MG.


Ementa: Processual Civil. Contradição entre o voto-condutor e a ementa do acórdão proferido
pelo Tribunal Regional Federal. Embargos de declaração: Admissibilidade. Aplicação da multa
prevista no parágrafo único do art. 538 do CPC: Impossibilidade. Decisão homologatória de
atualização de cálculos no curso da execução. Recurso cabível: Agravo de instrumento, e não
apelação. Dúvida objetiva: Inexistência. Erro grosseiro: Constatado. Princípio da fungibilidade
recursal: Inaplicável. Recurso parcialmente provido. Rel. Min. Adhemar Maciel, julgado em 19
maio 1997. Diário de Justiça da União, Brasília, p. 25514, 09 jun. 1997.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 3ª Turma. REsp nº 166.460/BA. Ementa: Homologação
de cálculos. Recurso cabível. Erro grosseiro. Súmula nº 118 da Corte. Rel. Min. Carlos
Alberto Menezes Direito, julgado em 10 dez. 1999. Diário de Justiça da União, Brasília,
p. 57, 17 abr. 2000.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 4ª Turma. AGA 33557. Processo nº 1993.00.03898-2/
SP. Ementa: Processo Civil. Agravo. Lei nº 8.038, art. 28. Descabimento para atacar decisão
que ordena o desentranhamento das contra-razões ao recurso especial. Falta de previsão
legal. Fungibilidade recursal não acolhida. Erro inescusável. Agravo desprovido. Rel. Min.
Sálvio de Figueiredo Teixeira, julgado em 24 jun. 1993. Diário de Justiça da União, Brasília,
p. 14256, 02 ago. 1993.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 6ª Turma. AgRg no Ag nº 41684. Processo
nº 1993.00.22046-2/SP. Ementa: Processual Civil. Agravo de instrumento. Improvimento.
Agravo regimental. Erro grosseiro. Princípio da fungibilidade recursal. Inaplicabilidade.
Rel. Min. Pedro Acioli, julgado em 27 set. 1993. Diário de Justiça da União, Brasília, p. 21893,
18 out. 1993.
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

GOMES, Magno Federici; RODRIGUES, Marco Aurélio Abrantes. Do pressuposto único


para incidência do princípio da fungibilidade dos recursos no processo civil. Revista Brasi-
leira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 71, p. 11-42, jul./set. 2010.

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Institutos do direito comum no processo civil brasileiro 43

Institutos do direito comum no processo


civil brasileiro*
Enrico Tullio Liebman

Resumo: A presente tradução visou a oferecer em língua portuguesa um


dos textos mais interessantes escritos por Enrico Tullio Liebman. Em uma
demonstração de toda a espessura e solidez de seus conhecimentos acerca
da formação histórica do direito europeu, Liebman empolga pela perfeita
noção da gênese dos ordenamentos jurídicos latino-americanos. A leitura
perpassa, assim, num primeiro momento, todos os principais eventos his-
tóricos que maiormente contribuíram para a formação do direito do “novo
mundo”, em especial, do direito brasileiro. Sucessivamente, e com vistas a
comprovar as suas impressões, analisa a origem de institutos processuais da
mais alta importância, evidenciando o porquê de sua compreensão do modo
como ocorria à época — notadamente, ao menos até os primeiros anos de
vigência do Código de Processo Civil de 1939. Não é difícil perceber, após
a leitura das linhas que seguem, a razão pela qual o insigne processualista
italiano fez ressentir tão fortemente no país a sua influência e a de sua escola,
tornando-o sem quaisquer dúvidas o responsável maior pelo modo como
o direito processual civil passou a ser compreendido pela generalidade da
doutrina brasileira nos últimos três quartéis do século passado.
Palavras-chave: Formação histórica do direito. Direito ibérico medieval.
Fueros espanhóis. Siete Partidas. Ordenações portuguesas. Direito comum.
Colonizações. Invasão francesa. Códigos napoleônicos. Formação histórica do
direito brasileiro. Institutos do direito comum no processo civil brasileiro.
Sumário: §1 Premissa – §2 Formação histórica do direito brasileiro – §3 Resenha

§1 Premissa
As pesquisas de direito comparado tiveram, de nossa parte, prevalen-
temente como objeto o direito francês e o direito germânico e foram condu-
zidas mais como momento integrativo do estudo do nosso direito positivo
do que como investigação autônoma, em que o confronto de ordenamentos

* Publicado nos Estudos em homenagem a Enrico Redenti (Milano, Giuffré, 1951), na Rivista italiana per le scienze giuridiche
(Roma, 1948) e nos Problemi del Processo Civile (Napoli, Morano, 1962). Tradução e notas de adaptação de Otávio
Domit, acadêmico do último ano do curso de graduação em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
N.T.: A tradução baseou-se na versão do texto publicada na coletânea de textos do autor intitulada “Problemi del
Processo Civile”, Napoli: Morano editore (1962). Tendo em conta a data da primeira publicação, é de se perceber
que as referências do autor à legislação brasileira têm em conta o Código de Processo Civil brasileiro de 1939
(Decreto-Lei nº 1.608 de 1939), substituído pelo ainda vigente Código de Processo Civil de 1973 (Lei nº 5.869 de
1973), e o Código Civil de 1916 (Lei nº 3.071 de 1996), que deu lugar ao recente Código Civil de 2002 (Lei nº 10.406
de 2002). Ademais, além de versar o texto para o vernáculo, no que procurou-se manter o mais fiel possível ao
original, fizeram-se pequenas notas de acomodação ao atual direito processual civil brasileiro, não apenas no
que diz com a atualização do ordenamento positivo, mas também apontando eventuais mudanças sistemáticas e
estruturais adotadas pelo vigente Código elaborado por Alfredo Buzaid, as quais, por óbvio, não tiveram qualquer
pretensão de exaurir os assuntos ali tratados. Por fim, as referências a preceitos legais nas presentes notas referem-se
ao CPC/73, salvo expressa indicação.

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jurídicos diferentes conseguisse adquirir uma finalidade autônoma. As razões


de tal preferência são intuitivas e múltiplas. Assaz menos conhecido é o direito
anglo-saxão, embora tão importante: a originalidade do sistema de fontes e
as peculiaridades da sua formação histórica, enquanto tornam fascinante o
seu estudo, oferecem ao jurista continental dificuldades muito grandes.
De todo descuidada é, por sua vez, a experiência dos direitos da Península
Ibérica e das nações da América Latina, que formam uma grande família, unida
pela origem comum e pela grande afinidade de conteúdo. Tais ordena-
mentos podem não ter, para os juristas italianos, as razões de interesse que
apresentam os direitos antes mencionados; mas possuem outras, de diversa
ordem. Trata-se, de fato, em primeiro lugar, de nações ligadas à Itália por
vínculos de comum civilidade e de estreitas relações de comércio e de afeto,
destinadas a se tornarem sempre mais frequentes e profundas. Mas a isso se
ajunta o fato de que as instituições jurídicas de tais nações também derivam
diretamente do tronco do Direito Comum europeu da época intermédia e que,
por isso, o seu estudo permite não apenas alargar os nossos horizontes e enri-
quecer a nossa experiência, mas nos faz ter em conta um conhecimento maior
da sorte travada por um direito que foi grande parte da nossa tradição jurídica
e um quadro mais completo dos vários caminhos pelos quais se despedaçou e
se fracionou a antiga unidade jurídica dos séculos passados. Quem adentra o
estudo desses direitos verá, aliás, crescer o seu interesse à medida que avançar
na pesquisa, porque descobrirá, um pouco por vez, um fato inusitado: ou seja,
é propriamente nesses países, e sobretudo naqueles mais distantes e de mais
recente formação, que a face original do Direito Comum europeu conservou-se
mais genuína até os tempos modernos. Dentro de tais ordenamentos jurídicos
encontramos, muitas vezes quase intocados, numerosos institutos do nosso
direito intermédio que entre nós desapareceram de há muito ou mudaram de
todo o seu aspecto. Tem-se a impressão de aproximar-se de uma janela e assis-
tir, fascinados e interessados, ao desenvolvimento em plena vida de institutos
e relações dos quais havíamos tido até agora apenas um indireto conhecimento
pelos empoeirados volumes de Durante e de Bartolo.
A procura de uma explicação para esse aparente paradoxo não deixará
de jogar nova luz sobre alguns aspectos dos próprios direitos vigentes hoje
na Europa; também as relações existentes entre eles ver-se-ão em uma pers-
pectiva um pouco diferente daquela usual.
E no redescobrir em um direito estrangeiro formas e conceitos de um
nosso longínquo passado, que entre nós se perderam e foram sobrepujadas
pelos eventos históricos, ocorre questionar se não é do outro lado do oceano
que nos é permitido entrever aquele que talvez teria sido o nosso direito, ou
alguma coisa com esse muito semelhante, se a evolução natural das nossas
antigas instituições não houvesse sido perturbada e interrompida pelo vio-
lento surgimento de fatores estranhos que mudaram o seu curso.

§2 Formação histórica do direito brasileiro


1 Generalidades. – A fim de resumir em uma fórmula simples e genérica
a derivação histórica dos direitos latino-americanos, pode-se dizer que o

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direito constitucional e a organização administrativa são fundamentalmente


inspirados no modelo norte-americano. O fato explica-se recordando que a
independência das nações do continente afirmou-se nas primeiras décadas
do século passado em nome de um ideal americano, com um impulso de
rebelião e de distanciamento das pátrias de origem, acusadas de oprimir e
desfrutar as suas colônias do outro lado do Atlântico. Também o Brasil, que
fora o único a conservar desde o princípio a forma monárquica, preferiu mais
tarde a república e se deu uma constituição federativa moldada sobre aquela
dos Estados Unidos. Quem de maior parte influenciou na elaboração dessa
constituição foi o jurista e homem de estado Rui Barbosa. Nada obstante as
mudanças ocorridas posteriormente, as linhas essenciais da organização dos
poderes públicos permaneceram as mesmas. Naturalmente, a praxe política
profundamente diferente daquela da república do norte tem como consequên-
cia o fato de que em formas jurídicas semelhantes desenvolvam-se relações
constitucionais muito diferentes.
Vice-versa, o direito privado e o processo civil, se bem que adequados
às necessidades dos nossos tempos, permaneceram em boa parte o que eram
antes da independência e são, por isso, de derivação europeia, e propriamente
espanhola nos países de língua espanhola, e portuguesa no Brasil.
É necessário, portanto, para entender as suas características, dar um
passo atrás e considerar o direito que os colonizadores espanhóis e portugue-
ses levaram às terras da grande conquista.
2 Espanha e Portugal na Idade Média. – O direito privado e processual
vigente na Espanha e em Portugal ao fim da Idade Média e durante a época
da colonização americana era o resultado daquele grande fenômeno histórico
que foi a recepção do direito romano na Europa Central e Ocidental. Também
na Península Ibérica essa recepção teve lugar, sendo o fato central na forma-
ção do direito nacional. Mas isso se verificou de uma maneira em parte dife-
rente da ocorrida nas outras partes do continente.
Durante a alta Idade Média, também a península ibérica conheceu o
particularismo jurídico. Entre as leis que ali tiveram vigor, é preciso recordar
o assim chamado Breviário de Alarico para a população hispano-romana e as
leis visigóticas para a população bárbara. Mas bem cedo afirmou-se a tendên-
cia à unificação do direito, o que levou à promulgação, por volta da metade
do século VII, do Liber judiciorum (Forum Judicium ou Fuero Juzgo), em que
se tentou uma conciliação dos dois direitos e que teve aplicação comum às
populações góticas e romanas. Nada obstante, mais tarde, após a reconquista
da península com a caçada aos árabes invasores, triunfou novamente o par-
ticularismo, através dos fueros e privilégios municipais, em que voltou a ter
prevalência a influência consuetudinária, restringindo em igual tempo a apli-
cação do Forum Judicium. Por obra do rei de Castela, retomou-se o movimento
unificador, que triunfou na metade do século XIII com o rei Alfonso X, dito o
Sábio. Na atividade legislativa do rei Alfonso resumem-se as tendências e as
diretrizes da história jurídica ibérica e estabelecem-se as bases da futura evo-
lução. Ele fez compilar o Fuero Real (1255), que reunia em um código único

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e geral a tradição da legislação foral, mais propriamente e genuinamente


espanhola. Mas àquele tempo os estudos jurídicos haviam tomado um novo
endereço: os estudos das fontes clássicas de Roma, saídos a grande esplendor
das Universidades italianas por obra dos glosadores, difundiram-se por todo o
Ocidente. Jurisconsultos italianos e espanhóis, educados nas escolas italianas,
ensinavam em numerosas cidades espanholas o novo método de estudo e dis-
seminavam a admiração pelo Corpus Iuris de Justiniano, considerado como o
direito do Império e como o maior monumento jurídico universal, fonte perene
de sabedoria e de justiça. Assim se explica o fato de o rei Alfonso ter ordenado
em 1256 a compilação da lei das Siete Partidas, em que era exposto prolixa-
mente, com conceitos e no espírito do ressurgido direito romano, do modo
como esse era interpretado e adaptado aos novos tempos, todo o direito público
e privado do reino. O caráter legislativo desse código era, em um primeiro
momento, assaz duvidoso (consta que houvesse sido concebido muito mais
com uma finalidade didática, um pouco a imitar as Instituições justinianeias) e
apenas aproximadamente um século mais tarde veio formalmente reconhecido
o seu viés normativo (Ordenamiento de Alcalá, 1348). No entanto, ainda antes
dessa data começou a valer como a mais importante fonte jurídica do país,
representando o decisivo retorno do direito romano.
Fenômeno análogo produziu-se no vizinho reino de Portugal, que
desde o princípio do século XII se regia de forma independente. Foi em 1320 que
o rei Dom Diniz fundou em Lisboa o primeiro “Estudo Geral”, em que uma das
cátedras era destinada ao estudo do direito romano; e foi o mesmo rei que intro-
duziu a língua portuguesa no uso do foro e ordenou a tradução para o portu-
guês das Siete Partidas espanholas, das quais derivaram muitas disposições das
leis promulgadas por ele e por seus sucessores. Da mesma forma, afirmou-se
a autoridade do direito canônico, seja nos tribunais eclesiásticos, seja naqueles
civis nas matérias eclesiásticas e naquelas em que agebatur de peccato.
Rapidamente, as fontes romanas e canônicas vieram consideradas como
a ratio scripta e aplicadas, nas respectivas esferas de competência, quando não
existia norma legal expressa; por outro lado, a legislação reinícola adotava
sempre mais frequentemente as soluções indicadas pelo direito romano.
3 As “Ordenações” portuguesas. – O grande número de leis e de outras
normas escritas e consuetudinárias, de autoridade e de âmbito de aplica-
ção diversos, era causa de grande confusão na prática, e mais de uma vez as
Cortes solicitaram ao rei que as leis do reino fossem reformadas e reunidas
em um único corpo legal. O rei Dom João I acolheu o desejo e ordenou a
compilação de um código, que veio a ser promulgado finalmente em 1456, no

Cf. SAVIGNY, Histoire du droit romain au Moyen Age, trad. Guenoux, Paris, 1830, t. II, p. 65; Minguijón, Historia del
derecho español, 2ª ed., Barcelona, 1933, p. 77-78 e 84 et seq.

MELO FREIRE, Historia iuris civilis lusitani (primeiro desenho da história do direito português, finalizado em 1777,
publicado em várias edições), §57; COELHO DA ROCHA, Ensaio sobre história do governo e da legislação de Portugal,
6ª ed., Coimbra, 1887, §95.

Para um estudo do desenvolvimento histórico das instituições jurídicas portuguesas anteriormente à compilação
das “Ordenações”, v. as numerosas e acuradas monografias de vários autores recolhidas nas publicações intituladas
História e Memórias da Academia e Memórias de literatura portuguesa e a monumental História de Portugal (1846-53) de
Alexandre Herculano. Entre as coleções de fonte, v. sobretudo Portugallie Monumenta Historica, em grande parte
sob os cuidados do mesmo Herculano.

MANUEL PAULO MEREA, Resumo das lições de história do direito português, Coimbra, 1925, p. 123.

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reinado de Dom Afonso V, do qual retirou o nome de Ordenações Afonsinas.


Em cinco livros, vinha exposto todo o direito vigente no reino, retirado das leis
promulgadas no início da independência, das Partidas espanholas, dos usos
e costumes nacionais e, sobretudo, do direito romano (“as leis imperiais”) e
canônico, das quais foram extraídos títulos inteiros da obra e aos quais é feita
contínua referência. Frequentemente os textos das leis anteriores são reproduzi-
dos por inteiro, com indicação do rei que o havia promulgado, encontrando-se
transcritos em ordem cronológica; nesse caso, o título se fecha com uma sanção
final que confirma a vigência daquelas leis ou altera parcialmente o seu conteúdo.
Obra notável para a sua época, as Ordenações Afonsinas representam o esforço
da monarquia em coordenar e unificar o direito vigente, fazendo prevalecer as
doutrinas romanistas e canonísticas sobre as mais rústicas e arcaicas formas
jurídicas locais e consuetudinárias. Isso não elimina o fato de que alguns ins-
titutos de origem germânica ou árabe ou brotados espontaneamente nos vila-
rejos, estando então arraigados no costume, se mantivessem na sua substância,
mesmo que adaptados e inseridos em um sistema fundamentalmente romanís-
tico (por exemplo, a comunhão de bens entre os cônjuges).
Mas já em 1505, o rei Dom Manuel I dava início aos trabalhos de revisão
das Ordenações; um estímulo a isso era dado pela invenção da imprensa e
pelo desejo de publicar com aquele meio um código melhorado e atualizado.
Em 1514 foram publicadas e promulgadas as Ordenações Manuelinas e em
1521 foi publicado um novo texto revisto. Não muitas são as modificações
em comparação às precedentes, mas as disposições são formuladas em um
texto mais conciso, mais técnico e maduro, que não faz mais referências a leis
anteriores, tampouco em geral às origens das várias normas, expondo o direito
vigente de forma direta e com um teor uniformemente dispositivo.
Entretanto, naquela virada de tempo, um grande fato histórico agitava
a vida de Portugal, assim como viria a agitar a história do mundo inteiro: a
colonização das Índias, da África e da América. O pequeno reino do extremo
da costa atlântica da Europa tornava-se o centro de um imenso império colo-
nial e de um formidável comércio entre os mais longínquos continentes.
Numerosas novas leis e disposições de todo o gênero vieram a cuidar das
novas e urgentes necessidades. E assim se explica ter o rei Filipe II de Espanha,
que se tornou em 1580 também rei de Portugal, com o nome de Filipe I,
empreendido a revisão e atualização das Ordenações. Não muitos anos mais
tarde, em 1603, pouco depois de sua morte, foram promulgadas as Ordenações
Filipinas, destinadas a ter longuíssima vida, porquanto estiveram em vigor
em Portugal e no Brasil até a codificação moderna.
Como as precedentes, compreendiam 5 livros, divididos em títulos
numerados progressivamente, com uma rubrica que lhes indicava assunto. O
primeiro livro é dedicado ao ordenamento judiciário; o segundo, ao direito
eclesiástico e fiscal; o terceiro, ao processo civil; o quarto, ao direito civil; o
quinto, ao direito e ao processo penal. O texto é escrito em língua portuguesa

Cf. MEREA, op. cit., p. 135.

As Ordenações Afonsinas permaneceram manuscritas e somente em 1786 lhe foi feita uma edição impressa, sob os
cuidados da Universidade de Coimbra.

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da época, um pouco diversa da hodierna e mais arcaica, seja na ortografia,


seja nas formas verbais. Comparadas com as Ordenações que lhe precede-
ram, as Filipinas apresentam um texto melhorado, mas não se distanciam
muito na regulação dos institutos fundamentais.
A tais Ordenações se é frequentemente negado o caráter de uma ver-
dadeira codificação, no sentido moderno da palavra, o que parece incorreto.
Como se acenou, as Ordenações não são um simples apanhado de leis, senão
a formulação em um único corpo legal de todo o direito vigente como ius
proprium no território metropolitano e colonial da monarquia portuguesa.
A reprodução de leis anteriores, que ainda se faz presente nas Ordenações
Afonsinas, desaparece por completo nas duas redações sucessivas, cujas dis-
posições tiveram vigência formalmente autônoma. É certo que as normas são
retiradas na sua maior parte do direito anteriormente vigente e sobretudo
daquele riquíssimo humus jurídico que era o direito romano comum e que
isso não permitirá, talvez, reconhecer ao legislador português o mérito de
uma grande originalidade, a não ser pelo próprio fato de ter completado
uma empreita que de simples nada tem. Mas qual é, por acaso, a codificação
moderna que não tenha feito, em situações mais ou menos diversas, qualquer
coisa de análogo, reescrevendo e formulando nas suas disposições o direito
anterior segundo diretrizes unitárias? Tampouco o fato de que ao lado das
Ordenações se reconhecesse vigência ao direito romano parece ser um argu-
mento válido; seja porque também hoje não falta quem considere que o
direito comum possa colmatar as lacunas do nosso ordenamento jurídico,
sem que se pense em negar, por isso, ao nossos códigos o seu caráter próprio;
seja porque, de outra parte, como veremos, quando o direito romano deixou
de valer em Portugal, as Ordenações permaneceram sozinhas a representar
o corpo principal das fontes jurídicas do país, sem necessitar sofrer, por isso,
qualquer modificação de conteúdo ou de forma.
4 Relações com o direito comum. – Nada obstante a amplitude de tais
Ordenações, o legislador não pretendia regular com as suas disposições
todos os casos concretos que podiam apresentar-se na prática; ao lado dessas,
continuavam a valer como fonte subsidiária, nas respectivas esferas de com-
petência, o direito canônico e o direito romano (ao qual se reconhecia eficácia
“pela boa razão em que é fundado”) e, sucessivamente, as Glosas de Accursio
e a doutrina de Bartolo. Dispunham, de fato, as Ord. Fil., Livro III, tít. 64:

Quando algum caso for trazido em pratica, que seja determinado per alguma lei
de nossos Reinos, ou stylo de nossa Corte, ou costume em os ditos Reinos, ou em
cada huma parte deles longamente usado, e tal, que por direito se deva guardar,
seja por eles julgado, sem embargo do que as Leis Imperiaes acerca do dito caso
em outra maneira dispoem; porque onde a lei, stylo ou costume de nossos Reinos
dispoem, cessem todas as outras leis e direitos. E quando o caso, de que se trata,
não for determinado por lei, stylo ou costume de nossos Reinos, mandamos que
seja julgado, sendo materia que traga pecado, per os sagrados Canones.


Por ex., Planiol, Traité élémentaire de droit civil, I, n. 135.

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E sendo matéria que não traga pecado, seja julgado pelas leis Imperiaes. As quaes
leis Imperiaes mandamos somente guardar pela boa razão em que são fundadas.
1. E se o caso, de que se trata em pratica, não for determinado por lei de nos-
sos Reinos, Stylo ou costume acima dito, ou leis Imperiaes, ou pelos sagrados
Canones, então mandamos que se guardem as Glosas de Accursio, incorporadas
nas ditas leis, quando por comum opinião dos doutores não forem reprovadas;
e quando pelas ditas Glosas o caso não for determinado, se guarde a opinião
de Bartolo, por que a sua opinião comumente he mais conforme à razão, sem
embargo que alguns doutores tivessem o contrario; salvo se a comum opinião
dos doutores, que depois dele escreveram, for contraria.

O direito das Ordenações representava, portanto, para Portugal e terri-


tórios além-mar, aquele ius proprium, vale dizer, aquele direito territorial par-
ticular que, segundo o sistema vigente àquele tempo na Europa, se integrava
no quadro mais vasto dos dois iura communia, o direito do Império e da Igreja,
devendo a esses últimos recorrer-se de maneira subsidiária quando o direito
particular não dispunha expressamente. Em outros termos, entre o direito régio
e o direito romano (e, em matéria espiritual, o canônico) subsistia aquela rela-
ção de “direito particular” a “direito comum”, que encontramos como carac-
terística dominante dos ordenamentos europeus da época intermédia.
Em que pese a relação indicada, essencialmente uniforme, assumia
ela, por sua vez, em cada nação, aspectos e desenvolvimentos diversos; e são
assaz interessantes aqueles que essa teve em Portugal.
Notamos, em primeiro lugar, o fato certamente incomum do expresso valor
de fonte de direito reconhecido à doutrina dos glosadores e pós-glosadores, com
prevalência final da opinião de Bartolo. Ainda que tais fontes doutrinárias fos-
sem indicadas como sucessivamente subsidiárias às fontes justinianeias, na
realidade vinham a integrá-las, porque na prática o intérprete, quando se encon-
trava frente a um caso que não era regulado nas Ordenações, procurava a solu-
ção no direito romano, do modo como esse era compreendido pelos doutores
medievais, e, assim, recorria não mais aos textos do Corpus Iuris, mas súbita e
diretamente às doutrinas ensinadas pelos jurisconsultos, de Accursio a Bartolo.
Interesse ainda maior é dado a um outro fato: embora valessem como
direito especial territorial, que deveria prevalecer sobre o direito romano
comum, as Ordenações portuguesas, por sua vez, eram — quanto ao seu con-
teúdo — uma verdadeira e própria codificação do mesmo direito comum.
Redigidas por comissões de juristas educados e formados nas Universidade
italianas, ou ao menos nos métodos e sobre as obras dos mestres que nessas e
à sua volta haviam desenvolvido o seu magistério, as Ordenações representa-
vam nada mais do que uma síntese das doutrinas do direito comum — salvo
aquelas poucas matérias em que foi recolhido algum instituto ou alguma
regra tratada pelas leis ou usos locais. Muito especial era, portanto, a relação
entre direito particular e direito comum: isso porque o legislador português,
Cf. BESTA, Fonti, na Storia del diritto italiano coordenada por P. Del Giudice, v. 1, 1, p. 401 et seq.; e sobretudo Calasso,


Storia e sistema delle fonti del diritto comune, I, Le origini, Milano, 1938, passim e especialmente p. 39 et seq.; Lezione di storia
del diritto italiano, Milano, 1948, p. 189 et seq.; Verbete: Diritto Romano Comune, in Encicl. Italiana, v. 29, p. 693 et seq.

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no formular o seu ius proprium territorial, havia-o extraído na sua maior parte,
com um juízo criterioso de escolha, daquele mesmo mare magnum das doutri-
nas do direito comum, a que remetia, por sua vez, o intérprete em via subsi-
diária para todos os casos que não houvessem sido expressamente contem-
plados. Até mesmo aquilo que formalmente era direito particular, substan-
cialmente era ainda direito comum, escolhido, ordenado e formulado com
clareza e precisão e com vivo e moderno senso das necessidades da prática.
Notáveis foram as consequências desse fato: quando mais tarde tam-
bém em Portugal o direito comum deixou de valer como fonte subsidiária e as
Ordenações mantiveram-se em vigor como única fonte de direito nacional, atra-
vés delas continuou indiretamente a viver o direito comum, em boa parte quase
até os nossos dias; e dele, muitos institutos passaram intactos ou pouco altera-
dos para o direito atualmente em vigor em longínquas regiões do mundo.
5 Acontecimentos sucessivos. – A pequena nação havia empregado todas as
suas energias nas viagens, nas grandes descobertas, na empreita colonizadora.
Àquele tempo, as suas melhores forças pareciam exauridas. Sucede um longo
período em que Portugal, quase satisfeito por aquilo que havia feito, fecha-se
sobre si próprio, alheio aos eventos da vida europeia, totalmente absorvido
pelos problemas muito grandes que as imensas colônias lhe apresentavam a
cada dia. Até mesmo a atividade legislativa silencia. O direito havia assumido
uma forma que parecia definitiva, fixado nas Ordenações dentro de esquemas e
conceitos que remontavam em grande parte à metade do século XV.
Somente um século e meio após a promulgação do código filipino, isto
é, por volta do século XVIII, o país parece acordar de tal torpor por obra do
ministro Marquês de Pombal, que deu início à reforma de toda a estrutura do
Estado, no espírito das doutrinas iluministas e do direito natural, que àquele
tempo triunfava na Europa. Retoma a sua atividade legislativa a lei de 18 de
agosto de 1769, dita a lei da boa razão, pela qual se estabelecia que se poderia
recorrer em via subsidiária ao direito romano unicamente quando as suas
regras fossem conformes à boa razão, compreendendo-se por estas palavras os
princípios eternos do direito natural, o espírito das leis nacionais e as neces-
sidades e circunstâncias do tempo; limitava-se o valor do direito canônico
aos tribunais eclesiásticos; retirava-se qualquer autoridade às glosas e às opi-
niões dos doutores; e reconhecia-se eficácia de fonte subsidiária, nas matérias
comerciais e marítimas, às leis das nações civilizadas da Europa.
De tal modo, o direito nacional vinha a adquirir uma autoridade e uma
uniformidade até então desconhecidas; e é com essa compreensão que o maior
jurista daquele tempo, Pascoal José de Melo, escreveu as suas Institutiones
iuris civilis lusitani, impulsionando a doutrina e a jurisprudência a se emanci-
parem da antiga dependência do direito comum.
Não muitos anos mais tarde, os exércitos franceses espraiavam-se
sobre a Europa e nem mesmo o longínquo Portugal escapava à sorte comum;
o rei era forçado a abandonar Lisboa e a procurar refúgio na sua colônia
além-mar, onde estabeleceria sua Corte na cidade do Rio de Janeiro. A inva-
são francesa trouxe a todas as nações um sopro de vida nova e de novas

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Institutos do direito comum no processo civil brasileiro 51

ideias, interrompendo, entre outras coisas, a normal evolução das instituições


jurídicas vigentes no vários países. Os códigos napoleônicos, que recolhiam os
resultados da mais secular e profundamente original atividade reformadora
da monarquia e da jurisprudência francesa, substituíram os complicados
ordenamentos jurídicos de cada nação e, o que mais conta, tiraram do caminho
o augusto edifício do direito comum. A obra paciente de tantas gerações de
juristas vinha varrida de um só golpe e o seu posto era tomado por um direito
em muitos aspectos contrastante com a tradição jurídica dos povos particulares
(ainda que por vezes significasse o retorno às regras do genuíno direito romano),
mas que se fazia admirar pela clareza, precisão e simplicidade. Em seguida,
tem-se a restauração e, em muitos aspectos, pareceu-se retornar a antigamente.
Mas na verdade os novos espíritos não se podiam mais eliminar e, cedo ou
tarde, em cada lugar, códigos e leis inspirados no modelo francês lançaram
as bases do novo direito europeu, que, com todas as diversidades e variedade
nacionais, conservava ainda e sempre um fundo comum uniforme, no qual se
pode reconhecer o amálgama de uma nova unidade jurídica continental. Até
mesmo a legislação germânica, aterrisada mais tarde e inspirada em parte em
outros princípios, ressente a influência do exemplo francês muito mais do que
normalmente se considera. Basta, para disso convencer-se, confrontá-la com
um direito mantido imune à fratura produzida na Europa pelo direito francês,
como é o caso do brasileiro, no qual os institutos do direito comum puderam
sobreviver, chegando quase intactos aos nossos dias, e encontrar sem dificulda-
des o seu lugar no sistema de direito moderno.
6 O direito brasileiro. – As Ordenações Filipinas, já em vigor por mais de
dois séculos, permaneceram em seu lugar mesmo após o Brasil ter-se tornado
sede da monarquia portuguesa, mesmo após ter-se desligado da pátria mãe,
proclamando a sua independência (1822). Apenas lentamente, e um pouco por
vez, vieram substituídas por leis novas. As Ordenações, portanto, mantiveram-se
em vigor por um tempo excessivamente longo e é porventura nesse ponto
que se deve procurar a explicação para o comportamento que tiveram e têm a
doutrina e a jurisprudência brasileira frente à legislação escrita: vale dizer, um
menor apego ao texto legislativo em comparação aos juristas europeus, e uma
mais desprendida interpretação das suas disposições, num esforço de encontrar
uma solução satisfatória para cada caso concreto, com largo recurso ao direito
comparado e à doutrina estrangeira. Uma mais aguçada sensibilidade para o
justo substitui frequentemente a menor inclinação à construção dogmática.
De 1850 são o código de comércio (posteriormente reformado) e uma
lei chamada Regulamento 737, que normatizou o processo comercial e foi mais
tarde estendida também ao processo civil. Em tal ponto, manteve-se subs-
tancialmente inalterada a estrutura fundamental do processo, mas se formu-
laram as suas regras com grande clareza, em breves e precisas disposições,
conforme a técnica legislativa moderna. Muito mais recente, isto é, de 1916, é
o Código Civil. E em 1939 foi publicado um novo Código de Processo Civil,
atualmente em vigor.

N.T.: O CPC/39 permaneceu em vigor até 1º de janeiro de 1974, data em que passou a viger CPC/73.

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Nesses códigos modernos, o direito tradicional lusitano encontra-se


fundido com alguns princípios novos e enquadrado nos conceitos técnicos
próprios das mais recentes legislações europeias (por exemplo, o Código Civil
vem aberto com uma parte geral, na qual é amplamente regulada a figura do
ato jurídico).10 Tais códigos representam, portanto, uma diferente combinação
de muitos elementos históricos e sistemáticos que concorreram para formar o
hodierno direito europeu. Mas uma característica importante da sua formação
histórica, que talvez mais do que qualquer outra contribui para dar ao direito
privado e processual brasileiro os seus traços distintivos e para formar a sua
individualidade histórico-comparada, é o fato de que a sua evolução interna
deu-se de forma ininterrupta desde o século XV, vale dizer, desde a época das
Ordenações do Reino, sem jamais distanciar-se profundamente da configura-
ção adquirida naquele momento e ressentindo escassamente a influência de
fatores estranhos. Em particular, o direito francês, de importância preponde-
rante na formação dos modernos direitos europeus, não estendeu, por sua vez,
a sua influência sobre o direito brasileiro, o qual, portanto, manteve-se mais
conectado à sua distante origem e pôde conservar, mais ou menos intactos,
numerosos institutos do direito comum que, no presente, não são mais do
que recordações históricas na Europa11 (recordo, a título de exemplificação, a
ausência do princípio de que para os bens móveis possession vaut titre).12
Estas características apresenta, exatamente, o vigente Código de Processo
Civil,13 que introduziu o processo oral e concentrado, tendo como modelos
o código português14 e os projetos italianos Chiovenda, Carnelutti e Solmi.15
Em meio a um procedimento informado por esses novos princípios, sobrevi-
vem numerosos institutos tradicionais. Novo, entretanto, e de grande inte-
resse prático, é o despacho saneador, apanhado da mais recente experiência da
jurisprudência portuguesa: decisão que o juiz de primeira instância (único)
prolata para resolver as questões litis ingressum impedientes e sanar o processo
de eventuais nulidades, abrindo, de tal modo, a estrada para a instrução da
causa e para a decisão de mérito.16
10
N.T.: Essa técnica legislativa foi mantida pelo CC/02, que regula os assim chamados “fatos jurídicos” no livro III
da parte geral.
11
N.T.: A observação, no que tange ao direito processual civil, é perfeita para o direito positivo à época em vigor;
tendo-se em conta a atualidade, no entanto, as coisas se passam um tanto diversas, eis que, com o advento do
CPC/73, operou-se uma verdadeira “invasão francesa” no direito brasileiro, que passou a ressentir forte influência
dos movimentos que muito antes, como referido pelo autor, atingiram as nações europeias e mudaram o curso de
seu direito, principalmente privado e processual (MITIDIERO, Daniel. Elementos para uma teoria contemporânea do
processo civil brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 36).
12
Para indicações respeitantes ao direito privado, v. ASCARELLI, Osservazioni di diritto comparato privato italo-brasiliano,
in: Foro it., 1947, IV 97.
13
Sobre o assunto, v. as notícias em Riv. dir. proc. civ., 1941, I, 353 e 1942, I, 59.
14
Sobre a reforma do processo civil português, levada a cabo através de numerosas leis parciais e posteriormente
reunida no novo Código que entrou em vigor em 1939, v. a exposição feita por seu inspirador, prof. José Alberto
dos Reis, in: Riv. dir. proc. civ., 1930, I, 153.
15
N.T.: Sobre o Codice di Procedura Civile, de 1942, e sobre a influência destes Projetos e de outros sobre o seu texto, v.
TARELLO, Giovanni. Il Problema della Riforma Processuale in Italia nel Primo Quarto del Secolo. Per uno studio della
genesi dottrinale ed ideologica del vigente Codice italiano di procedura civile. In: GUASTINI, R.; REBUFFA, G. (Org.).
Dottrina del Processo Civile: Studi Storici sulla Formazione del Diritto Processuale Civile. Bologna: Il Mulino, 1989.
p. 9-107. Ademais, refere-se o autor ao CPC português de 1939, que posteriormente deu lugar ao CPC de 1961, hoje ainda
vigente, contando, todavia, com as profundas alterações empreendidas pelos Decretos-Lei nºs 329-A/95 e 180/96.
16
Sobre o interessante instituto, Cf. JOSÉ ALBERTO DOS REIS, Breve estudo sobre a reforma do processo civil e comercial, 2ª
ed., Coimbra, 1933, p. 133; LIEBMAN. O despacho saneador e o julgamento do mérito. Revista Forense, Rio de Janeiro,
v. 104, p. 216, 1945 e reproduzido em Estudos sobre o processo civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1947, p. 105 et seq.

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Institutos do direito comum no processo civil brasileiro 53

Diversa, mas de um certo modo paralela, é a formação histórica dos


direitos dos outros Estados da América Latina, que são de estreita derivação
espanhola. Em muitos deles, o processo é ainda regulado por códigos que
remontam à metade do século passado e que do direito espanhol herdaram
alguns dos aspectos menos louváveis do direito comum (que, de sua parte, o
legislador português soube evitar); processo escrito e secreto, rigorosamente
articulado em etapas separadas com prazos preclusivos, instrução totalmente
baseada sobre as positiones, com meios de prova cuja eficácia legal é fixada em
frações aritméticas destinadas a serem somadas etc.
Uma parcial resenha servirá para ilustrar com alguns exemplos a expo-
sição que precede.

§3 Resenha
7 As ações de “jactância”. – As figuras das ações de “jactância”, elaboradas
pela doutrina medieval italiana mediante uma adaptação e ampliação daquilo
de preceituavam dois textos das fontes romanas (l. si contendat, Dig. 46, 1, 28 e l.
diffamari, Cod. 7, 14, 5) para servir às necessidades de declaração (accertamento),17
foram logo acolhidas na prática espanhola e portuguesa; mas tiveram sorte
diversa. Na Espanha, a terceira Partida, tít. II, 46, acenou expressamente, como
exceção ao princípio de que ninguém possa ser forçado a agir, a essa particu-
lar provocatio ad agendum, com eventual condenação ao perpétuo silêncio; e os
autores recuperaram e desenvolveram amplamente o tema, em estreita conexão
com a doutrina italiana do período.18 Em Portugal, as coisas andaram de maneira
diversa: referem os autores da época ter sido o foro de tal modo inundado por
esses juízos provocatórios, que o legislador viu-se forçado a intervir para res-
tringir o seu uso. Proveu, nesse sentido, uma lei de 30 de agosto de 1564, cujo
conteúdo foi, posteriormente, incorporado às Ord. Fil. (Liv. III, tít. 11, §4), através
da qual se dispunha que se alguém difamava uma pessoa sobre o seu estado
“como se dissesse que era seu captivo, liberto, infame, spurio, incestuoso, Frade,
Clerigo ou casado”, o difamado poderia fazer citar o responsável no seu local de
domicílio, assinalando-lhe um termo para propor a demanda e provar o vício
de estado. Acrescentava-se, de outra parte, que em nenhuma outra causa civil se
pudesse constranger outrem a agir ou impor perpétuo silêncio, abreviando, des-
se modo, o tempo que o direito concede para agir em juízo.19 Nos casos admiti-
dos, a ação é sumária: o difamado pode propô-la perante o juiz de seu domicílio,
requerendo sua admissão para provar os fatos que considera difamatórios, e se
consegue fazê-lo, o juiz ordena a citação do suposto difamador, incitando-o a
propor a ação dentro de um prazo de 8 dias; se não a propunha no prazo fixado,
vinha pronunciada a sentença que lhe impunha perpétuo silêncio.20

17
Cf. Chiovenda, Istituzioni di diritto processuale civile, 2ª ed., n. 60 et seq.
18
Ocuparam-se particularmente do assunto Rodericus Suarez e Covarrubias. Cf. WEISSMAN, Feststellungsklage, Bonn,
1879, p. 86 e 97, e mais amplamente PIERTO CASTRO, Acción declarativa, Madrid 1932, p. 32 et seq., 36 et seq.
19
Os juristas portugueses estavam plenamente conscientes da origem medieval e não romana dessas ações: MELO
FREIRE, Institutiones iuris civilis lusitani, 5ª ed., Coimbra, 1860, Liv. Iv, tít. VII, §16, de fato escreveu: “Quae quidam
Ordinatio originem suam debet non tam iuri Romano, hoc est lege Diffamari 5 Cod. de ingen. manumiss., cum ad
solam status ingenuitatem pertineat, quam Glossatoribus, qui eam ad omnes diffamationes produxerunt”.
20
PEGAS, Commentaria ad Ordinationes, Ulissipone 1759, liv. III, tít. 11, par. 4.

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54 Enrico Tullio Liebman

A diferente aprovação encontrada pelas ações de “jactância” na Espanha


e em Portugal reflete-se nos diversos destinos que lhes foram reservados em
terra americana. Nos países de língua espanhola, tais ações foram contempla-
das e admitidas pela legislação: o Cód. proc. civ. da capital federal argentina
regula-as expressamente nos arts. 425 e seguintes.21 Ao contrário, no Brasil, os
autores do século passado informam-nos que tais ações tiveram escassa aplicação
prática e acabaram caindo em desuso, até que uma resolução imperial de 1876
vetou-lhes, pois repugnantes ao direito público do país. Logo se pensou, pelo
contrário, em substituí-las com a ação declarativa ou declaratória. O primeiro
a esboçar essa alternativa foi, em 1906, Rui Barbosa, seguido por outros auto-
res; e algumas leis dos Estados federados disciplinaram-na minuciosamente.22
Finalmente, o código vigente admitiu-a com disposições gerais (art. 2º).23
8 Proposição da demanda. – No processo comum, propunha-se a demanda
apresentando ao juiz o libelo introdutório, com requerimento de ordenar a
citação do réu.24 Essa forma estava em harmonia com uma das características
do processo comum, ou seja, a necessidade de que cada ato do processo fosse
autorizado ou ordenado pelo juiz.
Analogamente dispõe o direito hoje vigente no Brasil. A petição inicial
é dirigida ao juiz, e nessa deve-se fazer a exposição dos fatos, com indica-
ção das provas e a formulação das conclusões e, ao fim, requerer ao juiz que
ordene a citação do réu (art. 158 do Cód. proc. civ.).25 Com a petição inicial,
devem-se exibir os documentos.
O que mais chama a atenção é o fato de que o juiz deve, de ofício,
“indeferir” a petição inicial, vale dizer, recusar-se a dar-lhe seguimento e
fazer citar o réu, no caso de perceber que uma das partes é incapaz ou que a
petição inicial é “manifestamente inepta” (art. 160):26 isso é o que permanece
da antiga exceptio inepti libelli, que o juiz deve hoje tomar em consideração
in limine e de própria iniciativa. Considera-se inepta a petição quando seja
obscura ou gravemente defeituosa a exposição dos fatos ou quando dos fatos
expostos não se possa deduzir logicamente a conclusão formulada.27
Na Itália, o sistema de citação direta do réu, por simples petição do
autor, veio da França, onde se afirmou a ordenação autônoma dos oficiais judi-
ciários, os quais cumprem as suas atividades quando se lhes são requeridas pelo
interessado, sem depender de uma ordem do juiz.28 É o caso de recordar que,
21
Tais ações são admitidas contra a pessoa capaz que, fora do juízo, se haja atribuído direitos sobre bens que pertençam a
outrem, e é proponível dentre os seis meses seguintes ao fato denunciado. O juiz ordena ao réu — suposto difamador —
que se manifeste sobre tais fatos, sob juramento; e se lhes admite ou responde ambiguamente, manda-lhe propor
a ação que aquele considere devida, sob pena de decadência. A rica jurisprudência sobre o tema sustenta o caráter
excepcional da ação; admite-a, normalmente, mesmo contra quem se considere credor; exclui que se possa fundar
em afirmações feitas em juízo civil ou penal (Cf. JOFRÉ, Manual de procedimientos, 5ª ed., com notas de HALPERIN,
v. IV, Buenos Aires, 1943, p. 21 et seq.; ALSINA, Tratado teorico-pratico de derecho procesal civil, III, Buenos Aires, 1943,
p. 380 et seq.). No Uruguai, cujo código reproduziu substancialmente as disposições argentinas, a ação de “jactância”
encontrou, pelo contrário, ambiente hostil: é considerada contrária à liberdade de agir e não encontra aplicação
prática: LAGARMILLA, De las acciones en materia civil, 2ª ed., Montevideo, 1930, p. 15.
22
Cf. BUZAID, A. A ação declaratória no direito brasileiro. São Paulo, 1943, p. 27 et seq.
23
N.T.: O CPC/73 regula em seu art. 4º a ação declaratória e no art. 5º a chamada ação declaratória incidental.
24
PILLIO, De ordine iudic., liv. I, 3; DURANTE, Speculum, liv. II, part. I, de comp. iud. ad., §3 “viso”.
25
N.T.: Art. 282 do CPC/73.
26
N.T.: O CPC/73 trata da inépcia da petição inicial e de seu indeferimento nos arts. 284 e 295.
27
MARTINS, Pedro Batista et al. Commentarios ao código de processo civil. Rio de Janeiro: Forense, 1941, v. 2, p. 139;
MIRANDA, Pontes de. Comentários ao código de processo civil. Rio de Janeiro, 1947, v. 2, p. 33.
28
CHIOVENDA, Istituz., cit., v. II, n. 157.

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Institutos do direito comum no processo civil brasileiro 55

por ocasião da recente reforma, a mais autorizada doutrina sustentou em vão o


retorno à citação “indireta”, ainda existente nas leis germânica e austríaca.29
9 As “exceções dilatórias”. – Uma das características do processo comum
advinha de sua estrutura “rígida”: era, de fato, dividido em momentos e
períodos fixos, fechados em prazos preclusivos, dentro dos quais as várias
atividades deviam realizar-se. Um desses prazos preestabelecidos era o das
exceções preliminares ou “dilatórias”, que o réu podia propor por via sepa-
rada e todas conjuntamente, antes de apresentar a sua resposta ao libelo do
autor.30 Sobre o tema, a doutrina dedicou infinitas e complicadíssimas distin-
ções e classificações.
As Ord. Fil. acolheram tal instituto, procurando tornar-lhe mais sim-
ples as regras (Liv. III, tít. 20, n. 9):

E antes de o reo vir com contrariedade, nem responder ao libello cousa alguma,
virá à segunda audiencia com todas as exceições dilatorias que tiver, juntamente,
sendo certo que desque huma vez for pronunciado sobre a tal exceição, ou
exceições dilatorias, com que vier, não poderá jamais vir com outras, nem lhe
será para isso dado lugar.

E alhures (tít. 49), enumeram-se como exceções dilatórias a incapaci-


dade da parte ou do procurador, a recusa do juiz (por impedimento ou sus-
peição) ou a sua incompetência, a moratória ou a ausência de vencimento do
crédito cobrado, às quais a doutrina acrescentava outras, como a litispendên-
cia, a exceptio inepti libellis, o benefício de excussão etc.31
O Código brasileiro vigente limitou taxativamente a quatro as exce-
ções que devem ser propostas preliminarmente, no prazo e na forma a tal
propósito especialmente determinados: incompetência, a recusa do juiz (por
impedimento ou suspeição), litispendência e coisa julgada (art. 182 e seg.). O
réu, citado regularmente, tem dez dias para apresentar a sua resposta; mas
dentre os 3 primeiros dias, poderá propor conjuntamente as exceções sobre-
ditas, que deverão ser julgadas imediatamente. Qualquer outra questão, até
mesmo processual, considera-se “matéria de defesa” e deverá ser tratada na
contestação. No entanto, a incompetência por matéria poderá ser levantada
também posteriormente, a qualquer momento, com eventual responsabilidade
agravada pelas despesas causadas pelo retardamento. Também a exceção de
coisa julgada, qualificada como “mista”, poderá ser alegada na contestação,32
visto que se admite o seu exame de ofício.33

29
CHIOVENDA, Relaz. sul Progetto di riforma, §6, in Saggi, v. II, Roma, 1931, p. 53; CARNELUTTI, Intorno al progetto
preliminare del cod. proc. civ., Milano, 1937, p. 113; ZANZUCHI, Osservazioni intorno al prog. prel. del cod. proc. civ.,
Milano, 1937, p. 31.
30
GRATIA, De iudiciario ordine, cit. 9., §2; Durante, liv. II, part. I, de excep. §1, n. 5 et seq.
31
MENDES DE CASTRO, Practica lusitana, Lisboa, 1767, liv. III, cap. 3; PEREIRA E SOUSA, Primeiras linhas sobre o
processo civil, 3ª ed., Lisboa, 1825, cap. 12.
32
N.T.: O CPC/73 apresenta um regime um pouco diverso daquele exposto pelo autor, relativo ao CPC/39. O código
em vigor determina que devam ser apresentadas em separado, no prazo de resposta, as exceções de incompetência
relativa, de impedimento ou de suspeição do juízo (art. 304). Recebida a exceção, o processo ficará suspenso até
o seu julgamento (art. 306). Trata-se, a toda evidência, de exceções processuais dilatórias, diferentes das objeções
de coisa julgada e litispendência, que devem ser suscitadas em preliminar de contestação (art. 301, V e VI).
33
Supremo Tribunal Federal, 21 de outubro de 1941, Revista Forense, v. 91, 124.

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A decisão separada sobre as exceções e, em momento posterior, o


despacho saneador, (v. acima n. 6, in fine) servem, juntos, a eliminar do terreno
as questões incidentes e a preparar a audiência de instrução e julgamento.
Para o desaparecimento, na Europa, do exame preliminar em separado
das exceções dilatórias, contribuíram, de uma parte, o direito francês, com a
sua tendência a retirar qualquer rigidez ao processo, permitindo às partes o
levantamento das várias questões relativas ao processo no momento que mais
lhes aprouvesse, com a consequência de tornar o processo mais elástico, tanto
que mais confuso e desordenado; de outra parte, Bülow, com a sua vigorosa
crítica ao próprio conceito das Prozesseinreden.34 Uma função em parte análoga
tem, por outro lado, a audiência preliminar (ou “primeira audiência”) do
direito austríaco, em que devem propor-se as eventuais exceções impeditivas
do exame do mérito, a fim de que o juiz possa apreciá-las da maneira mais
oportuna.35 Menos rigorosas são as normas do nosso código (arts. 183-187),36
que deixam às partes e ao juiz maior liberdade de movimento.
10 A apelação do terceiro. – Inúmeros textos das fontes romanas conce-
diam ao terceiro a faculdade de apelar contra uma sentença quando algum
interesse seu fosse prejudicado: D. 49, 1, 4 §2 e 3; eod. 5, etc.
O direito canônico e a doutrina generalizaram essa possibilidade, daí dedu-
zindo o princípio da legitimação do terceiro a apelar, sempre que houvesse interesse.37
A apelação do terceiro devia ser proposta no mesmo prazo concedido às partes.
Na França, a apelação do terceiro desapareceu, sendo substituída pela
oposição de terceiro, não sujeita a prazo. É no século XVII que surge na praxe
judiciária esse novo remédio, como verdadeira e própria impugnação da sentença38
e foi a Ordonance civile de 1667 que o regulou completamente (tít. 35, art. 2).
Em Portugal, foi admitida, por sua vez, a apelação do terceiro.
Dispunham as Ord. Fil., Liv. III, tít. 81 pr.:

Posto que a sentença não aproveite nem empece mais que às pessoas entre que
é dada, poderá, porem, dela apelar não somente cada um dos litigantes, que
dela se sentir agravado, mas ainda qualquer outro, a que o feito possa tocar e
lhe da sentença vir algum prejuízo.

O princípio foi acolhido integralmente pelo direito brasileiro, dispondo


nesse sentido o art. 738 do Reg. 737 e, hoje, o art. 815 do Cód. proc. civ. O prazo é
34
No seu famoso livro Lehre von den Prozesseinreden und die Prozessvoraussetzungen, 1868, em que formulou pela
primeira vez também o conceito de relação jurídica processual.
35
N.T.: No regime atual, o saneamento da causa deve ter lugar preferencialmente na audiência preliminar do
art. 331; vindo por escrito, o despacho saneador tem lugar após a réplica do autor, procedendo-se de acordo com
o art. 327, segunda parte.
36
N.T.: As atuais redações dos arts. 183-187, em especial do art. 183, diferem bastante daquela que Liebman tinha
presente no momento da redação deste ensaio. Sobre o tema, consultar COMOGLIO, L.; FERRI, C.; TARUFFO,
M. Lezioni sul Processo Civile. 4ª ed. Bologna: Il Mulino, 2006. v. 1, p. 389-412.
37
Decretais, de sent. et re iud., cap. 17: “ab eadem sententia potest appellare reus victus, sed etiam tertius cuius interest;
et potest sententia quoad reum nil de suo iure docentem confirmari, respectu vero tertii rationabiliter appellantis
infirmari”. Scaccia, De sententia et re iudicata, gl. 14, qu. 12, n. 121: “Quamvis sententia inter alios lata regulariter
aliis non noceat, tamen potest aliquale praeiudicium afferre ratione alicuius connexitatis vel dependentiae, et
propter istud aliquale praeiudicium conceditur illi, cuius interest, ut ab ea possit appellare pro suo interesse”. E
alhures, De appell., qu. 5. n. 71: “quilibet tertius possit appellare pro suo interesse”.
38
TISSIER, Théorie et pratique de la tierce opposition, Paris, 1890, p. 22 et seq.; MENDELSSOHN-BARTHOLDY, Grenzen
der Rechtskraft, Leipzig, 1900, p. 56 et seq.

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Institutos do direito comum no processo civil brasileiro 57

aquele mesmo concedido às partes (15 dias da leitura da sentença em audiência


ou da intimação); entretanto, se o terceiro não possui residência ou domicílio
no local em que foi pronunciada a sentença, o prazo será de três meses.39
Na doutrina não é, porém, pacífica a extensão da legitimação do ter-
ceiro. Rui Barbosa, escrevendo em 1915, e invocando os ensinamentos dos
velhos doutores que exigiam do terceiro a prova de um qualequale praejudi-
cium, sustentou que a legitimar o terceiro a apelar bastava um prejuízo qual-
quer, grave ou leve, econômico ou ainda simplesmente moral.40 A tal opinião
aderiram hoje Odilón de Andrade e Seabra Fagundes, este último excluindo,
todavia, o caso do prejuízo meramente econômico do credor por consequên-
cia de uma sentença proferida contra o seu devedor.41 Muito mais restritiva
é, por sua vez, a opinião de Santos Estanislao,42 o qual limita a legitimação
do terceiro aos casos em que a sentença pudesse ser executada contra ele ou
viesse a prejudicar reflexamente um direito seu.43
A apelação do terceiro é de rara aplicação prática, provavelmente a
causa da brevidade do prazo, dentre o qual é difícil que o terceiro venha
a tomar ciência da existência que lhe prejudica. A oposição de terceiro dos
direitos francês e italiano distingue-se desse remédio, seja pela ausência do
prazo, seja pela mais precisa configuração dos casos em que é admissível,
seja, enfim, por ser proponível também contra uma sentença de apelação. Na
Alemanha, não existe nem um nem outro de tais remédios.44
11 A apelação, “beneficium commune”. – Justiniano alargou os poderes
do juiz de apelação, permitindo-lhe reformar a sentença impugnada também
em favor do apelado (constituição “Ampliorem”, Cód. de apel. 7, 62, 39). Sobre
a base de tal texto, a doutrina medieval construiu o conceito do beneficium
commune: a interposição da apelação submete ao juiz de segunda instância
a causa na íntegra, e ele pode decidi-la livremente, reformando a sentença
seja a favor do apelante, seja contra ele (reformatio in peius). “Ille contra quem
appellatio est interposita potest appellatione uti, ut rescindatur sententia si in
aliquo eum lesit” (Bartolo); “appellatio est communis etiam alteri parti, quae
non appellativ” (Baldo).45

39
N.T.: O CPC/73, a exemplo do código anterior, também legitima o terceiro prejudicado a recorrer da decisão
(art. 499), o qual deve fazê-lo, no entanto, sempre no mesmo prazo concedido às partes, eliminando-se a hipótese
de dilação do prazo do §1º do art. 815 do CPC/39.
40
Revista Forense, Rio de janeiro, v. 25, 163 et seq.
41
ANDRADE, Odilón de. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense 1946, v. 9, p. 112; FAGUNDES,
Seabra. Recursos ordinários em matéria civil. Rio de Janeiro, 1946, p. 50 et seq.
42
Revista de Direito, v. 17, 481.
43
N.T.: Por expressa disposição legal (art. 499, §1º), “cumpre ao terceiro demonstrar o nexo de interdependência entre
o seu interesse de intervir e a relação jurídica submetida à apreciação judicial”. A doutrina tende, assim, a encarar
como legítimo o terceiro passível de ser apanhado por algum efeito reflexo da sentença, fazendo-o nas mesmas
bases da admissão do assistente simples (art. 50). A jurisprudência recente, no entanto, tende a alargar as hipóteses
de legitimação. Nesse sentido, é paradigmática a situação em que se entendeu possível o recurso de terceiro, credor,
que vê o bem penhorado para satisfazer o seu crédito alienado em outro processo, homologado pelo juiz (STJ. REsp
nº 415.692/SP. Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. em 06.12.2002. DJ, p. 190, 10 mar. 2003).
44
N.T.: O atual direito processual civil brasileiro concede ao terceiro prejudicado três alternativas de confrontar
sentença que venha em seu prejuízo: são elas a apelação de terceiro (art. 499, §1º), a ação de embargos de terceiro
(art. 1.046) ou a ação rescisória (art. 487); as duas últimas faculdades “ficam-lhe asseguradas desde que permaneça
na condição de terceiro a quem não se tenha dado ciência da demanda” (SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso
de processo civil. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. v. 1).
45
Para um amplo exame das opiniões dos doutores, v. Delitalia, Il divieto della reformatio in peius, Milano, 1927, p. 173
et seq.

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O conceito foi acolhido integralmente nas Ord. Fil., Liv. III, tít. 72 (“que
quando os juízes da alçada acharem que o apelado é agravado, o desagra-
vem, posto que não apele”) e explicado pelos autores em estreita adesão ao
ensinamento dos doutores italianos.46 No mesmo sentido posiciona-se a dou-
trina brasileira do século XIX.47 No entanto, a jurisprudência mais recente,
influenciada provavelmente pela doutrina europeia, atenuou os rigores do
princípio, inadmitindo a reformatio in peius e nesse sentido coloca-se hoje a
doutrina dominante.48
Mas nesse caso, qualquer condescendência com o exemplo europeu é
enganosa e perigosa. O caráter “comum” da apelação andou em desuso no
direito francês;49 escrevia, de fato, Rebuffe:50 “Licet de iure appellatus possit se
iuvare appellatione appellantis, quia appellatio communis est, l. Ampliorem
C. Tamem de stilo curiarum Franciae est opus utramque partem appellare,
alioquin appellatio nil proderit ei qui non appellavit, nec sententia quoad
eum reformatibur et ita fuit conclusum saepius in curia Burdegalense, ut
refert Boer. in suis decis. q. 73 saepe, n. 7”. Em troca, o Code de procédure
civile introduziu a figura da apelação incidental, que o apelado pode propor
mesmo após o decurso do prazo para a apelação principal. Evitava-se, assim,
que, em caso de sucumbência parcial, apelasse a parte que estivesse disposta
a aceitar a sentença, com a condição de que não apelasse o adversário.
No entanto, essa nova solução dada pelo direito francês ao difícil pro-
blema não teve qualquer repercussão no direito brasileiro. De fato, o código
vigente não resolve expressamente a questão e, enquanto ignora a figura
da apelação incidental, limita-se a estabelecer que “a apelação devolverá à
superior instância o conhecimento integral das questões suscitadas e discuti-
das na ação” (art. 824). Mas enquanto falta a apelação incidental, não se pode
negar o caráter comum do recurso (vai entendido no âmbito dos capítulos
da sentença confrontados pela impugnação) sem romper de maneira grave
o equilíbrio do juízo de segunda instância, tornando iniquamente gravosa
a posição do apelado. Tais razões, vindas à tona há não muitos anos, foram
acolhidas em alguns julgados recentíssimos.51
12 A querela nullitatis. – O remédio da apelação, surgido nos procedi-
mentos extra-ordinem, servia para reformar as sentenças injustas, não para
invalidar as sentenças nulas, que eram ineficazes de pleno direito. A nulidade
podia ser alegada como defesa contra a actio iudicati ou como réplica à excep-
tio rei iudicate ou em qualquer outra ocasião; e era a consequência não ape-
nas da inobservância das regras e garantias fundamentais do processo, como
46
MATHAUES HOMEM LEITAM, De gravaminibus, in “De iure lusitano”, tomus primus, Coimbra, 1736, qu. 3,
n. 45 e qu. 5, n. 57.
47
BATISTA, Paula. Compendio de teoria e prática do processo civil e comercial, Recife, 1855, §231, nota 2; RAMALHO.
Praxe brasileira, Rio de Janeiro, 1870, §340.
48
GUSMÃO, Sadi. Recursos cíveis e criminais. Rio de Janeiro, 1936, p. 43; GUIMARÃES, Machado. Do efeito devolutivo
da apelação. Revista Direito, v. I, p. 184 et seq., 1940; ANDRADE, Odilón de. Op. cit., p. 169; FAGUNDES, Seabra op.
cit., p. 175.
49
É característica a obstinação com que os autores alemães pretendem encontrar no antigo direito germânico a
origem do novo princípio, sem, contudo, consegui-lo.
50
De appellationibus, in Commentaria in Costitutiones seu Ordinationes regias, t. III, Lugduni, 1613, praef. n. 25 e 26.
51
N.T.: O CPC/73, por sua vez, resolveu a questão através do seu art. 500, que instituiu o chamado “recurso adesivo”,
fazendo ressentir a influência da solução francesa referida no texto.

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também da violação expressa do direito aplicável ao caso controvertido:


“si expressim sententia contra iuris rigorem data fuerit, valere non debet”
(Modestino, D. 49, 1, 19). Nula era, portanto, a sentença que julgava violando
o teor das leis em abstrato, enquanto era apenas injusta e, assim, sujeita a
apelação a sentença que julgava contra ius litigatoris, quer dizer, aplicando
erroneamente o direito ao caso concreto.52
O direito intermédio aceitou a distinção entre sentenças injustas e nulas,
e sobre ela construiu o seu sistema de correções. Contra as primeiras, era pro-
ponível a apelação; contra as segundas, podia-se alegar a nulidade. Mas, com
o intuito de tornar mais estáveis as sentença e mais seguras as relações jurí-
dicas, o direito canônico, a legislação estatutária e a doutrina desejaram que
tal nulidade, ao invés de permanecer indefinidamente oponível, sem limita-
ção de tempo, devesse ser suscitada por meio de um remédio oportuno, que
foi chamado de querela nullitatis,53 a qual não vinha definida nem como uma
impugnação nem como uma ação, mas como invocação do officium iudicis; e a
ela se acrescentou um prazo de proposição mais ou menos breve e normalmente
igual ao da apelação. Dessa maneira, preparava-se a junção dos dois remédios,
cuja oportunidade prática é evidente, e que se realizava com a fórmula: “Dico
sententiam nullam, et si qua est appello” (Glossa Non obtinebit a Cod. 7, 64, 1); e
acabou-se por admitir que, mesmo sem expressa proposição da querela, o juiz
da apelação pudesse conhecer também das eventuais nulidades.54 De tal modo,
vinha-se operando, de fato, a fusão das duas soluções em um único meio de
impugnação, vale dizer, a absorção da querela nullitatis na apelação.
Isso para as nulidades sanáveis. Aquelas mais graves, insanáveis,
sobreviviam, por sua vez, à formação da coisa julgada e podiam ser alegadas
com a proposição da querela nullitatis insanabilis, a qual, por analogia a uma
verdadeira e própria ação, era sujeita à prescrição ordinária.55
A fusão — quanto às nulidades sanáveis — dos dois remédios em um só,
já preparada na prática italiana, viria a realizar-se posteriormente na França,
onde prevaleceu o princípio “voie de nullité n’ont pas lieu en France”56 e a
querela desapareceu; todas as nulidades deveriam então ser arguidas com a
impugnação; com a apelação, ou, depois de preclusa ou decidida esta, com
dois novos meios de impugnação que lentamente vieram a adquirir sua fei-
ção definitiva: la requête civile e la demande en cassation.
O direito português regulou a matéria segundo os princípios do direito
comum, mas com uma terminologia mais próxima àquela romana do que à
medieval. De regra, as nulidades podem ser examinadas pelo juiz da apela-
ção, que deve procurar, tanto quanto possível, saná-las, evitando o mais pos-
sível uma pronúncia de nulidade do processo; e, após o trânsito em julgado

52
Cf. CALAMANDREI, Cassazione civile, Torino, 1920, I, p. 46.
53
Como se os referidos motivos práticos não bastassem por si só para explicar tal solução, a doutrina alemã pretendeu
enxergar aí a consequência de um suposto princípio da validade formal da sentença, que teria sido próprio do
direito primitivo germânico. Trata-se de uma simples hipótese, carente de demonstração.
54
SCACCIA, De appell., qu. 11, n. 114; ALTIMARO BLASIO, Tractatus de nullitatibus sententiarum, Venezia, 1701, rub.
I, qu. 3, n. 25.
55
B. ALTIMARO, op. cit., rub. I, qu. 3, n. 2; rub. VIII, qu. 3, n. 3.
56
REBUFFE, op. cit., art. 11, gl. II, n. 19.

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da sentença, não podem ser alegadas de forma alguma (Ord. Fil., Liv. III,
tít. 63). Existem, no entanto, algumas nulidades mais graves, por conta das
quais a sentença “é per direito nenhuma” e “nunca em tempo algum passa
em cousa julgada”, de modo que não é necessário contra ela apelar (Liv. III, tít.
75); e a nulidade pode ser alegada mesmo quando se pretenda a sua execução
(tít. 81, §1). As causas de nulidade são aquelas habituais: ausência de citação
do réu, contrariedade a outra sentença transitada em julgado, suborno ou
incompetência do juiz, falsidade da prova e, por fim, contrariedade a “direito
expresso”, que se dá quando o juiz julgue em modo “diretamente contrário
ao que dispõem as Ordenações”, não, ao contrário, quando seja contrária ao
“direito da parte” (tít. 75, com clara referência ao que afirmava Macro na pas-
sagem recordada mais acima, da qual se reproduzem também os exemplos).
A doutrina, em pleno acordo também aqui com aquela do direito comum,
considera a expressão “direito expresso” como equivalente a “direito em
tese”, em contraposição a “direito em hipótese”, distinção que corresponde,
na realidade, àquela entre questão jurídica abstrata e concreta.57
O rigor das expressões usadas para qualificar a nulidade poderia fazer
crer que se tratasse de nulidade absoluta. Era, no entanto, lição recorrente que
a pronúncia de nulidade deveria ser requerida pela via da habitual querela
nullitatis, sujeita apenas a prescrição trienal.58 De tal forma, compreende-se
que Pereira e Souza pudesse afirmar que “a sentença tem os efeitos da coisa
julgada, enquanto não anulada”,59 ao que fazia eco, no Brasil, Pimenta Bueno,
escrevendo: “as sentenças eivadas de nulidade absoluta não perecem ipso
iure em todo o rigor da expressão, ao contrário produzem efeitos até que
sejam declaradas nulas”.60 Realmente, a lei portuguesa de 19 de dezembro
de 1843, art. 317, fala de “ação de nulidade e de rescisão da sentença”; e no
Brasil, o art. 681 do Reg. 737 dispõe que “a sentença póde ser anullada por
meio da acção rescisoria”. A evolução pode-se considerar completada quando
o Código Civil brasileiro reduziu o prazo de prescrição de tal ação para cinco
anos61 (art. 178, §10, VIII)62 e o vigente Código de Processo Civil excluiu a
possibilidade de a nulidade ser alegada nos embargos à execução. A antiga
nulidade absoluta tornou-se, portanto, uma simples anulabilidade, que pode
ser proposta por meio de um remédio excepcional, limitado no tempo e des-
tinado a impugnar a coisa julgada.
Dessa forma, a querela nullitatis sobrevive com o nome de ação rescisó-
ria, sendo proponível no prazo de cinco anos perante as câmaras civis reu-
nidas do tribunal de apelação, nos seguintes casos: sentença prolatada por
juiz subornado ou incompetente em razão da matéria, ou contrária à coisa
julgada ou contrária à literal disposição de lei ou quando fundada em prova

57
Para a análoga doutrina italiana, cf. CALAMANDREI, op. cit., p. 160 et seq.
58
SILVA, Commentaria ad Ordinationes, Olissipone, 1731, liv. III, tít. 75, n. 2 et seq.; Melo Freire, op. cit., liv. IV, tít. 23,
§20.
59
PEREIRA E SOUSA. Primeiras linhas, cit., I, nota 578.
60
BUENO, Pimenta. Apontamentos sobre as formalidades do processo civil. Rio de Janeiro, 1850, p. 93.
61
N.T.: O CC/02 não se ocupou da matéria, deixando a sua disciplina a cargo da legislação processual.
62
N.T.: A versão utilizada nessa tradução apresenta erro de datilografia, vez que lá é apontado o art. 78, §10, VIII,
do CC de 1916, e não o art. 178, §10, VIII, como correto. A tradução corrigiu a falha no próprio corpo do texto.

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Institutos do direito comum no processo civil brasileiro 61

cuja falsidade se tenha apurado no juízo criminal (art. 798 Cód. proc. civil).63
O caso mais frequente e também mais delicado é o referente à contrariedade
a literal disposição de lei: tendo presente a outra norma que estabelece que “a
injustiça da sentença ou a má apreciação da prova não autorizam o exercício
da ação rescisória” (art. 800),64 vê-se reproduzida, substancialmente, a clássica
distinção entre “direito em tese” e “em hipótese”, entre “direito expresso” e
direito “da parte”. Escreve, de fato, Pontes de Miranda: “A sentença é nula
quando ofende o direito objetivo e não quando lesa o direito dos litigantes.
Uma coisa é a sentença injusta, lesiva ao direito subjetivo invocado pela parte,
outra coisa é a sentença nula, que ofende o direito objetivo. O direito subjetivo
é protegido somente pelos meios de impugnação. Das sentenças que não
ofendem a lei, mas apenas os direitos dos litigantes, poder-se-á dizer que são
iníquas, não que ofendam o direito constituído”.65
Trata-se, todavia, de uma ação de anulação sui generis, que carrega con-
sigo muito de um verdadeiro e próprio meio de impugnação, uma vez que, se
a sentença vem a ser anulada, o mesmo tribunal decidirá a causa novamente
(e a doutrina qualifica este fato como uma cumulação do iudicium rescindens
com o rescissorium).66
A jurisprudência não admite ação rescisória por violação da lei pro-
cessual, mas apenas por violação do direito material67 e decide em concor-
dância que tal ação é admissível quando a sentença ofenda diretamente um
texto expresso de lei, não, ao contrário, quando ofenda uma regra que seja o
resultado de deduções mais ou menos fundadas,68 nem quando tenha apenas
mal interpretado uma norma de lei.69 70 Pode-se, assim, dizer que ao tribunal
chamado a conhecer de uma ação rescisória é deixada uma grande latitude
de apreciação para decidir se o error in iudicando tem, no caso concreto, as
características da violação do ius in thesi. O Supremo Tribunal Federal, em
uma decisão muitas vezes citada (25 de novembro de 1941, Archivo judiciario,
vol. 61, 294), afirmou que o intérprete e o juiz não se devem preocupar tanto

63
N.T.: O CPC/73 reduziu o prazo para a propositura da ação rescisória para 2 anos (art. 495), nas hipóteses elencadas
no art. 485. Subsiste ainda, ao lado da ação rescisória, a querela nullitatis insanabilis nas hipóteses de ausência
de citação do réu ou por ausência de citação válida de um dos litisconsortes necessários (STJ. 3ª Turma. REsp
nº 12.586/SP. Rel. Min. Waldemar Zveiter, j. em 08.10.1991. DJ, p. 15684, 04 nov. 1991), passível de ser levantada
em sede de impugnação de cumprimento de sentença (art. 475-L, I). (MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO,
Daniel. Código de Processo Civil comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 491-492).
64
N.T.: Tal norma não veio reproduzida no CPC/73.
65
Ação rescisória, Rio de Janeiro, p. 166; conf. Odilón de Andrade, op. cit., p. 80, 87.
66
MIRANDA, Pontes de. Ação rescisória, cit., p. 138.
67
Trib. Just. S. Paulo, 23 de agosto de 1946, Revista Forense, v. 111, 157; Trib. Just. Minas Gerais, 29 de janeiro de 1945,
Revista Forense, v. 101, 329.
68
Supremo Tribunal Federal, 22 de novembro de 1944, Revista Forense v. 105, 67; Trib. Just. S. Paulo, 26 de março de
1943, Revista Forense, v. 95, 592.
69
Trib. Just. S. Paulo, 14 de julho de 1944, Revista Forense, v. 100, 78; Trib Just. Distrito Federal, 18 de fevereiro de
1943, Revista Forense, v. 97, 400.
70
N.T.: Como bem anotado, a palavra lei vai “empregada no art. 485, V, CPC em sentido amplíssimo — corresponde
a ‘direito’ e autoriza a rescisão de coisa julgada em que há violação de princípio, regra ou postulado”, razão pela
qual não persevera o entendimento de impossibilidade de rescisão de julgado que tenha violado norma processual,
ainda mais tendo em conta a estatura constitucional do processo. Outrossim, na atualidade, “a jurisprudência
exige que a decisão tenha outorgado sentido ‘aberrante’ à legislação para autorizar a ação rescisória (STJ, 6ª turma,
REsp 9.086/SP, rel. Min. Adhemar Maciel, j. em 29.04.1996, DJ 05.08.1996, p. 26.424)” (MARINONI, Luiz Guilherme;
MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 493). Ademais,
“não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei quando a decisão rescindenda se tiver baseado em
texto legal de interpretação controvertida nos tribunais” (Súmula nº 343 do STF).

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62 Enrico Tullio Liebman

com a maneira direta ou indireta, declarada ou implícita da ofensa ao teor


da lei, mas sim considerar a extensão e a gravidade da violação, e admitir a
ofensa a direito expresso unicamente quando essa for grave, flagrante, não
suscetível de dúvidas ou incertezas.
Esse conceito arraigou-se tão profundamente na tradição jurídica brasi-
leira que encontra aplicação inclusive no recurso extraordinário ao Supremo
Tribunal Federal, que também é de criação recente e que assume funções
em parte análogas àquelas da nossa Corte de cassação (e propriamente fun-
ções de unificação da jurisprudência dos tribunais do Estados federados, na
defesa do direito federal).71 Depois do que se disse, não se fazem necessárias
outras observações para evidenciar a diversidade de tal conceito em compa-
ração àquele tanto mais amplo da “violação ou falsa aplicação de uma norma
de direito”, que abre a estrada para o nosso recurso de cassação.
13 O “processus executivus”. – Muito conhecida é a história da eficácia
executiva reconhecida pelos estatutos e pela doutrina medieval aos docu-
mentos de garantia ou de confissão.72 Embora, em princípio, fosse reconhecida
aos instrumenta a executio parata, a prática criou para esses um verdadeiro e
próprio processus sumarius executivus, misto de execução e cognição, em que,
sem as solenidades do processo ordinário e, assim, sem libelo nem contesta-
ção da lide e (em muitos lugares) sem prévia penhora de bens ao devedor,
o juiz examinava a contestação do devedor e julgava-a sumariamente, com
reserva de juízo ordinário em separado.73
O direito francês eliminou, posteriormente, esse processo sumário
misto, equiparando rigorosamente a eficácia dos instrumentos àquela das
sentenças e regulando para essas e para aqueles a execução direta pura e
simples,74 da qual derivou a nossa figura dos título executivos extrajudiciais,
acolhida também no direito germânico e austríaco vigente.
As coisas não se passaram assim nos países em que continuaram a ser
seguidas as doutrinas do direito comum, onde sobreviveu o processus exe-
cutivus: na Alemanha, até a promulgação da CPO75 e nos países de língua
espanhola e portuguesa.
Na Espanha, o instituto foi acolhido pela primeira vez na lei promulgada
em Sevilha pelo rei Henrique III em 139676 e foi por várias vezes aperfei-
çoado posteriormente, até receber uma regulamentação definitiva na Nueva
Recompilación do ano 1567, Liv. III, tít. 21, l. 1 e 2.77
71
N.T.: Com o advento da Constituição de 1988, tais funções passaram a ser exercidas pelo Superior Tribunal de
Justiça, cabendo ao STF a última palavra em matéria constitucional.
72
BRIEGLEB, Geschichte des Executiv-Prozesses, 2ª ed., Stuttgart, 1845, Chiovenda, Istituzioni, cit., p. 98 e n. 74.
73
CHIOVENDA, Sentenza di condanna con riserva, n. 5 et seq., in Saggi, I, Roma, 1930, p. 130 et seq.; Liebman, Opposizioni
di merito nel processo di esecuzione, 2ª ed., Roma, 1936, p. 69 et seq.
74
LIEBMAN, op. cit., p. 81 et seq.
75
MITTERMAIER, Die summarischen Verfahrensarten, Bonn, 1826, §2; LINDE, Lehrbuch des geimenen Civiprocesses,
Bonn, 1828, §327 e 360.
76
Ver o texto em BRIEGLER, op. cit., p. 157.
77
É dessa forma que também nos países de língua espanhola encontramos o “juicio ejecutivo”, diferente da simples
execução forçada da sentença, e admissível para os créditos fundados em instrumentos públicos, escritos privados
reconhecidos, cambiais, etc.; procedimento misto de cognição e execução, em que se decide sobre as exceções do devedor
em via sumária, com reserva de posterior juízo ordinário. Nesse sentido, dispõem, por exemplo, os arts. 464 e seguintes
do Cód. proc. civ. da Capital federal argentina e 873 et seq. do Cód. proc. civ. do Uruguai. Cf. COUTURE, Fundamentos
del derecho procesal civil, Buenos Aires, 1942, p. 279 e 291; ALSINA, Tratado, cit., v. III, p. 136 et seq.; LIEBMAN, Sobre el
juicio ejecutivo, in: Estudios de derecho processal en honor de Hugo Alsina, Buenos Aires, 1946, p. 385 et seq.

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Institutos do direito comum no processo civil brasileiro 63

Em Portugal, as coisas se passaram um pouco diversas. A lei (Ord. Fil.,


Liv. III, tít. 25) preferiu instituir a favor dos créditos fundados em instrumento
público ou reconhecido um verdadeiro processo de cognição sumária, em
que a condenação vinha pronunciada com base em uma instrução sumária
e podia ser executada em modo provisório, enquanto as exceções de longa
averiguação vinham reservadas para um exame em separado (muito simi-
lar, portanto, ao processo cambiário com reserva do atual direito italiano e
germânico).78 Mas ao lado dessas figuras especiais permaneceu o processus
executivus, admitido para os créditos do fisco, para as pensões enfitêuticas
e para alguns outros créditos que a doutrina enumerou minuciosamente: a
ação tem início com a penhora, a que se segue um prazo em que o devedor
pode oferecer oposição, que tem eficácia suspensiva, decidindo o juiz, por
meio de sentença, sobre a existência do crédito e, assim, sobre a regularidade
da penhora e sobre o prosseguimento da execução.79
O Código brasileiro vigente reunificou os dois institutos, na prática não
muito diferentes entre si, restabelecendo, com alguma modificação, a figura do
processus executivus. De fato, pela norma do art. 298, a “ação executiva” é pro-
ponível para os créditos de algumas categorias profissionais, para os créditos
hipotecários, para aqueles fundados em instrumento público ou por escrito
particular, cambial, cheque e algumas outras hipóteses. A ação tem início com
a exortação do devedor ao pagamento no prazo de 24 horas, passadas as quais
se procede a penhora; o devedor tem, após, o prazo de dez dias para contestar a
demanda e o juiz decide com sentença provisoriamente executiva. A limitação
das exceções foi derrubada, sendo a cognição, assim, plena e exauriente. Do
seu perfil sumário permanece apenas o rastro de executabilidade provisória da
sentença. De outra parte, o credor é plenamente garantido desde o início com a
enérgica medida da penhora antecipada. Malgrado as diferenças existentes em
comparação ao processus executivus da prática medieval, reconhecemos, ao fim,
nessa “ação executiva” do direito brasileiro aquele caráter misto de cognição e
execução que é típico de tal forma de procedimento e da qual não se tem mais
exemplo no nosso direito hodierno.
A execução pura e simples tem lugar, por sua vez, no Brasil apenas com
base em sentença de condenação, executável, em regra, somente quando não
esteja mais sujeita a apelação.80
78
A prática estendeu essas ações privilegiadas também para as cambiais: MORAIS, Tratactus de executionibus
instrumentorum et sententiarum, 2ª ed., Coimbra, 1729, liv. I, cap. 4, §III, n. 69; PEGAS, op. cit., no comentário ao
indicado título das Ordenações. O primeiro dos autores citados, ao comentar dito dispositivo, elogia o legislador
português por haver adotado uma via intermediária entre aquela excessivamente longa do juízo ordinário de
cognição, própria do direito romano, e aquela demasiado brusca da imediata penhora, própria das leis da Espanha
e da França e dos estatutos italianos (op. cit., liv. I, cap. 1, n. 16).
79
MORAIS, op. cit., liv. I, cap. 4, n. 1 et seq.; LOBÃO, Tratado prático do processo executivo sumário, Lisboa, 1868, p. 5 et
seq., 79 et seq.
80
N.T.: O CPC/73 arquitetou o processo executivo de maneira um tanto diversa: em sua feição original, eliminou
a distinção entre ação executiva (créditos elencados no art. 298 do CPC/39) e ação executória (execução de
sentença), disciplinando o processo executivo de maneira idêntica (salvo no que tange à amplitude de cognição
nos embargos do devedor), fosse o título executivo judicial (art. 584) ou extrajudicial (art. 585), na linha dos
ensinamentos do próprio Liebman (sobre isso, v. a Exposição de Motivos do Código elaborado por Alfredo Buzaid).
A reforma trazida pela Lei nº 11.232/2005, porém, mudou novamente o processo executivo, que sobreviveu como
procedimento autônomo apenas para a execução de títulos extrajudiciais e alguns judiciais (art. 475-N), já que a
anterior execução de sentença passou a constituir uma segunda fase de um procedimento sincrético (cognitivo e
executivo), denominada cumprimento de sentença (arts. 475-I a 475-R).

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64 Enrico Tullio Liebman

Riassunto: La traduzione ha voluto offrire in lingua portoghese uno dei saggi


più interessanti di Enrico Tullio Liebman. In una dimostrazione di tutta la
profondità e consistenza della sua conoscenza sulla formazione storica del
diritto europeo, il Liebman enstusiasma per la perfetta sapevolenza sulla
genesi degli ordinamenti giuridici latino-americani. Il saggio, dunque,
discorre per primo su tutte le vicende storiche che maggiormente hanno
contribuito per la formazione del diritto del “nuovo mondo”, in speciale,
del diritto brasiliano. Sucessivamente, e volendo provare le sue idee, analisa
l’origine di alcuni dei più importanti istituti processuali, mettendo in evidenza
la raggione per la sua comprensione nel modo come si faceva all’epoca – per
di più, fino ai primi anni dopo che è stato in vigore il Codice di Processo
Civile di 1939. Non è difficile capire, dopo che si ha letto le righe che seguono,
la raggione perché il maestro italiano ha fatto riverberare così fortemente la
sua influenza e della sua scuola, il che ha tornato lui, senza dubbi, il maggior
risponsabile per il modo in cui andò inteso il diritto processuale civile da
grande parte della dottrina brasiliana nei tre quarti finali del secolo scorso.
Parole-chiavi: Formazione Storica del Diritto. Diritto Iberico Medievale.
Fueros Spagnoli. Siete Partidas. Ordenazioni Portoghesi. Diritto Comune;
Colonizzazioni. Invasione Francese. Codici Napoleonici. Formazione
Sotrica del Diritto Brasiliano. Istituti del Diritto. Comune nel Processo
Civile Brasiliano.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

LIEBMAN, Enrico Tullio. Institutos do direito comum no processo civil brasileiro.


Tradução e notas de adaptação de Otávio Domit. Revista Brasileira de Direito Processual –
RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 71, p. 43-64, jul./set. 2010.

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Sistema de enjuizamento escalonado (ou procedimento judicial funcionalmente escalonado). Repensando... 65

Sistema de enjuizamento
escalonado (ou procedimento
judicial funcionalmente escalonado).
Repensando o modelo de processo
Glauco Gumerato Ramos
Mestrando em direito processual na Universidad Nacional de Rosario (UNR – Argentina).
Professor de direito processual civil (graduação, extensão e pós-graduação lato sensu). Membro
dos Institutos Brasileiro (IBDP), Ibero-Americano (IIDP) e Panamericano (IPDP) de Direito
Processual. Advogado em Jundiaí-SP. <http://www.glaucogumerato.com.br>.

Palavras-chave: Sistema de enjuizamento escalonado. Procedimento judicial.


Poder Judiciário. Processo penal.

Na perspectiva do constitucionalismo moderno não há dúvida de que


a missão do Poder Judiciário, através de seus juízes, é atuar de modo a evitar
lesão ou ameaça a direitos (CR, art. 5º, XXXV). Através do sistema de checks and
balances (= freios e contrapesos) consagrado — e não criado, vale lembrar —
a partir das ideias de Montesquieu, sabe-se que a atuação do Judiciário
deverá estar legitimada na autorização que lhe concede o Legislador, e tudo
na perspectiva constitucional.
Eis aí ponto de reflexão onde está radicada a “tese” que aqui será defendida.
Projetado o controle do Poder através da dinâmica da tripartição para
o ambiente do processo jurisdicional, tenho para mim que o sistema de enjui-
zamento constitucionalmente mais legítimo será aquele em que, para a for-
mação do pronunciamento definitivo do Poder Judiciário, o procedimento se
desenvolva perante juízes (= pessoas físicas) distintos. É dizer: deve haver um
juiz para a urgência, um para a instrução e um para a sentença, que deve atuar
na respectiva etapa de competência. Este sistema de enjuizamento — que em
sua essência deve prevalecer tanto no processo civil, quanto no penal — creio
possa ser denominado de sistema de enjuizamento escalonado ou procedimento
judicial funcionalmente escalonado.
Através de um sistema de enjuizamento escalonado (= ou procedimento judicial
funcionalmente escalonado) o resultado da atividade jurisdicional (= sentença) seria
precedido por etapas nas quais seria possível um maior grau de imparcialidade
funcional do juiz — já que impossível alcançar a imparcialidade subjetiva —, legi-
timando a jurisdição (= Poder) diante do devido processo legal (= Garantia).
Nos sistemas de enjuizamento que conhecemos, o desenvolvimento do
processo rumo à formação do pronunciamento de mérito fica a cargo e sob
o “governo” de um único juiz — pessoa física — que exerce sozinho toda a

Enjuizamento e não ajuizamento, que em português tem significado distinto do pretendido no texto. Ajuizamento para
nós tem significado de propositura da ação; enjuizamento, por sua vez, aqui é utilizado em referência à dinâmica
de desenvolvimento do processo até sua conclusão. Será inquisitivo, o processo que se desenvolve sob a direção
inflexível do juiz. Dispositivo, quando em seu desenvolvimento há destaque para a atuação e iniciativa dispositiva
da parte, ou seja, a parte arca com o ônus de sua eventual falta de diligência.

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magnitude do Poder que a Constituição confere ao Judiciário. É claro que o


sistema recursal, em certa medida, acaba viabilizando um procedimento
escalonado, já que o trânsito em julgado ocorrerá, via de regra, após o curso do
processo por dois graus de jurisdição. Mas o fato é que a etapa mais importante
do procedimento voltado à formação da sentença ocorre perante o mesmo e
único juiz, cujo sistema processual lhe outorga o enorme Poder de deferir a
tutela de urgência, de dirigir o procedimento probatório — inclusive com
amplos poderes inquisitivos — e ao final, e após natural e inegável abalo subjetivo
de sua imparcialidade, ainda terá o Poder de sentenciar sobre o mérito.
Note-se que o sistema de freios e contrapesos surge na teoria política exa-
tamente como técnica de limitação do poder até então concentrado nas mãos
daquele que, grosso modo, executava, legislava e julgava, à guisa de um ser
político onipotente cujo “governo” necessariamente arbitrário — para o bem
ou para o mal, mas indiscutivelmente arbitrário — regia a vida dos demais.
Nós os processualistas não nos demos conta de que um sistema no qual
é permitido ao mesmo juiz (= pessoa física) i) conceder tutela de urgência, ii)
dirigir o procedimento probatório inquisitivamente e ao final iii) pronuncia-se
sobre o mérito, evidentemente é um sistema perverso que viabiliza a figura
de um super juiz autorizado a decretar um ato de poder (= sentença) na exata
medida de seu arbítrio. Em outras palavras, o juiz “governa” o cenário pro-
cessual absolutamente sozinho, e ainda que seus atos sejam impugnáveis
através de recurso, a verdade é que a sentença decretada resultará de sua
exclusiva “presidência” do processo.
Importante destacar que na seara do processo penal o anseio da doutrina
é que cada vez mais se formem sistemas processuais fundados no modelo acu-
satório, mesclando (= modelo misto), ou mesmo deixando de lado, o modelo
inquisitivo que por séculos vigorou e ainda dele se tem registros em alguns
países da América Latina.
Recentemente, Ada Pellegrini Grinover foi categórica em reconhecer que
no processo penal “a manutenção do juiz nas diversas fases do processo pode
contaminar sua imparcialidade”, tal como acontece, por exemplo, no Brasil,
Honduras, México, Paraguai, Uruguai e Venezuela, pois nesses países “o juiz das
investigações preliminares e do recebimento da acusação é o mesmo que julga
a causa”. E, por isso, prossegue afirmando que “é forçoso reconhecer que nem
sempre a estrutura do processo penal é consentânea com a imparcialidade”.
E se no processo penal a doutrina reconhece essa distorção, não há qualquer
razão de ordem constitucional, jurídica ou política para que essa mesma lógica de
raciocínio seja afastada do processo civil. Afinal, o procedimento probatório nada
mais é do que uma etapa procedimental de incidência no processo jurisdicional.

O resultado do que se propõe pode ser assim sintetizado: o juiz da urgência NÃO pode ser o mesmo da sentença; ou,
ainda, o juiz da instrução NÃO pode ser o mesmo da resolução. Admitir-se o contrário é ultra valorizar a jurisdição (=
poder) em detrimento do devido processo (= garantia) de modo a tratar a imparcialidade judicial como mera garantia
formal ao invés de realidade a ser concretizada. E, isso, ainda que estejamos acostumados com o sistema de
enjuizamento no qual todas essas inegáveis representações de poder (= urgência, instrução e resolução) estejam
concentradas nas mãos de um mesmo juiz até a prolação da sentença de mérito.

Todos os trechos citados entre aspas podem ser conferidos em: Ada Pellegrini Grinover, “Os poderes do juiz penal
na América Latina”, na obra coletiva Os poderes do juiz e o controle das decisões judiciais: estudos em homenagem à
Professora Teresa Arruda Alvim Wambier (MEDINA, José Miguel Garcia et al. (Coord.). São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008. p. 177, em especial).

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Nesse panorama torna-se imperioso que o sistema de enjuizamento seja


estruturado a partir de dois valores constitucionais fundamentais: a jurisdição
(= Poder) e o devido processo (= Garantia). A prevalência de um desses valores
sobre o outro acarreta desequilíbrio democrático e faz com que o produto da ativi-
dade desenvolvida pelo Poder Judiciário careça de legitimidade constitucional.
É possível sintetizar a ideia aqui exposta dessa maneira: o juiz da urgên-
cia não pode ser o mesmo da sentença; ou, ainda, o juiz da instrução e/ou da prova
de ofício não poderá ser o mesmo da resolução do mérito.
Essa dinâmica é necessária para que não se viole a imparcialidade decor-
rente da garantia do devido processo legal. Não se nega que é constitucionalmente
importante a atuação do juiz de modo a fazer valer o seu poder, viabilizando que
o Poder Judiciário julgue “bem” e adequadamente, de modo a operar a exata
resolução do litígio. É imperioso, todavia, que se alcance esse resultado garantindo
ao jurisdicionado todas as derivações do devido processo legal, tal como previsto
constitucionalmente. E a imparcialidade é um desses imperativos.
Se nossa cultura processual deixa a sentença a cargo do mesmo juiz que
dirigiu o procedimento probatório, e essa dinâmica passou para a história
como correta, é mister que se tenha presente que as Constituições da atuali-
dade garantem ao indivíduo e à sociedade o direito fundamental à observân-
cia do due process of law em toda a sua dimensão.
Dessa maneira, é legítimo sustentar que o sistema de enjuizamento mais
adequado ao modelo constitucional de processo da atualidade deva ser aquele
onde as funções relevantes do juiz no curso do procedimento sejam compartilha-
das entre mais de um juiz pessoa física. A missão de bem julgar é do Poder Judiciário
e se faz concreta através de seus juízes. Mas não há qualquer regra constitucional
que imponha deva ser o mesmo juiz a autuar em todas as etapas do procedimento.
Ao contrário, se as constituições e os pactos internacionais estabelecem como valor
fundamental a garantia do devido processo, onde o julgamento deva ser proferido
por um juiz (= pessoa física) imparcial, não há nada que impeça que a providência
de urgência, a direção do procedimento probatório e, por fim, a prolação da sen-
tença definitiva seja gerida por juízes diferentes, de modo a que se garanta que o
Poder Judiciário atinja seu objetivo principal (= sentença de mérito) da maneira
mais adequada às garantias constitucionais estabelecidas para o processo.
Em síntese, é o transporte do checks and balances para o ambiente do pro-
cesso jurisdicional, para que o poder dos representantes do Poder Judiciário
seja diluído no curso do procedimento. Evita-se, como isso, a figura do juiz
onipotente e dos riscos que invariavelmente o respectivo acúmulo de poder
possa trazer ao jurisdicionado. Relativiza-se, portanto, o arbítrio judicial.
Creio seja possível nomear um sistema processual dessa natureza de
sistema de enjuizamento escalonado ou, ainda, procedimento judicial funcionalmente
escalonado. Aliás, o nome que se queira dar ao fenômeno processual assim
concebido é pouco relevante. Sugiro essas denominações apenas como ponto
de partida para reflexões mais precisas e aprofundadas.
E como seria seu funcionamento?
Simples. Divide-se o procedimento judicial voltado à formação da
sentença de mérito de modo a que as funções do juiz (= pessoa física) sejam
diluídas no respectivo desenvolvimento.

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68 Glauco Gumerato Ramos

Haveria a atuação de juízes diferentes para cada uma das mais


relevantes etapas procedimentais, ou seja, um juiz para a urgência, um juiz
para o procedimento probatório e, finalmente, um juiz para o decreto da sentença
definitiva. Nesse modelo, os juízes das etapas precedentes ao momento do
julgamento de mérito poderiam exercer na plenitude toda a dimensão de seu
poder (= jurisdição) sem que lhes fosse imputado o vício da imparcialidade.
E isso já que outro seria o juiz responsável pela sentença de mérito, estando
com seu espírito livre das impressões subjetivas que as fases anteriores de
urgência ou de instrução acarretam à condição humana.
Raciocinemos a partir de um exemplo.
Iniciado o processo onde o demandante pede uma medida de urgência,
com base nas regras prévias de competência a causa ficaria afeta a um determi-
nado juiz da urgência e também ao juiz responsável para a prolação da sentença
de mérito. O juiz da urgência examinaria esta pretensão deferindo-a ou indefe-
rindo-a e, na sequência, remeteria os autos ao juiz da sentença. Havendo neces-
sidade de ser iniciado o procedimento probatório para a confirmação de fatos
controvertidos, então o juiz da sentença remeteria os autos ao juiz da instru-
ção, que conduziria a etapa instrutória com imediação e, se necessário, ainda
poderia determinar a prova de ofício. Encerrado o procedimento probatório, os
autos retornariam ao juiz da sentença que, de forma absolutamente imparcial,
pois não presidiu as etapas anteriores, julgaria o mérito da causa resolvendo o
litígio, aí sim, da forma mais justa possível. Tenho para mim que esse modelo
inauguraria o verdadeiro processo justo reclamado pela doutrina. Todas essas
etapas, obviamente, também controladas através de recurso.
Creio, ainda, que haveria um aumento da produtividade dos juízes e isso
conduziria também à concretização do princípio da razoável duração do processo e da
celeridade, pois cada um dos juízes responsáveis pelas respectivas etapas ficaria
encarregado de concentrar suas energias na conclusão da fase que lhe compete.
Penso, por fim, que não seria o caso de se objetar que “a escassez do número
de juízes inviabilizaria esse modelo de processo”. Basta reorganizar suas com-
petências estabelecendo-as na perspectiva de um procedimento funcionalmente
escalonado, aproveitando-se os juízes que já se dispõem.
E, em definitivo, essa reengenharia no modelo processual organizado com base
num procedimento funcionalmente escalonado seria possível através do redimensiona-
mento das competências dos órgãos judiciais. No caso do Brasil, isso seria permitido,
inclusive através da competência que a Constituição da República confere ao Estado-
federado para legislar sobre procedimento e organização judiciária (CR, art. 24, XI).

Jundiaí, abril de 2010.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

RAMOS, Glauco Gumerato. Sistema de enjuizamento escalonado (ou procedimento


judicial funcionalmente escalonado): repensando o modelo de processo. Revista Brasileira
de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 71, p. 65-68, jul./set. 2010.

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Pedido de reconsideração 69

Pedido de reconsideração
Jonathan Iovane de Lemos
Advogado. Especialista em Direito Processual Civil e Mestrando em Direito pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

Palavras-chave: Pedido de reconsideração. Preclusão. Código de Processo


Civil (CPC).
Sumário: 1 Notas introdutórias – 2 Pedido de reconsideração – Elementos –
2.1 Conceito e conteúdo – 2.2 Origem e natureza jurídica – 2.3 Hipóteses de
cabimento – 2.3.1 Preclusão – 2.3.1.1 Preclusão para o juiz e para as partes –
Alcance dos artigos 471 e 473 do CPC – 2.3.1.2 Síntese – 2.4 Atos atacados
pelo pedido de reconsideração – 2.5 Prazo – 2.6 Interposição simultânea
com recurso e litigância de má-fé – 2.7 Legitimidade – 2.8 Competência –
2.9 Aplicação do princípio da fungibilidade no pedido de reconsideração –
2.10 Efeitos – 2.11 O princípio do contraditório e o pedido de reconsideração –
2.12 Pedido de reconsideração e embargos de declaração – 3 Considerações
finais – Referências

1 Notas introdutórias
A precípua função do processo, em virtude do monopólio da jurisdi-
ção, está na proteção dos interesses individuais e da coletividade, mediante a
aplicação do ordenamento jurídico, sendo, indefectivelmente, em seu desen-
lace, um instrumento de realização da justiça.
Sob esse foco, cumpre ao legislador determinar o processo de maneira
a torná-lo rápido, efetivo e justo, entregando à parte o bem da vida almejado,
devendo ser estruturado em tantos atos quantos sejam necessários para
alcançar a sua finalidade.
Todavia, o processo, por mais que busque esforços na tentativa de
alcançar uma prestação jurisdicional célere, que resolva, de maneira irrepreen-
sível, os conflitos intersubjetivos existentes, ainda acarretará, de maneira
paradoxal, um inconformismo à(s) parte(s) litigante(s). A solução estatal, à
primeira vista, nunca desfrutará de validade perante o polo sucumbente, já
que a irresignação é característica indissociável da condição humana.
A permissão para impugnação das decisões judiciais assegura o aper-
feiçoamento do ato judicial, possibilitando a reparação de qualquer erro exis-
tente, se existente, no conteúdo do provimento, apaziguando-se verdadeira-
mente os litigantes.
Entretanto, a ânsia das partes em recorrer não se dá por satisfeita com os meios
legais existentes, fato que “desbravou outros caminhos para desafiar os pronuncia-
mentos do órgão judiciário”, originando os chamados sucedâneos recursais.

RIBEIRO, Darci Guimarães. La Pretension Procesal y La Tutela Judicial Efectiva: Hacia una Teoría Procesal Del Derecho.
Barcelona: Bosch, 2004. p. 88-89.

BUZAID, Alfredo. Exposições de Motivos do CPC. n. 5.

ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 31.

ASSIS, op. cit., p. 835.

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70 Jonathan Iovane de Lemos

Dentre os vários tipos de sucedâneos, um nos chama maior atenção: o


pedido de reconsideração, instituto criado pelo hábito forense, de larga utili-
zação pelas partes, mas que, contudo, ganhou pouco relevo na doutrina e na
jurisprudência, tendo, inclusive, sua legalidade questionada, chegando-se a
sustentar que o instituto era vedado por normas de direito público.
Em pesquisa doutrinária, não se contabilizou uma dezena de escritos
específicos sobre o tema, sendo que, dos autores que aceitaram a tarefa, pou-
cos foram além da discussão acerca das hipóteses de cabimento do pedido de
reconsideração, estando, ainda, muitos dos artigos desatualizados de acordo
com as recentes e inúmeras modificações formalizadas na Lex Instrumentalis.
Nesse quadro, levando em conta que o pedido de reconsideração pro-
cessual “é figura que, em hipótese alguma, pode, a nosso ver, ser ignorada
pelo estudioso do direito”,10 tentar-se-á, em linhas gerais, situá-lo, analisando
suas hipóteses de cabimento, seus requisitos, seu prazo, sua legitimidade, seu
conteúdo, seus efeitos, dentre outras questões pertinentes, tudo em conformi-
dade com o sistema processual vigente11 — pois de nada adianta a definição
de um instituto que não possui utilização por contrariar as disposições legais
existentes, baseando-se em um código hipotético, dissociado e inaplicável ao
cotidiano forense —, ressaltando, durante a evolução do artigo, a aplicação
da jurisprudência das Cortes Superiores sobre o assunto.12

WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Os agravos no CPC brasileiro. 4. ed. rev. atual. ampl. de acordo com a nova Lei do
Agravo (Lei n. 11.187/2005). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 479; PINTO, Teresa Arruda Alvim. Agravo
de instrumento. 2. tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 220.

Nesse sentido: NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos. 6. ed. atual. ampl. e reform. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004. p. 89; MARINONI, Tereza Cristina. Sobre o pedido de reconsideração: sucedâneo de recurso?.
Revista de Processo, São Paulo, n. 62, p. 300, abr./jun. 1991; USTÁRROZ, Daniel. Notas sobre os embargos de
declaração no Código de Processo Civil brasileiro. Revista Jurídica, São Paulo, v. 54, n. 344, p. 55-66, jun. 2006. p. 59;
CUNHA, Leonardo José Carneiro da. O pedido de reconsideração e suas hipóteses de cabimento. Revista Dialética
de Direito Processual, São Paulo, v. 4, p. 100-112, jul. 2003. p. 100; PESSOA, Flávia Moreira Guimarães. Pedido
de reconsideração e preclusão pro judicato no processo civil. Revista IOB de Direito Civil e Processual Civil, ano 7,
n. 42, p. 103-109, jul./ago. 2006. p. 103; OLIANI, José Alexandre Manzano. O contraditório nos recursos e no pedido
de reconsideração. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 143.

DIAS, Maria Berenice. Reconsideração versus revisão: uma distinção que se impõe. Disponível em: <http://www.
berenicedias.com.br>. Acesso em: 23 out. 2008.

Para Almir de Lima Pereira (Achados na lei. Belém: Cejup, 1988. p. 137): “o pedido de reconsideração não tem validade
jurídica, pois, não traçado como figura de juízo repele todos os princípios processuais que não o admitem”. No
mesmo sentido, Vicente Grego Filho (Direito processual civil brasileiro. 12. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 1997.
p. 316) aduz que o pedido de reconsideração “[...] pode transformar-se em grave deformação da ordem processual.
[...] tal medida é atípica, imprópria e deve ser banida da prática forense”.

VASCONCELOS, Antônio Vital Damos de. O pedido de reconsideração e a preclusividade das decisões judiciais.
Revista da AJURIS, Porto Alegre, ano 14, n. 40, p. 155-165, jul. 1987. p. 155.
10
PINTO, Teresa Arruda Alvim. Agravo de instrumento. 2. tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 221. No
mesmo sentido: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Os agravos no CPC brasileiro. 4. ed. rev. atual. ampl. de acordo
com a nova Lei do Agravo (Lei n. 11.187/2005). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006; NERY JÚNIOR, Nelson.
Teoria geral dos recursos. 6. ed. atual. ampl. e reform. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 89.
11
Habscheid (L’oggetto del processo nel diritto processuale civile tedesco. Rivista di Diritto Processuale, II serie, p. 452-
464, 1980. p. 458) argumenta que “[...] il giurista deve attenersi a quanto il legislatore dichiara: le sue sono possibilità
ristrette peché deve ubbidire alle legge, anche se non come uno schiavo, ma con una ubbidienza critica”.
12
Sobre a importância de análise de exemplos práticos, Ovídio Araújo Baptista da Silva (Jurisdição, direito material
e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 13) explica ser “[...] conveniente esta imersão no mundo concreto da
experiência, como fórmula salvadora contra o risco de reproduzirmos o estilo seguido pelos juristas acadêmicos que,
em suas grandes construções teóricas, esquecem-se com freqüência de que a linguagem humana, especialmente a
jurídica, é por natureza ambígua, sem terem presente a conveniência, de, através de exemplos objetivos, testarem
a correção e, mais do que isso, a coerência de suas construções”. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira (Teoria e prática
da tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 2) ensina que: “é claro que teorizar é tão importante quanto
extrair conseqüências práticas. O que se deve rejeitar são os extremos: o direito dos rábulas e dos práticos, que se
orientam pelas necessidades do momento; ou os direitos dos doutores, que não querem enxergar o mundo real e
suas mazelas, encerrados nos preconceitos dos gabinetes climatizados. Saudável é, sim, pensar dialeticamente a
relação entre direito, fato e valor, entre teoria e prática”.

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Pedido de reconsideração 71

2 Pedido de reconsideração – Elementos


2.1 Conceito e conteúdo
O termo “reconsiderar”, etimologicamente, possui os sentidos de “1.
retomar o exame de (questão); tornar a considerar; 2. pensar melhor; repen-
sar; 3. anular decisão já tomada; desdizer-se”, definições de curial importân-
cia, neste momento, para que se possa delimitar o conceito e o conteúdo do
pedido de reconsideração.
Preambularmente, nota-se que todas as definições conduzem ao sentido de
uma segunda reflexão sobre o assunto a reconsiderar, não importando a manu-
tenção/modificação dos fundamentos pretéritos existentes. Mas qual é a impor-
tância desta afirmação para conceitualização do “pedido de reconsideração”?
Veja-se: por exemplo, considerando-se que o pedido de reconsidera-
ção, compulsoriamente, deverá versar apenas sobre aquilo que foi decidido,
limitado pela linha argumentativa/provas analisada pelo juízo — solicitando,
apenas, uma nova reflexão sobre o tema e, consequentemente, a reconside-
ração da decisão —, o pedido feito pela parte que traz ao conhecimento do
magistrado uma nova interpretação ou novas provas sobre a questão em
apreciação, em um caso de indeferimento de antecipação de tutela, poderia
ser definido como pedido de reconsideração?
Tal fato é de suma importância, já que, se aceito o argumento de que
a modificação dos fundamentos e/ou a demonstração de um novo quadro
fático13 enseja a entrega de uma nova manifestação judicial, o prazo de início
para interposição de agravo será o da publicação da decisão que analisar o
“novo” fundamento e não o da primeira decisão indeferitória.
Defendendo esse último ponto, apenas com algumas divergências em
relação à legitimidade para realização do pedido, manifesta-se Maria Berenice
Dias, narrando que o pedido de revisão (nomenclatura utilizada pela autora
para qualificar o fenômeno acima narrado) é diverso do requerimento de recon-
sideração, pois naquele “a parte verte os seus fundamentos para que o juiz
reaprecie o que decidiu, atentando nos fundamentos que não foram sopesados
quando apreciou o requerimento da outra parte [...] (suspendendo-se) o prazo para
esgrimir agravo de instrumento”.14
Todavia, não concordamos com a autora, tendo em vista que o pedido de
reconsideração vislumbra a modificação de um decisum, pelo próprio juízo prolator,
imediatamente, não importando as razões utilizadas para tanto. O fato proeminente
do instituto em análise é o pedido de nova reflexão, para o mesmo juiz, sobre assunto
que já houve manifestação judicial, sendo irrelevante, via de regra, se existe ou não
linha argumentativa contemporânea, ou novas provas aptas a alteração da decisão.
13
OLIANI, José Alexandre Manzano. O contraditório nos recursos e no pedido de reconsideração. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2007. p. 166. Para o autor, “se o pedido de reconsideração vier acompanhado de provas novas sobre
fatos antigos e/ou de provas novas sobre fatos novos não será, propriamente, de um pedido de reconsideração,
uma vez que o aporte aos autos de provas e/ou fatos novos aumenta o grau de cognição do juiz, que, por tal razão,
estará autorizado a proferir uma nova decisão à luz desse novo contexto processual. [...] havendo alteração do
quadro fático-probatório, eventual decisão superveniente sobre a mesma matéria não será mera reconsideração,
mas sim um novo pronunciamento judicial com base em uma nova situação processual criada pela ampliação do
grau cognitivo pelas novas provas e/ou fatos agregados ao processo”.
14
DIAS, Maria Berenice. Reconsideração versus revisão: uma distinção que se impõe. Disponível em: <http://www.
berenicedias.com.br>. Acesso em: 23 out. 2008.

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Dentro desse quadro, o pedido de reconsideração pode ser definido


como “o requerimento apresentado pela parte ao órgão judiciário que profe-
riu o ato decisório para reformá-lo, retratá-lo ou revogá-lo”.15

2.2 Origem e natureza jurídica


O pedido de reconsideração, segundo Nelson Nery,16 tem suas origens nas
Ordenações Filipinas, mais especificamente em seu Livro III, Título 65, nº 2,17
evoluindo através do tempo, chegando a ser incorporado em alguns códigos
estaduais — v.g., Código de Processo Civil do Rio Grande do Sul (art. 528).18
Inobstante sua expressa previsão legal, o pedido de reconsideração nunca
obteve no Brasil natureza jurídica de recurso, ao contrário de outros países
latino-americanos, e.g., Argentina e Cuba, e europeus, v.g., Alemanha,19 mas
apenas o caráter de sucedâneo recursal.20 A legislação nunca o tratou como
meio legal de impugnação de decisões,21 apesar de possuir esse desiderato
processual, não obtendo, também, o efeito de impedir o trânsito em julgado
do decisum a ser reconsiderado.
Nota-se, portanto, que o instituto em comento já esteve positivado em
nossa legislação,22 mas nunca de forma sistematizada, restando, nos dias atuais,
previsto de maneira indireta em diversos artigos de nosso código,23 v.g., art. 527,
parágrafo único,24 dispositivos que reconhecem, inegavelmente, a sua existência.

2.3 Hipóteses de cabimento


A prática reconheceu e adotou os pedidos de reconsideração, seja pela
facilidade de sua interposição, seja pela ausência de quaisquer requisitos for-
mais e/ou substanciais na sua elaboração, fatos que acarretam em “economia
de tempo e dinheiro”25 às partes, elidindo quaisquer preocupações aparentes

15
ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 863.
16
NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos. 6. ed. atual. ampl. e reform. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2004. p. 89-90.
17
“Título LXV – Das sentenças interlocutórias, e como podem ser revogadas. [...] 2. E a sentença interlocutória póde
ser revogada até dez dias, contados do dia, em que foi dada, se a parte contra quem foi dada, allegar por onde
haja de ser revogada, e o Juiz, que a deu, achar per Direito que a deve revogar. E se o Juiz do seu proprio motu,
podel-o-ha fazer a todo tempo se achar per Direito, que não foi justamente dada; com tanto que a revogue antes
da sentença deffinitiva, e ella seja tal interloentoria, que segundo Direito, possa ser revogada, como acima temos
dito” (Disponível em: <http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l3p666.htm>).
18
Conforme Araken de Assis (Manual dos recursos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 864, nota 172; Introdução
aos sucedâneos recursais. Revista Jurídica, Porto Alegre, v. 310, p. 24, ago. 2003), o dispositivo 528 da Lei nº 65-RS,
de 16.01.1908, tinha a seguinte redação: “Art. 528. A sentença interlocutória simples pode ser revogada antes de
executada, ou a requerimento da parte ou ex officio, por justa causa superveniente, até a sentença definitiva”.
19
NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos. 6. ed. atual. ampl. e reform. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2004. p. 91 e 96.
20
De acordo com Araken de Assis (Manual dos recursos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 838), “o verdadeiro
sucedâneo recursal é o mecanismo que, alheio ao quadro oficial de recurso, impugna o provimento judicial sem
criar processo autônomo”.
21
CUNHA, Leonardo José Carneiro da. O pedido de reconsideração e suas hipóteses de cabimento. Revista Dialética
de Direito Processual, São Paulo, v. 4, p. 100-101, jul. 2003.
22
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Os agravos no CPC brasileiro. 4. ed. rev. atual. ampl. de acordo com a nova Lei
do Agravo (Lei n.º 11.187/2005). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 480.
23
Artigos 285-A, 296 e 523, §2º do CPC.
24
Art. 527. Recebido o agravo de instrumento no tribunal, e distribuído incontinenti, o relator: [...] Parágrafo único.
A decisão liminar, proferida nos casos dos incisos II e III do caput deste artigo, somente é passível de reforma no
momento do julgamento do agravo, salvo se o próprio relator a reconsiderar. (Redação dada pela Lei nº 11.187/2005).
25
NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos. 6. ed. atual. ampl. e reform. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2004. p. 91.

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Pedido de reconsideração 73

em relação ao “prazo, preparo, articulação de razões e formação de


instrumento”,26 sem contar a celeridade da decisão sobre o pedido, se compa-
rado com um julgamento de recurso, mostrando-se “um instrumento simples
e não raras vezes eficaz para a impugnação de decisões judiciais”.27
Dessa sua difusão nos corredores forenses, iniciou-se na doutrina o
estudo detalhado de suas hipóteses de cabimento, vinculando-se à análise da
preclusão, mormente aos artigos 47128 e 47329 do CPC, chegando-se à conclu-
são, um pouco óbvia, de que o pedido de reconsideração só teria cabimento
contra decisões não preclusas para as partes e para o juiz.

2.3.1 Preclusão
A preclusão, instituto que tem origem no direito romano-canônico,30
foi inspirada na poena praeclusi,31 possuindo, em sua gênese, caráter punitivo
dentro do processo. Em seu progresso, ganhou largo desenvolvimento
pela doutrina italiana,32 recebendo contornos através do célebre estudo de
Chiovenda, que definiu a preclusão como a perda, a extinção ou a consuma-
ção de uma faculdade processual da parte, em função de se ter atingido os
limites assinalados em lei ou ao seu exercício.33
Tal conceito, hodiernamente, recebeu críticas e novos limites, retirando-se
a ideia de faculdade, vislumbrando em seu lugar a noção de ônus — pois a parte
possui a “oportunidade de agir, prevendo a lei, no caso de omissão, determina-
da conseqüência jurídica”.34 Ou seja, nos dizeres de Teresa Arruda Alvim, ônus
é “uma atividade que, se concretizada ou realizada, terá (provavelmente) seus
resultados revertidos em benefício daquele que a desempenhou”.35
Ultrapassada a sua conceituação, nota-se que a preclusão foi criada
para fornecer os meios de evitar discussões infinitas no bojo processual,
estipulando, a cada parte, os momentos e prazos para as suas respectivas
manifestações. É, portanto, um instituto que visa a fazer o processo “andar
para frente”,36 impedindo “eternos retornos no curso do procedimento”,37
fator que ressalta “o caráter público, objetivo e rigoroso do princípio da
26
PINTO, Teresa Arruda Alvim. Agravo de instrumento. 2. tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 222, também
em WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Os agravos no CPC brasileiro. 4. ed. rev. atual. ampl. de acordo com a nova
Lei do Agravo (Lei n.º 11.187/2005). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 481.
27
GIANNICO, Maurício. A preclusão no direito processual civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 184.
28
Art. 471. Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas, relativas à mesma lide, salvo: I – se, tratando-se
de relação jurídica continuativa, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito; caso em que poderá a parte
pedir a revisão do que foi estatuído na sentença; II – nos demais casos prescritos em lei.
29
Art. 473. É defeso à parte discutir, no curso do processo, as questões já decididas, a cujo respeito se operou a preclusão.
30
GIANNICO, Maurício. A preclusão no direito processual civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 36.
31
MITIDIERO, Daniel Francisco. Comentários ao Código de Processo Civil brasileiro. São Paulo: Memória Jurídica, 2005.
t. II, p. 133. Arts. 154 a 269.
32
DE STAFANO, Giusepe. L’oggetto del processo in un libro recent di Walter J. Habscheid. Revista Trimestrale di
Diritto Processuale Civile, anno 11, p. 327-338, 1957. p. 337. Sobre o assunto, interessantes as palavras do autor: “[...]
il concetto di preclusione non ha avuto, fuori d’Italia, l’ampiezza di impostazione e di sviluppo che a noi, per
merito del Chiovenda e di altri insigni studiosi, è familiare.”
33
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processo civil. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1969. v. 3, p. 155-156.
34
GREGO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. 12. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 12.
35
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Os agravos no CPC brasileiro. 4. ed. rev. atual. ampl. de acordo com a nova Lei
do Agravo (Lei n.º 11.187/2005). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 474.
36
DALL’AGNOL, Antônio. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. v. 2,
p. 329. Do processo de conhecimento: arts. 102 a 242.
37
PESSOA, Flávia Moreira Guimarães. Pedido de reconsideração e preclusão pro judicato no processo civil. Revista
IOB de Direito Civil e Processual Civil, ano 7, n. 42, p. 103-109, jul./ago. 2006. p. 104.

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responsabilidade da parte [...] (constituindo) princípio fundamental da


organização do processo, sem o qual nenhum procedimento teria fim”.38
Sob essa ótica, a doutrina indicou três modalidades de preclusão,
baseando-as nas causas que lhes dão origem:39 (a) temporal (“perda da facul-
dade processual, pelo seu não uso dentro do prazo peremptório previsto pela
lei”);40 (b) consumativa (“impossibilidade da prática do ato decorre da cir-
cunstância de já se ter o praticado”);41 e (c) lógica (“prática de ato incompatí-
vel com aquele que se pretenda exercitar no processo”).42
Há de se ressaltar, ainda, que a preclusão se opera em relação à impug-
nação da decisão, não a elas próprias.43
Passada essa breve determinação do tema, cumpre, a partir de agora,
analisar a possibilidade de preclusão das questões do processo ao juiz, fenô-
meno conhecido na doutrina como preclusão pro judicato — nomenclatura
corretamente criticada por José Maria Rosa Tesheiner 44 —, e às partes.

2.3.1.1 Preclusão para o juiz e para as partes – Alcance dos


artigos 471 e 473 do CPC
Inexiste na legislação nacional uma sistematização sobre o instituto da
preclusão, já que o Código de Processo Civil brasileiro limita-se a fazer men-
ções fragmentadas sobre o tema.45
Dentre os artigos existentes, dois possuem fundamental importância
para o desenvolvimento do pedido de reconsideração, clamando-nos uma
especial atenção: artigos 471 e 473 do CPC.
O artigo 471 dispõe que “nenhum juiz decidirá novamente as questões já
decididas, relativas à mesma lide”, excetuando, em seus incisos, hipóteses de
redefinição do julgado. Tal dispositivo, segundo alguns doutrinadores, conva-
lida a afirmação de existência de preclusão que atinge o órgão jurisdicional,46
38
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Do formalismo no processo civil. 2. ed. rev. e acrescida de apêndice. São Paulo:
Saraiva, 2003. p. 169-170.
39
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Os agravos no CPC brasileiro. 4. ed. rev. atual. ampl. de acordo com a nova Lei
do Agravo (Lei n.º 11.187/2005). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 477.
40
NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos. 6. ed. atual. ampl. e reform. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2004. p. 92.
41
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Os agravos no CPC brasileiro. 4. ed. rev. atual. ampl. de acordo com a nova Lei
do Agravo (Lei n.º 11.187/2005). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 477.
42
NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos. 6. ed. atual. ampl. e reform. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2004. p. 92.
43
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 5. ed. rev. atual. de acordo com a emenda
constitucional n. 45, de 8.12.2004 (DOU de 31.12.2004). São Paulo: Malheiros, 2005. v. 2, p. 457, nota 7.
44
“Preclusão pro judicato não significa preclusão para o juiz. Em latim, judicato significa julgado; juiz é iudex (nominativo)
ou iudicem (acusativo). Preclusão pro judicato significa ‘preclusão como se tivesse sido julgado’. [...] Se houve decisão,
e ocorreu preclusão, não há ‘preclusão pro judicato’, porque esta supõe ausência de decisão Preclusão pro judicato,
significa julgamento implícito ou presumido, como ocorre na hipótese do artigo 474 do Código de Processo Civil.
[...] Admitindo-se que haja preclusão para o juiz, diga-se, em bom português: ‘preclusão para o juiz’; não, preclusão
‘pro judicato’, em mau latim” (Disponível em: <http://www.tex.pro.br>. Acesso em: 17 out. 2008).
45
GIANNICO, Maurício. A preclusão no direito processual civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 36. No mesmo
sentido: DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 5. ed. rev. atual. de acordo com a
Emenda Constitucional n. 45, de 8.12.2004 (DOU de 31.12.2004). São Paulo: Malheiros, 2005. v. 2, p. 457-458.
46
Nesse sentido: CUNHA, Leonardo José Carneiro da. O pedido de reconsideração e suas hipóteses de cabimento.
Revista Dialética de Direito Processual, São Paulo, v. 4, p. 100-112, jul. 2003. p. 103; GIANNICO, Maurício. A preclusão
no direito processual civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 134; VASCONCELOS, Antônio Vital Damos de. O
pedido de reconsideração e a preclusividade das decisões judiciais. Revista da AJURIS, Porto Alegre, ano 14, n. 40,
p. 155-165, jul. 1987. p. 155; OLIANI, José Alexandre Manzano. O contraditório nos recursos e no pedido de reconsideração.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 145-146.

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Pedido de reconsideração 75

pois, realizada a análise de alguma questão, o juiz estaria impossibilitado, via


de regra, de modificá-la — com exceção das matérias de ordem pública, que
podem ser decretadas ex officio, de acordo com a combinação dos artigos 267,
§3º,47 e 301, §4º48 do CPC —, o que afastaria o cabimento do pedido de recon-
sideração. Em suma: o artigo 471, caput, “insinua o veto de o juiz, de regra,
retratar as decisões proferidas no curso do processo”.49
Todavia, como é notório, o CPC brasileiro está muito distante de ser um
exemplo de rigor técnico e precisão linguística, sendo o dispositivo 471 um
bom paradigma dessa imprecisão, que tanta confusão causa na doutrina.
Primeiramente, o artigo possui redação confusa, “sendo de má técnica
legislativa”,50 aglutinando no mesmo período os conceitos carneluttianos de “ques-
tão” e de “lide”, deixando margem para as mais diversas interpretações, pois
“falando de decisões, misturou resoluções interlocutórias e sentenças definitivas”.51
Dentro desse quadro, parcela da doutrina aduz que o termo “questões” faz
referência, exclusivamente, ao meritum causae;52 enquanto outra narra que a pala-
vra “questões” refere-se a qualquer “ponto de controvérsia no curso da lide”.53
Tal discussão é de basilar importância para o pedido de reconsideração,
pois, acatada uma ou outra corrente, estar-se-á permitindo, ou proibindo,
a possibilidade de reconsideração das decisões para o magistrado, já que
acarretaria, ou não, a sua preclusão.
Veja-se que Alfredo Buzaid,54 Ministro da Justiça do país à época da
publicação da Lei nº 5.869/73, informa, relativamente às terminologias uti-
lizadas pelo CPC, que “o projeto só utiliza a palavra “lide” para designar o
mérito da causa. [...] A lide é, portanto, o objeto principal do processo e nela
se exprimem as aspirações em conflito de ambos os litigantes”.55
Já Carnelutti engendrou seu conceito de lide a partir da ideia de
“interesse”, pois se duas ou mais pessoas têm interesse pelo mesmo bem, que
a uma só possa satisfazer, tem-se um conflito de interesses. Adicionando-se a
tal quadro a pretensão de uma parte, que é a exigência da subordinação a um

47
Art. 267. Extingue-se o processo, sem resolução de mérito: [...] §3º O juiz conhecerá de ofício, em qualquer tempo e grau
de jurisdição, enquanto não proferida a sentença de mérito, da matéria constante dos ns. IV, V e VI; todavia, o réu que
a não alegar, na primeira oportunidade em que lhe caiba falar nos autos, responderá pelas custas de retardamento.
48
Art. 301. Compete-lhe, porém, antes de discutir o mérito, alegar: [...] §4º Com exceção do compromisso arbitral,
o juiz conhecerá de ofício da matéria enumerada neste artigo.
49
ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 863; e Introdução aos sucedâneos
recursais. Revista Jurídica, Porto Alegre, v. 310, p. 24, ago. 2003.
50
MIRANDA, Francisco Calvalcanti Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. 3. ed. rev. aument. atual.
Legislativa de Sérgio Bermudes. Rio de Janeiro: Forense, 1997. t. V, p. 146. Arts. 444 a 475.
51
MIRANDA, op. cit., p. 146.
52
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo. Comentários ao Código de Processo Civil. 2. ed. rev. atual. inclusive de acordo
com o novo Código Civil. Forense: Rio de Janeiro, 2003. v. 4, p. 316. Arts. 332 a 475. Aduz o autor: “questões
relativas à lide são sempre questões de mérito e o juiz só as decide em sentença, de modo que a nova decisão
de questões já decididas, ora proibida, seria posterior à prolação da sentença.” De forma uníssona: MIRANDA,
Francisco Calvalcanti Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. 3. ed. rev. aument. atual. Legislativa de
Sérgio Bermudes. Rio de Janeiro: Forense, 1997. t. V, p. 146 et seq. Arts. 444 a 475; LACERDA, Galeno. Despacho
saneador. Porto Alegre: La Salle, 1953. p. 165-166.
53
PORTO, Sérgio Gilberto. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. v. 6, p. 206.
Do Processo de Conhecimento: arts. 444 a 495.
54
Para Buzaid (Do agravo de petição na sentença do Código de Processo Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1956. p. 96-103),
“o elemento que delimita em concreto o mérito da causa não é, portanto, o conflito existente entre as partes fora
do processo e sim, o pedido feito em relação àquele conflito. Parece-nos, todavia, que o conceito de lide se presta
de modo fecundo a caracterizar o mérito da causa”.
55
BUZAID, Alfredo. Exposições de Motivos do CPC. n. 06.

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interesse próprio de um interesse alheio,56 e a sua resistência pela outra, nasce


a lide, que para Carnelutti nada mais é que “[...] il conflitto di interessi tra due
persone qualificato dalla pretesa dell’una e dalla resistenza dell’altra”.57
Em sua obra, classificada por Liebmann como “o mais ousado esforço
feito até hoje para procurar identificar o conteúdo material do processo”,58
Carnelutti, após o estudo do conceito de pretensão e razão, realiza a análise
do conceito de questão, definindo-o como “um ponto59 duvidoso, de fato ou
de direito”,60 mas que não se confunde com a lide,61 acabando por desenlaçar
que “o mérito é o complexo das questões materiais que a lide apresenta”.62
Dessas breves notas, já se denota a ambígua redação do artigo em mote,
o que ensejou a criação das duas correntes citadas. Como observado, questão,
segundo a teoria clássica de Carnelutti, é qualquer ponto controverso existente.
Todavia, mesmo tendo em mente os conceitos expostos, a melhor interpreta-
ção do artigo 471 do CPC, ao nosso sentir, é aquela dada pela primeira cor-
rente citada, que vincula o termo “questão” àquelas situações referentes ao
mérito da causa — que apenas são decididas na sentença —, possibilitando,
via de regra, a reanálise por parte do juiz de qualquer matéria decidida,
antes de entregue a manifestação definitiva judicial, estando limitada, toda-
via, pelo que dispõem os artigos 2º63 e 12864 do CPC.
O meritum causae — não importando se aceite, ou não, a possibilidade
de prolação de sentenças parciais de mérito, embora não pareça a melhor
opção sobre o tema, ao nosso sentir, levando em consideração a impossibi-
lidade de julgamento fracionado da demanda de acordo com a atual juris-
prudência do Superior Tribunal de Justiça65 —, é solvido pelo magistrado
em um único momento, com definitividade, restando claras as razões que
56
CARNELUTTI, Francesco. Instituzione di Diritto Processuale Civile. Padova: CEDAM, 1943. v. 1, p. 81.
57
CARNELUTTI, op. cit., p. 77.
58
LIEBMAN, Enrico Tullio. Estudos sobre o processo civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1947. p. 126.
59
Nessa senda, torna-se curial ressaltar a correta definição de ponto, que segundo Dinamarco (O conceito de mérito
em processo civil. In: Os fundamentos do processo civil moderno. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 240) é “[...] aquele
fundamento da demanda ou da defesa que haja permanecido incontroverso durante o processo, sem que as partes
tenham levantado discussão a respeito — e sem que o juiz tenha, de-ofício, posto em dúvida o fundamento. Discordes
as partes, porém, i.é, havendo contestação de algum ponto por uma delas, o ponto se erige em questão. A questão é,
portanto, o ponto duvidoso. Há questões de fato, correspondentes à dúvida quanto a uma assertiva de fato contida
nas razões de alguma das partes; e de direito, que correspondem à dúvida quanto à pertinência de alguma norma
ao caso concreto, à interpretação de textos, legitimidade perante norma hierarquicamente superior etc”.
60
CARNELUTTI, Francesco. Sistema de direito processual civil. Trad. Hiltomar Martins Oliveira. São Paulo: Classic
Book, 2000. t. II, p. 39, n. 122.
61
CALAMANDREI, Piero. Il concetto di ‘lite’ nel pensiero di Francesco Carnelutti. In: Opere Giuridiche. Napoli:
Morano, 1965. v. 1, p. 212.
62
DINAMARCO, Cândido Rangel. O conceito de mérito em processo civil. In: Os fundamentos do processo civil moderno.
3. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 252, grifo nosso.
63
Art. 2º. Nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão quando a parte ou o interessado a requerer, nos casos e
forma legais.
64
Art. 128. O juiz decidirá a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões, não
suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte.
65
Recurso Especial nº 404.777/DF, da 2ª Turma, de Relatoria do Ministro Francisco Peçanha Martins, Julgado no dia
21.11.2002, DJ, 9 jun. 2003, que restou assim ementado: “PROCESSUAL CIVIL – RECURSO ESPECIAL – AÇÃO
RESCISÓRIA – PRAZO PARA PROPOSITURA – TERMO INICIAL – TRÂNSITO EM JULGADO DA ÚLTIMA
DECISÃO PROFERIDA NOS AUTOS – CPC, ARTS. 162, 163, 267, 269 E 495 – SÚMULA 100 TST – PRECEDENTES
STF E STJ. - A coisa julgada material é a qualidade conferida por lei à sentença/acórdão que resolve todas as
questões suscitadas pondo fim ao processo, extinguindo, pois, a lide. - Sendo a ação una e indivisível, não há que
se falar em fracionamento da sentença/acórdão, o que afasta a possibilidade do seu trânsito em julgado parcial. -
Consoante o disposto no art. 495 do CPC, o direito de propor a ação rescisória se extingue após o decurso de dois
anos contados do trânsito em julgado da última decisão proferida na causa. - Entendimento consagrado no STF,
STJ e TST. - Recurso especial conhecido e provido”.

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Pedido de reconsideração 77

conduzem a identificação do termo “questões” à resolução do objeto litigioso


no caso concreto. De fato, o termo “questões”, pelo menos no sentido do
artigo 471, está diretamente vinculado à pretensão processual da parte autora,
ao meritum causae, não podendo, em hipóteses alguma, significar qualquer deci-
são sobre ponto incidente no curso do procedimento. É de se ressaltar, corrobo-
rando tal entendimento, que o próprio inciso I do dispositivo emana: “[...] o que
foi estatuído na sentença”, não podendo ser outra a interpretação do artigo 471.
Veja-se uma decisão do Pleno do Supremo Tribunal Federal, citada por
Araken de Assis,66 que, mutatis mutandis, aplica-se perfeitamente ao tema:

Acerca dos pressupostos processuais e das condições da ação, não há preclusão


para o juiz, enquanto não acabar o seu ofício jurisdicional na causa pela pro-
lação da sentença definitiva. A preclusão é sanção imposta à parte, porque consiste
na perda de uma faculdade processual: não se aplica ao juiz, qualquer que seja o grau
de jurisdição ordinária. Para o juiz só opera a preclusão maior, ou seja, a coisa
julgada. (grifo nosso)

Já para as partes, em sentido contrário ao do artigo preteritamente ana-


lisado, o artigo 473 determina, expressamente, a proibição de discussão acerca
das questões preclusas “no curso do procedimento”, sendo lógica, na linha
de raciocínio até então exposta, a impossibilidade de se tratar de “questões
materiais (de mérito)” a redação desse dispositivo, já que, como dito acima,
inviável o julgamento parcial da demanda, impossibilitando a sua solução
definitiva de maneira fracionada no andamento do processo.
A proposta do artigo em destaque tem como escopo impedir que as par-
tes, após a preclusão de determinada questão, retomem a sua discussão. Aqui,
com razão as afirmações de Sérgio Porto: “questão decidida representa todo o
ponto controvertido que, no curso da lide, exigiu manifestação jurisdicional”.67
Resta, pois, preclusa para a parte toda a questão decidida não atacada
pelo recurso competente.

2.3.1.2 Síntese
A doutrina, em todos os livros consultados, procurou estabelecer que
apenas as questões passíveis de manifestação ex officio pelo magistrado pode-
riam ser reconsideradas, apontando as principais hipóteses68 em que se admi-
tiria o pedido de reconsideração, salientando ser inútil “tentar encartá-las em
categorias que se pretendam exaurientes”.69 Entretanto, como destacado no
item superior, essa não parece ser a melhor resposta sobre o assunto.
66
Pleno do STF. AgRg no AI 268-DF. Rel. Alfredo Buzaid, 28.04.1982. ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 864, nota 178; e Introdução aos sucedâneos recursais. Revista Jurídica, Porto
Alegre, v. 310, p. 24, ago. 2003. nota 115.
67
PORTO, Sérgio Gilberto. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. v. 6. Do
Processo de Conhecimento: arts. 444 a 495. v. 6, p. 218.
68
São elas: (a) condições de ação e pressupostos processuais; (b) matérias suscitadas em preliminar de contestação —
art. 301, §4º; (c) antecipação de tutela e medidas liminares; (d) determinação do reexame necessário; (e) requisitos
de admissibilidade dos recursos e seus efeitos; (f) direito probatório; (g) nulidades absolutas e relativas; (h) validade
e adequação das medidas executivas.
69
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Os agravos no CPC brasileiro. 4. ed. rev. atual. ampl. de acordo com a nova Lei
do Agravo (Lei n.º 11.187/2005). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 485.

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78 Jonathan Iovane de Lemos

Entende-se que não existe preclusão para o juiz, com exceção de


questão decidida pelo órgão hierarquicamente superior,70 71 não a estando
presente até a prolação da sentença de mérito, momento pelo qual, apenas
nos casos dos incisos dos artigos 46372 ou 471, ambos do CPC, poderão ser
alteradas as disposições sentenciais.
Ainda, mesmo que se entenda pela preclusão de questões para o juiz, não
se deve olvidar que são poucas as decisões judiciais prolatadas no curso do pro-
cedimento que não se trata de matéria de ordem pública, restando inócua, por-
tanto, qualquer tentativa de limitar o cabimento do pedido de reconsideração.
A prática forense, que reconhece a aplicação do pedido de reconside-
ração, é a testemunha da inexistência de preclusão para o juiz, com exceção,
claro, dos casos já mencionados, sendo possível a interposição do instituto
contra decisão singular do magistrado, não preclusa para a parte, estando o
juízo limitado pelo disposto nos artigos 2º e 128 do CPC, podendo, apenas
nos casos de ordem pública, retificar a sua decisão ex officio.

2.4 Atos atacados pelo pedido de reconsideração


Dos argumentos asseverados nos pontos supra, pode-se concluir que os
únicos atos passíveis de pedido de reconsideração são as decisões interlocu-
tórias (art. 162, §2º,73 do CPC) e os despachos74 (art. 162, §3º,75 do CPC).
As sentenças, tendo em vista o teor do art. 471, caput, do CPC, não
são passíveis de reconsideração, com exceção dos casos dispostos em lei,
em face da autorização legal estipulada, como, e.g., nos artigos 285-A, §1º,76
e 29677 do CPC, onde a parte prejudicada poderá solicitar a reconsidera-
ção do decisum que julgou liminarmente os pedidos da ação ou decretou o
indeferimento exordial.
Ainda, na mesma linha de raciocínio exposta, plenamente cabível pedido
de reconsideração contra julgamento monocrático a que se refere o art. 557,
§1º, do CPC. Ao contrário, não incide o instituto contra acórdãos (art. 16378
70
Explica Maurício Giannico (A preclusão no direito processual civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 56) que
“decidida qualquer questão em grau superior, caberá aos Juízos inferiores simplesmente dar cumprimento a tais
decisões, seja mediante implementação das situações determinadas pela autoridade mais elevada, seja tornando
sem efeito decisões conflitantes anteriormente proferidas. Há de ser tida como inoportuna e ilegal, sob tal enfoque,
toda e qualquer manifestação do órgão inferior — especialmente se conflitante — acerca da matéria já julgada por
um órgão superior”.
71
Nesse sentido a jurisprudência do TJRS: “PROCESSO CIVIL. PRECLUSÃO HIERÁRQUICA. É defeso ao magistrado
decidir novamente no curso do processo questões já resolvidas pelo tribunal. Incidência da preclusão hierárquica.
AGRAVO PROVIDO DE PLANO” (Agravo de Instrumento nº 70016174922, Nona Câmara Cível, Tribunal de
Justiça do RS, Relator: Marilene Bonzanini Bernardi, Julgado em 24.07.2006).
72
Art. 463 – Publicada a sentença, o juiz só poderá alterá-la: I – para lhe corrigir, de ofício ou a requerimento da
parte, inexatidões materiais, ou lhe retificar erros de cálculo; II – por meio de embargos de declaração.
73
Art. 162. Os atos do juiz consistirão em sentenças, decisões interlocutórias e despachos. [...] §2º Decisão interlocutória
é o ato pelo qual o juiz, no curso do processo, resolve questão incidente.
74
DONNINI, Rogério. Pedido de Reconsideração. Revista de Processo, São Paulo, n. 80, p. 242, out.-dez. 1995.
75
Art. 162 [...] §3º São despachos todos os demais atos do juiz praticados no processo, de ofício ou a requerimento
da parte, a cujo respeito a lei não estabelece outra forma.
76
Art. 285-A. Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de
total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-
se o teor da anteriormente prolatada. §1º Se o autor apelar, é facultado ao juiz decidir, no prazo de 5 (cinco) dias,
não manter a sentença e determinar o prosseguimento da ação.
77
Art. 296. Indeferida a petição inicial, o autor poderá apelar, facultado ao juiz, no prazo de 48 (quarenta e oito)
horas, reformar sua decisão.
78
Art. 163. Recebe a denominação de acórdão o julgamento proferido pelos tribunais.

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Pedido de reconsideração 79

da Lex Instrumentalis) proferidos pelos Tribunais,79 assim como pelas decisões


oriundas das Turmas Recursais, já que latente o transbordamento dos limites do
pedido de reconsideração. Nesse sentido manifesta-se a jurisprudência dominante
do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, respectivamente:

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. PEDIDO DE RECONSIDERA-


ÇÃO. NÃO-CABIMENTO. 1. Não cabe pedido de reconsideração em sede de decisão
colegiada, nos termos do art. 557, §1º, do CPC. 2. Pedido de reconsideração não-
conhecido. (RCDESP no AgRg no Ag 957.689/PA, Rel. Ministro João Otávio de
Noronha, Quarta Turma, julgado em 12.06.2008, DJe, 23 jun. 2008, grifo nosso)

Pedido de reconsideração. - No caso, a decisão recorrida não é despacho que


tenha rejeitado embargos de declaração, mas, sim, decisão da Primeira Turma
desta Corte que os rejeitou. Ora, em se tratando de acórdão de Turma do Tribunal
não é cabível pedido de reconsideração, que não é suscetível sequer de conversão
em novos embargos de declaração, uma vez que a interposição desse pedido de
reconsideração traduz erro crasso. Pedido de reconsideração não conhecido. (AI-
AgR-ED-segundo julgamento 331409/SP – São Paulo, Seg.Julg.Dos Emb.Decl.no
Ag.Reg.no Agravo de Instrumento, Relator(a): Min. Moreira Alves, Julgamento:
25.03.2003, Órgão Julgador: Primeira Turma, DJ, 02 maio 2003, grifo nosso)

Com efeito, os atos passíveis de pedido de reconsideração são as decisões


interlocutórias, os despachos, não importando se prolatadas por Juízes, Pretores,
Desembargadores ou Ministros, as decisões monocráticas proferidas em sede recur-
sal e as sentenças passíveis de reconsideração por expressa determinação legal.

2.5 Prazo
Do breve estudo realizado sobre o tema da preclusão, tem-se que a
parte poderá pedir a reconsideração de uma decisão singular até o momento
anterior em que ela se torne preclusa,80 o que, normalmente, se dará após o
transcurso do prazo do recurso cabível contra a decisão a ser reconsiderada.
Indeferida a realização de perícia técnica, e não interposto agravo des-
sa decisão, no décimo segundo dia após a data de disponibilização da decisão
no Diário de Justiça (de acordo com o art. 4º, §§3º e 4º da Lei nº 11.419/0681 c/c
79
O disposto nos arts. 543-B, §3º (Art. 543-B. Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica
controvérsia, a análise da repercussão geral será processada nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal,
observado o disposto neste artigo. [...] §3º Julgado o mérito do recurso extraordinário, os recursos sobrestados serão apreciados
pelos Tribunais, Turmas de Uniformização ou Turmas Recursais, que poderão declará-los prejudicados ou retratar-se) e 543-
C, §7º, II (Art. 543-C. Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica questão de direito, o recurso
especial será processado nos termos deste artigo. [...] §7º Publicado o acórdão do Superior Tribunal de Justiça, os recursos
especiais sobrestados na origem: [...] II – serão novamente examinados pelo tribunal de origem na hipótese de o acórdão recorrido
divergir da orientação do Superior Tribunal de Justiça.), ambos do CPC, não autorizam a interposição do pedido de
reconsideração contra decisões colegiadas, já que a reanálise da matéria ocorre, nos casos, por imposição legal e não
mediante pedido da parte.
80
Em sentido contrário: OLIANI, José Alexandre Manzano. O contraditório nos recursos e no pedido de reconsideração.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 167. “(o pedido de reconsideração) não se sujeita a prazo e, em virtude de
não estarem disciplinados no Código de Processo Civil, não há requisitos de forma a serem observados”.
81
Art. 4º Os tribunais poderão criar Diário da Justiça eletrônico, disponibilizado em sítio da rede mundial de
computadores, para publicação de atos judiciais e administrativos próprios e dos órgãos a eles subordinados, bem
como comunicações em geral. [...] §3º Considera-se como data da publicação o primeiro dia útil seguinte ao da
disponibilização da informação no Diário da Justiça eletrônico. §4º Os prazos processuais terão início no primeiro
dia útil que seguir ao considerado como data da publicação.

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80 Jonathan Iovane de Lemos

arts. 184, §2º,82 e 52283 do CPC), estará preclusa a questão para parte, a qual
não poderá mais requerer do juízo a sua reconsideração.
Esse é o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça:

PROCESSO CIVIL. EXECUÇÃO. PENHORA. NOMEAÇÃO DE BENS ACEITA


PELO JUIZ. PEDIDO DE RECONSIDERAÇÃO. SUCEDÂNEO DO RECURSO
CABÍVEL APÓS O PRAZO DESTE. PRECLUSÃO. RECURSO ESPECIAL
DESACOLHIDO. I – Sem ter interposto agravo contra a decisão de primeiro grau
que aceitou os bens nomeados à penhora pelo executado, torna-se preclusa para
o exeqüente a oportunidade de insurgir-se contra a nomeação, não podendo
fazê-lo meses depois, quando já opostos embargos de devedor. II – Ainda que, em
princípio, seja possível a reconsideração de decisão judicial, por meio de petição, não se
pode transformá-la em sucedâneo do recurso cabível, quando já ultrapassado o prazo para a
interposição deste. (REsp nº 303.528/TO, Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira,
Quarta Turma, julgado em 21.06.2001, DJ, 27 ago. 2001, p. 346, grifo nosso)

Com efeito, enquanto não preclusa a questão para a parte, esta resta
possibilitada da apresentação do pedido de reconsideração.

2.6 Interposição simultânea com recurso e litigância de má-fé


Um ponto interessante sobre o tema em análise é a possibilidade de inter-
posição concomitantemente do pedido de reconsideração e o recurso cabível
na espécie, sem que haja, a priori, qualquer violação ao princípio da singulari-
dade/unicidade, fato reconhecido pela jurisprudência da Corte Superior:

PROCESSO CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. PRAZO. CONTAGEM.


INÍCIO. PEDIDO DE RECONSIDERAÇÃO ISOLADO. RECURSO ESPECIAL
PROVIDO. - Apesar de o pedido de reconsideração poder fazer-se simultaneamente com a
interposição de agravo, quando feito isoladamente, não tem a força de interromper
ou suspender prazo recursal. (REsp nº 13.117/CE, Rel. Ministro Hélio Mosimann,
Segunda Turma, julgado em 16.12.1991, DJ, 17 fev. 1992, p. 1367)

O pedido de reconsideração, como visto, não é recurso, ostentando natu-


reza de sucedâneo recursal. Com efeito, “não se submete à incidência do princípio
da singularidade, podendo ser ajuizado em conjunto com outro meio de impug-
nação”.84 Ademais, não incide, ainda, o fenômeno da preclusão consumativa,
já que o pedido de reconsideração e o recurso possuem pretensões diversas.85
Ademais, é plenamente possível, inclusive, a interposição do pedido de
reconsideração após a interposição de agravo de instrumento e da manutenção
82
Art. 184. Salvo disposição em contrário, computar-se-ão os prazos, excluindo o dia do começo e incluindo o do vencimento.
[...] §2º Os prazos somente começam a correr do primeiro dia útil após a intimação (art. 240 e parágrafo único).
83
Art. 522. Das decisões interlocutórias caberá agravo, no prazo de 10 (dez) dias, na forma retida, salvo quando se tratar
de decisão suscetível de causar à parte lesão grave e de difícil reparação, bem como nos casos de inadmissão da apelação
e nos relativos aos efeitos em que a apelação é recebida, quando será admitida a sua interposição por instrumento.
84
CUNHA, Leonardo José Carneiro da. O pedido de reconsideração e suas hipóteses de cabimento. Revista Dialética
de Direito Processual, São Paulo, v. 4, p. 100-112, jul. 2003. p. 111-112.
85
Para José Oliani (O contraditório nos recursos e no pedido de reconsideração. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
p. 166), “sua utilização também não enseja a ocorrência de preclusão consumativa, porque à míngua de previsão
legal, quer dizer, por se tratar de meio atípico de impugnação de pronunciamentos judiciais, não se pode afirmar
que o postulante consumou o ato de impugnação ao apresentar o pedido de reconsideração e, por conseguinte,
não poderia utilizar-se do recurso cabível”.

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Pedido de reconsideração 81

da decisão agravada pelo juiz. Nota-se que a questão não estaria preclusa, já
que pendente de julgamento o agravo de instrumento. Tecnicamente, pela
evolução do estudo até o momento, não se mostra incabível a interposição do
pedido. Todavia, no caso concreto, dever-se-á analisar as razões do pleito, já
que, à primeira vista, estaria beirando as penas da litigância de má-fé.
Nesse ponto, deve-se atentar pela diferenciação existente entre o pedido
de reconsideração e a possibilidade de retratação do magistrado, de acordo
com a lei recursal pertinente, pois aquele é oriundo da praxe forense, enquanto
esse funda-se na lei.86
Ainda, outro caso instigante seria, pegando-se o mesmo exemplo referido
acima, quando o magistrado a quo, pelo acúmulo de serviço, demora para anali-
sar o pedido de reconsideração interposto, sobrevindo o julgamento do agravo
distribuído no Tribunal. Nesse caso, não há mais possibilidade de o juiz reconsi-
derar sua decisão, face ao disposto no art. 51287 do CPC, pois operada “a substi-
tuição do ato impugnado pelo ‘julgamento’ emanado do órgão ad quem”.88
Por fim, ressalta-se ser plenamente cabível a penalização da parte por
utilizar de maneira impertinente o pedido de reconsideração, devendo os
magistrados empregarem o instituto da litigância de má-fé (art. 17, IV, V e
VI89 do CPC) para conter eventuais abusos cometidos pelas partes.90 Essa é a
orientação do Superior Tribunal de Justiça:
PROCESSUAL CIVIL. PEDIDO DE RECONSIDERAÇÃO DE DECISÃO
COLEGIADA QUE NÃO CONHECEU ANTERIOR PEDIDO DE RECONSIDE-
RAÇÃO CONTRA DECISÃO COLEGIADA. Pedido manifestamente incabível. Não
conhecimento do pedido. Aplicação de multa (CPC, ARTS. 17, VI E 18). (RCDESP
na RCDESP no AgRg no Ag 795.560/SP, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki,
Primeira Turma, julgado em 21.02.2008, DJe, 12 mar. 2008, grifo nosso)

O pedido de reconsideração é uma ferramenta profícua para resolução


de diversos problemas que podem acontecer no desenvolvimento processu-
al. Contudo, não deve ser utilizado de maneira temerária pelas partes, sob
pena de aplicação da multa estipulada no artigo 1891 do CPC.

2.7 Legitimidade
Diferente do aduzido por Maria Berenice Dias,92 o pedido de recon-
sideração pode ser interposto por qualquer uma das partes, desde que haja
86
GIANNICO, Maurício. A preclusão no direito processual civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 187. Também,
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Os agravos no CPC brasileiro. 4. ed. rev. atual. ampl. de acordo com a nova Lei
do Agravo (Lei n.º 11.187/2005). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 534.
87
Art. 512. O julgamento proferido pelo tribunal substituirá a sentença ou a decisão recorrida no que tiver sido objeto
de recurso.
88
ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 252.
89
Art. 17. Reputa-se litigante de má-fé aquele que: [...] IV – opuser resistência injustificada ao andamento do
processo; V – proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo; VI – provocar incidentes
manifestamente infundados.
90
MARINONI, Tereza Cristina. Sobre o pedido de reconsideração: sucedâneo de recurso?. Revista de Processo, São
Paulo, n. 62, p. 299-306, abr./jun. 1991. p. 300.
91
Art. 18. O juiz ou tribunal, de ofício ou a requerimento, condenará o litigante de má-fé a pagar multa não excedente
a um por cento sobre o valor da causa e a indenizar a parte contrária dos prejuízos que esta sofreu, mais os
honorários advocatícios e todas as despesas que efetuou.
92
DIAS, Maria Berenice. Reconsideração versus revisão: uma distinção que se impõe. Disponível em: <http://www.
berenicedias.com.br>. Acesso em: 23 out. 2008.

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82 Jonathan Iovane de Lemos

sucumbência na decisão, o que caracterizaria o interesse de sua reforma,


podendo, inclusive, ser requerido por um terceiro e pelo Ministério Público,93
não importando sua forma de participação no processo (parte ou custos legis).
Não se torna obrigatório, portanto, que o pedido de reconsideração seja for-
mulado pela parte que teve sua solicitação inatendida pela primeira vez. O pedido
de reconsideração é cabível por aquele que, restando prejudicado pelo deferimento/
indeferimento de alguma solicitação, vê-se prejudicado no curso processual.
Como exemplo, cite-se uma ação de cobrança com fulcro nas diferenças
oriundas de expurgos econômicos, na qual, após o pedido do autor, o magis-
trado determina que a instituição financeira acoste aos autos os extratos bancá-
rios do período cobrado, em 15 dias, sob pena de aplicação de multa diária de
R$100,00 (cem reais). Dentro desse quadro, plenamente cabível a interposição
de pedido de reconsideração pela instituição financeira, seja questionando a
sua exibição em demanda cautelar pretérita, seja argumentando pela existência
de obrigação específica na lei sobre o tema — aplicação do art. 35994 do CPC.
Ademais, até mesmo um terceiro, v.g. o perito, pode interpor pedido
de reconsideração, desde que não esteja preclusa a questão, como no caso
de o juiz, depois da solicitação do réu, permitir o pagamento dos honorários
periciais em parcela única, após a realização do laudo.

2.8 Competência
Outro ponto que merece atenção é a competência para a decisão sobre
o pedido de reconsideração. Segundo Nelson Nery Júnior,95 o juízo compe-
tente para apreciação do pedido de reconsideração é o “juiz que proferiu a
decisão que se pretende ver reconsiderada”. Frisa-se que se trata do juízo e
não, especificamente, do mesmo juiz que prolatou a decisão.
No caso de um processo no qual tenha sido indeferido o pleito liminar
pelo juiz plantonista, o pedido de reconsideração será apreciado pelo magis-
trado titular da vara à qual a ação foi encaminhada pela distribuição, e não
para o juiz plantonista que indeferiu a medida acautelatória.

2.9 Aplicação do princípio da fungibilidade no pedido de


reconsideração
O art. 810,96 do revogado de CPC 39, previa o instituto da fungibili-
dade. Contudo, após a simplificação da sistemática recursal formalizada
no Código de 1973,97 “partindo da falsa sensação de segurança derivada do
93
OLIANI, José Alexandre Manzano. O contraditório nos recursos e no pedido de reconsideração. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2007. p. 168.
94
Art. 359. Ao decidir o pedido, o juiz admitirá como verdadeiros os fatos que, por meio do documento ou da coisa,
a parte pretendia provar.
95
NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos. 6. ed. atual. ampl. e reform. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2004. p. 94.
96
Art. 810. Salvo a hipótese de má-fé ou erro grosseiro, a parte não será prejudicada pela interposição de um recurso
por outro, devendo os autos ser enviados à Câmara, ou turma, a que competir o julgamento.
97
Explica Buzaid (Exposições de motivos do CPC. n. 29 a 33) que “[...] o projeto simplifica o sistema de recursos. Concede
apelação só de sentença; de todas as decisões interlocutórias, agravo de instrumento. [...] O critério que distingue
os dois recursos é simples. Se o juiz põe termo ao processo, cabe apelação. Não importa indagar se decidiu ou não
o mérito. A condição do recurso é que tenha havido julgamento final do processo”. Nota-se, portanto, que o CPC
de 1973, na redação original do art. 162, §1º, simplificava o reconhecimento dos provimentos judiciais, segundo a

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Pedido de reconsideração 83

esquema simples de correlação entre atos decisórios e recursos”,98 tal instituto


foi retirado de nosso ordenamento, mas residindo, até hoje, sua proficuidade,
“mesmo à falta de regra expressa”.99
Para sua aplicação, deverá existir, no caso concreto: (a) dúvida objetiva
(“hipóteses controversas na doutrina e na jurisprudência, por força de razões
mais ou menos convincentes, a respeito do recurso próprio contra algum ato
decisório”);100 (b) inexistência de erro grosseiro (“interposição do recurso
errado, quando o correto se encontra indicado expressamente no texto da
lei”);101 e (c) que o recurso impróprio seja interposto no prazo do recurso que
se pretende transformá-lo.102
Desta feita, com o cotejo dos três elementos necessários para aplicação
da medida, pode-se concluir que é impossível a aplicação do princípio da
fungibilidade no pedido de reconsideração, sendo inviável o seu recebimento
como agravo retido, agravo interno/regimental ou embargos de declaração,
face à ausência dos requisitos “a” e “b”, previamente elencados.
Ora, inexiste previsão legal do pedido de reconsideração, sendo que os
meios impugnativos em que este poderia ser recebido estão categoricamente
definidos em lei, não existindo, portanto, dúvida objetiva sobre o tema, o que
obsta o reconhecimento de inexistência de erro grosseiro, impossibilitando,
como corolário, a fungibilidade do pedido.
Nesse sentido, manifesta-se de maneira pacífica o Supremo Tribunal Federal:

A apresentação de “pedido de reconsideração”, conforme denominado pela agravante,


contra acórdão proferido por Turma não tem amparo legal, configurando equívoco
inescusável da parte, a inviabilizar a aplicação do princípio da fungibilidade recursal.
2. Embargos de declaração conhecidos como agravo regimental, ao qual se nega
provimento. (AI-AgR-ED nº 335512/SP – São Paulo, Emb.Decl. no Ag.Reg. no
Agravo de Instrumento, Relator(a): Min. Ellen Gracie, Julgamento: 08.10.2002,
Órgão Julgador: Primeira Turma, DJ, 08 nov. 2002, grifo nosso)

Entretanto, toda a certeza da aplicação do tema na Corte Suprema não


encontra ressonância no Superior Tribunal de Justiça, que, de maneira parado-
xal, pois em conflito interno acerca da uniformidade da questão, encontra-se
sua finalidade ou repercussão no processo, adotando critério pragmático para identificação do ato jurisdicional. Em
qualquer situação em que ficássemos em dúvida de qual recurso dever-se-ia interpor, “bastaria indagar: omitido o
recurso, o processo acaba ou, seja qual for a variante, há de prosseguir? No primeiro caso o recurso era de apelação;
no segundo, agravo” (ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2007. p. 369).
98
ASSIS, op. cit., p. 91.
99
NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos. 6. ed. atual. ampl. e reform. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2004. p. 139.
100
ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 87.
101
NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos. 6. ed. atual. ampl. e reform. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2004. p. 162.
102
Sobre a desnecessidade de tal requisito, Nelson Nery Júnior (Teoria geral dos recursos. 6. ed. atual. ampl. e reform.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 168) aduz que: “em havendo os pressupostos para a aferição da dúvida
objetiva, ou, da inexistência de erro grosseiro, o prazo se nos afigura absolutamente irrelevante. O recorrente
deve, isto sim, observar o prazo do recurso efetivamente interposto, havido por ele como o correto para a espécie”.
Inobstante, muito bem adverte Araken de Assis (Manual dos recursos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
p. 94) que “atualmente, prevalece o entendimento de que é imprescindível respeitar o prazo do recurso próprio”.
De forma uníssona, WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Os agravos no CPC brasileiro. 4. ed. rev. atual. ampl. de acordo
com a nova Lei do Agravo (Lei n.º 11.187/2005). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 171: “a jurisprudência,
todavia, tem propendido pela corrente mais rígida, no que diz respeito ao aspecto do prazo”.

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84 Jonathan Iovane de Lemos

dividido sobre o tema, existindo uma prevalência da possibilidade de


reconhecimento do pedido de reconsideração como agravo regimental ou
embargos de declaração, dependendo do caso, veja-se:
PEDIDO DE RECONSIDERAÇÃO. RECEBIMENTO COMO AGRAVO REGI-
MENTAL. POSSIBILIDADE. FUNGIBILIDADE RECURSAL. AGRAVO DE INS-
TRUMENTO. EXECUÇÃO. PENHORA. IMÓVEL RURAL. MÓDULO RURAL.
BEM DE FAMÍLIA. REVISÃO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. AGRAVO
REGIMENTAL IMPROVIDO. I – Em homenagem aos princípios da economia,
da instrumentalidade e da fungibilidade pedido de reconsideração podem ser recebi-
dos como agravo interno nos termos da jurisprudência desta Corte. II – Em âmbito de
recurso especial não há campo para se revisar entendimento assentado em provas,
conforme está sedimentado no enunciado 7 da Súmula desta Corte. III – Agravo
regimental improvido. (AgRg no Ag nº 999.790/RJ, Rel. Ministro Sidnei Beneti,
Terceira Turma, julgado em 26.08.2008, DJe, 11 set. 2008, grifo nosso)

Desse modo, mesmo existindo a possibilidade jurisprudencial de fun-


gibilidade do pedido de reconsideração, essa não configura a melhor inter-
pretação doutrinária sobre o assunto.

2.10 Efeitos
Em face da ausência de previsão legal, a doutrina é pacífica em relação
à inexistência de efeito suspensivo no pedido de reconsideração,103 não sus-
pendendo nem interrompendo os prazos de interposição dos recursos cabí-
veis contra a decisão a ser reconsiderada. Conforme aduz Araken de Assis,104
“sua pendência não impedirá a preclusão do direito de recorrer, nem a deci-
são a seu respeito restituirá o prazo já vencido”.
Tal posicionamento é realizado, justamente, para evitar que a fluência
do prazo recursal não reste ao alvedrio da parte, o que daria ensejo à possi-
bilidade de recuperação do lapso a qualquer tempo,105 prorrogando-se, quiçá
infinitamente, o início do dies a quo para interposição do recurso.
O posicionamento do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo
Tribunal Federal não diverge do que dito:
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO.
PEDIDO DE RECONSIDERAÇÃO. INTERRUPÇÃO DO PRAZO RECURSAL.
INOCORRÊNCIA. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO. (REsp nº 984.724/MG,
Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, julgado em 20.05.2008,
DJe, 02 jun. 2008)
103
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. 11. ed. rev. atual. inclusive de acordo com o
novo Código Civil. Forense: Rio de Janeiro, 2003. v. 5. Arts. 476 a 565. p. 492-493. No mesmo sentido: VASCONCELOS,
Antônio Vital Damos de. O pedido de reconsideração e a preclusividade das decisões judiciais. Revista da AJURIS, Porto
Alegre, ano 14, n. 40, p. 155-165, jul. 1987. p. 163; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. O pedido de reconsideração
e suas hipóteses de cabimento. Revista Dialética de Direito Processual, São Paulo, v. 4, p. 100-112, jul. 2003. p. 112;
GIANNICO, Maurício. A preclusão no direito processual civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 185; WAMBIER,
Teresa Arruda Alvim. Os agravos no CPC brasileiro. 4. ed. rev. atual. ampl. de acordo com a nova Lei do Agravo (Lei
n. 11.187/2005). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 481; NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos. 6. ed.
atual. ampl. e reform. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 92; OLIANI, José Alexandre Manzano. O contraditório
nos recursos e no pedido de reconsideração. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 165.
104
ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 865 e Introdução aos sucedâneos
recursais. Revista Jurídica, Porto Alegre, v. 310, p. 7-37, ago. 2003. p. 25.
105
DIAS, Maria Berenice. Reconsideração versus revisão: uma distinção que se impõe. Disponível em: <http://www.
berenicedias.com.br>. Acesso em: 23 out. 2008.

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Pedido de reconsideração 85

Agravo regimental em agravo de instrumento. 2. Juízo negativo de admissibilidade


do recurso extraordinário. Recurso adequado. Agravo de instrumento.
4. Pedido de reconsideração. Recurso impróprio. Não suspensão do prazo recur-
sal. 5. Agravo de instrumento. Interposição após o julgamento da reconsideração.
Intempestividade. Precedentes. 6. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AI-AgR nº 654382/RS – Rio Grande do Sul, Ag.Reg. no Agravo de Instrumento,
Relator(a): Min. Gilmar Mendes, Julgamento: 04.12.2007, Órgão Julgador:
Segunda Turma, DJ, 1º fev. 2008)

Válido o questionamento, ainda, acerca da (in)existência de algum


outro efeito recursal no pedido de reconsideração (devolutivo, obstativo,
substitutivo e translativo). Tendo em vista a ausência normativa sobre o
assunto, não se pode admitir a existência de quaisquer efeitos inerentes aos
recursos de maneira extensiva ao instituto, mesmo que no pedido de reconsi-
deração esteja contida, indiretamente, a devolução da questão a ser analisada
pelo magistrado, sendo-lhe possibilitada a substituição de sua decisão ante-
rior, podendo, também, versar sobre matérias de ordem pública.

2.11 O princípio do contraditório e o pedido de reconsideração


Na prática, na ausência de procedimento delimitado, o magistrado não
realiza a intimação da parte contrária acerca do pedido de reconsideração
postulado, decidindo “logo após o pedido do requerente”.106 Dentro desse
quadro, poder-se-ia suscitar a hipótese de violação ao princípio do contradi-
tório nos casos de análise do pedido de reconsideração.
Porém, tal atitude do juízo não caracteriza, por si só, violação ao princí-
pio do contraditório, já que a matéria reapreciada deve, teoricamente, ter sido
debatida em momento pretérito, sendo desnecessária, portanto, a intimação
da parte adversa sobre os limites do pedido de reconsideração formulado,
pois, a priori, travar-se-ia o mesmo embate feito anteriormente.
Destarte, realizada a discussão sobre determinado assunto, sendo, em ato
contínuo, decidida a questão, não parece oportuna a necessidade de intimação
da requerida para que analise o pedido de reconsideração feito pela requerente.
Ainda, não se atendendo ao princípio do contraditório, “havendo pre-
juízo ou desvantagem, esse segundo ato do juiz que acolheu o pedido de
reconsideração se classificaria como decisão interlocutória e, portanto, susce-
tível de impugnação pela via do agravo”.107
Todavia, tem-se de ressaltar que nos casos em que realizada a juntada
de novos documentos deverá o magistrado proporcionar a manifestação da
parte contrária, antes de decisão sobre o pedido de reconsideração.108
106
NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos. 6. ed. atual. ampl. e reform. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2004. p. 97.
107
NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos. 6. ed. atual. ampl. e reform. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2004. p. 97-98.
108
Nesse sentido, José Oliani (O contraditório nos recursos e no pedido de reconsideração. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2007. p. 170-171) aduz que “o contraditório exige que o juiz, antes de se pronunciar, faculte à parte contrária
debater todos os fundamentos suscitados no pedido de reconsideração e aqueles nos quais a decisão pretende se
basear, podendo ser dispensada a audiência da contraparte quando as partes já tiverem debatido a matéria a ser
decidida [...]”.

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86 Jonathan Iovane de Lemos

2.12 Pedido de reconsideração e embargos de declaração


Derradeiramente, a fim de situar questão presente nos tribunais, mister
realizar a distinção entre o pedido de reconsideração e os embargos declara-
tórios, já que tranquilo o entendimento de que a interposição de aclaratórios
com finalidade de pedido de reconsideração não interrompe o prazo recur-
sal. Nesse sentido:

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. PEDIDO DE RECONSIDERAÇÃO.


INTERRUPÇÃO. PRAZO RECURSAL. NÃO OCORRÊNCIA. RECURSO
DEFICIENTE. PREMISSA NÃO ATACADA. 1. O Tribunal a quo considerou que
a peça nomeada de “embargos de declaração” representou, verdadeiramente,
pedido de reconsideração e, por isso, o agravo de instrumento interposto seria
intempestivo, pois o prazo recursal não teria sido interrompido. 2. A recorrente
alega que os embargos de declaração, ainda que rejeitados, interrompem o
prazo recursal, porém não rebate a premissa firmada no acórdão recorrido no
sentido de que o requerimento realizado era, na verdade, um pedido de recon-
sideração. Recurso deficiente. Aplicação da Súmula 284/STF e, por analogia, da
Súmula 182/STJ. 3. Dos autos não constam a peça em referência — “embargos
de declaração” — nem a decisão a que essa se refere. 4. Pedido de reconsideração
não é idôneo para a reabertura do prazo recursal. 5. A jurisprudência desta Corte no
sentido de que os embargos de declaração, ainda que rejeitados, interrompem o prazo
recursal não pode servir para mascarar meros pedidos de reconsideração nomeados de
“embargos de declaração”. 6. Recurso especial não conhecido. (REsp. nº 964.235/PI,
2ª Turma, rel. Min. Castro Meira, DJ, 04 out. 2007, grifo nosso)

O recurso de embargos de declaração, positivado no artigo 535109 do


CPC, tem cabimento nos casos de contradição, obscuridade, omissão e dúvida,
podendo ser interposto, ainda, contra os casos de erro material ou erro de
fato existente na sentença (art. 463 do CPC).
Da ciência de suas hipóteses de cabimento, é de se notar que nos embar-
gos de declaração a parte embargante requer o suprimento de um erro material
ou formal, que pode, ou não, ser apto à modificação do decisum. Não se realiza,
portanto, o pedido de reanálise da decisão (pedido de reconsideração), mas a
falta de consideração de algum ponto crucial para o deslinde do feito (omis-
são), ou, ainda, a incongruência interna da decisão ou com a realidade dos
autos (contradição, erro material e de fato), podendo, ainda, objetivar a clarifi-
cação dos termos ou do dispositivo da decisão (obscuridade e dúvida).
Os aclaratórios, pela sua gênese, “não servem para reiterar o já decidi-
do”,110 fugindo de seus limites a reanálise “dos termos do julgamento ante-
rior, (assim como) percorrer todos os passos que conduziram à formação do
ato para chegar a idêntico resultado”.111
Com efeito, qualquer pedido de reconsideração interposto sob a alcu-
nha de “embargos de declaração” não obterá o condão de interromper ou
109
Art. 535. Cabem embargos de declaração quando: I – houver, na sentença ou no acórdão, obscuridade ou contradição;
II – for omitido ponto sobre o qual devia pronunciar-se o juiz ou tribunal.
110
ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 580.
111
ASSIS, op. cit., p. 580.

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Pedido de reconsideração 87

suspender, nos casos dos Juizados Especiais (art. 50 da Lei nº 9.099/95),112 a


fluência do prazo recursal.

3 Considerações finais
Tentou-se, com o presente estudo, realizar uma série de questionamen-
tos até então esquecidos pela doutrina, de um fenômeno corriqueiro nos cor-
redores forenses.
O pedido de reconsideração é um sucedâneo recursal, que prescinde
de forma e requisitos para sua análise, mostrando-se muito útil como meio de
resolução, normalmente célere, para problemas ocorridos no processo.
Buscou-se demonstrar que, ao contrário do que amplamente divulgado,
inexiste preclusão de questões para o juiz — salvo alguns casos —, estando,
contudo, limitada a sua atuação pelos artigos 2º e 128 do CPC, não podendo
rediscutir questões que sejam de matéria disponível das partes, sob a qual
tenha se operado a preclusão — de acordo com o artigo 473.
O pedido de reconsideração não suspende e nem interrompe a inter-
posição do meio legal de impugnação da decisão, devendo ser utilizado com
cautela pelas partes, podendo atacar tanto decisões interlocutórias quanto
despachos, e alguns tipos de sentença (arts. 285-A e 296 do CPC), restando
vedado contra decisões colegiadas.
Fora posicionamento duvidoso do Superior Tribunal de Justiça, o
pedido de reconsideração não admite fungibilidade, não se encontrando óbi-
ces para sua interposição concomitante com recursos. Sua utilização temerá-
ria deve ser coibida, rigorosamente, pelo Poder Judiciário.
Ao fim, nota-se que o pedido de reconsideração, em um Poder Judiciário
cada vez mais assoberbado pelo acúmulo de demandas, é um instrumento
útil para resolução de qualquer problema existente ao bom andamento pro-
cessual, já que, de maneira célere e eficaz, possibilita a correção de erros que
somente após longo e burocrático trâmite recursal seriam modificados.

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Art. 50. Quando interpostos contra sentença, os embargos de declaração suspenderão o prazo para recurso.
112

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Pedido de reconsideração 89

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

LEMOS, Jonathan Iovane de. Pedido de reconsideração. Revista Brasileira de Direito


Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 71, p. 69-89, jul./set. 2010.

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Da crítica da dogmática jurídica à hermenêutica constitucional: reflexões sobre a (in)eficácia das normas... 91

Da crítica da dogmática jurídica à


hermenêutica constitucional: reflexões
sobre a (in)eficácia das normas de
proteção do meio ambiente saudável
Wilson Levy
Mestrando em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo. Pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, vinculado ao grupo de
pesquisa Democracia, Justiça e Direitos Humanos – Estudos de Teoria Crítica, e da Associação
Nacional de Direitos Humanos. Assistente Jurídico do Des. Renato Nalini, do TJ-SP.

Resumo: O presente artigo pretende discutir a questão da ineficácia da prote-


ção do meio ambiente saudável a partir da crítica da dogmática jurídica e da
hermenêutica constitucional. Objetiva-se, com isso, verificar em que medida
a moderna hermenêutica constitucional pode, através da consolidação de
nova perspectiva e inserida num novo protagonismo do Poder Judiciário,
contribuir para a superação do paradigma liberal-individualista-normativista
que impera na prática jurídica brasileira e para contornar os problemas
decorrentes da crise da dogmática jurídica na contemporaneidade. A metodo-
logia adotada dividir-se-á em análise bibliográfica de textos e fragmentos do
jusfilósofo argentino Luis Alberto Warat e de outros referenciais teóricos da
Filosofia, da Hermenêutica Jurídica e da Teoria Geral do Direito. Espera-se
como resultado contribuir para o debate a respeito da inefetividade das
normas constitucionais protetoras do meio ambiente, a partir de reflexões
produzidas no âmbito da Filosofia do Direito.
Palavras-chave: Crítica da dogmática jurídica. Hermenêutica. Constituição.
Meio ambiente. Direitos fundamentais.
Sumário: Introdução – 1 Delimitando o ponto de partida: o meio ambiente sau-
dável como direito fundamental – 2 A crítica da dogmática jurídica: as verdades
pressupostas engessadas na doutrina e a ineficácia das normas protetoras do
meio ambiente – 3 Caminhando para a solução do problema: a hermenêutica
constitucional ou “como a Constituição não pode continuar sendo uma estranha
à hermenêutica jurídica” – À guisa de conclusão – Referências

Há letra que mata e letra que vivifica ou até ressuscita. O Direito


é, infelizmente, em muitos casos, simples letra morta e a Justiça
ainda mais quando não se volve mesmo em letra que mata. Pelo
rigorismo ou pelo laxismo, pela burocracia ou pela tortuosidade.
(CUNHA, Paulo Ferreira. A Constituição viva: cidadania e
direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2007. p. 13)

E-mail: <wilsonlevy@gmail.com>.

A expressão é de Lenio Luiz Streck (Hermenêutica jurídica e(m) crise. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2005. p. 33).

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92 Wilson Levy

Introdução
Discutir a problemática da eficácia das normas protetoras do meio
ambiente a partir de seu reconhecimento como componente constitucionalmente
garantido da dignidade humana e, por correlato, dos Direitos Fundamentais
é, de certa forma, lançar luz sobre um dos temas mais emergentes do mundo
globalizado contemporâneo. Emergente pois, ao não encontrar limites, a velo-
cidade do contexto industrial pós-moderno, potencializada por uma cultura
individualista e consumista, toma de assalto os recursos naturais e os dizima
em período desproporcionalmente menor do que o tempo levado para que a
natureza os recomponha. Com isso, não poupa nem mesmo aquele que é con-
siderado um bem essencial à existência saudável: o meio ambiente.
Em terrae brasilis o cenário não é menos desanimador: 4º maior polui-
dor do mundo se contabilizadas as emissões de gases provocadas pelas quei-
madas, o país vê suas florestas, consideradas as maiores reservas de biodi-
versidade do mundo, serem devastadas em volume calculado em “campos
de futebol”. Enquanto isso, padece do mesmo mal dos países em desenvol-
vimento que crescem sem planejamento, com a explosão de megalópoles
industrializadas, carentes de saneamento básico e contumazes devastadoras
de rios e da atmosfera, em que a poluição do ar representa, segundo estudos,
cerca de 2 anos a menos na expectativa de vida das pessoas.
Daí que emerge o problema que orienta esta reflexão: em que medida
a hermenêutica constitucional pode dar conta do problema da ineficácia das
normas protetoras do meio ambiente, em um cenário marcado de um lado
pela complexidade das relações econômico-sociais, que tem por consequência
a crua assertiva de que facticidade desmente a validade das normas, para utilizar
expressão de Habermas em triste referência a uma “brasilização” do texto
constitucional, e de outro por verdadeira prodigalidade de produção norma-
tiva, a produzir inclusive normas flagrantemente inconstitucionais?
O primeiro passo, decerto, passa pelo reconhecimento de que o tra-
tamento normativo dado à matéria não pode passar incólume de críticas.
Inserido numa dogmática jurídica viciada por aquilo que Luis Alberto Warat
denominou senso comum teórico dos juristas, a eficácia das normas proteto-
ras do meio ambiente, torna-se objetivo de difícil consecução. Diagnosticar o
problema e superar essas dificuldades, num país que é pródigo em produção


Importante reflexão sobre o assunto, que não será aprofundado neste artigo, pode ser encontrada na vasta produção
do sociólogo francês Gilles Lipovetsky, da Universidade de Grenoblè, da qual se extrai textos como A era do vazio:
ensaios sobre o individualismo (publicado pela Editora Manole em 2006) e O luxo eterno (publicado pela Editora
Companhia das Letras em 2004). A obra de Eduardo C. B. Bittar, em especial sua tese de livre-docência, O direito
na pós-modernidade (2. ed. rev. atual. e ampl., publicada pela editora Forense Universitária em 2009) também é
reveladora deste momento histórico, que se convencionou chamar “pós-modernidade”, em especial nas suas
interrelações com o Direito.

A notícia, de 2002, é antiga: <http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG50233-6010,00-POLUICAO+DO+
AR+PODE+TIRAR+ATE+DOIS+ANOS+DE+VIDA+DO+PAULISTANO.html>. O sucessivo incremento da quantidade
de poluentes lançados pelo país na atmosfera pode significar ainda menos anos de vida.

A citação do autor: “(...) o problema de Hegel retorna de outra maneira, quando consideramos aquelas sociedades
em que o teor imaculado do texto constitucional não é mais do que a fachada simbólica de uma ordem jurídica
imposta de forma altamente seletiva. Nesses países, a realidade social desmente a validade das normas, para cuja
implementação faltam as condições efetivas e a vontade política. Uma semelhante tendência à ‘brasilização’ poderia
até mesmo se apossar das democracias estabelecidas do Ocidente” (HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação. São
Paulo: Loyola, 2002. p. 222).

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normativa — produção que muitas vezes resulta em leis flagrantemente


inconstitucionais — é tarefa complexa, mas que se pretende, ao menos, ini-
ciar nesta reflexão.
Cabe também detectar em que medida a Constituição Federal está se
convertendo em estranha à hermenêutica. É nesse sentido que é importante
resgatar a previsão constitucional de tema que, na lição de José Renato Nalini
corresponde ao “primeiro direito intergeracional num texto fundante do
Brasil”. Com esse pano de fundo, a análise da (in)efetividade dos dispositi-
vos contidos nas várias disposições contidas na Constituição, pode contribuir
para um movimento de retomada do prestígio que merece a matéria.
Dessa forma, este artigo será dividido em 3 pontos, a saber: a) direitos
fundamentais e direito ambiental; b) crítica da dogmática jurídica; c) imbri-
cações constitucionais e hermenêutica. Ao final, será apresentada uma breve
conclusão, em que serão indicados os resultados desta investigação e se ten-
tará solucionar o problema acima anunciado.

1 Delimitando o ponto de partida: o meio ambiente saudável


como direito fundamental
Primeiramente, é importante estabelecer como marco reflexivo a con-
vicção de que o meio ambiente saudável compõe, de maneira indissociável, o
rol de direitos fundamentais e está inserto nos chamados direitos fundamentais
de terceira geração. Na conceituação de Paulo Bonavides,

Os direitos da terceira geração tendem a cristalizar-se enquanto direitos que não


se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um
grupo ou de um determinado Estado [são de interesse difuso, grifo nosso]. Têm
primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo
de sua afirmação como valor supremo em termos de existencial idade concreta.
Os publicistas e juristas já os enumeram com familiaridade, assinalando-lhe o
caráter fascinante de coroamento de uma evolução de trezentos anos na esteira
da concretização dos direitos fundamentais. Emergiram eles da reflexão sobre
temas referentes ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, à comunicação
e ao patrimônio comum da humanidade.

Tais direitos inauguram na ordem jurídica a noção de que sua interpre-


tação e concretização devem escapar da esquemática, consolidada na teoria
do Direito, presa ao solipsismo e, portanto, à consagrada na relação entre um
sujeito cognoscente e um objeto cognoscível. Afirmar-se isso pela evidente
dificuldade de se identificar esses elementos em face da complexidade das
relações e da transversalidade e pluralidade de interesses envolvidos. Como
patrimônio comum da humanidade, retomam também o caráter de elemen-
tos constitutivos do viver dignamente, ou seja, da dignidade humana.


NALINI, José Renato. O juiz e a Constituição Ecológica. In. NALINI, José Renato et al. (Org.). Juízes doutrinadores:
doutrina da câmara ambiental do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Campinas: Millennium, 2008. p. 45.

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 522.

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Daí a moderna teoria constitucional consagrá-los como dignidade humana


como referência ao outro, asseverando expressamente que não há como pensar
os direitos fundamentais a partir das ações e interesses do indivíduo, mas
sim ponderando sua interconexão com todos os envolvidos. Cita-se, aqui, a
reflexão de Peter Häberle, sobre o entendimento doutrinário e jurispruden-
cial de seu país em sede de direitos fundamentais e dignidade humana:

Os conceitos científico-sociais de identidade confortam, além disso, o reconhe-


cimento jurídico que segue: na dignidade humana a “referência ao outro” é
pressuposta. O reconhecimento da “igual dignidade humana dos outros” forma
a ponte dogmática para o enquadramento intersubjetivo da dignidade humana
de cada um, tal como dá conta a jurisprudência praticada pelo Tribunal Consti-
tucional Federal [da Alemanha] sobre a imagem do homem ou como demonstra
a concretização levada a efeito no catálogo de direitos fundamentais.

E prossegue:

Compreendido de modo científico-cultural isso abrange a perspectiva gene


racional supra-individual: a conexão entre gerações institui uma comunidade
responsável, à qual o indivíduo nem deve, nem pode, se subtrair. Nossos textos
constitucionais positivos também têm tomado progressivamente consciência da
perspectiva das gerações e lançam um olhar para o futuro de um povo e dos
seus cidadãos “viventes” com dignidade humana. Isso também gera respon-
sabilidades e deveres. Exemplo disso são os novos questionamentos da técnica
genérica. [grifo nosso: e por que não do direito ambiental?]

Ao mesmo tempo, parece evidente que a dignidade humana corres-


ponde a “verdadeiro imperativo axiológico de toda a ordem jurídica”.10 É nesse
sentido que Ingo Sarlet afirma que

Em suma, o que se pretende sustentar de modo mais enfático é que a dignidade


da pessoa humana, na condição de valor (e princípio normativo) fundamental
que “atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais” [aqui citando José
Afonso da Silva, A dignidade da pessoa humana..., p. 92], exige e pressupõe o
reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais de todas as dimensões
(ou gerações, se assim preferirmos). Assim, sem que se reconheçam à pessoa
humana os direitos fundamentais que lhe são inerentes, em verdade estar-se-á
negando-lhe a própria dignidade.11

Segundo uma abordagem histórica, é possível apontar a rigidez dos


direitos fundamentais como herança do pós-II Guerra Mundial, de forma a

HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento para a comunidade estatal. In: SARLET, Ingo Wolfgang
(Org.). Dimensões da dignidade: ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2005. p. 127.

Idem, ibidem, p. 128.
10
MOTA PINTO, Paulo. O direito ao livre desenvolvimento da personalidade apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dimensões
da dignidade. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 89.
11
SARLET, op. cit., p. 88.

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se assegurar às gerações presentes e futuras a garantia de impossibilidade


de violação de tais direitos, diante das atrocidades que foram cometidas pelo
regime nazista. No caso brasileiro, a CF/88 reforçou a indisponibilidade des-
ses direitos com a minuciosa descrição de suas hipóteses no extenso art. 5º,
reforçadas com a necessidade de superação do período histórico anterior,
marcado pela violação sistemática dos direitos e garantias individuais e dos
próprios direitos humanos.
Sobre essa rigidez dos direitos fundamentais, tem-se a análise de Luigi
Ferrajoli, em Lenio Luiz Streck:

Para Ferrajoli, a constitucionalização rígida dos direitos fundamentais — impondo


obrigações e proibições aos poderes públicos — tem produzido efetivamente na
democracia uma dimensão “substancial”, que se acrescenta à tradicional dimensão
“política”, meramente “formal” ou “procedimental”. Com efeito, se as normas
formais da Constituição — aquelas que disciplinam a organização dos poderes
públicos — garantem a dimensão formal da democracia política, que tem rela-
ção com o “quem” e o “como” das decisões, suas formas substantivas — as que
estabelecem os princípios e os direitos fundamentais — garantem o que se pode
chamar de dimensão material da “democracia substancial”, uma vez que se refere
ao conteúdo que não pode ser decidido e ao que deve ser decidido por qualquer
maioria, obrigando a legislação, sob pena de invalidade, a respeitar os direitos
fundamentais e aos demais princípios axiológicos por ela estabelecidos.12

Dadas essas definições, nessa esteira, é indispensável mencionar a


impossibilidade do Poder Judiciário tutelá-los segundo uma ótica processual
liberal-individualista, ou seja, como se fosse um mero conflito entre duas par-
tes, a despeito de sua predominância no Brasil.13
Conclui-se, nesse sentido, que os direitos fundamentais não existem se
não forem considerados segundo a perspectiva de uma comunidade (e den-
tro dela, da perspectiva geracional), o que implica dizer que sua interpretação
não pode ser operada a partir de uma perspectiva individualista ou não con-
textualista, e que são dotados de profunda rigidez, na esteira das conquistas
históricas nas quais se inserem. Reconhecidos como direitos fundamentais,
não se pode olvidar que os direitos do meio ambiente agregam em seu con-
junto axiológico todas essas premissas.
Isso posto, passa-se para a análise do mandamento de proibição de excesso
e da proibição de retrocesso.

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 49.
12

Sobre isso, tem-se a crítica de Willis Santiago Guerra Filho: Verifica-se, contudo, que a processualística moderna,
13

desenvolvida em moldes privatísticos, não apresenta um aparato conceitual e institucional capaz de dar conta da tarefa
de garantir o respeito a tais direitos [do meio ambiente], não mais individuais, mas sim “comunitários”. O próprio
conceito de “lide”, correspondente ao objeto do processo, do Direito positivo e dogmática processuais brasileiros, nos
termos clássicos em que o define CARNELUTTI — “conflito intersubjetivo de interesses qualificado por uma pretensão
resistida ou insatisfeita” —, não se aplica aos conflitos sociais em torno do meio ambiente e outros bens objetos de
interesses coletivos ou difusos, pois se tratam de conflitos “pluri-subjetivos” e a pretensão de se usufruir tais bens não
pode ser propriamente questionada, pois há uma convergência da necessidade de todos partilharem deles. (...) Observa-
se, assim, que é fundamentalmente na dimensão processual que há um déficit legislativo e doutrinário, responsável pela
escassa efetividade das normas de direito material sobre meio ambiente, que em geral são bastante razoáveis, ficando-se
a espera de que sejam observadas (GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. 2. ed.
rev. e ampl. São Paulo: Celso Bastos; Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 2001. p. 117.

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A proibição de excesso (Übermaßverbot) não foi acolhida expressamente


pelo constituinte de 1988. Contudo, sua aplicação está garantida se se
entender — como se deve efetivamente entender — que este é um princípio
norteador do Estado Democrático de Direito, o qual foi (ou pretendia-se ser)
inaugurado pelo texto constitucional.
Representa, de todo modo, um mecanismo destinado a preservar os
direitos fundamentais, coincidindo com a própria essência do texto consti-
tucional. Por lidar com questões de natureza transindividual, é essencial a
discussões contemporâneas, como o próprio direito ambiental e sua já dita
relação com interesses difusos e coletivos.
Na conceituação de Ingo Wolfgang Sarlet, a proibição de excesso consti-
tui um limite a eventuais limitações, adequações ou reformulações dos manda-
mentos fundamentais de uma Constituição, às quais não poderão, sob qualquer
hipótese, ser excessivamente onerosas frente os interesses sociais e coletivos.14
Para Guerra Filho, concordando com Joaquim Carlos Salgado, tal prin-
cípio bebe da fonte da teoria da justiça equitativa, igualdade proporcional, que
remonta à teoria da justiça de Aristóteles, que parece mais adequada em face
do problema em exame, ante a igualdade formal e suas distorções. Sua aplica-
ção na prática jurisdicional, para o autor, parte da perspectiva de que ele

Pressupõe a existência de valores estabelecidos positivamente em normas do orde-


namento jurídico, notadamente naquelas com a natureza de um princípio funda-
mental, também requer um procedimento decisório, a fim de permitir a necessária
ponderação em face dos fatos e hipóteses a serem considerados. Tal procedimento
deve ser estruturado — e, também, institucionalizado — de uma forma tal que
garanta a maior racionalidade e objetividade possíveis da decisão, para atender ao
imperativo de realização de justiça que é imanente ao princípio com o qual nos
ocupamos. Especial atenção merece, portanto, o problema do estabelecimento de
formas de participação suficientemente intensiva e extensa de representantes dos
mais diversos pontos de vista a respeito da questão a ser decidida.15

A proibição de retrocesso determina que nenhum ato do poder público


pode provocar retrocesso de direitos fundamentais, sendo este, portanto, um
princípio fundamental de hermenêutica constitucional. A partir disso, parte
da correta premissa de que deve ser aplicado quando a Constituição não está
sendo cumprida, em especial no plano das políticas públicas que deveriam
reduzir as desigualdades sociais, e, por que não, no impedimento da explo-
ração do patrimônio ambiental.

Assim, no que se entende por Estado Democrático de Direito, o Judiciário, através


do controle de constitucionalidade das Leis, pode servir como via de resistência às
investidas dos Poderes Executivo e Legislativo, que representem retrocesso social ou a
ineficácia dos direitos individuais ou sociais. Dito de outro modo, a Constituição não
tem somente a tarefa de apontar para o futuro. Tem, igualmente, a relevante função
14
SARLET, Ingo Wolfgang. O Estado Social de direito, a proibição de retrocesso e a garantia fundamental da
propriedade. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Judiciário, n. 9, mar./maio 2007.
15
GUERRA FILHO, op. cit., p. 85.

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de proteger os direitos já conquistados. Desse modo, mediante a utilização da


principiologia constitucional (explícita ou implícita), é possível combater alterações
feitas por maiorias políticas eventuais, que, legislando na contramão da programaticidade
constitucional, retiram (ou tentam retirar) conquistas da sociedade.16

Nessa esteira, a jurisprudência estrangeira é farta, e deveria ser aco-


lhida pela doutrina e pela jurisprudência pátrias. Oportuno relatar, aqui, a
jurisprudência portuguesa, que traz importante contribuição para a proteção
de direitos fundamentais, dentre os quais certamente se encontra o direito ao
meio ambiente preservado. A citação é de Streck:

Veja-se nesse sentido, a importante decisão do Tribunal Constitucional de Portugal,


que aplicou a cláusula da “proibição do retrocesso social”, inerente/imanente ao
Estado Democrático e Social de Direito: “... a partir do momento em que o Estado
cumpre (total ou parcialmente) as tarefas constitucionalmente impostas para realizar um
direito social, o respeito constitucional deste deixa de consistir (ou deixa de consistir ape-
nas) numa obrigação positiva, para se transformar ou passar também a ser uma obrigação
negativa. O Estado, que estava obrigado a atuar para dar satisfação ao Direito Social, passa
a estar obrigado a abster-se de atentar contra a realização dada ao direito social” (Acórdão
nº 39/84 do Tribunal Constitucional da República Portuguesa).17

No direito ambiental, a proibição de retrocesso se assenta em princípios


norteadores do que Carlos Alberto Molinaro chama de Estado Socioambiental.
Com ele:

Quando referimos o princípio da proibição da retrogradação socioambiental e faze-


mos visível o seu objeto, vedação de degradação ambiental, queremos afirmar uma
proposição empírica, que através de uma eleição valiosa de nossa existência e desde
uma perspectiva intergeracional, não permite ou impede que se retroceda a condições
ambientais prévias àquelas que desfrutamos presentemente. O princípio da proibição
de retrogradação socioambiental assim concebido é um importante preceito
normativo cujo objetivo é impedir ou vedar que as condições ambientais que
desfrutamos retornem ao statu quo ante.18

Para o autor, também, não há que se falar em Estado Socioambiental sem


considerar o princípio da precaução que acolhe a máxima in dubio pro ambiente
(a expressão é de J. J. G. Canotilho, do texto Direito Público do Ambiente). Tal
princípio está fundado no princípio da cautela (no alemão, Vorsichtsprinzip),
enquanto atuação preventiva frente a potenciais riscos de contaminação do
16
STRECK, op. cit., p. 56. Com efeito, reforça-se essa premissa a afirmação de Sarlet, quando enuncia: “Como limite,
a dignidade implica não apenas que a pessoa não pode ser reduzida à condição de mero objeto da ação própria e
de terceiros, mas também o fato de a dignidade gera direitos fundamentais (negativos) contra atos que a violem ou
a exponham a graves ameaças” (STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2004. p. 32).
17
STRECK, op. cit., p. 56. Sobre o assunto, sugere-se a leitura do artigo “Direitos Fundamentais Sociais e proibição
de retrocesso: algumas notas sobre o desafio da sobrevivência dos Direitos Sociais num contexto de crise”, de
Ingo Wolfgang Sarlet ((Neo)constitucionalismo: ontem, os códigos; hoje, as Constituições. Revista do Instituto de
Hermenêutica Jurídica, Porto Alegre, IHJ, n. 2, p. 121-168, 2004).
18
MOLINARO, Carlos Alberto. Direito ambiental: proibição de retrocesso. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 80.

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meio ambiente, que surgiu no direito alemão dos anos 70, amadureceu no
encontro da ONU de Estocolmo, de 1972 e se consolidou, no direito brasileiro,
através do art. 225 da Constituição Federal de 1988.19
Está-se diante, portanto, de matéria cuja natureza de direito funda-
mental goza de posição consensual. Pois trata-se de

Direito fundamental, quer na dimensão real ou teórica, quer na dimensão posi-


tiva”, tanto mais após 1988. a fundamentalidade do direito justifica-se, primeiro,
em razão da estrutura normativa do tipo constitucional (“Todos têm direito...”);
segundo, na medida em que o rol do art. 5º, sede principal de direitos e garantias
fundamentais, por força do seu §2º, não é exaustivo (direitos fundamentais há —
e muitos — que não estão contidos no art. 5º); terceiro, porquanto, sendo uma
extensão material (pois salvaguarda suas bases ecológicas vitais) do direito à
vida, garantido no art. 5º, caput, reflexamente, recebe desde as bênçãos e acon-
chego, como adverte a boa lição de Nicolao Dino, segundo a qual, “o direito ao
meio ambiente caracteriza-se como um corolário do direito à vida”.20

Dessa maneira, sendo claro o estatuto de direito fundamental conferido


ao meio ambiente. Passa-se, agora, ao primeiro passo no sentido de desvelar
o problema da ineficácia de tais normas: a crítica da dogmática jurídica.

2 A crítica da dogmática jurídica: as verdades pressupostas


engessadas na doutrina e a ineficácia das normas protetoras
do meio ambiente
A história das verdades jurídicas no ocidente, como discurso estruturador
da instituição social, é uma palavra enigmática. A ciência jurídica, como
discurso que determina um espaço de poder, é sempre obscura, repleta
de segredos e silêncios, constitutiva de múltiplos efeitos mágicos e fortes
mecanismos de ritualização, que contribuem para a ocultação e clausura das
técnicas de manipulação social.21

Caracterizado o direito ao meio ambiente saudável como direito funda-


mental, cumpre agora iniciar a reflexão a respeito da ineficácia de suas normas.
Primeiramente, é necessário apresentar, ainda que de maneira breve,
alguns aspectos relacionados ao problema da ineficácia das normas jurídicas no
contexto contemporâneo. Problema que se revela profundamente vinculado à
crise das instituições e a dependência, cada vez maior, do Direito das demais
dimensões da existência humana: o social, o cultural, o político, o econômico.
19
Outros princípios, corolários da proibição de retrocesso, são o da precaução (Vorsorgeprinzip), princípio da
responsabilidade causal (Verursacherprinzip) e o princípio da cooperação (Kooperationsprinzip). Tais princípios, em especial
o da responsabilidade causal, é intimamente vinculado ao princípio 16 da Declaração Rio/92, denominado ordinariamente
de poluidor-pagador, e que agrega a necessidade de imputação de dever de responder pelo dano provocado.
20
BENJAMIN, Antonio Hermann. Constitucionalização do ambiente e ecologização da Constituição Brasileira. In.
CANOTILHO, J. J. Gomes; LEITE, José Rubens Morato (Org.). Direito constitucional ambiental brasileiro. 2. tir. São
Paulo: Saraiva, 2007. p. 102.
21
WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito: a epistemologia jurídica da modernidade. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris, 1995. v. 2, p. 57.

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De acordo com Eduardo C. B. Bittar,

Quando se está a falar da crise de eficácia do sistema jurídico, deixou-se de pen-


sar no microuniverso da norma, pois não se está a falar de mera crise pontual de
certas normas do sistema jurídico. Quando se tematiza a crise de eficácia se está
a falar dos modos pelos quais o sistema como um todo está sendo incapaz de
responder às necessidades sociais, e, mais do que isto, se está a discutir o quanto
o comprometimento do sistema jurídico não é representativo e significativo no
contexto da pós-modernidade. (...) Quando o sistema jurídico não está perme-
ável para absorver identidades, mas apenas testemunha sua ampla defasagem
em face dos avanços tecnológicos, reconhecendo a impossibilidade de atender
a tantos e tão conflituosos fluxos de divergentes interesses, torna-se inábil para
cumprir sua fundamental meta de pacificação do convívio social e de mediação
regulamentada dos interesses sociais (convergentes e divergentes).22

Embora esteja relacionado à permeabilidade e à instabilidade inerentes


à pós-modernidade, momento marcado, no Direito, pela erosão dos conceitos
tradicionais de validade e legitimidade e pela multiplicação e complexifica-
ção dos conflitos sociais, é certo que o problema da ineficácia do Direito, no
contexto do que se pretende enfrentar neste trabalho, também encontra rela-
ção com o modelo de dogmática jurídica predominante no Brasil.
Trata-se de dogmática eivada por uma crise epistemológica de contor-
nos cada vez mais evidentes, ante a facticidade conflituosa e descrente nas
soluções jurídicas que se avolumam. Dessa maneira, passa-se à crítica à dog-
mática jurídica, a partir da noção de senso comum teórico dos juristas de Luis
Alberto Warat, autor que dedicou profundo e profícuo estudo ao tema.
Tradicionalmente, o papel atribuído à dogmática jurídica é de ser o
meio — seguro e eficaz — para a “decidibilidade dos conflitos”. Esse processo
tem como premissa fundamental a “inegabilidade dos pontos de partida”,
calcada, por sua vez, na ideia de legalidade, e está fortemente vinculada às
noções de certeza, de técnica e de cientificidade dos saberes oriunda do que
se convencionou chamar de paradigma filosófico da modernidade. É nesse
sentido que para Tercio Sampaio Ferraz Jr., a elaboração do sistema jurídico

resulta, pois, de diferenciações e de ligações. Os sistemas não são construídos


pela ciência dogmática por puro gosto especulativo (por exemplo, conforme
um objetivo formal de concatenar logicamente proposições, como o faz um
matemático), mas tendo em vista a decidibilidade dos conflitos.23

Todavia, embora represente uma forma de se pensar o Direito que não


pode ser desprezada, exatamente por seu caráter de ponto de partida reflexivo,
tal noção está longe de configurar uma posição teórica isenta de impasses ou
suficiente para resolver o problema que se impõe solucionar. Não deixa de
22
BITTAR, Eduardo C. B. O direito na pós-modernidade (e reflexões frankfurteanas). 2. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2009. p. 212.
23
FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6. ed. São Paulo:
Atlas, 2008. p. 71.

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100 Wilson Levy

ser científica e pragmática a assertiva de que “as questões ‘dogmáticas’ são


tipicamente tecnológicas. Nesse sentido, elas têm uma função diretiva explí-
cita. Pois a situação nelas captada é configurada como um dever-ser. Questões
desse tipo visam possibilitar uma decisão e orientar a ação”.24
Mas qual a razão dessa visão não ser absoluta? Para desvendar essa
questão — e antes de aprofundar a discussão da crítica do conhecimento e da
dogmática jurídica —, é importante explorar as contribuições trazidas pela
filosofia, notadamente pela corrente que se convencionou chamar de Teoria
Crítica, para a compreensão do problema da crítica do conhecimento de um
modo geral, enquanto modo de pensar comprometido com o desnudar das
contradições da racionalidade moderna rumo à reconstrução dos pressupos-
tos emancipatórios que fundavam o pensamento iluminista.
Nesse sentido, Jürgen Habermas, em seu texto Conhecimento e Interesse,
traz um dos primeiros contributos à verificação crítica da ciência e da
razão na modernidade, revelando que, ao defender sua posição tributária
do “duvidar radicalmente”, a teoria do conhecimento aproveita-se de um
longo processo formativo — e, portanto, de um nível reflexivo, que passa
desapercebido de sua apreensão, e que, por isso, não pode ser legitimado. Ao
adotar um conceito normativo de ciência, a teoria do conhecimento toma as
categorias do saber que se encontram disponíveis, como forma prototípica de
conhecimento. É por isso que para Immanuel Kant a matemática e a física,
por seus fundamentos de verificabilidade perene, ao menos em sua época,
representariam uma forma de “andamento seguro da ciência”.
Portanto, tudo aquilo que não pudesse ter atribuída essa segurança, era
considerado o “tatear de conceitos vazios”, cuja denominação de “ciência”
era designação eivada de falsificação. Nesse sentido, segundo Habermas:

A metafísica pertence a essas ciências. Comparado com o distintivo pragmático


do progresso científico, o procedimento da metafísica não tem sucesso. Kant
apreciaria, por isso, “que a exemplo dos geômetras e dos pesquisadores da
natureza, nos propuséssemos a fazer uma completa revolução com ela”. O
empreendimento próprio a uma crítica da pura razão especulativa pressupõe,
de saída, a obrigatoriedade normativa de uma determinada categoria do saber.
A partir da pressuposição de que os enunciados da matemática e da física da
época têm o valor de um conhecimento seguro, a crítica do conhecimento pode
assenhorar-se de proposições fundamentais, que se corroboraram naqueles pro-
cessos investigatórios e, uma vez parindo deles, concluir acerca da organização
de nosso potencial cognitivo. Pelo exemplo dos pesquisadores da natureza, os
quais entenderam que a razão tão-somente reconhece aquilo que, consoante
seu projeto, ela mesma traz à luz, Kant sente-se não apenas psicologicamente
animado a refazer a metafísica de acordo com o mesmo parâmetro básico; ele
depende, muito mais, deste exemplo, já que a crítica do conhecimento, aparente-
mente isenta de pressupostos, precisa arrancar um precedente, isto é, um critério
de validade inerente aos enunciados científicos, um critério não-identificado
mas, ao mesmo tempo, obrigatório. Também a metodologia moderna adquire
24
Idem, ibidem, p. 91.

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Da crítica da dogmática jurídica à hermenêutica constitucional: reflexões sobre a (in)eficácia das normas... 101

poder pseudonormativo pelo fato de primeiro distinguir determinada categoria


do saber tradicional como protótipo da ciência para generalizar então os pro-
cedimentos que tornam possível uma reconstrução deste saber, refundindo-o
numa definição de ciência.25

Essa a conformação clássica da ciência moderna. Embora em termos que


não serão aprofundados nesta análise, é certo que desde Hegel tem-se que a
autoconsciência kantiana, antes de tornar o “eu” disponível a “mim mesmo” —
e, portanto, revesti-lo de um conceito normativo — está fundada em uma cons-
ciência opaca e não transparente para ela mesma. Com isso, começa a balançar
duas noções caras à modernidade: a primeira, de que sujeito e objeto são ele-
mentos autônomos do processo de conhecimento, e que o objeto é apreensível
em sua integralidade pela mente do sujeito cognoscente que se despe de sua
subjetividade para analisá-lo de maneira neutra (a filosofia da consciência), e
a segunda, de que o verdadeiro conhecimento, dotado de segurança, é aquele
que se funda em pressupostos científicos verificáveis — pressuposto que levou
Habermas a diagnosticar que “a ciência não foi, a rigor, pensada filosoficamente
depois de Kant”, na medida em que “o lugar da filosofia foi deslocado pela
própria filosofia. Desde então a teoria do conhecimento teve que ser substi-
tuída por uma metodologia desamparada de pelo pensamento filosófico”.26
O balançar, porém, não se faz sem custo: essa reiterada sujeição da filo-
sofia à noção calcada na segurança científica foi responsável pela caracteriza-
ção do modo de pensar da modernidade, na medida em que, ao desprover de
credibilidade, de um lado, boa parte do conhecimento filosófico produzido
depois de Kant, pela impossibilidade de verificar suas hipóteses conforme
procedimentos de laboratório, e ao revestir a racionalidade científica de única
capaz de dirigir a vida dos homens rumo ao progresso, operou-se um deslo-
camento da ótica da razão objetiva, capaz de refletir sobre valores e as rela-
ções entre os seres humanos, para uma primazia da razão subjetiva e instru-
mental, que orienta a adequação de meios a fins, a dominação da natureza,
em que “o homem tornou-se gradativamente menos dependente de padrões
absolutos de conduta, de ideais universalmente unidos. Tornou-se tão com-
pletamente livre que não precisa de padrões, exceto o seu próprio”.27
É assim que, na crítica do conhecimento e da dogmática jurídica, pode-se
dizer que o Direito moderno — positivado, codificado, dicotomizado (direito
público x direito privado, direito comercial, administrativo, civil, penal, pro-
cessual, constitucional...) e atomizado, instituído a partir de uma noção tri-
partida dos poderes, fundado na noção de segurança jurídica e, em muitos
casos criado e adaptado para atender às demandas dos “donos do poder” —
é decorrência imediata dessa metodologia fundada na filosofia da consciên-
cia, os problemas observados no campo filosófico podem ser identificados,
com repercussões ainda mais problemáticas, no campo jurídico.
A filosofia da linguagem trouxe, a partir dos anos 60 e 70, a perturbadora
informação de que o Direito era uma construção discursiva, o que esvaziou o
25
HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e interesse. Trad. José Nicolau Heck. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1987. p. 34.
26
Idem, ibidem, p. 26.
27
HORKHEIMER, Max. O eclipse da razão. Trad. Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Centauro, 2005. p. 101.

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102 Wilson Levy

conteúdo de busca pela verdade essencial, até então (e, como se verá, ainda
hoje) predominante nas principais reflexões do campo da hermenêutica
jurídica.28 Com Luis Alberto Warat, chega-se ao diagnóstico que a dogmática
jurídica ainda sofre de uma “compulsiva lógica da aparência de sentidos, que
opera como uma espécie de garantia de obtenção, em forma retroativa, de um
significado que já estava na lei desde sua promulgação”.29
Desse cenário é que surgem as (requentadas) construções no campo da
hermenêutica jurídica, em que

começando por Aníbal Bruno, interpretar a lei é penetrar-lhe o verdadeiro e


exclusivo sentido, sendo que, quando a lei é clara (in claris non fit interpretatio),
a interpretação é instantânea. (…) Na mesma linha, Paulo Nader entende que
interpretar a lei é fixar o sentido de uma norma e descobrir a sua finalidade,
pondo a descoberto os valores consagrados pelo legislador. Para ele todo subjeti-
vismo deve ser evitado durante a interpretação, devendo o intérprete visar sempre à
realização dos valores magistrais do Direito: justiça e segurança, que promovem
o bem comum. Carlos Maximiliano, autor da clássica obra sobre hermenêutica,
entendia que interpretar é a busca do esclarecimento, do significado verdadeiro
de uma expressão; é extrair de uma frase, de uma sentença, de uma norma, tudo
o que na mesma sem contém. Aproximava-se — e não é temerário afirmar isto —,
da tese objetivo-idealista defendida por Emilio Betti, pela qual era possível a
reprodução do sentido originário da norma. (…) Mais contemporaneamente,
Maria Helena Diniz entende que interpretar é descobrir o sentido e o alcance
da norma, procurando a significação dos conceitos jurídicos.30

Daí se pergunta: o que são “valores magistrais”? O que é “bem comum”?


O que é segurança jurídica? O que é “sentido originário da norma”? Qual é
o seu “alcance”? Será mesmo que é possível se falar em um legislador oni-
presente, cuja vontade é, assim como o saber científico, produzido mediante
processos desprovidos de subjetividade, em que a neutralidade assume ares de
método de trabalho, e cuja extensão no tempo pode ser indefinida?
Uma resposta a essas inquietações pode ser encontrada nos trabalhos
de Luis Alberto Warat, que desenvolve, nos anos 80, a ideia do senso comum
teórico dos juristas. Essa ideia descortina os elementos silentes da pretensa
neutralidade do saber, e assim abala a dogmática jurídica. É na constatação
de que o método kantiano de autoreferibilidade, capaz de fornecer respostas
28
É por isso que para António Manuel Hespanha, “pensou-se, durante muito tempo, que a interpretação consistia
em relacionar duas entidades autônomas e independentes uma da outra: o sinal (ou significante) e a ‘coisa’ (ou
significado). De tal modo que, se se aplicassem métodos rigorosos, o resultado da interpretação tenderia para ser
um, e um só, podendo ser fixado uma vez por todas. Na filosofia clássica, como se entendia que o conhecimento
certo, consistia na reprodução [cópia, replicação], no intelecto de uma coisa existente, autônoma e invariável, no
mundo exterior (adequatio intellectus rei [adequação do intelecto à coisa]), a interpretação — uma das modalidades
do conhecimento — era, correspondentemente, a identificação daquela situação, a que o sinal (o discurso, o texto)
se referia” (HESPANHA, António Manuel. O caleidoscópio do direito: o direito e a justiça nos dias e no mundo de
hoje. Coimbra: Almedina, 2007. p. 533).
29
WARAT, Luis Alberto. Por quien cantan las sirenas. UNOESC/CPGD-UFSC, 1996. passim apud STRECK, Lenio Luiz.
Hermenêutica jurídica e(m) crise. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 96.
30
STRECK, op. cit., p. 98. Embora as reflexões desenvolvidas por Streck culminem em propostas filiadas à hermenêutica
filosófica, especialmente com foco em autores como Gadamer e Martin Heidegger, que não são adotados aqui
como referenciais teóricos, os problemas apresentados por ele são inquietantes e merecem aprofundamento, ainda
que a partir de outras abordagens filosóficas.

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Da crítica da dogmática jurídica à hermenêutica constitucional: reflexões sobre a (in)eficácia das normas... 103

seguras conforme a reiteração de hipóteses que se validam conforme uma


verificação original, é insuficiente para dar conta da complexidade das rela-
ções sociais, e mais, que esse método na verdade esconde a intrincada rede de
poder por trás das instituições decantadas do Estado — este, segundo Warat,
uma “instância de censura, do segredo e do silêncio”31 —, que ele diagnostica
uma responsabilidade pela criação de uma cobertura racional para pretensões
de dominação, reproduzidas por inércia atemporal pela doutrina e pela juris-
prudência. Doutrina que, embora reconheça o caráter polissêmico e às vezes
contraditório da norma, não deixa de dar a ela papel central no pensamento
jurídico e, ao mesmo tempo, fundamento para o pensamento zetético.
Com efeito,

Estas observações dizem respeito a um forte laço que se foi tecendo entre o
juridicismo que sustenta as crenças sobre o Estado de Direito e as formas de um
saber, que em nome da Ciência, postula a objetividade para impedir a formação
de novas identidades coletivas. Um jogo de conexões ambíguas vai gerando um
certo “clima”, um horizonte que faz possível conjunto das interpretações da lei:
disfarçando o caráter político das mesmas estratégias míticas, dissimulam o fato
de que todo processo interpretativo é sempre a manifestação de um poder. O
exercício do poder de produzir os sentidos da lei. No caso, um poder que, por
outro lado, não consegue, na perspectiva juridicista, transgredir a estrutura de
dominação que lhe outorgou tal faculdade.32

Além disso, o Direito teria, em si, um caráter mítico, entendendo “mito”


como uma forma específica da manifestação do plano ideológico no plano do
discurso, destinado, de um lado, a provocar a pacificação das consciências atra-
vés da aceitação e conformação com as contradições sociais e da veneração das
formas de poder instituído, e de outro para deslocar os conflitos sociais para o
lugar “instituído da lei”, tendo em vista torná-los menos visíveis.
Nesse sentido, o senso comum teórico dos juristas pode ser entendido
como um conjunto de elementos interiorizados, preconceitos, ideologia, crenças,
colocados por trás do método dos juristas, em que são verificados também:

uma série de pressupostos sobre a própria concepção de ciência e seu valor social
que se aceitam como opiniões intocáveis. É o imaginário da linguagem científica
que dá a seus enunciados atribuições impossíveis: estabelecer palavras sem
ambiguidades, eliminar os componentes míticos da verdade, situar o erro como
polifonia e a verdade como univocidade, impor a ilusão da linguagem como versão
objetiva do mundo, eliminar a determinação conotativa da verdade etc.33

E na medida em que o senso comum teórico se impõe como uma realidade


por trás da aparente conformidade teórica do Direito, a própria distinção,
31
WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito: a epistemologia jurídica da modernidade. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris, 1995. v. 2, p. 63.
32
WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito: interpretação da lei: temas para uma reformulação. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris, 1994. v. 1, p. 28.
33
WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito: a epistemologia jurídica da modernidade. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris, 1995. v. 2, p. 98.

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enunciada no início do ponto, entre dogmática e zetética torna-se problemática.


Embora mesmo Viehweg não tenha admitido, originalmente, que a zetética
pudesse se sobrepor à dogmática ou até mesmo transformá-la, a ideia de uma
complementaridade é posta à prova por Warat, quando afirma que a zetética,
antes de compreender uma esfera independente e reflexiva, está instalada
no interior da dogmática e por isso sofre, assim como ela, os efeitos do senso
comum teórico dos juristas:

A zetética dogmática é a pesquisa levada a cabo para reforçar e corrigir a dog-


mática. Ela se realiza no interior da dogmática. Não se assenta sobre opiniões
correntes, senão em opiniões legitimadas pelas comunidades e cientistas sociais.
A pesquisa é dogmática porque não apenas se realiza em seu interior, como tam-
bém não ultrapassa os seus limites. É chamada a dar flexibilidade à dogmática,
“interpretabilidade, declinabilidade e discutibilidade do núcleo conceitual a fim
de poder mantê-lo nas diferentes situações”, segundo as palavras de Viehweg.
Representa, em relação à dogmática, um pensamento complementar e corretivo.
Atua dentro dos limites da própria dogmática para resguardar sua efetividade
retórica. Seria a atualização ideológica da dogmática. Para mim não existem
dúvidas em falar em uma ideologia jurídica que está na base a dogmática e
da zetética jurídicas. A zetética dogmática teria a função básica de legitimar
valorativamente o sentido das normas legais vigentes, determinar as soluções
derivadas das mesmas e os procedimentos argumentativos aceitáveis, para
modelar, a partir de dogmas legitimados, o que é o direito positivo em todas as
suas manifestações, ou seja, legitimar as ciências e as opiniões não demonstradas,
a partir dos quais se tomam decisões e se admitem raciocínios persuasivos.34

Ao determinar o que pode ser discutido, dentro do que é legitimado


pela comunidade dos juristas, a zetética exclui também as contribuições hete-
rodoxas, taxadas de “saber não-científico”. Independentemente de um debate
amplo sobre seus pressupostos e fundamentos, é a resposta padrão do status
quo jurídico quando as problematizações oriundas do chamado “Direito
Alternativo” são chamadas a contribuir com a solução de um determinado
conflito. “Isso não é científico. Isso é ideologia, isso é um debate desproposi-
tado”. Da mesma maneira, tem-se o efeito do discurso da autoridade como
elemento limitador do acesso ao argumento jurídico: ao criar um conjunto de
expressões técnicas, de liturgias, de procedimentos delimitados, de expres-
sões consagradas, somente o especialista, cuja figura associa-se a do “grande
doutrinador e jurisconsulto”, pode decifrar o saber jurídico, convertendo-o
em privilégio dos integrantes de um verdadeiro “monastério dos sábios” e
mantendo-o alienado dos componentes sociais.
Nesse diapasão, aprofundando a discussão no plano da psicanálise,
Warat assevera que:

o sentido comum teórico dos juristas como parte da visão de mundo juridicista
poderia ser caracterizado, em uma nova aproximação, como o “superego” da
34
WARAT, op. cit., p. 29.

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Da crítica da dogmática jurídica à hermenêutica constitucional: reflexões sobre a (in)eficácia das normas... 105

cultura jurídica: uma instância de julgamento e censura que impede os juristas


de produzir decisões autônomas em relação a esse nível censor. Assim, o ego
dos juristas crê igualar o modelo da lei, adaptando sua palavra às significações
que presume contidas na lei. Ele encarna ingenuamente a palavra da lei sem
advertir que está adaptando um conjunto de significantes.35

Embora não responda ainda ao problema que se colocou para esta aná-
lise, é certo que a problemática da ineficácia da proteção ao meio ambiente
tem sua formação umbilicalmente ligada a esse diagnóstico apresentado —
do que realmente está por trás da dogmática jurídica e sua pretensão de cien-
tificidade. Assim, pouca neutralidade sobra quando se pensa nas leis pro-
duzidas por bancadas ruralistas no parlamento — leis cujo processo de ela-
boração, aliás, passa batido na maior parte das aulas durante os 5 anos de
uma faculdade de Direito. Agora que um indício importante da origem do
problema foi estabelecido, segue-se, adiante, com o papel da hermenêutica
jurídica em sua superação.

3 Caminhando para a solução do problema: a hermenêutica


constitucional ou “como a Constituição não pode continuar
sendo uma estranha à hermenêutica jurídica”
No ponto anterior, exploraram-se as contradições contidas na dogmática
jurídica e suas repercussões para a identificação do lugar em que nasce o problema
da ineficácia das normas ambientais. Neste, por sua vez, tentar-se-á demonstrar
como o senso comum teórico expande seus tentáculos para a hermenêutica jurí-
dica, e em que medida uma hermenêutica — constitucional — comprometida,
de um lado, com a efetivação das promessas da Constituição, e de outro, como
uma trincheira de defesa dos direitos fundamentais, por ser fonte de um vasto
conteúdo principiológico, pode ser capaz de dar cabo desse problema.
Fosse o problema desta investigação superável no plano normativo, e
toda a discussão realizada no item anterior seria desnecessária. Isso porque
a proteção do meio ambiente está consolidada no art. 225 da Constituição
Federal de 1988, e é responsável por vincular e limitar diversos outros com-
ponentes e dimensões da vida social, tais como a atividade econômica e os
direitos de propriedade. Bastaria, assim, prestigiar o conteúdo do §1º do
art. 5º, que dispõe que “as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais
têm aplicação imediata”. Todavia, como ainda não é possível abolir a pobreza
por decreto, essa ainda é uma perspectiva limitada e até certo ponto edulco-
rada da Constituição, que não atende aos objetivos desta reflexão, embora dê
sinais importantes de como a questão pode (e deve) ser vista.
Infelizmente, o cenário é desalentador. Como dito, o Brasil é campeão
de desmatamento e uso desregulado dos recursos ambientais. Dessa maneira,
pensa-se num papel de protagonismo do Direito nessa discussão, a resposta
passa, novamente, por um diagnóstico a respeito da posição do Direito
diante desse problema.
Idem, ibidem, p. 82.
35

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Some-se a isso o predomínio, na doutrina, de visão atomizada e


individualista dos conflitos que são submetidos ao Poder Judiciário, decor-
rência, evidentemente, do ensino do Direito. É daí que se extrai a visão, entre
outras, de que um conflito pela posse de terras pode ser plasmado no clássico
exemplo (dos também clássicos) Caio, Tício e Mévio, em que Caio invade a
fazenda de Tício, e o Direito responde com singeleza: “é esbulho” — solucionável
por reintegração na posse, em prol da proteção dos direitos reais de garantia.
De acordo com Lenio Streck, situação inversa, porém, quando o operador
se depara com uma situação em que Caio, Mévio e milhares de pessoas sem-
terra e em situação de vulnerabilidade social invadem a fazenda com registro
grilado de Tício. A resposta a esse conflito torna-se complicada, e não é através
da solução encontrada nos manuais jurídicos e no discurso da autoridade do
“douto doutrinador” que o operador jurídico encontrará a solução mais ade-
quada.36 É aí, de todo modo, que fica evidente o caráter liberal-individualista-
normativista do Direito brasileiro, contraditório à (evidente) complexidade das
relações sociais: aprende-se (e aplica-se) o direito como se fosse possível repro-
duzir, nas diversas e cotidianas situações envolvendo direitos metaindividuais,
os deslindes clássicos das relações entre dois indivíduos litigantes.
Caráter que se reitera na certeza de se ter, de um lado, uma sociedade
que carece da realização das promessas constitucionais, e de outro, uma
Constituição Federal que lhes fornece garantia expressa. É nesse sentido
que é preciso ter consciência do quadro socioeconômico em que as disputas
jurídicas são travadas, tanto quanto se deve estar treinado para lidar com os
diversos tipos de ação, procedimentos e normativas incidentes em uma lide.
É por isso que para Streck,

A inefetividade de inúmeros dispositivos constitucionais e a constante redefinição


das conquistas sociais através de interpretações despistadoras/redefinitórias feitas
pelos Tribunais brasileiros têm uma direta relação com o modelo de hermenêutica
jurídica que informa a atividade interpretativa da comunidade jurídica.37

A hermenêutica jurídica, nos termos do círculo vicioso do senso comum


teórico anunciado por Warat, então, tem a sua parcela de culpa no aprofunda-
mento do problema de ineficácia que se discute aqui. É nesse sentido que se
defenderá a tese de uma hermenêutica constitucional adaptada e consciente à
realidade de um país de modernidade e capitalismo tardios como o Brasil.
Tradicionalmente, a ideia de Constituição está ligada às limitações
impostas aos Estados como forma de diminuir sua ingerência sobre a vida do
indivíduo. Trata-se de visão cunhada no bojo do projeto filosófico da moder-
nidade, e profundamente ligada às bases do liberalismo econômico e político.
36
Outro sinal sintomático de como o problema desta investigação se agrava — e como se reafirma ao longo dos
tempos o senso comum teórico dos juristas — é a forma como se ensina Direito no Brasil. Com efeito, de acordo
com Lenio Luiz Streck, “A cultura calcada em manuais, muitos de duvidosa cientificidade, ainda predomina na
maioria das faculdades de Direito. Forma-se, assim, um imaginário que ‘simplifica’ o ensino jurídico, a partir da
construção de standards e lugares comuns, repetidos nas salas de aula e posteriormente nos cursos de preparação
para concursos, bem como nos fóruns e tribunais” [através de afirmações atemporais, como ‘a jurisprudência é
mansa (sic) e pacífica, g.n.] (STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise, p. 83).
37
STRECK, op. cit., p. 94.

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Nesse sentido, se antes tinha-se um Estado intrometido, um Estado que


avançava perigosamente sobre a definição dos costumes das pessoas e que
exercia um papel de controle social dilatado, a noção de Constituição, em sua
origem, consagra a limitação da atuação do Estado sobre o particular.38
Em que pese a imensa quantidade de estudos e teorias sobre a
Constituição, muitas das quais ilustres desconhecidas até pouco tempo atrás
no Brasil, importa, nesse instante, destacar a origem da Constituição, para
então compreendê-la hoje, no cenário brasileiro, para aí verificar as possibili-
dades de sua evolução.
Com efeito, de acordo com Lenio Streck, tem-se que:

o caráter inovador assumido pelo constitucionalismo contemporaneamente


tem influído poderosamente determinados aspectos implícitos na constitucio-
nalização do Direito, podendo ser destacados, com Alonso Garcia Figueroa,
três aspectos: um material, um estrutural e funcional e um político. O aspecto
material da constitucionalização do ordenamento consiste na conhecida recepção
no sistema jurídico de certas exigências da moral crítica na forma de direitos
fundamentais. Em outras palavras, o Direito adquiriu uma forte carga axioló-
gica, assumindo fundamental importância a materialidade da Constituição. O
aspecto material da constitucionalização tem apontado para um reforço entre
os juristas de um conceito não positivista de Direito, no qual o sistema jurídico
está vinculado à moral de forma conceitual, o que, aliás, pode ser um dos ele-
mentos que distingue o constitucionalismo atual (neoconstitucionalismo) de
suas versões precedentes. O constitucionalismo tradicional era sobretudo uma
ideologia, uma teoria meramente normativa, enquanto o constitucionalismo
atual tem se transformado em uma teoria do Direito oposta ao positivismo
jurídico enquanto método. Já o aspecto funcional se expressa através do tipo
de argumentação que estas fomentam. Assumem relevância, neste contexto,
os princípios constitucionais, incidindo sobre o ordenamento e sobre a aplica-
ção do ordenamento. Há um efeito de irradiação provocado pelos princípios,
que estão que pode ser observada nos tribunais constitucionais europeus e no
desenvolvimento da teoria da argumentação jurídica, na medida em que toda
a interpretação se submete aos princípios.39

Decorrente disso é um processo de crescente deslocamento do protago-


nismo do Poder Legislativo para a Justiça Constitucional — uma justiça que, no
caso brasileiro, pode e deve estar presente em todas as instâncias e ser exercida
por todos os juízes —, e que, nos contornos do dirigismo constitucional, amplia
os poderes do magistrado para, a partir das promessas da Constituição e do pró-
prio projeto filosófico em que ela se insere (o projeto filosófico da modernidade),
de construção de uma sociedade justa, fraterna e orientada para a redução das
desigualdades, poder exigir do Estado a pronta execução de políticas públicas.
38
Embora não se olvide das críticas de autores como Michel Foucault e Friedrich Nietzsche ao caráter contraditório
da racionalidade moderna que legitima o “governo das leis” através da tripartição e separação dos poderes,
enquanto evidente agudização das formas de controle social através de um revestimento que se autolegitima na
razão, e não em elementos metafísicos como o Absolutismo de outrora, mas incapaz de esconder a pretensão de
manutenção do poder, essa visão não será aqui aprofundada.
39
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 101.

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108 Wilson Levy

Esse novo fundamento constitucional consagra, entre outros, a proibição


expressa a um dos mitos até outrora decantados no universo (dos mitos)
jurídicos: a norma programática. Como diria Eros Roberto Grau, a partir dessa
noção “está proibido falar em normas programáticas”.
Não se diga que isso é uma utopia retórico-constitucionalista. A Constituição,
antes de tudo, é uma condição de possibilidade de inserção do Estado Nacional
na pós-modernidade globalizante, sem maiores percalços, a despeito da própria
fragmentaridade, da própria erosão de valores e abandono das posições seguras
de outrora que marcam esse paradigma que se inicia. Assim, resta evidente o ali-
nhamento com a tese, defendida por Streck, de que a Constituição não pode, em
hipótese alguma, ser uma estranha à hermenêutica jurídica.
Nesses termos, quando se pensa em eficácia das normas garantidoras
do meio ambiente saudável, se está a pensar em um preceito principiológico,
consagrado na Constituição, e que deve ser observado na própria complexi-
dade em que se insere. Não se está, em hipótese alguma, inserindo o debate na
dicotomia maniqueísta “desenvolvimento econômico versus ecochatismo”. A
Constituição Brasileira, como assevera Cristiane Derani, consagra e positiva o
modo de produção capitalista como orientador da ordem econômica.
A proteção do meio ambiente seria, nesses termos, não um limitador da
produtividade, mas, de outro lado, a garantia que a propriedade, dentro de
um Estado que pretende reduzir as desigualdades sociais e regionais e pres-
tigiar o princípio da dignidade da pessoa humana, deve verter à sociedade
algum benefício que não a simples fruição de seu conteúdo por seu dono.
Como afirmado no ponto anterior, o direito ambiental pertence ao
âmbito dos direitos fundamentais de terceira geração. Tal afirmação implica
compreender que existe um dever de não-retrocesso em matéria ambiental,
além de uma proibição de excesso, em sede de sua flexibilização, a partir do
referencial firmado pela principiologia que a ele se agrega.
A submissão da legislação ordinária a seus pressupostos, enquanto
mecanismo de proteção, é exigência estabelecida pela CF/88. Cabe aqui a per-
cuciente análise de Luiz Guilherme Marinoni:

Diante disso, tornou-se necessário resgatar a ‘substância’ da lei, encontrando-se


os instrumentos capazes de permitir a sua limitação e conformação aos princí-
pios de justiça de modo racional e democrático. Como tais princípios tinham de
gozar de uma posição de superioridade, foram eles postos nas Constituições,
que passaram a ter plena eficácia normativa. É quando a lei perde a sua posi-
ção de supremacia, passando a se subordinar aos direitos fundamentais e aos
princípios de justiça contidos na Constituição.40

Tal posicionamento é essencial à efetividade das normas de direito


ambiental e a caracterização de direito fundamental conferida pelo legis-
lador originário. Pois: “Constitucionalizar, nesse enfoque, denota que a
constitucionalidade toma o lugar da legalidade na função de veículo e

40
MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 405.

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Da crítica da dogmática jurídica à hermenêutica constitucional: reflexões sobre a (in)eficácia das normas... 109

resguardo de valores essenciais, firmando-se, a partir daí, uma ordem pública


ambiental constitucionalizada”.41
Nesse diapasão, deve-se ter como referência principal o mandamento
constitucional. Pois:

Como esse direito fundamental incide sobre o Estado e, portanto, sobre o legislador
e o juiz, é evidente que a omissão do legislador não justifica a omissão do juiz.
Diante disso, para que a jurisdição possa exercer a sua missão — que é tutelar os
direitos — e para que o cidadão [e a sociedade, anotamos] realmente possa ter
garantido o seu direito fundamental à tutela jurisdicional, não há outra alternativa
a não ser admitir ao juiz a supressão da omissão inconstitucional.42

É certo, portanto, que a hermenêutica constitucional, num contexto de


ativismo judicial orientado a lidar com a imensa (e contraditória) quantidade
de normas ambientais, e tendo em vista o que dispõe expressamente a
Constituição, poderá contribuir para a superação do problema que preten-
deu abordar este trabalho.

À guisa de conclusão
Este trabalho pretendeu esmiuçar brevemente o problema da ineficá-
cia da proteção constitucional ao meio ambiente saudável, proteção essa que
remonta à noção de que se está diante de verdadeiro direito fundamental e
atributo inato à dignidade da pessoa humana.
Dessa maneira, não há que se falar simplesmente em resposta legisla-
tiva a um problema que é epistemológico e filosófico, na medida em que está
enraizado na própria crise da dogmática jurídica. Eis uma constatação de
profunda repercussão na forma como se trata, de maneira geral, o problema
da ineficácia das leis brasileiras: produzindo-se mais leis!
Assim, é essencial que se reconheça o importante papel da hermenêutica
jurídica na superação deste problema, mas não de qualquer hermenêutica
jurídica: uma hermenêutica que não tenha a Constituição como uma estra-
nha, mas como fundamento de destino. Nesse sentido, é preciso, em especial
no plano do direito ambiental, superar o paradigma das velhas lides indi-
viduais, na medida em que se tratam de problemas cuja natureza se revela
transindividual, e reconhecer, também, a crise da dogmática jurídica e seus
efeitos sobre a eficácia das normas protetoras do meio ambiente saudável,
como se apresentou nesta reflexão.
Tal impõe ao Poder Judiciário um papel de protagonista, ante a tra-
dicional (e superada) noção de separação de poderes e de que o juiz é
mero espectador de pedra dos conflitos que são levados à sua apreciação.
Esse protagonismo deve se traduzir na consciência de que a Constituição
ainda é documento hábil a delinear os caminhos e os projetos pretendidos
pela sociedade e encerra, em seu conteúdo normativo, as diretrizes a serem
41
CANOTILHO, J. J. Gomes; LEITE, José Rubens Morato. Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva,
2007. p. 80.
42
MARINONI, op. cit., passim.

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110 Wilson Levy

irradiadas por toda a normatividade infraconstitucional. E também num


ativismo orientado para a superação de conflitos muitas vezes resolvidos com
base em verdadeiro festival de normas contraditórias à Constituição, produ-
zidas por maiorias parlamentares eventuais e não desinteressadas, como as
bancadas ruralistas, e responsáveis pelo permanente clima de impunidade
predominante no Brasil.
Embora não se olvide da necessidade de desenvolver novos mecanis-
mos, muitos não-jurídicos, de garantia da efetividade das normas protetoras
do meio ambiente saudável, tais como a democracia participativa, presente,
entre outros, no Estatuto da Cidade, ou a educação ambiental, prevista consti-
tucionalmente, é certo que a resposta passa por um novo olhar da dogmática
jurídica e da hermenêutica. Dessa maneira, espera-se, a eficácia das normas
ambientais permitirá que o país saia da incômoda posição de notório desmata-
dor com correspondente impunidade, em face da imensa e generosa fatia que
cabe a ele, como maior depositário de diversidade ambiental do planeta.

The Critique of Dogmatics of Law and the Constitutional Hermeneutics:


Reflections on the (In)Effectiveness of the Norms of Protection of the
Environment Healthy
Abstract: This article discusses the issue of ineffectiveness of the protection
of the environment healthy from the criticism of dogmatic certainty and
hermeneutic. Our intention is, with this, check to what extent the modern
hermeneutic can, through the consolidation of new perspective and within
a new role of the judiciary, to help overcome the individualistic-liberal
paradigm, the normative practice prevailing in the Brazilian legal and to
circumvent the problems arising from the crisis in contemporary legal
dogmatic. The methodology used to divide will be on literature review of
texts and fragments of the professor Luis Alberto Warat and other theoretical
frameworks of Philosophy, Law Hermeneutics and Theory of Law. Is expected
as a result contribute to the debate about the ineffectiveness of constitutional
norms that protect the environment, from reflections produced in the
Philosophy of Law.
Key words: Criticism of dogmatic of law. Hermeneutics. Constitution.
Environment. Fundamental Rights.

Referências
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Da crítica da dogmática jurídica à hermenêutica constitucional: reflexões sobre a (in)eficácia das normas... 111

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Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995. v. 2.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

LEVY, Wilson. Da crítica da dogmática jurídica à hermenêutica constitucional: reflexões


sobre a (in)eficácia das normas de proteção do meio ambiente saudável. Revista Brasileira
de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 71, p. 91-111, jul./set. 2010.

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Técnica normativa estrutural das decisões jurisdicionais no Estado Democrático de Direito 113

Técnica normativa estrutural das


decisões jurisdicionais no Estado
Democrático de Direito
Joseli Lima Magalhães
Professor de Direito Processual Civil da UFPI e da UESPI. Mestre em Direito pela UFPE.
Doutorando em Direito Processual pela PUC Minas. Advogado.

Resumo: O presente artigo jurídico demonstrará a necessidade de existir toda uma


técnica normativa quando da construção das decisões jurisdicionais, no Estado
Democrático de Direito, estruturada em procedimentos tomando como referên-
cia o modelo constitucional do processo. Para isso tomar-se-á como referência a
aplicação do método dedutivo e os elementos que o cercam relacionados com a
atividade decisional tomada em conjunto com as partes, e não isoladamente.
Palavras-chave: Técnica normativa. Decisões jurisdicionais. Modelo consti-
tucional. Estado Democrático de Direito.
Sumário: Considerações iniciais – 1 A técnica processual e a vocação do nosso
tempo para a jurisdição – 2 A técnica processual e o falso dilema dos escopos
do processo – 3 Técnica estrutural do raciocínio judicial – 3.1 Aplicação do
método dedutivo – 3.2 Controle da solução dedutiva – 3.3 A solução nos casos
considerados difíceis – Considerações conclusivas – Referências

Considerações iniciais
Ao estudar a ciência do direito processual e seu objeto, Aroldo Plínio
Gonçalves aponta que na racionalidade moderna o centro de atuação do
direito é a norma, e os ordenamentos mais racionais têm como centro a
superação do subjetivismo a fim de se chegar à justiça, havendo uma evo-
lução da teoria do direito, que antes centralizava-se na figura do juiz, hoje
se apresentando mais racional. Nesse sentido a importância de a ciência do
direito processual propiciar melhor aplicabilidade da norma jurídica, por
meio dos órgãos jurisdicionais, não mais vista subjetivamente. Daí a necessi-
dade da criação da ciência do direito processual capaz de dar novo dinamismo
ao processo (fase de criação dessa ciência).
Este artigo jurídico busca, exatamente, estudar as técnicas norma-
tivas das decisões jurisdicionais, no sentido de que não haja essa liberalidade
toda no momento do magistrado decidir, tendo como ambiente o Estado
Democrático de Direito, partindo não somente da ideia da aplicação da sub-
sunção, mas também dos princípios gerais de direito, e tentando solucionar
a seguinte questão: existe uma única decisão jurisdicional justa ou várias
decisões jurisdicionais podem ser consideradas como igualmente justas?
Certamente, no ambiente da estrutura das decisões jurisdicionais, cuja técnica
se confunde com o próprio procedimento, a busca de uma decisão menos

GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992. p. 45-47.

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114 Joseli Lima Magalhães

subjetiva (mais concreta, com elementos reais e concretos) alicerçada nos escopos
do processo não tem recepção na estrutura do Estado Democrático de Direito.
Também será demonstrado que a grande dificuldade do processo civil
moderno é adequar o tipo de procedimento. Não tendo que haver tantos proce-
dimentos diferentes. Aqui é que se verifica a importância do manejo da correta
técnica processual. Difícil desvincular a técnica de procedimento, isso porque ao
se adotar a teoria estruturalista do processo (Fazzalari), que processo é procedi-
mento em contraditório, a estrutura do Código deveria ser: Livro I – dos procedi-
mentos cognitivos (ordinário, sumário e especiais), portanto a redução dos pro-
cedimentos especiais, inserindo-os no processo de conhecimento; Livro II – dos
procedimentos executivos; Livro III – dos procedimentos cautelares. Não se deve
trabalhar tanto com procedimento especial, mas com um procedimento geral.

1 A técnica processual e a vocação do nosso tempo para a jurisdição


No capítulo primeiro da obra “Jurisdição e Processo”, Nicola Picardi
aponta que o século XXI é vocacionado para a jurisdição, e que para Savigny
o século XIX foi vocacionado para a legislação, apresentando-se a técnica da
elaboração de leis por meio de códigos como sendo a melhor para um país,
apesar da célebre batalha acadêmica que travou com Thibaut, o qual era a
favor de que a Alemanha elaborasse, o quanto antes, um código civil. Savigny
não era propriamente contra um código civil para a Alemanha, mas sim que
aquele momento histórico por que passava o país não era propício.
Picardi aduz, ainda, que nos fins dos anos 30, do século passado,
Mariano D’Amelio retoma essa ideia da necessidade de codificar as leis e que
nos anos 70, do mesmo século, Natalino Irti, na obra “L’età della decodifica-
zione”, fala que a técnica legislativa mais apropriada é a decodificação.
Tive oportunidade de, em minha dissertação de mestrado, publicar
obra que trata exatamente dessa questão relacionada à codificação, só que na
área do direito civil. Lá demonstrei que os códigos herméticos construídos
sob a visão oitocentista não mais têm condições de agrupar toda a complexi-
dade normativa por que atravessa o direito chamado pós-moderno. Trabalhar
com microssistemas jurídicos, ficando o código civil (no caso do direito pri-
vado) como eixo desse sistema, e também construir toda uma arquitetura
jurídica no sentido de deixar o magistrado como centro desse sistema, princi-
palmente trabalhando com conceitos jurídicos indeterminados (um conceito
cujo conteúdo e extensão são em larga medida incertos) e cláusulas abertas,
além de aplicabilidade dos princípios legais e especialmente os princípios
norteadores no novel diploma: operabilidade, eticidade e socialidade.

BRÊTAS, Ronaldo Carvalho Dias. Aulas do doutorado acadêmico em direito. Belo Horizonte: Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, ago./dez. 2009.

PICARDI, Nicola. Jurisdição e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 1-32.

PICARDI, Nicola. Jurisdição e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 2.

MAGALHÃES, Joseli Lima. Da recodificação do direito civil brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 7. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. p. 208.

Dennis Lloyd aduz que “os juízes não atuam no vácuo, mas são parte da comunidade em que funcionam, e os princípios
legais desenvolvidos e aplicados por eles refletem, em certa medida, tanto os sentimentos predominantes quanto os usos
e costumes aceitos pela sociedade. Não obstante, a noção de uma espécie de alinhamento automático entre a lei, tal como
é exarada pelo juiz, e os padrões e costumes da comunidade, não pode ser aceita sem consideráveis reservas. Pois, em
primeiro lugar, a lei judicial tende a desenvolver uma certa autonomia, refletindo mais os numerosos refinamentos, sutilezas,
tecnicismos e ficções da opinião jurídica profissional do que a abordagem simples que o leigo é suscetível de dar aos acertos
e erros de suas atividades cotidianas” (LLOYD, Dennis. A idéia de lei. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 308).

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Técnica normativa estrutural das decisões jurisdicionais no Estado Democrático de Direito 115

Quatro anos depois, retomo meus estudos e vejo que o trabalho peca
exatamente por isso, por colocar o magistrado como ator principal da resolutivi-
dade dos conflitos materiais, o que torna o direito cada vez mais autocrático.
O direito processual, especialmente o civil, fez-me abrir novos horizontes
no sentido de identificar que a decisão judicial, que em última análise acaba sendo
a lei entre as partes (em uma visão bem chiovendiana), deve ser construída pelas
partes, em simétrica paridade e em condições de igualdade, figurando o magis-
trado apenas como um ator revelador do direito e não tecnicamente como o
construtor desse direito, diminuindo-se, via de consequência, o ativismo judicial
e homenageando o princípio do contraditório e da ampla defesa, na medida em
que as partes é que serão as principais afetadas pelo provimento jurisdicional, de
certa forma corroborado pela existência de lacunas no ordenamento jurídico, as
quais aparecem “quando nem a lei nem o Direito consuetudinário nos dão uma
resposta imediata a uma questão jurídica”, propiciando, que ao preencher esta
lacuna, o magistrado, muitas vezes, utiliza-se da metafísica e de valores indivi-
duais, subjetivos e baseados em um estrutura não levada a debate.
Essa correlação com o direito material é importante porque, no direito
processual, igualmente, não pode o magistrado ser o senhor dos desejos das
partes e, apesar de estarmos vivendo uma época em que a Judicialização do
direito é que está predominando, devem ser construídos mecanismos menos
subjetivos e mais concretos no sentido de evitar-se a decisão tomada autori-
tariamente, sem a participação das partes no debate processual.
Assim, é que se apresenta pertinente outra questão suscitada por Picardi
ao trazer pensamento de Popper, segundo o qual não é importante saber quem
decide, quem deve comandar, mas sim como se controla quem comanda. No caso do
direito, se nossa época é apropriada para a jurisdição, a grande preocupação é
saber como controlar os atos do juiz, já que ele encarna em si a figura da jurisdi-
ção. Quando da criação do CNJ ocorreu este questionamento: quem vai reformar
as decisões tomadas por este Conselho? Quem vai controlar suas decisões?
Não se pode confundir, contudo, o elastecimento dos poderes do juiz
com a garantia da independência que este deve possuir, na medida em que
“l’indipendenza dei giudici è garantia quam máxime dal punto di vista político”.
Esse controle dos atos jurisdicionais é um dos temas do direito proces-
sual mais estudados na atualidade, passando necessariamente pela técnica
a ser utilizada pelo magistrado, tudo em um ambiente denominado Estado
Democrático de Direito.

2 A técnica processual e o falso dilema dos escopos do processo


O estudo da técnica, da prática e da teoria é inerente a todos os ramos
do conhecimento humano. Na área do direito processual civil, especifica-
mente, assume grau de importância em razão do crescente uso de tecnologias
associadas ao manejo da relação jurídica processual, cujo objetivo último é o
impedimento do litígio ou a resolução deste.


ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 7. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. p. 279.

REDENTI, Enrico. Diritto processuale civile. 4a ed. Milano: Giuffré, 1995. p. 43.

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116 Joseli Lima Magalhães

A técnica pode ser entendida como sendo a “predisposição ordenada


de meios destinados a obter certos resultados”10 ou, ainda, um proceder
ordenado (organizado). E para se chegar a estes resultados desejáveis oriun-
dos deste proceder, a técnica, necessariamente, passa pela construção do
saber, o qual requer a criação, utilização e desenvolvimento de teorias.
Dizer que toda técnica é eminentemente instrumental, no sentido de
que só existe em razão de alguma finalidade não soluciona a questão, isto
porque o mais importante não é a finalidade alcançada, mas sim os meios
legais, hábeis, éticos e possíveis por meio dos quais se alcançou tal finalidade.
Daí a estreita relação existente entre a norma material e a norma pro-
cessual, porquanto esta, muitas vezes, é tachada de instrumento a servido
daquela, no sentido de ser o lócus ideal para a aplicabilidade de técnicas viá-
veis e pertinentes para se chegar à concretização do direito material, prestes
ou já violado.
Para Fazzalari, a distinção entre norma material e norma processual é
meramente convencional, daí não mais ter que se falar em grau de hierarquia
entre uma e outra.11
Talvez ainda seja resquício da teoria civilista da ação, e o processo ainda
não se desvencilhou do direito material, assim como no direito processual ainda
se tem o juiz como centro por dizer quem tem o direito material, ao passo que
no processo as partes poderiam influir para “descobrir” a quem pertenceria
este direito. O processo serviria tão somente para descortinar uma nuvem que
estaria coberta (o direito material) e aquele trabalharia mais em uma verdade a
ser buscada (no processo), enquanto que o direito material (verdade ontologi-
camente pré-compreendida) estaria aguardando o seu descobrimento.
O direito processual não pode, pois, servir como mero ancoradouro
(como bem queriam os adeptos da teoria civilista da ação) da vontade do
direito material, possuindo autonomia própria, e que a técnica a ser imple-
mentada e aplicada no desenvolvimento da relação jurídica processual cons-
titui, sim, meio adequado, pertinente, útil e ético a se chegar à resolução do
conflito, que não encerra, em si, o direito material violado.
Deve ser ponderado o posicionamento acadêmico de que o uso das
mais diversas técnicas processuais desenvolvidas no processo objetiva o
alcance dos escopos do processo, especificamente, o escopo social12 (pacificar
os conflitos pela busca da justiça), o escopo político13 (na medida em que a
Função Judiciária faz parte do Estado e necessita exercer o poder e cultuar a
liberdade ao mesmo tempo) e o escopo jurídico14 (o modo como opera e lugar
que ocupa no sistema jurídico). Assim, também que ao se homenagearem os
“escopos do processo”, abre-se espaço para a aplicação da técnica processual
da utilização do prudente arbítrio pelo magistrado, o que constitui perigo à
concretização do Estado Democrático de Direito, na medida em que permiti-
ria que os juízes sábios tornar-se-iam os
10
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 13. ed. São Paulo: Malheiros. p. 264.
11
FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual. Campinas: Bookseller, 2006. p. 134.
12
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 13. ed. São Paulo: Malheiros. p. 189.
13
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 13. ed. São Paulo: Malheiros. p. 198.
14
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 13. ed. São Paulo: Malheiros. p. 209.

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Técnica normativa estrutural das decisões jurisdicionais no Estado Democrático de Direito 117

moralizadores da lei quando esta fosse insuficiente para traduzir o espírito


popular (Volksgeist) e fazer justiça (John Austin, Savigny, Uchata, Windscheid).
Somem-se a essa estranha metodologia aquelas em que só os juízes descobrem
a teleologia da lei (Ihering, Holmese François Geny) ou até mesmo no lugar da
lei (Ehrlich, Kantorowicz, Philipp Heck), porque se rotulam intérpretes sensiti-
vos das leis sociais e humanas, cabendo-lhes a privilegiada construção de uma
jurisprudência de interesses vitais da sociedade.15

Essa visão de escopos do processo foi introduzida no país por Cândido


Rangel Dinamarco, um dos expoentes da Escola Paulista de Direito Processual,16
tomando como esteio a paz social, na busca pela Justiça, por meio da justa
composição da lide, no processo, pregada por Carnelutti, para quem a lide é
um fenômeno metajurídico, e ao se acabar com a lide (que pode ser resolvida
inclusive pela força) tem-se a volta à paz social, daí o processo ter este escopo
de busca da paz social, constituindo a composição do litígio não

um fim em si mesmo, e sim um meio para a proveitosa convivência social. E esta


eficácia sua pode se explicar de dois modos: enquanto a composição se extinga,
dentro do possível, a aversão entre os litigantes, que contém um gene anti-social
e, enquanto, por meio do exemplo, induza a outros litigantes à composição
espontânea de conflitos análogos.17

Apesar disso, ainda para Carnelutti, ao se acabar com a lide necessaria-


mente não se tem a paz social: há situações em que não são debatidas, daí a
pertinência da arbitragem.
Este mesmo posicionamento foi posteriormente recepcionado por
Liebman quando tratou da interpretação que o magistrado deve imprimir às
normas jurídicas (inclusive processuais), no sentido de que

não quer dizer que ele possa atribuir à norma conteúdos conforme à sua prefe-
rência subjetiva e arbitrária; pelo contrário, ele deve se esforçar para exprimir
as exigências e os valores da sociedade de seu tempo. O fim último da sua
atividade è a justiça, e, com ela e por meio dela, a paz social.18

A técnica processual, para estes autores, vem a ser, em última análise, a


predisposição ordenada de meios (procedimentos) destinados à obtenção da
15
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 61-62.
16
Em contraposição à Escola Paulista de Direito Processual, a Escola Crítica do Processo propõe a revisão do direito a
partir de premissas, sendo uma delas a ideológica, sendo que “enquanto a Escola do Direito Alternativo apresenta
em seu texto uma leitura hermenêutica, a Escola Crítica do Processo apresenta uma releitura do direito como
um todo, inclusive da hermenêutica jurídica; por hora a Escola Crítica do Processo se concentra nas implicações
do direito processual, enquanto que a Escola do Direito Alternativo ingressa nos diversos setores do direito,
sobretudo no direito material; a Escola Crítica do Processo, mesmo apresentando uma conotação ideológica, se
vincula aos fins prescritos no artigo 3º, da Constituição Federal, enquanto que na Escola do Direito Alternativo
não há essa declarada vinculação; a Escola Crítica do Processo apresenta uma série de sugestões de lege ferenda
que aspiram a normatividade, demonstrando sua característica propesctiva, ao passo que a Escola do Direito
Alternativo apresenta soluções alternativas ao caso concreto, sem haver essa preocupação genérica em produzir
regras jurídicas” (PAULA, Jônatas Luiz Moreira. História do direito processual brasileiro: das origens lusas à escola
crítica do processo. Barueri: Manole, 2002. p. 363-364).
17
CARNELUTTI, Francesco. Sistema de direito processual civil. 2. ed. São Paulo: Lemos e Cruz, 2004. v. 1, p. 371.
18
LIEBMAN, Eurico Túlio. Manual de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense. p. 23, v. 1

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118 Joseli Lima Magalhães

paz social, como que almejando o retorno à situação anterior à existência do


conflito, ou seja, o processo deveria dar “quanto for possível praticamente, a
quem tenha um direito, tudo aquilo e exatamente aquilo que ele tenha direito
de conseguir”,19 e para isso a utilização da técnica deve ser mais do que nunca
apropriada a fim de se alcançar este desiderato.
Chiovenda, no entanto, discorda do pensamento de Carnelutti, para
quem o processo visa à justa composição da lide, por considerar que “mesmo
quando entre as partes existe um contraste, não é o objetivo imediato do pro-
cesso compô-lo, mas dizer e atuar a vontade da lei”, a menos que este termo
“justa” seja entendido “conforme à lei”; do contrário, se se entender esta
“justa composição” como sendo uma “justa composição qualquer”, deve-se
“repudiar uma doutrina que volveria o processo moderno, inteiramente ins-
pirado em alto ideal de justiça, ao processo embrionário dos tempos primiti-
vos, só concebido para impor a paz, a todo custo, aos litigantes”.20
A importância da atuação dos direitos materiais, onde o processo
ganha importância como meio (técnica), foi ressaltado Ada Pellegrini
Grinover, quando diz que toma impulso com propósitos renovados, e que

os estudos constitucionais, como resultantes das forças políticas e sociais de


determinado momento histórico; a21 transformação do processo, de meio pura-
mente técnico, em instrumento ético e político da atuação da Justiça e garantia
das liberdades; a total aderência do processo à realidade sócio-jurídica a que se
destina, para o integral cumprimento da sua vocação primordial, que é, afinal
de contas, a de servir à efetiva atuação dos direitos materiais.

Os processualistas adeptos da conhecida Escola Paulista de Direito


Processual têm alcançado este objetivo de ao mesmo tempo tornar o direito
processual independente do direito material, mas servindo como instrumento
daquele, tendo o método técnico científico como elemento propulsor da efeti-
vidade da Escola e do que ela propugna, introduzindo a figura do magistrado
como sendo a força motriz do processo e o principal responsável a se chegar,
por meio da decisão jurídica, à construção do Direito como um todo. A lei, neste
particular, cada vez mais se encontra cedendo espaço para à atividade jurisdi-
cional do magistrado, o qual, por meio da decisão jurídica, constrói o Direito,
numa alusão e amor cada vez mais próximo ao pragmatismo jurídico. O direito
passa a ser aquilo que os magistrados, a Suprema Corte de um país entende.
A lei e os códigos são apenas instrumentos, ainda fortes, é verdade, para nor-
tearem, de certa forma, o pensamento dos decididores, mas a construção do
Direito, em última análise fica por conta das decisões jurídicas. O tecnicismo
abre espaço para a efetividade e a instrumentalidade. Aqui, mais uma vez, a
figura do magistrado se apresenta como salvador dos direitos das partes (ou
da sociedade) por meio do processo, constituindo este importante instrumento

19
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Campinas: Bookseller, 2000. p. 67, v. 1.
20
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Campinas: Bookseller, 2000. p. 67, v. 1.
21
GRINOVER, Ada Pellegrini. O magistério de Enrico Tullio Liebman no Brasil. In: Novas tendências do direito processual.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990. p. 441.

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Técnica normativa estrutural das decisões jurisdicionais no Estado Democrático de Direito 119

a serviço das partes para garantia de seus direitos, abarcando definitivamente


o sentimento de agente político, transformador da sociedade.
Cassio Scarpinella Bueno, um dos representantes da nova geração desta
Escola, bem resume ser uma necessidade para o sistema jurídico a abertura
interpretativa, constituindo papel do juiz na ordem jurídica atual ver os novos
“códigos” com seus princípios, suas cláusulas gerais e seus conceitos vagos e
indeterminados, permitindo que o magistrado, em cada caso concreto — e não
mais o legislador abstrata e genericamente —, o criador do direito a ser aplicado,
analise, em concreto, quais são os valores que devem, ou não, prevalecer. É ver,
mesmo nos “velhos códigos”, como é o caso do Código de Processo Civil, que,
mesmo de uma forma bem tímida, aquela técnica já havia sido empregada pelo
legislador do início dos anos 1970, e que as recentes e constantes reformas tra-
zidas para ele cada vez mais adotam esta técnica legislativa diferenciada.22
Se o processo possui um escopo e a técnica processual dele deve se pre-
ocupar em efetivar, esse se identifica com o sentido de jurisdição, constituindo
a “função de declarar o direito aplicável aos fatos”,23 ou ainda como sendo a
realização do direito (Rosemiro Leal), e mesmo a realização do ordenamento
jurídico (Ronaldo Brêtas) havendo ou não conflito.24

3 Técnica estrutural do raciocínio judicial


Considerações iniciais
Já foi o tempo em que era a decisão judicial ato do juiz, tomada isola-
damente, expressando um sentir, uma consciência exalada de predicativos
construtores do ideal de justiça. A figura de uma jurisprudência sentimen-
tal, da construção de um direito emanado de conceitos vagos, imprecisos e
muitas das vezes até mesmo autoritários, insculpido na figura de um “bom
juiz”, honesto, trabalhador, cuidadoso e justo, capaz de dar aos pobres e tirar
dos ricos, segundo a lei de sua consciência, não mais tem recepção no Estado
Democrático de Direito, em razão da complexa sociedade em que vivemos,
do pluralismo, não só jurídico, onde se buscam cada vez mais justificativas
para tomada de decisões, no melhor estilo do “bom juiz Magnaud”, conside-
rado um “vidente, apóstolo, evangelizador temerário, deslocado no pretório”
e que “atravessou o firmamento jurídico da Europa como um meteoro; da sua
trajetória curta e brilhante não ficaram vestígios”.25
Assim é que o próprio preenchimento das lacunas existentes no
ordenamento jurídico por meio da atuação do magistrado é pura retórica. A
decisão judicial deve ser construída dentro do processo, em contraditório,
estando as partes em simétrica paridade de forças, sendo o estudo da

decibilidade na concepção jurídico-democrática requisito introdutório de demar-


cação temática para discernir as interfaces da decisão que interessa o direito
22
BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: teoria geral do direito processual civil.
São Paulo: Saraiva, 2007. p. 79, v. 1.
23
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Processo constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 76.
24
BRÊTAS, Ronaldo Carvalho Dias. Aulas do doutorado acadêmico em direito. Belo Horizonte: Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, ago./dez. 2009.
25
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1979. p. 83.

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120 Joseli Lima Magalhães

democrático ao expurgo de um prescritibilidade congênita dos juízos decisórios


da razão instrumental e metafísica da modernidade interrompida.26

O direito processual civil moderno exige do ato de decidir que o magis-


trado apresente critérios objetivos, visíveis, deixando de lado a subjetividade
e elementos meramente deônticos, apesar da existência de uma carga histo-
riográfica que o direito, e aí incluso o direito processual, carrega de elementos
considerados metafísicos. O certo é que “quando o magistrado se deixa guiar
pelo sentimento, a lide degenera em loteria, ninguém sabe como cumprir a lei
a coberto de condenações forenses”.27
No percurso da decisão judicial, fundamentalmente o magistrado esco-
lhe um ou os dois caminhos: primeiro decide e depois fundamenta — procu-
ra no ordenamento jurídico a motivação para dar razão à sua decisão; ou vai
construindo a sua fundamentação à proporção que chega à decisão tomada.
Seguindo posicionamento de Ricardo Lorenzetti, até se chegar à decisão,
o magistrado segue uma ordem de raciocínios (sucessivamente); a) aplica a
dedução das regras válidas; b) controla esse resultado conforme os preceden-
tes, o restante do sistema legal e suas consequências; c) caso não consiga, por
se estar diante de um caso difícil, deve socorrer-se dos princípios; d) por fim,
havendo paradigmas definidores da solução, devem ser explicados procurando-se
a sua harmonização.28 É exatamente a cada uma dessas escalas do raciocínio judi-
cial a se chegar à decisão que se vai estudar agora, com exceção da última.

3.1 Aplicação do método dedutivo


Dedução de solução de uma regra formalmente válida. Para Lorenzetti,29
devem ser seguidos três passos:
3.1.1 Delimitar os fatos (elemento fático): é o que se aprende na Teoria Geral
do Direito que para o direito somente têm importância os fatos revestidos de
relevância jurídica, ou seja, os acontecimentos implicadores de consequências
jurídicas, os quais não apenas devem ser mencionados no processo, mas com-
provados, sob pena de arbitrariedade da decisão judicial. É a aplicação do velho
brocardo “dá-me o fato e dar-te-ei o direito”. Aqui, mais do que nunca, obser-
va-se a relação de proximidade do direito com a sociologia, com a metafísica.
Pietro Perlingieri sustenta ser o direito ciência social que necessita
“cada vez maiores aberturas; necessariamente sensível a qualquer modifica-
ção da realidade, entendida na sua mais ampla acepção. Ele tem como ponto
de referência o homem na sua evolução psicofísica, ‘existencial’, que se torna
história na sua relação com os outros homens. A complexidade da vida social
implica que a determinação da relevância e do significado da existência deve
ser efetuada como existência no âmbito social, ou seja, como ‘coexistência’. O
conjunto de princípios e regras destinado a ordenar a coexistência constitui o
26
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 35.
27
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1979. p. 83.
28
LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial: fundamentos de direito. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2009. p. 157.
29
LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial: fundamentos de direito. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2009. p. 160.

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aspecto normativo do fenômeno social: regras e princípios interdependentes


e essenciais, elementos de um conjunto unitário e hierarquicamente predisposto,
que pode ser definido, pela sua função, como ‘ordenamento’ (jurídico), e, pela
sua natureza de componente da estrutura social, como ‘realidade normativa’”.30
3.1.2 Identificar a norma (elemento normativo): associada à delimitação do ele-
mento fático encontra-se, naturalmente, a delimitação da norma (premissa maior),
cuja norma deve respeitar os critérios de hierarquia, especialidade e temporalidade.
3.1.3 Deduzir a solução do caso (elemento dedutivo): por fim, propriamente
a solução do litígio, ao que se designa de subsunção — aplicação da lei ao caso
concreto, fazendo-se a correspondência entre os elementos fáticos com a estru-
tura do ordenamento jurídico que possui uma norma (latente) a ser aplicada.
Após afirmar que, determinados os fatos jurídicos, deve-se determinar o
direito aplicável,31 Couture aponta que a “subsunção nada mais é que o encade-
amento ou enlace lógico de uma situação particular, específica e concreta, com a
previsão abstrata, genérica e hipotética realizada de antemão pelo legislador”,32
onde o conhecido fato concreto, determinado e específico, “configurado pelo juiz
passa a confundir-se com a previsão genérica e hipotética do legislador”.33
Determinados os fatos jurídicos e o direito aplicável, deve ser tomada a
decisão, a qual não se esgota em uma pura operação lógica,34 na medida em que

a lógica desempenha um papel preponderante em toda essa atividade intelectu-


al; mas a sua função não é exclusiva. Nem o juiz é uma máquina de raciocinar,
nem a sentença uma cadeia de silogismos. É, antes, uma operação humana, de
sentido primordialmente crítico, mas na qual a função mais importante cabe
ao juiz como homem e como sujeito de volições.35

O estudo da lógica aplicada ao direito e em especial ao direito processual


somente foi resgatado nas últimas décadas, principalmente pela inserção da her-
menêutica e dos valores constitucionais mais próximos da ciência processual.
Criticada anteriormente, pós-período da escola da exegese, pelos resultados bas-
tante simplórios, objetivos e sem questionamentos maiores, a lógica ganha espaço
em razão da responsabilidade que assume de que não se buscam “estabelecer
critérios de verdade ou falsidade sobre o conteúdo das proposições, enquanto
simples enunciados ou juízos”,36 as quais podem ser verdadeiras ou falsas, mas
que estão disponíveis para serem testadas em sua veracidade ou falsidade.37

3.2 Controle da solução dedutiva


Não basta apenas o magistrado aplicar a lei ao caso concreto. Precisa
ir além. Verificar os efeitos dessa aplicação. Para isso, deve-se trabalhar na
seguinte sequência:
30
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 1-2.
31
COUTURE, Eduardo J. Fundamentos do direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 1946. p. 212.
32
COUTURE, Eduardo J. Fundamentos do direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 1946. p. 213.
33
COUTURE, Eduardo J. Fundamentos do direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 1946. p. 213.
34
COUTURE, Eduardo J. Fundamentos do direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 1946. p. 215.
35
COUTURE, Eduardo J. Fundamentos do direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 1946. p. 215.
36
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992. p. 41.
37
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992. p. 41.

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122 Joseli Lima Magalhães

3.2.1 Olhar para trás (elementos de consciência): observar os precedentes


judiciais relacionados a casos semelhantes, havendo um juízo de previsibi-
lidade de igualdade. Nada impede que o magistrado julgue em desconfor-
midade com o que vem decidindo os Tribunais, ou seus colegas, mas deve
suportar o ônus dessa mudança. Apresenta-se aqui um dos grandes dilemas
da moderna ciência processual, que a técnica jurídica tenta, a todo custo,
coadunar com a celeridade processual: a estabilidade das decisões judiciais, a
segurança jurídica, a qual “explica o papel específico do legislador e do juiz,
tão oposto à autonomia da consciência que caracteriza a moral”.38 Ao leigo
é por demais incompreensível como seu vizinho, em caso semelhante, teve
decisão favorável e ele não, sendo diferentes os magistrados das causas. Fica-se
à mercê da distribuição do processo de quem vai julgá-lo. Não por menos a
técnica jurídica fomenta o manejo das súmulas vinculantes, almejando “com-
partimentar”, estruturar o direito em departamentos menos díspares, o que
acaba, por outro lado, propiciando engessamento à função criadora do juiz,
na medida em que não pode decidir contrariamente à súmula (vinculante),
sob pena de responsabilizar-se administrativamente pelo ato jurisdicional.
O manejo da súmula vinculante como técnica normativa estruturante
aplicada às decisões judiciais tem como uma de suas principais justificativas
o “elevado número de recursos em tramitação, especialmente no Supremo
Tribunal Federal — muitos tratando de matérias idênticas e já decididas pela
Corte”,39 e possibilitar uma maior efetividade da segurança jurídica, “apesar
da pouca tradição nacional no assunto, se corretamente utilizada, auxiliará e
otimizará a prestação jurisdicional, tornando-a mais efetiva e segura”.40
3.2.2 Olhar para cima (elemento de coerência): objetiva-se que a “solução
deduzida das regras, e consistente com outras adotadas para os casos análo-
gos, seja coerente com o resto do sistema jurídico, harmonizando as regras”,41
o que se deve pela pluralidade de fontes, bem típica da pós-modernidade e
de um direito que não mais deve ser estruturado na filosofia da consciên-
cia, mas sim na filosofia da linguagem. A ideia de coerência do ordenamento
jurídico não guarda, por outro lado, relação direta com a certeza que o orde-
namento jurídico deve produzir, ainda mais por inexistir a certeza, o que há é
a probabilidade, existindo toda uma

rama de certezas, incertezas, probabilidades e riscos no direito processual. Para


aumentar a certeza, para aumentar, então, a austeridade da Justiça e possibi-
litar decisões e soluções mais perfeitas e mais adequadas ao direito material,
exaltando a idéia de certeza, é que esta aí o princípio do contraditório como um
dos instrumentos de que se vale o legislador para evitar os riscos de sanções
que não estejam de acordo com o direito material.42

38
PERELMAN, Chaïm. Ética e direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 303.
39
CÔRTES, Osmar Mendes Paixão. Súmula vinculante e segurança jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 13.
40
CÔRTES, Osmar Mendes Paixão. Súmula vinculante e segurança jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 13.
41
LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial: fundamentos de direito. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2009. p. 161.
42
DINAMARCO, Cândido R. Fundamentos do processo civil moderno. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986. p. 100.

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3.2.3 Olhar para frente (elemento consequencialista): relaciona-se com os


resultados que poderão advir da decisão tomada. Lorenzetti apresenta qua-
tro aspectos do elemento consequencialista em razão da decisão judicial:
3.2.3.1 consequências gerais: apesar de ser senso comum dizer que a
decisão “é lei entre as partes” e que são elas as pessoas afetadas, sabe-se que
as consequências de uma decisão judicial não afeta apenas as partes, mas a
sociedade como um todo. O elemento consequencialista de caráter geral
guarda relação também com o atual modelo constitucional do processo, e que

sob a Constituição, a catedral jurídica se organiza em sistema; este, em seu sig-


nificado filosófico, é a expressão jurídica de uma racionalidade lógico-formal; em
sua eficiência prática, a ordem constitucional é portadora de normatividade, de
modo que as regras de direito ganham figura, no âmbito estatal, de modelos
de diretividade.43

3.2.3.2 consequências jurídicas: serve como elemento educativo, preven-


tivo ou sancionador do modo comportamental de como as pessoas devem se
portar, na medida em que direciona as outras pessoas, que não somente as
partes, a agirem conforme a decisão judicial preconizante, em futuras condu-
tas a serem praticadas. É um agir para o futuro;
3.2.3.3 consequências econômico-sociais: analisa-se qual impacto existen-
te no lado econômico e social. Mais do que nunca o magistrado, ao decidir,
tem que visualizar qual o impacto econômico-social de sua decisão. A análise
econômica do direito é uma nova disciplina que vem tomando espaço nas
cadeiras dos cursos jurídicos e no dia a dia forense, não por menos há a cone-
xão entre os profissionais das duas áreas, a ponto de se dizer que os “juristas
e economistas se completam na preocupação indispensável de estabelecerem
uma ordem social e jurídica destinada à realização do bem comum, de uma
ordenação estável e justa”.44

3.3 A solução nos casos considerados difíceis


Existência de conflitos de regras e princípios: a complexidade em que a
sociedade vem se apresentando nas últimas décadas projeta para o mundo
jurídico também esta indeterminação de normas a serem aplicadas. Não mais
se tem a ideia precisa de que uma única solução é suficiente. É como se coe-
xistissem duas ou mais decisões, mesmo díspares, consideradas justas e con-
forme o ordenamento jurídico.
Objetivando dirimir essa complexidade, ou ao menos mantê-la em
níveis suportáveis, os atores do direito, neste particular, assumem papel vital
de manutenção do próprio sistema jurídico, e em razão da existência de uma

pluralidade dos princípios constitucionais visa criar uma democracia mais pro-
funda, mais inclusiva e mais dinâmica, permitindo um desenvolvimento e uma
43
GOYARD-FABRE, Simone. Os fundamentos da ordem jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 112.
44
GARCEZ NETO, Martinho. Direito econômico e o futuro do Código Civil. Temas atuais de Direito Civil. Rio de
Janeiro: Renovar. p. 330.

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harmonização de geometria variável dos princípios que a vontade constituinte


ou legislativa do povo foi depositando na ordem jurídica. Os juristas aparecem
aqui, não como hermeneutas mais qualificados da vontade popular (que dela
saberiam mais do que o próprio povo) mas apenas como técnicos especializados
na descoberta de uma ‘concordância prática das discordâncias’, de um arranjo
harmônico das várias vozes (da polifonia), apoiados (tal com os técnicos do
music mixing, ou arranjo musical) em instrumentos conceptuais desenvolvidos —
alguns desde há muitos séculos — pelo seu saber especializado.45

A parte deste aspecto, a “sistematização era dada pela hierarquia legal, pouca
importância se atribuía aos princípios”,46 e que somente serviriam para suprir

eventuais lacunas legais, e, por conseqüência, à reafirmação da quase absoluta


suficiência das regras jurídicas e de seu alto grau de previsibilidade quanto
aos fatos sociais. A tese se afirmava pela vedação legal ao juízo do non liquet
(negativa de pronunciamento jurisdicional apoiada no argumento da inexis-
tência de normas). O dogma da completitude do ordenamento jurídico era
necessário ao movimento de contínua concentração da produção do Direito pelo
Estado e, portanto, ao enfraquecimento de fontes normativas não-estatais.47

A regra no ordenamento jurídico é a existência de casos fáceis a serem


solucionados, mas há situações em que a solução do litígio, pela decisão judi-
cial, não se apresenta fácil, o que impede a aplicação do método dedutivo, o
que ocorre em dois tipos de situações:48
3.3.1 quando não se sabe qual a norma a ser aplicada ao caso, ou se apresenta
difícil a sua interpretação;
3.3.2 por ser inconstitucional a norma deve ser afastada do ordenamento jurídico.
Nesses dois casos ocorre uma “indeterminação normativa”, não havendo
uma única resposta correta. Cabe ao juiz, pois, dentro de critérios menos sub-
jetivos e apropriando-se de elementos os mais objetivos possíveis, delimitar
a decisão o tanto menos discricionariamente. O magistrado, assim, assume
o papel de legislador e não meramente de aplicador da norma. Não se sabe
qual o verdadeiro limite, no ato decisional, até onde vai a função criadora do
magistrado, e se está baseando a decisão em critérios pessoais e subjetivos.
É certo que o princípio da fundamentação da decisão jurisdicional, de
certa forma, freia a elasticidade da atuação desregrada do magistrado, mas
precisa-se saber até onde esta própria fundamentação não se encontra eivada
de ilegalidade e mascarando uma situação tal que comprometa a própria
estrutura do ordenamento jurídico.
Não somente o princípio da fundamentação das decisões jurisdi-
cionais, mas os princípios em geral passaram a “ser articulados, dos mais
45
HESPANHA, Antônio Manuel. O caleidoscópio do direito: o direito e a justiça nos dias e no mundo de hoje. Coimbra:
Almedina, 2007. p. 129-130.
46
LEAL, André Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões no direito processual democrático. Belo Horizonte:
Mandamentos, 2002. p. 36.
47
LEAL, André Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões no direito processual democrático. Belo Horizonte:
Mandamentos, 2002. p. 36.
48
LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial: fundamentos de direito. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2009. p. 163.

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Técnica normativa estrutural das decisões jurisdicionais no Estado Democrático de Direito 125

diversos modos, como fatores minorativos do poder discricionário do juiz no


momento da decisão”,49 em razão de se haver detectado a discricionariedade
judicial como um dos principais problemas do positivismo jurídico.
Igualmente, o correto manejo do princípio do contraditório, antes da
decisão judicial, propicia que o magistrado se posicione ao máximo preso ao
debate travado entre as partes e que

com preterição de defesa plena e dos juízos de direito para que se exercite o
contraditório como direito fundamental de argumentação jurídica, desfigura
o pensar discursivo de uma sociedade que se pretenda democrática e condena
ao horror alguns poucos decisores que ainda reservam sua fidelidade ao saber
científico-jurídico.50

Na estrutura técnica da elaboração da decisão jurisdicional, o princípio


do contraditório e da ampla defesa ganha importância, mas somente se rela-
cionado à recepção das teorias de Fazzalari (processo como procedimento em
contraditório) e da teoria constitucionalista do processo (introduzida no país
por Baracho), que, no Estado Democrático de Direito, toma por base a supre-
macia das normas constitucionais sobre as normas processuais, formatando
um modelo constitucional do processo, que o juiz deve observar ao dirigi-lo
(art. 125), tornando-se, assim, um juiz-dialogador com as partes, apesar de
toda uma carga dogmática em face de haver o CPC adotado a teoria do pro-
cesso como relação jurídica.51

Considerações conclusivas
O Estado Democrático de Direito não mais pode admitir que o magis-
trado decida tudo isoladamente, usando de elementos subjetivos. O adequado
manejo das técnicas normativas desenvolvidas no espaço procedimental dialó-
gico entre as partes mitiga a concepção de que a decisão judicial é ato somente
do magistrado, mas sim objeto de construção das partes, em constante inter-
locução com o próprio julgador, pugnando-se com a exclusão dos conhecidos
escopos do processo, como se o processo fosse dependente da jurisdição.
O Estado Democrático de Direito exige, pois, que na construção dos
procedimentos legislativos, deve-se seguir o modelo constitucional do pro-
cesso, ficando inclusive posteriormente sujeita a legislação à adequação, por
meio da interpretação, ao próprio texto constitucional, posto que muitas vezes
esse controle é feito de forma superficial e sem o devido rigor técnico-jurídico
perante as comissões de feitura da norma, na medida em que pode haver
mais de uma decisão jurisdicional, tida como justa, mas que somente devem
ser obedecidas ou respeitadas se tiverem sido testificadas pelo devido
49
OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Decisão judicial e o conceito de princípio: a hermenêutica e a (in)determinação do direito.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 27-28.
50
LEAL, Rosemiro Pereira. A judiciarização do processo nas últimas reformas do CPC brasileiro. In: BRÊTAS, Ronaldo
Carvalho Dias; NEPOMUCENO, Luciana Diniz (Coord.). Processo civil reformado. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
p. 245.
51
BRÊTAS, Ronaldo Carvalho Dias. Exame técnico e sistemático do Código de Processo Civil reformado. In: BRÊTAS,
Ronaldo Carvalho Dias; NEPOMUCENO, Luciana Diniz (Coord.). Processo civil reformado. 2. ed. Belo Horizonte:
Del Rey, 2009. p. 452.

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126 Joseli Lima Magalhães

processo legal (constitucionalizado), cujo ambiente requer a participação das


partes, em simétrica paridade, fazendo-se do processo o arcabouço propício
para a dignificação do próprio Estado Democrático de Direito e efetivação
dos direitos fundamentais.

Abstract: This article will demonstrate the legal need to have an


entire legislative technique in the construction of judicial decisions
in a democratic state of law, structured procedures with reference to
the constitutional model of the process. To take it will reference the
application of the deductive method and the elements that surround
the activity related to decision-making together with the parties, and
not alone.
Key words: Technical regulations. Judicial decisions. Constitutional
model. Democratic State of Law.

Referências
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Processo constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1984.
BRÊTAS, Ronaldo Carvalho Dias. As reformas do Código de Processo Civil e o processo
constitucional. In: BRÊTAS, Ronaldo Carvalho Dias; NEPOMUCENO, Luciana Diniz
(Coord.). Processo civil reformado. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
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Técnica normativa estrutural das decisões jurisdicionais no Estado Democrático de Direito 127

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MAGALHÃES, Joseli Lima. Técnica normativa estrutural das decisões jurisdicionais


no Estado Democrático de Direito. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo
Horizonte, ano 18, n. 71, p. 113-127, jul./set. 2010.

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Os meios de defesa do executado após a nova sistemática da execução civil por quantia certa contra devedor... 129

Os meios de defesa do executado após


a nova sistemática da execução civil por
quantia certa contra devedor solvente
Rodrigo Lanzi de Moraes Borges
Mestre em Direito Constitucional pela ITE/Bauru. Especialista em Direito Processual Civil
pela PUC-SP. Professor universitário. Advogado.

Resumo: O presente trabalho visa analisar as importantes modificações implanta-


das pelas Leis nºs 11.232/05 e 11.382/06 em nosso Código de Processo Civil, espe-
cialmente no que tange aos meios de defesa que passam a dispor o executado —
impugnação ao requerimento para cumprimento de sentença e embargos do
executado —, alterações essas que vieram suprir algumas falhas em nosso sistema
processual executivo, o qual sempre fora alvo de pesadas críticas pela doutrina,
uma vez que proporcionava ao executado a possibilidade de emperrar a execução
civil por quantia por tempo indefinido, impossibilitando, desta forma, que fosse
prestada ao exequente uma tutela jurisdicional efetiva e célere. Por fim, passamos
a analisar o cabimento e a importância do instituto da exceção/objeção de pré-exe-
cutividade diante dessa nova sistemática implantada na execução por quantia.
Palavras-chave: Execução civil. Celeridade. Meios de defesa.
Sumário: 1 Introdução – 2 As inovações nos meios de controle dos títulos
executivos – 2.1 A impugnação à execução por quantia certa fundada em
título judicial – 2.2 Os embargos do executado – 2.3 A defesa intraprocessual
(exceção/objeção de pré-executividade) – 2.3.1 A defesa intraprocessual na fase
de cumprimento de sentença e na execução por título extrajudicial após o
advento das Leis nºs 11.232/05 e 11.382/06 – 3 Conclusões – Referências

1 Introdução
Após as reformas introduzidas em nosso Código de Processo Civil, o legisla-
dor ordinário, ancorado nas normas que regem os direitos e garantias constitucio-
nais, mais especificamente à luz dos princípios constitucionais da inafastabilidade da
jurisdição e da razoável duração do processo judicial dispostos nos incisos XXXV e
LVXXIII do art. 5º da Constituição Federal, realizou diversas modificações no sistema
da execução civil, em especial, na modalidade por quantia certa contra devedor sol-
vente, a qual tem se revelado o calcanhar de Aquiles do sistema processual brasileiro,
e que, ao longo dos anos, se tornou protagonista de uma enorme crise. 

GUERRA, Marcelo Lima. Os direitos fundamentais do credor na execução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 83.

Nesse sentido, Paulo Henrique dos Santos Lucon, ao tratar da crise da execução que se tornou não só um problema
nacional como também mundial, deixou assentando que: “A efetividade do processo de execução é um problema
mundial. O ambiente sociológico alterou-se. Nos dias de hoje, ser devedor não é mais um grave defeito e não pagar as
próprias dívidas deixou de ser um sinal de vergonha. A facilidade na obtenção de crédito e a intensificação dos negócios
jurídicos criaram condições excelentes para os devedores. É senso comum a todos que hodiernamente é bem mais
confortável ser devedor do que ser credor [...]. Os tempos mudaram. A ordem do juiz já não é suficiente para permitir
a efetiva apreensão dos bens. Além disso, o juiz deixou de ser uma autoridade intocável, que encarna uma verdade
superior que ninguém discute; suas decisões resultaram, em grande parte, ineficazes. Vive-se verdadeiramente uma
crise de poder. E a jurisdição, como poder de decidir imperativamente e impor decisões, não é exceção” (LUCON, Paulo
Henrique dos Santos. Eficácia das decisões e execução provisória. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 424-425).

Como bem aduzido por Leonardo Greco e, incessantemente, repetido por outros autores, “[...] ser devedor neste
país não é mais motivo de vergonha e não pagar os débitos não é mais um sinal de desonra” (GRECO, Leonardo.
O processo de execução. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. v. 1, p. 05).

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130 Rodrigo Lanzi de Moraes Borges

No intuito de minimizar ou, quiçá, fazer cessar essa crise em que a execução
se enveredou, o legislador ordinário iniciou seu trabalho com a elaboração das
Leis nºs 11.232/05 e 11.382/06, que alteraram, respectivamente, a execução por
quantia certa fundada em título judicial e a fundada em título extrajudicial,
principalmente no que tange aos meios de defesa que possui o executado, os
quais consistiam em um dos principais alvos de críticas pela doutrina em razão
de acarretar verdadeiro emperramento injustificado da execução, inovações
essas que, resumidamente, buscaremos analisar ao longo desse trabalho.

2 As inovações nos meios de controle dos títulos executivos


Antes das aludidas reformas preconizadas pelas Leis nºs 11.232/05 e
11.382/06, o legislador, inspirado no princípio da autonomia, adotou um pro-
cesso de execução independente dos demais processos. Partia-se da ideia de
que tanto o processo de execução quanto o de conhecimento deveriam ser
puros, ou seja, a prática de atos executivos somente se daria dentro do processo
de execução e os atos cognitivos no processo de conhecimento, em razão da
diversidade das atividades praticadas nos aludidos processos.
Nesse modelo de execução adotado originariamente pelo Código de Processo
Civil de 1973, o juiz, tanto na execução judicial quanto na extrajudicial, era consi-
derado mero executor e “[...] se deveriam afastar, ao máximo, as possibilidades de
defesa do executado no curso do processo de execução”, como bem explicam José
Miguel Garcia Medina, Luiz Rodrigues Wambier e Teresa Arruda Alvim Wambier.
Diante da concepção ditada acima, acreditava-se que no processo de execu-
ção apenas deveriam ser praticados atos expropriatórios visando, exclusivamente,
a satisfação do crédito do exequente, podendo o executado, destarte, insurgir-se
contra esse processo executivo através de processo distinto, ou seja, de uma ação
incidental de natureza desconstitutiva chamada de embargos do executado.
Assim, o Código de Processo Civil de 1973, seguindo os passos do de
1939, estabeleceu, tanto para as execuções fundadas em título executivo judi-
cial quanto nas fundadas em título extrajudicial, o mesmo procedimento para
que o executado pudesse realizar a interposição dos embargos, diferenciando
apenas nas matérias que poderiam ser suscitadas.
Enquanto nos embargos à execução fundada em título judicial as
matérias eram limitadas às previstas no art. 741, nos embargos à execução
fundada em título extrajudicial poderiam ser alegadas, além das previstas no
aludido dispositivo, toda e qualquer outra matéria de defesa possível para o
processo de conhecimento, nos moldes do que rezava o art. 745.
No entanto, importante salientar que para a interposição dos embar-
gos era exigido, tanto nas execuções fundadas em título judicial quanto nas
fundadas em título extrajudicial, a garantia do juízo através da penhora, em
se tratando de execução por quantia certa, e do depósito da coisa, em se tra-
tando de execução para a entrega de coisa, como preconizava o art. 737 do
Código de Processo Civil, revogado pela Lei nº 11.382/06.

MEDINA, José Miguel Garcia; WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Breves comentários
à nova sistemática processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. v. 3, p. 191.

MEDINA, José Miguel Garcia; WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Breves comentários
à nova sistemática processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. v. 3, p. 397.

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Ademais, os embargos deveriam ser interpostos no prazo de 10 (dez)


dias contados da juntada aos autos da prova da intimação da penhora na exe-
cução por quantia certa; do termo de depósito, da juntada aos autos do man-
dado de imissão na posse ou de busca e apreensão, na execução para a entrega
de coisa; da juntada aos autos do mandado de citação, na execução de fazer ou
não fazer, nos moldes do modificado art. 738 do Código de Processo Civil.
Registre-se, ainda, que os embargos, independentemente de tratar de
execução fundada em título judicial ou extrajudicial, tinham, como uma de
suas características principais, o condão de suspender a execução, de acordo
com o que rezava o revogado §1º do art. 739 do Código de Processo Civil.
Ressalte-se aqui que a suspensão automática da execução (fundada tanto
em título judicial quanto em extrajudicial) através da simples interposição
dos embargos, consistia em um dos principais alvos de críticas pela doutrina
e um dos pontos principais de emperramento do processo de execução.
Diante das reformas introduzidas pelas Leis nºs 11.232/05 e 11.382/06, as
quais modificaram, respectivamente, o procedimento de execução de título judi-
cial com a implantação da técnica do sincretismo processual (reunião dos proces-
sos de conhecimento e execução em uma mesma relação jurídica), bem como as
significativas alterações sofridas no procedimento da execução por título extraju-
dicial que, ainda, manteve a autonomia do seu procedimento em homenagem ao
princípio da autonomia — que constitui, atualmente, exceção à nova sistemática
que prega a existência do modelo processual sincrético —, tem-se que ocasiona-
ram procedimentos diversos para ambas as espécies de execuções, dependendo
do título executivo que a embasar, dotando-se esses meios de controle, diga-se
de passagem, de importantes técnicas processuais com o fito de tornar a execu-
ção civil mais célere, como se passa a analisar abaixo.

2.1 A impugnação à execução por quantia certa fundada em


título judicial
No que tange ao meio defensivo previsto para a nova fase de cumpri-
mento de sentença, importantes modificações foram introduzidas pela Lei
nº 11.232/05 visando otimizar o procedimento da execução para torná-lo mais
célere, extraindo, para tanto, alguns pontos de estrangulamento existentes.
Um desses pontos de estrangulamento estava ligado ao mecanismo
de controle do título executivo judicial chamado embargos do executado, os
quais eram regidos por diversas regras extremamente protetivas ao executado/
embargante, acabando por tornar o processo de execução lento e ineficaz.
Com a nova sistemática implantada na execução fundada em título judicial,
o executado poderá, agora, como forma de se insurgir contra o aludido título, apre-
sentar impugnação, a qual passou a ser regulada pelos arts. 475-J, 475-L e 475-M do
Código de Processo Civil, no prazo de 15 dias contados após a intimação do auto de
penhora e de avaliação, a teor do que prescreve o §1º, do mencionado art. 475-J.


Sobre o assunto recomendamos ao leitor a leitura de texto específico: BORGES, Rodrigo Lanzi de Moraes;
BERTONCINI, Luís Cesar. O sincretismo processual como técnica para a concretização dos direitos fundamentais.
Revista Nacional de Direito e Jurisprudência, São José do Rio Preto, v. 90, p. 29-46, 2007.

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132 Rodrigo Lanzi de Moraes Borges

Embora o legislador ordinário tenha aumentado o prazo para a


propositura desse meio de controle de título judicial na tentativa de unifor-
mizar os prazos das peças defensivas no Código de Processo Civil, o prazo
para que a impugnação seja ofertada começará a contar a partir da intimação
do executado do auto de penhora e avaliação, e não mais da sua juntada ao
processo, o que contribuiu para agilizar a execução civil.
No que tange às matérias que poderão ser alegadas, de acordo com o que
reza o art. 475-L, de forma semelhante ao revogado art. 741 do Código de Processo
Civil, a impugnação somente poderá versar sobre a falta ou nulidade de citação se
o processo (de conhecimento) correu à revelia do executado (inc. I); inexigibilidade
do título (inc. II); penhora incorreta ou avaliação errônea (inc. III); ilegitimidade de
partes (inc. IV); excesso de execução (inc. V); e sobre qualquer causa impeditiva,
modificativa ou extintiva da obrigação, como pagamento, novação, compensação,
transação ou prescrição, desde que superveniente à sentença (inc. VI).
No entanto, no que tange à alegação de excesso de execução, outra
importante modificação fora introduzida pelo legislador pátrio que abriu a
possibilidade de rejeição liminar da impugnação no caso de ser alegado esse
excesso e não ser demonstrado o quantum excedido pelo impugnado.
Essa modificação foi muito importante porque, como é sabido, uma
grande parte dos embargos do executado eram fundados neste dispositivo e,
muitas vezes, o embargante se baseava em um índice de atualização diverso ou
em um diferente método de cálculo que acabavam acusando uma pequena dife-
rença a menor daquela que estava sendo executada e, por consequência, acarre-
tando a suspensão de toda a execução até serem decididos os embargos, gerando
uma demora desmesurada para o processo, em que pese a existência de artigo
específico que determinava o prosseguimento da execução apenas no que se
referisse à parte incontroversa (art. 739, §2º, CPC), dispositivo esse que não teve
muita aplicação pelos julgadores que preferiam suspender toda a execução.
A impugnação à execução de título judicial passa a ser realizada inciden-
talmente no curso da fase executiva do processo, diferentemente dos embargos
do executado, que eram desenvolvidos através de um procedimento autônomo.
Portanto, a primeira indagação que se pode realizar diz respeito à sua
natureza jurídica.
Diante da constatação levantada acima, poder-se-ia simplesmente sus-
tentar que, pelo fato da impugnação ser processada incidentalmente à execução
sem a necessidade da propositura de uma ação própria — como era o caso dos
embargos do executado —, a mesma seria considerada um incidente defensivo.
Em contrapartida, o simples fato de ser esta impugnação realizada inci-
dentalmente a fase executiva não impede que a mesma possa ser considerada
uma ação, haja vista que outros institutos, como os da reconvenção, denuncia-
ção da lide, ação declaratória incidental etc., também são movidos de forma
incidental a um procedimento em curso e possuem essa natureza. 

SHIMURA, Sérgio Seiji. A execução da sentença na reforma de 2005. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Aspectos
polêmicos da nova execução de títulos judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 569-570.

MEDINA, José Miguel Garcia; WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Breves comentários
à nova sistemática processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. v. 3, p. 400.

Entendendo possuir a impugnação natureza de ação, vide: LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Nova execução
de títulos judiciais e sua impugnação. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Aspectos polêmicos da nova execução de
títulos judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 450-451.

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José Miguel Garcia Medina, Luiz Rodrigues Wambier e Teresa Arruda


Alvim Wambier prelecionam que a natureza jurídica da impugnação somente
poderá ser determinada se forem examinadas as matérias que, por meio dela,
serão alegadas. Portanto, dependendo da matéria, a impugnação poderá ter
naturezas diversas, ora de ação, ora de mera defesa incidental.10
Os aludidos doutrinadores sustentam que no caso de se versar a impug-
nação sobre os requisitos para a tutela executiva e a validade dos atos
executivos, a impugnação terá natureza de incidente defensivo, uma vez que
o juiz apenas irá analisar “[...] se o pedido veiculado pelo exequente, ou o ato
executivo que se está a realizar, é ou não admissível”.11 São os casos descritos
nos incs. II e IV, os quais tratam dos pressupostos de existência da tutela exe-
cutiva, como a inexigibilidade do título executivo e a ilegitimidade das par-
tes; e a hipótese prevista no inciso III, que trata sobre a validade e adequação
dos atos executivos, como é o caso da nulidade da penhora, por exemplo.
Já no caso em que sejam alegadas matérias relacionadas ao reconheci-
mento de uma dada situação jurídica impeditiva, modificativa ou extintiva
da obrigação, como é o caso do pagamento, novação, compensação ou transa-
ção, previstas no inciso VI do art. 475-L do Código de Processo Civil, segundo
o entendimento dos autores acima citados, estar-se-á diante de uma ação de
conhecimento em que se busca uma sentença declaratória de inexistência de
débito, através de um pedido de extinção da obrigação.
Dessa forma, caso seja acolhida, esta impugnação terá condições de tran-
sitar em julgado e, portanto, produzir coisa julgada material, impedindo a sua
rediscussão através da propositura de uma ação declaratória autônoma.
Registre-se, no entanto, que a averiguação da natureza jurídica da
impugnação tem grande relevância, uma vez que, dependendo da posição a
ser adotada, essa poderá ter diversos efeitos práticos.
Assim, caso se entenda que a impugnação à execução fundada em título
judicial tenha natureza de defesa, será inevitável afirmar que o executado
deverá alegar todas as matérias atinentes ao débito exequendo — ressalvadas
as matérias de ordem pública que podem ser alegadas e reconhecidas a qual-
quer momento no processo, previstas no art. 267, §3º, sobre as quais o juiz deve,
até mesmo, de ofício se pronunciar —, sob pena de acarretar no fenômeno da
preclusão pro iudicato, como explica Paulo Henrique dos Santos Lucon.12 13
10
MEDINA, José Miguel Garcia; WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Breves comentários
à nova sistemática processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. v. 3, p. 398-403.
11
MEDINA, José Miguel Garcia; WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Breves comentários
à nova sistemática processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. v. 3, p. 400-403.
12
LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Nova execução de títulos judiciais e sua impugnação. In: WAMBIER, Teresa
Arruda Alvim. Aspectos polêmicos da nova execução de títulos judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 449.
13
A preclusão é fenômeno exclusivamente processual e está ligada a questão inerente ao andamento do processo no sentido
que o mesmo deva continuar a sua marcha em busca da sentença de mérito. Ela pode ser: temporal que é a decorrente
do descumprimento de prazo processual para a prática de determinado ato processual (exemplo: a não apresentação, no
prazo de 10 dias, do recurso de agravo de instrumento de uma decisão interlocutória desfavorável à parte); consumativa,
que se refere à impossibilidade de repetir ato já praticado (exemplo: impossibilidade de apresentar um outro recurso
de agravo de instrumento contra a decisão interlocutória já recorrida); e lógica, que é o resultado da prática de outro ato
processual já praticado e incompatível com aquele que se deveria praticar no prazo respectivo (exemplo: pagamento
por parte do réu do montante fixado na sentença condenatória o que o impediria de apresentar recurso de apelação).
A preclusão também pode ocorrer com relação ao juiz que poderá assumir a forma das espécies consumativa e lógica
apenas, uma vez que o juiz não sofre qualquer consequência pelo descumprimento dos prazos que lhe são impostos
(característica da preclusão temporal). Essa modalidade de preclusão é denominada, por alguns autores, como Luiz
Rodrigues Wambier, Flávio Renato Correia de Almeida e Eduardo Talamini como sendo preclusão pro iudicato ou pro
judicato (WAMBIER, Luiz Rodrigues; ALMEIDA, Flávio Renato Correia de; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de
processo civil. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 191-192).

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134 Rodrigo Lanzi de Moraes Borges

Assim, caso o executado não ofereça a sua impugnação no prazo legal,


o mesmo ficará impedido de interpor toda e qualquer ação autônoma para
discutir o débito exequendo.
No caso de se considerar a impugnação como ação, o fenômeno descrito
acima já não poderia ocorrer. Nessa hipótese, estar-se-ia revisitando o antigo
meio de controle de título executivo judicial previsto no originário Código de
Processo Civil de 1973. De acordo com o entendimento maciço externado pela
doutrina e jurisprudência, os embargos do executado são uma ação na qual
se veicula matérias de defesa, que dá ensejo a um processo de conhecimento,
visando a prolação de uma sentença desconstitutiva de título executivo.
Outra, e quiçá mais importante, modificação implantada pelo legisla-
dor foi a retirada do efeito suspensivo, via de regra, da impugnação, passando
agora ser exceção, somente podendo ser concedido desde que atenda aos
requisitos do art. 475-M do Código de Processo Civil.
A suspensão automática da execução através da propositura dos antigos em-
bargos do executado sempre fora alvo de críticas por parte da doutrina que a elegia
como uns dos fatores preponderantes pela lentidão da execução, levando o execu-
tado/embargado a propô-los com o fito quase que exclusivo de retardar o processo.
Na verdade, como já dissemos acima, o executado/embargante, em uma
grande maioria dos casos, utilizava-se da ação defensiva para ganhar tempo na
execução, ancorando-se, muitas vezes, em argumentos infundados e em teses
descabidas, tudo no intuito de protelar ao máximo possível o processo.
No entanto, desde que sejam relevantes os fundamentos e, ainda, que
seja devidamente demonstrado que o prosseguimento da execução possa
manifestamente causar ao executado grave dano de difícil ou incerta reparação,
o magistrado poderá atribuir, excepcionalmente, efeito suspensivo à impugna-
ção, a teor do que reza o caput do art. 475-M do Código de Processo Civil.
Vislumbra-se, portanto, que o efeito suspensivo da execução com a
propositura dos embargos do executado, que antes era ope legis (decorria da
própria lei) (Código de Processo Civil de 1973 originário), com a reforma
implantada pela Lei nº 11.232/05 passa a ser ope iudicis, eis que, decorre do
preenchimento dos requisitos contidos acima, os quais deverão ser analisa-
dos caso a caso pelo magistrado.
Frise-se aqui que ambos os requisitos acima mencionados devem estar
concomitantemente presentes para que o magistrado possa deferir esse
efeito suspensivo.
Esses requisitos, pelo que se denota, assemelham-se com aqueles exigi-
dos para o deferimento da liminar, por exemplo, de antecipação dos efeitos da
tutela (art. 273 do Código de Processo Civil) ou da tutela específica de obriga-
ção de fazer ou não fazer (§3º, art. 461 do Código de Processo Civil).14 15

14
MEDINA, José Miguel Garcia; WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Breves comentários
à nova sistemática processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. v. 3, p. 161.
15
Entendendo ser bastante a comprovação do fumus boni iuris e do periculum in mora previstos no art. 798 do CPC
(poder geral de cautela) para a concessão do efeito suspensivo à impugnação se manifestou: BUENO, Cassio
Scarpinella. Variações sobre a multa do caput do art. 475-J do CPC na redação da Lei nº 11.232/05. In: WAMBIER,
Teresa Arruda Alvim. Aspectos polêmicos da nova execução de títulos judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2006. p. 143.

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Os meios de defesa do executado após a nova sistemática da execução civil por quantia certa contra devedor... 135

Portanto, não será qualquer alegação de possibilidade de dano de difícil


ou incerta reparação que terá o condão de suspender a execução. Pelo contrá-
rio: “[...] exige-se que os fundamentos da impugnação convençam o juiz da efe-
tiva possibilidade de êxito da impugnação”,16 como bem explicam José Miguel
Garcia Medina, Luiz Rodrigues Wambier e Teresa Arruda Alvim Wambier.
Assim, o executado, para conseguir o deferimento deste efeito suspen-
sivo, terá que demonstrar que o prosseguimento da execução pode causar
dano manifesto de difícil ou incerta reparação, sendo certo que esse dano
deverá ser tão grave ao ponto de não causar dúvidas. Seria algo parecido
com o fundado receio de dano prescrito no art. 273 do Código de Processo Civil.
Além disso, o executado terá que demonstrar a consistência dos fundamen-
tos de sua impugnação, o que se assemelha, como se vê, ao requisito da veros-
similhança da alegação contido no aludido dispositivo.
Esses requisitos, certamente, devem dificultar, e muito, a concessão do
efeito suspensivo à impugnação, uma vez que será difícil mensurar a lesivi-
dade acima do razoável de um ato executivo. E, aqui se diz acima do razoável
porque a execução civil por quantia certa contra devedor solvente é calçada
em mecanismos executivos sub-rogatórios, os quais têm o condão de expro-
priar bens do executado para a satisfação dos interesses do exequente. Assim,
a penhora de um bem do executado, como, por exemplo, de um único auto-
móvel de sua propriedade utilizado para que o mesmo possa realizar a sua
profissão de viajante, irá, com toda certeza, lhe causar dano. No entanto, esse
possível dano que o ato executivo possa causar é consequência de sua própria
conduta, eis que deixou de cumprir, na data aprazada, com o pagamento de
uma obrigação líquida, certa e exigível, representada por um título executivo
em que aquele indivíduo figure como devedor.
Daí indaga-se: em quais hipóteses seria possível admitir a presença dos
requisitos acima para que seja possível a autorização da suspensão da execução?
José Miguel Garcia Medina, Luiz Rodrigues Wambier e Teresa Arruda
Alvim Wambier sustentam que esse dano pode ocorrer em se tratando da
hipótese em que a penhora incida sobre um bem do executado de natureza
infungível que, caso seja arrematado em leilão, poderá ser difícil ou impossível
a sua recuperação na eventualidade da impugnação ser julgada procedente.
Os autores citam, como exemplo, a arrematação de um imóvel comercial onde
o executado exerça a sua atividade empresarial e que dificilmente poderá
ser realizada em outro local pelas peculiaridades existentes, bem esse que
não poderá ser comparado a outros de natureza fungível como, por exemplo,
cabeças de gado, grãos de soja etc., os quais, apesar de também causarem
dano com a sua constrição e posterior arrematação, tais danos não serão de
difícil reparação na hipótese de êxito da impugnação.
Atente-se, novamente, que esse dano de difícil reparação deve vir atre-
lado à demonstração clarividente de que a impugnação possa ser julgada
procedente pelo magistrado, o que se acredita consistir esse último requisito
no mais custoso para o executado.
MEDINA, José Miguel Garcia; WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Breves comentários
16

à nova sistemática processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. v. 3, p. 161.

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136 Rodrigo Lanzi de Moraes Borges

Em que pese, ainda, a possibilidade de ser deferido o efeito suspensivo


à impugnação, tem-se que, mesmo assim, poderá o exequente requerer o pros-
seguimento da execução nos casos em que o mesmo prestar caução idônea e
suficiente, a qual será arbitrada pelo magistrado e prestada no bojo dos próprios
autos, como está previsto no §1º, do art. 475-M do Código de Processo Civil.
Ainda, tem-se que na hipótese em que o executado, na sua impugna-
ção, alegar excesso de execução e apresentar, através de memória atualizada
do cálculo, o montante que entenda ser correto, a execução irá prosseguir
de forma definitiva com relação à parte incontroversa da demanda. Caso o
executado apresente a sua impugnação e consiga demonstrar os requisitos
para determinar a suspensão da execução, esse efeito apenas terá o condão de
suspender parcialmente essa execução no que tange ao excesso alegado.
Perceba-se aqui “[...] a preocupação do legislador ordinário de permitir o
prosseguimento da execução sem os efeitos nocivos da demora do processo”,17
zelando, dessa forma, pela sua celeridade, como bem observou Paulo
Henrique dos Santos Lucon.
Caso não seja deferido o efeito suspensivo à impugnação ou na hipó-
tese de deferimento, mas desde que não seja requerido o prosseguimento da
execução pelo exequente, a impugnação será instruída e decidida nos pró-
prios autos. Caso contrário, será julgada em autos apartados, de acordo com
o §2º do art. 475-M do Código de Processo Civil.
Um ponto negativo trazido pela nova sistemática processual, mas ine-
vitável em face da própria estrutura do ordenamento processual civil pátrio,
pelo que se denota, está no fato de que o juiz, ao receber a impugnação, deverá
se manifestar acerca do requerimento de concessão da suspensão da execução
realizada pelo devedor. Essa manifestação terá a natureza de decisão interlo-
cutória, pois possuirá o condão de decidir questão que possa causar gravame
a uma das partes e, por consequência, poderá ensejar a interposição de agravo
de instrumento com a possibilidade de ser pleiteado efeito suspensivo pelo
agravante/executado, o que poderá tornar essa fase de cumprimento morosa.
Outro importante alvo das mudanças diz respeito ao recurso cabível da
decisão que julga a impugnação.
Dependendo da decisão a ser prolatada pelo juiz, a mesma poderá
possuir naturezas diversas e, por consequência, incidir na interposição de
diferentes recursos.
Caso a decisão da impugnação seja desfavorável ao impugnante, essa não
terá o condão de encerrar o processo, até porque a mesma será realizada dentro
da fase de cumprimento da sentença e, portanto, será atacada através de agravo
de instrumento, de acordo com o §3º do art. 475-M do Código de Processo Civil.
Já na hipótese da impugnação ser julgada procedente e importar na
extinção da execução, essa decisão poderá ser combatida através da interpo-
sição do recurso de apelação, o qual, diga-se de passagem, será, via de regra,
recebido apenas no seu efeito devolutivo, de acordo com a interpretação que
se pode dar ao inciso V, do art. 520 do Código de Processo Civil.
LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Nova execução de títulos judiciais e sua impugnação. In: WAMBIER, Teresa
17

Arruda Alvim. Aspectos polêmicos da nova execução de títulos judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 447.

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Dessa forma, é possível constatar que as novas técnicas processuais


adotadas pelo legislador ordinário na realização do controle do título exe-
cutivo que embasa a fase de cumprimento de sentença possuem como dire-
tiva principal a celeridade da execução civil, ancorada, clarividentemente, no
princípio constitucional da razoável duração do processo, disposto no inciso
LXXVIII do art. 5º da Constituição Federal.

2.2 Os embargos do executado


Seguindo a diretiva da celeridade processual imposta constitucionalmente,
o legislador ordinário, com o fito de deixar o ordenamento coeso e harmônico,
implantou, através da Lei nº 11.382, de 07 de dezembro de 2006, uma série de modi-
ficações no Livro II do Código de Processo Civil que passou a tratar, especificamente,
das execuções fundadas em títulos extrajudiciais e das normas gerais relativas a
toda e qualquer execução civil por quantia certa contra devedor solvente.
Dentre as várias alterações implantadas, a Lei nº 11.382/06 foi respon-
sável pelas modificações na forma de controle das execuções fundadas em
título extrajudicial.
A nova sistemática processual implantada pela novel legislação, como não
poderia ser diferente, manteve a mesma linha originária do Código de Processo
Civil de 1973, que estabelecia uma dicotomia entre os processos de execução e de
conhecimento para as execuções fundadas em título extrajudicial e a suas formas
de controle, mas, contudo, procurou eliminar alguns pontos de estrangulamento
existentes responsáveis pelo emperramento da execução civil.
Como já dito acima, a execução civil somente continuará a ser promovida
através da propositura de uma ação executiva, com a formação de um processo
de execução autônomo, quando se fundar em título executivo extrajudicial.
A explicação parece bem clara. Os títulos executivos extrajudiciais são
aqueles firmados entre as partes fora de qualquer processo judicial, ou seja,
sem a necessidade de se passar pelo crivo do Poder Judiciário.
Por essa razão, para que alguém que figure como credor do refe-
rido título possa pleitear judicialmente o crédito a que se refere o aludido
documento, no caso de não pagamento voluntário por parte do devedor, essa
pessoa terá que, inevitavelmente, ingressar com uma ação de execução.
Como forma de controle desse título de crédito, o executado poderá
ingressar com uma ação autônoma visando a sua desconstituição, que são os
embargos do executado.
Atente-se que, com a nova sistemática adotada à execução por quantia certa
contra devedor solvente fundada em título extrajudicial pela Lei nº 11.382/06,
o executado agora é citado para, no prazo de três dias, efetuar o pagamento da
dívida e não mais para nomear bens à penhora. No entanto, caso o executado
não realize esse pagamento, o oficial de justiça procederá, de imediato, a penhora
de bens e a sua avaliação, caso não necessite de conhecimentos técnicos para
tanto, nos moldes do que reza o art. 652, §1º, do Código de Processo Civil.
Diferentemente do modelo adotado pela Lei nº 11.232/05, a nova siste-
mática adotada pela Lei nº 11.382/06 modificou os arts. 736 e 738 do Código

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de Processo Civil, permitindo, destarte, que o executado, independentemente


do oferecimento de bens à penhora ou caução, ofereça embargos no prazo
de 15 (quinze) dias, contados da juntada aos autos do mandado de citação,
ampliando, de certa forma, o acesso do executado ao Judiciário, em acordo
com os princípios constitucionais da inafastabilidade da jurisdição, da ampla
defesa e do contraditório.
Percebe-se que, da mesma forma que a impugnação, o prazo para o
oferecimento dos embargos passou a ser de 15 (quinze) dias, na tentativa de
uniformização dos prazos que o legislador tentou implantar em nosso orde-
namento processual civil, como já sustentado acima.
O prazo para a propositura dos embargos do executado começa a fluir
com a juntada aos autos do mandado de citação do executado, diferentemente
da lei antiga, que começava a correr com a juntada aos autos do termo de
penhora, acelerando consideravelmente o procedimento executivo que ficava
na espera de serem encontrados bens que pudessem ser constritos para
somente depois começar a correr o prazo para o seu oferecimento.
Como os embargos não estão mais atrelados à segurança do juízo com
a penhora de bens do executado, tem-se que esse somente será citado para
adimplir a obrigação, nos moldes do art. 652, caput, do Código de Processo
Civil. Assim, o oficial de justiça, ao proceder à aludida citação, devolverá
somente a primeira via do mandado aos autos do processo para que se inicie o
prazo para a propositura dos embargos do executado, ficando com a segunda
via para a realização da penhora e avaliação do(s) bem(ns).
Atente-se, no entanto, que a diferente sistemática adotada para a execu-
ção de título judicial e extrajudicial, no que tange à necessidade ou não da reali-
zação da penhora para apresentação da impugnação e dos embargos, não acar-
reta infração às garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa,
uma vez que se está diante de uma mera opção do legislador ordinário.
Assim, a exigência de oferecer bens à penhora para realizar a impug-
nação é perfeitamente razoável e compreensível, haja vista que, na fase de
cumprimento de sentença, o título embasador deve, ao menos em tese, conter
maior certeza sobre a existência do crédito em favor do exequente em razão
do mesmo já ter passado pelo crivo do Poder Judiciário para a sua formação,
o que justifica, também, a limitação do rol de matérias que podem ser argui-
das por parte do executado, como se verá abaixo.
Diferente é o caso da execução fundada em título extrajudicial que, como
seu próprio nome já diz, ainda não passou pelo crivo do Poder Judiciário, tendo,
desta forma, uma chance maior de não corresponder à exata obrigação que o
mesmo representa, o que justifica um tratamento desigual no que tange aos
requisitos para a propositura do seu meio de controle que são os embargos
do executado e as matérias que poderão ser alegadas.
Outra importante modificação trazida pela novel legislação está na
hipótese de existirem vários executados. Diante da nova sistemática citada
acima, o prazo para a apresentação dos embargos para cada executado será
autônomo, começando a correr para cada um, respectivamente, a partir da

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juntada aos autos de cada mandado de citação, a teor do que prescreve o


art. 738, §1º, do Código de Processo Civil.
Esse fato decorre, também, da natureza jurídica dos embargos que se
tratam de ação autônoma, distinta da ação de execução, não tendo, portanto,
qualquer justificativa que abonasse a aplicação da regra do art. 191 do Código
de Processo Civil, a qual estatui prazo em dobro para falar nos autos no caso
dos executados serem representados por procuradores diversos, justificando,
dessa forma, a sua expressa vedação pelo §3º do art. 738 do referido codex.18
Exceção a essa regra, no entanto, diz respeito à hipótese de o litiscon-
sórcio ser formado por cônjuges. Nesse caso, desde que o litisconsórcio pas-
sivo seja originário, o prazo para a propositura dos embargos deverá ser ini-
ciado a partir da juntada do último instrumento de citação, de acordo com a
parte final do §1º do art. 738 do Código de Processo Civil.
Caso o litisconsórcio passivo seja ulterior ou superveniente entre os
cônjuges, como pode ocorrer na hipótese de ser acionado somente um dos
cônjuges e a penhora recair em bem imóvel, o outro cônjuge será necessaria-
mente intimado dessa penhora, podendo, inclusive, interpor embargos do
executado, independentemente dos já interpostos pelo outro litisconsorte, a
teor do que reza o §2º do art. 655 do Código de Processo Civil.
Assim, caso um dos cônjuges já tenha apresentado os seus embargos —
como será provável que ocorra com o novo modelo disposto pela novel legis-
lação que eliminou a necessidade da penhora para a sua interposição, como
visto acima —, imaginando a possibilidade desses embargos já estarem trami-
tando em fase adiantada, o outro cônjuge, em razão da regra acima disposta,
não poderá ficar tolhido de apresentar os seus próprios embargos e os já
interpostos também não poderão ser desconsiderados.
No caso acima exposto, o prazo para a interposição dos embargos do
cônjuge que ingressou posteriormente na ação de execução, por força da
penhora realizada em bem imóvel (§2º, art. 655, Código de Processo Civil),
começará a correr de forma autônoma a partir da juntada aos autos da sua
intimação (que, nesse ínterim, acredita-se possuir natureza de citação), não se
aplicando, desta forma, o §1º, do art. 738 do Código de Processo Civil.19
Outra modificação que veio agilizar o procedimento da execução está
inserida no §2º, do art. 738 do Código de Processo Civil, nos casos em que o
executado residir em comarca diversa daquela em que está correndo a ação
executiva, necessitando da citação do executado através de carta precatória.

18
Como bem observou Humberto Theodoro Júnior: “Opor os embargos não é o mesmo que falar nos autos, nem
tampouco é igual a contestar a ação. A reforma da Lei nº 11.382/06 explicitou, portanto, o que já estava assente nos
tribunais: aos embargos do executado não se aplica o disposto no art. 191 desta lei (i.e., do CPC)” (THEODORO
JÚNIOR, Humberto. A reforma da execução do título extrajudicial: Lei nº 11.382/06, de 06 de dezembro de 2006. Rio
de Janeiro: Forense, 2006. p. 138).
19
Nessa esteira, concluíram Luiz Rodrigues Wambier, Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina,
nos seguintes moldes: “a) o prazo para a apresentação de embargos é comum contando-se da juntada do último
mandado de citação devidamente cumprido, nos casos em que os cônjuges são originariamente executados, incidindo
o §1º, in fine, do art. 738; b) o prazo para a apresentação de embargos é autônomo, contando-se da juntada de cada
um dos mandados de citação, nos casos em que apenas um dos cônjuges é citado, originariamente, como executado,
e o outro somente passa a integrar o pólo passivo da execução em razão da penhora do imóvel, nos termos do
Art. 655, §2º acima comentado” (MEDINA, José Miguel Garcia; WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda
Alvim. Breves comentários à nova sistemática processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. v. 3, p. 198).

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Anteriormente à edição da Lei nº 11.382/06, ocorrendo a hipótese


narrada acima, o prazo para a interposição dos embargos começaria a fluir da
juntada da carta precatória devidamente cumprida, inclusive, com o auto de
penhora contendo a constrição de bens suficientes para a garantia do juízo, o
que demandava um tempo muito grande, como é sabido.
Com a nova sistemática adotada pela novel legislação, após a realização
da citação, o juiz deprecado, imediatamente, comunicará, inclusive por meios
eletrônicos, o juiz deprecante da realização da citação. E o prazo para a interposi-
ção de embargos por parte do executado começará a fluir a partir da juntada aos
autos da comunicação do juiz deprecante (art. 738, §2º, do Código de Processo
Civil), o que contribui para tornar mais célere e dinâmica a execução.
Registre-se, ainda, que para a utilização dos meios eletrônicos (via
e-mail) de comunicação acima descritos, deverão ser observados o §3º, do
art. 202 do Código de Processo Civil, acrescido pela Lei nº 11.419, de 20 de
dezembro de 2006, que regulamentou a expedição de carta precatória,
inclusive, prevendo a utilização de assinatura eletrônica pelo juiz (através da
utilização do sistema de chaves — senhas).
Insta consignar aqui que a implantação pelo legislador ordinário dos
meios eletrônicos na tramitação, comunicação e transmissão de atos proces-
suais denominado de processo eletrônico pela novel legislação referida alhures,
constitui um importante mecanismo para se buscar a celeridade do processo,
visando, desta forma, otimizar a prestação dos serviços jurisdicionais em con-
sonância com o princípio constitucional da razoável duração do processo.
Para que se torne efetiva a nova regra implantada pela legislação, prin-
cipalmente no que se refere à execução por carta (§2º, art. 738, Código de
Processo Civil), faz-se extremamente necessário que se realize, em primeiro
lugar, a completa implantação da informatização dos fóruns em todo o país,
a fim de que haja a total interligação entre os mesmos, o que dependerá de
maciços investimentos por parte dos Estados e da União.
Em segundo lugar, acredita-se que, de nada adiantará a completa
informatização dos fóruns do país se o magistrado não utilizar essas novas
disposições nos casos concretos. Portanto, desde que a utilização dos meios
eletrônicos seja possível — contanto que não possa prejudicar as partes e que
não seja evidenciada a possibilidade de se burlar o sistema, de acordo com o
art. 5º, §5º, da Lei nº 11.419/06 —, o magistrado deverá utilizar desses meca-
nismos para a realização dos atos processuais descritos acima, com o fito de
colaborar com a efetividade e a celeridade do processo.
Por outro norte, acompanhando a nova sistemática adotada pela Lei
nº 11.232/05 para a impugnação da execução por título judicial, a nova legislação
exigiu como requisito para se buscar o efeito suspensivo dos embargos — uma
vez que os mesmos serão recebidos, via de regra, sem o efeito suspensivo —,
somente se a matéria tratada for relevante e o prosseguimento da execução
puder causar ao executado manifesto dano de difícil ou incerta reparação, de
acordo com o §1º do art. 739-A do Código de Processo Civil, nos moldes do
disposto em sede de impugnação (art. 475-M), ora comentado no item acima.

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No entanto, além dos requisitos citados acima, o executado, para que


possa requerer a suspensão dos embargos, ainda terá que garantir o juízo
através da oferta de bens à penhora, depósito ou caução suficiente, de acordo
com §1º, do art. 739-A do Código de Processo Civil.
Esta exigência advém do óbvio: em razão de serem utilizados meios de
sub-rogação na execução por quantia certa, com a expropriação de bens do
executado, o dano somente poderá ser visualizado a partir do momento em
que os mesmos forem constritos através da penhora, depósito ou caução, e
com a possibilidade desses bens serem expropriados antes mesmo de serem
julgados (procedentes) os embargos.20
No entanto, desde que estejam cessadas as circunstâncias que motivaram
a concessão do efeito suspensivo dos embargos — e desde que requeridas pelo
exequente que deverá demonstrar essas alterações —, poderá o magistrado
revogar, de forma fundamentada logicamente, essa decisão a qualquer tempo,
a teor do que descreve o §2º do art. 739-A do Código de Processo Civil.
Na hipótese de figurarem, no polo passivo, diversos executados, “[...]
a concessão de efeito suspensivo aos embargos oferecidos por um dos exe-
cutados não suspenderá a execução contra os que não embargaram, quando
o respectivo fundamento disser respeito exclusivamente ao embargante”, a
teor do que reza o §4º, art. 739-A do Código de Processo Civil.
Esta regra, pelo que se denota, não traduz novidade, repetindo o pre-
ceito contido, anteriormente à edição da Lei nº 11.382/06, no §3º do art. 739 do
Código de Processo Civil (acrescentado pela Lei nº 8.953/94).
Quanto às matérias que podem ser alegadas nos embargos, tem-se que
os mesmos, da mesma forma que os previstos na antiga sistemática da exe-
cução fundada em título extrajudicial, poderão versar sobre matérias proces-
suais, como a falta de condições da ação, chamados de embargos de rito ou de
forma, ou ligadas aos atos executivos, como é a penhora incorreta, ou, ainda,
atacar a própria pretensão de direito material do exequente como, por exem-
plo, a alegação de novação, transação ou compensação, nos moldes do que
reza o art. 745 do Código de Processo Civil. Esses últimos também podem ser
chamados de embargos de mérito.21
Apenas a título de argumentação, a classificação acima adotada é de suma
importância na área processual, eis que, dependendo da matéria a ser versada, a
sentença a ser proferida nos embargos terá condições de fazer coisa julgada mate-
rial, como é o caso daquela prolatada nos embargos de mérito. Já a sentença prola-
tada nos embargos de rito ou de forma somente produzirá coisa julgada formal.
20
THEODORO JÚNIOR, Humberto. A reforma da execução do título extrajudicial: Lei nº 11.382/06, de 06 de dezembro
de 2006. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 195.
21
Humberto Theodoro Júnior classifica os embargos do executado em embargos ao direito de execução e embargos
aos atos de execução, e preleciona: “Nos primeiros, o devedor impugna, ao credor, como no caso de pagamento,
novação, remissão da dívida, o direito de propor a execução forçada [...]. Nos embargos aos atos executivos, o
devedor contesta a regularidade formal do título, da citação, ou de algum ato sucessivo do processo, ou sua
oportunidade. São, pois, embargos de rito ou de forma, não de mérito, como ocorre, por exemplo, com os embargos
à arrematação”. Segundo o aludido autor, esses embargos podem ser divididos em: “a) embargos de ordem, os que
visam a anulação do processo, como os que tratam da impropriedade de forma, a falta do direito de postular em
juízo, a ausência do título executivo etc.; e b) embargos elisivos, supressivos ou modificativos dos efeitos da execução,
como os que tratam da impenhorabilidade, do benefício de ordem, do excesso de penhora, da litispendência, do
direito de retenção, etc.” (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo de execução e cumprimento de sentença. 24. ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 403-404).

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142 Rodrigo Lanzi de Moraes Borges

Com relação às matérias passíveis de serem alegadas nos embargos,


ganham destaque com a novel legislação, pelo que se denota, as relacionadas
ao excesso de execução.
Seguindo a mesma linha das modificações introduzidas na execução
por quantia certa fundada em título judicial, o legislador ordinário estabe-
leceu que o executado, ao alegar em seus embargos o excesso de execução,
deverá declarar na petição inicial o valor que entende ser correto, apre-
sentado, para tanto, a memória atualizada do cálculo, sob pena de serem
liminarmente rejeitados caso esse seja o seu único fundamento, ou de não
conhecimento desse fundamento no caso desses embargos serem fundados
em outras teses (art. 739-A, §5º, Código de Processo Civil).
E mais: em se tratando de embargos que atacam apenas parte da pretensão
do demandante (no caso de se alegar o excesso da execução, por exemplo), a even-
tual concessão do efeito suspensivo apenas poderá alcançar essa parte da preten-
são formulada nos embargos, ou seja, a execução prosseguirá quanto à parte não
embargada, de acordo com o §3º do art. 739-A do Código de Processo Civil.
Outra novidade trazida pela novel legislação, que veio acarretar no
rápido andamento do processo, diz respeito à possibilidade dos embargos
manifestamente protelatórios — que são aqueles destituídos de qualquer fun-
damento fático ou jurídico e que são interpostos apenas com o intuito malicioso
de resistir imotivadamente à execução forçada —, poderem ser rejeitados limi-
narmente, nos moldes do que reza o art. 739 do Código de Processo Civil.
Ademais, no caso de embargos protelatórios, o juiz deverá impor uma
multa processual ao embargante em montante não superior a 20% (vinte por
cento) do valor executado, a teor do disposto no parágrafo único do art. 740
do Código de Processo Civil. Essa multa, com a implantação do art. 739-B ao
Código de Processo Civil pela Lei nº 11.382/06, poderá, inclusive, ser cobrada
no próprio processo de execução em que ela foi arbitrada, tudo para tornar
o processo mais célere, como bem preconiza o princípio constitucional da
razoável duração do processo.
A multa descrita no parágrafo único do art. 740 possui as mesmas
feições daquelas dispostas no art. 14, 16-18, e 600, que dizem respeito à liti-
gância de má-fé, e da prática de atos atentatórios ao exercício da jurisdição
na área do processo de conhecimento e a afronta à dignidade da Justiça no
processo de execução, que é a aplicação de uma sanção punitiva para aquele
infrator que se utiliza maliciosamente dos mecanismos do processo para pro-
telar o seu próprio andamento, impedindo que se concretize a entrega da
tutela jurisdicional pelo Estado-juiz.
Deve-se ressaltar, no entanto, que o juiz somente poderá rejeitar os embargos
sob o fundamento descrito no inc. III do art. 739 e, por consequência, aplicar a multa
contida no parágrafo único do art. 740 do Código de Processo Civil, quando os mes-
mos forem manifestamente protelatórios, ou seja, “[...] quando o juiz não tenha dúvida
em torno de ser a defesa formulada contra direito evidente e contra fatos incontro-
versos e irrecusáveis”, como restou explicado por Humberto Theodoro Júnior.22
22
THEODORO JÚNIOR, Humberto. A reforma da execução do título extrajudicial: Lei nº 11.382/06, de 06 de dezembro
de 2006. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 192.

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Os meios de defesa do executado após a nova sistemática da execução civil por quantia certa contra devedor... 143

Uma inovação interessante trazida pela Lei nº 11.382/06 foi a possibilidade


do executado, no prazo para a interposição dos embargos, reconhecendo o cré-
dito exequendo e depositando o montante correspondente a 30% (trinta por
cento) do seu valor incluindo as custas e os honorários advocatícios fixados,
requerer o parcelamento do montante remanescente em até seis parcelas men-
sais, acrescidas de juros de 1% (um por cento) ao mês mais correção monetária,
a teor do que reza o art. 745-A do Código de Processo Civil, com a finalidade de
facilitar o cumprimento da obrigação por parte do executado, que não terá que
arcar com os custos dos atos expropriatórios, reduzindo, por consequência, o
prazo de tramitação do processo com a efetiva satisfação do exequente.
Diante da análise acima exposta, é possível vislumbrar o empenho do
legislador em tentar deixar o processo de execução mais célere, eliminando
alguns pontos de estrangulamento existentes, principalmente, em seu meio
de controle de título executivo extrajudicial com a otimização do procedi-
mento dos embargos do executado, sempre na busca do cumprimento dos
ditames constitucionais, em especial, do princípio constitucional da razoável
duração do processo judicial.

2.3 A Defesa intraprocessual (exceção/objeção de pré-executividade)


Como é sabido por todos, a exceção/objeção de pré-executividade, ou
defesa intraprocessual23 como será tratada nesse trabalho, não está prevista
no ordenamento processual civil, consistindo, portanto, em uma criação
doutrinária24 com vasta aceitação pelos Tribunais, visando substituir —
anteriormente à edição da Lei nº 11.232/05, bem como da Lei nº 11.382/06 —,
os embargos do executado nas hipóteses em que se fazia imanente o interes-
se público, no que tange às matérias cognoscíveis ex officio pelo magistrado
(incs. IV, V, e VI do art. 267 do Código de Processo Civil), a prescrição, excesso
de execução, pagamento, compensação e novação,25 desde que, logicamente,
23
Em que pese termos conhecimento de toda a problemática que envolve o nome do instituto, o que não nos cabe
comentar nesse trabalho em razão da sua finalidade e também para não excedermos em demasia a sua extensão, temos
que a melhor definição sobre instituto — apesar de também não primarmos pela questão meramente terminológica
dos institutos, mas sim pela sua natureza e finalidade —, ao nosso entender, seria “defesa intraprocessual”, expressão
utilizada por Edson Ribas Malachini, de espectro mais abrangente servindo para alcançar toda e qualquer defesa
realizada dentro do processo de execução ou na fase de cumprimento de sentença (MALACHINI, Edson Ribas. A
defesa intraprocessual no processo de execução: “exceção de pré-executividade”. In: FUX, Luiz; NERY JUNIOR,
Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim Wambier. (Coord.). Processo e Constituição: estudos em homenagem ao
Professor José Carlos Barbosa Moreira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 307).
24
Admitindo a exceção/objeção de pré-executividade, dentre outros estão: Alberto Camiña Moreira (MOREIRA,
Alberto Camiña. Defesa sem embargos do executado. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 198); Cândido Rangel Dinamarco
(DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução civil. 5. ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 251-
259); Eduardo Arruda Alvim (ALVIM, Eduardo Arruda. Exceção de pré-executividade. In: SHIMURA, Sérgio;
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Processo de execução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. v. 2,
p. 216-217); Humberto Theodoro Júnior (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 34. ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2003. v. 2, p. 278-279); José Miguel Garcia Medina (MEDINA, José Miguel Garcia. Execução
civil, teoria geral, princípios fundamentais. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 367-394); Ovídio
Baptista da Silva (SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso de processo civil. 3. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris,
2007. v. 2, p. 23-24), Galeno Lacerda (LACERDA, Galeno. Execução de título extrajudicial e segurança do juízo. São
Paulo: AJURIS, 2007. p. 07); Marcos Valls Feu Rosa (ROSA, Marcos Valls Feu. Exceção de pré-executividade. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1996. p. 43), Paulo Henrique dos Santos Lucon (LUCON, Paulo Henrique dos
Santos. Embargos do executado. 2. ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 220-221); Sérgio Seiji Shimura
(SHIMURA, Sérgio Seiji. Título executivo. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 69-82); Vicente Greco Filho (GRECO FILHO,
Vicente. Direito processual civil brasileiro. 12. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1996. v. 3, p. 108).
25
MESQUITA, Gil Ferreira de. Princípios do contraditório e da ampla defesa no processo civil brasileiro. São Paulo: Juarez
de Oliveira, 2003. p. 234.

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não necessitassem de dilação probatória para o seu reconhecimento, embora


o posicionamento da doutrina e jurisprudência quanto ao cabimento deste
instrumento nestas últimas matérias ainda não seja pacífico.
Assim, pelo que se denota, trata-se o aludido instituto de uma técnica
processual oriunda da própria doutrina, calçada na garantia constitucional do
contraditório e da ampla defesa e, por via reflexa, consistindo num mecanismo
de aceleração processual, eis que tem a virtude de evitar a realização de dili-
gências e atos processuais desnecessários, uma vez que não se faz inevitável,
para a sua interposição, o oferecimento de bens à penhora para a segurança do
juízo, diferente da hipótese de interposição da impugnação na fase de cumpri-
mento de sentença, por execução, com o advento da Lei nº 11.232/05.
Assim, com o advento da Lei nº 11.232/05, que alterou profundamente
a execução de título judicial, tornando esta apenas uma fase do processo de
conhecimento, tendo em vista a técnica do sincretismo processual adotada
pelo legislador e, principalmente, com as modificações introduzidas pela Lei
nº 11.382/06 na execução de título extrajudicial, possibilitando, destarte, a
interposição dos embargos do executado independentemente de serem ofer-
tados bens à penhora para a garantia do juízo, nos moldes do que reza o
caput do art. 736 do Código de Processo Civil, começaram a surgir dúvidas a
respeito do cabimento e da necessidade desta defesa dita intraprocessual em
face da nova sistemática processual adotada.
Assim, face ao exposto acima e com o fito de deixar o trabalho mais
completo, passa-se à análise acerca da possibilidade ou não do cabimento
desta modalidade de defesa na execução à luz das novas reformas introdu-
zidas pelo legislador infraconstitucional no ordenamento processual civil
visando a rápida solução do processo.

2.3.1 A defesa intraprocessual na fase de cumprimento de


sentença e na execução por título extrajudicial, após o
advento das Leis nºs 11.232/05 e 11.382/06
Após a realização do estudo sobre a impugnação e dos embargos do
executado à luz das Leis nºs 11.232/05 e 11.382/06 realizadas acima, passa-se
à análise acerca da possibilidade de se interpor a defesa intraprocessual ante
a nova sistemática da execução civil, começando com a fundada em título
judicial e, posteriormente, com a fundada em título extrajudicial.
Da mesma forma da antiga execução fundada em título judicial, a
defesa intraprocessual poderá ser interposta na nova sistemática adotada pelo
Código de Processo Civil — obviamente, independentemente de penhora
e da observância do prazo de 15 dias estabelecido para o oferecimento da
impugnação ou embargos —, nos casos de clarividente ausência das condi-
ções da ação, como na hipótese de manifesta ilegitimidade de parte; ausência
de pressuposto processual de existência, como, por exemplo, a falta de citação
válida do réu no processo de conhecimento, o que torna a sentença inexistente
juridicamente; no caso da prescrição do título executivo; ou até mesmo, na

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hipótese de compensação, novação e pagamento do executado com a juntada


de recibo, desde que, para tanto, não necessite de dilação probatória.26
Alguns doutrinadores, como Luiz Rodrigues Wambier, Teresa Arruda
Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina, ao analisarem a questão,
entendem que, no que se refere às matérias dispostas no incs. I, II, e IV do
art. 475-L do Código de Processo Civil, poderão ser arguidas através da exceção
de pré-executividade, independentemente da realização da penhora, em razão
de os temas poderem ser reconhecidos de ofício pelo magistrado, ou, bastando
uma simples petição por se tratarem de pressupostos da própria atuação exe-
cutiva. Contudo, os ilustres doutrinadores parecem não entender ser possível
a arguição de adimplemento do crédito através da juntada de recibo de paga-
mento, que deverá ser realizado através da interposição da impugnação.27
Portanto, a nova sistemática adotada pela Lei nº 11.232/05 à execução
de título judicial, apesar de terem sido realizadas profundas alterações, não
trouxe grandes reflexos no que se refere à possibilidade da apresentação da
defesa intraprocessual, restando, praticamente, as mesmas hipóteses de cabi-
mento admitidas no antigo procedimento.28
No entanto, já no que tange ao ingresso da defesa intraprocessual no
processo de execução fundado em título extrajudicial, tem-se que, em razão
da Lei nº 11.382/06 ter trazido algumas alterações substanciais no sistema
processual, permitindo ao executado a possibilidade de interposição dos
embargos independentemente de penhora, este meio de controle do título
executivo, apesar de ainda continuar sendo passível de aplicação, quedou-se
limitado o seu raio de atuação, perdendo, de certa forma, a sua utilidade.
Como já aduzido acima, a grande vantagem da criação da defesa
intraprocessual pela doutrina fora a de que o executado poderia, indepen-
dentemente de ofertar bens à penhora, através de simples petição, insurgir-se
contra o título executivo, alegando matérias que o juiz poderia ou, até
mesmo, deveria analisar de ofício como, por exemplo, a ausência de condi-
ções da ação e pressupostos processuais de existência e validade.
Assim, com a alteração do art. 736 do Código de Processo Civil pela Lei
nº 11.382/06, que tornou desnecessária a garantia do juízo para que o executado
ofereça seus embargos, parece que a defesa intraprocessual nas execuções
26
Nesse sentido: Nova execução de títulos judiciais e sua impugnação. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Aspectos
polêmicos da nova execução de títulos judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 452. ASSIS, Araken de.
Cumprimento da sentença. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 400-401.
27
WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Sobre a objeção de pré-executividade. In: SHIMURA,
Sérgio Seiji; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim Processo (Coord.). Processo de execução e assuntos afins. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2001. p. 405.
28
Em que pese admitir a possibilidade de interposição da exceção de pré-executividade, João Batista Lopes adverte que
este instrumento não pode ser utilizado de forma irregular como meio de procrastinar o processo de execução sob
pena de desvirtuamento dos princípios do contraditório e da ampla defesa, senão vide o seu magistério: “Sucede
que, na prática, em razão da ‘cultura da procrastinação’, assiste-se ao desvirtuamento do contraditório e da ampla
defesa pela utilização indiscriminada da soi-disant exceção de pré-executividade, das ações autônomas (defesas
heterotópicas), de medidas de urgências e outros expedientes assemelhados. Conquanto, em princípio, tais meios
de defesa não possam ser impedidos, e de rigor sejam exercitados regularmente e com seriedade, cumprindo
ao juiz, na direção do processo, obstar os expedientes protelatórios, advertir o executado das conseqüências do
comportamento abusivo e aplicar as sanções previstas em lei processual. Assim, a exceção de pré-executividade
só deverá ser adotada se tiver como objeto matéria de ordem pública ou prova documental da extinção do débito
[...]” (LOPES, João Batista. Contraditório e abuso de direito de defesa na execução. In: FUX, Luiz; NERY JUNIOR,
Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Processo e Constituição: estudos em homenagem ao Professor
José Carlos Barbosa Moreira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 349).

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fundadas em título extrajudicial somente será cabível na hipótese em que o


executado, devidamente citado, não apresentar os embargos no prazo legal.
Comungando desse entendimento, vide o magistério de Luiz Rodrigues
Wambier, Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina, in verbis:

Segundo pensamos, tal alteração elimina, praticamente, a utilidade do manejo


da exceção de pré-executividade, no início do desenvolvimento do processo de
execução. Com efeito, dentre as principais razões apresentadas pela doutrina
e pela jurisprudência para justificar a admissibilidade da exceção (ou objeção)
de pré-executividade, encontrava-se, como se viu, a idéia de que seria injusto
submeter os bens do executado à penhora para, só depois, possibilitar-lhe a
alegação de pagamento, de nulidade do título etc.29

Convém registrar, ainda, que tanto na hipótese do executado manejar


defesa intraprocessual em face de execução fundada em título judicial, quanto
na fundada em título extrajudicial fora do prazo previsto, respectivamente,
para a impugnação e para os embargos, o executado deverá apresentar as
matérias cognoscíveis de ofício na primeira oportunidade em que lhe fora
dada para falar nos autos, sob pena de lhe acarretar as sanções previstas nos
arts. 22 e 267, §3º, do Código de Processo Civil.30
Outro ponto interessante que diferencia a defesa intraprocessual dos
embargos à execução, fundados em título extrajudicial, está no fato de que os
mesmos, desde que garantido o juízo e opostos no prazo legal, poderão sus-
pender a execução nos casos em que essa puder causar danos de incerta ou
difícil reparação ao executado e, ainda, desde que sejam relevantes os seus fun-
damentos ao ponto dos mesmos poderem ser julgados procedentes, de acordo
com o art. 739-A do Código de Processo Civil, o que não ocorre com o aludido
incidente processual, como já se teve a oportunidade de explicitar acima.
Dessa forma, acredita-se que mesmo após o advento das Leis nºs 11.232/05
e 11.382/06, a defesa intraprocessual — mais conhecida pela doutrina e juris-
prudência como exceção ou objeção de pré-executividade —, continuará a existir e
será um importante mecanismo para se buscar o rápido desfecho da execução,
eis que, além de não necessitar da oferta de bens à penhora por parte do execu-
tado, ainda não estabelece qualquer prazo para ser interposta.
A defesa intraprocessual, como o próprio nome que se adotou nesse traba-
lho já diz, é a mais clara existência das garantias constitucionais do contraditório
e da ampla defesa no processo de execução,31 correspondendo este incidente,
nas palavras de Carlos Alberto Carmona, em nada mais do que “[...] a reação do
devedor ao processo malformado ou à ausência de uma das condições da ação
executiva”,32 e que visa, por via reflexa, o rápido desfecho da execução civil.

29
MEDINA, José Miguel Garcia; WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Breves comentários
à nova sistemática processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. v. 3, p. 193.
30
MEDINA, José Miguel Garcia; WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Breves comentários
à nova sistemática processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. v. 3, p. 152 e 194.
31
BRAGHITTONI, R. Ives. O princípio do contraditório no processo: doutrina e prática. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2002. p. 154-155.
32
CARMONA, Carlos Alberto. Código de Processo Civil interpretado. São Paulo: Atlas, 2004. p. 17.

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Os meios de defesa do executado após a nova sistemática da execução civil por quantia certa contra devedor... 147

3 Conclusões
Após inúmeras reformas introduzidas em nosso ordenamento processual
civil, o legislador pátrio deu prosseguimento ao seu trabalho na busca da otimi-
zação, agora, da execução civil, ancorando-se nos direitos fundamentais previs-
tos na Constituição Federal, em especial, no princípio da razoável duração do
processo judicial disposto expressamente no inciso LXXVIII, do seu art. 5º.
Foi com a Lei nº 11.232/05 que o legislador rompeu com aquela ideia de
que os atos executivos deveriam ser realizados apenas em processo autônomo
de execução, ou seja, que o referido processo deveria ser puro, passando,
então, a existir uma dicotomia procedimental em relação às execuções funda-
das em título judicial e em título extrajudicial.
Desta forma, diante da dicotomia procedimental implantada pelo legis-
lador, principalmente com a implantação da técnica do sincretismo (reunião
dos processos de conhecimento e execução na mesma relação jurídica) na exe-
cução fundada em título judicial pela Lei nº 11.232/05, temos que acabaram
por ocasionar diferentes procedimentos no que tange, também, aos meios de
defesa em que o executado passa a ter à sua disposição.
As modificações realizadas pelas Leis nºs 11.232/05 e 11.382/06 na exe-
cução civil por quantia certa contra devedor solvente fundada em título judi-
cial e extrajudicial, em especial, as inerentes a sua forma de controle (meca-
nismos de defesa), que são a impugnação ao requerimento de cumprimento
de sentença, por execução, e os embargos do executado, tiveram a finalidade
principal de tornar a execução civil mais célere, nos moldes do princípio
constitucional da razoável duração do processo.
Diante da análise exposta em todo o trabalho, é possível vislumbrar o
empenho do legislador em tentar deixar o processo de execução mais célere,
eliminando alguns pontos de estrangulamento existentes, principalmente, no
que tange aos meios de defesa que possuía o executado, os quais eram calça-
dos em técnicas arcaicas e morosas que beneficiavam, exclusivamente, o exe-
cutado que tinha ao seu lado um verdadeiro mecanismo capaz de emperrar
indefinidamente o andamento da execução, haja vista que os embargos, antes
das aludidas reformas, tinham o condão de suspender automaticamente a
execução, postergando ou até mesmo impedindo que fosse entregue ao exe-
quente a tutela jurisdicional almejada.
Dentre outras técnicas implantadas, releva destacar a cessação ope legis
do efeito suspensivo dos embargos interpostos nas ações de execução fun-
dada em título extrajudicial e também na impugnação ao requerimento de
cumprimento de sentença, por execução, passando esse efeito, agora, ser ope
iudicis, ou seja, somente poderá ser concedido se restarem preenchidos os
requisitos — de difícil ocorrência na prática, diga-se de passagem —, descri-
tos nos arts. 475-M e 739-A, §1º do CPC, e serão concedidos caso a caso pelo
magistrado que irá suspender apenas no que tange à parte controvertida,
superando, assim, as críticas que sempre recaíram ao procedimento.
Vislumbra-se, ainda, dentre as reformas, a possibilidade do magistrado
rejeitar liminarmente a impugnação nos casos em que são alegados excesso

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de execução e o executado não declare o valor que entenda correto (art. 475-L,
§2º do CPC), ou nos casos em que forem propostos embargos meramente
protelatórios (art. 739), hipótese essa em que o juiz poderá aplicar multa de
caráter punitivo no percentual não superior a 20% (vinte por cento), nos ter-
mos do que reza o art. 740 do aludido codex.
Não se pode esquecer também da inovação trazida pela Lei nº 11.382/06
que autorizou o executado, nas ações de execução fundadas em título extraju-
dicial, reconhecendo o crédito exequendo — ao invés de interpor os embargos
destituídos de qualquer fundamento fático ou legal —, depositar a quantia
correspondente a 30% (trinta por cento) do montante total e requerer o par-
celamento do débito em até seis parcelas mensais, nos moldes do que reza o
art. 745-A do CPC, tudo isso para facilitar o seu cumprimento, reduzindo, por
consequência, o prazo de tramitação do processo executivo.
Em que pese às inovações legislativas, pode-se constatar, ainda, que
a defesa intraprocessual (exceção/objeção de pré-executividade), oriunda
de criação doutrinária, não fora abolida, muito ao contrário, continua tendo
aplicação prática, principalmente, no que tange às execuções fundadas em
título judicial, onde para apresentar a impugnação ainda se faz necessária a
garantia do juízo através da oferta de bens à penhora.
Enfim, sem ter a pretensão de resumir todas as inovações trazidas pelo
legislador ordinário, temos que as mesmas, principalmente, as ligadas aos
meios de defesa do executado, tiveram o grande escopo de otimizar a execu-
ção extraindo alguns mecanismos retrógrados que somente tinham o condão
de emperrar a sua tramitação, sem, contudo, violar qualquer garantia consti-
tucional do executado, sempre na busca do cumprimento dos ditames consti-
tucionais, em especial do princípio da razoável duração do processo.
Embora tenham sido louváveis as reformas realizadas pelo legislador
ordinário na execução civil por quantia certa contra devedor solvente, em
especial no que tange aos mecanismos de defesa — cerne do que nos pro-
pusemos a tratar —, acredita-se que as mesmas não foram suficientes para
torná-la plenamente eficaz e, consequentemente, estancar a crise em que a
execução se enveredou, até porque, como bem nos explica Barbosa Moreira,
não existe “fórmula mágica” ou um “abracadabra jurídico” capaz de sanar
definitivamente todas as mazelas processuais.33
É necessário também que, ao lado de todas as mudanças legislativas,
sejam realizados maiores investimentos tecnológicos nos órgãos judiciais pelo
Poder Público, na aquisição de computadores, móveis, materiais de trabalho
e outros, bem como seja realizada a contratação de funcionários públicos,
incluindo a de magistrados, através de concursos públicos, para suprir o acrés-
cimo desproporcional de demandas que abarrotam os Fóruns de todo o país.
E, principalmente, sejam realizados investimentos na área social, com a
implantação de um sistema educacional adequado, melhorias na saúde e na
cultura, aumento de ofertas de emprego, onde somente assim poderá acarre-
tar o decréscimo no índice de inadimplência e, por consequência, diminuir o
número de processos judiciais.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. O futuro da justiça: alguns mitos. Revista de Processo, São Paulo, n. 99, p. 145-147, 2000.
33

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Os meios de defesa do executado após a nova sistemática da execução civil por quantia certa contra devedor... 149

A população, como num passado remoto, deve voltar a ter vergonha


de ser devedora e a quitação desses débitos deve se tornar uma questão de
honra para todos os cidadãos.34
O devedor que não tem razão deve acreditar que é um péssimo
negócio enveredar num processo judicial. Deve, ainda, acreditar que as deci-
sões judiciais são eficazes e que existem meios judiciais suficientes para que
o mesmo seja forçado a realizar o pagamento e, portanto, que não haverá
como se esquivar de sua obrigação, por isso acredita-se que poderiam ser
implantadas medidas mais enérgicas em nosso ordenamento processual civil
para sancionar aqueles que infringem as suas normas, principalmente para
punir aqueles que cometem atos atentatórios ao exercício da jurisdição ou à
dignidade da Justiça (arts. 14, par. único, e 600 do CPC), seja com o aumento
do percentual da multa punitiva, ou através da implantação de medidas
diversas, como as restritivas de direito.35
Parece um tanto quanto utópico o que se acaba de idealizar, mas acre-
dita-se a realização — juntamente com as alterações legislativas no procedi-
mento da execução por quantia —, de maciços investimentos, principalmente,
na educação e na cultura de nossa população, ao longo prazo, poderá trazer
uma maior conscientização à população. Por essa razão, embora esteja ainda
longe de ser concretizada, entende-se imprescindível que a conscientização
e os projetos sejam iniciados o mais rápido possível para que possamos, no
futuro, colher os seus resultados.

Abstract: This work aims to analyze the important modifications introduced


by Laws 11.232/05 and 11.382/06 in Brazilian Civil Procedure Code, especially
in regard to the defensive forms that have been given the defendant —
challenging the application for compliance of judgments and “embargos”
of defendant —, those amendments was intended to fill some gaps in our
procedural system executive, that were subject to heavy critiques by the
doctrine that to provided to the defendant the opportunity to paralyze the
civil execution amount indefinitely time, preventing that was provided to the
petitioner that the effective and celery judicial tutelage. Finally we analyze
the pertinence and significance of the “exceção/objeção de pré-executividade”
before this new civil execution.
Key words: Civil Execution. Celerity. Defensive forms.

Referências
ALVIM, Eduardo Arruda. Exceção de pré-executividade. In: SHIMURA, Sérgio; WAMBIER,
Teresa Arruda Alvim (Coord.). Processo de execução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. v. 2.

34
Como bem aduzido por Paulo Henrique dos Santos Lucon e Leonardo Greco em notas de rodapé nºs 2 e 3 transcritas
acima.
35
Sobre o assunto, remetemos ao leitor para a leitura de obra inovadora e específica sobre o assunto, a saber: BORGES,
Rodrigo Lanzi de Moraes. A restrição de direitos no processo e a efetividade da execução civil. In: GÖTTEMS,
Claudinei J.; SIQUEIRA, Dirceu Pereira (Coord.). Direitos fundamentais: da normatização à efetividade nos 20 anos
de Constituição brasileira. São Paulo: Boreal, 2008. p. 238-262.

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150 Rodrigo Lanzi de Moraes Borges

ASSIS, Araken de. Cumprimento da sentença. Rio de Janeiro: Forense, 2006.


BORGES, Rodrigo Lanzi de Moraes. A restrição de direitos no processo e a efetividade da
execução civil. In: GÖTTEMS, Claudinei J.; SIQUEIRA, Dirceu Pereira (Coord.). Direitos
fundamentais: da normatização à efetividade nos 20 anos de Constituição brasileira. São
Paulo: Boreal, 2008.
BORGES, Rodrigo Lanzi de Moraes; BERTONCINI, Luís Cesar. O sincretismo processual
como técnica para a concretização dos direitos fundamentais. Revista Nacional de Direito e
Jurisprudência, São José do Rio Preto, v. 90, 2007.
BRAGHITTONI, R. Ives. O princípio do contraditório no processo: doutrina e prática. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2002.
BUENO, Cassio Scarpinella. Variações sobre a multa do caput do art. 475-J do CPC na redação
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CARMONA, Carlos Alberto. Código de Processo Civil interpretado. São Paulo: Atlas, 2004.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução civil. 5. ed. rev. ampl. e atual. São Paulo:
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GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. 12. ed. atual. São Paulo: Saraiva,
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GUERRA, Marcelo Lima. Os direitos fundamentais do credor na execução. São Paulo: Revista
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LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Eficácia das decisões e execução provisória. São Paulo:
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LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Embargos do executado. 2. ed. rev. ampl. e atual. São
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LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Nova execução de títulos judiciais e sua impugnação.
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São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
MALACHINI, Edson Ribas. A defesa intraprocessual no processo de execução: “exceção
de pré-executividade”. In: FUX, Luiz; NERY JUNIOR, Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda
Alvim (Coord.). Processo e Constituição: estudos em homenagem ao Professor José Carlos
Barbosa Moreira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

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Os meios de defesa do executado após a nova sistemática da execução civil por quantia certa contra devedor... 151

MEDINA, José Miguel Garcia. Execução civil, teoria geral, princípios fundamentais. 2. ed. rev.
e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
MEDINA, José Miguel Garcia; WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda
Alvim. Breves comentários à nova sistemática processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais,
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MOREIRA, Alberto Camiña. Defesa sem embargos do executado. São Paulo: Saraiva, 1998.
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SHIMURA, Sérgio Seiji. A execução da sentença na reforma de 2005. In: WAMBIER, Teresa
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WAMBIER, Luiz Rodrigues; ALMEIDA, Flávio Renato Correia de; TALAMINI, Eduardo.
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Processo de execução e assuntos afins. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

BORGES, Rodrigo Lanzi de Moraes. Os meios de defesa do executado após a nova sis-
temática da execução civil por quantia certa contra devedor solvente. Revista Brasileira
de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 71, p. 129-151, jul./set. 2010.

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Súmula vinculante – Edição em matéria de Direito Administrativo e instrumentos de controle 153

Súmula vinculante – Edição em


matéria de Direito Administrativo e
instrumentos de controle
Daniela Juliano Silva
Especialista em Direito Público.

Luiz Carlos Figueira de Melo


Doutor em Direito pela UFMG. Professor da Universidade Federal de Uberlândia.

Resumo: As súmulas vinculantes surgiram no ordenamento brasileiro com a


Emenda Constitucional nº 45/04, tendo por missão imprimir mais celeridade
e segurança ao trato processual. Apesar da louvável pretensão, o que as
súmulas vinculantes têm acumulado são críticas. Não lhes faltam opositores
no sentido de se postular sucessivas ofensas ao ordenamento constitucional
pátrio. Citadas ofensas se realçam na medida em que se restringe o objeto
de edição destas súmulas, principalmente em matéria afeta ao Direito Admi-
nistrativo, a configurar ofensa direta ao princípio da separação de poderes.
Ademais a conclusão pela quebra de muitos princípios que sustentam a
ordem constitucional, esta mesma ordem não é capaz de apresentar meios
de controle efetivos, na medida em que encontram restrição na própria
estrutura hierarquizada do Judiciário, onde o órgão competente para analisar
estas ofensas é o mesmo que as promove. A reflexão deve ser levada a um
outro nível, onde não haja invasão de competências e se promova a busca
pela vontade coletiva na realização de um Estado Democrático de Direito.
Palavras-chave: Súmulas vinculantes. Edição em matéria de Direito Admi-
nistrativo. Instrumentos de controle.
Sumário: 1 Considerações iniciais – 2 A Reforma do Judiciário e o instituto
da súmula vinculante – 3 A edição de súmulas vinculantes em matéria de
Direito Administrativo – Risco à ordem constitucional? – 4 Instrumentos de
controle na edição da súmula vinculante – 5 Conclusão – Referências

1 Considerações iniciais
A súmula vinculante, inserida em nossa realidade pela Reforma do
Judiciário implementada pela Emenda Constitucional nº 45/2004, foi recebida
com entusiasmo pela comunidade jurídica como um todo, principalmente
por aqueles que há tempos por ela já proclamavam.
Fruto da falta de uniformidade e da imprevisibilidade nas decisões e
como instrumento de operabilidade do direito, buscando descongestionar o
pesado trato processual, a súmula vinculante logo passou a tema reverencial
no que se refere à celeridade processual e à estabilidade nestas relações.
Contabilizam-se, até o momento, 21 (vinte e uma) súmulas vinculantes
aprovadas pelo Supremo Tribunal Federal, seu órgão editor, tratando das mais

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154 Daniela Juliano Silva, Luiz Carlos Figueira de Melo

diferentes matérias. Outros tantos projetos estão em vias de reconhecimento


(projetos de súmula vinculante), exteriorizando a efetividade no reconheci-
mento deste instrumento e a crença na sua realizabilidade.
Esta pujante realidade reflete o fato de que as súmulas vinculantes são
instrumentos que fazem parte, em definitivo, de nosso ordenamento. Daí se
colocar à reflexão, o que se propõe nestas linhas, uma análise mais esmerada
acerca dos reais limites de sua edição bem como de seu efetivo alcance.
Necessário verificar a legitimidade por detrás da edição das súmu-
las vinculantes em certas matérias, ou melhor, a liberdade para se tratar de
determinadas matérias sem que isso venha a representar ofensa aos primados
mais elementares de nosso ordenamento. Exatamente neste ponto, lança-se
a celeuma acerca da possibilidade de edição de súmulas vinculantes em
matéria de Direito Administrativo (o que já vem ocorrendo, no que citamos a
inteligência das Súmulas Vinculantes nºs 3/5/15/16/20/21) e se isto não feriria
princípios basilares de nossa sistemática jurídica.
Levantado este questionamento, adentra-se em outra seara: o de se
identificar quais instrumentos jurídicos se prestariam ao controle de even-
tuais excessos na edição das súmulas vinculantes. A princípio, o controle de
constitucionalidade parece se mostrar a opção mais óbvia, mas a questão não
é tão simples e, portanto, objeto de especial enfrentamento.
Nestas linhas, iniciamos a presente abordagem com um panorama geral
do instituto das súmulas vinculantes, passando, na sequência, a uma análise
mais restrita, especificamente quanto à sua edição em matéria afeta ao Direito
Administrativo e, finalmente, aos possíveis instrumentos de controle.

2 A Reforma do Judiciário e o instituto da súmula vinculante


Como já tivemos a oportunidade de antecipar, as súmulas vinculantes
surgiram na tentativa de se contrapor a um cenário jurídico de recorrente
insegurança jurídica e falta de celeridade.
Importante pontuar, antes de qualquer outra digressão, que o Supremo
Tribunal Federal já editava súmulas, mas essas não eram dotadas de força
vinculativa, tendo apenas caráter interpretativo. Ademais a obviedade desta
afirmativa, é assente na doutrina o entendimento de que o efeito vinculante
das decisões de Tribunais Superiores não traz inovação alguma.
Nessa ordem, por oportuno citarmos o entendimento de Nelson de
Sousa Sampaio, para quem o efeito das decisões de Tribunais Superiores
sobre os atos de instâncias inferiores não configura novidade, estando pre-
sente no próprio desempenho da missão do Judiciário, mormente quanto
à crescente extensão de seus efeitos, escalonando-se os atos dos juízes em
sentença clássica, precedente, sentença normativa, jurisprudência vinculante,
atos quase legislativos e plenamente legislativos.
Ademais o parêntese, não há como negar, que o grande diferencial do
instituto ora tratado é seu efeito vinculante, e é exatamente neste ponto que
o mesmo, introduzido em nosso ordenamento pela Emenda Constitucional
nº 45, de 8 de dezembro de 2004, se torna tão diferenciado.

SAMPAIO, Nelson de Sousa. O Supremo Tribunal Federal e a nova fisionomia do Judiciário. RDP, 75/5 et seq.

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Súmula vinculante – Edição em matéria de Direito Administrativo e instrumentos de controle 155

O artigo 103-A da Constituição Federal dispõe, basicamente, que o


Supremo Tribunal Federal poderá (de ofício ou por provocação), mediante
quórum qualificado de dois terços dos seus membros, após reiteradas deci-
sões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que terá efeito vinculante
em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e da administração pública
direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.
De citado artigo muito se absorve, retirando-se as características ele-
mentares do instituto, senão vejamos: sua edição por parte do Supremo
Tribunal Federal, seja de ofício ou por provocação; a matéria objeto de apro-
vação — constitucional — e, finalmente, seu já apontado caráter vinculante.
Procedimentalmente, no que se refere à edição das súmulas vinculan-
tes, podemos identificar três fases (à semelhança do que ocorre no processo
legislativo): a fase de iniciativa, a fase de deliberação e a fase de publicação.
Na fase de iniciativa, deflagra-se a elaboração da súmula vinculante,
que poderá se dar por iniciativa do próprio Supremo Tribunal Federal (de
ofício) que irá deliberar acerca da inauguração do sobredito procedimento.
A iniciativa também se dá por provocação, tendo por legitimados os agen-
tes definidos pelo artigo 3º da Lei nº 11.417/2006, que veio regulamentar o
artigo 103-A da Carta Magna.
A fase de deliberação se dá com a aprovação da súmula pelo quórum
deliberativo de dois terços, bem como pelo juízo prévio de reconhecimento
da necessidade de uniformização de decisões sobre matéria constitucional.
Finalmente, na fase de publicação, a súmula vinculante, como todo ato
do poder público, para efeito de sua legitimação e eficácia, se condiciona à
publicação na Imprensa Oficial.
De toda forma, desmembrando as características pontificadas, um ponto
ressoa de forma recorrente no presente trabalho: a norma constitucional
explicita que a súmula terá por objetivo superar controvérsia atual sobre a
validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas capaz de gerar
insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos.
Oportuno insistir nesta premissa, uma vez que, caso a súmula vinculante
não venha cumprir esses requisitos constitucionais substanciais (art. 103-A, §1º,
CF), repita-se, a supressão da grave insegurança jurídica e a multiplicação de
processos sobre questão idêntica, estaremos diante de situação onde o Poder
Judiciário estará extravazando seu mandato constitucional, sob risco de se
representar ofensa a preceito constitucional indissociável, qual seja, do Princípio
da Separação dos Poderes (o que será objeto específico de reflexão adiante).
Diante desta possibilidade, a própria sistemática constitucional tratou
de tipificar um, digamos, ‘freio’, à atuação do Supremo Tribunal Federal, con-
templando a possibilidade, no §2º do artigo 103-A, da revisão e cancelamento
da súmula vinculante, possuindo esta prerrogativa tanto o Supremo quanto
os legitimados do artigo 3º da Lei nº 11.417/2006.
De toda forma, forçoso concluir que o expediente de cancelamento
da súmula vinculante, privativa dos citados legitimados, não serviria como

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito
constitucional. Saraiva: São Paulo, 2008. p. 966.

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156 Daniela Juliano Silva, Luiz Carlos Figueira de Melo

instrumento de efetivo controle, quanto mais ante uma certa inocuidade, vez que
o próprio STF proferirá a decisão final. A questão do controle também será objeto
de tópico específico, na tentativa de se buscar institutos que realmente venham
servir de instrumento de efetivo controle na edição de súmulas vinculantes.
Apesar da operacionalidade pretendida quando da adoção das súmu-
las vinculantes, bem como de sua celebrada inserção em nosso ordenamento,
esta vem sendo duramente criticada, não lhe faltando ferrenhos opositores.
Se seus defensores visualizam nas súmulas vinculantes um instrumento
apto a efetivar a celeridade, a economia processual e a harmonização do
ordenamento, seus opositores questionam, principalmente, o seu caráter des-
pótico em relação ao livre convencimento motivado do órgão julgador e o
inevitável desequilíbrio no princípio da separação dos poderes.
Habermas critica a ausência de discurso na formação de tais súmulas.
Pontifica que a aparente legalidade do instituto nada apresenta de legítimo
aos jurisdicionados. Despidos de dialética, os destinatários da norma não
participam da produção do direito. A decisão ignoraria a alocução das partes,
tornando-se uma ação estanque e singular do juiz.
E não é só isso. Existem vários outros pontos de atrito entre a positiva-
ção das súmulas vinculantes e o direito posto. A começar pela transgressão
ao princípio constitucional da legalidade, perfazendo, segundo Djanira Maria
Radamés de Sá, a insustentável situação de “subversão do sistema jurídico
nacional pela inversão da ordem de prevalência das fontes do direito”.
Finalmente, citamos o não menos instigante entendimento que aponta
para ofensa ao direito de petição (e reflexamente ao princípio constitucio-
nal da inafastabilidade do Judiciário – artigo 5º, XXXV, da CF/88) pelo modo
como se encontram hoje perfilhadas as súmulas vinculantes. José Anchieta
da Silva alerta sobre os perigos desta sistemática, ao profetizar que chegará o
momento em que sequer haverá processo, tampouco o contraditório, existindo
tão somente uma decisão.
Em linhas gerais, este é o quadro das súmulas vinculantes em nosso
ordenamento hoje. Na sequência, a questão será enfrentada de forma mais
específica, no que concerne à edição destas súmulas em matéria de Direito
Administrativo e a possível afronta a primados constitucionais elementares.

3 A edição de súmulas vinculantes em matéria de Direito


Administrativo – Risco à ordem constitucional?
Foi possível observar que não faltam argumentos contrários ao insti-
tuto da súmula vinculante, independentemente da matéria sobre a qual a
mesma venha a ser editada.
De toda forma, optamos por delimitar o alcance do presente estudo (quanto
à edição de súmulas vinculantes em matéria de Direito Administrativo), o que, a
princípio, pode vir a justificar toda a reserva e cautela com que a matéria é tratada.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
v. 2, p. 203.

SÁ, Djanira Radamés de. Súmula vinculante: análise crítica de sua adoção. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. p. 113-114.

SILVA, José Anchieta da. A súmula de efeito vinculante amplo no direito brasileiro: um problema e não uma solução.
Belo Horizonte: Del Rey, 1998. p. 76.

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Súmula vinculante – Edição em matéria de Direito Administrativo e instrumentos de controle 157

Das 21 (vinte e uma) súmulas vinculantes editadas, contabilizamos 6


(seis) que de alguma forma tratam de matéria afeta ao Direito Administrativo,
no que fazemos questão de trasladar:
Súmula Vinculante nº 3 – Nos processos perante o Tribunal de Constas
da União asseguram-se o contraditório e a ampla defesa quando da decisão
puder resultar anulação ou revogação de ato administrativo que beneficie o
interessado, excetuada a apreciação da legalidade do ato de concessão inicial
de aposentadoria, reforma e pensão.
Súmula Vinculante nº 5 – A falta de defesa técnica por advogado no pro-
cesso administrativo disciplinar não ofende a Constituição.
Súmula Vinculante nº 15 – O cálculo de gratificações e outras vanta-
gens do servidor público não incide sobre o abono utilizado para se atingir o
salário mínimo.
Súmula Vinculante nº 16 – Os artigos 7º, IV e 39, §3º (redação da EC
nº 19/98), da Constituição, referem-se ao total da remuneração percebida pelo
servidor público.
Súmula Vinculante nº 20 – A gratificação de desempenho de atividade
técnico-administrativa (GDATA), instituída pela Lei nº 10.404/2002, deve ser
deferida aos inativos nos valores correspondentes a 37,5 (trinta e sete vírgula
cinco) pontos no período de fevereiro a maio de 2002 e, nos termos do artigo 5º,
parágrafo único, da Lei nº 10.404/2002, no período de junho de 2002 até a conclu-
são dos efeitos do último ciclo de avaliação a que se refere o artigo 1º da medida
provisória nº 198/2004, a partir da qual passa a ser de 60 (sessenta) pontos.
Súmula Vinculante nº 21 – É inconstitucional a exigência de depósito ou arrola-
mento prévios de dinheiro ou bens para admissibilidade de recurso administrativo.
Ato administrativo, processo e recurso administrativo, servidor público, todas
matérias objeto de súmula vinculante, todas matérias afetas à Administração
Pública, todas questões afetas ao Poder Executivo, seja de forma direta ou indireta.
Nesta perspectiva, têm razão os críticos da súmula vinculante quanto ao
inevitável desequilíbrio no princípio da separação de poderes. Não há como
negar que o STF acaba por adentrar em seara que não lhe diz respeito, sob a
pecha de que estaria tratando de “matéria constitucional”. E a ofensa ao princí-
pio da separação dos poderes não se dá apenas no nível do Poder Executivo, mas
também no nível do Poder Legislativo, havendo supressão do legítimo processo
legislativo. Assim como o Legislativo não pode editar leis para um único caso, o
que significaria julgar, o Judiciário, na mesma via, não tem aptidão para emanar
sentenças de cunho generalizado, já que isso corresponderia a legislar.
Além do mais, a sujeição do Poder Judiciário e da Administração
Pública direta e indireta em todas as suas esferas (federal, estadual e munici-
pal), e não do Poder Legislativo é incômoda, quanto mais na recorrente jus-
tificativa que seria para preservar a independência deste Poder, reforçando
mais uma vez o desequilíbrio no princípio da separação de poderes. E não é
só. A submissão de todas as esferas da administração pública aos ditames das
súmulas vinculantes, acaba por ferir o pacto federativo, suprimindo de certa
forma o poder de autogoverno dos citados entes.

FREITAS, Elizabeth Cristina Campos Martins de. A aplicação restrita da súmula vinculante em prol da efetividade
do direito. Revista do Processo, v. 29, n. 116, p. 181-206, jul. 2004.

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158 Daniela Juliano Silva, Luiz Carlos Figueira de Melo

Todavia, existem aqueles que defendem não haver ofensa ao princípio da


separação dos poderes, uma vez que modernamente o mesmo enfrentaria certa
mitigação, em nome da concepção americana dos checks and balances. Hoje, se
falaria em independência e harmonia, de maneira que cada Poder exerceria sua
função característica de modo predominante, mas não exclusivo, como explica
José Afonso da Silva, “há interferências (entre os Poderes), que visam ao estabe-
lecimento de um sistema de freios e contrapesos, à busca do equilíbrio necessário
à realização do bem da coletividade e indispensável para evitar o arbítrio e o
desmando de um em detrimento do outro e especialmente dos governados”.
Neste sentido não haveria que se falar em qualquer quebra do princípio
da separação dos poderes no que concerne à edição de súmulas vinculantes.
Rodrigo Jansen, em artigo sobre o tema, descarta ofensa ao citado princípio
afirmando “(...) que o princípio constitucional não tem a rigidez que alguns
pretendem lhe dar; ao contrário, a concepção consagrada é a dos freios e con-
trapesos (checks and balances); de outro modo, haveria de ter-se por ‘inconsti-
tucionais’ diversas ingerências recíprocas entre os poderes, até talvez as que
foram consagradas pelo próprio constituinte originário”.
De toda forma, não é essa a posição prevalente. É impossível conceber,
sem quebra da harmonia e independência, um modelo baseado na separação
de poderes em que se permita ao Poder Judiciário a edição de ‘normas gerais
e abstratas’ com força vinculativa superior à da lei, como ocorreria com a insti-
tuição da súmula vinculante.
Mas os riscos à ordem constitucional não param por aí. A edição de súmulas
vinculantes em matéria afeta ao Direito Administrativo evidencia ofensa ao princípio
da legalidade, vez que por um paralelismo às avessas, parece colocar uma fonte secun-
dária do Direito (que é o que a súmula vinculante deve ser) em primeiro plano, como
fonte primária. E essa ofensa é por demais grave, quanto mais por toda a relevância
e especificidade do princípio da legalidade na seara do Direito Administrativo.
Finalmente, apontamos mais uma ofensa, ao Princípio Democrático, a se
começar pelo fato de que não pode haver prevalência de um Poder sobre outro,
a ponto de colocar em risco o equilíbrio e a independência dos mesmos.
Rosemiro Leal atenta exatamente para este fato, afirmando que a inviabi-
lidade de participação das partes na formulação dos enunciados de efeito vincu-
lante não se ajusta ao Estado Democrático de Direito, pontuando que “no direito
democrático, o que não é provido pelo devido processo legislativo fiscalizável pro-
cessualmente por todos (devido processo legal) não é juridicamente existente”.10
Pelo Estado Democrático de Direito, o Estado se estabelece como sendo
um Estado que se justifica por meio do direito, direito este que deve ser cons-
truído, discursivamente e democraticamente pelos próprios indivíduos da
sociedade. Há de se estabelecer, dessa forma, processos participativos, como a
viabilização do discurso dos indivíduos da sociedade, o que implica, conforme
anotado por J.J. Gomes Canotilho,11 a “estruturação de processos que ofereçam

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 111.

JANSEN, Rodrigo. A Súmula Vinculante como norma jurídica. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro,
n. 240, p. 259, abr./jun. 2005.

MARCÃO, Renato. Súmula Vinculante. Revista de Direito Constitucional e Internacional – Cadernos de Direito
Constitucional e Ciência Política, São Paulo, p. 298, out./dez. 2007.
10
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 5. ed. São Paulo: Landu, 2002. p. 146.
11
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 288.

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Súmula vinculante – Edição em matéria de Direito Administrativo e instrumentos de controle 159

aos cidadãos efectivas possibilidades de aprender a democracia, participar nos


processos de decisão, exercer controlo crítico na divergência de opiniões” e
“produzir inputs políticos democráticos”. Fácil notar que a edição de súmulas
vinculantes pelo Supremo Tribunal Federal não permite pretendido diálogo.
Nestas linhas gerais, forçoso concluir, posto o questionamento que
repousa neste tópico, que a edição de súmulas vinculantes em matéria de
Direito Administrativo realmente representa risco à ordem constitucional,
mormente no que se refere à harmonia e independência que deve prevalecer
entre seus poderes (artigo 2º, Constituição Federal).
Fácil notar que não faltam argumentos a desautorizar a edição de súmu-
las vinculantes como um todo, quanto mais em matérias afetas ao Direito
Administrativo. De toda forma essa afirmação resta inócua se não estiver acompa-
nhada de instrumentos que possam se contrapor a esta realidade. Tal questão nos
leva ao próximo tópico deste estudo, a fim de se identificar quais instrumentos se
prestariam a limitar e mesmo restringir a edição destas súmulas vinculantes.

4 Instrumentos de controle na edição da súmula vinculante


Em linhas anteriores tivemos a oportunidade de apontar um dos pos-
síveis instrumentos de controle das súmulas vinculantes: a possibilidade de
seu cancelamento. Naquela oportunidade foi possível concluir que citado
instrumento pouca relevância prática possui. Uma, pelo fato de que os
legitimados a este expediente são aqueles que taxativamente se encontram
ordenados pela Lei nº 11.417/2006 e outra, pelo fato de que o órgão que dará a
palavra final será o próprio Supremo Tribunal Federal, seu órgão editor.
Lançando um olhar sobre o aparato de instrumentos de controle pre-
sentes em nosso ordenamento, o prognóstico também não é dos mais anima-
dores, como oportunamente se verá.
A princípio, ante apontadas ofensas ao texto constitucional, o instrumento
primeiro de controle e expurgo seria a Ação Direita de Inconstitucionalidade.
Acontece que esta conclusão não se faz tão óbvia, a começar pela própria
estrutura deste instituto.
A Ação Direta de Inconstitucionalidade tem como pressuposto a ideia
de normatividade, tudo o que, em regra, a súmula vinculante não poderia ter.
O que se busca com a Ação Direta de Inconstitucionalidade (diga-se, gené-
rica) é o controle de constitucionalidade de ato normativo em tese, abstrato,
marcado pela generalidade, impessoalidade e abstração. Em regra, busca-se
expurgar do sistema lei ou ato normativo viciado (material ou formalmente),
promovendo a invalidação de citada lei ou ato normativo.
Exatamente nesta perspectiva, não faltam doutrinadores a inadmitir a
técnica do controle de constitucionalidade à súmula vinculante, “tendo em
vista o fato de a súmula não ser marcada pela generalidade e abstração, dife-
rentemente do que acontece com as leis (...)”.12
Todavia, outras vozes se voltam contra essa máxima, pugnando pelo
reconhecimento da súmula vinculante como espécie de ato normativo primá-
rio. Rodrigo Lemos Arteiro, em reflexão sobre o tema, pontifica:
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. Saraiva: São Paulo, 2009. p. 192.
12

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160 Daniela Juliano Silva, Luiz Carlos Figueira de Melo

Após a alteração constitucional, as súmulas passaram a trazer o efeito vinculante (força


normativa) e eficácia erga omnes (generalidade e abstração), de conformidade com o
artigo 103-A da CF/88, tornou-se portanto espécie de ato normativo primário. Atual-
mente, a súmula vinculante, como todo ato normativo extrai fundamento de validade
diretamente da própria Constituição Federal, mesmo não se fazendo inserir no rol das
espécies normativas do art. 59 da CF/88. Por conseguinte, deve seguir o Princípio do
Devido Processo Legislativo Constitucional, para que seja editada de maneira válida
sob o ponto de vista formal. Neste caso, o STF realiza função atípica de conteúdo legi-
ferante de elevado conteúdo político e discricionário. Quanto ao conteúdo, deverá ser
investigado o cumprimento da função constitucional da súmula, que se encontra na
norma do §1º do artigo 103-A da CF/88, com a finalidade de decidir sobre a validade,
interpretação e eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia
atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete
grave insegurança e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.13

Citada tendência tem seguidores inclusive em nossa mais alta Corte. A


Ministra Ellen Gracie já entendeu, no HC nº 96.301, de 06.10.08, que o meca-
nismo para se rever a súmula vinculante seria a própria ADI.
De toda forma, não importa qual partido se tome, acabamos por esbarrar
em um sistema de controle que não se mostra assim tão imparcial. Aqui se depara,
mais uma vez, com a mesma problemática levantada com relação ao expediente
de cancelamento da súmula vinculante: o órgão responsável por expurgar leis e
atos normativos contrários à Constituição é o mesmo que por ventura os edita.
E este será o quadro não importa o instrumento de controle que venha
servir de referência. Assim se diz, por exemplo, no caso de se eleger como
um instrumento de controle na edição de súmulas vinculantes, a Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF).
Ainda que este instrumento passe ileso por qualquer discussão doutri-
nária que o desabilite como instrumento de controle (o que ocorre com a ADI,
onde doutrina diverge quanto ao seu alcance) e mesmo se prestando a expurgar
qualquer ato emanado do poder público que evidencie o descumprimento de
preceitos fundamentais, mais uma vez esbarramos no fato de que o Supremo
Tribunal Federal fará as vezes de, digamos, “carrasco e enforcado”.
De todo modo, ao que tudo indica, o único instrumento de controle que
se encontra ao alcance daqueles que venham a se sentir prejudicados em seus
direitos pela edição de determinada súmula vinculante será o bom senso dos
Ministros de nossa Suprema Corte, na qualidade de guardiões da Constituição.
Bom senso tanto em momento prévio à edição destas súmulas, evitando-se
adentrar em seara que não lhe diga respeito, bem como em eventual discussão,
por qualquer instrumento que seja, a exigir sua revisão e exclusão do sistema.

5 Conclusão
A crise enfrentada pelo Poder Judiciário acabou por promover a tão
propalada Reforma do Judiciário concretizada via Emenda Constitucional
nº 45/04. Nesta toada, trouxe como instrumento de inovação a súmula
vinculante, com a missão de garantir celeridade e segurança jurídica.
13
ARTEIRO, Lemos Rodrigo. O trâmite procedimental da súmula vinculante e seu controle de constitucionalidade
sob a égide da Emenda Constitucional n. 45. Disponível em: <http://www.fmb.com.br>. Acesso em: 06 dez. 2009.

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Súmula vinculante – Edição em matéria de Direito Administrativo e instrumentos de controle 161

Apesar de toda a esperança depositada naquele instrumento, não faltam


críticos a apontar a súmula vinculante como um problema e não como uma solu-
ção. Seus opositores proclamam seu caráter despótico, bem como inúmeras ofen-
sas a postulados constitucionais elementares como ao livre convencimento moti-
vado do órgão julgador, ao princípio da separação dos poderes e da legalidade.
Citadas ofensas restam ainda mais óbvias quando se restringe o objeto
do presente estudo às matérias instrumento de edição, no que nos voltamos
ao Direito Administrativo.
Não há como negar que causa estranheza o fato de as súmulas vinculan-
tes ditarem orientações não só para o próprio Poder Judiciário, mas também
para o Poder Executivo (administração pública direta e indireta, nas esferas
federal, estadual e municipal), não havendo qualquer abrangência ao Poder
Legislativo. Impossível não se detectar uma certa dose de desarmonia, por
mais absurda que possa parecer. O desequilíbrio já se perfaz de imediato.
Na mesma linha não há como não se perceber o inevitável desequilíbrio
no princípio da separação de poderes quando se identificam as sucessivas edi-
ções de súmulas vinculantes em matéria de Direito Administrativo. O princípio
da separação de poderes não comporta abrandamentos, muito menos interpre-
tações extensivas que não encontrem corpo na sistemática jurídica pátria.
Ainda que identificadas todas as ofensas quando da edição de súmulas
vinculantes, por certo que o ordenamento também não apresenta um ins-
trumento de controle efetivo. Entenda-se aqui por efetivo, em uma de suas
vertentes, a emissão de decisão (‘duplo grau’) por órgão imparcial. A própria
estrutura do Judiciário não permite um controle imparcial das súmulas, tanto
pelo fato de que o rol de legitimados para seu cancelamento é restrito e taxa-
tivo, quanto pelo fato de que o órgão apto a realizar qualquer reflexão acerca
da edição de súmulas vinculantes é seu próprio órgão editor.
A solução mais radical seria a retirada definitiva do instituto das súmulas
vinculantes de nosso ordenamento. Todavia, estar-se-ia perdendo a oportunidade
de se absorver o melhor deste instituto, que seria uma maior estabilidade nas deci-
sões judiciais. De toda forma, vale a reflexão, na busca por um instrumento ideal,
que não represente ofensa a princípios constitucionais basilares, sem o engessa-
mento do Judiciário, sem a submissão do Executivo e atento à vontade coletiva.
Toda essa reflexão, para que não se recaia no cenário descrito por Jean-Jacques
Rousseau: “Enfim, quando o Estado, próximo de sua ruína, subsiste apenas por uma
fórmula ilusória e vã, quando o liame social está rompido em todos os corações, quando
o mais vil interesse se apossa afrontosamente do nome sagrado do bem público, então
a vontade geral torna-se muda, todos, guiados por motivos secretos, não mais opinam
como cidadãos, como se o Estado jamais tivesse existido, e são aprovados, falsamente
sob o nome de leis, decretos iníquos que apenas visam o interesse particular”.14

Abstract: The Binding Summula emerges in Brazilian jurisdictional structure with a


Constitutional Amendment (nº 45/04), having as it mission the search for processual
celerity and juridical security. Despite its nobel intentions, the Binding Summulas are
constantly being criticized. Those who opposed to them claim for severe ofenses to the
constitutional order. Those ofenses are more obvious when the object of the edition

Do contrato social. Trad. Márcio Pugliesi e Norberto de Paula Lima. 7. ed. São Paulo: Hemus. p. 112.
14

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is restricted, especially in Administrative Law area, representing a breaktrough


into the three-power form of State power practice. Even recognizing the ofenses of
the main principles that sustain the constitutional order, our system does not have
effective control tools, especially because the same trial that is responsible for judging
those ofenses is the same that provokes them. The reflexion here proposed must
impulse to other level, where there will be no competence invasion and will promote
the search of the collective will, into the concretization of a Democratic State.
Key word: The Binding Summulas. Edition in Administrative Law subject.
Control tools.

Referências
ARTEIRO, Lemos Rodrigo. O trâmite procedimental da súmula vinculante e seu controle
de constitucionalidade sob a égide da Emenda Constitucional n. 45. Disponível em: <http://
www.fmb.com.br>. Acesso em: 06 dez. 09.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed.
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FREITAS, Elizabeth Cristina Campos Martins de. A aplicação restrita da súmula vinculante
em prol da efetividade do direito. Revista do Processo, v. 29, n. 116, p. 181-206, jul. 2004.
HABERMAS. Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. 2. ed. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 2003. v. 2.
JANSEN, Rodrigo. A súmula vinculante como norma jurídica. Revista de Direito Adminis-
trativo, Rio de Janeiro, n. 240, abr./jun. 2005.
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 5. ed. São Paulo: Landu, 2002.
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. Saraiva: São Paulo, 2009.
MARCÃO, Renato. Súmula Vinculante. Revista de Direito Constitucional e Internacional –
Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, São Paulo, out./dez. 2007.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet.
Curso de direito constitucional. Saraiva: São Paulo, 2008.
SÁ, Djanira Radamés de. Súmula Vinculante: análise crítica de sua adoção. Belo Horizonte:
Del Rey, 1996.
SAMPAIO, Nelson de Sousa. O Supremo Tribunal Federal e a nova fisionomia do Judiciário.
RDP, 75/5 et seq.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 1997.
SILVA, José Anchieta da. A súmula de efeito vinculante amplo no direito brasileiro: um problema
e não uma solução. Belo Horizonte: Del Rey, 1998.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

SILVA, Daniela Juliano; MELO, Luiz Carlos Figueira de. Súmula vinculante: edição em
matéria de direito administrativo e instrumentos de controle. Revista Brasileira de Direito
Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 71, p. 153-162, jul./set. 2010.

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Tutela específica das obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa 163

Tutela específica das obrigações de fazer,


não fazer e entregar coisa
Fábio Victor da Fonte Monnerat
Mestrando em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Especialista em Direito Processual Civil pela
PUC-SP. Coordenador da Escola da Advocacia-Geral da União em São Paulo. Procurador Federal.

Resumo: O estudo é voltado aos principais aspectos da tutela específica, assim


entendida a tutela jurisdicional voltada ao cumprimento das obrigações de fazer,
não fazer e entregar coisa regulada principalmente nos artigos 461 e 461-A do
Código de Processo Civil brasileiro. Além das características do procedimento e
da natureza dos provimentos jurisdicionais proferidos nesta sede, será realizada
uma análise dos poderes à disposição do magistrado, bem como suas limitações
impostas pelo devido processo legal, e dos meios executivos admitidos pelo
sistema do Código para obtenção de uma tutela jurisdicional efetiva.
Palavras-chave: Execução específica. Obrigação de fazer, não fazer e entregar
coisa. Medidas executivas. Multa.
Sumário: 1 Introdução – 2 A reforma processual e a busca da efetividade –
2.1 Direito Processual Civil e sua reforma: breve elenco dos princípios “clássicos”
e dogmas em crise – 2.1.1 O binômio condenação execução – 2.1.2 Princípio da
preferência pela tutela específica – 2.1.3 A efetivação das obrigações específicas e o
princípio da atipicidade dos meios executivos – 3 Medidas de caráter coercitivo –
3.1 A multa – 3.2 A questão da prisão civil para o cumprimento da decisão – 4 O
princípio da congruência e o art. 461, 5º, do CPC – 5 Coisa julgada na execução
específica – 6 Mecanismos de defesa do executado – 7 Tutela específica das obriga-
ções de fazer, não fazer e entregar coisa fundadas em título executivo extrajudicial –
7.1 Defesa do executado no processo de execução da tutela específica

1 Introdução
Em que pese o fato de a grande maioria dos processos se voltar à solução de
lides que envolvem questões concernentes ao pagamento de quantias em dinheiro,
como ações de indenização, cobrança e execução para pagamento de quantia fun-
dada em títulos executivos judiciais e extrajudiciais, é certo que o ordenamento
consagra outros direitos que não se submetem à quantificação em pecúnia, o que
impõe a necessidade de um procedimento distinto para estes casos.
A este micro sistema de prestação de tutela jurisdicional de direitos não
voltados à obtenção de dinheiro dá-se o nome de tutela jurisdicional especí-
fica das obrigações, notadamente aquelas cujo objeto abarcam prestações de
fazer, não fazer e entrega de coisa. A natureza destas obrigações impõe que
as regras processuais e procedimentais que se voltem a proteger estes direitos
sejam distintas daquelas regras voltadas à tutela de cunho monetário.

Eduardo Talamini, em trabalho específico sobre o tema, aduz que, “do ponto de vista processual, genérica é toda
a forma de tutela que tende a obtenção de dinheiro no âmbito da responsabilidade do devedor — seja mediante
direta consecução do numerário, seja pela transformação de outros bens em pecúnia, através de expropriação.
Específica, é a tutela que tende a consecução de bens jurídicos outros, que não dinheiro. Mais precisamente tutela
específica é a que visa ao exato resultado jurídico que se teria, se não houvesse a necessidade do processo, em todos
aqueles casos em que o resultado final não consista na mera satisfação de uma dívida pecuniária” (Tutela relativa
aos deveres de fazer e de não fazer. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 230).

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164 Fábio Victor da Fonte Monnerat

Garantias individuais de status constitucional como o direito à privacidade,


a honra e imagem, as normas de tutela de direitos autorais, de vizinhança,
entre as inúmeras outras hipóteses que aqui poderiam ser arroladas estariam
carentes de proteção caso o sistema processual não possuísse mecanismos
de reconhecimento e concretização destes direitos na forma específica, assim
entendida a realização, através do processo, do direito tal como delineado no
plano material, ou a obtenção do resultado prático equivalente, cujo conceito,
será analisado neste trabalho oportunamente.
A tutela jurisdicional específica de todas as obrigações, sejam elas decor-
rentes diretamente da lei, da prática de um ato ilícito ou de um contrato, que
importem em um comportamento positivo ou negativo do réu, estão preci-
puamente reguladas no art. 461 do Código de Processo Civil, com a redação
dada pela Lei nº 8.952/1994, ao passo que as obrigações de entregar coisa,
cujos mecanismos processuais muito se assemelham às obrigações de fazer
e não fazer, estão reguladas no art. 461-A introduzido no Código pela Lei
nº 10.444/2002. Juntos os mecanismos constantes dos referidos dispositivos
formam o quadro geral da tutela específica das obrigações.
Em apertada síntese, o que as ações reguladas nos arts. 461 e 461-A do
CPC têm em comum são: a desnecessidade de instauração de uma nova rela-
ção jurídica processual para que se dê início à prática de atos executivos, ou
seja, a admissibilidade do sincretismo processual entre cognição e execução;
a natureza mandamental ou executiva, da sentença condenatória proferida
nesta sede; a atipicidade das medidas executivas; a busca pela tutela especí-
fica do direito posto em juízo, e apenas em último caso a reparação em pecú-
nia; e a possibilidade de antecipação dos efeitos da tutela.
Este trabalho volta-se ao estudo deste micro sistema processual a partir
do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional inserto no art. 5º,
inc. XXXV, da Constituição Federal, que consagra no plano constitucional o
direito de ação, atualmente entendido como direito a prestação jurisdicional
justa, efetiva, adequada e em tempo razoável, e que engloba não só os atos
procedimentais realizados na fase cognitiva do processo, mas também na
fase de efetivação do comando da sentença, certo que este de nada vale sem
a realização de atos posteriores a sua prolação.
As dificuldades inerentes à efetivação dos direitos proclamados na sen-
tença se fazem presentes de maneira acentuada nos casos em que o comando
judicial envolve prestações de obrigações de fazer e não fazer, dado que, nes-
tes casos, o autor busca a proteção do direito material tal como ali delineado
e, muitas vezes, a conduta do réu é indispensável para sua obtenção.
A conversão de tais obrigações em perdas e danos, além de não ser
desejada pelo sistema, fere a promessa constitucional de acesso à jurisdição, na
medida em que não entrega ao autor o direito consagrado no plano material.

Isso no plano do processo civil individual, na medida em que a tutela específica das obrigações no plano do processo
coletivo está regulada precipuamente no art. 84 do Código de Defesa do Consumidor, norma inspiradora dos
dispositivos do CPC. Nesse sentido: ABELHA, Marcelo. Manual da execução civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2007. p. 218.

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Tutela específica das obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa 165

2 A reforma processual e a busca da efetividade


A partir de um movimento que se convencionou chamar de reforma do
Código de Processo Civil, o legislador pátrio com os olhos voltados à busca
da efetividade processual passou a modificar profundamente o sistema ori-
ginário delineado em 1973. Tais modificações atingiram praticamente todos
os campos do processo, desde questões relativas à distribuição da ação até a
efetivação das medidas deferidas na sentença.
Neste contexto o processo de execução, ou melhor, os mecanismos de
prestação de tutela jurisdicional executiva foram alvo de inúmeras e constan-
tes reformas.
Em matéria de execução, o processo iniciou uma marcha que, em
última análise, consagrou o sincretismo processual, tornando regra a possi-
bilidade de realização de atos cognitivos e executivos dentro de uma mesma
relação jurídico processual.
As alterações foram lentas e graduais, e iniciaram-se em 1994, quando
a Lei nº 8.952/1994, modificou o art. 461 do Código determinando que o juiz
ao proferir sentenças em ações que tivessem por objeto obrigações de fazer
e não fazer determinasse as providências para executar o direito fixado na
decisão, tornando desnecessária a instauração do processo de execução de
sentença judicial nestes casos.
Anteriormente a esta significativa reforma do sistema processual civil
pátrio, a possibilidade de cognição e execução dentro de uma mesma relação
processual era admitida somente em casos excepcionais como a ação de des-
pejo e a ação de reintegração de posse.
A mesma Lei nº 9.952/1994 introduziu no sistema do Código a possibi-
lidade de antecipação dos efeitos da tutela (art. 273 do CPC) cuja execução,
atualmente denominada efetivação, também deveria se dar sem a necessidade
de instauração do novo processo.
Nos anos de 2001 e 2002, o Congresso Nacional aprovou uma nova
série de leis que modificavam o Código de Processo Civil, em um movimento
conhecido como a segunda etapa da reforma processual, iniciada em 1994.
Neste novo pacote de mudanças, novamente o legislador avançou no
sentido de generalizar o processo civil sincrético, ao introduzir, através da Lei
nº 10.444/2002, o art. 461-A, tornando exequível dentro da mesma relação pro-
cessual as sentenças proferidas em ações cujo objeto fosse a entrega de coisa.
Por derradeiro foi aprovada a Lei nº 11.232/2005, introduzindo o sincre-
tismo processual também nas ações que objetivavam o pagamento de quantia.
A admissibilidade de cognição e execução no mesmo processo, admitido
nas obrigações de fazer e não fazer desde 1994 e de entregar coisa desde 2002,
por si só, todavia, não eram aptas a dar a efetividade pretendida pelo legisla-
dor, razão pela qual, a par de tais modificações, a reforma introduziu outros
mecanismos processuais até então desconhecidos do ordenamento jurídico
pátrio que sob um certo aspecto se chocaram com alguns princípios e dogmas até
então vigentes, obrigando uma releitura, ou mesmo o abandono dos mesmos.
A execução específica e os mecanismos a ela inerentes devem portanto
ser entendidos neste contexto, qual seja, o de que o sistema processual evoluiu

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166 Fábio Victor da Fonte Monnerat

em prol da efetividade, na expressão de Candido Rangel Dinamarco,


renunciando a dogmas e relendo princípios.

2.1 Direito Processual Civil e sua reforma: breve elenco dos


princípios “clássicos” e dogmas em crise
O Direito Processual Civil moderno deparou-se com inúmeras situações que
as instituições construídas pelo Processo Civil clássico, elaboradas a partir do nasci-
mento da Ciência Processual, não eram capazes de resolver satisfatoriamente.
Marinoni fala em rebelião da prática contra o processo civil, e o pro-
cessualista gaúcho Ovídio Baptista da Silva elenca inúmeros exemplos de
falência das instituições consagradas originalmente pelo CPC ante várias
situações da práxis forense.
Todas as razões de caráter político e sociológico que levaram à estruturação
do processo civil clássico naqueles termos escapam a tema proposto neste traba-
lho sendo dignos, sem dúvida, de um estudo próprio de sociologia jurídica.
O certo é que o nascimento do processo civil enquanto ciência coincide
com o nascimento do liberalismo, cujo princípio maior é justamente a limita-
ção da ingerência do Estado na liberdade do particular.
Outra nota marcante deste início é uma preocupação, que depois revelou-se
exagerada, com a forma ou, mais precisamente, o formalismo do processo.
Decorre daí a elaboração de diversos princípios, normas e dogmas,
muitos deles úteis e até indispensáveis para aquele momento histórico que,
contudo, não são necessariamente essenciais ao conceito de processo e por
isso não são imutáveis ao longo do tempo.
Em suma, as reformas processuais visando a atender os objetivos da
tutela jurisdicional com maior efetividade passou a renunciar dogmas e reler
princípios, sem que com isso negasse os profundos e importantes avanços
alcançados pelos processualistas clássicos, entre os quais a autonomia do
direito de ação e o caráter público do processo.
Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina, em tra-
balho conjunto, assim sintetizam a reforma: “o valor segurança vem dando
lugar, de modo suave e paulatino, aos valores da justiça e da efetividade”.
Candido Rangel Dinamarco,10 por sua vez, destaca: “não se trata de repu-
diar aquelas regras tradicionais de inegável relevância quando se trata de asse-
gurar a segurança jurídico processual dos litigantes, mas somente de dimensio-
nar adequadamente sua aplicação e compatibilizá-las com o objetivo maior, que
é de oferecer em tempo razoável a tutela jurisdicional plena e efetiva”.


DINAMARCO, Candido Rangel. A nova era do processo civil. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 11.

As expressões clássico e moderno não pretendem rotular, nem muito menos definir com rigor científico aquilo
que vem a ser exatamente o processo civil clássico e o moderno. Tais termos possuem, única e exclusivamente, o
intuito de contrapor diferentes estágios de desenvolvimento da ciência processual.

MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela de direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 81.

SILVA, Ovídio Baptista. Curso de direito processual civil. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. v. 3, p. 21 et seq.

Sobre a correlação entre as estruturas do processo civil clássico e a ideologia liberal predominante no séc. XIX, ver
MARINONI, op. cit., p. 35 et seq.

DINAMARCO, Candido Rangel. A nova era do processo civil. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 11.

O dogma da coisa julgada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 12.
10
DINAMARCO, Candido Rangel. A nova era do processo civil. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 29.

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Tutela específica das obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa 167

Portanto, se em um primeiro momento a ciência processual consagrou


determinados institutos com o escopo de buscar o máximo de segurança jurí-
dica possível, ainda que em detrimento de valores tão caros quanto à mesma,
nada impede que tais construções deem lugar a outras, abrindo mão de parcela
desta segurança, em benefício da justiça e da efetividade, desde que compatí-
veis com os valores de dada sociedade, notadamente aqueles consagrados na
Constituição Federal, que em matéria processual delineiam, na expressão de
Cassio Scarpinella Bueno,11 o “modelo constitucional de Processo Civil”.
Muitos destes princípios foram sacrificados em prol do objetivo maior
da reforma, a saber, a efetividade.12 Efetividade esta muitas vezes alcançada
através das técnicas de execução específica e da antecipação de tutela nos
casos em que o bem da vida em jogo não é quantificado monetariamente.
Vários são os princípios processuais clássicos “em crise”, estando os
mesmos nesta conjuntura pelas mais diversas razões. Neste item serão ana-
lisados, exemplificativamente, alguns destes princípios, sobretudo aqueles
que mais intimamente se ligam às questões pertinentes à tutela específica das
obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa.
Ao longo do trabalho outros “dogmas” do processo civil são questio-
nados pelo modo de ser da execução específica, notadamente em razão do
princípio da preferência acima referido, cujos desdobramentos levam, por
exemplo, à atipicidade dos meios executivos avaliados no item 2.1.3 subse-
quente, ou a uma “aparente” quebra na correlação entre o pedido e o decidido
(art. 460 do CPC) analisada no item 6.

2.1.1 O binômio condenação execução


Uma análise ampla da questão do binômio condenação execução per-
mite avaliar também outras questões igualmente caras à execução específica,
a saber, a classificação tripartite das sentenças; o princípio da nulla executio
sine título; e o princípio da autonomia do processo de execução.
José Miguel Garcia Medina,13 no que tange especificamente à tutela
jurisdicional executiva, após separar três grandes grupos relativos: a) aos
pressupostos básicos da execução; b) à estrutura e forma da execução e sua
relação com a cognição; e c) aos poderes do juiz e sua relação com os meios
executivos suscetíveis de serem utilizados; destaca que hoje é nítido o con-
flito de princípios opostos, havendo inclusive a mudança em que aquilo que
antes era a regra passa a ser exceção, e vice-versa.
Exemplificativamente, expõe o referido autor,14 “os princípios relativos
ao primeiro grupo são os da nulla executio sine titulo e da execução sem título
permitida; quanto à estrutura, dos princípios da autonomia do processo
executivo e do sincretismo entre cognição e execução; quanto à limitação dos
11
Curso sistematizado de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 1, p. 92 et seq.
12
Cumpre ressaltar, nesse passo, não ser o objetivo da reforma a busca cega e desarrazoada apenas da efetividade, ou,
pior ainda, da simples celeridade processual. Os institutos inovadores trazidos pela reforma, como expressão do
direito fundamental à tutela jurisdicional justa e efetiva, devem ser lidos e interpretados sem que se deixem de lado os
demais direitos fundamentais entre os quais chama a atenção neste particular o direito à ampla defesa. Nesse sentido:
MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela de direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 81.
13
Execução civil. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 90.
14
MEDINA, op. cit., p. 91.

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poderes do juiz, está-se diante dos princípios da tipicidade e da atipicidade


das medidas executivas”.
Sendo fiel à terminologia adotada neste trabalho, podemos dizer que os
princípios da nulla executio sine titulo, da autonomia do processo executivo e da
tipicidade das medidas executivas são expressões do processo civil clássico, de
inspirações liberais, comprometidas por demais com os valores da segurança
e liberdade dos cidadãos e com o formalismo processual que supostamente
privilegiaria tais valores, ao passo que os princípios da execução sem título
permitida, sincretismo entre cognição e execução, e da atipicidade das medidas
executivas15 são princípios formadores do processo civil moderno muito mais
comprometidos com os valores da justiça e efetividade ainda que para isso
tenha que admitir a mitigação da segurança jurídica e de formalismos estéreis,
além de uma maior intromissão do Estado na esfera do particular.
Tais medidas, não obstante afrontarem diretamente valores tidos como
intangíveis pelo direito processual civil clássico, estão longe de serem ilegíti-
mas, muito pelo contrário, pois apenas são mecanismos processuais diferentes,
desenvolvidos e pensados a partir do direito constitucionalmente garantido aos
cidadãos de uma tutela jurídica justa e efetiva e em tempo razoável16 e que não
ferem os demais princípios processuais inseridos na Constituição Federal.17 18
Para os processualistas clássicos, a distinção entre as atividades cog-
nitivas e executivas era de tal monta que justificava a alocação de tais ati-
vidades em processos distintos. Portanto, o binômio condenação execução
valia em ambos os sentidos, ou seja, era vedado ao juiz no curso do processo
de conhecimento determinar a realização de medidas executivas, bem como
realizar atividades de cognição no curso do processo de conhecimento.
A partir daí surgiram os princípios da autonomia do processo de exe-
cução que em apertada síntese veda a discussão da matéria em que se funda
o título no curso do processo de execução e o princípio da nulla executio sine
titulo que pretende justamente garantir a prévia certeza acerca do direito a ser
executado antes de qualquer ato judicial de agressão ao patrimônio do réu.
Nesse contexto foi que se elaborou a classificação tripartite das sentenças
em meramente declaratórias, constitutivas e condenatórias. As primeiras eram
aquelas que visavam única e exclusivamente à declaração da existência ou ine-
xistência da relação jurídica, ao passo que as segundas tinham por escopo, além
da declaração, a modificação da situação jurídica posta em juízo. De rigor a sen-
tença constitutiva pode tanto modificar, quanto constituir ou extinguir direitos.
A sentença condenatória, neste contexto, seria aquela que além de decla-
rar o direito possuía uma autorização de acesso a via jurisdicional executiva.
15
Sobre este último, ver item 2.1.3 infra.
16
Nelson Nery Jr. assevera que, “pelo princípio constitucional do direito de ação, todos têm o direito de obter do
Poder Judiciário a tutela jurisdicional adequada” (Princípios do processo civil na Constituição Federal. 8. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2004. p. 132). A busca de tal adequação nos casos de execução de obrigação de fazer e não
fazer fez com que o legislador reformista modificasse a estrutura original, estabelecida no Código de 1973, para
a execução destas espécies de obrigação.
17
O Estado, quando veda a justiça privada, punindo-a inclusive como prática criminosa, atrai para si a tarefa
gravíssima de prestar ao cidadão que tem seu direito lesado por outro a tutela justa, célere e efetiva.
18
Acima se falou que é legítimo o sacrifício de parte da segurança jurídica em benefício de justiça e efetividade, desde
que compatíveis com os valores de determinada sociedade. No caso específico da sociedade brasileira, em seu estágio
atual, tais valores devem ser extraídos do texto da Constituição Federal, que é rico em normas de direito processual.

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Analisando este ponto com mais vagar vamos notar, como afirmam Teresa
Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina,19 que “a sentença conde-
natória supõe a idéia de que é possível após a realização de cognição exauriente
e definitiva, a obtenção de grau razoável de certeza acerca do direito que autorize
a realizar a execução” e, mais adiante, completam, “sob esse prisma, a sentença
condenatória sequer poderia ser arrolada dentre os instrumentos de tutela do
direito material, porque não se tutela direito material com a sentença condena-
tória. Daí a necessidade de se ajuizar outra ação (de execução) para se tutelar o
direito reconhecido (ou declarado) pela sentença condenatória como violado”.20
Marinoni também tem concepção semelhante acerca da sentença condenató-
ria e afirma que a doutrina que a definiu estabeleceu uma correlação entre ela e os
meios de execução tipificados em lei, e arremata “afora os casos de adimplemento
espontâneo do direito contido na sentença condenatória a tutela do direito depende-
ria da propositura da ação de execução, oportunizada ao vencedor pela sentença”.21 22
Em outra sede,23 procuramos deixar claro que à classificação tripartite
não se opõe a classificação quinária das sentenças, haja vista que a colocação
das sentenças mandamentais e executivas ao lado das declaratórias, consti-
tutivas e condenatórias fere o princípio lógico de que as classificações devem
observar um só critério para agrupar as diversas espécies classificadas, sendo
certo que em relação ao conteúdo as sentenças são necessariamente declara-
tórias, constitutivas e condenatórias, podendo estas últimas, a depender dos
mecanismos executivos ou coercitivos nelas contidos, ou seja, a depender de
seus efeitos, ser classificadas como executivas ou mandamentais.24
A sentença mandamental, grosso modo, caracteriza-se pelo fato de, além
de conter uma declaração acerca do direito posto em juízo e “condenação” do
réu em proporcionar determinada conduta em benefício do autor, conter um
plus que consiste na ordem dirigida a este réu.25
Já as sentenças executivas admitem, por definição, a realização de
medidas executivas no curso do mesmo processo e, portanto, prescindem do
ajuizamento do processo de execução.
19
O dogma da coisa julgada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 146.
20
Nesse sentido, Giuseppe Chiovenda (Instituições de direito processual civil, n. 43, p. 230 apud WAMBIER, Teresa
Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. O dogma da coisa julgada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 146):
“historicamente, a sentença nasce como preparação a execução, como sentença de condenação. Ou seja: a verificação
do direito surge como um incidente no curso da atuação do direito.”
21
MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela de direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 42.
22
Sobre as motivações culturais da sentença condenatória, ver MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória. 3. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 326 et seq.
23
MONNERAT, Fábio Victor da Fonte. Conceito, classificação e eficácia executiva da sentença no novo regime de
execução de títulos executivos judiciais. In: BRUSCHI, Gilberto Gomes; SHIMURA, Sérgio (Coord.). Execução civil
e cumprimento de sentença. São Paulo: Método, 2007. v. 2, p. 139-163.
24
No trabalho acima referido conclui da seguinte forma “Assim considerando o sistema vigente pode-se classificar a
sentença em relação a seu conteúdo em: a) meramente declaratórias; b) constitutiva; ou, c) condenatórias. As duas
primeiras dotadas de capacidade para realizar o direito dentro do próprio ato, ao passo que a última necessita de
atos posteriores a sua prolação para realização de seus efeitos no plano empírico.
Em relação ao mecanismo utilizado pelo magistrado para operar efeitos das decisões condenatórias duas técnicas
podem ser utilizadas: a) a técnica mandamental, onde consta na própria decisão condenatória uma ordem para
que o condenado cumpra o determinado na sentença, ordem esta que caso desobedecida implica em alguma
sanção, já contida na sentença ou fixada ou modificada pelo juiz após o ato decisório, além da possibilidade
de responsabilidade penal pelo crime de desobediência (art. 330 do Código Penal); e b) a técnica executiva,
propriamente dita, onde o magistrado, ao invés de se valer de medidas coercitivas, vale-se de atos executivos de
sub-rogação onde, agentes estatais agem em substituição da vontade do executado” (Op. cit., p. 150).
25
SILVA, Ovídio Baptista. Curso de processo civil. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. v. 3, p. 259.

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Ambas, todavia, certamente condenam, isto é, impõem uma sanção ao


vencido. Esta sanção, a execução da sentença, em tese pode dar-se em outro
processo como anteriormente era a regra, ou no mesmo processo como no
caso das execuções específicas desde 1994, em se tratando de obrigação de
fazer e não fazer, e 2002 nos casos de execução para entrega de coisa.
A execução específica fulcrada nos arts. 461 e 461-A do CPC pode dar
ensejo tanto a sentenças executivas, como a sentenças mandamentais, sendo pos-
sível, inclusive, que as duas espécies de sentença, ou essas duas eficácias coexis-
tam em um mesmo provimento jurisdicional, ou em um mesmo processo.26 27 28

2.1.2 Princípio da preferência pela tutela específica


É clássica a lição de Chiovenda no sentido de que o processo deve propor-
cionar àquele que teve seu direito lesado, na medida do possível, o mesmo direito
que teria se não houvesse ocorrido a transgressão. Entretanto o modelo original
do Código de Processo Civil não permitia que tal objetivo fosse alcançado quando
o direito ofendido dependesse de um comportamento pessoal do obrigado.
Isso porque o modelo processual à época vigente, na esteira da doutrina
e legislação civilista, determinava que as obrigações específicas deveriam ser
convertidas em perdas e danos.
Em outras palavras, via de regra, em caso de não cumprimento volun-
tário da obrigação de fazer e não fazer ou entrega de coisa o máximo que o
detentor do direito poderia obter através do processo seria a reparação pecu-
niária, pelo equivalente monetário, da obrigação inadimplida, o que nos ter-
mos já sucintamente demonstrados neste trabalho levava à não observância
do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional.
A partir da redação dada ao art. 461 do Código de Processo Civil pela
Lei nº 8.952/1994, o panorama em busca de uma maior efetividade começou a
mudar, entre outros fatores, pela consagração do princípio da preferência pela tu-
tela específica das obrigações de fazer e não fazer que inverteu a regra anterior da
necessidade de conversão em perdas e danos e dispõe que a obrigação somente
se converterá em perdas e danos se assim requerida pelo autor, ou caso reste
impossível obtenção da tutela específica, ou do resultado prático equivalente.
Marcelo Abelha29 salienta que a preferência pela tutela específica foi
introduzida no sistema do Código com o intuito de respeitar e efetivar o prin-
cípio da maior coincidência possível.
O mesmo autor citado30 conceitua tutela específica como sendo aquela
que se caracteriza pela maior coincidência possível entre a tutela prestada
26
WAMBIER, Luiz Rodrigues (Coord.). Curso avançado de processo civil. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
v. 2, p. 262.
27
Também admite expressamente a possibilidade de utilização de medidas de natureza mandamental na execução lato
sensu, sem que, por esse motivo, a ação se desnature enquanto executiva lato sensu. MEDINA, José Miguel Garcia. Execução
civil. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 346, onde afirma, verbis: “Os provimentos mandamentais concedidos
pelo juiz no curso da ação não desnaturam a natureza executiva lato desta, porquanto aqueles provimentos participam
desta ação como medidas coercitivas, não servindo para atribuir a esta demanda natureza mandamental”.
28
Marinoni (Técnica processual e tutela de direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 127) também é expresso
nesse sentido, para o referido autor, “entre os meios de execução direita e de execução indireta, previstos nos arts.
461 e 461-A do CPC e 84 do CDC, conduz a duas maneiras distintas de se prestar a tutela dos direitos, e desse
modo, a duas sentenças diferentes, a executiva e a mandamental”.
29
Manual da execução civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 229-230.
30
Op. e loc. cit.

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Tutela específica das obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa 171

pelo Estado por meio do processo e o resultado que seria obtido caso houvesse
ocorrido o cumprimento voluntário da obrigação.31
É de se ressaltar que dentro do conceito de preferência pela tutela específica
encontra-se englobada, a par da obtenção da tutela específica propriamente dita,
a preferência pelo resultado prático equivalente, não obstante conceitualmente
tutela específica e resultado prático equivalente sejam categorias distintas.
Nesse sentido é indispensável trazer à colação a lição de Eduardo Talamini,32
que afirma: “Ambas — ‘tutela específica’ e ‘obtenção do resultado prático equiva-
lente’ — enquadram-se na noção doutrinária de tutela específica, contrapondo-se a
conversão em perdas e danos (...) que é relegada à excepcionalidade (art. 461, §1º).
Em síntese, ‘tutela específica’ e ‘obtenção do resultado prático equivalente’, refe-
ridas pela lei, podem ser identificadas como resultado específico, que se teria pelo
cumprimento espontâneo do dever de fazer e não fazer. Ambas se opõe o ressarci-
mento — pecuniário ou in natura — dos danos advindos do não cumprimento”.
Portanto, o princípio da preferência pela tutela específica determina
que o processo cujo objeto seja o cumprimento de uma obrigação de fazer,
não fazer ou entrega de coisa deve se voltar à busca do implemento na forma
específica, devendo o magistrado, antes de converter a obrigação em perdas
e danos, averiguar a possibilidade de efetivar a tutela específica ou obter o
resultado prático equivalente, salvo se assim requerer o autor ou se mostrar
impossível o cumprimento da obrigação.
A impossibilidade de cumprimento da obrigação específica pode ocor-
rer em virtude de limitações fáticas ou jurídicas.
Limitações fáticas são aquelas em que a própria natureza das coisas
impede sua realização (impossibilidades ontológicas), por exemplo, nos
casos de obrigação para entrega de coisa, a destruição ou desaparecimento
do bem, ou nos casos do dever de abstenção que não se consolidam uma vez
transgredidos (v.g. não publicar determinada notícia difamadora ou caluniosa)
e não pode ser desfeito uma vez realizado.
Já as limitações jurídicas se caracterizam pelo fato de a impossibilidade
ser imposta por normas jurídicas (impossibilidade deontológica), como na
hipótese da recusa de um fazer infungível por parte do obrigado (v.g. escre-
ver um livro ou pintar um quadro) que encontra barreira na intangibilidade
da dignidade da pessoa humana,33 bem como nos casos de entrega de coisa,
a posse da coisa em nome de terceiro de boa-fé.
Sobre o tema Cassio Scarpinella Bueno34 assevera que, “embora o art. 461
se afaste do modelo consagrado da conversão das obrigações em perdas e danos
(...) a intangibilidade da vontade humana não pode ser suplantada pela ordem
jurídica, até porque, em última análise, é garantida pelo art. 1º, III, da Constituição
Federal, quando lista, como um dos fundamentos da República Federativa do
31
No mesmo sentido: BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil. São Paulo: Saraiva,
2008. v. 3, p. 407.
32
Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 232.
33
Rigorosamente a intangibilidade da dignidade da pessoa humana impede a utilização de mecanismos executivos
diretos (meios de sub-rogação) sendo possível a tentativa de sua obtenção pela via de mecanismos executivos
indiretos, cujo maior exemplo são as multas coercitivas. Contudo, caso persista o inadimplemento a execução
deverá ser convertida em perdas e danos.
34
Curso sistematizado de processo civil. São Paulo: Saraiva, 2008. v. 3, p. 242.

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Brasil, a dignidade da pessoa humana. Assim toda vez que um específico fazer
repousar em qualidades que reúne determinada pessoa, é impossível a obtenção
forçada da obrigação, pelo que deverá ser convertida em perdas e danos”.
A efetivação do princípio da preferência pela tutela específica, impõe
a existência de mecanismos processuais eficazes sem os quais as partes e o
Estado-juiz não poderiam fazer com que o processo cumprisse seu papel,
desrespeitando por via de consequência a garantia constitucional de inafas-
tabilidade de controle jurisdicional.
Sobre estes mecanismos serão dedicados os próximos itens deste trabalho.

2.1.3 A efetivação das obrigações específicas e o princípio da


atipicidade dos meios executivos
Conforme ressaltado acima, para o cumprimento do princípio da pre-
ferência da execução específica sobre a reparação em pecúnia faz-se necessá-
rio que o sistema permita que o magistrado, à luz do caso concreto, estabeleça
o mecanismo que melhor concretize o direito reconhecido na sentença, que
pode inclusive não estar previsto abstratamente pelo legislador.
Tal liberdade se contrapõe ao princípio da tipicidade dos meios execu-
tivos, de típica inspiração liberal, que garantiria o direito de o jurisdicionado
ver seu patrimônio invadido por atos judiciais apenas nos moldes previstos
e tipificados pela legislação. Seu objetivo é em um primeiro plano garantir ao
jurisdicionado que um meio executivo não tipificado não possa ser utilizado
e, dessa forma, protegê-lo contra o arbítrio do juiz.35
Ocorre que tal princípio atualmente não mais encontra respaldo na
legislação processual civil brasileira, e sua supressão constitui uma das
melhores traduções da ideologia da reforma. Isso porque, se é certo que,
pelo princípio da tipicidade dos meios executivos, tais medidas, por estarem
expressamente dispostas na lei, garantiam um maior grau de previsibilidade,
além de vedar possíveis abusos de poder por parte do juiz, gerando assim
maior segurança, por outro lado a vinculação do juiz apenas àquelas medidas
previamente elencadas gera um grande risco de o mesmo, no caso concreto,
se ver impossibilitado de se fazer atuar o direito, gerando desta forma inefe-
tividade do processo e ferindo o art. 5º, inc. XXXV, da Constituição Federal.
Em suma, o princípio da tipicidade dos meios executivos, se um dia
foi útil e, por que não dizer, tido por indispensável pela ciência processual
pelas razões sucintamente acima expostas, hoje os valores mais caros à socie-
dade demandam outro tratamento às medidas executivas que, de uma certa
forma, podem sujeitar os cidadãos a abusos por parte do Judiciário, risco
este expressamente assumido em benefício de um escopo maior, qual seja a
efetividade, seriamente ameaçada caso o juiz esteja vinculado aos tipos pre-
viamente estabelecidos pelo legislador.
Portanto, hoje, com a redação do art. 461, §5º, do CPC, não se pode mais
sustentar a prevalência do princípio da tipicidade dos meios executivos, muito
pelo contrário, vigora entre nós o princípio da atipicidade dos meios executivos
35
MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 225.

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conforme se depreende da redação do citado dispositivo, verbis: “para


efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente,
poderá o juiz de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias,
tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remo-
ção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade
nociva, se necessário com a requisição de força policial.”
Em suma, a redação do dispositivo não deixa dúvidas no sentido de
que o rol de medidas executivas é meramente exemplificativo, e deixa ampla
margem de liberdade para atuação do juiz.
Considerando os arts. 461 e 461-A do CPC, é possível deles extrair dois
grandes grupos de medidas executivas: a) aquelas capazes de viabilizar a rea-
lização do direito independentemente da vontade do demandado, e b) aquelas
que, objetivando a tutela do direito, exercem pressão sobre a vontade do réu.36
No que tange ao primeiro grande grupo citado, estaremos diante de
medidas executivas propriamente ditas, também conhecidas como medidas de
execução direta ou por sub-rogação. Nestes casos, um agente atua em nome do
juízo substituindo a atividade do réu. São exemplos de medidas de sub-rogação
dentro da tutela específica para a entrega de coisa, fazer e não fazer, a busca e apre-
ensão, a remoção de pessoas ou coisas, o desfazimento de obras, entre outras.
Um segundo grupo de medidas, ao contrário do primeiro, em que a
vontade do demandado é ignorada, procura agir diretamente no plano voli-
tivo do réu visando o cumprimento voluntário, ainda que não espontâneo, da
obrigação por parte do próprio demandado.
O principal exemplo deste grupo de medidas executivas classificadas
pela doutrina como medidas de coerção indireta é a multa por tempo de atraso
no cumprimento do dispositivo da sentença.
É de suma importância ressaltar que os artigos 461 e 461-A do CPC admitem,
em tese, ambos os grupos de medidas coercitivas admitindo inclusive a substituição
de uma pela outra. Assim o juiz pode em um primeiro momento fixar multa diária
para o cumprimento de uma obrigação de entregar coisa certa e, ante a insistência
do réu em não cumprir a referida obrigação, pode o juiz em substituição da multa
determinar que outrem realize a busca e apreensão do objeto do litígio.
Vale ressaltar ainda que não há ordem preestabelecida entre as medi-
das de coerção direta e indireta dos artigos 461 e 461-A do CPC.
Nesse sentido, se posiciona Garcia Medina:37 “Na verdade, esse pre-
ceito não estipula qualquer ordem de preferência entre os meios executivos,
razão pela qual o juiz deverá buscar a solução para a dúvida quanto ao mecanismo
mais apropriado ao caso no sistema jurídico” (grifo nosso).
Portanto, a liberdade do juiz de adaptar seu provimento é dupla, no
sentido de que em um primeiro momento pode ele escolher entre valer-se de
medidas executivas diretas ou indiretas e, uma vez realizada tal opção, deve o
juiz escolher especificamente o meio mais adequado para efetivação do direito
declarado em seu provimento, dentre as quais, o desfazimento de obras, o busca
e apreensão de pessoas ou coisas e a intervenção no estabelecimento.
36
MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela de direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 126.
37
MEDINA, José Miguel Garcia. Execução civil. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 345.

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174 Fábio Victor da Fonte Monnerat

Esta liberdade do magistrado, não se confunde com discricionariedade


judicial38 e encontra limites nas demais garantias constitucionais, notadamente
a cláusula do devido processo legal, tanto no sentido substantivo quanto pro-
cessual, devendo sempre o juiz sobrepesar os direitos fundamentais em jogo
à luz do princípio da proporcionalidade.39
O princípio da proporcionalidade é, portanto, o norte do magistrado ao
escolher o mecanismo processual executivo apto a efetivar no plano empírico o
direito reconhecido na decisão judicial.40 Tal princípio, no entender do jusfilósofo
alemão Robert Alexy,41 possui, na verdade, três máximas parciais: a da adequa-
ção, da necessidade (mandamento do meio menos gravoso), e da proporcionali-
dade em sentido estrito (mandamento de sopesamento propriamente dito).
Na esteira desta doutrina, Paulo Bonavides42 esclarece que três elemen-
tos, ou subprincípios compõem o princípio da proporcionalidade: a) a “adequa-
ção” que determina que “a medida seja suscetível de alcançar seu objetivo; b) a
“necessidade” pela qual a medida não deve exceder aos limites indispensáveis
à conservação do fim almejado; e c) e a “proporcionalidade em sentido estrito”, ou
sopesamento propriamente dito pelo qual o aplicador deve escolher o meio, den-
tre os meios adequados e necessários, levando em conta os interesses em jogo.
Portanto, quando da determinação da medida executiva o magistrado
deve eleger a que se demonstre necessária e adequada, fazendo com que os
motivos de tal escolha constem dos fundamentos da decisão,43 sob pena de
nulidade a teor do art. 93, IX, da Constituição Federal.
É digno de nota que a necessidade e adequação da medida executiva
pode variar de acordo com o comportamento do executado ao longo do pro-
cesso, inclusive após a fixação de determinada medida específica que, em
princípio, parecia a mais adequada ou proporcional, mas que ante o desen-
volver da efetivação se mostrou inadequada, inútil ou insuficiente.
A modificabilidade da medida executiva após sua fixação nada mais é
do que a reavaliação da proporcionalidade da medida ante a nova realidade
do processo considerando a reação do réu à medida inicialmente fixada.
Dada a relevância dos mecanismos de efetivação do direito consagrado
na sentença, quer as de caráter coercitivo, quer as de caráter sub-rogatório,
38
Teresa Arruda Alvim Wambier e José Manoel Arruda Alvim Netto, em trabalho conjunto, afirmam que “a idéia de
discricionariedade liga-se a uma certa indiferença que haveria por parte do sistema quanto ao agente optar pelo
caminho A ou B, cumprindo determinada norma, norma esta que lhe daria, justamente, este grau de liberdade”
e concluem que “é difícil imaginar que, para o juiz, haja situações em que este possa realmente optar por dois
caminhos que, embora diferentes, possam significar que a lei terá sido cumprida. Para o juiz sempre há a melhor
solução, que se considera como sendo a correta” (O grau de coerção das decisões proferidas com base em prova
sumária. Revista de Processo, São Paulo, n. 142, p. 15, 2006).
39
O princípio da proporcionalidade, especialmente no que tange à tutela jurisdicional executiva, está expressamente
previsto no art. 620 do CPC, que dispõe: “quando por vários meios o credor puder promover a execução, o juiz
mandará que se faça pelo modo menos gravoso ao devedor”, que não obstante fazer parte do Livro II do Código
inegavelmente se aplica a toda disciplina da tutela jurisdicional executiva, e portanto a execução específica prevista
nos arts. 461 e 461-A, que disciplinam a efetivação da tutela específica.
40
No mesmo sentido: CUNHA, Leonardo José Carneiro. Princípio da proporcionalidade na execução civil. In:
BRUSCHI, Gilberto Gomes. Execução civil e cumprimento de sentença. São Paulo: Método, 2006.
41
Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 116.
42
Curso de direito constitucional. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 396-398.
43
Willis Santiago Guerra Filho (Teoria processual da Constituição. 3. ed. São Paulo: RCS, 2007) salienta que a aplicação do princípio
da proporcionalidade “requer procedimentos institucionalizados, bem como procedimentos (meramente) cognitivos
realizados no âmbito dos primeiros, onde se dá o confronto das diversas argumentações, criando assim as condições para
discussões e decisão cuja racionalidade se pode aferir, na medida em que são objetivamente fundamentadas”.

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Tutela específica das obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa 175

para o tema da tutela específica, serão dedicados na sequência itens


especialmente voltados para as principais medidas autorizadas nos arts. 461
e 461-A do Código.

3 Medidas de caráter coercitivo


3.1 A multa
Conforme afirmado no item antecedente, o juiz ao reconhecer o direito
do autor à tutela específica deve no mesmo provimento eleger o mecanismo
executivo adequado à efetivação do comando proferido.
A art. 461 do Código autoriza a opção, de acordo com as circunstâncias
do caso, por medidas de sub-rogação, tanto aquelas exemplificadas em seu
§5º, quanto medidas atípicas que se mostrem mais adequadas à concretização
do provimento, ou por medidas coercitivas voltadas a agir na vontade do
demandado, para que este realize o cumprimento voluntário ainda que não
espontâneo da obrigação.
Dentre os mecanismos coercitivos ganha especial destaque a multa
prevista no §4º do art. 461 do CPC, apesar de esta não ser a única forma de
atuar na vontade do réu.
A medida é claramente inspirada no instituto das astreintes, de criação
pretoriana francesa e posteriormente regulado por lei naquele país44 e possui
segundo entendimento majoritário da doutrina pátria caráter coercitivo e,
como tal, não se justifica quando impossível o cumprimento da prestação ou
quando o réu não possuir patrimônio passível de responder a uma eventual
execução por quantia.
Da afirmação supra afasta-se tanto a natureza punitiva (repressiva),
quanto a natureza indenizatória (reparatória) da multa em comento.
O disposto no §2º do art. 461 do CPC não deixa dúvidas de que a multa
fixada nada tem a ver com os eventuais prejuízos advindos do não cumpri-
mento da obrigação específica ao dispor que “a indenização por perdas e
danos dar-se-á sem prejuízo a multa”.
Assim, no caso de a obrigação tornar-se impossível de ser cumprida in
natura, ou caso após decorrido determinado lapso temporal de vigência da
multa o autor optar pelo ressarcimento em pecúnia, tal valor será liquidado
e executado, sem que seja levado em consideração o montante devido ou já
executado a título de multa periódica.
Pode ser extraída do referido dispositivo a conclusão que a multa é devida
também nos casos de cumprimento da obrigação pelo demandado fora do
prazo estabelecido na decisão, ou seja, após a incidência da multa periódica.
Por não possuir caráter repressivo, a medida em comento pode ser
cumulada com a multa por ato atentatório à dignidade da justiça prevista no
art. 14, parágrafo único, do CPC, sem que se possa falar em ofensa ao princí-
pio da vedação do bis in idem.
As medidas tutelam bens jurídicos diversos e possuem objetivos
diferentes, o cumprimento da obrigação voluntariamente pelo réu no caso
Sobre o desenvolvimento histórico e atual perfil das astreintes na ordenamento francês, ver: TALAMINI, Eduardo.
44

Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 49-57.

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176 Fábio Victor da Fonte Monnerat

da prevista no art. 461, §4º e punir a parte ou terceiro que não obedeça a
determinação judicial nos casos do art. 14 parágrafo único, ambos do CPC.45
Ademais o art. 14, parágrafo único do CPC deixa claro que a imposição
da multa por ato atentatório à dignidade da justiça ali prevista se dará “sem
prejuízo de outras sanções, criminais, civis e processuais cabíveis”.
Nesse sentido Candido Rangel Dinamarco46 afirma que as multas
periódicas não se confundem com aquelas previstas no art. 14 do CPC, dado
que aquelas têm em mira evento futuro e querem promover a efetividade do
direito objeto do processo, ao passo que estas visam o passado, ou seja, o ato
merecedor de repulsa cometido pela parte.
O texto legal não deixa dúvidas que a medida em comento pode ser
concedida de ofício, isto é, independentemente de pedido formulado pela
parte autora (art. 461, §4º, do CPC). Não há na concessão desta medida qual-
quer ofensa ao princípio da congruência.47
Questão não esclarecida pelo Código acerca da multa é seu destina-
tário, ou seja, aquele a quem a multa deve ser revertida, entretanto, em que
pese a ausência de previsão legal é pacífico o entendimento de que o valor
devido a título de multa integra o patrimônio do autor.48
Luiz Guilherme Marinoni49 não diverge da referida opinião também
entendendo que o valor da multa periódica, tal como disciplinada no ordenamento
pátrio, destina-se ao autor da ação, porém sustenta que assim não deveria ser.
Para citado processualista, a multa, ainda que mediatamente tenha por objetivo
tutelar o direito do autor, visa precipuamente garantir a efetividade das decisões,
razão pela qual deveria ser revertida em favor do Estado, tal como o faz o Direito
alemão. Além disso, prossegue o autor, a cumulação de perdas e danos com a
multa não espelharia o direito do autor, dado que é a indenização que, por si só,
deve espelhar o prejuízo sofrido pelo mesmo em função do inadimplemento.
Eduardo Talamini50 ao comentar o tema também chama a atenção para a
aparente incoerência entre o caráter público da multa enquanto instrumento de pre-
servação da autoridade jurisdicional e sua destinação ao particular. Entretanto, o
citado processualista destaca dois pontos que justificam e legitimam tal destinação.
O primeiro deles seria a maior coercibilidade gerada pela perspectiva
de execução, rigorosa e imediata por parte da parte interessada, que difi-
cilmente ocorreria caso o titular da multa fosse o Estado, o que pode ser
depreendido pelo procedimento estabelecido no art. 14, parágrafo único,
do Código, inscrição em dívida ativa para posterior execução. Em segundo
lugar, eventualmente o crédito da multa pode ser utilizado pelo autor em
uma eventual composição com o executado, estimulando a busca pelo resul-
tado específico e a célere solução da demanda, o que restaria vedado caso a
destinação da verba fosse o Estado, o que tornaria o crédito indisponível.

45
BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 2008. v. 3, p. 414.
46
Instituições de direito processual civil. São Paulo: Malheiros, 2004. v. 4, p. 471.
47
Sobre o tema, ver item 6.
48
Por todos: BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 2008. v. 3,
p. 416.
49
Tutela inibitória. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 220.
50
Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 264.

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Tutela específica das obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa 177

A par destes argumentos, pode ser lembrado que quando o ordenamento


quis destinar o valor da multa ao Estado-juiz o fez expressamente, a exemplo
da já aludida multa punitiva prevista no art. 14, parágrafo único, do CPC.
Outras três questões diretamente ligadas à multa não perfeitamente
regulada pelo art. 461, §4º do CPC merecem consideração especial neste tra-
balho. São elas o momento de incidência, o momento da exigibilidade e seu
destino no caso de improcedência da demanda.
As respostas a estes questionamentos influenciam diretamente no grau
de coercibilidade da medida. Isso porque, caso a multa incida ou apenas seja
exigível após o trânsito em julgado, certamente sua influência na vontade do
devedor será menor se comparada à incidência e exigibilidade imediata.
Portanto, a coercibilidade da multa comporta graus, sendo o grau
máximo possível a admissibilidade de execução imediata do valor fixado na
medida em que for se caracterizando o inadimplemento do devedor, somada
a irreversibilidade do montante pago independentemente do destino do
mérito, e o grau mínimo a inadmissibilidade da execução imediata da multa,
que ficaria condicionada à vitória da parte a favor da qual ela foi fixada.
Pode-se cogitar ainda um grau de coercibilidade médio, assim entendida
a possibilidade de execução imediata do montante fixado a título de multa,
com a condição de que caso o executado seja vencedor da demanda a parte
deverá repetir o montante executado a este título.
O primeiro ponto que influencia no grau de coercibilidade da multa é o
momento de sua incidência. Esta ocorre no exato momento em que o executado
deixa de cumprir a determinação, notadamente após o prazo estabelecido na
decisão judicial para o cumprimento fixado na decisão.
Este momento, todavia, sofre influência dos efeitos programados do
recurso cabível contra a decisão. Caso o recurso cabível possua apenas o efeito
devolutivo, a decisão que fixou a multa, interlocutória ou sentença nas hipó-
teses do art. 520 do CPC é, desde já, eficaz de modo que a multa incide assim
que findo o prazo fixado na decisão impugnada.
Entretanto, na hipótese de o recurso cabível contra a decisão possuir efeito
suspensivo, por exemplo, quando a multa for fixada em sentença fora dos casos do
art. 520, ou for atribuído efeito suspensivo ope judicis ao recurso interposto, a multa
não incide até o julgamento do recurso ou cassação do efeito suspensivo concedido.
Em segundo plano, reside a questão da exigibilidade da multa, ou seja,
em que momento o credor pode requerer a execução da quantia devida a este
título, ponto sobre o qual a doutrina ainda diverge.
Luiz Guilherme Marinoni51 sustenta que a finalidade coercitiva da multa
é alcançada através da ameaça de o réu futuramente ter de arcar com o mon-
tante fixado a este título pelo magistrado. Para cumprir tal papel, ainda segun-
do o autor, não se faz necessário que a mesma seja executada antes do trânsito
em julgado da decisão, dado que a “finalidade coercitiva não se relaciona com
a cobrança imediata, mas apenas com a possibilidade de cobrança futura”.52 53
51
Tutela inibitória. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 222.
52
Op. cit., p. 223.
53
Igualmente se posiciona de maneira contrária a execução do valor da multa ao trânsito em julgado da decisão:
DINAMARCO, Candido Rangel. Instituições de direito processual civil. São Paulo: Malheiros, 2004. v. 4, p. 474.

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178 Fábio Victor da Fonte Monnerat

Consagra esta corrente a Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/1985),


que em seu art. 12, §2º, dispõe que a multa cominada só será exigível após o
trânsito em julgado da decisão favorável ao autor.
Apesar disso, entendemos que a multa fixada com fulcro no art. 461,
§4º, do CPC pode ser executada antes do trânsito em julgado.
O disposto no art. 12, §2º, da Lei nº 7.347/1985 não se aplica, dado que
disposição específica, restrita à ação civil pública, e anterior à redação atual
do art. 461, §4º, do CPC, que nada dispõe nesse sentido, devendo este silêncio
ser entendido como admissibilidade de execução imediata.
Ousamos discordar, data maxima venia, da última posição citada de Marinoni,
no sentido de que a mera ameaça de cobrança futura seja suficiente, ou tão forte
quanto, a cobrança imediata para fins de atuação sobre a vontade do réu.
A incidência somada à possibilidade de cobrança imediata, isto é, execu-
ção sobre o patrimônio do devedor tão logo caracterizado o descumprimento
indubitavelmente funciona como um mecanismo a mais de pressão psicológica.
Portanto, a execução da multa independe do trânsito em julgado da
decisão acerca do mérito da causa, sendo admissível o requerimento executivo,
nos moldes do regime estabelecido nos arts. 475-J e seguintes do CPC, tão
logo fique caracterizado o descumprimento e incidência da multa,54 sendo
possível inclusive a execução por quantia certa deste título, por mais de uma
vez quando, se, após a execução do valor até então incidente, a multa perma-
neça fixada e o réu insista em descumprir a decisão.
Não é demais salientar que as observações feitas acerca dos efeitos do
recurso cabível contra a decisão que fixou a multa por ocasião do comentário
do momento de incidência valem, ainda com mais razão, para o impedimento
da execução, Sendo absolutamente inviável a execução do montante quando
pendente recurso com efeito suspensivo contra a decisão, dado que, a rigor,
nestes casos, a multa, como dito anteriormente, ainda sequer incidiu.
Entretanto, a admissibilidade de execução imediata da quantia devida
a título de multa não implica dizer que a mesma é devida mesmo se ao final
o direito de autor seja reconhecido como inexistente.
Isso porque exigibilidade imediata, ou seja, a possibilidade de execução
imediata do montante devido a título de multa não implica em definitividade, isto
é irrepetibilidade do valor executado em caso de improcedência da demanda.
Nestes casos, ou seja, quando a obrigação consagrada na sentença ou
acórdão cuja multa visa compelir o réu ao cumprimento for, ao final, do pro-
cesso tido por inexistente, a multa deixa de ser devida e o valor eventualmente
executado a este título deve ser repetido.55 56

54
Nesse sentido: Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 258;
RODRIGUES, Marcelo Abelha. Manual da execução civil, p. 229-230; BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado
de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 3, p. 416; e MEDINA, José Miguel Garcia. Execução civil. 2. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 540.
55
Para Marinoni: “Se nosso sistema confere ao autor o produto da multa, é completamente irracional admitir que
o autor possa ser beneficiado quando a própria jurisdição chega a conclusão que ele não possui o direito de estar
presente ao executar (provisoriamente) a sentença ou tutela antecipatória” (Tutela inibitória. 3. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2003. p. 222).
56
No mesmo sentido, citando ampla doutrina: Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer. 2. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2003. p. 259.

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Tutela específica das obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa 179

Nesse sentido Teresa Arruda Alvim Wambier e José Manoel Arruda


Alvim no trabalho já citado57 argumentam que lhes parece mais correta a
posição intermediária, onde a multa pode ser cobrada (executada) desde de
que constatado o descumprimento da decisão, devendo entretanto a execução
ser provisória, para que a situação se reverta no caso reforma da decisão.
O regime da execução provisória lembrado pelos autores supra cita-
dos, aliás, põe uma pá de cal na questão da repetibilidade ou não da multa
quando, no inciso II do artigo art. 475-O do CPC, estabelece que a execução
da decisão não transitada em julgado fica sem efeito caso sobrevenha decisão
que modifique ou anule o pronunciamento que fundamenta a execução, res-
tituindo-se as partes ao estado anterior e liquidando-se eventuais prejuízos
nos próprios autos, por arbitramento.
A par disso deve-se deixar claro que, além de reconhecer como infun-
dado o direito do autor, a decisão superveniente pode reconhecer a completa
impossibilidade de adimplemento da prestação tal como fixada na decisão
que impôs a multa posteriormente revogada.
Desta feita, o grau de coercibilidade possível à luz do sistema proces-
sual civil pátrio é o médio, que admite a incidência e exigibilidade da multa
independentemente do trânsito em julgado, mas condicionando a manuten-
ção do montante executado a este título no patrimônio do autor ao êxito no
mérito do processo.

3.2 A questão da prisão civil para o cumprimento da decisão


Outra medida coercitiva voltada a incutir na vontade do devedor a
disposição para cumprir o comando judicial é a ordem sob pena de prisão.
Tal medida, ao contrário da multa, é polêmica, dada a vedação constitucio-
nal à possibilidade de prisão por dívida (art. 5º, inc. LXVII, da Constituição
Federal), admitida pela Carta Magna apenas para coagir ao pagamento o
devedor de alimentos ou depositário infiel.
A par disso, o Pacto de São José da Costa Rica, do qual o Estado bra-
sileiro é signatário, restringe ainda mais a possibilidade de prisão civil por
dívida, admitindo-a apenas no caso do devedor de alimentos.
Sobre o tema, duas correntes opostas se formaram.
A primeira delas admite a prisão civil como medida coercitiva para
fins de cumprimento da ordem judicial não obstante a vedação do art. 5º, inc.
LXVII, da Constituição Federal, por entender que o que a norma constitucio-
nal veda é a prisão civil por dívida em sentido estrito, não estando vedado o
uso da prisão como meio de coerção.58
Para esta corrente a expressão “por dívida” inserta na norma cons-
titucional impede a prisão como meio coercitivo para o adimplemento de
uma prestação pecuniária, fato distinto, por exemplo, da prisão para forçar o
adimplemento de uma obrigação de fazer ou não fazer.
A vedação constitucional, ainda segundo esta linha de pensamento,
proíbe a prisão para efetivar uma ordem que dependa da disposição de
O grau de coerção das decisões proferidas com base em prova sumária. Revista de Processo, São Paulo, n. 142, 2006.
57

MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela de direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 292.
58

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patrimônio, mas não impede o uso da mesma para fazer efetivar-se um


comando de fazer ou não fazer, onde ao invés da disposição patrimonial seu
cumprimento depende de um comportamento do demandado.
Nessa linha Sérgio Cruz Arenhart59 aduz que a vedação de prisão “por
dívida” constitui hipótese absolutamente diversa da vedação da prisão por
descumprimento de ordem judicial, que seria admissível pela ordem jurídico-
constitucional sempre que tal ordem para ser cumprida não necessitasse de
disposição patrimonial.
Para outra parte da doutrina pátria a prisão como meio de efetivação
da ordem judicial, mesmo que esta não envolva disposição de patrimônio,
não está autorizada pela Constituição Federal.
José Miguel Garcia Medina60 afirma que a vedação constitucional abarca
não apenas a prisão como meio de satisfação, como também a prisão como
meio coercitivo, dado que também nesta hipótese a prisão estaria se dando
“por causa da dívida”. Por esse motivo, o autor entende que não cabe prisão
civil para fazer cumprir uma ordem judicial.61
No ponto, em que pesem os argumentos em sentido contrário, nos incli-
namos pela impossibilidade de decretação de prisão nestes casos, não obstante
a atipicidade dos meios executivos e o amplo elastério de medidas à disposição
do magistrado, dado que tais mecanismos encontram limites jurídicos e nesse
caso o limite é o dado pelo art. 5º, inc. LXVII, da Constituição Federal.
Por isso, estamos com José Miguel Garcia Medina,62 que sustenta que nes-
tes casos o óbice constitucional se impõe na medida em que a decisão a ser cum-
prida determina o cumprimento de um dever jurídico (oriundo de lei ou contrato),
razão pela qual, ao admitir-se a prisão civil na hipótese, esta acabará ocorrendo
em razão de tal dever, e não em virtude do descumprimento da decisão judicial.
É de se ressaltar que, para aqueles que entendem pela possibilidade de
decretação da prisão civil para fins de efetivação do comando judicial, ainda
assim tal medida apenas pode ser aceita após esgotados outros mecanismos de
efetivação que agridam em menor escala os direitos individuais do executado.
Em outras palavras, a prisão ser decretada de acordo com o princí-
pio da proporcionalidade, bem como de seus três subprincípios, devendo
mostrar-se a única medida adequada para efetivação à luz do caso concreto
(subprincípio da adequação), além de indispensável (subprincípio da neces-
sidade) com a exclusão de todas as outras medidas autorizadas pelo ordena-
mento processual (por força do determinado pelo subprincípio da proporcio-
nalidade em sentido estrito).

4 O princípio da congruência e o art. 461, 5º, do CPC


Outra norma que merece uma nova leitura a partir da vigência da
nova redação dos art. 461 e 461-A do CPC é a norma esculpida no art. 460 do
referido diploma, ou seja, a que estabelece o princípio da congruência ou da
correlação entre o pedido e a decisão final.
59
A tutela inibitória da vida privada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 210.
60
Execução civil. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 461.
61
No mesmo sentido: Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
p. 301 et seq.
62
Op. e loc. cit.

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Tutela específica das obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa 181

Dispõe o referido artigo que “é defeso ao juiz proferir sentença, a favor


do autor, de natureza diversa da pedida, bem como condenar o réu em quan-
tidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado”.
Tal regra, considerando o que dispõem atualmente os arts. 461 e 461-A,
deve no mínimo ser lida com extrema cautela. Isso porque os referidos
artigos entre outras coisas dispõem: “o juiz concederá a tutela específica da
obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o
resultado prático equivalente ao adimplemento” (art. 461, caput).
Como conciliar ambas as normas? Uma análise apressada pode sugerir
que, tendo em vista a redação do art. 461 ser posterior à do art. 460 do CPC
esta última se encontre revogada.
Contudo, estamos com Luiz Guilherme Marinoni quando o mesmo afirma
ser necessária a mitigação do princípio da congruência entre o pedido e a sen-
tença.63 Para deixarmos mais clara a ideia, utilizaremos o exemplo a seguir.
Imaginemos que “A” vizinho da casa noturna “B” ajuíze uma ação para
fazer valer seu direito de vizinhança e requeira que o juiz determine que a
casa noturna reduza o volume do seu sistema de som.
Neste caso, pode o juiz, acolhendo o pedido de “A”, determinar que a
demandada abaixe o som, sob pena de multa, ainda que esta medida (multa)
não tenha sido requerida pelo autor (art. 461, §4º, CPC).
Pode ainda o juiz, não obstante o pedido do autor ser, repita-se, única e
exclusivamente, o de que a casa noturna reduza o som, determinar a instalação
de equipamentos acústicos de modo a obter “o resultado prático equivalente”
ao pedido do autor. E mais, pode ainda o juiz se valer tanto de medidas de
coerção indireta, v.g., fixar multa diária para o próprio réu instalar o equipa-
mento, ou ainda poderá utilizar uma medida de sub-rogação determinando
que um terceiro instale às custas do réu o referido equipamento.
A mitigação do princípio da congruência, nesse caso, pode ser ainda
mais elástica. Basta pensarmos na hipótese de que o réu resista à instalação
do equipamento, sendo permitido ao juiz também independentemente de
pedido do réu determinar o fechamento da casa noturna.
Portanto, nota-se que, não obstante o pedido do autor restringir-se à dimi-
nuição do volume do som do réu, o juiz, se julgar necessário em razão do caso
concreto tomar outras medidas, poderá fazê-lo de ofício, como impor multas,
instalar equipamentos e até mesmo impedir o funcionamento da empresa ré.
Contudo, não há neste exemplo negativa de vigência do art. 460 do
CPC há sim a necessidade de interpretá-lo sistematicamente, de forma que
o “pedido” a que deve se restringir o juiz é o pedido de cumprimento das
normas de direito de vizinhança reconhecido no provimento judicial como
direito do autor, ou seja, todas aquelas medidas determinadas pelo órgão
judicial, no caso citado, nada mais são do que meios de efetivação da tutela
pretendida pelo autor, qual seja, o silêncio.
Resumindo, temos que a congruência entre o pedido e a decisão final no
processo deve ser observada no que tange ao bem jurídico que pretende o autor
63
Técnica processual e tutela de direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 134.

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da ação ver tutelado, por outro lado, os meios que podem ser determinados
pelo magistrado podem ser distintos daqueles originalmente requeridos pelo
autor da demanda, não havendo, portanto, no que tange à eleição da medida
executiva apta a levar a cabo o cumprimento da decisão, necessidade de cor-
relação entre o determinado pelo juiz e o requerido pelo autor.

5 Coisa julgada na execução específica


Ante a nova sistemática processual civil não há espaço para a afirmação
contida no revogado art. 463 do CPC segundo a qual, “ao publicar a sentença de
mérito, o juiz cumpre e acaba o ofício jurisdicional, só podendo alterá-la” (...).
Em sua nova redação, dada pela Lei nº 11.232/2005, houve a supressão
da expressão “o juiz cumpre e acaba o ofício jurisdicional”.
Isso porque o ofício jurisdicional do magistrado de primeiro grau, no
ordenamento atual, continua dentro da mesma relação jurídico processual,
na fase executiva.
Retomando o exemplo anterior, nota-se que o juiz além de possuir
poderes para conceder determinadas medidas sem requerimento, possui
a faculdade de, a depender do comportamento do réu e das circunstâncias
do caso concreto, modificar sua natureza, como na hipótese de substituir a
ordem sob pena de multa por uma medida de sub-rogação; a quantidade,
como no caso de alteração do valor da multa, ou a qualidade, como no caso
de transformar a multa diária em uma multa por hora ou por mês de atraso.
Esta autorização legal não fere a coisa julgada, tendo em vista há de se
distinguir a declaração de existência ou inexistência do direito pleiteado, daquilo
que consiste em medidas que têm por fim a realização do direito declarado.64
Nesse sentido os únicos pronunciamentos suscetíveis de transitar em
julgado são aqueles referentes à declaração de existência ou inexistência do
direito. Já as medidas executivas determinadas no corpo da sentença (sub-
rogatórias ou executivas indiretas), em virtude de seu caráter instrumental65
não se sujeitam à imutabilidade imposta pela coisa julgada.
Por essa razão, a possibilidade de o juiz, ante a modificação da situação
de fato em que proferiu a sentença, ou mesmo em face do comportamento do
réu após a decisão, modificar as medidas executivas fixadas na sentença não
fere a garantia constitucional da coisa julgada.

6 Mecanismos de defesa do executado


Em que pese a existência de processo de conhecimento antecedente ao
início dos atos de efetivação do comando judicial que reconhece a existência
de obrigação de fazer, não fazer e entregar coisa,66 o que limita sobremaneira
as possibilidades de defesa do executado na fase de cumprimento do comando
judicial, é certo que as garantias constitucionais do contraditório e ampla
defesa devem ser observadas também nesta fase.
64
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. O dogma da coisa julgada. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2003. p. 150.
65
Op. cit., p. 152.
66
Sobre a execução específica fundada em título executivo extrajudicial, ver item seguinte.

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Tutela específica das obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa 183

A eficácia preclusiva da coisa julgada, ou, em caso de efetivação provisória


da tutela específica, a pendência de confirmação da medida concessiva no corpo da
demanda principal impedem que o réu discuta o direito exequendo, mas não vedam
que o mesmo participe e questione os atos praticados no curso da efetivação.
Candido Rangel Dinamarco67 afirma que negar ao executado nesta fase
qualquer oportunidade de defesa viria de encontro às garantias do contra-
ditório e do devido processo legal, não sendo, portanto, admissível ante a
ordem constitucional.
No que tange à forma de exercício do contraditório neste momento
processual, à luz da sistemática anterior, doutrina e jurisprudência negavam
a possibilidade de ajuizamento dos embargos à execução, devendo a defesa
ser instrumentalizada através de simples petição.
O Superior Tribunal de Justiça vem se manifestando no sentido até aqui
exposto, ou seja, admitindo a defesa do executado nas execuções específicas
através de simples manifestação nos autos, salientando todavia a possibilidade
de recebimento dos embargos à execução erroneamente interpostos por força
dos princípios da economia processual e da instrumentalidade das formas.68
Entretanto, em que pese doutrina e construção jurisprudencial que
afastava a necessidade do manejo dos embargos para que o executado exer-
cesse sua defesa nos casos de efetivação da tutela específica, correta e coerente
com diferenças procedimentais entre as obrigações de pagar e as de fazer,
67
Instituições de direito processual civil. São Paulo: Malheiros, 2004. v. 4, p. 463.
68
Processo civil. Cumprimento de obrigação de fazer. Sentença executiva lato sensu (CPC, art. 461). Descabimento
de embargos à execução. Defesa por simples petição, atendidos os limites do art. 741 do CPC.
1. Os embargos do devedor constituem instrumento processual típico de oposição à execução forçada promovida
por ação autônoma (CPC, art. 736 do CPC). Sendo assim, só cabem embargos de devedor nas ações de execução
processadas na forma disciplinada no Livro II do Código de Processo.
2. No atual regime do CPC, em se tratando de obrigações de prestação pessoal (fazer ou não fazer) ou de entrega
de coisa, as sentenças correspondentes são executivas lato sensu, a significar que o seu cumprimento se opera na
própria relação processual original, nos termos dos artigos 461 e 461-A do CPC. Afasta-se, nesses casos, o cabimento
de ação autônoma de execução, bem como, conseqüentemente, de oposição do devedor por ação de embargos.
3. Todavia, isso não significa que o sistema processual esteja negando ao executado o direito de se defender em face
de atos executivos ilegítimos, o que importaria ofensa ao princípio constitucional da ampla defesa (CF, art. 5º, LV). Ao
contrário de negar o direito de defesa, o atual sistema o facilita: ocorrendo impropriedades ou excessos na prática dos
atos executivos previstos no artigo 461 do CPC, a defesa do devedor se fará por simples petição, no âmbito da própria
relação processual em que for determinada a medida executiva, ou pela via recursal ordinária, se for o caso.
4. A matéria suscetível de invocação pelo devedor submetido ao cumprimento de sentença em obrigações de fazer,
não fazer ou entregar coisa tem seus limites estabelecidos no art. 741 do CPC, cuja aplicação subsidiária é imposta
pelo art. 644 do CPC.
5. Tendo o devedor ajuizado embargos à execução, ao invés de se defender por simples petição, cumpre ao juiz,
atendendo aos princípios da economia processual e da instrumentalidade das formas, promover o aproveitamento
desse ato, autuando, processando e decidindo o pedido como incidente, nos próprios autos.
6. Recurso especial parcialmente provido (REsp nº 654.583/BA. Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira
Turma, julgado em 14.02.2006. DJ, p. 177, 06 mar. 2006).
No mesmo sentido: Processual civil. Administrativo. FGTS. Correção do saldo de conta vinculada. Execução de
obrigação de fazer. Aplicação do disposto no art. 644 do CPC. Descabimento de embargos à execução.
1. A decisão judicial que determina o creditamento dos valores nas contas vinculadas do FGTS, pela CEF, denota
obrigação de fazer, e, seu cumprimento, não enseja a instauração de processo de execução autônomo, e, em
conseqüência, a oposição de embargos. Precedentes da Corte: REsp 859.893/CE, DJ de 14.12.2006; AgRg no REsp
742.047/DF, DJ de 13.02.2006 e REsp 692.323/SC, DJ de 30.05.2005.
2. As eventuais objeções ou exceções de executividade são interinais, excepcionalíssimas, e não contemplam a
figura dos embargos.
3. É que a decisão judicial que impõe obrigação de fazer ou não fazer, mercê de sua imediata executoriedade,
à luz do disposto nos arts. 461 e 644, do CPC, com a novel redação dada pela Lei 10.444/2002, não comporta a
instauração de processo autônomo de execução e, a fortiori, a oposição de embargos.
4. Recurso Especial desprovido (REsp nº 957.111/DF. Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 16.10.2008.
DJe, 03 nov. 2008).

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não fazer e entregar coisa, no momento não mais se justifica a distinção dos
mecanismos de defesas de acordo com a espécie de obrigação sendo perfei-
tamente possível e sistematicamente coerente que também nas hipóteses de
cumprimento específico das obrigações a defesa do executado seja instru-
mentalizada através da impugnação ao cumprimento de sentença, tal como
delineada nos arts. 475-L e 475-M do Código de Processo Civil.
Esta sistemática não se aplica nos casos de execução das obrigações de
fazer, não fazer e entregar coisa fundadas em título executivo extrajudicial,
objetos de análise no item subsequente haja vista que, nestes casos, por estar-
mos diante de um processo de execução e inexistir pronunciamento judicial
prévio sobre a existência e validade da obrigação, o mecanismo que possui o
executado para se exercer sua defesa são os embargos do executado discipli-
nados nos arts. 736 a 740 do CPC.

7 Tutela específica das obrigações de fazer, não fazer e entregar


coisa fundadas em título executivo extrajudicial
Os direitos passíveis de tutela na forma específica também podem estar
consagrados em títulos executivos extrajudiciais aptos a autorizar o acesso
direto à tutela jurisdicional executiva independentemente de prévio processo
de conhecimento.
A matéria é regulada no Livro II do Código de Processo Civil, em seus
arts. 632 a 643, para execução de fazer e não fazer, e arts. 621 a 631, para
entrega de coisa fundada em título extrajudicial.
O procedimento ali estabelecido é para as três hipóteses bastante pare-
cido, sendo certo que o obrigado identificado no título executivo e, portanto,
réu no processo de execução será citado para entregar a coisa no prazo de
dez dias (art. 621) ou realizar a prestação de fazer no prazo assinalado pelo
magistrado (art. 632).
Algumas questões acerca da execução específica das obrigações quando
fundada em título extrajudicial merecem um maior aprofundamento, sendo a
primeira delas o fato de que o regramento disposto no Livro II do Código dis-
põe de regras menos eficientes para a efetivação do direito, como por exemplo
a não previsão (expressa) do princípio da atipicidade dos meios executivos,
bem como de algumas medidas típicas úteis para efetivação dos direitos.
A previsão de menos meios executivos para tutela do direito expresso
em um título extrajudicial gera um contrassenso, dado que, em tese, uma
medida antecipatória de tutela fulcrada no art. 461, §3º, do CPC pode levar
à conclusão de que o direito consagrado em tal medida, fundada em cogni-
ção sumária e provisória, possui melhores meios de ser concretizada do que
aquela representada em um título detentor dos requisitos de certeza e exigi-
bilidade capaz de tornar desnecessário o processo de conhecimento.
Esta incongruência deve ser corrigida pela interpretação sistemática
voltada à coerência do sistema processual, obtendo-se por esta via a possibili-
dade de utilização no processo de execução de títulos extrajudiciais represen-
tantes de obrigações de fazer, não fazer ou entrega de coisa dos mecanismos

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Tutela específica das obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa 185

executivos a efetivação dos comandos judiciais antecipatórios ou finais


aludidas nos itens precedentes, inclusive a autorização de utilização de
medidas executivas atípicas.
Nesse sentido Cassio Scarpinella Bueno69 assevera que, embora o art. 645
do CPC limite-se a fazer menção à multa, o dispositivo deve receber interpre-
tação ampla para viabilizar a utilização das medidas de apoio previstas nos
art. 461, §5º, nos casos de execução lastreada em um título extrajudicial.
Na mesma toada é a lição de Marcelo Abelha Rodrigues,70 que afirma não
parecer justo nem lógico que os meios disponíveis para a execução para a entrega
de coisa fundada em um título judicial, ou mesmo uma decisão liminar, sejam
mais variados e diversificados do que aqueles disponíveis quando a obrigação
for fundada em um título extrajudicial. Raciocínio contrário levaria à hipótese
absurda de que um credor detentor de título executivo extrajudicial tenha inte-
resse em propor uma demanda de conhecimento para nesta sede se ver auto-
rizado a se valer de mecanismos dispostos nos arts. 461 e 461-A do Código.
Portanto sempre que uma atividade prevista nos arts. 461 e 461-A do
Código se mostrar mais eficiente para efetivação do direito consagrado no
título executivo extrajudicial objeto do processo de execução deve o magis-
trado autorizar sua prática, ainda que tal meio não conste expressamente do
Livro II do Estatuto Processual.
Outro ponto regulado no Livro II do CPC é a possibilidade de cumpri-
mento da obrigação específica por terceiro às custas do executado.
Nesse ponto vale aqui a via de mão dupla imposta pela já comentada
interpretação sistemática que autoriza a prestação da obrigação por terceiro
às custas do executado nos casos de cumprimento de sentença ou efetivação
da medida antecipatória de tutela reguladas pelo Livro I do Código.

7.1 Defesa do executado no processo de execução da tutela


específica
Sempre que o direito estiver representado em um título executivo extra-
judicial o credor não necessita da tutela cognitiva do processo de conhecimento.
Nestes casos, resta aberta de imediato a tutela jurisdicional executiva, a ser
pleiteada pelo credor apontado no título pela via do processo de execução.
O fato de tratar-se de execução sem prévio pronunciamento judicial
acerca do direito consagrado no título, por óbvio, influencia na forma e no
conteúdo da defesa do executado que deve nestes casos se dar por meio de
embargos à execução.
Os embargos foram sensivelmente alterados pela Lei nº 11.382/2006,
que, em contraposição à sistemática anterior, passou a dispensar a garantia
do juízo e retirou o efeito suspensivo automático dos mesmos, que decorriam
do seu simples ajuizamento.
Ocorre que por um cochilo do legislador reformista o art. 621 do CPC,
que trata dos embargos à execução para entrega de coisa fundada em título

Curso sistematizado de direito processual civil. São Paulo: Saraiva. v. 3, p. 433.


69

Manual da execução civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 278.
70

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186 Fábio Victor da Fonte Monnerat

extrajudicial continua fazendo referência à necessidade de segurança do


juízo para que o mesmo seja admitido, o que vai de encontro à nova siste-
mática estabelecida no art. 736 do Código. Além disso, estabelece um prazo
diferente para a apresentação dos embargos, qual seja, dez dias, ao invés de
quinze, tal como regulado pelo novo artigo.
É certo, todavia, que, não obstante a letra do art. 621 do CPC, os embar-
gos devem ser admitidos independentemente de depósito da coisa, devendo
prevalecer o art. 736 com a redação dada pela Lei nº 11.382/2006.
O depósito da coisa é requisito, à luz da nova sistemática, para a obten-
ção do efeito suspensivo dos embargos a teor do art. 739-A, §1º, do Código,
mas não para a admissibilidade de defesa do executado.
O prazo, por força da interpretação sistemática e da prevalência da
lei posterior e de igual hierarquia que trate da mesma matéria, deve ser de
quinze dias contados da citação (art. 736 do CPC com a redação dada pela Lei
nº 11.382/2006), não obstante a letra do art. 621, cuja redação foi estabelecida
pela Lei nº 10.444/2002.71
Desta feita, o prazo de quinze dias para apresentação dos embargos
passa a ser contado da citação a que se referem os arts. 621 e 632 do CPC, e
tanto neste interregno quanto após seu ajuizamento está o processo apto a
prosseguir com a prática dos atos executivos, salvo se concedido efeito sus-
pensivo que, nos termos do art. 739-A, §1º, do CPC, depende da relevância
dos fundamentos dos embargos e da comprovação de que o prosseguimento
da execução pode causar dano grave de difícil ou incerta reparação.
Julgados improcedentes os embargos, por sentença, a apelação por
ventura interposta deve ser recebida apenas no efeito devolutivo, o que em
última análise faz com que a execução prossiga na forma definitiva, salvo se
houver sido concedido o efeito suspensivo na forma do art. 739-A do CPC,
hipótese em que a execução prossegue de forma provisória, por força do que
dispõe o art. 587 na redação dada pela Lei nº 11.382/2006.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

MONNERAT, Fábio Victor da Fonte. Tutela específica das obrigações de fazer, não
fazer e entregar coisa. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte,
ano 18, n. 71, p. 163-186, jul./set. 2010.

Contra, criticando a falta de sistemática do Código, mas defendendo a manutenção do prazo de dez dias para o
71

ajuizamento dos embargos: Rodrigo Mazzei (Reforma do CPC 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 593),
que assevera: No que se refere ao prazo, à míngua de qualquer indicativo direito no art. 738 quanto a execução
para entrega de coisa certa, apesar de evidente cochilo legislativo, o quadro legal que hoje se encontra impõe a
observância do prazo ditado no art. 621 do CPC, perdurando-se tal situação até que seja sanado, via nova lei, o
embaralho criado.
No que tange à necessidade de prévio depósito para que os embargos sejam admitidos o autor entende de forma
diversa e tem por revogada a referência a necessidade de prévia garantia.

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DOUTRINA
Parecer

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Exercício tardio de situações jurídicas ativas. O silêncio como fato jurídico extintivo: renúncia tácita... 189

Exercício tardio de situações jurídicas


ativas. O silêncio como fato jurídico
extintivo: renúncia tácita e suppressio
Fredie Didier Jr.
Professor-adjunto de Direito Processual Civil da Universidade Federal da Bahia. Mestre (UFBA),
Doutor (PUC-SP) e Pós-Doutor (Universidade de Lisboa). Advogado e consultor jurídico.

Daniela Bomfim
Advogada. Mestranda em Direito Público pela UFBA.

Sumário: 1 Síntese da causa – 2 Primeiras considerações – 3 Primeiro


momento: análise do caso sob o aspecto da vontade exteriorizada pelo titular
do direito (afirmado) – 3.1 O negócio jurídico na teoria do fato jurídico –
3.2 As formas de exteriorização da vontade como elemento fático dos atos
jurídicos em sentido amplo (dentre os quais os negócios jurídicos) – 3.3 O
silêncio como exteriorização de vontade, pressuposto fático de negócios
jurídicos – 3.4 O caso sob consulta. Configuração da renúncia tácita. Com-
portamento negocial concludente – 4 Segundo momento: análise do caso
sob o enfoque da situação da confiança da consulente – 4.1 A incidência
do princípio da boa-fé nas relações contratuais – 4.2 O caso sob consulta. A
suppressio. A situação de confiança da consulente – 5 Conclusão

1 Síntese da causa
Trata-se de ação ordinária ajuizada por A. LTDA. contra A. S/A por
meio da qual se requer (i) seja certificada obrigação de pagar quantia no valor
de R$102.775,56 (cento e dois mil setecentos e setenta e cinco mil e cinquenta
e seis centavos), a título indenizatório, haja vista suposta ocorrência de
danos decorrentes da ruptura desmotivada e unilateral de relação contra-
tual de transporte de mercadorias; (ii) seja certificada a obrigação de pagar
quantia no valor de R$689.109,68 (seiscentos e oitenta e nove mil cento e nove
reais e sessenta e oito centavos), decorrente do inadimplemento de obrigação
estipulada no contrato; (iii) seja certificada a obrigação de pagar a quantia de
R$492.447,05 (quatrocentos e noventa e dois mil quatrocentos e quarenta e
sete reais e cinco centavos), em razão da incidência de juros moratórios por
força do inadimplemento contratual; (iv) seja certificada a obrigação de pagar
a quantia de R$3.557.984,99 (três milhões quinhentos e cinquenta e sete mil
novecentos e oitenta e quatro reais e noventa e nove centavos), como indeni-
zação pelos lucros cessantes em razão da ruptura contratual.
Alegou a autora que, em 1º.09.1984, as partes (em verdade, as suas
antecessoras) celebraram contrato de transporte de mercadorias, por meio
do qual as concordaram que os transportes das mercadorias vendidas pela
ré seriam feitos pela autora, que, por sua vez, assumia o risco de eventual
perecimento da coisa durante o transporte, mediante a contraprestação

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190 Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim

correspondente a 0,25% sobre o valor das mercadorias transportadas no mês.


Vale dizer: o preço do transporte seria pago pelo cliente, que, por sua vez,
poderia exigir que o transporte fosse feito por outrem.
Sustentou que, em 1993, a ré não permitiu mais que a autora realizasse
o transporte das mercadorias, deixando de informá-la do cronograma de car-
regamento. Em face da ruptura contratual, alegara que sofrera danos emer-
gentes e lucros cessantes. Demais disso, alegara que a contratante deixou de
efetuar o pagamento correspondente a 0,25% da mercadoria mensalmente
transportada, conforme houvera sido pactuado.
Em sua defesa, a demandada alegou (i) a ocorrência da prescrição, por
força da incidência do art. 178, §10, III, do Código Civil de 1916, que previa
o prazo prescricional de 05(cinco) anos quanto à exigibilidade de direito de
receber juros ou quaisquer outras prestações acessórias pagáveis anualmente
ou em períodos mais curtos, o que, segundo a demandada, se verificaria
no caso dos autos; (ii) a ocorrência da prescrição por conta da incidência do
art. 178, §6º, II, do Código Civil antigo, segundo o qual o prazo prescricional
para seja exercida a pretensão material concernente a direitos decorrentes
de contrato de seguro era de um ano; (iii) em razão da ausência de previsão
quanto à possibilidade ou não de resilição contratual, a ré informou à autora
o seu interesse em extinguir a relação contratual; (iv) existia um negócio não
formalizado por meio do qual se acordara que a ré iria incluir o equivalente a
0,25% na mercadoria a ser transportada.
Veio sentença aos autos julgando antecipadamente os pedidos, nada
obstante o requerimento de produção de provas, por considerar que (i) “a
alegação de quitação não pode ser comprovada oralmente”, no que concerne
ao pedido de certificação de pagar quantia em razão do inadimplemento
contratual; (ii) a demandada afirmou genericamente a ausência de dano por
força da ruptura contratual, deixando, inclusive, de aduzir os motivos do
rompimento; (iii) a verificação da extensão dos danos poderia ser feita quando
a sentença fosse liquidada.
Considerou, ainda, a não ocorrência da prescrição no caso dos autos,
já que não incidira o art. 178, §10, III, do então Código Civil, já que a obri-
gação descrita no contrato se trata de obrigação autônoma, e não acessória.
Ademais, tratar-se-ia de suporte fático concreto do art. 177 do revogado CC.
De outra parte, não incidiria no caso o art. 138, §6º, III, do CC-16, pois não
seria contrato de seguro.
Na sentença, afirmou-se que restaram incontroversos nos autos: (i) a
existência do contrato — válido e eficaz; (ii) a obrigação de pagar os 0,25% do
valor da mercadoria transportada; (iii) a exclusividade do transporte; (iv) a
ruptura contratual não motivada.
Em sua fundamentação, a sentença considerou a ruptura contratual um
ato abusivo e, pois, ilícito, já que a contratante o fez por meio de uma forma
abrupta, sem aviso prévio e sem o consentimento da outra parte. Dessa forma,
certificou-se o direito de a autora ser indenizada pelo rompimento contratual
pelos danos materiais sofridos (danos emergentes e lucros cessantes).

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Exercício tardio de situações jurídicas ativas. O silêncio como fato jurídico extintivo: renúncia tácita... 191

No que concerne à alegação do inadimplemento contratual e o


consequente pedido de receber a quantia correspondente, considerou-se que
a demandada deixou de alegar o pagamento nos termos estabelecidos no
contrato, e, ainda, que a tese de que o 0,25 % era acrescido na carga trans-
portada (em natura) é inidônea para afastar a responsabilidade da ré. Dessa
forma, certificou-se o direito de receber quantia concernente a 0,25% do valor
das mercadorias transportadas de 1º.09.1984 a 30.05.1993.
Foi interposto recurso de apelação, alegando cerceamento de defesa,
em face do julgamento antecipado dos pedidos, razão por que se requereu
o provimento do apelo para decretar a nulidade da sentença. Demais disso,
que fosse, eventualmente, provido o recurso para, reformando a sentença,
julgar improcedentes os pedidos formulados na peça vestibular. Por fim, e
ainda em caráter eventual, que fosse provido o recurso para que, reformando
a sentença parcialmente, a correção monetária incidisse após a propositura
da ação e os juros, a partir da citação.
Negou-se provimento ao recurso, sob os seguintes fundamentos: (i)
houve ruptura unilateral e injustificada do contrato; (ii) não se sustenta a tese
de que o percentual de 0,25 % deveria ser entregue em mercadoria; (iii) não
houve prova de pagamento, que só poderia ser comprovado documental-
mente; (iv) não se verificara a prescrição, no caso dos autos; (v) configurado
o fato jurídico da responsabilidade civil, há o dever de indenizar pelos lucros
cessantes, a serem apurados em posterior liquidação.
Foram opostos embargos de declaração pela demandada/apelante,
acolhidos parcialmente apenas para expressamente ultrapassar o argumento
de ilegitimidade ativa.
Foi, então, interposto recurso especial, tendo como causa de pedir vio-
lação a literal disposição de lei, quais sejam, (i) violação aos arts. 3º, 295, II, e
371, I, do CPC, haja vista que a autora não é a titular do direito afirmado e
certificado; (ii) violação aos arts. 178, §10, III, e 178, §6º, II, do Código Civil de
1916, os quais teriam incidido no caso em tela, (iii) violação aos arts. 138 e 205
do Código Comercial antes vigente, já que o termo para a incidência de juros e
correção monetária seria a data do recebimento da notificação judicial. Demais
disso, o recurso especial teve como causa de pedir a existência de dissídio juris-
prudencial (art. 105, III, c, CF88) no que concerne à solução atribuída a casos de
pedido de certificação de direito de receber quantia decorrente de prestação de
serviços documentada em notas fiscais emitidas por terceiros.
Foi também interposto recurso extraordinário, tendo como causa de
pedir a violação ao art. 5º, LV, da Constituição Federal.
O recurso especial foi parcialmente admitido no juízo a quo, apenas
no que concerne à violação ao art. 178, §6º, II, e §10, III, do CC-16. O recurso
extraordinário não foi admitido.

2 Primeiras considerações
Consulta-nos A. S/A acerca da existência atual das situações jurídicas ati-
vas (afirmadas pela autora) de receber as quantias equivalentes a 0,25% do valor

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192 Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim

das mercadorias por elas transportadas de setembro de 1984 a maio de 1993, por
força da cláusula quarta do instrumento contratual de fls. 31-32 dos autos.
É o que se passa a analisar.
A análise, por sua vez, será feita sob dois enfoques diversos, mas não
necessariamente excludentes entre si.
Em um primeiro momento, verificar-se-á se o comportamento omissivo
da transportadora pode ser caracterizado como uma declaração tácita de
vontade elemento de uma renúncia.
Em um segundo momento, analisar-se-á se, independentemente da
vontade da transportadora, ter-se-ia configurada situação de confiança da
consulente idônea a justificar a incidência do princípio da boa-fé.

3 Primeiro momento: análise do caso sob o aspecto da vontade


exteriorizada pelo titular do direito (afirmado)
3.1 O negócio jurídico na teoria do fato jurídico
O mundo jurídico é formado pelos fatos jurídicos, que são os fatos da
vida qualificados (como jurídicos), por força da incidência da norma jurídica.
O fenômeno de juridicização ocorre quando se verifica a suficiência do
suporte fático concreto, vale dizer, quando os fatos da vida são correspon-
dentes (para que se possa fazer jus à concepção de “sistema móvel”, preferi-
mos, aqui, utilizar a expressão “correspondentes”, e não “coincidentes”) aos
pressupostos previstos abstratamente na hipótese normativa (suporte fático
abstrato da norma).
Sobre o fenômeno da juridicização, é célebre a metáfora utilizada por
Pontes de Miranda: “para que os fatos da vida sejam jurídicos, é preciso que
regras jurídicas — isto é, normas abstratas — incidam sobre eles, desçam e
encontrem os fatos, colorindo-os, fazendo-os “jurídicos””. E mais adiante:
“ocorridos certos fatos-conteúdo, ou suportes fácticos, que têm de ser regra-
dos, a regra jurídica incide. A sua incidência é como a da plancha da máquina
de impressão, deixando a sua imagem colorida em cada folha”.
Como se vê, as noções de fato (da vida), suporte fático e fato jurídico
não são coincidentes.
Os fatos (da vida) pertencem ao mundo (dos fatos) e, para que ingres-
sem no mundo jurídico, é preciso que sejam qualificados (como jurídicos)
pela incidência normativa. Veja-se: todo fato jurídico é também fato da vida
(o contrário não é correto afirmar), razão por que o mundo jurídico está con-
tido no mundo da vida.
A expressão “suporte fático” reflete, em seu significado, duas facetas:
(i) suporte fático hipotético ou abstrato, que é a hipótese fática prevista na
norma jurídica; (ii) suporte fático concreto, caracterizado pela configuração,
no mundo dos fatos, dos elementos previstos abstratamente. O suporte
fático abstrato é um conceito do mundo dos pensamentos, na medida em que

MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes. Tratado de direito privado. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983. t. I, p. 6.

MIRANDA. Tratado de direito privado, op. cit., t. I, p. 11.

MELLO, Marcos Bernardes. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 39.

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Exercício tardio de situações jurídicas ativas. O silêncio como fato jurídico extintivo: renúncia tácita... 193

é elemento das proposições jurídicas, mas não coincide com o fato jurídico,
sendo-lhe, inclusive, prévio no fenômeno jurídico.
O suporte fático concreto é um conceito do mundo dos fatos, mas não
corresponde ao conceito de fatos (da vida). Como afirma Marcos Bernardes
de Mello, “entre o fato (real), ou seja, o fato em si mesmo, e o suporte fático
há o elemento valorativo, que os qualifica diferentemente”.
Esta diferença também é realçada por Karl Larenz, ao distinguir as
noções de “situação de fato em bruto” e “situação de fato definitiva” (o enun-
ciado fático). Na premissa menor do silogismo da determinação da conse-
quência jurídica (“S é um caso de P”), “S” não seria a situação de fato bruto
(e note-se que também esta seria resultado de alguma interpretação), mas,
sim, um enunciado fático construído pelo intérprete, a partir das possíveis
proposições jurídicas aplicáveis no caso.
Veja-se: a valoração não está apenas no substrato fático abstrato (rea-
lizada pelo legislador), mas na construção do substrato fático concreto, que
seria decorrente de um julgamento (valorativo) dos fatos. Não se interpretam
apenas os textos normativos (para que se “reconstruam” as normas), mas
também os fatos, para que se construam os respectivos enunciados fáticos
(substratos fáticos concretos), à luz do caso particular, e para que se verifique
a sua correspondência com a hipótese abstratamente prevista. Isso porque os
fatos são também devem ser vertidos em linguagem, logo seus signos devem
ser interpretados para que se “construam” os seus significados.
Pois bem.
Os fatos jurídicos (em sentido lato) podem ser classificados em razão
do elemento cerne (nuclear) do suporte fático, assim entendido como aquele
“que determina a configuração final do suporte fático e fixa, no tempo, a sua
concreção”. Os elementos nucleares do suporte fático influem diretamente
na existência do fato jurídico.
Nesta classificação, há os atos jurídicos em sentido lato, aqueles cujo
suporte fático tenha como elemento nuclear a exteriorização consciente da
vontade humana. O ato jurídico em sentido lato é gênero do qual são espécies
o ato jurídico em sentido estrito e o negócio jurídico.
Em se tratando de ato jurídico em sentido estrito, a vontade humana
(exteriorizada) é elemento do suporte fático, mas ela não atua quanto aos
efeitos decorrentes do ato jurídico (vale dizer, não atua quanto ao plano de
eficácia do ato, mas apenas quanto ao seu plano de existência). Cuida-se de
efeitos preestabelecidos pela norma, efeitos necessários. Praticamente inexiste
possibilidade de escolha da categoria jurídica.
Em se tratando de negócios jurídicos, a vontade é elemento relevan-
te quanto à existência e quanto à eficácia do ato jurídico. Nas palavras de
Marcos Bernardes de Mello:


MELLO. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 12. ed., op. cit., p. 38.

MELLO. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 12. ed., op. cit., p. 63.

LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. p. 391 et seq.

MELLO. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 12. ed., op. cit., p. 49.

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194 Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim

[...] o direito não recebe a vontade manifestada somente como elemento nuclear
do suporte fático da categoria que for escolhida pelas pessoas, mas lhe reconhece,
dentro de certos parâmetros o poder de regular a amplitude, o surgimento, a
permanência e a intensidade dos efeitos que constituam a conteúdo eficacial
das relações jurídicas que nascem do ato jurídico.

Como se viu, os negócios jurídicos (como atos jurídicos em sentido lato) são
fatos jurídicos cujo elemento cerne do suporte fático é a vontade humana exteriori-
zada (o que pressupõe, certamente, a sua consciência). Sem exteriorização de von-
tade humana, não há negócio jurídico nem tampouco irradiação de seus efeitos.

3.2 As formas de exteriorização da vontade como elemento


fático dos atos jurídicos em sentido amplo (dentre os quais
os negócios jurídicos)
Sobre a “exteriorização da vontade”, como pressuposto fático dos atos
negociais, Pontes de Miranda afirma que abrangeria a manifestação da vontade
(atos de vontade adeclarativos) e a declaração de vontade, que poderia ser,
por sua vez, expressa ou tática. Note-se que algumas manifestações seriam
tão próximas das declarações que poderiam ser consideradas juridicamente
como declarações. Eis a lição do autor:

Alguns atos adeclarativos (manifestações simples de vontade) estão tão próxi-


mos das declarações de vontade que se têm, juridicamente, como declarações de
vontade tácitas... Tácito, aí, significa “silente”, “calado”, sem se indagar se houve
ato, ou não. Os atos volitivos adeclarativos são sem declaração, posto que mani-
festem vontade; os atos, de que falamos, têm declaração de vontade silente, —
ou porque a regra jurídica, como a propósito da revogação (re-vocatio) dos
testamentos pela destruição, ou da revogação do mandato (art.1709 e 1316, I),
tenha dito que como ‘declaração’ de vontade de determinado conteúdo se devera
considerar, ou porque, segundo as circunstâncias, o que deixa de falar sabia que
se teria por declaração de vontade de determinado conteúdo o seu silêncio.
No ato volitivo adeclarativo, o ato é indício de vontade, talvez de vontade de
negócio; na declaração de vontade tácita ou pelo silêncio, ainda o é, mas há o
plus da declaração de vontade, embora sem palavras.

Assim, poder-se-ia imaginar uma linha de gradação entre a manifes-


tação de vontade, a declaração tácita de vontade e a declaração expressa de
vontade, sendo certo que os três níveis de exteriorização da vontade pode-
riam compor o substrato fático concreto do negócio jurídico (salvo quando,
no aspecto formal, se exija a declaração expressa).
Marcos Bernardes de Mello identifica as declarações tácitas como
“manifestações de vontade”. Exteriorizações poderiam ser manifestações
(exteriorizações tácitas) e declarações (exteriorizações expressas).10

MELLO. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 12. ed., op. cit., p. 148-149.

MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes. Tratado de direito privado. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983.
t. III, p. 5-6.
10
MELLO. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 12. ed., op. cit., p. 141-142.

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Exercício tardio de situações jurídicas ativas. O silêncio como fato jurídico extintivo: renúncia tácita... 195

Paulo Mota Pinto vale-se da dicotomia declaração tácita/declaração


expressa no sentido que costuma ser atribuído à dicotomia manifestação/decla-
ração (como o próprio Marcos Bernardes de Mello), ressaltando que a diferença,
nesse particular, seria apenas terminológica.11 Nega o autor a doutrina dos
negócios sem declaração (os chamados negócios de vontade), mas, como ressalta,
adota um conceito amplo de declaração. Para ele, os casos apontados como
“atuações de vontade” seriam pressupostos fáticos de atos jurídicos em sentido
estrito ou seriam declarações táticas, como pressuposto do ato negocial.12
A controvérsia reside, portanto, em questões terminológicas, em razão de
adotar-se um conceito restrito ou amplo de declaração. Não devemos, aqui, per-
manecer nela. O que se deve atentar é o seguinte: compõem os substratos fáticos dos
negócios jurídicos não apenas as chamadas declarações expressas de vontade, mas também
as declarações tácitas/manifestações de vontade (e isso não mais se questiona, atualmente).
Adotando a concepção ampla de declaração de Paulo Mota Pinto, dis-
tinguem-se as suas modalidades (expressa ou tácita) em razão da configura-
ção de relação entre manifestante e manifestado, contrapondo a manifestação
por símbolo e por sinais.13 Segundo o autor:

O símbolo tem uma dimensão semântica constante, uma identidade objectiva,


conservando a sua base convencional nos diversos contextos em que insere. É, por
isso, menos ambíguo, menos equívoco, mesmo se o significado se precisa se precisa
definitivamente apenas na situação concreta. [...] o sinal não tem sequer uma relação
semântica constante, devendo a sua capacidade significativa inteiramente às circuns-
tâncias semânticas em que se insere. Ao sinal pode, por convenção, ser atribuído um
significado, sendo empregue para finalidades expressivas — ou melhor, como símbolo.
Normalmente, não consente, porém, ilações pré-estabelecidas, dependendo a relação
entre manifestante e manifestado totalmente das circunstâncias ambientais.14

Os fatos (da vida) são significantes. Estão inseridos no contexto lin-


guístico. Carece de utilidade pensar em um mundo pré-linguístico (na “coisa
em si”, sendo mesmo questionável que esta exista). A linguagem é o cami-
nho percorrido entre significante e significado. A língua, por exemplo, é uma
espécie de linguagem, mas não é a única.
Signos e sinais são significantes, cujos significados serão reconstruí-
dos no caso concreto. Distinguem-se, todavia, pela existência ou não de uma
relação semântica prévia, dentro de determinado “jogo de linguagem”. Quanto aos
símbolos, haveria uma função semântica preestabelecida (mas não definitiva); uma
concepção prévia convencional do seu significado que pode ser confirmada ou
infirmada no processo do compreender, no caso concreto. Em se tratando de sinais,
inexistiria uma relação semântica prévia, de forma que o seu significado, naquele
jogo de linguagem, será construído por força da “moldura das circunstâncias”.15
11
“Realmente, na doutrina que emprega a expressão ‘manifestação em sentido estrito’, nota-se frequentemente uma
coincidência entre a distinção declaração/manifestação e a separação declaração tácita/expressa — portanto, uma
simples transposição de designações” (PINTO, Paulo Mota. Declaração tácita e comportamento concludente no negócio
jurídico. Lisboa: Almedina, 1995. p. 452).
12
PINTO. Declaração tácita e comportamento concludente no negócio jurídico, op. cit., p. 543 et seq.
13
PINTO. Declaração tácita e comportamento concludente no negócio jurídico, op. cit., p. 515.
14
PINTO. Declaração tácita e comportamento concludente no negócio jurídico, op. cit., p. 516.
15
PINTO. Declaração tácita e comportamento concludente no negócio jurídico, op. cit., p. 517.

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196 Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim

Nesse contexto, se a vontade é exteriorizada por meio de símbolos,


cuida-se de declaração expressa; se por meio de sinais, declaração tácita.
Note-se que os conceitos de símbolos e sinais não são absolutos, mas relati-
vos. É bem possível que determinado fato seja símbolo em uma dada situação
e sinal em outra. O que se deve observar é a existência ou não de alguma
relação semântica preestabelecida. Apenas, no caso, será reconstruído o sig-
nificado do manifestante, por meio da interpretação.
Nesse sentido, por exemplo, como se verá, nem sempre o silêncio será
sinal (como poderia concluir-se, em um primeiro momento). Acaso lhe seja
atribuído um conteúdo significativo prévio, tratar-se-á de símbolo e, portanto,
de declaração expressa de vontade.
Não há relação necessária entre declaração expressa (simbólica) e a lín-
gua (verbal ou escrita). As declarações expressas podem ser gestuais, como
ocorre com a linguagem dos surdos-mudos e a comunicação em morse.16 De
outra parte, a exteriorização de vontade por meio de signos linguísticos não
será sempre declaração expressa.17
Em síntese, há declaração expressa quando o fato significante tem um
conteúdo semântico, naquele contexto de linguagem, preestabelecido. Há
declaração tácita, por sua vez, quando, inexistente (ou praticamente inexistente)
uma relação semântica antecedente, de forma que o juízo acerca de sua existên-
cia e de seu conteúdo depende de forma decisiva das circunstâncias do caso.
A noção de declaração tácita é uma evidente manifestação do pensa-
mento tipológico, ao qual se refere Karl Larenz, já que os tipos se concretizam
pela “imagem fenomênica global” decorrente do conjunto de notas distinti-
vas (os sinais) que podem estar presentes em graus distintos.18 Cuida-se da
noção de “sistema móvel”. Importa verificar se, globalmente, as circunstân-
cias fáticas conduzem à configuração de uma vontade exteriorizada.
Veja-se que as circunstâncias ambientais terão também espaço na inter-
pretação dos símbolos (da declaração expressa). A diferença está também,
pois, no grau de necessidade de sua análise.
Ainda algumas considerações.
Primeiro, para que componha o suporte fático de qualquer ato jurídico
em sentido amplo, deve-se verificar a consciência da exteriorização da von-
tade, quanto (i) à vontade em si mesma, ou seja, o conteúdo da vontade exte-
riorizada e (ii) a vontade de exteriorizar/declarar, expressa ou tacitamente.19
Se inexiste consciência, inexiste vontade exteriorizada, não se verifica a
suficiência do suporte fático do ato jurídico (em sentido lato). A consciência
é essência do próprio elemento nuclear fático, quer se trate de declaração
expressa, quer se trate de declaração tácita (ou manifestação).
16
PINTO. Declaração tácita e comportamento concludente no negócio jurídico, op. cit., p. 518.
17
“As palavras e outros símbolos só revelam na sua significação normal para a declaração expressa, pois em relação
à declaração tácita funcionam como mero sinal” (PINTO. Declaração tácita e comportamento concludente no negócio
jurídico, op. cit., p. 519).
18
LARENZ. Metodologia da ciência do direito, op. cit., p. 662.
19
Nesse sentido, Marcos Bernardes de Mello: “para compor o suporte fático suficiente de ato jurídico a exteriorização
da vontade há de ser consciente, de modo que aquele que a declara ou manifesta deve saber que a está declarando ou
manifestando com aquele sentido próprio” (MELLO. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 12. ed., op. cit., p. 141).

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Exercício tardio de situações jurídicas ativas. O silêncio como fato jurídico extintivo: renúncia tácita... 197

A inconsciência da vontade exteriorizada não se confunde com eventual


vício nela verificado. A inconsciência significa inexistência de exteriorização da
vontade e, consequentemente, não verificação da suficiência do suporte fático do
fato jurídico. Estamos, pois, em seu plano de existência. O vício na vontade exte-
riorizada, como o erro e o dolo, conduz à deficiência do suporte fático (suficien-
temente configurado). Estamos, no plano de validade, do ato jurídico em sentido
lato: o ato existe, mas é defeituoso, podendo ser decretada a sua invalidade.
Ressalte-se, ainda, que, quando se exige a consciência da vontade, não
se exige que a parte tenha ciência e a intenção de praticar determinado ato
jurídico. Por exemplo, quando alguém entra em um ônibus, certamente não
pensa tratar-se de um ato negocial (contrato de transporte), mas há a consciên-
cia de entrar no ônibus para ser transportado.20
Isso é muito importante notadamente quando se trata de verificar a cons-
ciência de uma declaração tácita de vontade. Não se exige a intenção de praticar
determinado ato jurídico, mas, sim, o conhecimento das circunstâncias fáticas
levadas em consideração para que se verifique a declaração (ou manifestação) e
o seu conteúdo. Quando se renuncia tacitamente a um direito, não se exige que
a parte conheça tratar-se de um negócio jurídico unilateral. A consciência da
vontade exteriorizada (por meio de declaração tácita) significa o conhecimento
das circunstâncias envolvidas, como a existência do direito e o seu não exer-
cício deliberadamente. Não se pode considerar que alguém que desconhecia
ser titular de um direito tenha exteriorizado vontade como elemento fático da
renúncia. O desconhecimento da titularidade do direito é circunstância que, no
caso, obstará a verificação da mencionada declaração de vontade.
Segundo, ser “expressa” ou “tácita” é uma questão de forma da exteriori-
zação (declaração em sentido lato) de vontade e, como afirma Marcos Bernardes
de Mello, é elemento completante do ato jurídico (em sentido lato). Vale dizer:
embora não se trate do seu cerne, cuida-se de elemento que o completa, sendo, pois,
essencial à suficiência do suporte fático concreto.21 Daí porque se há declaração
tácita, quando se exige declaração expressa, não há a formação do ato jurídico.

3.3 O silêncio como exteriorização de vontade, pressuposto


fático de negócios jurídicos
Costuma-se associar o silêncio à ausência de conduta.
Certamente que o silêncio da natureza assim o é, desde que se cuide
de fato independentemente do ser humano — e, portanto, sequer teria rele-
vância jurídica. Ocorre que, como aqui já se disse, carece de razão imaginar
fatos isolados da atividade humana e que sejam, pois, pré-linguísticos. Note-se
que, quando o silêncio da natureza é compartilhado pelo homem, há o silên-
cio humano. O silêncio humano é sempre conduta. Pode ser inconsciente ou
consciente. O silêncio de quem dorme ou de quem está em coma é uma con-
duta inconsciente. O silêncio consciente é exteriorização de vontade e, como
tal, pode ser relevante para as relações inter-humanas, o que justifica a sua
regulação pela comunidade jurídica.
20
MELLO. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 12. ed., op. cit., p. 143.
21
MELLO. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 12. ed., op. cit., p. 140.

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Etimologicamente, “silêncio” significa calar. Nesse contexto, o silêncio,


em si considerado, seria um ato negativo em relação ao falar, sendo, conse-
quentemente, a abstenção de falar. Em verdade, o silêncio — no sentido que
aqui se pretende referir — vai além da sua etimologia: mais do que um não
falar, significa um não se manifestar, um não agir.
Nesse sentido, segundo Miguel Maria de Serpa Lopes, se ação é “a
manifestação exterior de um ato de vontade”, a omissão é a sua antítese, “por
se tratar da ausência de um certo movimento corpóreo que se não realiza
certamente porque o indivíduo se recusa a levá-lo a efeito”.22 No seu sentido
objetivo, continua o autor, “a omissão, o silêncio, o ‘non fare’ correspondem
àquilo que da ação forma o momento material, ausência da atividade, da ati-
vidade que foi omitida”.23 Note-se que o autor se refere à “atividade” como
conduta positiva, e não como conduta em sentido lato.
Miguel Maria Serpa Lopes também acentua o valor sociológico do
silêncio: “agir ou não agir, uma vez que essa ação ou omissão, consciente-
mente levada a efeito, envolva interesses de mais de um indivíduo, deixa de
ser um ato indiferente ao ambiente social”.24
Em assim sendo, o silêncio como exteriorização da vontade humana
(fato da vida em sentido amplo) pode ser “recortado” da sucessividade das
relações do mundo para compor núcleo do suporte fático (abstrato) de normas
jurídicas. Em outras palavras, o silêncio consciente é exteriorização de vontade
e, como tal, pode compor o suporte fático de atos jurídicos em sentido amplo,
do qual são espécies os atos jurídicos em sentido estrito e o negócio jurídico.
Veja-se que, em alguns casos, apesar de configurar-se o silêncio (con-
duta humana), ele não será núcleo do suporte fático do fato jurídico (em sen-
tido amplo), mas, sim, conduta causal a uma determinada situação fática.
Cuida-se dos atos-fato jurídicos caducificantes, como a prescrição. Nesta, é
elemento do suporte fático a situação fática decorrente da inação do titular de
um direito durante certo lapso de tempo, sendo irrelevante o silêncio (conduta
anterior) como exteriorização da vontade. Veja-se: o silêncio não deixa de ser
conduta, nem exteriorização de vontade, mas ele não será elemento do suporte
fático, tal como ocorre com qualquer ato-fato jurídico — é o fato/evento resul-
tante da conduta voluntária que é apreendida pelo Direito.25
Mas, aqui, nos cabe analisar o silêncio como exteriorização da vontade valo-
rada pela comunidade jurídica e, portanto, previsto como elemento do suporte
fático de atos jurídicos em sentido lato. Nesse contexto, o silêncio pode configurar-se
como comportamento negocial e como comportamento não negocial.
22
LOPES, Miguel Maria Serpa de. O silêncio como manifestação de vontade. 3. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961. p. 136.
23
LOPES. O silêncio como manifestação de vontade, op. cit., p.137. Ressalta o autor que “no ponto de vista nitidamente
psicológico, a antítese desaparece, para se compreender ação positiva e negativa, dentro do mais dilatado conceito
de “ação”. O ato positivo, como o ato negativo, ambos constituem duas diversas atitudes exteriores de um fenômeno
psíquico, em si próprio conceitualmente único” (loc. cit.).
24
LOPES. O silêncio como manifestação de vontade, op. cit., p. 139-140.
25
Sobre os atos-fatos jurídicos, ensina Marcos Bernardes de Mello: “É evidente que a situação fática criada pela
conduta constitui uma mudança permanente no mundo, passando a integrá-la definitivamente sem que haja a
possibilidade de, simplesmente, ser desconsiderada como (como seria possível se se tratasse, exclusivamente, de
conduta). [...] Com esse tratamento, em coerência com a natureza das coisas, ressalta-se a conseqüência fática do
ato, o fato resultante, sem se dar maior significância à vontade de realizá-lo. A essa espécie Pontes de Miranda
denomina ato-fato jurídico, com o que procura destacar a relação essencial que existe entre o ato humano e o fato
de que decorre” (MELLO. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 12. ed., op. cit., p. 130).

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Exercício tardio de situações jurídicas ativas. O silêncio como fato jurídico extintivo: renúncia tácita... 199

Como comportamento não negocial, o silêncio pode ser elemento fático


de atos jurídicos em sentido estrito, lícitos ou ilícitos. Por exemplo, o crime
omissivo é ato jurídico ilícito em cujo suporte fático se encontra uma conduta
omissiva daquele que tinha obrigação de agir.
Como comportamento negocial, o silêncio é elemento do suporte fático
de negócios jurídicos, razão por que, como exteriorização de vontade, tam-
bém irá ser relevante no que concerne à escolha da categoria jurídica eficacial
e aos efeitos irradiados. Nesse sentido, Paulo Mota Pinto:

[...] silêncio pode ser meio para uma verdadeira declaração negocial — um sinal
declarativo ou “meio declarativo”. Tratar-se-á, então, de um comportamento
negocialmente eficaz, “modelador de efeitos” segundo o seu significado, e cuja
eficácia é apenas reconhecida pelo direito objectivo.26

De outra parte, o silêncio pode, no caso concreto, configurar-se como


declaração tácita (manifestação) de vontade ou declaração expressa de vontade.
Não há relação necessária entre silêncio e declaração tácita de vontade. Isso por-
que, como aqui já se disse, deve-se averiguar, no caso, a existência de um con-
teúdo semântico prévio atribuído à inação. Se existente, tratar-se-á de declaração
expressa de vontade. Imagine-se, por exemplo, que as partes convencionam que
o silêncio de uma delas significa a aceitação de uma proposta contratual ou que
se convenciona, em uma reunião de condomínio, que o ato de não levantar a
mão (silêncio em sentido amplo) importa votar pela não aprovação do que posto
em votação. Nesse sentido, mais uma vez, Paulo Mota Pinto:

[...] o silêncio pode ser equiparado por convenção das partes a um elemento de
uma linguagem. Nestes casos, a omissão poderá encontrar-se então numa rela-
ção directa com um significado, pelo que a resultante declaração será expressa,
para os efeitos em relação aos quais isso possa ser relevante.27

O silêncio é fato e, como tal, será objeto de interpretação para que se


construa o enunciado fático — substrato fático concreto de determinado fato
jurídico (em sentido lato). Vale dizer: a verificação do elemento concreto “decla-
ração de vontade” e o seu conteúdo será precedida pelo processo do com-
preender, quer se trate de declaração expressa, quer se trate de declaração
na primeira. O processo do compreender, entretanto, será distinto (i) quanto
à existência ou inexistência de um conteúdo semântico prévio e (ii) o grau
de relevância da consideração das demais circunstâncias ambientais. Aqui,
entra a noção de nexo de concludência em sentido estrito como critério de
interpretação para que se atribua ao silêncio o sentido de declaração tácita de
vontade. Retornaremos a este assunto ainda neste primeiro momento.
Sobre a interpretação da declaração silenciosa, Paulo Mota Pinto: “o
que se interpreta não é apenas uma omissão, e sim todo o comportamento
global da pessoa em causa”.28
26
PINTO. Declaração tácita e comportamento concludente no negócio jurídico, op. cit., p. 698.
27
PINTO. Declaração tácita e comportamento concludente no negócio jurídico, op. cit., p. 693.
28
PINTO. Declaração tácita e comportamento concludente no negócio jurídico, op. cit., p. 694.

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Uma última consideração.


Dispõe o art. 111 do Código Civil: “o silêncio importa anuência, quando
as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração
expressa de vontade”. De logo, pode-se afirmar que o mencionado artigo era
desnecessário. Não se precisa de texto expresso de lei para que se reconheça
que o silêncio pode ser exteriorização de vontade relevante juridicamente.
Ocorre que nem sempre o conteúdo desta vontade exteriorizada será
de concordância, anuência. A declaração silenciosa pode, por exemplo, ser
elemento fático da renúncia (negócio jurídico unilateral) e o seu conteúdo
será de abdicar de dada situação jurídica ativa.

3.4 O caso sob consulta. Configuração da renúncia tácita.


Comportamento negocial concludente
Estabelecidas as premissas a partir das quais o presente caso será pri-
meiramente analisado, vamos adiante.
Em setembro de 1984, a consulente (em verdade, a sua antecessora)
celebrou um contrato com a A. LTDA. (dita “contratada”), por meio do qual
se estabeleceu (i) que o transporte das mercadorias vendidas pela contratante
seria realizado pela contratada, salvo em caso de exigência do cliente em
sentido diverso e (ii) que a contratada seria responsável pelo perecimento
da mercadoria transportada, tendo como contraprestação o pagamento pela
contratante de 0,25% sobre o montante de mercadorias transportadas no mês.
O pagamento do mencionado valor deveria ser realizado até o dia 10 do mês
subsequente ao do transporte correspondente. É o que se depreende do ins-
trumento contratual de fls. 31-32.
Note-se que as partes não celebraram um típico contrato de transporte,
que é essencialmente um contrato bilateral oneroso, por meio do qual alguém
se obriga a transportar coisas ou pessoas mediante retribuição (contrapresta-
ção) — art. 730 do CC. Bilateral, porque há dependência recíproca entre as
situações jurídicas ativas (direitos) e passivas (deveres/obrigações).
É certo que, em se tratando de contrato de transporte de coisas, a obri-
gação de pagar o frete possa ser, de comum acordo, transferida ao destinatá-
rio.29 Ocorre que não menos certo é que a exigência do “comum acordo” pres-
supõe a vontade exteriorizada, de forma que não se admite um contrato por
meio do qual se obriga genericamente terceiros sequer ainda conhecidos.
Se considerássemos o contrato em análise como um contrato de trans-
porte, deveríamos também considerar que cada transporte executado seria
precedido por uma novação subjetiva da obrigação de pagar o frete (mediante
o consentimento do destinatário), o que seria um absurdo. Ora, os contratos
são fontes de obrigações que são irradiadas para que sejam cumpridas. Vale
dizer: é o adimplemento o modo natural de extinção das obrigações, e não a
novação. Pensar em um contrato que tem como fim a extinção de obrigações
pela novação é contrário à lógica do nosso sistema.
Daí porque é mais coerente considerar que, no caso em análise, o con-
trato de transporte seria celebrado casuisticamente entre transportador e
29
GOMES, Orlando. Contratos. 26. ed. Rio de Janeiro: Forense: 2007. p. 378.

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destinatário, cabendo a este o pagamento do frete. Veja-se que (i) ao cliente,


como expressão da autonomia da vontade, caberia expressar vontade no sen-
tido de contratar ou não contratar (esta declaração poderia ser tácita); (ii) o
cliente poderia celebrar contrato com outra transportadora; (iii) destinatário
e transportador poderiam proceder à “negociação de fretes” (cláusula III do
instrumento contratual).
Poder-se-ia, aqui, sustentar que a transportadora contratada deveria
obedecer rigorosamente aos preços estipulados pela contratante (cláusula III
do contrato). Ocorre que, na medida em que essa mesma cláusula prevê a
possibilidade de “negociação” do preço entre cliente e transportadora, a pro-
posição contratual inicial deixa de ser em certa medida eficaz. Vale dizer: dela
não decorria a obrigação de adotar o preço estipulado pela consulente, já que
lhe era possível pactuar preço distinto.
Ao que parece, a primeira proposição contratual aqui referida tinha
como efeito o estabelecimento de “preços máximos”, de forma que se teria
obrigado a contratante a não propor valor superior a título de frete aos clien-
tes, como forma, inclusive, de salvaguardar uma boa imagem entre a consu-
lente e seus clientes. É nesse sentido a eficácia da primeira proposição decor-
rente da cláusula III do contrato. Esta obrigação de não fazer, sim, decorria do
contrato de fls. 31-32, mas ela não se referia a qualquer contrato de transporte
específico já celebrado — o que parece ser intuitivo. Em se tratando de obriga-
ção de não propor preço superior, pressupunha futura proposta e, portanto,
eventual, futuro e novo negócio jurídico bilateral.
Imagine-se, por exemplo, que o destinatário — conhecendo o “teto”
estabelecido — propusesse o pagamento de valor a ele superior (sabemos que
isso, na prática, seria difícil de ocorrer). Poder-se-ia dizer que não poderia a
transportadora aceitar? Acreditamos que não.
Ainda que se considere, eventualmente, que, no momento da formação
do contrato de transporte (casuisticamente, e não o contrato de fls. 31-32), seria
relevante a vontade exteriorizada da consulente (também quanto à determina-
ção do conteúdo do seu efeito), isso em nada interfere as conclusões a que che-
gamos: (i) o contrato celebrado em 1984 não era um contrato de transporte, vale
dizer, o seu objeto nuclear não era o transporte de mercadorias em si; (ii) este
contrato não se confunde com os pactos celebrados antes de cada transporte
entre transportadora e cliente (ou entre transportadora, expedidora e cliente).
Pois bem.
O contrato celebrado entre a A. S/A e A. LTDA. foi contrato atípico
misto, composto por dois núcleos.
No primeiro, irradiavam-se, como obrigações respectivas, de um lado
a obrigação de a A. LTDA. estar disponível para a realização de dado trans-
porte, acaso assim o cliente o desejasse, segundo cronograma encaminhado
pela A. S/A; do outro, a obrigação de a A. S/A não sugerir ao cliente qualquer
outra transportadora (obrigação de não fazer) — em outras palavras, se o
cliente (a quem caberia pagar o frete) não se opusesse, o transporte deveria
ser feito pela contratada. Estas seriam as obrigações principais deste núcleo

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do contrato. Como visto, havia também a obrigação acessória da contratada


de não propor preço além daquele estipulado pela contratante.
No outro núcleo, irradiaram-se as obrigações de a contratada suportar
qualquer dano ocorrido na mercadoria durante o transporte e de a contratante
pagar o equivalente a 0,25% do valor da mercadoria transportada.
De logo, cabe ressalvar que sequer seria necessário que as partes pac-
tuassem que a transportada seria responsável (objetivamente) por suprir
eventuais danos na mercadoria transportada. Cuida-se de efeito legalmente
preestabelecido. O art. 750 do Código Civil prevê que a responsabilidade do
transportador tem seu termo inicial no momento que a coisa lhe é entregue e
o seu termo final no momento de entrega ao destinatário ou de seu depósito
em juízo, se este não for encontrado.
Demais disso, se cabia ao cliente pagar o frete do transporte, cuidava-se
a venda (na relação vendedora/cliente) de uma venda “free on board” (cláu-
sula “FOB”), razão por que a responsabilidade da vendedora existiria até o
momento de entrega da mercadoria à transportadora. Assim, nem mesmo no
que concerne à relação com o cliente, conseguimos imaginar uma hipótese de
responsabilidade solidária entre vendedora e transportadora.
Nada obstante, é certo que a finalidade da cláusula quarta do contrato
pressupunha uma obrigação solidária entre vendedora e transportadora em
face do cliente para que, uma vez verificado o dano, fosse ele integralmente
indenizado pela transportadora, eximindo-se a vendedora de qualquer even-
tual dever de indenizar, no sentido lá constante.
Ainda que se admita que existia a obrigação da consulente de pagar o
equivalente a 0,25% sobre o valor da mercadoria transportada e o correspectivo
direito da parte adversa de receber esta quantia, ter-se-ia formado, no caso, a
renúncia (negócio jurídico unilateral) tendo em seu suporte fático concreto a
exteriorização (declaração) tácita de vontade do titular do direito renunciado.
A renúncia é um negócio jurídico unilateral por meio do qual se extin-
gue uma situação jurídica ativa titularizada pelo renunciante. Como negócio
jurídico, a vontade exteriorizada não apenas compõe o suporte fático, mas é
relevante ao menos para a escolha da categoria jurídica. Como unilateral, não
provoca a correspectividade de efeitos jurídicos.
É consequência jurídica da renúncia a extinção de situação jurídica
prévia, e não uma obrigação de renunciar. Pode-se, inclusive, dizer que a
vontade exteriorizada é, nesse sentido, performativa. Se houve vontade exte-
riorizada de renunciar, incidiu a norma jurídica, irradiou-se o seu respectivo
efeito: a extinção da situação jurídica.
É pressuposto da renúncia a exteriorização de vontade, que pode ser
expressa ou tácita. Como regra, não se veda que uma declaração tácita com-
ponha o substrato fático (concreto) do referido negócio. O ordenamento,
inclusive, em algumas hipóteses, prevê expressamente a sua admissibilidade,
tal como ocorre com a renúncia à prescrição (art. 191 do Código Civil).
Como aqui já se disse, a existência da declaração negocial tácita e o seu
conteúdo é decorrente da interpretação dos fatos.30 Assim como ocorre na
30
Nesse sentido, PINTO. Declaração tácita e comportamento concludente no negócio jurídico, op. cit., p. 748.

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Exercício tardio de situações jurídicas ativas. O silêncio como fato jurídico extintivo: renúncia tácita... 203

“expressa”, afirmar a existência de uma declaração de vontade negocial é um


julgamento (valorativo) para que seja construído o seu enunciado no jogo de
linguagem jurídica, a partir de seus sentidos juridicamente possíveis.
A declaração expressa decorre da interpretação de símbolos (de uma lin-
guagem convencional). Há aí uma relação entre significante e significado, ambos
compondo a noção de signo. Sendo certo que este caminho entre significante e sig-
nificado será percorrido no caso concreto, por meio da interpretação, não se pode
negar a existência de um conteúdo semântico inerente ao próprio significante.
Na declaração tácita, não há símbolos de uma linguagem convencio-
nal. Há sinais que, globalmente considerados, conduzem à conclusão de uma
declaração de vontade. Esse significado é decorrente de um juízo de inferên-
cia a partir das circunstâncias concretas. Certamente, este juízo de ilação não
pode ser ilimitado.
A partir disso entra a noção de “concludência” — que “significa que se
pode tirar uma conclusão a partir de algo”.31 Esta apresenta duas facetas: (i)
a concludência pode ser entendida em sentido amplo como característica em
certa medida de toda declaração negocial, que seria sempre uma conclusão
acerca do significado declarativo a partir de um determinado comportamento
e (ii) em sentido estrito, apenas para as declarações tácitas, como um limite
objetivo ao juízo de inferência dos sinais para concluir a existência e o con-
teúdo de uma declaração de vontade.32
Nesse sentido, Paulo Mota Pinto:

[...] a ilação é aqui realizada a partir dos chamados “factos concludentes”. Estes são
aqueles factos a partir dos quais, de acordo com o critério interpretativo, se pode
concluir uma declaração tácita — podem, portanto, ser todos os que se devem
considerar do ponto de vista hermeneuticamente relevante, sejam eles positivos ou
negativos, desde que se sirvam para constituir uma “impressão do destinatário”
no sentido da existência de uma declaração tácita e que não se trate de símbolos
integrantes de uma linguagem (pois então a declaração seria expressa).33

Veja-se que os fatos concludentes — a partir dos quais se pode concluir


a existência e o conteúdo da vontade exteriorizada — podem ser positivos e
negativos. Afinal, como já visto, o silêncio (em sentido amplo) pode ser juri-
dicamente relevante.
Entre o comportamento concludente no contexto concreto e a decla-
ração tácita, há, pois, um nexo de concludência, decorrente de um juízo
interpretativo, em que são relevantes “factores de tipicidade social e factores
jurídicos”.34 No juízo de concludência, são relevantes critérios gerais práticos,
como a ideia de incompatibilidade do comportamento com significados con-
trários à declaração, sempre à luz do contexto negocial.
O juízo de concludência é norteado também por critérios normativos,
por meio dos quais se adota um padrão normativo de conduta para avaliar e
31
PINTO. Declaração tácita e comportamento concludente no negócio jurídico, op. cit., p. 752.
32
PINTO. Declaração tácita e comportamento concludente no negócio jurídico, op. cit., p. 749-750.
33
PINTO. Declaração tácita e comportamento concludente no negócio jurídico, op. cit., p. 752.
34
PINTO. Declaração tácita e comportamento concludente no negócio jurídico, op. cit., p. 768.

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compreender o comportamento do agente.35 A adoção deste padrão normativo


de conduta como critério da interpretação é manifestação da função interpre-
tativa do princípio da boa-fé (boa-fé como norma, e não como fato).36
Nesse contexto, tem-se a “imagem juridicamente relevante” daquilo que
poderia ter sido compreendido pelo destinatário. Note-se que o juízo de con-
cludência não é um juízo de certeza acerca da intenção daquele que declara —
o que também não se exige no que concerne às declarações expressas —, mas,
sim, de alto grau de probabilidade da exteriorização da vontade.37
Então.
No caso sob consulta, as circunstâncias concretas evidenciam um nexo
de concludência que permite interpretar o comportamento da A. LTDA. (e
sua sucessora) como declaração tácita de vontade para compor o substrato
fático concreto da renúncia da situação jurídica ativa (direito) material.
Com efeito, da cláusula quarta do contrato em análise, ter-se-ia
irradiado o direito da contratada de receber 0,25% do preço da mercadoria
transportada, que se tornaria exigível quando da ocorrência do transporte. A
mencionada cláusula cuidava-se, pois, de negócio jurídico submetido a uma
condição suspensiva: a realização do transporte. Uma vez ocorrido o trans-
porte, irradiavam-se os seus efeitos próprios, cujo conteúdo seria estruturado
pelo direito de receber a quantia referida e seu respectivo dever. Também
com a realização do transporte, o direito seria exigível e, portanto, haveria a
pretensão material. Note-se que a pretensão é o direito exigível. A exigibili-
dade do direito subjetivo é um plus à sua existência.
Previa o parágrafo único da referida cláusula que o valor poderia ser
pago até o dia 10 do mês subsequente ao mês de realização do transporte. A
partir da referida data, portanto, não se caracterizaria apenas a exigibilidade
do direito (pretensão material), como também a sua impositividade (ação em
sentido material), quando verificado o descumprimento da obrigação.
Como se depreende da própria planilha juntada pela autora aos autos
(fls. 460-570), de setembro de 1984 até maio de 1993, a A. LTDA. realizou men-
salmente transporte de mercadorias vendidas pela consulente, irradiando-se,
pois, a cada mês o direito de receber o montante referente a 0,25% do valor
da mercadoria transportada. Direito exigível que se tornava imperativo no
mês seguinte.
Assim, com o transporte em setembro de 1984, tinha o direito de
receber o valor que lhe era devido, podia exigir o adimplemento da obrigação
correspectiva e, no mês seguinte, já podia agir.
Mas nada fez.

35
Segundo Paulo Mota Pinto: “[...] é necessário, por um lado, adoptar um padrão normativo de conduta para
a avaliar e compreender o comportamento do agente, e, por outro, poder pressupor que o agente, com o seu
comportamento, não está concretamente a desviar-se, a colocar-se à margem daquele padrão” (PINTO. Declaração
tácita e comportamento concludente no negócio jurídico, op. cit., p. 783).
36
Sobre a função interpretativa da boa-fé objetiva, aduz Nelson Rosenvald: “O recurso interpretativo ao princípio da
boa-fé será a forma pela qual o operador do direito preservará a finalidade econômico-social do negócio jurídico
e determinará o sentido do contrato em toda a sua trajetória, preservando a relação cooperativa mesmo que a
operação hermenêutica contrarie a vontade contratual” (ROSENVALD, Nelson. Dignidade humana e boa-fé no Código
Civil. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 90).
37
PINTO. Declaração tácita e comportamento concludente no negócio jurídico, op. cit., p. 777

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Exercício tardio de situações jurídicas ativas. O silêncio como fato jurídico extintivo: renúncia tácita... 205

O mesmo ocorreu com os direitos de receber os valores em razão dos


transportes realizado em outubro de 1984, em novembro de 1984, em dezem-
bro de 1984, em janeiro de 1985, em fevereiro de 1985 e nos meses seguintes
até maio de 1993.
E mais.
Não apenas no mês de dezembro de 1984, por exemplo, não exerceu o
seu direito de receber a quantia que lhe seria devida por força do transporte
realizado naquele mês, como continuou a não exercer os direitos de receber
as quantias que lhe eram devidas em razão dos transportes realizados nos
meses posteriores. E este raciocínio deve ser feito no que concerne a todos os
meses, durante todo o período em que a relação contratual existiu, de forma
que, em junho de 1993, continuava a não exercer as muitas situações jurídicas
ativas de que supostamente seria titular.
Mas não foi só. Durante mais sete anos (e, aí, não mais existia relação
contratual), permaneceu inerte, silente.
É certo que o silêncio da transportadora com relação às situações jurí-
dicas ativas das quais seria titular é conduta que, considerando o “quadro de
circunstâncias do caso”, significa declaração tácita de vontade de renunciá-las.
Outro significado seria incompatível com o próprio comportamento e seu
contexto, principalmente levando-se em consideração o tipo de negócio e
porte das empresas envolvidas.
A própria autora alega, na peça inicial, que “a parceria estabelecida entre
as partes vigorou por quase nove anos, em perfeita harmonia, com a Autora cum-
prindo corretamente e com seriedade suas obrigações” (fl. 03). E, em nenhum
momento, noticia que tenha praticado qualquer ato no intuito de exercer os direi-
tos dos quais hoje alega ser titular. Houve o completo silêncio da transportadora
durante toda a relação contratual, que se deu em “perfeita harmonia”. Nada
disse, nem nada fez, porque não mais tinha a intenção de dizer ou de fazer.
Considerando, inclusive, que “o transporte realizado pela Autora à Ré
correspondia a (sic) maior parte de seu faturamento bruto” (fl. 03), o seu silêncio
significou a exteriorização da vontade de renunciar às situações jurídicas con-
cernentes à cláusula quarta do contrato em questão. Foi, por isso, que nada fez a
autora nos sete anos que seguiram à ruptura contratual: porque sabia que o seu
silêncio nada mais poderia significar senão a vontade de não exercer os direitos.
E, aqui, não cabe a alegação de que o silêncio da transportadora se
justificaria por receio de ruptura contratual. Primeiro, porque se cuidava de
relação contratual estabelecida entre partes materialmente iguais. Não se
caracterizava qualquer espécie de hipossuficiência. Eram duas sociedades
empresárias economicamente estáveis e idôneas no mercado. Segundo, por-
que, mesmo depois de rompida a relação contratual, o silêncio permaneceu.
Como se vê, considerando as circunstâncias do caso, configura-se o
nexo de concludência entre o comportamento omissivo da A. LTDA. e sua
sucessora e a declaração tácita de vontade para compor o suporte fático da
renúncia das situações ativas das quais seria titular. Outro significado seria
contrário, incompatível, incoerente ao próprio comportamento.

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E não apenas os critérios práticos nos conduzem a este juízo de con-


cludência, mas também os critérios normativos, notadamente a incidência do
princípio da boa-fé, em sua função interpretativa. O comportamento omissivo
da parte só pode ser compreendido à luz do padrão de conduta de eticidade
imposto nas relações inter-humanas.
Nas dinâmicas relações contratuais — que são espécies de processo —,
exige-se das partes postura cooperativa para o cumprimento das obrigações.
Assim, não seria compatível com este padrão interpretar o silêncio da parte
como vontade de exercer um direito, sendo-lhe que inexistia qualquer óbice
ao seu exercício. E mais. Outra não poderia ser a interpretação dada pela con-
sulente, destinatária da declaração, ao silêncio da outra parte.
Configurado o comportamento concludente negocial, presente o elemento
exteriorização de vontade, formaram-se os negócios jurídicos de renúncia de
todas as situações jurídicas titularizadas pela autora (ou suas antecedentes).
A extinção das situações jurídicas, nesse caso, decorreu de negócios jurídicos
unilaterais, em que se fizeram presentes exteriorizações de vontade.
Cabem, aqui, algumas distinções.
Não se configurou hipótese de novação tácita, mas, sim, de renúncia tácita.
A novação é um modo de extinção de situações jurídicas (ativa e passiva) por
força da criação de novas situações jurídicas, destinadas a substituí-las. A obri-
gação é extinta porque uma nova foi criada. São pressupostos da novação: (i)
a existência de uma obrigação; (ii) a constituição de uma nova obrigação para
que a outra seja extinta; (iii) o animus novandi.38 Na renúncia tácita, a situação
jurídica ativa (direito/pretensão/ação) e sua correspectiva situação passiva
(dever/obrigação) extinguem-se por força do negócio jurídico unilateral, e não
da irradiação de novas situações jurídicas. No caso dos autos, a extinção dos
direitos e suas correspectivas obrigações da transportadora não decorreram da
criação de novas situações jurídicas para substituí-las. A extinção foi decorrente
de negócio jurídico unilateral com exteriorização da vontade de abdicar. Não
havia o animus de novar, mas, sim, o animus (exteriorizado) de renunciar.
A renúncia também não se confunde com a prescrição ou a decadência.
Já se chegou a afirmar que, com a prescrição ou a decadência, haveria renún-
cia tácita daquele que não exerceu o direito durante certo lapso de tempo. A
prescrição é fato jurídico em sentido lato que tem como pressuposto o não
exercício de um direito a uma prestação por um certo lapso de tempo. Sua
consequência própria é encobrir a eficácia do direito não exercido (a preten-
são) — o direito não se extingue. A decadência, por sua vez, é fato jurídico
que tem como pressuposto o não exercício de um direito potestativo durante
certo lapso de tempo. Os conceitos de pretensão e ação em sentido material
não se referem aos direitos potestativos, mas apenas aos direitos a uma pres-
tação. Por força da decadência, extingue-se o direito potestativo (diferente-
mente do que ocorre com a prescrição). Em ambos, decadência e prescrição,
apreende-se a situação fática decorrente da conduta humana omissiva, e não
a própria conduta. São, portanto, atos-fatos jurídicos, que não se sujeitam ao
38
GOMES, Orlando. Obrigações. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 163.

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juízo de invalidade. Aqui, é irrelevante a vontade exteriorizada do sujeito; o


pressuposto é a situação fática que lhe é decorrente.
A renúncia é um negócio jurídico (e não um ato-fato jurídico), que tem
como cerne do seu suporte fático a vontade exteriorizada (tácita ou expressa),
sendo esta vontade também relevante no plano de eficácia do ato. Aqui, a von-
tade exteriorizada é essencial para a formação do ato, que se sujeita ao plano
de validade, acaso se trate de exteriorização defeituosa de vontade. A extinção
do direito decorre de um negócio jurídico, e não de um ato-fato jurídico. Não
se pode, portanto, realizar qualquer relação entre o comportamento negocial
elemento da renúncia com eventuais prazos prescricionais ou decadenciais.
A renúncia tácita, enfim, não se confunde com a incidência do princípio
da boa-fé, que pode irradiar, dentre outras consequências, a supressio. Nesta,
tem-se a extinção de uma situação jurídica ativa porque o seu titular não a
exerceu por tamanho lapso de tempo que criou expectativa legítima de que
ela não mais seria exercida. Cuida-se da noção de boa-fé objetiva (norma),
que não se confunde com a boa-fé subjetiva (fato). Em se tratando de inci-
dência do princípio da boa-fé, é irrelevante a vontade do agente não atuante.
Tutela-se a situação de confiança da outra parte.
Enquanto na renúncia tácita a extinção do direito decorre da vontade
exteriorizada da parte; na supressio, independe-se totalmente dela. A conse-
quência pode ser, no caso concreto, a mesma, mas a sua causa é distinta. Na
renúncia tácita, deve-se averiguar se houve ou não a declaração de vontade
de quem não exerceu o direito, por meio de um juízo de concludência, a
partir das circunstâncias concretas. Na supressio, deve-se averiguar se restou
configurada a situação de confiança da outra parte, independentemente de
qualquer elemento subjetivo (exteriorizado ou não) das partes. Voltaremos a
esta distinção mais adiante.
No caso em análise, como se demonstrou, o silêncio da A. LTDA. deve ser
interpretado como declaração tácita de vontade de renunciar à titularidade das situa-
ções jurídicas eventualmente decorrentes da cláusula quarta do contrato celebrado em
1984. Outro significado seria incompatível com o comportamento da parte, com as cir-
cunstâncias concretas, com o padrão de conduta contratual que deve nortear o processo
de compreensão e com a legítima possível interpretação do destinatário da declaração.
Até aqui, analisamos o caso à luz da vontade exteriorizada daquele que
adotou o comportamento omissivo.
Ocorre que, sob enfoque diverso, é possível analisar o caso à luz da
outra parte, a consulente, para que se verifique se restou ou não configurada
a sua situação de confiança.
É o que se passa a fazer a partir de agora.

4 Segundo momento: análise do caso sob o enfoque da situação


da confiança da consulente
4.1 A incidência do princípio da boa-fé nas relações contratuais
A noção jurídica da boa-fé reflete, entre nós, duas acepções — uma
subjetiva, outra objetiva — que são comunicáveis entre si. A boa-fé subjetiva

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208 Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim

(“Gutten Glauben”) traduz o estado psicológico de crença do indivíduo


na legitimidade da situação fática que lhe é apresentada. A boa-fé objetiva
(“Treu und Glauben”) é norma (princípio) de conduta, em consonância com
os padrões éticos consagrados em dado tempo e espaço. Vale dizer: a boa-fé
subjetiva é pressuposto fático; a boa-fé objetiva é norma. Por isso, inclusive, é
pleonástico referir-se ao “princípio da boa-fé objetiva”. Não existe um princí-
pio da boa-fé subjetiva.
Nada obstante a sua indeterminação semântica,39 Menezes Cordeiro
acentua a duplicidade intrínseca do conteúdo da boa-fé objetiva, em sua deli-
mitação positiva, composta pelos princípios da confiança e da materialidade
da regulação jurídica.40 Assim, o princípio da confiança é parte do conteúdo
substancial da boa-fé e legitimaria o reconhecimento e a tutela da situação
“em que uma pessoa adere, em termos de actividade ou de crença, a certas
representações, passadas, presentes ou futuras, que tenha por efectivas”.41
Como bem observa Anderson Schreiber, a valorização jurídica contem-
porânea da confiança é expressão da solidarização social humanitária. Após
a concepção liberal oitocentista — consagrando a máxima relevância à von-
tade individual — e a posterior fragilização do ser humano no século XX, a
racionalidade contemporânea buscou a proteção da dignidade humana, não
mais sob a ótica individualista liberal, e sim à luz da noção de solidariedade.
Não se trata, porém, de uma solidariedade coletivista, mas humanitária, já
que tem como fim o desenvolvimento da personalidade dos indivíduos, con-
textualizados no grupo, e não deste em si mesmo.42 A racionalidade jurídica
solidária decorre da própria pluralidade social e jurídica, não aceitando a
concepção de um indivíduo descontextualizado.43
Consagrou-se, então, o princípio geral de cooperação e lealdade
recíproca entre as partes, em decorrência na nova perspectiva da dignidade
humana — informada pela solidariedade —, na qual cada indivíduo é res-
ponsável pela conservação da dignidade do outro, impondo-se “sobre todos
o dever de não se comportar de forma lesiva aos interesses e expectativas
legítimas despertadas no outro”.44
A boa-fé objetiva consagrou-se inicialmente no âmbito do direito civil,
notadamente no direito contratual, posteriormente ultrapassando os seus
limites para alcançar os demais ramos do direito, como o direito processual
e o direito administrativo. A boa-fé objetiva é noção do novo paradigma do
direito obrigacional em que se supera o paradigma tradicional, fundado
exclusivamente na valorização da vontade humana, para sublinhar o caráter
dinâmico e processual da relação obrigacional (obrigação como processo).
39
Sobre a indeterminação semântica do conteúdo da boa-fé, Nelson Rosenvald: “A boa-fé é, portanto, adaptável e
proteiforme, uma vez que o seu conteúdo será inferido por juízos valorativos animados pelo tempo, espaços e
pessoas que figuram na relação. Esse juízo parte da aferição do setor social a que correspondem os participantes
da relação, os seus usos e concepções cristalizados no tráfico jurídico. Com base nessas referências, será possível
verificar a compatibilidade entre a atuação humana e concreta e as supremas exigências de justiça” (ROSENVALD,
Nelson. Dignidade humana e boa-fé no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 82).
40
CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2001. p. 1234 et seq.
41
CORDEIRO. Da boa-fé no direito civil, op. cit., p. 1234.
42
SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium.
Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 39-55.
43
ROSENVALD. Dignidade humana e boa-fé no Código Civil, op. cit., p. 174.
44
SCHREIBER. A proibição de comportamento contraditório, op. cit., p. 47-56 e 89.

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Exercício tardio de situações jurídicas ativas. O silêncio como fato jurídico extintivo: renúncia tácita... 209

Pois bem.
A boa-fé objetiva é princípio cuja incidência faz irradiar situações jurí-
dicas (em sentido lato), dentre as quais o dever de não comportar de forma
contraditória (a proibição do venire contra factum proprium) Segundo Anderson
Schreiber, não se busca manter a coerência em si, mas notadamente proteger
a situação de confiança despertada no outro.

De fato, a proibição de comportamento contraditório não tem por fim a manuten-


ção de coerência por si só, mas afigura-se razoável apenas quando e na medida
em que a incoerência, a contradição aos próprios atos, possa violar expectativas
despertadas em outrem e assim causar-lhes prejuízo. Mais que contra a simples
coerência, atenta o venire contra factum proprium à confiança despertada na outra
parte, ou em terceiros, de que o sentido objetivo daquele comportamento inicial
seria mantido, e não contrariado. Ausentes tais expectativas, ausente tal atentado
à legítima confiança capaz de gerar prejuízo a outrem, não há razão para que se
imponha a quem quer que seja coerência com um comportamento anterior.45

Vale dizer: a incoerência de comportamento ganha relevância jurídica


quando ofende expectativas legítimas criadas em outrem por força da con-
duta anterior.
A boa-fé objetiva é princípio e, como tal, norma imediatamente finalís-
tica, em que se estabelece a tutela da confiança como componente do estado
de coisas a ser atingido. Diferentemente das regras — que são normas ime-
diatamente descritivas da conduta a ser adotada —, dos princípios decorre
o dever de adotar comportamento necessário para a realização do estado de
coisas.46 Daí porque o “não comportar-se contraditoriamente” será juridica-
mente relevante a partir do juízo de correlação entre os seus efeitos e o estado
de coisas posto como fim (em que se encontra a tutela da confiança). Note-se,
inclusive, que a incoerência em si é admitida em nosso ordenamento (em
alguns casos), como nos casos de revogação da vontade exteriorizada.
Como pressupostos da proibição do comportamento contraditório, há
duas condutas praticadas pelo sujeito que são, se isoladamente consideradas,
em princípio, lícitas. A ilicitude decorre da violação ao princípio da boa-fé
quando se frustram as expectativas legítimas criadas em função do compor-
tamento anterior (o factum proprium).
O factum proprium não é em princípio um comportamento vinculante
(vale dizer, não tem, inicialmente, relevância jurídica). Se já era vinculante,
a incoerência posterior estará no âmbito do descumprimento da obrigação
irradiada, independentemente da tutela da confiança da outra parte. O factum
proprium é (inicialmente) não vinculante; “passa a ser vinculante apenas se e
na medida em que gera uma confiança legítima na sua conservação”.47
Nesse contexto, tem-se também a noção de suppressio como situação
jurídica decorrente da incidência do princípio da boa-fé.
45
SCHREIBER. A proibição de comportamento contraditório, op. cit., p. 90.
46
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 10. ed. São Paulo: Malheiros,
2009. p. 71.
47
SCHREIBER. A proibição de comportamento contraditório, op. cit., p. 136.

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210 Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim

A supressio é a perda de uma situação jurídica de vantagem, pelo não


exercício em lapso de tempo tal que gere no sujeito passivo a expectativa
legítima de que a situação jurídica não seria mais exercida;48 o exercício tardio
seria contrário à boa-fé49 e abusivo. A suppressio é efeito jurídico cujo fato jurí-
dico correspondente tem como pressuposto o não exercício de um direito e a
situação de confiança da outra parte. Não se exige qualquer elemento subje-
tivo do sujeito inerte. Tutela-se a confiança do outro. A surrectio é exatamente
a situação jurídica ativa, que surge para o antigo sujeito passivo, de não mais
submeter-se à antiga posição de vantagem pertencente ao credor omisso.
A supressio nasceu na jurisprudência alemã, a partir da aplicação da
cláusula geral de boa-fé prevista no §242 do BGB. Em alemão, denomina-se
Verwirkung. Supressio é a designação sugerida por Menezes Cordeiro, de modo
a evitar confusão com institutos semelhantes como a caducidade, preclusão,
prescrição, decadência, renúncia etc.50
A consagração dogmática da supressio deu-se por ocasião dos proble-
mas econômicos derivados da primeira grande guerra, sobretudo a inflação.
Com aumentos imprevisíveis de preço e as dificuldades na realização de cer-
tos fornecimentos, o “exercício retardado de alguns direitos levava a situa-
ções de desequilíbrio inadmissível entre as partes”.51 Ao lado disso, havia o
direito à correção monetária, construção jurisprudencial, hoje consagrada em
lei. Esse direito serve, essencialmente, à proteção do credor, como homena-
gem à boa-fé, que requer, “pela equivalência das prestações e pelo equilíbrio
das situações das partes, que se proceda a reajustamentos destinados a com-
pensar a depreciação monetária”.52 A supressio serve como um “contrapeso
dessa proteção”: “a mesma boa fé exige que as pretensões de reajustamento,
quando caibam, sejam exercidas num prazo razoável, sem o que atingiriam
montantes com que o devedor não poderia contar”.53
É pressuposto da suppressio um comportamento inicial omissivo que,
em si, não seria ilícito. Aqui, o factum proprium seria uma conduta silenciosa
(um não fazer). O que é apreendido juridicamente, entretanto, não é a con-
duta em si, mas a sua situação fática decorrente (a imagem de não exercício)
que legitima a situação de confiança do outro. Esta imagem de não exercício
pressupõe o tempo. Nesse sentido Antônio Menezes Cordeiro:

A não actuação de um direito subjetivo é, pois, facto próprio do seu titular. A


realidade social da suppressio, que o direito procura orientar, está na ruptura
das expectativas de continuidade da auto-apresentação praticada pela pessoa
que, tendo criado, no espaço jurídico, uma imagem de não exercício, rompe,
de súbito, o estado gerado.54
48
“la giustificata aspettativa che il diritto stesso non sarebbe più stato fatto valere” (RANIERI, Filippo. Rinuncia tacita
e Verwirkung. Padova: CEDAM, 1971. p. 1).
49
CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no direito civil. 2. reimp. Coimbra: Almedina, 2001.
p. 797.
50
CORDEIRO. Da boa-fé no direito civil, op. cit., 2001, p. 797.
51
CORDEIRO. Da boa-fé no direito civil, op. cit., 2001, p. 801. Sobre a evolução da Verwirkung, também, RANIERI,
Filippo. Rinuncia tacita e Verwirkung, op. cit., p. 14 et seq.
52
CORDEIRO. Da boa-fé no direito civil, op. cit., 2001, p. 801.
53
CORDEIRO. Da boa-fé no direito civil, op. cit., 2001, p. 802.
54
CORDEIRO. Da boa-fé no direito civil, op. cit., 2001, p. 813.

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Exercício tardio de situações jurídicas ativas. O silêncio como fato jurídico extintivo: renúncia tácita... 211

E conclui o autor: “apenas pela sua continuidade pode, o não exercício,


suscitar as expectativas sociais de que essa auto-representação se mantém. O
que é dizer: o decurso do tempo é a expressão da inactividade traduzindo,
como tal, o factum proprium”.55

4.2 O caso sob consulta. A suppressio. A situação de confiança


da consulente
No caso dos autos, o contrato foi celebrado em 1984 e, como visto, des-
de então, mensalmente, nascia uma situação jurídica titularizada pela con-
tratada (A. LTDA.) de receber o equivalente a 0,25% do valor da mercadoria
naquele mês transportada. Em setembro de 1984, nasceu uma situação jurídica
(que se tornou impositiva no dia 10 do mês seguinte); em outubro de 1984,
outra; em novembro, outra. E assim ocorreu durante os meses subsequentes
até o mês de maio de 1993, quando a relação contratual extinguiu-se.
Durante os quase nove anos em que a relação processual desenvolveu-se
mediante um bom relacionamento (como afirma a autora), nasceram men-
salmente situações jurídicas titularizadas pela transportadora, mas nunca
por ela exercidas. E mais. Durante os sete anos seguintes, a transportadora
permaneceu adotando o comportamento omissivo. Apenas no ano de 2000
(dezesseis anos depois de celebrado o contrato), procedeu a transportadora
a uma notificação judicial afirmando ser titular das situações jurídicas decor-
rentes da cláusula quarta do contrato celebrado em 1984.
Independentemente de tratar-se ou não este comportamento silencioso de
declaração tácita de vontade (de renunciar), não se pode ignorar que o não exer-
cício das situações ativas durante tamanho lapso de tempo levou a uma imagem
de não exercício que fez surgir na consulente expectativas legítimas da continui-
dade da autorrepresentação (expectativas legítimas de que o direito não mais
seria exercido). Configurou-se a situação de confiança da consulente.
Consoante noticia Antônio Menezes Cordeiro, a tutela jurídica da con-
fiança exige os seguintes fatores: a) situação de confiança conforme o sistema;
b) justificação à confiança, identificada pela presença de elementos objetivos
que provoquem a crença plausível; c) investimento da confiança, como o exer-
cício de atividades jurídicas sob a crença da confiança, d) a imputação da situa-
ção de confiança à pessoa que será atingida pela proteção ao confiante.56
Este era — e é — o caso dos autos.
Imbuída do espírito de que os direitos de receber as quantias decor-
rentes da cláusula quarta do contrato não mais seriam exercidos, já que
durante 16 (dezesseis) anos a transportadora permaneceu silente (justificação
e imputação da confiança), a consulente criou expectativas legítimas em face
da imagem do não exercício, sem que houvesse qualquer elemento objetivo
CORDEIRO. Da boa-fé no direito civil, op. cit., 2001, p. 813.
55

CORDEIRO, António Menezes. Litigância de má-fé, abuso do direito de acção e culpa in agendo. Coimbra: Almedina,
56

2006. p. 52. Estas notas distintivas podem existir em menor ou maior grau em um caso concreto — ou mesmo
alguma delas pode não se fazer presente, como afirma Antônio Menezes Cordeiro. É, pois, possível fazer relação
com a ideia de sistema móvel que Karl Larenz, por sua vez, relaciona ao pensamento. Os tipos distinguem-se
dos conceitos justamente por não exigir a presença de todas as suas notas distintivas, sendo relevante, para a sua
caracterização, a imagem global no caso concreto.

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212 Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim

que pudesse obstar a sua crença da confiança, à qual aderiu e em função da


qual investiu, ao deixar de adotar qualquer prevenção contra a imposição dos
direitos que — acreditava — não seriam exercidos (investimento da confiança).
Imagine-se, portanto, quão grande foi a sua surpresa ao deparar-se
com a quebra abrupta daquela situação estável de não exercício.
Não se pode questionar a formação da imagem de não exercício idônea
a legitimar as expectativas da consulente, notadamente por serem cumulati-
vas as seguintes circunstâncias.
a) Cuidava-se de situações jurídicas surgidas mensalmente durante
sete anos. Note-se que o direito de receber a quantia decorrente do transporte
realizado em setembro de 1984 durante toda a relação contratual (e durante
os sete anos que a seguiram) não foi exercido. Como se vê, além do decurso
do tempo, aqui a sucessividade da relação foi expressão da inatividade não
apenas com relação aos direitos relativos aos transportes já realizados, mas
também daqueles que ainda seriam realizados.
b) Mesmo após o encerramento da relação contratual, passaram-se sete
anos sem qualquer exercício de direito.
Veja-se: como se viu, acredito que já se encontravam extintas as situa-
ções jurídicas quando a relação contratual foi rompida, notadamente con-
siderando a sucessividade de suas prestações e o seu não exercício durante
nove anos. Mesmo que assim não se entenda, depois deste momento, trans-
correram mais sete anos.
Presentes encontram-se, in casu, os pressupostos do fato jurídico da
suppressio: a imagem de não exercício (decorrente do comportamento da
transportadora) à qual aderiu objetivamente e legitimamente a consulente
(situação de confiança). Não se há de averiguar qualquer elemento subjeti-
vo daquele que não agiu. Cuida-se da incidência do princípio da boa-fé. A
suppressio já é o próprio efeito irradiado: a perda das situações jurídicas ativas.
Pode-se dizer, inclusive, que o caso em análise é exemplo típico de
supressio. Parece tratar-se de exemplo de manual.
Duas distinções são necessárias.
A suppressio não se confunde com a prescrição e com a decadência. A
prescrição e a decadência, como já se disse, são atos-fatos jurídicos cujo efeito
é a perda de eficácia (e não a extinção) de uma situação jurídica ativa (em se
tratando de prescrição) ou a perda do próprio direito (em se tratando de deca-
dência) por força do seu não exercício durante determinado lapso de tempo.
Não se tutela, aqui, a confiança da outra parte. A suppressio é decorrente da
incidência do princípio da boa-fé nas relações jurídicas. É a situação da confiança
daquele que adere à imagem de não exercício que é tutelada para que sejam
extintas as situações jurídicas ativas (e não apenas atingida a sua eficácia).
Nesse sentido, Anderson Schreiber:

Parece, todavia, razoável admitir que, nesse confronto com os casos legais
(prescricionais ou decadenciais), o valor da segurança que os inspira ceda em
favor da tutela da confiança naquelas hipóteses em que ao simples decurso do
tempo se somem comportamentos do titular do direito [...] ou circunstâncias

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Exercício tardio de situações jurídicas ativas. O silêncio como fato jurídico extintivo: renúncia tácita... 213

de fato, imputáveis a ele ou não, que justifiquem a tutela da boa-fé objetiva


independentemente e acima dos prazos fixados em lei.57

Por isso, é plenamente possível que se irradie a suppressio quando ainda


pendente o prazo prescricional concernente a um determinado direito a uma
prestação (depois de operada a prescrição, sequer haveria, em princípio, uti-
lidade de verificar a incidência do princípio da boa-fé).
Foi o que ocorreu no caso dos autos.
Além disso, como já antecipado, a suppressio não se confunde com a
renúncia tácita.
Como noticia Paulo Mota Pinto, notadamente nos latinos, historicamente
recorreu-se ao instituto da renúncia tática quando se buscava, em verdade,
paralisar o exercício de um direito não em razão da atividade abdicativa do cre-
dor, mas, sim, em face da confiança do devedor, baseada na inatividade do pri-
meiro.58 Assim, o recurso à renúncia tácita serviu, durante algum tempo, para
legitimar decisões judiciais proferidas em situações em que estaria vedada a fun-
damentação com base na boa-fé objetiva, notadamente considerando o dogma
da autonomia da vontade consagrado pelo período revolucionário. Verifica-se,
assim, uma resistência a aceitar a autonomia do Verwirkung (suppressio) e de
outras manifestações da boa-fé objetiva consagradas no direito alemão.
A renúncia tácita é negócio jurídico em que há a exteriorização da von-
tade de abdicar a uma dada situação jurídica. Aqui, extingue-se a situação
jurídica porque houve declaração de vontade (tácita) nesse sentido. Se não
há vontade exteriorizada, não há negócio jurídico, não se irradiam os seus
efeitos. Deve-se verificar a existência de vontade exteriorizada (no plano de
existência do fato jurídico). Fato jurídico inexistente é fato jurídico ineficaz.
Em se tratando de ato jurídico em sentido amplo, submete-se ao plano da
validade. O vício na vontade exteriorizada torna o ato defeituoso, podendo
ser decretada a sua invalidade.
A suppressio é efeito jurídico decorrente da incidência do princípio da
boa-fé, por meio do qual se tutela a confiança (estado de coisas). A extinção
da situação jurídica não decorre de um negócio jurídico, sendo irrelevante a
vontade daquele que não a exerceu. Apreende-se juridicamente a imagem
de não exercício que legitimou a situação de confiança criada legitimamente
por força do comportamento omissivo. Não se averigua, vale frisar mais uma
vez, qualquer vontade do que permaneceu silente, mas, sim, a situação de
confiança da outra parte. Nesse sentido também, é irrelevante a noção de
irrenunciabilidade do direito.59
Note-se: o efeito jurídico pode ser até semelhante, mas o seu funda-
mento (fato jurídico que o origina) é distinto.
Afirmamos que, no caso dos autos, o comportamento silencioso da trans-
portadora significou uma declaração tácita de vontade de abdicar das situações
ativas das quais era titular, configurado o nexo de concludência entre eles. Outro
57
SCHREIBER. A proibição de comportamento contraditório, op. cit., p. 192.
58
PINTO. Declaração tácita e comportamento concludente no negócio jurídico, op. cit., p. 123.
59
RANIERI, Filipo. Rinuncia Tacita e Verwirkung. CEDAM: Padova, 1971. p. 46.

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significado que fosse atribuído ao seu silêncio seria incompatível com o quadro
de segurança posto e com o padrão de conduta que deve nortear a atividade
interpretativa. Aqui, o silêncio era comportamento negocial contundente, ele-
mento de um negócio jurídico; a vontade exteriorizada era relevante.
O caso foi, neste aspecto, analisado à luz da vontade exteriorizada pelo
sujeito. A boa-fé objetiva foi invocada apenas no que concerne à sua função
interpretativa, e não quanto à sua função limitadora. A conclusão de inexis-
tência atual dos direitos afirmados pela autora (sucessora da transportadora)
teve como fundamento a configuração de um negócio jurídico e da irradiação
dos seus efeitos próprios.
Ocorre que, ainda que se entenda não restar configurada a renúncia tácita,
verificou-se a incidência do princípio da boa-fé (em sua função limitadora) para
que se tutelasse a situação da confiança da contraparte (a consulente), criada
legitimamente em razão da imagem de não exercício decorrente da inatividade
do sujeito durante o transcurso do tempo. Como já se disse, aqui é irrelevante
se o silêncio da transportadora significou ou não declaração tácita de vontade,
já que foi configurada a situação de confiança da outra parte.
O silêncio, nesta perspectiva, não é comportamento negocial, mas, sim,
conduta da qual decorre a imagem de não exercício (situação fática) apreen-
dida pelo direito (e que será elemento do fato jurídico). A conclusão da inexis-
tência atual dos direitos afirmados tem como fundamento, aqui, a suppressio
(efeito jurídico decorrente da incidência do princípio da boa-fé).
Por uma ou por outra via, os direitos estão extintos.

5 Conclusão
Por tudo quanto foi exposto, conclui-se:
(i) inexistem as situações jurídicas ativas afirmadas pela autora, consis-
tentes no direito de receber o equivalente a 0,25% do valor das mercadorias
transportadas de setembro de 1984 a maio de 1993, por ter-se configurado
a renúncia (negócio jurídico unilateral), eis que constatada a exteriorização
tácita de vontade da transportadora, em razão de um juízo de concludência;
(ii) ainda que se entenda não restar configurada a renúncia tácita, ter-se-ia
configurada a situação de confiança legítima da consulente no sentido de que
os direitos afirmados não seriam mais exercidos, razão por que incidirá o prin-
cípio da boa-fé, independentemente da vontade do sujeito inerte (a transporta-
dora), fazendo irradiar a suppressio (perda das situações jurídicas ativas).
É o parecer.
Cidade de Salvador, Bahia, em 19 de abril de 2010.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

DIDIER JR., Fredie; BOMFIM, Daniela. Exercício tardio de situações jurídicas ativas. O
silêncio como fato jurídico extintivo: renúncia tácita e suppressio. Revista Brasileira de Direito
Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 71, p. 189-214, jul./set. 2010. Parecer.

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RESENHAS

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Resenhas 217

MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito a sério: uma crítica


hermenêutica ao protagonismo judicial. Florianópolis: Conceito, 2010.
232 p. (Coleção Lenio Luiz Streck).

A obra que tenho o prazer de resenhar é o resultado da dissertação


de Mestrado do talentoso Francisco José Borges Motta, Promotor de Justiça
no Estado do Rio Grande do Sul e Doutorando em Direito na UNISINOS.
Francisco, tributário da Nova Crítica do Direito (ou Crítica Hermenêutica
do Direito), cunhada originalmente por Lenio Luiz Streck, parte de uma das
ideias centrais acerca do Estado Democrático de Direito, que é a do deslo-
camento do centro de decisões dos demais poderes para o Poder Judiciário
(Justiça Constitucional), lembrando que o Direito passa a ser instrumento
de transformação social, fazendo com que as inércias do Executivo e do
Legislativo sejam supridas pelo Judiciário no que diz respeito à implementa-
ção dos direitos fundamentais.
O autor, nesse primeiro momento, pretende (e o faz de forma original), a
partir daí, delimitar o sentido da Constituição a fim de compreender os proble-
mas do processo jurisdicional brasileiro, aportando sua argumentação, prin-
cipalmente, na Crítica Hermenêutica de Streck e na Teoria do Direito como
Integridade, de Ronald Dworkin, que nega a prática do decisionismo, pregando
a necessidade de “respostas corretas” no Direito, na defesa da sua autono-
mia e do seu necessário relacionamento com a moral que lhe é cooriginária,
mas da qual não depende. Assim é que Francisco dirá que os tribunais devem
estar preparados para formulação de “questões de moralidade política” que
exigem resposta, inclusive contra as “maiorias eventuais” e “vontades sociais
de ocasião”. Aqui, Francisco deixa claro seu comprometimento com uma pos-
tura (constitucional) que envolve “sacrifícios”, diante da necessidade de se
renunciar a “benefícios marginais”, a fim de que as instituições possam garan-
tir a “igual consideração e respeito” pelos cidadãos de um país.
O texto defende, portanto, a necessidade de uma “instituição” de
direitos e de “instituições”, dentre elas o Judiciário, que “levem os direitos
e a Constituição a sério”. Nesse aspecto, estabelece o autor o “ponto de con-
tato” entre o neoconstitucionalismo e a teoria dos direitos de Dworkin, que
vê o Direito não apenas como um sistema de regras, à moda do positivismo
que sequestrou o “mundo prático”, mas como um sistema de regras e de
princípios, possibilitando estes o resgate desse mundo prático que foi ani-
quilado pelas diversas teorias positivistas, notadamente as de Herbert Hart
e Hans Kelsen. E essa “carga” (de resgate) ficará depositada sobre os ombros
da Justiça Constitucional, que deverá estar preparada para “operacionalizar”
uma “leitura moral” da Constituição.
Daí a importância de se “articular” a leitura da Constituição, como pon-
tua o autor, impedindo, nas palavras de Francisco, “os juízes de afirmarem que
a Constituição expresse suas próprias convicções”, mas lembrando que “somos
governados pelo que nossos legisladores disseram” (Dworkin), pois, mais que
um documento, a Constituição é uma “tradição” (Gadamer), havendo necessi-
dade de uma “mediação”, pela compreensão, entre a história e a atualidade.

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218 Adalberto Narciso Hommerding

É nesse ponto que ingressa a (não menos importante) ideia de que o


trabalho do juiz é um “trabalho em equipe”, “construído em conjunto”, pois
não pode ser um “solipsista”, não havendo um “grau zero” de interpretação,
devendo, portanto, ter uma visão do Direito como um “todo coerente e ínte-
gro”, no que a doutrina e os precedentes, desde que “adequadamente com-
preendidos”, o socorrerá. A leitura moral da Constituição, nesse aspecto, é o
primeiro passo para que se possam livrar os juízes do “protagonismo” que o
positivismo com sua discricionariedade lhes legou.
A partir de Arthur Kaufmann, Francisco Motta rejeitará o “puro filó-
sofo” e o “puro jurista” para, encampando a postura hermenêutica de Lenio
Streck, defender a superação da filosofia “do” direito por uma filosofia “no”
direito, pois este só pode ser pensado em linguagem filosófica, não podendo
a filosofia, por seu turno, ser entendida (ou transformada) num “discurso
ornamental” que seja tão somente “adjudicado” pelo Direito. É que a filosofia,
sobretudo, é “condição de possibilidade” de qualquer pesquisa em Direito,
como bem refere Lenio. E isso é inevitável.
Aqui, faz-se presente o ponto de ultrapassagem da filosofia da consciên-
cia. Ultrapassagem feita a partir de Martin Heidegger (filosofia hermenêutica)
e Hans-Georg Gadamer (hermenêutica filosófica), que desmistificam a relação
sujeito-objeto, própria da metafísica, dando um “basta” à ideia de verdade
como “produto” do método e (re)colocando a hermenêutica na sua “condição
mundana”, que agora passa a dizer respeito às condições prévias não só da
interpretação, mas de todo o pensamento e atividade humana. É que, a partir
de Heidegger e Gadamer, há uma necessidade de “explicitar o ser”, que Platão
e todos os demais filósofos posteriores “esconderam” ao entificá-lo, deixando
de praticar uma “ontologia fundamental” pela desconsideração da diferença
ontológica e do aspecto da quotidianeidade do “Dasein”, o ser-aí, que é fático,
mundano, cuja analítica desemboca na “hermenêutica da faticidade”.
A partir de Heidegger, o compreender passa a ser um existencial que
conduz a possibilidades. Afinal de contas — e aí Francisco, que sabe muito
bem disso tudo, retornará a Lenio —, “compreendemos para poder interpre-
tar”, e não o reverso. Eis aí a importância do “método fenomenológico”, que
não é “método”, deixando que a “coisa seja”, a partir da experiência, de que
o Direito não pode prescindir. Nesse ponto, “Chico” pregará com Streck uma
verdadeira “cruzada” pela “ontologização” do Direito, que não pode mais
prescindir do mundo prático e que não pode ficar “blindado” à linguagem,
que de há muito invadiu a filosofia (e o Direito), “derretendo” o esquema
sujeito-objeto. Por isso é que o Direito deve ser pensado em seu acontecer,
uma vez que deve ser o “lugar da concretização justa de direitos”. Essa
colocação permitirá fugir dos esquemas da “intenção do legislador”, tão bem
criticados por Carlos Santiago Nino.
A obra, a partir daí, passa a tratar da necessidade de uma fundamenta-
ção para compreender hermeneuticamente o Direito Processual Civil, sempre
a partir da ideia de que é necessário “combater” o protagonismo judicial —
entendido aqui como puro ativismo —, aceitando-se a Constituição em sua
materialidade e os princípios do Devido Processo Legal, contraditório e ampla

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defesa, como princípios de “moralidade política” que devem ser tomados como
um “todo coerente”, cuja importância só se existencializa no caso particular.
Processo, assim, é direito e garantia fundamental, condição de possibilidade
de acesso a uma ordem jurídica justa, constitucional e principiologicamente
íntegra. Por meio dele é que o cidadão, nas palavras de Francisco, “não só ‘pede
jurisdição’ (sic), mas verdadeiramente dela participa, concorrendo efetivamente
para a adequada concretização dos seus próprios direitos (tomados em conjunto
(...) com a integridade do ordenamento jurídico), o que não ocorre sem que um
diálogo seja permitido (e estimulado) pela agência judiciária, que, de sua vez,
só se justificará democraticamente na medida em que se deixe influenciar pelos
argumentos (de princípio!) universalizáveis e relevantes das partes, relaciona-
dos com a causa em disputa”. E aí o autor lembrará: “essa fórmula judiciária,
que se pretende democrática (e democratizante), não pode ficar confiada à sub-
jetividade assujeitadora (...) de um juiz ‘protagonista’”.
Os passos que Francisco entende importantes para que se possa falar
em um processo de autêntica jurisdição constitucional são os seguintes:
a) reconhecer que o Direito Processual Civil não desempenha o papel que
deveria desempenhar em nosso país, pois, primeiro, o modelo de Direito pra-
ticado é preparado para conflitos interindividuais, típicos de uma jurisdição
liberal, e, segundo, porque vivemos dependentes de um parâmetro filosófico-
interpretativo preso à filosofia da consciência, concebendo o Direito como
uma “ciência exata”, “técnica” ou “método”, desconsiderando que o Direito
“se dá” na linguagem, pois não é algo fixo; linguagem que não está à dispo-
sição do intérprete e que não é um instrumento, pois ela não permite que o
operador do Direito “assujeite-o” como quem “assujeita” um objeto. Em sín-
tese, a prática do direito não é silogismo; b) reconhecer a existência de uma
“baixa constitucionalidade” em terra brasilis (Streck), que não permite a com-
preensão adequada do Direito nos quadros do Estado Social e Democrático
de Direito e que faz com que continuemos, por um lado, compreendendo, à
moda liberal, o juiz como um “espectador” ou mero “mediador” (passivo) de
um conflito, e o processo como “processo escrito e dominado pelas partes”,
e, por outro, à moda “socializante”, o juiz como um “autoritário”, de função
“paternalista”, e o processo como “instituição estatal de bem-estar social”
(Klein), cujas respostas dependem cada vez menos da “fala” das partes.
Francisco deixa claro que pretende fornecer subsídios para o desenvol-
vimento de uma teoria processual que, ao mesmo tempo, seja hermenêutica e
democrática, fazendo jus aos desafios que o neoconstitucionalismo propõe à
Justiça Constitucional. Daí a importância de se resgatar a “estratégia” da lei-
tura moral das cláusulas constitucionais importantes, tais como as do Devido
Processo Legal, contraditório e ampla defesa, que devem ser compreendidas
como “veículo de princípios morais ‘abstratos’”, enfeixados no sistema cons-
titucional e principiologicamente coerente, que comungue de uma “teoria
moral” determinada: a de que o cidadão possui direitos morais “contra” o
Estado, cuja importância não se pode dobrar à “vontade da maioria”, pressu-
posto esse de uma autêntica democracia, em linguagem dworkiniana.

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O processo, pois, deve viabilizar “participação”, permitindo ao cidadão


expor argumentos (de princípio). E nesse sentido há uma importante con-
tribuição da dita “Escola Mineira do Direito Processual”, com base no
paradigma procedimental do Estado Democrático de Direito (Habermas),
que propõe um “processualismo constitucional democrático” caracterizado
pela “comparticipação processual”, policêntrica e interdependente, pelo res-
gate da leitura “forte” dos princípios processuais constitucionais e do papel
técnico e institucional do processo.
Embora Habermas e Dworkin reconheçam a natureza deontológica
da validade jurídica e a necessidade de uma produção legítima do Direito,
haverá, no entanto, uma divergência central entre a Crítica Hermenêutica do
Direito, trabalhada por Lenio e Francisco a partir de Dworkin, e a compreen-
são procedimental da democracia, desenvolvida pelos mineiros, que reside na
“cisão” entre os “discursos de fundamentação” e de “adequação”; cisão com
a qual a hermenêutica filosófica não convive, pois não reconhece a cindibili-
dade — que de fato não há — entre interpretação e aplicação, não sendo pos-
sível, pois, falar em interpretação sem situações de aplicação, não havendo,
portanto, possibilidade de se desonerar o juiz do seu papel de elaborar o
“discurso fundamentador”, uma vez que a validade não (pode) decorre(r)
tão somente de uma “justificação prévia”, fruto de um “devido processo
legislativo”. Ou seja: “só interpretamos aplicando!”, nas palavras do autor.
O que Francisco Motta pretende afirmar, no fundo, é que as lições da
Escola Mineira são importantes, mas que há, sim, necessidade de, obedeci-
dos os supostos centrais do processo jurisdicional democrático, se entender o
resultado do processo como “interpretativo”. Esse resultado, porém, poderá
ser “não legítimo”, caso seu conteúdo não se afine com a “materialidade da
Constituição”. E aqui Francisco é certeiro: “o procedimento, por si só, não
legitimará a resposta obtida com o processo, que é — também ele — interpre-
tativo, e que deverá (...) assumir a ‘responsabilidade’ de ser interpretativo, de
trabalhar com categorias interpretativas e de se ver e envolver sujeitos que
(desde já sempre) interpretam”.
Os “traços básicos” da leitura moral da Constituição a respeito do pro-
cesso, segundo o autor, assim ficariam enfeixados: isonomia, juiz não prota-
gonista, contraditório (influência dos argumentos de princípio trazidos pelas
partes), observância dos demais princípios processuais, tais como a tempes-
tividade da tutela em favor do devido processo, entendido como acesso a
uma ordem jurídica constitucional principiologicamente coerente, restando
ao juiz o “dever fundamental” de fundamentar suas decisões, e não só de
atender ao procedimento, fornecendo “boas respostas”, “respostas adequa-
das constitucionalmente” (Streck) ou “hermeneuticamente corretas”.
O capítulo II da obra resenhada explicita melhor algumas noções que
são trabalhadas ao longo do texto. A partir de Dworkin, o autor enfrenta os
três preceitos-chave que definem as posturas positivistas — a) o direito de
uma comunidade é um conjunto de regras especiais que visam determinar
quais são as condutas passíveis de coerção ou punição pelo poder público. Há
“testes de pedigree” para verificar quais as regras válidas; b) quando um caso

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não estiver coberto por uma das regras, o caso não pode ser resolvido pela
aplicação do direito, mas pelo “discernimento pessoal” do juiz; c) ter obriga-
ção jurídica é dizer que o caso enquadra-se na regra jurídica válida que exige
que alguém faça ou deixe de fazer alguma coisa —, atacando, como faz o jus-
filósofo norte-americano, a discricionariedade judicial em seu sentido “forte”,
sinônimo de decisionismo. Após descrever a teoria de Herbert Hart, que vê
o Direito como um sistema de regras em que, nos casos nebulosos, o juiz,
em face à “textura aberta” do Direito, age com discricionariedade, Francisco
aponta para a discussão de Hart com Dworkin, para quem o Direito, mais
que um sistema de regras, é um sistema de princípios, que não podem ser
considerados como um “número fixo de padrões”, mas, sim, “exigências” de
equidade, justiça ou outra dimensão da moralidade, que se chocam contra o
positivismo, desconhecedor que é do “problema interpretativo” do Direito.
Dworkin defende os chamados “direitos políticos preferenciais” (back-
ground rights), notadamente aqueles derivados do “direito abstrato à conside-
ração e respeito”, que preexistem ao Estado e que por isso podem ser opostos
a ele. Reconhece-se, assim, um caráter normativo das imposições de perfil
moral (justiça, equidade etc.) veiculadas pelos princípios que exercem uma
espécie de “força gravitacional” sobre a argumentação judicial.
O Direito, em Dworkin, é uma unidade coerente, devendo ser entendido
em sua “integridade”. Sua justificativa (do Direito) aponta para uma “perso-
nificação moralmente íntegra” em que as preocupações e tradições morais da
comunidade devem ser identificadas pelo operador do Direito. E é nos prin-
cípios que o jurista identificará o sentido das regras. Daí a não oposição entre
regras e princípios que, mais tarde, Lenio, com olhos postos na diferença ontoló-
gica (o ser é o ser do ente e o ente só é em seu ser) dirá que realmente não existe,
justamente porque o princípio é instituidor e está por detrás da regra.
A análise de Francisco passa pela descrição do juiz Hércules (metáfora
cunhada por Dworkin) que, apesar de ser considerado (ele, Hércules) um
jurista com capacidade sobre-humana, não é um “protagonista”, um “solista”,
mas alguém que compreende o Direito como uma totalidade, levando em
consideração o que os juízes fizeram no passado e fazem no presente, além
da produção legislativa. Hércules é o juiz que “presta contas” à Constituição
e ao seu conjunto principiológico, o que faz com que encontre no Direito
soluções que não se ajustam à sua preferência pessoal, tarefa essa que
deve(ria) ser de todos os operadores do Direito. Assim é que Hércules pode
dar “boas respostas”, “respostas corretas”, o que explica por que os juízes não
podem ficar desonerados do dever de fundamentar suas decisões com argu-
mentos de princípio. Francisco lembrará, então, que o juiz, por integrar uma
comunidade de pessoas livres e iguais, não é um outsider, devendo respeitar
a produção democrática do Direito, aceitando a noção de que as pessoas têm
direitos “contra” o Estado, em especial o de serem tratadas com igual consi-
deração e respeito. “Sua” jurisdição, portanto, tem de ser justificada perante
essas exigências. Numa palavra, com o autor, “se não podemos exigir do juiz
que chegue a respostas corretas sobre os direitos de seus cidadãos, podemos
ao menos exigir que o tente!”. Os juízes, assim, não podem desconsiderar

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o seu dever (constitucional) de elaborar uma teoria coerente e que não leve
em consideração a “complexidade normativa do Direito”. A resposta correta
será uma resposta à discricionariedade “forte” (decisionismo), a que se refere
Dworkin, “quebrando” o protagonismo judicial, cabendo ao processo, por-
tanto, fornecer as condições de possibilidade para a sua obtenção! O processo
jurisdicional democrático, nesse sentido, é “democratizante”, pois (deve)
conta(r) com a participação efetiva das partes.
Após tratar das noções acima referidas, Francisco passa a reconhecer
evidentes pontos de contato entre as teorias de Dworkin e de Gadamer, invo-
cando, então, a tradição gadameriana e o Direito como Integridade dworki-
niano para dizer que Dworkin sempre teve presente a ideia de que não há
cisão entre os momentos da compreensão-interpretação-aplicação, o que o
aproxima de Gadamer, pois, consoante o jusfilósofo norte-americano, “os
juízes não decidem os limites das restrições institucionais, para só então dei-
xar os livros de lado e resolver as coisas a seu próprio modo”. Dworkin, por-
tanto, desenvolve uma “interpretação construtiva”, tendo por objeto as rela-
ções sociais (leia-se “o Direito”), que, a toda evidência, prende-se à herme-
nêutica da tradição gadameriana e à ideia de que há uma “circularidade” da
hermenêutica na prática cotidiana, sendo a interpretação criativa um “caso de
interação entre propósito e objeto” que, naturalmente, “envolve o intérprete
(e seu propósito) com o objeto a ser interpretado”, devolvendo-o, portanto,
ao “círculo hermenêutico” (Heidegger e Gadamer). E aí Dworkin explicitará
ainda mais seu apego a Gadamer, ao se posicionar francamente contra a ideia
de uma “intenção histórica” que possa ser o “fundamento constitutivo da
compreensão”. Com isso Dworkin reconhece claramente a impossibilidade
de reconstrução da “intenção” do autor de um texto (no caso o legislador)
e deixa entender que o que importa como condição de possibilidade para a
construção da “resposta correta” é a “pergunta correta”, nos moldes do que
já ensinava Gadamer.
O grande desafio da prática do Direito, que é interpretativa, é, segundo
o autor, o de trabalhar uma postura que concilie o caráter produtivo (criativo)
da hermenêutica com a “exigência democrática de que o tribunal ‘construa’
suas decisões com a colaboração efetiva das partes, e de que o resultado deste
processo seja um provimento que honre a materialidade da Constituição e a
história judiciária produzida com sucesso”. É a superação desse desafio que
possibilitará combater o protagonismo judicial, possibilitando que a decisão
judicial seja uma resposta “do Direito”, e não simplesmente “do juiz”.
A Constituição, nesse aspecto, não poderá ser lida como uma
“metanorma” (Grundnorm), mas como integrante do Direito, cuja pretensão
de eficácia somente pode ser atendida quando “aplicada”! E é claro que não
se “descobrirão” sentidos, significados de textos, pois a prática do Direito é
interpretativa no sentido de interpretação da “história jurídica”, combinando
elementos de descrição e valoração, mas com estes não se confundindo. Vem
daí a “combinação” que Dworkin faz entre Direito e literatura, utilizando a
interpretação literária como modelo para o modo central da análise jurídica.
Cada juiz, nesse sentido, assume o seu papel de “romancista em cadeia”:

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“deve ler o que outros juízes fizeram no passado, não apenas para descobrir
o que disseram, mas para chegar a uma opinião sobre o que esses juízes
fizeram coletivamente, ou seja, como cada um deles (também) formou uma
opinião sobre o ‘romance coletivo’ escrito até então”. Assim, diz Francisco
referindo-se a Dworkin, “cada juiz deve considerar-se como ‘parceiro’ de
um complexo empreendimento em cadeia, da qual essas inúmeras decisões,
estruturas, convenções e práticas são a história; é seu trabalho continuar essa
história no futuro por meio do que faz agora”. Para isso, “o juiz deverá inter-
pretar o que aconteceu antes e determinar, segundo seu próprio julgamento,
o motivo das decisões anteriores, que deverão ser tomadas ‘como um todo’, o
que significará o ‘propósito ou o tema da prática até então’”.
O autor desenvolve, a partir daí, a concepção defendida por Dworkin
no sentido de que, além de uma “coerência de estratégia”, os juízes devem
observar uma “coerência de princípio”, que exija que os diversos padrões
regentes do uso estatal da coerção contra os cidadãos sejam coerentes expres-
sando uma única e abrangente visão de justiça. Aqui o ponto que Francisco
pretendia atingir: o Direito como Integridade, que pressupõe uma compre-
ensão do Direito como “totalidade”, “completeza”, em que as pessoas têm
direito a uma “extensão coerente”, fundada em princípios, das decisões polí-
ticas do passado, ainda quando os juízes divirjam profundamente sobre seu
significado. A integridade, nesse sentido, é um “ideal político” que explica
as práticas constitucionais, constituindo-se em forma de legitimação política
fundada na “fraternidade”, tão cara a uma comunidade que se pretenda
“comunidade de princípios”. Dworkin acrescenta às ideias rousseauniana e
kantiana de “autolegislação” a noção de “integridade”, que deve ser aceita
por uma comunidade de princípios. A comunidade de princípios, fiel à
integridade, pode “reivindicar a autoridade de uma verdadeira comunidade
associativa”, pois suas decisões coletivas são “questões de obrigação”, e não
apenas de “poder”. A comunidade de princípios, em suma, reivindica a
autoridade moral em nome da fraternidade (Dworkin).
O Direito como Integridade conviverá com a “verdade hermenêutica” que
deriva dos princípios de justiça, equidade e Devido Processo Legal que oferecem
a “melhor interpretação construtiva” da prática do Direito de uma comunidade.
É que o Direito como Integridade determina aos juízes que estes admitam, tanto
quanto possível, que o Direito é estruturado por um conjunto coerente de prin-
cípios que exigem do juiz “pôr à prova” sua interpretação da vasta rede de
estruturas e decisões políticas da sua comunidade. Em suma, o juiz tem o dever
de interpretar a história jurídica que encontra, e não de inventar uma “história
melhor”; seu dever é atender a alguma concepção de integridade e de coerência
do Direito como instituição (doutrina da responsabilidade política do juiz).
Francisco deixa claro, no entanto, que as respostas, evidentemente, não
estão “prontas”, pois a integridade convive com a possibilidade de altera-
ções das decisões anteriores. Ou seja, não está em jogo “história versus jus-
tiça”, uma vez que a decisão judicial que eventualmente venha a “quebrar”
um precedente estará apenas “conciliando” considerações que, em geral,
se combinam em qualquer cálculo de direito político, o que não é causa de

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surpresa alguma, pois a decisão judicial nada mais faz do que tornar efetivos
direitos políticos já existentes. Aliás, o “rompimento” com a tradição, já dizia
Gadamer, faz parte da “essência” (sic) do humano, mas isso só é possível com
uma “consciência hermenêutica desperta e vigilante”.
No fundo, o autor defende, com Dworkin, a possibilidade de novos
enfrentamentos de problemas pelo juiz com olhos postos na integridade,
pois os indivíduos têm direito à aplicação consistente dos princípios sobre
os quais se assentam suas instituições, uma vez que, apesar de a vontade
popular (“moralidade constitucional da comunidade”) por vezes poder ser
incoerente, mesmo assim o cidadão tem um direito a exigir decisões coeren-
tes. Assim como a hermenêutica, também a integridade não tem a pretensão
de ter a “última palavra”, mas há que se convir que tem a “primeira palavra”.
O objetivo da integridade, dirá Francisco, é um “princípio”!
O Capítulo III da obra é, na verdade, uma homenagem a Ovídio Baptista
da Silva, sem dúvida um (ou talvez o) dos melhores processualistas que o Brasil
já produziu. Para o autor, a obra do Prof. Ovídio é uma “estação necessária”
na viagem de qualquer um que se aventure nas coisas do processo. E é neste
capítulo que Francisco aproximará as lições de Ovídio a respeito do dever cons-
titucional de fundamentar decisões à premissa dworkiniana de que o tribunal
deve conduzir sua atividade jurisdicional por argumentos de princípio.
A análise parte da ideia de que o paradigma racionalista, como defen-
dia Ovídio, reduziu o fenômeno jurídico ao “mundo normativo” em que a lei
tem um “sentido unívoco”. O Direito Processual Civil, por sua vez, não acom-
panhou as transformações sucessivas aos movimentos liberais que culmina-
ram na Revolução Francesa, circunstância que se reflete atualmente na crise
de legitimidade do Poder Judiciário. A proposta de Motta é a de que se invista
na compreensão hermenêutica do Direito Processual Civil, promovendo, em
suas palavras, uma “articulação interdisciplinar”, de onde se possa “vislum-
brar os compromissos da ciência processual com a História” (Ovídio); tarefa
que não é fácil, uma vez que o paradigma racionalista comprometeu o Direito
Processual, sujeitando-o a princípios metodológicos e fazendo dele uma
“ciência” e do Direito um “conjunto sistemático de conceitos, com pretensão
à eternidade”, como já ensinava o Prof. Ovídio.
Comprometidos com a “certeza”, com o valor “segurança”, com a
“matemática” (Leibniz), com a “vontade da lei” e com uma pretensa “neu-
tralidade”, o Direito e a magistratura ficaram subordinados às leis, sem qual-
quer compromisso com a justiça concreta. Ovídio, no entanto, pensa que o
Direito deve, sim, fornecer instrumentos e condições concretas que possam
contribuir para a realização de uma sociedade mais próxima à justiça, que
se desvela em cada caso, não podendo a discricionariedade do ato judicial
transformar-se em arbitrariedade. E para que isso aconteça os juízes não
podem ser “burocratas”, “apolíticos”, “alguém que não pode ‘interpretar’” e
que consequentemente não “fundamenta” seus provimentos. Afinal de con-
tas, o juiz não pode ser um “irresponsável”. A aposta aqui, então, volta-se
para a hermenêutica, pois o Direito depende de uma compreensão herme-
nêutica, compromissada com a faticidade, “de olho” no fenômeno. Dito de

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Resenhas 225

outro modo, nas palavras de Francisco Motta: o intérprete deve assumir-se


“como” intérprete!
Mas há divergências entre o pensamento do autor e o do Prof. Ovídio.
Embora Ovídio não negue a importância da Constituição, nosso mestre é
cético em relação à função do Direito no sentido de transformar o estado das
coisas, não enxergando no neoconstitucionalismo a solução para o Direito.
A crise do Direito é uma crise de paradigma: o Direito, na modernidade, foi
afastado da justiça para se tornar um “braço” do poder. Por ser ideológico
(a “essência da ideologia moderna”), o Direito teria perdido sua alma e o
Judiciário, na verdade, funcionaria “bem”, pois foi concebido dentro de um
sistema que o concebeu para busca de certezas. O paradigma econômico
manteria, assim, o Direito refém de uma crise impossível de ser superada
pelo neoconstitucionalismo, pois o “direito racional” não pode “salvar-se”
por si mesmo, “tão somente” a partir da Constituição.
Francisco dirá, então, que, primeiro, o Brasil, por ser um país de moderni-
dade tardia, necessita de um “constitucionalismo radical”; segundo, ou se garan-
tem e se concretizam direitos fundamentais ou renunciamos à substancialidade,
restando “orar” pela Política, que pode vir a sonegar a faticidade do Direito com
prejuízos evidentes a minorias. Se a Constituição é o “elo” de conteúdo entre
Política e Direito (Streck), de modo que sua concretização passa também pela
Política e pela Moral “institucionalizada” nos direitos fundamentais e princípios,
é a partir dela, como “evento” que estabelece padrões do justo, que podemos
atribuir novos sentidos ao Direito. Mas o autor vai mais longe: consegue desfazer
algumas leituras mais apressadas que o Prof. Ovídio fez de Dworkin, quando,
junto com Castanheira Neves, o acusou de ser um “iluminista”, afirmando que
o Professor norte-americano “não raciocina a partir da experiência forense, visão
indispensável a quem pretende envolver-se com o processo”. De fato, as obser-
vações de Ovídio aqui apresentam um problema: Dworkin sabe que “não há
hermenêutica sem fatos”, interessando, sim, que o juiz se assuma “como” juiz.
Na verdade, é isso que Dworkin prega. É essa a questão que lhe interessa: a
assunção da responsabilidade do juiz, no que, fundamentalmente, não difere de
Ovídio, pois este também defende o dever fundamental de fundamentação das
decisões judiciais. E há outro detalhe: toda a contribuição teórica de Dworkin,
afirma Francisco Motta, tem como “ponto de partida” casos controversos que
ocorreram nos Estados Unidos, sendo sua pretensão “compreensiva”, antes de
ser “estruturante” da prática judiciária. É que Dworkin sabe muito bem que há
diferença entre texto e norma, que o Direito (como Integridade) exige coerência
de princípio, mas que a justiça e a equidade andam ao lado da coerência. Uma
leitura moral da Constituição, embora possa coincidir com preferências políticas
pessoais — acusação que é feita por Castanheira Neves a Dworkin —, exige,
no entanto, o reconhecimento da integridade como ideal a ser perseguido,
cobrando dos juízes coerência. E aí está o diferencial (ou, por incrível que pareça,
a “aproximação” paradoxal) entre Castanheira e Ovídio, e Dworkin: enquanto
este, Dworkin, deixa claro que as opiniões dos juízes expressam suas convicções
de moralidade política, pois “o intérprete integra o resultado da interpretação”,
e que, bem por isso, há que se respeitar a coerência e integridade do Direito,

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226 Adalberto Narciso Hommerding

Castanheira Neves e Ovídio, apesar de também afirmarem que a “neutralidade”


judicial é uma “quimera”, acabam esquecendo que a coerência (de princípio)
está imbricada no raciocínio jurídico, não sendo algo que se incorpora a posteriori,
como se de fora fosse adjudicada. E é a coerência de princípio que afastará a
discricionariedade judicial enquanto “preferência pessoal”. Lembremos que não
há cisão no processo compreensivo. A coerência deve ser “pré-compreendida”
como um padrão, e não como uma “formalidade” tão somente.
Ponto que merece destaque no capítulo é a crítica (sempre respeitosa)
que o autor faz à Escola Mineira, notadamente às lições de Rosemiro Pereira
Leal e André Cordeiro Leal que, em crítica a Ovídio Baptista da Silva, deram
a entender que o fortalecimento dos poderes do juiz, defendido por Ovídio,
rumaria a uma espécie de “autocracia” judicial na criação do Direito, como se
o juiz fosse um sujeito “solipsista” com “acesso exclusivo” aos “significados
e alcances” das “realidades sociais”. De fato, a crítica de ambos não procede.
Tanto é assim que os pontos de contato entre Ovídio e Dworkin fazem-se
presentes no “dever de fundamentar decisões” (Ovídio) e na exigência de
que os provimentos judiciais sejam “vazados” em “argumentos de princípio”
(Dworkin). Aí Francisco enveredará pelo “diálogo necessário” entre Lenio
Luiz Streck e Ovídio Baptista da Silva, provando que, na verdade, Ovídio
defende a figura de um juiz responsável, democrático, atento aos argumentos
das partes, cuja decisão é fundamentada, não considerando válida, portanto,
“qualquer” decisão, circunstância que o afasta do positivismo da “teoria
pura” de Kelsen, que permite “múltiplas respostas”. Novamente, Dworkin
é invocado para lembrar que a lei, embora justificada por argumentos de
“política”, ao reconhecer um direito a alguém, faz com que o beneficiário da
norma não mais dependa dos originais argumentos de política para obtenção
do benefício, pois a lei o terá transformado em uma “questão de princípio”!
Sempre é bom lembrar que a Democracia não se resume ao império da
soberania popular. Ela também depende de que sejam assegurados os direitos
fundamentais das minorias sem influência política. A legitimidade dos juízes,
assim, não fica subjugada ao argumento de que uma decisão legislativa possa
ser mais adequada do que uma decisão judicial. O ideal democrático da igual-
dade do poder político pode, sim, ser promovido com a transferência das
decisões sobre direitos das legislaturas para os tribunais, não havendo qual-
quer contraste entre Democracia e Estado de Direito; pelo contrário. Por isso
o autor dirá que: “Cuida-se, ambos, de valores políticos enraizados num ideal
mais fundamental, o de que qualquer governo aceitável deve tratar as pessoas
como iguais; e um Estado assim constituído encoraja cada indivíduo a supor
que suas relações com outros cidadãos e com o próprio governo são questões
de justiça (...) é para isso que se aposta num fórum independente, um fórum
de princípio”. Esse fórum de princípio é “a promessa de que os conflitos mais
profundos, mais fundamentais entre os indivíduos e a sociedade irão, algum
dia, em algum lugar, tornar-se finalmente questões de justiça”.
O Direito significa bem mais do que o exercício de um poder discricio-
nário (no sentido forte) das autoridades públicas. Antes disso, é uma “ques-
tão de direitos e deveres”, como pontua Dworkin.

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Resenhas 227

O juiz “projetado” pelo jusfilósofo norte-americano, em suma, é o “juiz


responsável” de Ovídio: tem um poder discricionário apenas em sentido fraco.
Sua exigência é a de que “motive completamente” o ato judicial e que sua
argumentação “convincente”, que deve levar em conta todos os “aspectos
relevantes do conflito” (“análise crítica dos fatos”), seja uma “argumentação
de princípio”. A tese de discricionariedade proposta por Ovídio é uma tese
de “boas respostas”, comprometida; enfim, uma doutrina de “responsabili-
dade dos juízes”. Somadas ambas as teses (Dworkin e Ovídio) à tese de Lenio
Luiz Streck, o resultado será um “réquiem” ao “protagonismo judicial”, como
muito bem conclui Francisco.
Por fim, o autor examina, num quarto capítulo, os alicerces do meca-
nismo da “ponderação”, sofisticado e popular critério para solução de casos
difíceis, que se deve, notadamente, a Robert Alexy, e o chamado “formalismo
valorativo”, escola que tem à sua frente Carlos Alberto Alvaro de Oliveira,
para submeter ambas as teorias a uma “filtragem hermenêutica”.
Robert Alexy, embora possa ser tido por alguns juristas como um autor
perfilhado ao “paradigma hermenêutico”, não o é. Alexy filia-se, sim, ao
“racionalismo discursivo”, desenvolvendo uma “teoria da argumentação”.
Após análise da teoria alexyana (distinção estrutural entre regras e princí-
pios; abertura do direito à moral pela institucionalização dos direitos funda-
mentais; preocupação de descobrir os direitos que as pessoas têm; conceito
de norma; vinculação entre norma e argumentação; noção de princípio como
“mandamentos de otimização”; “colisões de princípios”; desdobramen-
tos do “princípio da proporcionalidade” etc.), Francisco, a partir de Arthur
Kaufmann e Lenio Streck, demonstra que a teoria da argumentação não supera
o positivismo, pois acaba apostando na “suficiência ôntica” da regra, que
seria um “receptáculo de sentidos”, ou nas condições privilegiadas do sujeito,
que então assujeitaria o objeto conforme as possibilidades de sua consciência.
Nesse aspecto, a teoria da argumentação é anti-hermenêutica (Kaufmann),
o que não implica que a hermenêutica seja anti-argumentativista. Daí a
advertência de Ernildo Stein e Lenio Streck no sentido de que “a hermenêuti-
ca e as teorias da argumentação operam em níveis de racionalidade distintos.
Enquanto a primeira funciona como um ‘vetor de racionalidade de primeiro
nível’ (estruturante), (...) a segunda opera no plano lógico, apofântico, mos-
trativo”. Resumindo: a teoria da argumentação não substitui a hermenêutica
filosófica, pois não há um modo procedimental de acesso ao conhecimento.
Sentidos não estão nas coisas. Eles se dão “intersubjetivamente”, como diria
Lenio. Em outras palavras, com o “método” só se lida a partir da pré-compre-
ensão, que escapa ao sujeito e ao assujeitamento!
Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, a seu turno, desenvolve um modelo
de processo pautado no respeito aos princípios processuais, dentre eles o con-
traditório, e na contraposição ao excesso de formalismo com o propósito de
solucionar a “antinomia existente entre formalismo e justiça”, problema que
impede, segundo ele, a adequada realização do direito material e dos “valores”
constitucionais. O formalismo-valorativo quer compatibilizar efetividade e
segurança, pela organização de um “processo justo”. Francisco Motta concorda

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228 Adalberto Narciso Hommerding

com Alvaro de Oliveira: o processo não é um fim em si mesmo. E também não é


ideologicamente neutro. Seu desvirtuamento é obstáculo à realização dos direi-
tos. E não há nada de equivocado na defesa de um processo em contraditório.
O problema é que Carlos Alberto, ao tentar entrelaçar Constituição e processo
jurisdicional, erra na “estratégia”, como diz Francisco, pois acaba se rendendo
ao escalonamento axiológico dos princípios, mais ou menos nos moldes do que
defende Alexy. E os problemas realmente começam quando Alvaro de Oliveira
defende a compreensão “axiológica” da Constituição, terminando por enfraque-
cer seu perfil normativo e, pois, deontológico. É que, em ambientes democráti-
cos, não há “valor” importante o bastante para que se negue o direito de quem
efetivamente o tem. Tentar absorver, por exemplo, os “reclamos do povo”, como
pretende o formalismo-valorativo, equivale a aniquilar o Direito democratica-
mente produzido e a sua almejada autonomia. No final de tudo, o formalismo-
valorativo acaba apostando na discricionariedade (forte) judicial, na “consci-
ência do juiz”, pois este passa a ter grande margem e liberdade para decidir,
exatamente como pretendia Hart. Numa expressão: Alvaro cai no positivismo
hartiano. Evidentemente, há outras tantas críticas que o autor faz ao formalismo-
valorativo, inclusive a autores como Daniel Francisco Mitidiero e Humberto
Bergman Ávila, mas cabe salientar uma em especial: a de que não precisamos ir
“além do sistema” — e isso Alvaro de Oliveira acaba fazendo quando propõe o
uso da “equidade” que faria com que o juiz pudesse sair da “lei” para ingressar
no “Direito” — para fazer com que o Direito produza justiça. Além de assegurar
a autonomia do Direito, compreender essa premissa faz com que possamos com-
preender adequadamente os efeitos da ruptura paradigmática proporcionada
pela Constituição e os novos “sentidos” constitucionais que guiam e legitimam
a jurisdição. É Francisco que lembra: “Não há nada na produção democrática do
Direito (...) que deva ficar nas mãos da (de resto, insindicável — e bem por isso,
antidemocrática) “melhor capacidade de julgamento” de alguém. Afinal de con-
tas, e aqui retorno a “Chico”, “o que está em jogo (...) é o direito fundamental de
o cidadão obter boas respostas em Direito”.
Recomendo, por fim, a leitura do livro por se tratar de inteligente, “autêntica
e genuína expressão de uma nova jornada do pensamento jurídico no País”, como
bem definiu Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira na apresentação da obra.

Adalberto Narciso Hommerding


Juiz de Direito no Estado do Rio Grande do Sul. Doutor em Direito pela Universidade do Vale
do Rio dos Sinos (UNISINOS). Professor na Escola Superior da Magistratura da Associação
dos Juízes do Estado do Rio Grande do Sul (AJURIS) e Universidade Regional Integrada (URI),
campus de Santo Ângelo.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito a sério: uma crítica hermenêutica ao
protagonismo judicial. Florianópolis: Conceito, 2010. 232 p. (Coleção Lenio Luiz Streck).
Resenha de: HOMMERDING, Adalberto Narciso. Revista Brasileira de Direito Processual –
RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 71, p. 217-228, jul./set. 2010.

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Resenhas 229

BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes instrutórios do juiz. 4. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

José Roberto Bedaque é professor titular de Direito da Universidade de


São Paulo (USP) e, na condição de Desembargador do Tribunal de Justiça de
São Paulo, destaca-se por suas brilhantes posições doutrinárias no âmbito do
Direito Processual Civil.
De acordo com a obra Poderes instrutórios do juiz, o objetivo da atividade
jurisdicional é a manutenção da integridade do ordenamento jurídico. Nesse
sentido, o magistrado deve se esforçar para alcançá-la, a fim de cumprir a sua
função social.
A prova obtida, na grande maioria dos casos, é o fator decisivo para a
conclusão do órgão jurisdicional, o qual deve assumir posição ativa na fase
investigatória, não se limitando a analisar apenas os elementos fornecidos pelas
partes, mas também a procurá-los, quando entender necessário. Portanto, a ini-
ciativa probatória do juiz é elemento indissociável da efetividade do processo.
Pelo contexto da obra, resta evidente a ideia de que a participação do
juiz na produção probatória contribui sobremaneira para proporcionar uma
real igualdade entre as partes no processo, desde que se preserve o contradi-
tório efetivo e equilibrado.
O autor vai além do que prevê o texto normativo. Enfatiza que as regras
referentes à distribuição do ônus da prova não podem ser argumento para
impedir a atividade probatória do juiz, visto que elas constituem somente
regras de julgamento e não devem, por isso, ser invocadas em momento
processual anterior.
Finalmente, conclui que a prova pertence a todos os participantes da
relação processual; às partes, porque procuram demonstrar os fatos favorá-
veis aos seus interesses; ao juiz, pois, através da prova, alcança-se o escopo
do processo. A atividade do magistrado não implica apenas determinar uma
prova que se julgue importante à formação do seu convencimento, inclui,
também, o poder de interferir na produção da prova requerida pelas partes.
Faz-se, portanto, tudo para alcançar os objetivos do processo.

Giovanna Sabino Guaritá Charafeddine


Advogada.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes instrutórios do juiz. 4. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2009. Resenha de: CHARAFEDDINE, Giovanna Sabino Guaritá. Revista Brasileira
de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 71, p. 229, jul./set. 2010.

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Índice 231

Índice
página página

página página

Doutrina e Resenha LEVY, Wilson


- Artigo: Da crítica da dogmática jurídica
Autor à hermenêutica constitucional: reflexões
sobre a (in)eficácia das normas de prote-
BOMFIM, Daniela ção do meio ambiente saudável............. 91
- Parecer: Exercício tardio de situações jurí-
dicas ativas. O silêncio como fato jurídico LIEBMAN, Enrico Tullio
extintivo: renúncia tácita e suppressio.........189 - Artigo: Institutos do direito comum no
processo civil brasileiro........................... 43
BORGES, Rodrigo Lanzi de Moraes
- Artigo: Os meios de defesa do executado MAGALHÃES, Joseli Lima
após a nova sistemática da execução - Artigo: Técnica normativa estrutural das
civil por quantia certa contra devedor decisões jurisdicionais no Estado Demo-
solvente.................................................... 129 crático de Direito.................................... 113

CHARAFEDDINE, Giovanna Sabino Guaritá MELO, Luiz Carlos Figueira de


- Resenha: BEDAQUE, José Roberto - Artigo: Súmula vinculante – Edição em
dos Santos. Poderes instrutórios do juiz.
matéria de Direito Administrativo e ins-
4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
trumentos de controle............................ 153
2009........................................................... 229
MONNERAT, Fábio Victor da Fonte
DIDIER JR., Fredie
- Artigo: Tutela específica das obrigações
- Parecer: Exercício tardio de situações jurí-
de fazer, não fazer e entregar coisa...... 163
dicas ativas. O silêncio como fato jurídico
extintivo: renúncia tácita e suppressio.......189
RAMOS, Glauco Gumerato
GOMES, Magno Federici - Artigo: Sistema de enjuizamento esca-
- Artigo: Do pressuposto único para inci- lonado (ou procedimento judicial fun-
dência do princípio da fungibilidade dos cionalmente escalonado). Repensando o
recursos no processo civil........................ 11 modelo de processo.................................. 65

HOMMERDING, Adalberto Narciso RODRIGUES, Marco Aurélio Abrantes


- Resenha: MOTTA, Francisco José Borges. - Artigo: Do pressuposto único para inci-
Levando o direito a sério: uma crítica herme- dência do princípio da fungibilidade dos
nêutica ao protagonismo judicial. Floria- recursos no processo civil........................ 11
nópolis: Conceito, 2010. 232 p. (Coleção
Lenio Luiz Streck)................................... 217 SILVA, Daniela Juliano
- Artigo: Súmula vinculante – Edição em
LEMOS, Jonathan Iovane de matéria de Direito Administrativo e ins-
- Artigo: Pedido de reconsideração........... 69 trumentos de controle............................ 153

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232 Índice

página página

Título SÚMULA vinculante – Edição em matéria


de Direito Administrativo e instrumentos
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Pode- de controle
res instrutórios do juiz. 4. ed. São Paulo: - Artigo de: Daniela Juliano Silva, Luiz
Revista dos Tribunais, 2009. Carlos Figueira de Melo........................ 153
- Resenha de: Giovanna Sabino Guaritá
Charafeddine........................................... 229 TÉCNICA normativa estrutural das deci-
sões jurisdicionais no Estado Democrático
CRÍTICA da dogmática jurídica à herme- de Direito
nêutica constitucional: reflexões sobre a - Artigo de: Joseli Lima Magalhães.......... 113
(in)eficácia das normas de proteção do
meio ambiente saudável, Da TUTELA específica das obrigações de fazer,
- Artigo de: Wilson Levy............................. 91 não fazer e entregar coisa
- Artigo de: Fábio Victor da Fonte Monne-
EXERCÍCIO tardio de situações jurídicas rat.............................................................. 163
ativas. O silêncio como fato jurídico extin-
tivo: renúncia tácita e suppressio Assunto
- Parecer de: Fredie Didier Jr., Daniela
Bomfim..................................................... 189 A
AMPLO ACESSO À JURISDIÇÃO
INSTITUTOS do direito comum no pro- - Ver: Do pressuposto único para incidência
cesso civil brasileiro do princípio da fungibilidade dos recur-
- Artigo de: Enrico Tullio Liebman............. 43 sos no processo civil. Artigo de: Magno
Federici Gomes, Marco Aurélio Abrantes
MEIOS de defesa do executado após a nova Rodrigues................................................... 11
sistemática da execução civil por quantia
certa contra devedor solvente, Os C
- Artigo de: Rodrigo Lanzi de Moraes CELERIDADE
Borges....................................................... 129
- Ver: Os meios de defesa do executado
após a nova sistemática da execução civil
MOTTA, Francisco José Borges. Levando
por quantia certa contra devedor solvente.
o direito a sério: uma crítica hermenêutica
Artigo de: Rodrigo Lanzi de Moraes
ao protagonismo judicial. Florianópo-
Borges....................................................... 129
lis: Conceito, 2010. 232 p. (Coleção Lenio
Luiz Streck).
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC)
- Resenha de: Adalberto Narciso Hommer-
- Ver: Pedido de reconsideração. Artigo de:
ding........................................................... 217
Jonathan Iovane de Lemos...................... 69
PEDIDO de reconsideração
- Artigo de: Jonathan Iovane de Lemos..... 69 CÓDIGOS NAPOLEÔNICOS
- Ver: Institutos do direito comum no pro-
PRESSUPOSTO único para incidência do cesso civil brasileiro. Artigo de: Enrico
princípio da fungibilidade dos recursos no Tullio Liebman.......................................... 43
processo civil, Do
- Artigo de: Magno Federici Gomes, Marco COLONIZAÇÕES
Aurélio Abrantes Rodrigues................... 11 - Ver: Institutos do direito comum no pro-
cesso civil brasileiro. Artigo de: Enrico
SISTEMA de enjuizamento escalonado Tullio Liebman.......................................... 43
(ou procedimento judicial funcionalmente
escalonado). Repensando o modelo de CONSTITUIÇÃO
processo - Ver: Da crítica da dogmática jurídica à her-
- Artigo de: Glauco Gumerato Ramos....... 65 menêutica constitucional: reflexões sobre

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Índice 233

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a (in)eficácia das normas de proteção E


do meio ambiente saudável. Artigo de: EDIÇÃO EM MATÉRIA DE DIREITO
Wilson Levy............................................... 91 ADMINISTRATIVO
- Ver: Súmula vinculante – Edição em
CRÍTICA DA DOGMÁTICA JURÍDICA matéria de Direito Administrativo e ins-
- Ver: Da crítica da dogmática jurídica à trumentos de controle. Artigo de: Daniela
hermenêutica constitucional: reflexões Juliano Silva, Luiz Carlos Figueira de
sobre a (in)eficácia das normas de prote- Melo.......................................................... 153
ção do meio ambiente saudável. Artigo de:
Wilson Levy............................................... 91 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
- Ver: Técnica normativa estrutural das
D decisões jurisdicionais no Estado Demo-
DECISÕES JURISDICIONAIS crático de Direito. Artigo de: Joseli Lima
- Ver: Técnica normativa estrutural das Magalhães................................................ 113
decisões jurisdicionais no Estado Demo-
EXECUÇÃO CIVIL
crático de Direito. Artigo de: Joseli Lima
- Ver: Os meios de defesa do executado
Magalhães................................................ 113
após a nova sistemática da execução civil
por quantia certa contra devedor solvente.
DIREITO COMUM Artigo de: Rodrigo Lanzi de Moraes
- Ver: Institutos do direito comum no pro- Borges....................................................... 129
cesso civil brasileiro. Artigo de: Enrico
Tullio Liebman.......................................... 43 EXECUÇÃO ESPECÍFICA
- Ver: Tutela específica das obrigações de
DIREITO CONSTITUCIONAL E PROCES- fazer, não fazer e entregar coisa. Artigo de:
SUAL Fábio Victor da Fonte Monnerat........... 163
- Ver: Do pressuposto único para incidência
do princípio da fungibilidade dos recur- F
sos no processo civil. Artigo de: Magno FORMAÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO
Federici Gomes, Marco Aurélio Abrantes BRASILEIRO
Rodrigues................................................... 11 - Ver: Institutos do direito comum no pro-
cesso civil brasileiro. Artigo de: Enrico
DIREITO IBÉRICO MEDIEVAL Tullio Liebman.......................................... 43
- Ver: Institutos do direito comum no pro-
cesso civil brasileiro. Artigo de: Enrico FORMAÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO
Tullio Liebman.......................................... 43 - Ver: Institutos do direito comum no pro-
cesso civil brasileiro. Artigo de: Enrico
DIREITOS FUNDAMENTAIS Tullio Liebman.......................................... 43
- Ver: Da crítica da dogmática jurídica à
FUEROS ESPANHÓIS
hermenêutica constitucional: reflexões
- Ver: Institutos do direito comum no pro-
sobre a (in)eficácia das normas de prote-
cesso civil brasileiro. Artigo de: Enrico
ção do meio ambiente saudável. Artigo de:
Tullio Liebman.......................................... 43
Wilson Levy............................................... 91
H
DÚVIDA OBJETIVA HERMENÊUTICA
- Ver: Do pressuposto único para incidência - Ver: Da crítica da dogmática jurídica à
do princípio da fungibilidade dos recur- hermenêutica constitucional: reflexões
sos no processo civil. Artigo de: Magno sobre a (in)eficácia das normas de prote-
Federici Gomes, Marco Aurélio Abrantes ção do meio ambiente saudável. Artigo de:
Rodrigues................................................... 11 Wilson Levy............................................... 91

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234 Índice

página página

I O
INSTITUTOS DO DIREITO COMUM NO OBRIGAÇÃO DE FAZER, NÃO FAZER E
PROCESSO CIVIL BRASILEIRO ENTREGAR COISA
- Ver: Institutos do direito comum no pro- - Ver: Tutela específica das obrigações de
cesso civil brasileiro. Artigo de: Enrico fazer, não fazer e entregar coisa. Artigo de:
Tullio Liebman.......................................... 43 Fábio Victor da Fonte Monnerat........... 163

INSTRUMENTOS DE CONTROLE ORDENAÇÕES PORTUGUESAS


- Ver: Súmula vinculante – Edição em - Ver: Institutos do direito comum no pro-
matéria de Direito Administrativo e ins- cesso civil brasileiro. Artigo de: Enrico
trumentos de controle. Artigo de: Daniela Tullio Liebman.......................................... 43
Juliano Silva, Luiz Carlos Figueira de
Melo.......................................................... 153 P
PEDIDO DE RECONSIDERAÇÃO
INVASÃO FRANCESA - Ver: Pedido de reconsideração. Artigo de:
- Ver: Institutos do direito comum no pro- Jonathan Iovane de Lemos...................... 69
cesso civil brasileiro. Artigo de: Enrico
Tullio Liebman.......................................... 43 PODER JUDICIÁRIO
- Ver: Sistema de enjuizamento escalonado
M (ou procedimento judicial funcional-
MEDIDAS EXECUTIVAS mente escalonado). Repensando o modelo
- Ver: Tutela específica das obrigações de de processo. Artigo de: Glauco Gumerato
fazer, não fazer e entregar coisa. Artigo de: Ramos......................................................... 65
Fábio Victor da Fonte Monnerat........... 163
PRECLUSÃO
MEIO AMBIENTE - Ver: Pedido de reconsideração. Artigo de:
- Ver: Da crítica da dogmática jurídica à Jonathan Iovane de Lemos...................... 69
hermenêutica constitucional: reflexões
sobre a (in)eficácia das normas de prote- PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE RE-
ção do meio ambiente saudável. Artigo de: CURSAL
Wilson Levy............................................... 91 - Ver: Do pressuposto único para incidência
do princípio da fungibilidade dos recur-
MEIOS DE DEFESA sos no processo civil. Artigo de: Magno
- Ver: Os meios de defesa do executado Federici Gomes, Marco Aurélio Abrantes
após a nova sistemática da execução civil Rodrigues................................................... 11
por quantia certa contra devedor solvente.
Artigo de: Rodrigo Lanzi de Moraes PROCEDIMENTO JUDICIAL
Borges....................................................... 129 - Ver: Sistema de enjuizamento escalonado
(ou procedimento judicial funcionalmente
MODELO CONSTITUCIONAL escalonado). Repensando o modelo de
- Ver: Técnica normativa estrutural das processo. Artigo de: Glauco Gumerato
decisões jurisdicionais no Estado Demo- Ramos......................................................... 65
crático de Direito. Artigo de: Joseli Lima
Magalhães................................................ 113 PROCESSO PENAL
- Ver: Sistema de enjuizamento escalonado
MULTA (ou procedimento judicial funcionalmente
- Ver: Tutela específica das obrigações de escalonado). Repensando o modelo de
fazer, não fazer e entregar coisa. Artigo de: processo. Artigo de: Glauco Gumerato
Fábio Victor da Fonte Monnerat........... 163 Ramos......................................................... 65

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Índice 235

página página

R SITUAÇÕES JURÍDICAS ATIVAS


RECURSO INADEQUADO - Ver: Exercício tardio de situações jurídi-
- Ver: Do pressuposto único para incidência cas ativas. O silêncio como fato jurídico
do princípio da fungibilidade dos recur- extintivo: renúncia tácita e suppressio.
sos no processo civil. Artigo de: Magno Parecer de: Fredie Didier Jr., Daniela
Federici Gomes, Marco Aurélio Abrantes Bomfim..................................................... 189
Rodrigues................................................... 11
SÚMULAS VINCULANTES
RENÚNCIA TÁCITA - Ver: Súmula vinculante – Edição em
- Ver: Exercício tardio de situações jurídi- matéria de Direito Administrativo e ins-
cas ativas. O silêncio como fato jurídico trumentos de controle. Artigo de: Daniela
extintivo: renúncia tácita e suppressio. Juliano Silva, Luiz Carlos Figueira de
Parecer de: Fredie Didier Jr., Daniela Melo.......................................................... 153
Bomfim..................................................... 189
SUPPRESSIO
S - Ver: Exercício tardio de situações jurídi-
SIETE PARTIDAS cas ativas. O silêncio como fato jurídico
- Ver: Institutos do direito comum no pro- extintivo: renúncia tácita e suppressio.
cesso civil brasileiro. Artigo de: Enrico Parecer de: Fredie Didier Jr., Daniela
Tullio Liebman.......................................... 43 Bomfim..................................................... 189

SILÊNCIO COMO FATO JURÍDICO T


EXTINTIVO TÉCNICA NORMATIVA
- Ver: Exercício tardio de situações jurídi- - Ver: Técnica normativa estrutural das
cas ativas. O silêncio como fato jurídico decisões jurisdicionais no Estado Demo-
extintivo: renúncia tácita e suppressio. crático de Direito. Artigo de: Joseli Lima
Parecer de: Fredie Didier Jr., Daniela Magalhães................................................ 113
Bomfim..................................................... 189

SISTEMA DE ENJUIZAMENTO ESCALO-


NADO
- Ver: Sistema de enjuizamento escalonado
(ou procedimento judicial funcionalmente
escalonado). Repensando o modelo de
processo. Artigo de: Glauco Gumerato
Ramos......................................................... 65

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Instruções de publicação para os autores 237

Instruções de publicação para os autores

Os trabalhos para publicação na Revista Brasileira de Direito Processual –


RBDPro, ISSN 0100-2589, editada pela Editora Fórum e com periodicidade
trimestral, deverão ser encaminhados, no formato eletrônico, para o seguinte
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Os textos para publicação na RBDPro deverão ser inéditos e para publi-
cação exclusiva. Uma vez publicados nesta revista, também poderão sê-lo em
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recebido, de acordo com as recomendações do seu corpo editorial, como tam-
bém o direito de propor eventuais alterações.
Os trabalhos deverão ser redigidos em formato Word, fonte Times New
Roman, tamanho 12, espaçamento entre linhas de 1,5. Os parágrafos devem
ser justificados. O tamanho do papel deve ser A4 e as margens utilizadas
idênticas de 3cm. Número médio de 15/40 laudas. Deverão, ainda, estar
acompanhados dos seguintes dados: nome do autor, sua qualificação acadê-
mica e profissional, endereço, telefone e e-mail.
Os textos devem ser revisados, além de terem sua linguagem adequada
a uma publicação editorial científica. A escrita deve obedecer às novas regras
ortográficas em vigor desde a promulgação do ACORDO ORTOGRÁFICO
DA LÍNGUA PORTUGUESA, a partir de 1º de janeiro de 2009. As citações de
textos anteriores ao ACORDO devem respeitar a ortografia original.
Os originais dos artigos devem ser apresentados de forma completa,
contendo: título do artigo (na língua do texto e em inglês), nome do autor,
filiação institucional, qualificação (mestrado, doutorado, cargos etc.), resumo
do artigo, de até 250 palavras (na língua do texto e em inglês – Abstract),
palavras-chave, no máximo 5 (na língua do texto e em inglês – Key words),
sumário do artigo, epígrafe (se houver), texto do artigo, referências. O Autor
deverá fazer constar, no final do artigo, a data e o local em que foi escrito o
trabalho de sua autoria.
Recomenda-se que todo destaque que se queira dar ao texto seja feito
com o uso de itálico e não por meio do negrito e do sublinhado. As citações
(palavras, expressões, períodos) deverão ser cuidadosamente conferidas
pelos autores e/ou tradutores; as citações textuais longas (mais de três linhas)
devem constituir um parágrafo independente, com recuo esquerdo de 2cm
(alinhamento justificado), utilizando-se espaçamento entre linhas simples e
tamanho da fonte 10; as citações textuais curtas (de até três linhas) devem
ser inseridas no texto, entre aspas e sem itálico. As expressões em língua
estrangeira deverão ser padronizadas e destacadas em itálico. O uso do op. cit.,
ibidem e do idem nas notas bibliográficas deve ser evitado, substituindo-o pelo
nome da obra por extenso.

R. bras. Dir. proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 71, p. 237-238, jul./set. 2010

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238 Instruções de publicação para os autores

Os trabalhos serão selecionados pelos Diretores e pelo Conselho


Editorial da Revista, que entrarão em contato com os respectivos autores para
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Esta obra foi composta em fontes Palatino
Linotype, corpo 9/12 e impressa em papel
Offset 75g (miolo) e Supremo 250g (capa)
pela Gráfica e Editora O LUTADOR. Belo
Horizonte/MG, setembro de 2010.

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