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79
Revista Brasileira de
Revista Brasileira de DIREITO PROCESSUAL
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DOUTRINA, NOTAS E COMENTÁRIOS e RESENHAS constante
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científico
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ideias ino
E-ma
con
ano 20 . jul./set. 2012
Conselho Editorial
Alexandre Freitas Câmara Eduardo da Fonseca Costa José Rogerio Cruz e Tucci
Ana Paula Chiovitti Eduardo Talamini Jurandir Sebastião
Antonio Carlos Marcato Ernane Fidélis dos Santos Lídia Prata Ciabotti
Antonio Gidi Evaldo Marco Antônio Luciano Borges Camargos
A. João D’Amico Fredie Didier Jr. Luiz Eduardo R. Mourão
Araken de Assis Glauco Gumerato Ramos Luiz Fernando Valladão Nogueira
Aristoteles Atheniense Gil Ferreira de Mesquita Luiz Fux
Arruda Alvim Humberto Theodoro Júnior Luiz Guilherme Marinoni
Carlos Alberto Carmona Luiz Rodrigues Wambier
Jefferson Carús Guedes
Marcelo Abelha Rodrigues
Carlos Henrique Bezerra Leite J.E. Carreira Alvim
Marcelo Lima Guerra
Cassio Scarpinella Bueno J.J. Calmon de Passos (in memoriam)
Maria Elizabeth de Castro Lopes
Chedid Georges Abdulmassih João Batista Lopes Mariângela Guerreiro Milhoranza
Claudiovir Delfino João Delfino Ovídio A. Baptista da Silva (in memoriam)
Daniel Mitidiero Jorge Henrique Mattar Petrônio Calmon Filho
Darci Guimarães Ribeiro José Alfredo de Oliveira Baracho (in memoriam) Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias
Dierle Nunes José Carlos Barbosa Moreira Sérgio Cruz Arenhart
Djanira Maria Radamés de Sá José Maria Rosa Tesheiner Sérgio Gilberto Porto
Donaldo Armelin José Miguel Garcia Medina Teresa Arruda Alvim Wambier
Eduardo Arruda Alvim José Roberto dos Santos Bedaque Teori A. Zavascki
Conselho de Redação
André Menezes Delfino José Henrique Mouta Luiz Gustavo de Freitas Pinto
Bruno Campos Silva Leonardo Vitório Salge Marcus Vinícios Correa Maia
Eduardo Carvalho Azank Abdu Leone Trida Sene Paulo Leonardo Vilela Cardoso
Frederico Paropat de Souza Luciana Cristina Minaré Pereira Pércio Henrique Barroso
Helmo Marques Borges Luciana Fragoso Maia Ricardo Delfino
Hugo Leonardo Teixeira Luciano Lamano Richard Crisóstomo Borges Maciel
Jarbas de Freitas Peixoto Luciano Roberto Del Duque Rodrigo Corrêa Vaz de Carvalho
Luiz Arthur de Paiva Corrêa Wanderson de Freitas Peixoto
José Carlos de Araujo Almeida Filho
Yves Cássius Silva
Conselho Internacional
Alvaro Pérez Ragone (Chile) Miguel Teixeira de Sousa (Portugal) Juan Montero Aroca (Espanha)
Edoardo Ricci (Itália) Paula Costa e Silva (Portugal)
Pareceristas ad hoc
André Del Negri Dnieper Chagas de Assis Roberta Toledo Campos
Carlos Eduardo do Nascimento Mônica Cecilio Rodrigues Sérgio Henrique Tiveron Juliano
Carlos Gustavo Rodrigues Del Prá Murillo Sapia Gutier Sérgio Luiz de Almeida Ribeiro
Editorial ..........................................................................................................................................................7
DOUTRINA
Artigos
O garantismo processual
Adolfo Alvarado Velloso..............................................................................................................................................13
1 O que é o processo: sua causa e razão de ser.................................................................... 14
2 Os princípios que regulam o processo................................................................................. 15
3 Os sistemas judiciais.................................................................................................................... 20
3.1 O sistema acusatório ou dispositivo ..................................................................................... 20
3.2 O sistema inquisitório................................................................................................................. 23
3.3 O sistema misto............................................................................................................................ 24
4 O que é o devido processo....................................................................................................... 27
5 O que é o garantismo processual........................................................................................... 30
6 O que é o ativismo judicial a partir da ótica garantista.................................................. 33
Crítica à tradicional opção pela teoria da correspondência como critério para a obtenção
da verdade no processo penal
Felipe Martins Pinto................................................................................................................................................... 175
1 Apontamentos sobre a teoria da correspondência.......................................................175
2 A impossibilidade ideológica, teórica e prática de se alcançar – A verdade no
processo penal a partir da teoria da correspondência.................................................178
2.1 Impossibilidade ideológica....................................................................................................179
2.2 Impossibilidade teórica............................................................................................................179
2.3 Impossibilidade prática............................................................................................................181
3 Conclusão.....................................................................................................................................188
Referências ..................................................................................................................................189
Parecer
NOTAS E COMENTÁRIOS
Comentários sobre o parecer “Os poderes do Ministério Público na Ação Civil Pública”
proferido por José Manoel de Arruda Alvim Netto
Gisele Mazzoni Welsch.............................................................................................................................................. 223
1 Breve resumo do parecer........................................................................................................223
2 Fundamentos jurídicos do parecer......................................................................................224
3 Breves comentários à fundamentação do parecer........................................................226
3.1 Legitimação ativa do Ministério Público...........................................................................226
3.2 Inviabilidade da desistência da ação..................................................................................227
Legislação e dispositivos legais utilizados........................................................................229
Referências...................................................................................................................................229
Por que a prova de ofício contraria o devido processo legal? Reflexões na perspectiva
do garantismo processual
Sérgio Luiz de Almeida Ribeiro............................................................................................................................. 231
1 Garantismo processual e devido processo legal............................................................231
2 Iniciativa probatória das partes............................................................................................233
3 Da imparcialidade comprometida com a prova de ofício...........................................236
4 Conclusão.....................................................................................................................................238
RESENHAS
DIDIER JR., Fredie. Sobre a Teoria Geral do Processo, essa desconhecida. Salvador:
JusPodivm, 2012.
Bruno Garcia Redondo.............................................................................................................................................. 241
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 7-9, jul./set. 2012
8 Editorial
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 7-9, jul./set. 2012
Editorial 9
Os Diretores
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 7-9, jul./set. 2012
DOUTRINA
Artigos
O garantismo processual1
Adolfo Alvarado Velloso
Professor de Teoria Geral de Direito Processual
em várias Universidades da América. Diretor do
Mestrado em Direito Processual da Universidad
Nacional de Rosario (UNR – Argentina). Presidente
do Instituto Argentino de Derecho Procesal Garantista.
Ex-Presidente do Instituto Panamericano de Derecho
Procesal. Currículo completo pode ser visualizado
em <www.adolfoalvarado.com.ar>.
E-mail: <aav@alvarado-abogados.com>.
Glauco Gumerato Ramos2 pediu-me para intervir nesta sua obra que
pretende mostrar aos juristas brasileiros a existência do árduo e recorrente
debate doutrinário que teve início na última década do século passado e que
hoje segue vigente entre alguns processualistas argentinos e ibero-america-
nos em geral.
Glauco é aluno egresso da 11ª turma do curso de Mestrado em Direito Processual ministrado
2
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 13-37, jul./set. 2012
14 Adolfo Alvarado Velloso
Com efeito, instruiu-me acerca daquilo a que me cabia escrever neste livro:
explicar o que é o movimento filosófico autodenominado garantismo processual,
hoje com ramificações por toda a América hispanoparlante, Espanha, Itália e no
próprio Brasil. De tal modo, o leitor poderá comparar seu conteúdo com o da
filosofia mostrada pelo discurso do chamado ativismo judicial, a respeito do qual
aqui, neste mesmo livro, escreveu um eminente autor de meu país.
Para tanto, não tenho outra alternativa a não ser abusar da paciência do
leitor e, assim, recordar conceitos por todos conhecidos, mas, a respeito dos
quais, tais movimentos (ativismo e garantismo) discrepam contundentemente
por diferentes razões, fonte e fim.
E isso porque o garantismo postula e pretende a irrestrita e plena vigência
do sistema acusatório ou dispositivo de ajuizamento, tanto no processo penal
como no civil, enquanto o ativismo aceita e mantém o sistema inquisitivo ou
inquisitório para todo tipo de processo (penal ou civil). E, como logo se verá,
ambos são claramente antagônicos e incompatíveis, jurídica e moralmente.
Que esta explicação sirva como respeitosa escusa pela reiteração das
ideias que começo a expor a seguir!
E não como método de investigação, tal como o concebe o sistema inquisitivo, como logo se verá.
3
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 13-37, jul./set. 2012
O garantismo processual 15
Quando, por outras razões, a autocomposição não se fazia possível, a
civilidade não deixava ao indivíduo outra alternativa — tal como ocorre até
nossos dias — que não fosse a heterocomposição pública, que opera sob a
forma de processo judicial.
A par disso, e complementando o que a pouco foi assinalado de que o pro-
cesso é um método de discussão, agora o apresento como meio4 de debate dia-
logal e argumentativo que se realiza entre dois sujeitos naturalmente desiguais
em posições antagônicas em relação a um mesmo bem da vida e que se igualam
juridicamente para os fins da atuação do diretor do debate (= juiz), que com isso
deve ostentar sempre três qualidades essenciais: imparcialidade, impartialidade
e independência, e tudo para assegurar a permanente bilateralidade.5
Assim concebido e a fim de completar a ideia inicialmente esboçada,
creio que nesses termos pode se afirmar que a razão de ser do processo é a
erradicação de toda força ilegítima dentro de dada sociedade, para manter um
estado perpétuo de paz e de respeito às normas adequadas de convivência que
todos devem acatar.6
Com efeito, não importa se uma corrente doutrinária considera que o ato
de julgar nada mais é do que a concretização da lei, ainda que outras ampliem
notavelmente esse critério; em todo caso é imprescindível deixar claro que a
razão de ser do processo permanece inalterada: trata-se de manter a paz social,
evitando que os particulares façam justiça pelas próprias mãos. E para isso a dis-
cussão é pacífica e regulada por lei. Finda a discussão, e desde que os próprios
interessados não logrem autocompor o conflito, sua heterocomposição será rea-
lizada pelo juiz em sua sentença que, assim vista, erige-se no objeto do processo.
4
Atenção para essa ideia: o processo é método e, como tal, meio, não meta a atingir (a meta do
processo como meio de discussão é a obtenção de uma sentença). Por outro lado, quando o
processo é visto como método de investigação, a meta é a busca da verdade, e isso às vezes
ocorre a qualquer preço. Adianto desde já que na ocorrência de tensão entre meio e meta
(método e sentença), o pensamento garantista privilegia sempre o método, pois, do contrário,
ter-se-á que dar razão a Maquiavel: os fins justificam os meios.
5
A bilateralidade significa audiência recíproca (= contraditório). De tal modo, e graças a ela,
tudo o que diz ou faz uma das partes deve ser comunicado a outra para que diga e faça o que
pretenda a respeito. E vice-versa.
6
Fique claro desde já que, para o garantismo, o processo pouco tem que ver com a busca da
verdade, como habitualmente se diz de seu objeto ou de sua razão de ser. Voltaremos a nos
referir a esse tema.
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16 Adolfo Alvarado Velloso
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O garantismo processual 17
E quando elege um deles para consagrá-lo na lei, por exemplo, a imediação,
automaticamente deixa de lado o seu par antinômico, a mediação, pois resulta
impossível aceitar que o juiz possa atuar com mediação e imediação ao mesmo
tempo.
Ao lado desses, existem outros “princípios” que se apresentam invaria-
velmente em forma unitária, já que logicamente não admitem a existência de
um par antinômico. Por exemplo: a imparcialidade do julgador (admite-se sua
parcialidade?), a igualdade das partes litigantes (admite-se sua desigualdade?),
e assim por diante.
Dadas essas óbvias diferenças e tendo em conta que alguns “princípios”
constituem a essência mesma do processo, ao passo que outros não, pois apenas
referem-se ao desenvolvimento do trâmite procedimental, é de se aceitar tranqui-
lamente a opinião daqueles que propõem denominar princípios apenas os que
sejam unitários, já que isso propicia o uso do sintagma regras procedimentais (pró-
prias das atividades de processar e sentenciar) para nomear a todos os binários.
Finalmente, na doutrina majoritária existem outros “princípios”: o acusa
tório ou dispositivo e o inquisitório ou inquisitivo que não são unitários e, por-
tanto, não podem ser catalogados como princípios. Mas tampouco são regras,
ainda que se mostrem com aparência binária já que, em essência, são sistemas
de ajuizamento e, como tais, compreendem uma gama diferenciada de verda-
deiros princípios e de autênticas regras.
De tal maneira, nesta exposição apresentarei como tópicos diferentes o
dos princípios processuais, o sobre as regras técnicas do debate e da atividade
de sentenciar, e outro sobre os sistemas de ajuizamento.
Como compreender-se-á logo, o sistema acusatório é a conjunção dos
princípios que fazem a essência mesma do processo e aparece como tal no
mundo jurídico sem se importar com as regras que de fato7 utilizam-se para o
desenvolvimento de seu trâmite. Do mesmo modo, o sistema inquisitivo é uma
simples somatória de regras procedimentais que se exibem sempre em forma
isolada e carente dos princípios antes enunciados.8
7
É evidente que o sistema acusatório sempre gera um verdadeiro processo, pois o juiz é imparcial
e, com isso, possibilita a igualdade dos parciais. E para tais fins, é indiferente se o trâmite é oral
ou escrito, com ou sem imediação etc.
8
Bem observadas as coisas, o sistema inquisitório é um conjunto de regras que não corresponde
ao que eu qualifiquei como princípios processuais, pois o fato de o juiz ser o responsável pelo
impulso oficial e, ademais, proceder de ofício (no penal) e provar por si mesmo as afirmações
das partes civis quando elas não se ocuparam de fazê-lo, resulta numa óbvia perda da
imparcialidade nos termos em que se conceitua neste trabalho. Para terminar: nada importa
se o procedimento é oral ou escrito quando o juiz não é imparcial. O que disso resulta será
sempre um procedimento e não um verdadeiro processo.
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18 Adolfo Alvarado Velloso
São eles: 1) a imparcialidade do julgador; 2) a igualdade dos parciais (partes) que litigam; 3) a
9
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O garantismo processual 19
Por isso é que se diz despreocupada e erroneamente que os juízes do
sistema inquisitivo podem ser e de fato são imparciais nos processos em que
atuam.
E isso ocorre por que os juízes em geral, e desde sempre, vislumbram
a palavra imparcialidade a partir de uma ótica puramente pessoal, e nunca a
partir da ótica funcional, que é a perspectiva correta de enxergá-la.
É certo que um juiz impoluto do sistema inquisitivo pode não ter interesse
pessoal em que alguém saia vitorioso ou derrotado da demanda. Mas é óbvio que
o interesse deve ser funcional, da mesma forma que deve tê-lo o Ministério Público
quando acusador, em relação a quem, absurdamente, já foi afirmado que é parte
imparcial do processo penal.10
De tal forma, o juiz não deve ter interesse pessoal nem funcional no desen-
volvimento nem no resultado do processo.
Se bem se vislumbra todas as qualidades definidoras do vocábulo que acabo
de mencionar, a tarefa de ser imparcial é assaz difícil já que exige absoluta e assép
tica neutralidade, que deve ser praticada na atividade judicante com todas as qua-
lidades que envolvem o vocábulo.
A natural consequência dessa concepção da imparcialidade gera o segundo
dos princípios e ao qual a doutrina coloca sempre sobre o primeiro. Refiro-me ao
princípio da igualdade das partes, que vigerá plenamente conforme seja o juiz devi
damente imparcial.
Assim é já que essencialmente todo processo supõe a presença de dois
sujeitos (caráter dual do conceito de parte) que mantém posições antagôni-
cas a respeito de uma mesma questão (pretensão e resistência; protagonista
e antagonista). E bem se sabe que se isso não ocorre estar-se-á diante de um
simples procedimento, e não ante um processo.11
Se a razão do processo é erradicar a força ilegítima de uma dada socie-
dade e, com isso, igualar juridicamente as diferenças naturais que irremediavel-
mente separam os homens, é da essência lógica do processo que o debate12 se
efetue em pé de perfeita igualdade.13
10
Sem chamar a atenção para quem assim o afirma, isso é uma contradictio in terminis (uma
contradição do substantivo com adjetivo), um disparate lógico impossível de explicar. É o
mesmo que dizer o bom-mau, o belo-feio etc.
11
Desenvolvi com vagar todas essas ideias em meu Sistema processal: garantia de la libertad.
Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, 2009. 2. t.
12
Insisto recorrentemente que o debate processual é luta, e não um passeio alegre e despreocu-
pado das partes, de mãos dadas, a caminho do parque. Portanto, os contendores — protago-
nista e antagonista — não estão interessados na busca da verdade — tal como afirmam ilustres
tratadistas — senão em ganhar quanto ao que foi pretendido ou quanto ao que foi resistido.
13
Se não se aceita a imprescindível necessidade que tem as partes de discutir em situação de
exata igualdade jurídica, e com isso se mantém no processo a natural desigualdade humana,
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 13-37, jul./set. 2012
20 Adolfo Alvarado Velloso
3 Os sistemas judiciais
Vejamos agora as diferenças existentes entre ambos os sistemas já men-
cionados.
por que então optamos por adotar o processo como método de debate? Não é isso uma
simples hipocrisia? Não é mais fácil e honesto continuar a antiga tradição do uso da força?
14
A igualdade jurídica não se corresponde com a igualdade física, já que esta é natural ao homem
tanto quanto aquela é dada pela lei para aplacar essa desigualdade mediante a outorga de
uma simples igualdade no trato, e nada mais. Advirta-se que num pleito entre empregado e
empregador, ambos seguem sendo quem sempre foram durante todo o curso do processo,
por mais esforço que faça o juiz do sistema inquisitivo, que jamais poderá atingir uma igual-
dade efetivamente real entre eles. E é essa igualdade, e não outra, a que se referem todos os
Pactos que buscam a igualdade entre os homens.
15
Insista-se que a ideia lógica do processo requer a presença contemporânea de três pessoas:
quem pretende algo, aquele contra quem se pretende e o terceiro que dirigirá o debate e que
eventualmente o sentenciará. Daí sua tipificação como método bilateral.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 13-37, jul./set. 2012
O garantismo processual 21
É entendimento assente na doutrina majoritária que um processo se
desenvolve no sistema dispositivo quando as partes são donas absolutas do
impulso processual (portanto, são elas que decidem quando ativar ou paralisar
a marcha do processo), e são as que fixam os termos exatos do litígio a resolver,
afirmando e reconhecendo, ou negando, os fatos apresentados a apreciação e
julgamento, levando aos autos o material necessário para confirmar suas alega-
ções, e que podem por fim ao pleito no momento e pelos meios que desejarem.
Como se vê, isso sugere uma filosofia liberal que tem o sujeito como centro e
destinatário do sistema. A natural consequência disso é que o juiz do sistema
acusatório carece de poder impulsionador, tem de aceitar como certos os fatos
admitidos pelas partes, bem como conformar-se com os meios de prova por elas
produzidos e, com isso, deve resolver conforme o ordenamento legal, ajustan-
do-se estritamente à matéria controvertida em função daquilo que foi afirmado
e negado nas respectivas etapas.
Esse antigo sistema de processamento é o único que se pode adequar
cabalmente com a ideia lógica de processo, como fenômeno jurídico especí-
fico e, portanto, inconfundível que une os três sujeitos de uma relação dinâ-
mica e contínua.
Mas não só ao litígio puramente civil se aplicou este sistema num passado
remoto: há notícias que mostram esse fenômeno também em matéria penal nas
antigas repúblicas da Grécia e de Roma, na época dos Comícios.
Na primitiva concepção do juízo penal exigia-se que fosse iniciado atra-
vés de um acusador (já que prevalecia o interesse particular do ofendido e seus
parentes) que atuava contra o réu diante da pessoa que oficiava como julgador.
Tanto é assim que o que hoje se poderia chamar de processo penal comum
foi acusatório antes mesmo do século XII em diversos países da Europa.
Para melhor compreensão do tema examinado, cabe lembrar que o sistema
dispositivo (no âmbito do processo civil), ou acusatório (no âmbito do processo
penal), apresenta-se historicamente — e até hoje — com os seguintes aspectos
que o caracterizam:
- o processo só pode ser iniciado pelo particular interessado. Nunca
pelo juiz;
- o impulso processual só é dado pelas partes. Nunca pelo juiz;
- o processo é público, salvo casos excepcionais;
- existe paridade absoluta de direitos e igualdade de instâncias16 entre o
autor (ou acusador) e o demandado (ou réu);
Excederia muito o objeto deste trabalho a explicação do que é uma instância e todas as impli-
16
cações lógicas e jurídicas próprias do tema, coisa que fiz nos meus Sistema procesal: garantia
de la libertad e Lecciones de derecho procesal civil, de onde, inclusive, extraí o texto que aqui
desenvolvo.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 13-37, jul./set. 2012
22 Adolfo Alvarado Velloso
17
É de todo elementar que o Direito não privilegia a Verdade como um valor jurídico de máxima
importância, já que, observando detidamente o que diz a Lei, nota-se que os valores trans-
cendentes são a paz social, com o conseguinte respeito às regras de convivência, bem como a
certeza das relações individuais atingida com o simples acatamento das normas vigentes num
dado tempo e lugar. Se a Verdade fosse um autêntico valor, e o mais importante para o Direito,
tal como sustenta o ativismo judicial, as instituições legais deveriam com ela logicamente se ali-
nhar para manter um sistema coerente e compreensível. Uma simples análise da lei processual
mostra, sem maiores dificuldades, que não é assim que se passa, já que não há compatibilidade
lógica alguma entre a denominada busca da verdade real e, por exemplo: a absolvição fundada
na dúvida; a extinção do processo sem resolução de mérito por abandono (=<caducidad de la
instancia>); a prescrição liberatória; o ônus da prova; o indeferimento da produção de uma pro-
va por eventual negligência de quem a requereu; o princípio da congruência do pedido com o
dispositivo da sentença; a coisa julgada material; etc. Além disso, conforme sustentar-se-á neste
texto, os juízes não podem fazer o que bem entendem por mero voluntarismo em qualquer e
em todo caso, pois sempre estão sujeitos à Constituição e à Lei, já que devem reconhecer, por
exemplo, as caducidades, as prescrições alegadas, as preclusões, a coisa julgada, a litispendên-
cia etc. Daí eu pergunto: o leitor acredita de verdade que a Verdade importa tanto no processo
a ponto de ser erigida num valor fundamental na hora de os juízes resolverem os litígios?
* N.T.: “Declaração indagatória” e “absolvição de posições”, tradução literal de declaración
indagatoria e absolución de posiciones, são institutos do direito probatório de formação
hispânica. Em suma, são meios de provas voltados a obter a confissão judicial. A primeira figura
— declaración indagatoria — constitui-se na prerrogativa outorgada ao juiz penal de convocar
para ser ouvido o sujeito sobre o qual pesam fortes suspeitas de envolvimento com certo delito, o
que se dá na fase de instrução e como reflexo de uma postura inquisitiva. No processo argentino
a respectiva base legal está no art. 294 do Código Procesal Penal de la Nación: “Art. 294. Cuando
hubiere motivo bastante para sospechar que una persona ha participado en la comisión de un
delito, el juez procederá a interrogarla; si estuviere detenida, inmediatamente, o a más tardar en
el término de veinticuatro (24) horas desde su detención. Este término podrá prorrogarse por
otro tanto cuando el magistrado no hubiere podido recibir la declaración, o cuando lo pidiere el
imputado para designar defensor”. Já a absolución de posiciones seria o equivalente à confissão
obtida através do meio de prova que o processo civil brasileiro chama de depoimento pessoal
(CPC, arts. 342-347). Quanto a esta figura — absolución de posiciones —, o próprio Diccionario
de la lengua española da Real Academia Española, referência em todos os países do respectivo
idioma, oferece a acepção jurídica do vocábulo absolución, em especial, de posiciones: “En la
prueba de confesión o interrogatorio de las partes, acto de responder el litigante bajo juramento
o promesa a las preguntas de la otra parte” (cf. Diccionario de la lengua española. 22. ed. Madrid:
Editorial ESPASA, 2001. p. 14). Também é possível acesso virtual desse dicionário, e respectivo
vocábulo, na página web da Real Academia Española: <www.rae.es>.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 13-37, jul./set. 2012
O garantismo processual 23
- correlatamente, exige-se que quando a parte deseja declarar algo
espontaneamente deverá fazê-lo sem mentir. Portanto, despreza-se a
inverdade;
- proíbe-se a tortura;
- o acusado sempre sabe o fato pelo qual é acusado;
- também sabe que o acusa;
- bem como as respectivas testemunhas etc.
A meu juízo, tudo isso mostra a plenitude da liberdade civil a que faz jus o
demandado (ou réu).
18
O método foi idealizado pela Organização inquisitorial como via de investigação para se chegar
ao perfeito conhecimento da verdade real. Com isso, procurou-se obter a confissão e o arrepen-
dimento do confitente, pois, o objetivo era buscar a reconciliação do pecador com a Igreja.
Só que se atingia a confissão por meio de tortura, pois isso ajudava a alma a arrancar de si o
pecado, e a condenação por heresia era acompanhada da ordem de absoluta expropriação dos
bens do condenado. Esse método de enjuizamento — certamente, de caráter penal — estava
muito afastado, em sua estrutura, daquele que a pacificação dos povos supôs ter conquistado
e que já se apresentava como uma figura triangular, que se seguiu praticando para as situa-
ções que não se constituíam em delito. Como esse método era praticado por uma organização
conhecida como Inquisição, passou à história com o nome de sistema inquisitório (em oposição
ao acusatório) ou inquisitivo (em oposição a dispositivo). E assim se conhece até os dias de hoje.
19
Adverte-se que a ideia lógica de procedimento existente no sistema inquisitivo requer a pre-
sença contemporânea de dois sujeitos: aquele em face de quem se pretende, e aquele que
pretende e que, ao mesmo tempo, dirige o debate e eventualmente o sentencia. Daí sua
tipificação como método unilateral.
20
Este é o típico “processo” penal vigente em quase toda a América latina, até hoje.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 13-37, jul./set. 2012
24 Adolfo Alvarado Velloso
de acionar); como que julgava era quem acusava, a fim de não pairar dúvida de
consciência (pois também deveria confessar para não viver em pecado21), bus-
cava-se a prova para confirmar suas afirmações, o que deveria ser feito de modo
que o resultado coincidisse estritamente com aquilo que a acusação sustentava
ter ocorrido no plano da realidade social; daí surge a busca pela verdade real;
acreditava-se que isso só aconteceria através da confissão,22 por isso que ela se
converteu em um meio de prova e, consequentemente, na rainha de todas as
provas (a probatio probatissima); e para atingi-la (a confissão), instrumentalizou-se
e regulamentou-se minuciosamente a tortura. Como se observa, esse método
é radicalmente diferente ao que imperou na história da sociedade civilizada.23
Na atualidade esse é o método que se pratica em quase toda a América
para o julgamento penal, e também aplicado em toda parte quanto ao processo
civil com os lógicos abrandamentos do tempo em que vivemos (por exemplo, já
não se pode dizer que haja tortura indiscriminada por todas as partes).
21
Recorde-se que os juízes originários do sistema inquisitório eram sacerdotes.
22
Até então, um sacramento que possibilitava ao pecador confessar seus pecados a um sacer-
dote para obter sua absolvição mediante duas condições: a existência de verdadeiro arre-
pendimento e o firme propósito de não voltar a pecar.
23
Desde as origens da civilização empregou o método triangular, próprio do sistema acusatório.
24
É o que ocorre com regras técnicas que orientam como processar, que podem ser modificadas
no curso do tempo. E faço a advertência, pois o que venho explicando até agora não é uma
simples regra para instrumentar o método de debate; mais do que isso, é a representação
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O garantismo processual 25
Para reforçar o que acabo de dizer recorro a um exemplo: pense-se num
corpo de leis que contenha normas claramente dispositivas em matéria de
provas. Suponha-se que, ao mesmo tempo, tal normatização consagre uma só
norma que, sob o inocente título de medidas para mejor proveer ou resolver*,
outorgue ao juiz amplíssimas faculdades para determinar de ofício qualquer
diligência conducente à investigação da verdade real acerca dos fatos litigiosos,
independentemente de aceitação — ou mesmo iniciativa nesse sentido — das
partes. Nesse caso, não tenho dúvida de que abundariam os mais elogiosos
comentários, tal como: o adequado equilíbrio da norma, pois, ao estatuir as regras
tradicionais em matéria de prova, recorre-se a idrias mais avançadas que concor-
dam em outorgar ao juiz uma maior quantidade de poderes voltados ao melhor
e mais autêntico conhecimento dos fatos etc.
Afirmo que tal comentário é incoerente. Basta uma simples reflexão
para justificar o que digo: a norma que confere ao juiz a faculdade de certifi-
car-se por si mesmo a respeito de um fato litigioso (= determinar a produção
da prova de ofício) não teria a aptidão de esvaziar a regulação dispositiva refe-
rente a ônus, prazos, negligência, caducidade etc., em matéria de oferecimento
e produção da prova?25
Por que, então, chegou-se historicamente ao sistema misto?
A mim parece-me que são várias as razões determinantes da atual coexis
tência de sistemas antagônicos: a secular tradição do Santo Ofício e a abun-
dante literatura jurídica que fundamentou e justificou a atuação da Inquisição
espanhola durante mais de quinhentos anos, assim como a fascinação que o
sistema provoca em regimes totalitários que, ao normatizar o processo, deixam
de lado o homem comum para erigir o próprio Estado como centro e eixo do
sistema (recorde-se que nossa disciplina atualmente é denominada em muitas
partes como direito jurisdicional). Além disso, toda a doutrina processual publi-
cada no continente, desde os anos 50 do século passado em diante, contribuiu
no processo de filosofias políticas antagônicas que não podem coexistir, sob risco de uma
simples e deplorável incoerência sistêmica.
* N.T.: No processo civil de formação hispânica, entende-se por medida para mejor proveer a
possibilidade de o juiz determinar a produção de algum meio de prova de ofício após a con-
clusão da fase instrutória do procedimento. Ou, para fazermos um paralelo com a linguagem
que utilizamos no processo civil brasileiro, seria a utilização dos poderes instrutórios do juiz
após o encerramento da fase probatória.
25
Se num copo de água pura e cristalina se introduz uma única gota de tinta azul, todo o conteúdo
ficará desta cor e nunca mais o que era até então. Da mesma forma ocorre com o processo: é pos-
sível afirmar que se o legislador normatizou a base de um sistema como puramente acusatório,
bastará uma só norma que tolere a prova de ofício pelo juiz para que todo o corpo legal seja tingido
pelo mais puro inquistivismo.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 13-37, jul./set. 2012
26 Adolfo Alvarado Velloso
enormemente para isso, cuja leitura e estudo acabou por formar aqueles que
ensinam nossa disciplina nos mais diversos países latino-americanos. E aqui,
naturalmente, eu também me incluo.
Finalmente, em geral, a Argentina de hoje conta com normatizações pro-
cessuais fortemente inquisitivas, tanto no processo penal quanto no civil.*
De minha parte mantenho a esperança de reverter tal estado de coisas. E
isso por simples e óbvias razões: o constituinte de 1853* normatizou em função
da dolorosa história vivida no país até então, tratando de evitar, a partir da pró-
pria Constituição, a reiteração dos erros e aberrações do passado.
De acordo com textos constitucionais vigentes na época, reitero que
a ideia do constituinte quanto à atividade de processar não pode ser mais
clara, mais pura, nem pode se conceber mais liberal: estabeleceu-se a igual
dade diante da lei, remarcou-se a inviolabilidade da defesa em juízo, firmou-se
o princípio do juiz natural e do estado de inocência, proibiu-se a condenação
sem prévio processo fundado em lei anterior ao fato que o motivou etc.
Dentro do espírito da Constituição, tudo isso mostra que sua meta era — e
é — um processo estruturado e regulado com as peculiaridades até aqui explica-
das: fenômeno jurídico que vincula três sujeitos, dois em situação de igualdade
e outro em situação de imparcialidade (o que ocorre exclusivamente no sistema
dispositivo ou acusatório).
De nenhuma maneira creio seja possível afirmar, ao menos congruente
e fundamentadamente, que todas as garantias constitucionais há pouco enun-
ciadas façam parte do sistema inquisitivo (próprio do nosso processo penal
de até pouco tempo atrás), pois, ao possibilitar que seja o próprio juiz quem
inicie de ofício uma investigação, imputando a alguém o cometimento de um
delito, por exemplo, e, ao mesmo tempo, ao permitir que esse juiz resolva por
si a própria imputação levada a efeito, isso vem a resultar em algo óbvio: o juiz
é juiz e parte ao mesmo tempo. Até os menos avisados podem deduzir que
isso gera não um processo (necessariamente composto por três integrantes, à
* N.T.: Vale lembrar que na Federação argentina, diferente do que ocorre no Brasil, o direito
processual é provincial (= estadual), e não federal. Cf. arts. 5º e 126 da Constitución de La
Nación Argentina, de 1º de março de 1995.
* N.T.: O processualista da UNR refere-se ao “constituinte de 1853” em razão de que a primeira
Constituição argentina data desse ano e aí está a base da ordem constitucional daquele país.
A partir de 1853 as reformas constitucionais sempre tiveram por base aquele texto. Cf. art. 1º
da Lei nº 24.430, que concretizou a reforma constitucional sancionada em 15 de dezembro de
1994 e promulgada em 1º de março de 1995, e que deu o atual perfil da ordem constitucional
argentina: “Artículo 1º Ordénase la publicación del texto oficial de la Constitución Nacional
(sancionada em 1853 con las reformas de los años 1860, 1866, 1898, 1957 y 1994) que es el
que se transcribe a continuación”.
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O garantismo processual 27
míngua de litisconsórcio), senão um simples procedimento que apenas une dois
sujeitos: o juiz-acusador e o réu.
Insisto reiteradamente, ainda que sob risco de cansar o leitor: não obs-
tante tal afirmação, que não pode ser desvirtuada com raciocínio lógico jurí-
dico (ainda que possível com argumentação política ou sob caprichos), a antiga
vocação pelo totalitarismo que tão persistentemente mostrou o legislador
argentino, o que o levou a positivar normas que, ao permitir a coexistência
incoerente de sistemas antagônicos, descartam per se a vigência do devido pro
cesso ao estabelecer, a um sem número de casos, meros procedimentos judiciais
aos quais se lhes atribui — indevidamente — a denominação de processos. Mas
como as coisas são o que realmente são, sem que para isso importe o nome que
se lhes atribui, não creio que isso seja suficiente para que se aceite com alegria
e boa vontade um sistema processual filosoficamente errôneo, politicamente
nefasto e juridicamente inconstitucional.
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O garantismo processual 29
i) não decide acerca das questões oportunamente propostas, ou ii) decide acerca
de questões não propostas, ou iii) contradiz aquilo que consta no processo, ou
iv) incorre em autocontradição, ou v) pretende deixar sem efeitos decisões ante
riormente tomadas, ou vi) o juiz se arroga no papel de “legislador” na hora de sen-
tenciar, ou vii) prescinde do texto legal sem indicar qualquer razão plausível, ou
viii) aplica normas derrogadas ou ainda não vigentes, ou ix) dá como fundamento
questões de excessiva latitude, ou x) prescinde de uma prova decisiva, ou xi) invoca
“jurisprudência” inexistente, ou xii) incorre em manifesto excesso procedimental,
ou xiii) sustenta o julgado em afirmações dogmáticas ou em fundamentos que só
tem a aparência de tal, e assim por diante.
Como se vê, trata-se de uma simples enunciação mais ou menos deta-
lhada de alguns vícios contidos nas atividades de processar e sentenciar que,
ademais, estão aglutinadas numa mesma ideia, não obstante ostentem óbvias
e profundas diferenças lógicas e materiais.
Se se tenta definir tecnicamente a ideia de devido processo, é mais fácil
sustentar que é aquele que se adapta plenamente à ideia lógica de processo:
dois sujeitos que atuam como antagonistas em pé de perfeita igualdade no ins
tar (= provocar e resistir) ante uma autoridade que é um terceiro na relação
litigiosa (e, como tal, imparcial, impartial e independente).
Em outras palavras: o devido processo não é nem mais nem menos do
que o processo que respeita seus próprios princípios, tal como expliquei alhu-
res, e mediante o qual opera e pode operar o sistema acusatório.
Conforme sustentado acima, já posso afirmar que a ideia constitucional
de devido processo encontra-se única e exclusivamente no sistema acusatório,
pela clara concepção que ali se tem do princípio da imparcialidade, tal como
expliquei detidamente supra.
Da mesma forma, posso afirmar que o sistema inquisitivo não permite a
existência do devido processo, pois funciona à base de regras próprias e sem a
presença dos princípios essenciais que fazem com que o procedimento seja só
isso, e não um verdadeiro processo.
A nata da filosofia do ativismo judicial na Argentina não comparte essa
afirmação e, em contrapartida, sustenta que o procedimento inquisitorial é
verdadeiro processo e, como tal, suficiente garantia constitucional.
Se bem observadas as coisas, nota-se com facilidade que ambas as posi-
ções diferem na concepção da imparcialidade judicial, pois o ativismo apenas
a radica na pessoa do juiz e não em seus atributos funcionais.
E isso torna inconciliáveis as posições doutrinárias que sustentam ambos
os movimentos aqui tratados (= ativismo e garantismo), conforme ver-se-á a
seguir.
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30 Adolfo Alvarado Velloso
26
Ser solidário é mostrar ou prestar apoio a uma causa alheia, ideia da qual surge o solidarismo
considerado uma corrente destinada a ajudar altruisticamente os demais. A noção impôs-se
há anos no direito penal e, particularmente, no direito processual penal, onde existem autores
e numerosos juízes movidos pelas melhores intenções que solidarizam-se com a vítima de um
delito. Esse movimento doutrinário e judicial também estendeu-se aos processualistas que
operam o processo civil, onde ganhou numerosos e apaixonados adeptos. Reconheço que
a ideia e a bandeira que carregam são realmente fascinantes: trata-se — nada menos — de
ajudar o mais fraco, o pobre, o que se acha mal ou pior defendido etc. Mas quando um juiz
adota essa postura no processo, não se apercebe que, automaticamente, deixa de lado e não
cumpre o necessário dever de imparcialidade. E, dessa forma, vulnera a igualdade processual.
27
Conhece-se como decisionismo a missão que cumpre o movimento formado por certos
juízes solidaristas que resolvem os litígios que lhes são apresentados à base exclusiva de
seus próprios sentimentos ou simpatias por alguma das partes, sem sentirem-se vinculados
com a ordem legal vigente.
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O garantismo processual 31
de processualistas, tem-se entendido que a palavra garantismo representa coisa
anômala, perversa e extravagante, pois afirma-se com insistência que através de
seus postulados põem-se em liberdade os mais cruéis facínoras que, segundo os
críticos, deveriam estar presos para um exemplar escárnio. E se isso ocorrer sem
sentença, melhor ainda!
Nada disso é exato. Como movimento jusfilosófico que é, o que o garan
tismo pretende é o irrestrito respeito à Constituição e aos Pactos internacionais
que se encontrem no mesmo nível jurídico. Os autores que assim pensam não
buscam um juiz comprometido com pessoa ou coisa distinta da Constituição,
senão um juiz que se empenhe em respeitar e fazer respeitar, a todo custo, as
garantias constitucionais.28
Do exposto conclui-se que o garantismo mostra-se antagônico diante
do solidarismo judicial (não quer nem admite castrar alguém, nem matar, nem
cortar a mão de quem quer que seja, sem o prévio e devido processo legal; tam-
pouco pretende que não haja presos, mas sim que os que se encontram nessa
situação assim estejam por força de uma sentença judicial).
O processo judicial é a grande e máxima garantia que a Constituição esta-
belece para a defesa dos direitos individuais desrespeitados por qualquer pes-
soa — a começar pela própria liberdade — e, mais particularmente, pela própria
autoridade, com a qual o indivíduo só pode se igualar juridicamente através
do processo, já que ali há um terceiro que lhe confere um trato absolutamente
igualitário a partir de sua própria imparcialidade. Por isso o nome de garantista
ou libertária (aqui, em oposição a totalitária).
A palavra garantista ou seu sucedâneo garantidor provém do subtítulo
que Luigi Ferrajoli pôs em sua magnífica obra Direito e Razão e quer significar
que, sobre a lei, com minúscula, está a Lei com maiúscula (a Constituição). Em
outras palavras: guarda adequado respeito à graduação da pirâmide jurídica.
Não me escapa que as bandeiras levantadas pelo solidarismo (a Justiça,
a Verdade, o compromisso do juiz com seu tempo, com a sociedade, com o
litigante mal defendido etc.) ganham adeptos rapidamente. Afinal, quem não
quer a Justiça? Quem não quer a Verdade?
Contudo, não se trata de abandonar ou substituir essas bandeiras para
sempre, mas, sim, de não colocá-las por sobre a Constituição (rogo que se
recorde que os códigos processuais nazistas, fascistas e comunistas soviético
pretendiam um juiz altamente comprometido com a filosofia imperante nos
É precisamente o que o juiz jura fazer quando é investido no cargo. Em minha longa vida no
28
Poder Judiciário (há mais de 15 anos aposentei-me como Desembargador no Tribunal de Jus-
tiça da Província de Santa Fé), nunca jurei fazer justiça nem buscar a verdade no processo, mas
sim “respeitar e fazer respeitar a Constituição e as leis que, em sua consequência, ditem-se”.
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32 Adolfo Alvarado Velloso
29
Como é possível ao estudante de Direito compreender tudo isso? Como explicar que o juiz
penal, que maneja direitos indisponíveis, não pode sair a provar a favor de uma das partes,
ao passo que o juiz cível, que habitualmente maneja direitos disponíveis, não só pode, como
deve, sair a provar a favor de uma, e contra outra, parte processual? Não se vê que isso, além de
ilegítimo, é absolutamente esquizofrênico?
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O garantismo processual 33
técnicos (preclusão, por exemplo), ao passo que há outros que são decididamente
políticos (aquilo que os juízes podem ou não podem, por exemplo). E tudo que é
político tem a ver com o exercício do Poder, condicionado desde sempre por um
cúmulo de fatores conhecidos: a economia, a sociologia, o direito, a igreja, as for-
ças armadas, os sindicatos, os meios de comunicação etc.
Mas aceitar, sem mais, um novo fator desconhecido até há pouco tempo —
o solidarismo judicial — parece realmente perigoso para a vigência da República,
já que isso é difícil de controlar.
E a tranquilidade cidadã, ao amparo das garantias prometidas pela
Constituição, não pode aceitar despreocupadamente a existência de um fator
incontrolável que pode chegar a por em jogo nada menos que o valor liberdade.
Daí a importância de se conhecer o tema, ao qual pretende contribuir o
presente trabalho.
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34 Adolfo Alvarado Velloso
30
Isso é tão ou mais grave e preocupante a tudo o que até aqui foi exposto: trata-se de uma
instituição na qual o juiz modifica, ao sentenciar, as regras do jogo que escrupulosamente
respeitaram os litigantes durante todo o desenvolvimento do processo, numa clara mostra
de decisionismo, pois o juiz julga como melhor lhe parece, ainda que isso seja expressamente
o contrário do estabelecido para caso pela lei positiva. E assim, com indubitável atitude
justiceira, alguma jurisprudência começou a sustentar, e isso no momento de apreciar o recurso
de apelação — é dizer, depois que o processo terminou em primeiro grau — que se o autor
não provou adequadamente o fato constitutivo da responsabilidade aquiliana, isso não teria
relevância na espécie, pois o respectivo ônus caberia à parte contrária e, portanto, como esta nada
fez, deveria simplesmente aceitar a pretensão demandada (!). Em outras palavras: que assim
decidiu, alterou, ao seu talante, as regas do jogo, as quais as partes se sujeitaram durante todo
o processo. Só que o fez depois que o jogo acabou! E isso é de manifesta ilegitimidade por mais
que se possa considerar “justa”, na ótica do julgador, a solução dada ao caso. Mas há lugares
em que ocorre exatamente o contrário do aqui relatado. Por exemplo, o art. 377 do CPC da
Nación Argentina estabelece que: “Incumbirá o ônus da prova à parte que afirme a existência
de um fato controvertido ou de um preceito jurídico que o juiz ou tribunal não tenha o dever
de conhecer. [...]”. A partir daí, fica claro que a tese que aceita, sem maiores reflexões, a ideia da
distribuição dinâmica do ônus da prova não pode coexistir com o dispositivo de lei mencionado,
por razões que, creio, não preciso voltar a insistir. A lei — e só a lei, nunca a jurisprudência —
é a que deve regular tudo o que diz respeito à incumbência probatória, a fim de dar total e
objetiva segurança jurídica a atividade que os juízes cumprem ao sentenciar, evitando, com
isso, alterar as regras do onus probandi discricionariamente e, o que é ainda pior, depois de o
processo já encerrado em primeiro grau. Em suma: alterar as regras do jogo após seu término,
convertendo em ganhador aquele que perdeu conforme as normas tidas como vigentes pelos
contendores, sem dúvida viola a garantia da defesa em juízo. E isso — é bom que se diga —
por mais empenho justiceiro que eventualmente ostente o juiz atuante.
31
Mediante essa via o autor pretende alterar uma situação fática sobre a qual ainda não começou
a discussão judicial e que deseja evitar obtendo, antecipadamente e sem prévia discussão, o
resultado que deve ser o necessário conteúdo da sentença a ser proferida após todo o desenrolar
das fases do processo, com prévia e completa audiência (= bilateralidade) dos interessados. Em
outras palavras: o juiz ouve a uma só das partes, estima com base em sua versão unilateral
que lhe assiste algum direito verossímil e lhe dá razão, interferindo de surpresa na esfera de
liberdade daquele que deverá sofrer os efeitos da respectiva decisão. Para tanto, algumas leis
toleram a antecipação da sentença com apenas a versão unilateral do pretendente quando:
i) existe verossimilhança do direito em grau maior que nas medidas cautelares ordinárias; ii)
alega-se no caso uma urgência impostergável que se a medida antecipatória não for deferida, o
direito que está à base da pretensão se frustraria; iii) se efetive uma contra-cautela suficiente; iv) a
antecipação não se apresente irreparável. E, às vezes, a mesma norma que a tudo isso consagra
e autoriza acaba por afirmar que “a decisão não configurará prejulgamento”.
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O garantismo processual 35
d) a eliminação do processo mesmo como meio de debate quando, na
ótica do juiz ativo, parecer-lhe deva o feito receber sentença defini-
tiva, pois crê plenamente no autor postulante e, com isso, decreta a
sentença autossatisfativa;32
e) a flexibilização da regra processual da congruência, o que permite ao
juiz julgar um tema litigioso transigível além do pretendido e aceito
pelas partes;
f ) o desconhecimento do valor político da coisa julgada, pois há juízes
que não aceitam a justiça contida numa sentença firme;
g) a eliminação da preclusão processual, pois ela faz prevalecer a forma
sobre o sentido de justiça etc.
Em suma: através de todos esses fatores mencionados se elimina a ideia
de processo como método de discussão e se o utiliza como meio de investiga
ção, lançando o processo na perspectiva do sistema inquisitivo que, a meu
juízo, passa ao largo da Constituição.
Mas algo muito mais grave tem ocorrido nos últimos tempos: sob o argu-
mento de uma pretensa defesa da Constituição, alguns juízes com vocação a ser
protagonista midiático começaram a intervir em toda sorte de assuntos, que
em princípio são da esfera de atribuição de outros Poderes do Estado, interfe-
rindo, assim, na tarefa de governar, ao assumir o cumprimento de funções que
são privativas de outras autoridades. Dessa forma, abandonam o acatamento à
lei para entrar no campo do cogoverno e, ainda por cima, ingressam num ter-
reno muito perigoso: o de um incrível desgoverno, já impossível de controlar.
Isso porque aqueles que assim atuam sustentam que o fazem por ele-
mentar solidariedade com o mais débil, com o mal defendido, com o mais
pobre, com o que “tem razão mas não consegue demonstrá-la”(!) etc. Dessa
forma, foi gerado o movimento — conforme já disse — conhecido na doutrina
com a denominação de solidarismo, o qual, porque se pratica mesmo ao arre-
pio da lei, decidindo o juiz conforme sua exclusiva vontade, também se chama
decisionismo.
Bem se vê que quem assim atua não cumpre uma tarefa propriamente
jurisdicional, uma vez que, com isso, não resolve conflitos intersubjetivos de
interesses que é a essência da tarefa de outorgar justiça comutativa. A rigor,
Isso é consequência do ativismo dos juízes: inteligente doutrina gerou uma nova sorte de
32
medida cautelar que se conhece com o nome de medida autossatisfativa que, no sentir e no
discurso daqueles que a propiciam, vem a constituir na solução eficaz para os pedidos urgen
tes. E isso fazem sob o lema: direitos evidentes, satisfação imediata.
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36 Adolfo Alvarado Velloso
pratica-se justiça distributiva sem se ter os elementos para poder fazê-lo, como,
por exemplo, legitimidade através de votação popular.
Quando se explica a solução de um problema na via cautelar e sem neces-
sidade de prévia tramitação de um processo sério legitimamente desenvolvido,
advirto que os jovens advogados — impressionados pela excessiva morosidade
dos pleitos em geral — entusiasmam-se com o rápido final que se dá a um deter
minado problema e se encantam pela autossatisfatividade.
Mas também advirto que todos só enxergam o problema na ótica do
autor que se beneficia com o imediatismo do resultado e jamais pensam o
problema da ótica do demandado que não foi escutado previamente e que
deve sofrer de imediato os efeitos contrários ao seu interesse provocados pela
decisão judicial.
É evidente que é possível e aconselhável que se acautele os resultados
de uma eventual sentença que será proferida. Mas é manifestamente ilegítimo
resolver um litígio com pura cautela, sem posterior processo que a ampare.
E isso porque tudo o que se resolve pela via cautelar sem prévia audiência
do interessado, é absoluta, racional, lógica e constitucionalmente inadmissível.
Insisto: os juízes não se podem equiparar aos comissários de polícia —
por melhores e mais justiceiros que estes possam ser — com o fim de atingir
uma eficiência que não encontram respeitando a Constituição. Não foi isso
que precisamente juraram quando foram investidos em seus cargos.
Até aqui passei em revista algumas atitudes decisionistas, vejamos:
- a solução de conflitos pela via cautelar, eliminando diretamente o método
processual de discussão em homenagem a uma meta difusa que se mos-
tra, ao menos para o respectivo juiz, como justa e verdadeira;
- a atitude de alguns juízes em campos de atuação que lhes estão veda-
dos — casos não jurisdicionais — em razão de que ali deve operar de
forma exclusiva e excludente outro Poder do Estado;
- um marcante distanciamento do que dispõe a lei positivada, com
abandono da dogmática para atingir o império do valor relativo da
equidade.
Ainda que muitos juízes encontrem-se bastantes contentes com o resul-
tado de rapidez e justiça que descobre na aplicação ativista do sistema, quando
se pergunta a qualquer advogado sério e responsável no exercício de sua pro-
fissão se com tais atitudes se atingiu um melhor resultado da Justiça, invariavel-
mente dirá que não. Ao contrário, argumentará em prol da Justiça de antanho
quando os resultados das sentenças eram obtidos num ambiente de regular
segurança jurídica.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 13-37, jul./set. 2012
O garantismo processual 37
Hoje, mediante o ativismo, chegou-se a uma insegurança jurídica em
estado terminal graças à imprevisibilidade absoluta da maioria das soluções
judiciais e, graças a isso, a advocacia séria tende a desaparecer.
Nada disso eu poderia dizer caso observasse, como resultado do ativismo
vigente em meu país, i) o público em geral aplaudindo os juízes; ii) que a solução
buscada e a forma de atuação da Justiça estivesse prevista legalmente, para que
fossem rigorosamente cumpridas pelos juízes e advogados através das claras
regras do fair play que deve dominar toda a cena processual; iii) a não modifica-
ção dessas regras a todo o momento, fazendo com que percam a vigência quando
não se goste delas ou mesmo quando elas não resultem úteis para torcer a vara
da justiça para um lado distinto ao que tenderia cair etc.
Mas como o ativismo mostra que nada disso tem sentido na aplicação
justiceira da lei na perspectiva da vontade de um dado juiz, já que o público
não aplaude os juízes, os advogados não os respeitam como merece sua fun-
ção etc., sustento todas as ideias até aqui desenvolvidas, as quais defendo e rei-
tero desde o ano de 1999 quando inaugurei, na cidade Azul, o Primer Congreso
Nacional de Derecho Procesal Garantista33 e do qual tem saído numerosos tra-
balhos elaborados por um cada vez maior número de participantes nos res-
pectivos encontros anuais que ali se realizam.
Com esta exposição espero ter cumprido o que me pediu Glauco Gumerato.
Caso o leitor entenda que não, ou mesmo caso deseje quaisquer outras ampliações/
explicações destas ideias, deixo aqui meu endereço eletrônico no qual receberei,
com muito gosto, as críticas que desejem fazer, as quais farei publicar em <www.
garantismoprocesal.com>.
VELLOSO,AdolfoAlvarado.Ogarantismoprocessual.RevistaBrasileiradeDireitoProcessual–RBDPro,
Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 13-37, jul./set. 2012.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 13-37, jul./set. 2012
Tipologia dos direitos humanos de
terceira dimensão e acesso à justiça
Eduardo Maia Tenório da Cunha
Mestrando em Direito e Garantias Fundamentais
(FDV/ES). Especialista em Direito Processual Civil
(FDV/ES). Especialista em Direito e Processo do
Trabalho (Faculdade Candido Mendes de Vitória/ES).
Especialista em Teoria da Constituição e Dogmática
Constitucional (UFES). Integrante do Grupo de
Pesquisa Acesso à Justiça na Perspectiva dos Direitos
Humanos do Mestrado em Direitos e Garantias
Fundamentais da FDV. Procurador do Trabalho.
Introdução
A temática dos direitos humanos goza de maior importância a cada dia na
sociedade mundial. O terceiro milênio tem sido pródigo na difusão de seus valores
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 39-57, jul./set. 2012
40 Eduardo Maia Tenório da Cunha, Carlos Henrique Bezerra Leite
éticos. Mas nem sempre foi assim. Por muito tempo os direitos humanos foram
considerados como um valor distante da justiça e muito mais distante ainda de sua
efetivação no plano concreto. Foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos,
fruto da reflexão dos povos sobre os horrores da Segunda Guerra Mundial, que
estabeleceu um marco filosófico e jurídico sobre a inerência dos direitos humanos.
Passados sessenta e três anos da declaração, é reconfortante verificar que
muito se caminhou. Por outro lado, é inevitável constatar que muito ainda há
que se caminhar, principalmente no que toca à efetivação desses direitos, que
vislumbram dificuldades várias, principalmente em face de relativismos culturais
e da capacidade econômica das nações pobres e em vias de desenvolvimento.
Se às próximas gerações caberá a missão de efetivar os direitos huma-
nos, não se pode olvidar que é uma conquista desta geração e das gerações
passadas o estabelecimento de tipologias de direitos humanos (difusos, coleti-
vos e individuais homogêneos) e de instrumentos jurídicos de sua proteção. A
superação da defesa quase que exclusiva dos direitos individuais para a defesa
dos chamados “direitos ou interesses metaindividuais” é exemplo eloquente
O desenvolvimento de instrumentos jurídicos para a defesa dos direitos
metaindividuais, como a ação civil pública, a ação civil coletiva, o mandado de
segurança coletivo e a ação popular, marca a passagem do processo individual
para processo coletivo. No plano político, revela a transição do Estado Liberal
para o Estado Social e depois para o Estado Democrático de Direito. Do ponto
de vista espacial-geográfico, a instituição de direitos migra seu locus da cidade
para o estado, deste para o mundo e agora para o plano virtual.
O foco desse trabalho, porém, é limitado. Conquanto registre a transição
histórica dos direitos individuais aos interesses metaindividuais e os instrumen-
tos de sua garantia, centrará esforços em analisar os direitos humanos de terceira
dimensão e sua tutela jurídica lato sensu, perpassando pela distinção de acesso
à justiça e acesso ao judiciário, bem como nos meios extrajudiciais de solução de
demandas metaindividuais.
A peculiaridade de os direitos fundamentais de terceira dimensão ter como
objeto, em última análise, a proteção do gênero humano (universalidade da paz,
meio ambiente, informação) traz novos desafios, notadamente no âmbito interna-
cional, em que se contrapõem direitos universais de um lado e relativismo cultural
e soberania dos estados nacionais de outro.
Nesse contexto, indaga-se se como são tutelados os direitos humanos de
terceira dimensão hoje no Brasil. Essa tutela tem sido realizada do mesmo jeito
que foram os direitos humanos de primeira e segunda dimensão? Essa tutela é
efetiva para todos?
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 39-57, jul./set. 2012
Tipologia dos direitos humanos de terceira dimensão e acesso à justiça 41
1 As dimensões dos direitos humanos como critério
pedagógico
Encontra-se superada antiga cizânia doutrinária sobre a adequação dos
vocábulos “dimensão” e “geração” como melhor significante da evolução histó-
rica dos direitos humanos. O primeiro tornou-se mais aceito porque representa
a ideia de extensão ou abrangência e não de sucessão ou de substituição de
direitos, como se extrai do segundo. Conquanto o termo “geração” tenha a vir-
tude de bem situar no tempo a origem dos direitos humanos, torna-se equívoco
quando tratamos de sua incorporação e eficácia nos ordenamentos jurídicos
nacionais. Essa equivocidade é facilmente perceptível quando se constata que a
positivação dos direitos econômicos, sociais e culturais pelos estados nacionais
não sucedeu naturalmente aos direitos civis e políticos em todos os lugares do
planeta. Há lugares em que houve inversão dessa cronologia e outros em que
sequer os se reconhecem na integralidade. Para exemplificar não precisamos
de exemplos estrangeiros: a ditadura militar brasileira (1964-1985) proscreveu
boa parte dos direitos civis e políticos e tornou inexequíveis outros tantos direi-
tos econômicos, sociais e culturais. A simples negação desses direitos ou parte
deles em determinado tempo e espaço, por si só, demonstra a incompatibili-
dade do termo “geração”, que pressupõe uma ordem evolutiva, cronológica e
irreversível. O termo “dimensão”, por representar uma natureza comum a cada
um desses tipos históricos, atende aos pressupostos de uma classificação histó-
rico-filosófica sem o pecadilho de comprometer sua normatividade.
Os direitos humanos de primeira dimensão originaram-se nas revolu-
ções burguesas dos séculos XVII e XVIII como decorrência da luta por direitos
civis e políticos contra o regime feudalista de produção e o absolutismo aristo-
crata. São direitos de conotação individual e de defesa perante o estado. Estão
baseados no ideário de liberdade, propriedade, segurança e participação do
indivíduo no governo e no processo político de decisão. Essa ideia de uma ca-
tegoria de direitos que poderiam ser exercidos até contra o Estado visava mais
à proteção da propriedade do que efetiva participação política, já que o pen-
samento iluminista da época temia que uma eventual democracia sem limites
comprometesse a segurança da propriedade privada. De qualquer sorte, institui
no plano jurídico um plexo de direitos destinados a garantir a não intervenção
do Estado na propriedade de qualquer indivíduo, com o intuito de preservar-lhe
as liberdades públicas.
A disseminação do pensamento econômico liberal-burguês na Europa
por meio das invasões napoleônicas acaba sedimentando a base da Revolução
Industrial do século XIX. Esse modelo de desenvolvimento vai gerar concentração
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 39-57, jul./set. 2012
42 Eduardo Maia Tenório da Cunha, Carlos Henrique Bezerra Leite
1
PORTO. Direitos fundamentais sociais: considerações acerca da legitimidade política e pro
cessual do Ministério Público e do sistema de justiça para sua tutela, p. 59.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 39-57, jul./set. 2012
Tipologia dos direitos humanos de terceira dimensão e acesso à justiça 43
A expansão do modelo capitalista de produção de forma global introduz
nas sociedades uma nova forma de viver e de comportar-se, tendo o consumo
como necessidade básica e a tensão entre capital e trabalho como compo-
nente social. A complexidade e o expressivo número dessas relações produ-
zem no mundo jurídico o aparecimento de uma nova espécie de interesses e
de direitos, que possuem a caraterística de serem de todos e de ninguém ao
mesmo tempo. Os direitos de terceira dimensão qualificam-se justamente pela
transindividualidade, pois não pertencem exclusivamente ao indivíduo e tam-
pouco a grupos sociais específicos. São também conhecidos como direitos de
solidariedade ou fraternidade porque representam o reconhecimento racional
de que a paz social só será alcançada sem as enormes disparidades econômi-
cas entre os povos do mundo. “Decorrem, pois, da reflexão acerca de temas
referentes ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, à comunicação e ao
patrimônio comum da humanidade”.2 São destinados ao gênero humano e
dotados de alto grau de ética.
2
LEITE. Ação Civil Pública na perspectiva dos direitos humanos, p. 35.
3
MARUM. Ministério Público e direitos humanos: um estudo sobre o papel do Ministério Público
na defesa e na promoção dos direitos humanos, p. 109.
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44 Eduardo Maia Tenório da Cunha, Carlos Henrique Bezerra Leite
4
PORTO. Direitos fundamentais sociais: considerações acerca da legitimidade política e proces-
sual do Ministério Público e do sistema de justiça para sua tutela, p. 62.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 39-57, jul./set. 2012
Tipologia dos direitos humanos de terceira dimensão e acesso à justiça 45
Se no passado a unidade territorial e o poder soberano foram fundamentais
para a implementação dos direitos humanos de primeira dimensão e posterior-
mente foram também fundamentais para o condicionamento das sociedades
aos sucessivos paradigmas liberal, social e democrático, parece que hoje o fator de
aglutinação mais importante é o regime democrático. Essa circunstância pode ser
verificada nos blocos regionais, como a União Europeia e o Mercosul, cuja integração
se deu mais em função da similaridade dos regimes políticos. A integração aperfei-
çoou-se de tal forma que os objetivos inicialmente restritos ao plano econômico e
aduaneiro já foram ampliados, abarcando múltiplos aspectos nos planos jurídicos,
culturais e sociais. Exemplo marcante é a possibilidade de trabalho de um nacional
em outro país do bloco sem o gozo da cidadania estrangeira ou sem o visto de tra-
balho especial para isso. Democracia, fraternidade e desenvolvimento econômico
e social aparecem, por isso, como fatores de especial importância na efetivação
dos direitos humanos.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 39-57, jul./set. 2012
46 Eduardo Maia Tenório da Cunha, Carlos Henrique Bezerra Leite
que tal atrelamento seria próprio à história do direito liberal. Mas, como
a emergência de novas realidades juridicamente relevantes é mister
que se desfaça este vínculo restritivo, abrindo-se a aplicabilidade desta
nomenclatura para casos outros, tais como os interesses transindivi-
duais, que não se enquadram em tal feitio...5
5
MORAIS. Do direito social aos interesses transindividuais, p. 109-110.
6
“Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado,
incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e indi-
viduais indisponíveis.”
7
CAPPELLETTI; GARTH. Acesso à justiça, 2002.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 39-57, jul./set. 2012
Tipologia dos direitos humanos de terceira dimensão e acesso à justiça 47
e simplificação do direito (combate ao formalismo jurídico), com a utilização
de procedimentos extrajudiciais, tais como mediação, arbitragem, conciliação.
Se a evolução dos direitos humanos e, sobretudo, sua disseminação e exi-
gibilidade vislumbram uma necessidade cada vez mais iminente de superação
dos limites soberanos dos estados nacionais, logicamente que tal desiderato
só se tornará possível quando a tutela desses direitos ganhar efetividade em
boa parte dos países que compõem a comunidade internacional. Além disso, o
aprimoramento dos meios de exigibilidade e “justicialidade” regionais subsidia-
rão o estudo do Direito Comparado para engendrar soluções mais adequadas
(abrangentes e ao mesmo tempo específicas em função da realidade de cada
sociedade regional) para a efetivação dos direitos humanos em um contexto
planetário. É a pluralidade das soluções regionais e as especificidades que lhes
subjazem que irão munir o Direito Internacional dos meios de instrumentalizar
essa tutela.
É preciso ressaltar que a divisão dos direitos humanos em dimensões
presta-se ao fim de explicá-los e justificá-los do ponto de vista histórico, mas
não se presta a garantir a sua tutela. A “sindicabilidade” desses direitos exige
acesso à justiça. E é por isso que o acesso à justiça passou a ser considerado
um direito humano. Sem instrumentos jurídicos capazes de garantir direitos
humanos, a mera declaração de direitos torna-se ineficaz. “De fato, o direito ao
acesso efetivo tem sido progressivamente reconhecido como sendo de impor-
tância capital entre os novos direitos individuais e sociais, uma vez que a titula-
ridade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua
efetiva reivindicação.”8
8
CAPPELLETTI; GARTH. Acesso à justiça, 2002, p. 12.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 39-57, jul./set. 2012
48 Eduardo Maia Tenório da Cunha, Carlos Henrique Bezerra Leite
9
NERY JUNIOR. Princípios do processo civil na Constituição Federal, p. 125.
10
CAPPELLETTI; GARTH. Acesso à justiça, 2002.
11
WEIS. Direitos humanos contemporâneos. 2. ed., p. 177.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 39-57, jul./set. 2012
Tipologia dos direitos humanos de terceira dimensão e acesso à justiça 49
É inegável que os instrumentos processuais concebidos para a tutela
de direitos individuais são, no mais das vezes, inadequados para a defesa de
interesses metaindividuais, a começar pela pluralidade das partes e a indivisi-
bilidade de seu objeto. Por isso, o aparecimento das ações coletivas e a criação
de legitimados adequados para a defesa desses direitos mudaram o panorama
de acesso à justiça.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 39-57, jul./set. 2012
50 Eduardo Maia Tenório da Cunha, Carlos Henrique Bezerra Leite
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 39-57, jul./set. 2012
Tipologia dos direitos humanos de terceira dimensão e acesso à justiça 51
dos danos sofridos individualmente pelas vítimas do dano, diferentemente da
ação civil pública, que tem caráter genérico e abstrato. De acordo com o art. 95
do CDC, a condenação será genérica pelos danos causados individualmente, mas
a extensão será apurada em liquidação pelas vítimas individualmente ou pelos
legitimados coletivos, nos moldes dos artigos 97 a 100 do CDC.
A tutela metaindividual pode também ser realizada pelo mandado de segu-
rança coletivo com vista a afastar lesão a interesses metaindividuais líquidos e cer-
tos; por mandado de injunção coletivo, quando a falta de norma regulamentadora
inviabilizar o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas
inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania, de uma comunidade, ainda
que indetermináveis.
Já na tutela pela ação popular, o particular, ou melhor, o cidadão, defende
direitos de cunho difuso, como o patrimônio público, a moralidade administra-
tiva, o meio ambiente e o patrimônio histórico e cultural. Nesse caso, há uma
autorização no ordenamento para que o indivíduo possa ser o condutor autô-
nomo na condução do processo coletivo.
Por fim, mas não menos importante, o dissídio coletivo de trabalho é meio
de tutela do interesse de trabalhadores e de empresas, assim reconhecida esta
última como um organismo ontologicamente coletivo. Esse instrumento possi-
bilita a criação de normas jurídicas pela via heterônoma, isto é, pela Justiça do
Trabalho, desde que haja malogro na celebração de convenção ou acordo coletivo
de trabalho. A natureza metaindividual dessa ação torna-se evidenciada pela
especial característica de dispor regulação abstrata e futura para todos aqueles
que se encontrem vinculados àquele grupo ou que venham a ele pertencer.
A positivação dos interesses metaindividuais como direitos fundamen-
tais, a força coativa da coisa julgada e a inafastabilidade da jurisdição são instru-
mentos importantes do Estado Democrático de Direito para tornar exigíveis os
interesses metaindividuais. Não obstante a evolução legislativa para a proteção
desses interesses, o número elevado de demandas para o aparato judiciário
brasileiro e a falta de um processo coletivo mais célere tendem a tornar tardio
o exercício de direitos humanos básicos, circunstância que lhes retira a efetivi-
dade plena do acesso à justiça, especialmente aos grupos sociais vulneráveis,
como trabalhadores, crianças, jovens, idosos, pessoas com deficiência, etc.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 39-57, jul./set. 2012
52 Eduardo Maia Tenório da Cunha, Carlos Henrique Bezerra Leite
12
JATAHY. 20 anos de Constituição: o novo Ministério Público e suas perspectivas no Estado
Democrático de Direito. In: CHAVES; ALVES; ROSENVALD. Temas atuais do Ministério Público: a
atuação do Parquet nos 20 anos da Constituição Federal, p. 13.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 39-57, jul./set. 2012
Tipologia dos direitos humanos de terceira dimensão e acesso à justiça 53
de termo de ajuste de conduta, haja vista que os demais legitimados não detêm
a prerrogativa do inquérito. Só será instaurado se realmente for necessária a
colheita de elementos de convicção, pois em muitos casos a denúncia já vem
com provas suficientes para o ajuizamento da demanda ou obtenção do termo
de ajuste de conduta.
Na instrução do inquérito são coletadas todas as provas que embasam a
conclusão do procedimento. O Parquet tem a prerrogativa de requisitar infor-
mações e dados técnicos de quaisquer pessoas. As suas requisições têm assento
constitucional, dotando-o de poderes instrutórios (CF, art. 129, VI). Acaso o orde
namento jurídico não o dotasse de tais poderes, poucos colaborariam com ele,
mormente os inquiridos, que não têm qualquer interesse de produzir prova con-
tra si. A recusa ou retardamento implica crime, punido com reclusão de um a três
anos e multa (LACP, art. 10).
O inquérito terá três conclusões possíveis: assinatura de termo de ajuste
de conduta, no qual o inquirido se compromete ao cumprimento da lei,
mediante a cominação de multa por descumprimento; ajuizamento de ação
civil pública ou outra ação, quando o órgão do Ministério Público estiver con-
vencido da irregularidade e o inquirido se recusa a assinar o termo; ou o
arquivamento por ausência de provas, legalidade do ato investigado ou
perda do objeto (LACP, art. 9º e 11).
A homologação do arquivamento do inquérito civil, assim como qual-
quer outro procedimento investigatório, será procedida pela remessa, obri-
gatória, em até três dias, para o Conselho Superior do Ministério Público, sob
pena de incorrer o órgão condutor em falta grave (art. 9º, §1º). O arquiva-
mento será sempre fundamentado. Recusada a homologação, será notificado
o Procurador-Geral ou o Procurador-Chefe da Regional para designar outro
órgão para: prosseguir nas investigações, se insuficientes as realizadas até
então; instaurar inquérito civil, se se tratar de peça informativa; ajuizar ação civil
pública ou qualquer outra medida judicial (LACP, art. 9º e §§). A nova designa-
ção não significa qualquer punição ao membro que propôs o arquivamento,
mas, antes, respeito ao princípio da independência funcional (CF, art. 127, §1º).
Além do mais, não seria conveniente que quem sugeriu o arquivamento fosse
obrigado a continuar investigando fatos ou promover medidas judiciais que
entende inviáveis ou inadequadas. Sinale-se que as associações legitimadas,
ou quem ofereceu a denúncia, podem manifestar-se quando da aprecia-
ção da homologação (LACP, art. 9º, §2º). Mesmo arquivado o inquérito, nada
impede aos demais legitimados a propositura da ação civil pública, cabendo
ao Ministério Público atuar como fiscal da lei.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 39-57, jul./set. 2012
54 Eduardo Maia Tenório da Cunha, Carlos Henrique Bezerra Leite
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 39-57, jul./set. 2012
Tipologia dos direitos humanos de terceira dimensão e acesso à justiça 55
multa cominatória. O termo de ajuste de conduta é um dos mais importantes
instrumentos de efetivação dos direitos e interesses metaindividuais de forma
célere e barata, prestando-se, sobretudo, ao diálogo social.
A arbitragem e a mediação também são formas de acesso à justiça para
a tutela de interesses metaindividuais, conquanto menos utilizados na prática.
A força coativa da arbitragem é significativa, uma vez que a sentença arbitral
impede a renovação da lide (CPC, 267, VII e 301, IX). Na mediação o poder de
coerção é mínimo ou quase inexistente, cabendo ao mediador a função de
aproximar as partes. Não obstante seu reduzido uso no Brasil, são formas céle-
res de solução de conflitos e uma alternativa ao abarrotado Poder Judiciário.
Há também notificações recomendatórias (art. 6º, XX, da LOMPU), audiências
públicas, oficinas, reuniões setoriais e outros eventos semelhantes. Desenvolve-se
por esses meios uma verdadeira participação democrática dos vários organismos
da sociedade organizada, como forma de promover os interesses metaindividuais
de maneira negociada. Com essas práticas, dissemina-se a consciência de cidada-
nia, em que qualquer do povo é um representante de toda a sociedade no mister
de cumprimento dos objetivos determinados pelo constituinte no seu projeto de
nação.
Considerações finais
A evolução dos direitos humanos no Brasil encontrou diversos entra-
ves de ordem filosófica e política. A origem colonial deixou um legado de
injustiça social difícil de ser combatido, sendo perceptível no inconsciente
coletivo da sociedade brasileira que a desventura de boa parte da população
é culpa de ninguém ou dos próprios desventurados. As diversas experiências
totalitárias e a insipiência de nossa democracia conjugaram fatores políticos
determinantes para o estabelecimento de uma cultura pouco valorativa dos
direitos humanos, não sendo raro nos dias de hoje relatos de caso de tortura
por agentes do estado.
Malgrado esse histórico de pouca tradição de respeito aos direitos huma-
nos, a marcha para o seu reconhecimento no plano jurídico e no plano dos
fatos é acelerada. A Constituição Cidadã positivou os direitos civis e políticos, os
direitos econômicos, sociais e culturais e diversos interesses metaindividuais. Além
disso, introduziu o Estado Democrático de Direito e estabeleceu uma série de ins-
trumentos de garantia para a efetivação dos direitos humanos.
O rápido desenvolvimento econômico brasileiro na última metade de
século precipitou o aparecimento aqui da sociedade de consumo em massa. A
globalização e a informatização, unidas a um mercado de consumo de duzen-
tos milhões de habitantes, acabaram por inserir o Brasil dentre as economias
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 39-57, jul./set. 2012
56 Eduardo Maia Tenório da Cunha, Carlos Henrique Bezerra Leite
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 39-57, jul./set. 2012
Tipologia dos direitos humanos de terceira dimensão e acesso à justiça 57
forma rápida, o Estado brasileiro poderá condenar-se ao descrédito perante a
população e deixar de cumprir os objetivos determinados pela Constituição.
Não se pode esmorecer. Se muito caminhamos, muito há por fazer.
Referências
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre:
S. A. Fabris, 2002.
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre:
S. A. Fabris, 1988.
JATAHY, Carlos Roberto de Castro. 20 anos de Constituição: o novo Ministério Público e suas
perspectivas no Estado Democrático de Direito. In: CHAVES, Cristiano; ALVES, Leonardo Barreto
Moreira; ROSENVALD, Nelson (Coord.). Temas atuais do Ministério Público: a atuação do Parquet
nos 20 anos da Constituição Federal. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Ação Civil Pública na perspectiva dos direitos humanos. 2. ed.
São Paulo: LTr, 2008.
MARUM, Jorge Alberto de Oliveira. Ministério Público e direitos humanos: um estudo sobre o papel
do Ministério Público na defesa e na promoção dos direitos humanos. Campinas: Bookseller, 2006.
MORAIS, José Luis Bolzan de. Do direito social aos interesses transindividuais. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 1996.
NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 7. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2002.
PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Direitos fundamentais sociais: considerações acerca da legitimidade
política e processual do Ministério Público e do sistema de justiça para sua tutela. Rio de Janeiro:
Livraria do Advogado, 2006.
WEIS, Carlos. Direitos humanos contemporâneos. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
WEIS, Carlos. Direitos humanos contemporâneos. São Paulo: Malheiros, 1999.
Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):
CUNHA, Eduardo MaiaTenório da; LEITE, Carlos Henrique Bezerra.Tipologia dos direitos humanos de
terceira dimensão e acesso à justiça. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte,
ano 20, n. 79, p. 39-57, jul./set. 2012.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 39-57, jul./set. 2012
Da análise da desistência do recurso
excepcional a partir da objetivação do
processo constitucional subjetivo
Magno Federici Gomes
Pós-Doutor em Direito Público e Educação pela
Universidade Nova de Lisboa – Portugal. Pós-Doutor
em Direito Civil e Processual Civil, Doutor em Direito
e Mestre em Direito Processual, pela Universidad
de Deusto-Espanha. Mestre em Educação pela
PUC Minas. Coordenador do curso de Direito
da Faculdade Padre Arnaldo Janssen. Professor
do Mestrado Acadêmico em Direito do Centro
Universitário UNA. Professor Adjunto da PUC Minas.
Advogado Sócio do Escritório Raffaele & Federici
Advocacia Associada. E-mail: <federici@pucminas.br>.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 59-90, jul./set. 2012
60 Magno Federici Gomes, Daniel Lin Santos
1 Introdução
A Lei Federal nº 11.672, de 08 de maio de 2008, acrescentou o art. 543-C
ao Código de Processo Civil (CPC), disciplinando o procedimento para o jul-
gamento de recursos especiais repetitivos no âmbito do Superior Tribunal de
Justiça (STJ).
A exposição de motivos da Lei nº 11.672/2008 deixa clara a intenção do
legislador:
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 59-90, jul./set. 2012
Da análise da desistência do recurso excepcional a partir da objetivação do processo constitucional subjetivo 61
mecanismo simplificando o julgamento de recursos múltiplos,
fundados em idêntica matéria, no Supremo Tribunal Federal. [...]
Busca-se disponibilizar mecanismo semelhante ao Superior Tribu-
nal de Justiça para o julgamento do recurso especial.1
1
BRASIL. Exposição de motivos, 2007.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 59-90, jul./set. 2012
62 Magno Federici Gomes, Daniel Lin Santos
Em conformidade com: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Corte Especial. QO no REsp nº 1.063.343/
2
RS (Questão de Ordem no Recurso Especial). Rel. Min. Nancy Andrighi, Brasília, 17 dez. 2008. Diário
de Justiça Eletrônico, Brasília, 04 jun. 2009. Em sentido equivalente: BRASIL. Superior Tribunal de
Justiça. Segunda Seção. REsp nº 1.058.114/RS (Recurso Especial 2008/0104144-5). EMENTA: Direito
comercial e bancário. Contratos bancários sujeitos ao código de defesa do consumidor. Princípio
da boa-fé objetiva. Comissão de permanência. Validade da cláusula. Verbas integrantes. Decote
dos excessos. Princípio da conservação dos negócios jurídicos. Artigos 139 e 140 do Código Civil
alemão. Artigo 170 do Código Civil brasileiro. Rel. para o Acórdão Min. João Otávio de Noronha, Rel.
Min. Nancy Andrighi, Brasília, 12 ago. 2009. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 16 nov. 2010.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 59-90, jul./set. 2012
Da análise da desistência do recurso excepcional a partir da objetivação do processo constitucional subjetivo 63
a causa, que é representativa de inúmeras outras. E, pelo fato de o procedimento
passar a ser considerado de natureza coletiva, não poderia, por conseguinte, ficar
à disposição do recorrente que teve seu recurso especial selecionado como repre-
sentativo de uma determinada discussão interpretativa do ordenamento jurídico.
Eis, assim, a delimitação do arcabouço fático-jurídico ensejador do debate
proposto. A questão versa sobre a possibilidade das partes desistirem do recurso
depois que ele for colocado na pauta de julgamento do Tribunal sob os ditames
do procedimento da Lei de Recursos Repetitivos, tornando-se imperativo pro-
ceder à análise dos pressupostos dessa compreensão — que inadmite a desis-
tência recursal — à luz dos demais institutos jurídicos envolvidos na demanda.
Para além do acerto ou não da decisão proferida pelo STJ, na Questão de
Ordem no Recurso Especial nº 1.063.343/RS, este estudo coloca em discussão a
idoneidade e consistência da técnica do art. 543-C do CPC na busca da resolução
efetiva dos litígios em massa ou macrolides. Mais especificamente no aspecto da
desistência enquanto instituto jurídico-processual, visto que, ao se consolidar
a posição adotada pelo STJ, haverá restrição do poder da parte de desistir do
recurso interposto, ato este que sempre foi afeto exclusivamente à autonomia
privada do recorrente e ao princípio da disponibilidade da demanda (ou prin-
cípio dispositivo). Afinal, como é cediço, a desistência do recurso produz efeitos
imediatos (art. 158 do CPC), não necessitando de homologação judicial, nem de
concordância da parte contrária (art. 501 do CPC).
Nas palavras dos doutrinadores Didier Júnior e Cunha (2009), “é dizer:
não se pode, em princípio, rejeitar a desistência, pois não se pede a desistência,
simplesmente se desiste e a desistência produz efeitos imediatos”.3
Em síntese, a decisão do STJ provocou discussão em torno do suposto
conflito que se teria instaurado entre o interesse público — consistente na
necessidade de resolução da causa e consequente fixação da tese a ser apli-
cada aos demais recursos especiais suspensos na origem —, e o interesse pri-
vado, consubstanciado no exercício regular de um direito subjetivo, qual seja,
a desistência recursal (art. 501 do CPC); instituto este que foi tradicionalmente
tratado pela doutrina como manifestação do princípio da disponibilidade da
demanda (ou princípio dispositivo) e da autonomia privada.
O tema ora proposto se mostra relevante. A uma, por se tratar de alteração
legislativa relativamente recente, muito ainda havendo a ser investigado sobre
o procedimento introduzido pelo art. 543-C do CPC, dentre o que se destaca
DIDIER JÚNIOR; CUNHA. Curso de direito processual civil: meios de impugnação às decisões
3
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 59-90, jul./set. 2012
64 Magno Federici Gomes, Daniel Lin Santos
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Da análise da desistência do recurso excepcional a partir da objetivação do processo constitucional subjetivo 65
na aplicação e interpretação do direito constitucional e do infraconstitucional
federal de todo o território nacional.
São duas as perspectivas constitucionais sob as quais o incidente previsto
no art. 543-C do CPC deve ser analisado: a primeira, de maximizar o direito funda-
mental à isonomia (art. 5º, caput, da Constituição da República de 1988 – CR/88);
e a segunda, de garantir a plena realização do direito à razoável duração do pro-
cesso (art. 5º, inciso LXXVIII, da CR/88), conforme disposto na Questão de Ordem
no Recurso Especial nº 1.063.343/RS, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi.4 Por
isso é que se toma, como uma das características desta lei, bem como de outras
que também vieram reformar o CPC, a tentativa de adoção, tanto quanto possí-
vel, da uniformização de soluções para situações semelhantes, ou seja, em igual-
dade de condições.
Trata-se, em verdade, de um fenômeno moderno da sociedade de massa,
que introduziu no sistema brasileiro de origem romano-germânica a técnica
inerente ao sistema anglo-saxônico, inspirado no princípio da isonomia, de se
aplicar o precedente judicial em caráter erga omnes nas causas que apresentam
um interesse comum a uma multiplicidade inidentificável de jurisdicionados.
Ora, como é cediço, inúmeras causas repetitivas são distribuídas aos Tribunais
Superiores, demandando receber, por força do princípio da isonomia, o mesmo
tratamento meritório.
Por outro lado, à luz da concepção da efetividade dos processos e da
celeridade dos procedimentos, o legislador pátrio debruça-se em propostas
“cuja técnica de julgamento atende a necessidade de eficácia da decisão sob
o enfoque transindividual, mercê de imprimir metodologia apta a esvaziar o
acervo incalculável de processos nos Tribunais Superiores”.5
Nesse sentido, a Lei nº 11.672/2008 certamente tem a mesma inspiração
de todos os outros instrumentos processuais apontados anteriormente, o que
demonstra tratar-se de forte tendência do ordenamento jurídico-processual
pátrio. É dizer, o art. 543-C do CPC será mais uma técnica de solução de massa
para situações jurídicas idênticas. Isso só vem a prestigiar os princípios da iso-
nomia e da segurança jurídica, além, é claro, do princípio da eficiência proces-
sual e de sua razoável duração, conferindo ao recurso especial uma expressiva
dimensão transindividual e assemelhando-o às tutelas jurisdicionais prestadas
4
Conforme BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Corte Especial. QO no REsp nº 1.063.343/RS
(Questão de Ordem no Recurso Especial). Rel. Min. Nancy Andrighi, Brasília, 17 dez. 2008. Diário
de Justiça Eletrônico, Brasília, 04 jun. 2009.
5
FUX. A desistência recursal e os recursos repetitivos. Revista de Direito Renovar, p. 4.
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66 Magno Federici Gomes, Daniel Lin Santos
em demandas coletivas (e.g., ação popular, ação civil pública, ação direta de
inconstitucionalidade e outras).6
A constatação dessa tendência não passou despercebida pela doutrina,
ainda que sob severas críticas, como registrou o Professor Bahia (2009):
6
Para aprofundamentos, ver NOGUEIRA. A nova sistemática do processamento e julgamento
do recurso especial repetitivo, art. 543-C, do CPC. Revista de Processo.
7
BAHIA. Os Recursos Extraordinários e a co-originalidade dos interesses público e privado no
interior do processo: reformas, crises e desafios à jurisdição desde uma compreensão proce-
dimental do Estado Democrático de Direito. In: OLIVEIRA; MACHADO. Constituição e processo:
a contribuição do processo no constitucionalismo democrático brasileiro. cap. 3, p. 369.
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Da análise da desistência do recurso excepcional a partir da objetivação do processo constitucional subjetivo 67
deslinde da causa, suscitados por todos os interessados, sejam levados
em conta no momento da decisão. A participação se limita às partes
dos recursos afetados, que podem ou não ter apresentado uma argu-
mentação idônea e técnica. Perceba-se que, com a técnica de “proces-
sos teste”, adotada pelos institutos, os Tribunais Superiores (STF e STJ)
não julgarão mais todos os recursos que lhe forem dirigidos (não
julgará mais as causas), mas, sim, o tema (tese) que estiver sendo
abordado nos recursos representativos (apud BAHIA). O mecanismo
de pinçamento, em última análise, é uma clara técnica de varejo para
solucionar um problema do atacado [...].8
Críticas a parte9 — pois não fazem parte do escopo deste trabalho —, veri
fica-se que a decisão proferida pelo STJ, além das perspectivas constitucionais
do direito à razoável duração do processo e do direito fundamental à isonomia,
conferiu ao sistema do art. 543-C do CPC outro atributo, de cunho infraconstitu-
cional, mas não menos importante, qual seja, o de assegurar o interesse público
consistente na fixação do precedente a ser aplicado à multiplicidade de recursos
sobrestados, na origem ou perante o Tribunal Superior, e na necessidade de uma
pronta solução para a causa modelo. Esta, por extrapolar a esfera jurídica indivi-
dual das partes, é representativa de inúmeras outras, de cujo procedimento, por
conseguinte, não poderia desistir o recorrente.
Nesse sentido, à luz do processo civil moderno, a parte não teria o direito
de desistir de um caso que terá efeitos sobre milhares de outros, sob pena de
afronta à própria ideia de jurisdição enquanto poder/dever de “dizer o direito”
ao(s) caso(s) concreto(s), solucionando a lide. Por todos, cumpre registrar a lição
de Fux (2010):
NUNES. Decisão do STJ: Corte Especial nega desistência de recurso repetitivo. Jus Navigandi.
8
Entre elas a de possível negativa de acesso à jurisdição (art. 5º, inciso XXXV, da CR/88).
9
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68 Magno Federici Gomes, Daniel Lin Santos
10
FUX. A desistência recursal e os recursos repetitivos. Revista de Direito Renovar, p. 12.
11
MARINONI; ARENHART. Curso de processo civil: processo de conhecimento, v. 2, p. 523.
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Da análise da desistência do recurso excepcional a partir da objetivação do processo constitucional subjetivo 69
Mais um fator mostra-se como afirmação dos princípios da disponibilidade
da demanda e da autonomia privada nesta matéria, qual seja, o fato da desistência
recursal também prescindir de homologação judicial para que produza seus efei-
tos jurídicos. Com efeito, extrai-se do art. 158, caput, do CPC que “os atos das partes,
consistentes em declarações unilaterais ou bilaterais de vontade, produzem ime-
diatamente a constituição, a modificação ou a extinção de direitos processuais”,12
excepcionando-se a hipótese prevista no parágrafo único do referido dispositivo,
na qual o legislador previu a necessidade de homologação por sentença da desis-
tência da ação. Nesse sentido, vale mencionar as lições de Moreira (2008 e 2004):
12
BRASIL. 1973, art. 158.
13
MOREIRA. Comentários ao Código de Processo Civil, v. 5, p. 334-335.
14
MOREIRA. O novo processo civil brasileiro: exposição sistemática do procedimento, p. 126.
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70 Magno Federici Gomes, Daniel Lin Santos
15
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Corte Especial. QO no REsp nº 1.063.343/RS (Questão de
Ordem no Recurso Especial). Rel. Min. Nancy Andrighi, Brasília, 17 dez. 2008. Diário de Justiça
Eletrônico, Brasília, 04 jun. 2009.
16
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Corte Especial. QO no REsp nº 1.063.343/RS (Questão de
Ordem no Recurso Especial). Rel. Min. Nancy Andrighi, Brasília, 17 dez. 2008. Diário de Justiça
Eletrônico, Brasília, 04 jun. 2009.
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Da análise da desistência do recurso excepcional a partir da objetivação do processo constitucional subjetivo 71
Nesse mesmo sentido e explicitando a classificação quanto ao objeto,
o Ministro Ari Pargendler, concluindo pela impossibilidade de desistência de
recurso especial que o Tribunal tenha afetado ao regime da Lei nº 11.672/2008,
consignou em seu voto:
17
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Corte Especial. QO no REsp nº 1.063.343/RS (Questão de
Ordem no Recurso Especial). Rel. Min. Nancy Andrighi, Brasília, 17 dez. 2008. Diário de Justiça
Eletrônico, Brasília, 04 jun. 2009. Voto do Min. Ari Pargendler.
18
NUNES. Decisão do STJ: Corte Especial nega desistência de recurso repetitivo. Jus Navigandi.
19
STRECK. O STJ e a desistência de recurso. Jus Navigandi.
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72 Magno Federici Gomes, Daniel Lin Santos
apenas àquele processo, mas aos efeitos nos outros. Ora, as partes não
têm legitimidade para discutir algo como “a aplicação da lei em tese”,
ou seja, acerca de quais seriam as aplicações que, em princípio, uma lei
teria para além do caso. Veja-se: as partes no recurso não representam
nem substituem a sociedade; estão ali na defesa dos seus direitos, elas não
foram eleitas por ninguém... E se aquela decisão pode vir a afetar outros
processos em razão de uma suposta eficácia erga omnes, o que ocorre
é a violação do devido processo, do contraditório, da ampla defesa
em relação aos demais. Em outras palavras, o que fica claro nessa
decisão do STJ é que o Recurso Especial, agora, mais do que nunca,
não “pertence” às partes; não “serve” às mesmas, mas apenas (ou quase
tão somente) ao “interesse público”, que, convenhamos, não passa de
uma expressão que sofre de “anemia significativa”, nela “cabendo qual-
quer coisa”, mormente se for a partir do “princípio” da razoabilidade,
álibi para a prática de todo e qualquer pragmatismo. Assim decidindo,
o STJ quis transmitir-nos o seguinte recado: se o recurso não serve às
partes, mas a um interesse “maior”, “transcendente”, nada mais “natu-
ral” (sic) que o recorrente não possa dele desistir, já que (seu recurso)
está sendo utilizado para um “bem maior” (mais uma vez aqui as
velhas “razões de Estado”...). Em linha divergente, penso que o Tribu-
nal se equivoca, pois se considerarmos que, com a figura da reunião
de recursos “idênticos” o que se tem é um “litisconsórcio por afinidade”
(a expressão é de Fredie Didier), o que temos aí é mais um argumento
para mostrar que a decisão fere, também por esse viés, o art. 501 do CPC.20
20
STRECK. O STJ e a desistência de recurso. Jus Navigandi.
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Da análise da desistência do recurso excepcional a partir da objetivação do processo constitucional subjetivo 73
4 O fenômeno da “objetivação” do processo subjetivo –
Mudança de paradigma
A introdução de institutos como o inaugurado pelo art. 543-C do CPC
no direito positivo brasileiro está trazendo, para o processo civil ordinário —
até pouco tempo marcadamente individualista —, certos contornos objetivos
que são próprios dos típicos processos de controle concentrado de constitu-
cionalidade, nos quais se discute a constitucionalidade de um ato jurídico em
abstrato.
Como é cediço, no ordenamento jurídico pátrio, o modelo de controle
reservado de constitucionalidade está vinculado a um processo eminentemente
objetivo, tendo em vista que o julgamento levado a efeito pelo Tribunal não
está diretamente vinculado a uma questão de interesse direto das partes. Ao
se tomar por fundamento o princípio da supremacia da Constituição frente às
demais espécies normativas, a instauração de um procedimento de controle abs-
trato de normas tem por objeto a verificação da compatibilidade ou não entre os
preceitos de determinado ato normativo em face dos princípios e regras inscul-
pidos na CR/88. Quando em confronto, a questão resolve-se em detrimento dos
primeiros, os quais serão extirpados do ordenamento jurídico por serem contrá-
rios à Constituição, formal ou materialmente.
As decisões tomadas em sede de controle concentrado de constitucio-
nalidade possuem, em regra, eficácia erga omnes e efeitos ex tunc e vinculante.
Não se discute situações individuais, isto é, inerentes ao caso concreto. Tutela-se,
sim, com alto grau de abstração e generalidade, o ordenamento jurídico como
um todo, em conformidade com a lei fundamental. Daí dizer que o controle
normativo abstrato de constitucionalidade constitui processo de natureza emi-
nentemente objetiva, vocacionado à defesa, em tese, da harmonia da ordem
constitucional.
Postas, em apertada síntese, as características deste procedimento abs-
trato de controle normativo, fala-se em tendência à consolidação do fenômeno
da objetivação do processo constitucional subjetivo — numa nítida viragem de
paradigma —, na medida em que aqueles contornos, que antes eram próprios
dos procedimentos de controle abstrato de normas, agora estendem seus ten-
táculos aos processos ordinários de caráter tradicionalmente subjetivo ou de
defesa de interesses exclusivamente das partes, em função de afetação coletiva
e transcendente do julgamento em recursos excepcionais. É o que se verifica nas
hipóteses de recorribilidade extraordinária lato sensu (recursos extraordinários e
especiais) e, mais especificamente, no que é pertinente ao objeto do presente
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74 Magno Federici Gomes, Daniel Lin Santos
21
CÔRTES. A “objetivação” no processo civil: as características do processo objetivo no procedi-
mento recursal. Revista de Processo, p. 220.
22
CÔRTES. A “objetivação” no processo civil: as características do processo objetivo no procedi-
mento recursal. Revista de Processo, p. 225-226.
23
Justificada por razões de segurança, celeridade do procedimento e pela atribuição dos Tribu-
nais Superiores em exercerem os seus papéis constitucionais de primazia pelo respeito às leis
e à CR/88 de maneira uniforme.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 59-90, jul./set. 2012
Da análise da desistência do recurso excepcional a partir da objetivação do processo constitucional subjetivo 75
Como afirmado anteriormente, trata-se de fenômeno a que se pode
denominar “objetivação do processo constitucional subjetivo”, em que a deci
são jurisdicional ganha contornos de generalidade e assume a função não
apenas de dirimir determinada controvérsia posta à apreciação do Juízo, mas
também de desempenhar a tarefa de estabelecer um precedente com força
vinculante a casos análogos.
O procedimento desenvolvido pelo STJ no julgamento conjunto de pro-
cessos com mesma questão jurídica é típico exemplo de instituto que já tem
por paradigma o fenômeno da objetivação. Nele, prestigia-se a aplicação do
mesmo direito a todos os casos que possuem idêntica controvérsia interpreta-
tiva, sem apresentar preocupação com a ideia de identidade de partes, a partir
do primado de que causas iguais24 merecem as mesmas soluções e de que o
interesse público ínsito a essas demandas deve prevalecer sobre o interesse
exclusivamente particular. O que importa, adotando-se linguagem própria do
sistema romano-germânico, especialmente na senda brasileira de tal família
jurídica, é a semelhança no suporte fático e a identidade de pretensão jurídica.
Se há, pois, identidade de causas de pedir, há vínculo a ser seguido e respeitado,
como garantia de isonomia de tratamento jurisdicional, a fim de se alcançar a
segurança jurídica.
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25
BRASIL. 2010, p. 32.
26
BRASIL. 2010, p. 41.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 59-90, jul./set. 2012
Da análise da desistência do recurso excepcional a partir da objetivação do processo constitucional subjetivo 77
em que confere mais força aos precedentes jurisprudenciais, exatamente para
permitir que casos repetitivos recebam soluções jurídicas idênticas.
Dada a sua importância ao tema debatido, digno é de destaque o conteúdo
das disposições gerais de Livro IV em comento, os quais, fazendo expressa men-
ção ao julgamento dos recursos especiais repetitivos, buscam consolidar a efetiva
observância da jurisprudência reiterada dos tribunais pelos órgãos fracionários,
juízos de primeira instância e outros:
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78 Magno Federici Gomes, Daniel Lin Santos
28
BRASIL. 2010, art. 883.
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Da análise da desistência do recurso excepcional a partir da objetivação do processo constitucional subjetivo 79
definição do precedente ou da tese a ser adotada pelo Tribunal Superior, que
haverá de ser seguida pelos demais Tribunais e que repercutirá na análise dos
demais recursos que estão sobrestados. Trata-se da solução já aventada por
Didier Júnior, Cunha (2009) e Lourenço (2009).
Com efeito, as Leis nºs 11.418/2006 e 11.672/2008 inovaram sobrema-
neira o procedimento de julgamento dos recursos repetitivos, sejam eles extra-
ordinários ou especiais, introduzindo novo paradigma legal à sistemática dos
mesmos. Após a vigência de tais atos normativos, está-se diante de situação
diversa daquela anterior à inovação legislativa, em que os únicos diretamente
interessados no julgamento dos recursos eram as partes. Agora, as circuns-
tâncias são diferentes. O julgamento proferido pelo Supremo Tribunal Federal
(STF) ou pelo STJ a partir do recurso selecionado como representativo de uma
determinada controvérsia repercutirá diretamente nos milhares de recursos
repetitivos suspensos, seja na origem ou mesmo nos Tribunais Superiores.
O problema da avalanche de recursos remetidos aos Tribunais Superiores
não é novo. Os números são expressivos e surpreendem. Deveras, milhares de
ações individuais idênticas quanto ao pedido e a causa de pedir, cujos julgamen-
tos redundam em recursos repetitivos, abarrotam os Tribunais brasileiros, colo-
cando-os no patamar de Cortes com o maior número de recursos pendentes de
decisão. De acordo com o Ministro Luiz Fux, à época, os anais das jornadas Ibero-
americanas de Direito Processual de 2006, registraram Tribunais Superiores que
julgaram 50 causas por ano (EUA), 50.000 (Itália) e 264.000 (Brasil).29 Já o Ministro
Sidnei Beneti, quando de seu voto na Questão de Ordem no REsp nº 1.063.343/RS,
em tom de lamento, registrou o fato de, em caso semelhante ocorrido anterior-
mente, ter homologado a desistência em um processo que estava na pauta de
julgamento e que iria definir cerca de 60 mil causas idênticas pelo país afora. O
ministro ainda lembrou que a Suprema Corte dos Estados Unidos levou nove
anos para decidir sobre o direito ao aborto: “A criança nasceu e o processo per-
deu o objeto, mas eles decidiram manter o julgamento para fixar uma orientação
para a sociedade”.30
Outrossim, após a verificação da existência de inúmeros recursos que
versem sobre a mesma matéria interpretativa sobre o ordenamento jurídico e
uma vez instaurado o procedimento do recurso representativo, praticam-se, no
bojo do mesmo, inúmeros atos processuais, de repercussão nacional, com gra-
ves consequências que transcendem os limites subjetivos daquele feito, como
Ordem no Recurso Especial). Rel. Min. Nancy Andrighi, Brasília, 17 dez. 2008. Diário de Justiça
Eletrônico, Brasília, 04 jun. 2009. Voto do Min. Sidnei Beneti.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 59-90, jul./set. 2012
80 Magno Federici Gomes, Daniel Lin Santos
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Da análise da desistência do recurso excepcional a partir da objetivação do processo constitucional subjetivo 81
Ademais, o art. 543-C do CPC não consiste em norma derrogadora do
art. 501 do CPC. A sistemática dos recursos especiais repetitivos não retirou do
recorrente a condição de dominus litis da causa levada em grau de recurso a
Juízo, não sendo correto, por via transversa, negar vigência ao art. 501 do CPC,
suprimindo do recorrente o regular exercício de um direito que lhe é assegu-
rado, qual seja, o de desistir do prolongamento do direito de ação ou defesa,
sob pena do Poder Judiciário invadir a esfera legislativa, em flagrante ativismo
judicial.31 Vale dizer que o STJ poderia ter declarado inconstitucional o mencio-
nado artigo, pelo controle difuso de constitucionalidade, como fundamento
de sua decisão, mas não o fez. Poderia também pensar na possibilidade de
conferir interpretação conforme a CR/88 ou, ainda, na declaração de incons-
titucionalidade sem redução de texto, o que também não aconteceu. Dessa
forma, faz-se presumir a constitucionalidade do citado art. 501 do CPC.
Outrossim, como bem lembrou o Ministro João Otávio de Noronha, não é a
parte que pede para que o seu recurso seja enviado às Seções ou ao Corte Especial
para julgamento por meio da Lei dos Recursos Repetitivos, não podendo, assim,
ser punida com a impossibilidade de desistência da demanda só porque o seu
recurso foi escolhido como paradigma.32
Enfim, percebe-se claramente que, se por um lado há o direito do recor-
rente de desistir da sua pretensão recursal, de outro há o interesse coletivo na
formulação da orientação quanto à idêntica questão de direito existente nos
múltiplos recursos.
Ante este cenário de conflito — frise-se, apenas aparente — entre a deci-
são tomada pelo STJ e o instituto da desistência recursal, cumpre ao intérprete
das normas jurídicas proceder a uma interpretação sistemática, que compatibili-
ze os preceitos em jogo. Afinal, a construção do sistema jurídico exige a solução
das antinomias jurídicas, com a ponderação de valores e princípios, pois todo
sistema deve ter coerência interna, possibilitando, desta maneira, uma solução
por meio da lógica jurídica. E, por normas, deve-se entender não só a lei, mas
também a jurisprudência, como fonte do direito que é e que vem ganhando
cada vez mais força no ordenamento jurídico pátrio. O escopo será sempre a
afirmação dos princípios da consistência, unidade e harmonia do ordenamento
jurídico nacional.
31
Coloca-se de manifesto que o ativismo judicial não é objeto do presente estudo, não cabendo
nesta sede aprofundamentos maiores.
32
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Corte Especial. QO no REsp nº 1.063.343/RS (Questão de
Ordem no Recurso Especial). Rel. Min. Nancy Andrighi, Brasília, 17 dez. 2008. Diário de Justiça
Eletrônico, Brasília, 04 jun. 2009. Voto do Min. João Otávio de Noronha.
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Essa afirmação também deve ser empregada nos recursos extraordinários representativos e
33
repetitivos, afetados pela repercussão geral (arts. 102, §3º, da CR/88, 543-A e 543-B do CPC), pré-
vio incidente de arguição de relevância (art. 555, §1º, do CPC), ou mesmo pelo controle reservado
de constitucionalidade (arts. 102, inciso I, alínea “a”, §§1º e 2º, 103 da CR/88, Leis nºs 9.868/1999,
9.882/1999 e 12.562/2011).
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Da análise da desistência do recurso excepcional a partir da objetivação do processo constitucional subjetivo 83
deve atingir, apenas, o procedimento recursal, não havendo como
negar tal desistência, já que, como visto, ela produz efeitos imediatos,
não dependendo de concordância da outra parte, nem de autoriza-
ção ou homologação judicial. [...] Tal desistência, todavia, não atinge o
segundo procedimento, instaurado para definição do precedente ou
da tese a ser adotada pelo Tribunal Superior. Esse procedimento
incidental é, inclusive, instaurado por provocação oficial, o que revela
o interesse público que lhe é subjacente. Em suma, a desistência não
impede o julgamento, com a definição da tese a ser adotada pelo Tri-
bunal Superior, mas tal julgamento não atinge o recorrente que desis-
tiu, servindo, apenas, para estabelecer o entendimento do Tribunal, a
influenciar e repercutir nos outros recursos que ficaram sobrestados.34
34
DIDIER JÚNIOR; CUNHA. Curso de direito processual civil: meios de impugnação às decisões
judiciais e processo nos tribunais, p. 323-324.
35
Em sentido equivalente: LOURENÇO. Desistência da pretensão recursal no julgamento por amos-
tragem em recursos repetitivos: uma proposta. Revista Forense.
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36
Como ocorreu na decisão da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, na Questão de Ordem
no Recurso Especial nº 1.063.343/RS, julgada em 17 de dezembro de 2008 e publicada em 04 de
junho de 2009.
37
CABRAL. O novo procedimento-modelo (Musterverfahren) alemão: uma alternativa às ações cole-
tivas. Revista de Processo, p. 128.
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Da análise da desistência do recurso excepcional a partir da objetivação do processo constitucional subjetivo 85
vários litígios individuais. Pode-se dizer, portanto, que o mérito da
cognição no incidente compreende elementos fáticos ou questões
prévias (Varfragen) de uma relação jurídica ou de fundamentos da
pretensão individual. Ressalte-se que o objeto da cognição judicial
neste procedimento pode versar tanto sobre questões de fato como
de direito, o que denota a possibilidade de resolução parcial dos
fundamentos da pretensão, com a cisão da atividade cognitiva em
dois momentos: um coletivo e outro individual. Esse detalhe é de
extrema importância, pois evita uma potencial quebra da necessária
correlação entre fato e direito no juízo cognitivo. Vale dizer, se na ati-
vidade de cognição judicial, fato e direito estão indissociavelmente
imbricados, a abstração excessiva das questões jurídicas referentes às
pretensões individuais poderia apontar para um artificialismo da
decisão, o que não ocorre aqui, com a vantagem de evitar as críticas
aos processos-teste.38
Apesar da não utilização dos termos aqui aduzidos, a solução ora proposta
também foi similar — apenas em termos práticos — à orientação inicialmente
adotada pela Ministra Nancy Andrighi — não obstante tenha sido por ela pos-
teriormente reconsiderada —, mas que conduziu os votos dos Ministros Aldir
Passarinho Júnior, Eliana Calmon, Francisco Falcão e Laurita Vaz, vencidos, os
quais deferiam o pedido de desistência formulado pelo recorrente paradigma,
mas sem afastar do Tribunal a possibilidade de manifestação a respeito do tema
em debate com a consequente fixação da tese. Na ocasião, a Ministra Relatora
ressaltou a necessidade de conciliação entre interesse público e particular à luz
da ordem constitucional vigente:
38
CABRAL. O novo procedimento-modelo (Musterverfahren) alemão: uma alternativa às ações cole-
tivas. Revista de Processo, p. 132-133.
39
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Corte Especial. QO no REsp nº 1.063.343/RS (Questão de
Ordem no Recurso Especial). Rel. Min. Nancy Andrighi, Brasília, 17 dez. 2008. Diário de Justiça
Eletrônico, Brasília, 04 jun. 2009.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 59-90, jul./set. 2012
86 Magno Federici Gomes, Daniel Lin Santos
7 Conclusões
Ao considerar que ambas as teses expostas possuem argumentações
igualmente fortes a seu favor, a solução para o deslinde da questão encontra-se
naquilo que parece ser um justo meio termo.
Portanto, no aspecto atinente à presente discussão, o justo meio-termo
aristotélico estaria nem tanto pela possibilidade pura e simples da desistência
recursal, nem tanto pela sua total impossibilidade, quando se tratar de recurso
submetido à técnica dos arts. 543-B e 543-C do CPC. Faz-se necessário, sim, a
compatibilização entre os preceitos normativos, legal (art. 501 do CPC) e juris-
prudencial (decisão do STJ), enquanto fontes do direito.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 59-90, jul./set. 2012
Da análise da desistência do recurso excepcional a partir da objetivação do processo constitucional subjetivo 87
E a solução perpassa pela ideia de coexistência de dois procedimentos
no bojo da sistemática introduzida pelas Leis nºs 11.418/2006 e 11.672/2008, do
mesmo modo que há a coexistência de interesse público e particular no interior
do processo nesses casos.
De acordo com o entendimento ora defendido, a escolha de determinado
recurso excepcional como representativo da controvérsia não impede que o recor-
rente disponha do seu interesse recursal, antes o permite, haja vista que as partes
diretamente envolvidas no recurso selecionado podem verdadeiramente ter inte-
resse na desistência (eficácia inter partes). Por outro lado, o interesse da coletivi-
dade de ter solucionada a questão de direito objeto dos processos repetitivos
não sofrerá prejuízo, pois aquela desistência não terá o condão de suprimir aos
Tribunais Superiores a fixação do respectivo precedente a ser aplicado aos diversos
recursos sobrestados, desde que o façam em abstrato (abstração), a fim de produzir
eficácia erga omnes. De forma que não se vislumbra razão para que se privilegie o
interesse privado em detrimento do interesse público, ou vice-versa, se na hipótese
é possível que ambos caminhem lado a lado.
A CR/88 designou o STJ como responsável pela defesa da legislação
federal (correta e adequada) e pela uniformização da jurisprudência em se
tratando de matéria infraconstitucional. Cumpre àquele Tribunal Superior,
precipuamente, exercer a guarda e o controle do ordenamento jurídico infra-
constitucional de forma ampla, intérprete final que é das leis federais. Não lhe
compete, de outro lado, imiscuir-se nas questões de fato dos casos sob seu
julgamento, tendo em vista que tais matérias já foram definidas e delimitadas
por um duplo grau de jurisdição antes de serem submetidas ao crivo daquele
Tribunal.
O procedimento inaugurado pelo art. 543-C do CPC fortalece e coloca
em evidência essa missão constitucional uniformizadora do recurso especial,
conferindo maiores contornos de objetividade e generalidade aos processos
constitucionais subjetivos. Com efeito, é enorme a utilidade de um procedi-
mento como o dos recursos especiais repetitivos, que permite a tratativa cole
tiva de questões de direito comuns a muitas demandas, pacificando-as de
maneira única para todas as causas.
Abstract: The Federal Law nº 11.672/2008 added the art. 543-C to the
Brazilian Code of Civil Procedure (CPC), regulating the procedure for
judging new appellate process under the Supreme Court of Justice (STJ),
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 59-90, jul./set. 2012
88 Magno Federici Gomes, Daniel Lin Santos
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Da análise da desistência do recurso excepcional a partir da objetivação do processo constitucional subjetivo 89
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de controvérsia (art. 543-C, §1º, do CPC). Indeferimento do pedido de desistência recursal.
É inviável o acolhimento de pedido de desistência recursal formulado quando já iniciado o
procedimento de julgamento do Recurso Especial representativo da controvérsia, na forma do
art. 543-C do CPC c/c Resolução nº 08/08 do STJ. Questão de ordem acolhida para indeferir o
pedido de desistência formulado em Recurso Especial processado na forma do art. 543-C do CPC
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A divergência de interpretação
dentro de um mesmo Tribunal –
Análise comparativa do sistema do
common law e da solução existente
no direito brasileiro
Júlia Schledorn de Camargo
Mestranda em Direito Processual Civil pela
PUC-SP, sob orientação do Prof. Donaldo Armelin.
Pós-Graduada em Direito Processual Civil, pela PUC/
Cogeae. Especialista em Arbitragem pela GVLaw.
Especialista em Contratos pelo Centro de
Estudos Universitários de São Paulo.
Professora Assistente no Mestrado da PUC-SP.
Advogada de Wald e Associados Advogados.
1 Introdução
O estudo do instituto do precedente, com base no civil law e common
law, faz surgir interessantes questões a respeito do assunto. Dentre elas,
encontra-se a divergência de entendimento sobre determinada questão
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92 Júlia Schledorn de Camargo
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A divergência de interpretação dentro de um mesmo Tribunal – Análise comparativa do sistema... 93
Essas características, intrínsecas ao sistema do common law que se baseia
no uso do precedente, estão menos presentes no sistema do civil law, no qual
não há referido instituto, mas apenas se verifica a existência de jurisprudência.
Neste sentido, deve-se ter em mente a nítida distinção que há entre prece-
dente e jurisprudência, que Taruffo1 bem pontua. A diferença entre precedente e
jurisprudência é verificada no aspecto quantitativo, pois o precedente refere-se
a uma decisão, enquanto jurisprudência implica, normalmente, a existência de
uma pluralidade.
Mas há também uma diferença no aspecto qualitativo, pois o precedente
fornece uma regra a ser aplicada no caso sucessivo em função da similitude
fática, aferida pelo juiz do caso sucessivo que, ao identificar as semelhanças dos
casos, utilizará a ratio decidendi da decisão antecedente. Justamente por isso é
que se pode afirmar que quem cria o precedente é o julgador do segundo caso.
A jurisprudência, por sua vez, é identificada pelos enunciados, sobretudo, que
contêm as regras jurídicas da decisão, sem incluir os fatos, razão pela qual a sua
aplicação não se funda na similitude fática, mas “sobre subsunção da fattispecie
sucessiva em uma regra geral”.2
Quanto ao surgimento do precedente, verifica-se que uma decisão somente
passa a ser considerada como um verdadeiro precedente se, além de seu con-
teúdo envolver uma matéria nova, que ainda não havia sido decidida, for utilizada
em uma decisão subsequente. Veja-se que o uso da primeira decisão é essencial
para que surja o precedente, caso contrário, será apenas uma decisão isolada, sem
qualquer força vinculante, característica esta inerente ao sistema dos precedentes.
Por sua vez, a jurisprudência surge quando se verifica mais de uma decisão a res-
peito da matéria tratada, não havendo a necessidade de efetivo uso nas razões de
decidir de outra decisão.
Passando à análise especificamente do precedente, verifica-se, em um
primeiro ponto, que “todo precedente judicial é composto por duas partes dis-
tintas: a) as circunstâncias de fato que embasam a controvérsia; e b) a tese ou
o princípio jurídico assentado na motivação (ratio decidendi) do provimento
decisório”.3 No entanto, apenas a ratio decidendi é relevante para o uso e carac
terização propriamente dita do precedente, pois é nela que está a regra jurídica,
e não na obter dictum, parte da decisão composta por todas as demais afirma-
ções e argumentos contidas na decisão, especificamente, em sua motivação,
úteis para a compreensão da decisão em si dos seus fundamentos.
1
Precedente e jurisprudência. Revista de Processo, p. 139 et seq.
2
TARUFFO, op. cit.
3
TUCCI. Precedente judicial como fonte do direito, p. 12
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94 Júlia Schledorn de Camargo
4
WAMBIER. Precedentes e evolução do direito. In: WAMBIER. Direito jurisprudencial, p. 43-44.
5
TARUFFO, op. cit.
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A divergência de interpretação dentro de um mesmo Tribunal – Análise comparativa do sistema... 95
grau hierárquico, o que fará com que a força do precedente seja persuasiva, e,
portanto, inferior à vertical que é vinculativa.
Como corolário da eficácia vinculante do precedente, deve-se ter em
mente que é possível que esse juiz afaste o uso da decisão antecedente por
meio de técnicas específicas denominadas distinguishing e overruling. Com
efeito, para o uso do precedente, faz-se necessário verificar os seguintes requi-
sitos: (i) similaridade nas questões de direito, (ii) similaridade nos fatos, e (iii) se
o precedente foi bem fundamentado. Após a análise destes, o Tribunal pode
concluir que não há semelhanças entre os fatos e a matéria de direito do caso
anterior em relação ao caso em exame e, assim, poderá afastar o precedente,
de forma fundamentada, o que caracteriza o distinguishing.
Quanto ao overruling, trata-se da revogação do precedente, de sua ratio,
por se revelar ultrapassado ou mal fundamentado. Referido instituto, apesar de
ser de grande valia para os casos de decisões anacrônicas, não condizentes com
a realidade e mal arrazoados, é de pouca utilização, tendo em vista a necessidade
de manter a segurança jurídica.
No sistema do civil law, por sua vez, apesar de não haver, via de regra,6 a
força vinculante do precedente, não há impedimento para a aplicação de uma
decisão em casos subsequentes e, caso isso não ocorra, basta que o julgador
fundamente seu entendimento, tanto que a identificação de decisões como
precedentes ocorre de forma pouco frequente.
Diante disso, podemos observar que a doutrina do stare decisis envolve,
justamente, o efeito coercitivo e vinculativo do precedente, ou seja, da decisão
anterior que irá criar efetivamente o direito. E o efeito vinculativo é de tamanha
importância para essa teoria, tipicamente do common law, que José Rogério
Cruz e Tucci afirma o seguinte:
Dissemos que não há via de regra à força vinculante, pois, atualmente, o sistema jurídico
6
brasileiro prevê a eficácia vinculante para (i) a súmula vinculante; (ii) o incidente de uniformi-
zação de jurisprudência; e (iii) o julgamento de recursos com o regime de recursos repetitivos
prevista nos arts. 543 B e C, do CPC.
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96 Júlia Schledorn de Camargo
7
TUCCI, op. cit., p. 12-13.
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A divergência de interpretação dentro de um mesmo Tribunal – Análise comparativa do sistema... 97
3 A divergência de interpretação dentro do próprio Tribunal
e soluções existentes para resolução do problema no
common law e civil law
Como visto, o sistema do common law baseia-se na obrigatoriedade e
vinculação do precedente, mas há exceções que se referem à hierarquia dos
Tribunais, pois, via de regra, um Tribunal superior não está vinculado a uma
decisão proferida por um Tribunal inferior. Além disso, e como bem esclarece
Arthur L. Goodhart, a House of Lords, o mais alto Tribunal inglês está vinculado
às suas próprias decisões, não podendo, portanto, divergir de entendimentos
anteriores:
No original: “This absolute and binding quality does not apply to all cases. Thus, a superior
8
Court is never bound by the decisions of the lower Courts, although, if a feneral practice has
developed in these Courts, the superior Court will hesitate to depart from it, nor will it, as a
rule, reverse a case which has been generally accepted as a model by the Bar. No ris one Court
of firtst instance bound by the decision of another Court of similar jurisdiction, although it
will pay it great respect. Absolute authority exists only in the following cases: 1. Every Court
is absolutely bound by the decisions of all Courts superior to itself. 2. The House of Lords is
absolutely bound by its own decisions. 3. The Court of Appeal is probably bound by its own
decisions, though on this point there is some doubt” (GOODHART. Precedent in English Law
and Continental Law, p. 9-10).
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 91-110, jul./set. 2012
98 Júlia Schledorn de Camargo
de mais de 200 anos, o que não ocorre no civil law, sendo raro o uso de decisões
que datam de mais de 50 anos.
No entanto, nota-se que pela rígida adstrição do common law aos pre-
cedentes e às regras criadas pelas decisões, o direito em si pode apresentar
um desenvolvimento mais lento e que não condiz com a velocidade que as
relações sociais, objeto das ações, evoluem. Isto é menos frequente de se veri-
ficar no sistema do civil law, pois ante a inexistência do efeito vinculativo dos
precedentes e dos Tribunais em relação a suas próprias decisões, não raro nos
deparamos com decisões das mais distintas possíveis sobre uma mesma ques-
tão, nos casos em que a lei possui conceitos vagos e que permitem diversas
interpretações.
Se por um lado a diversidade de decisões sobre uma mesma matéria
traz indubitável evolução ao direito propriamente dito no sistema do civil law,
por óbvio, traz grande insegurança ao jurisdicionado, com notório prejuízo à
segurança jurídica. Essa incerteza por um determinado período pode ser acei-
tável, se ele for considerado razoável e suficiente para que o Tribunal, de forma
segura e, após maturar seu entendimento, profira um entendimento final a ser
seguido futuramente.
Ocorre que, no Brasil, a razoabilidade para que o Tribunal fixe seu enten-
dimento quando há uma divergência intra muros está longe de ser observada.
Maior problema surge quando o Tribunal que apresenta divergência de entendi-
mento internamente é o responsável por uniformizar o entendimento da juris-
prudência, caso do Superior Tribunal de Justiça.
Com efeito, em que pese a possibilidade de divergência de entendimento
no Superior Tribunal de Justiça, deve-se observar que o sistema processual prevê
solução para essa questão. Trata-se da possibilidade de apresentação de embar-
gos de divergência, recurso que, nos termos do art. 546, do Código de Processo
Civil, é o recurso cabível para que o Superior Tribunal de Justiça e Supremo
Tribunal Federal, nas respectivas competências, uniformizem seu entendimento.
Neste aspecto, exemplificativamente, vale observar o disposto no Regi
mento Interno do Superior Tribunal de Justiça que, em seu art. 266, trata dos
embargos de divergência, estabelecendo que eles são cabíveis contra decisões
da Turma proferidas em recurso especial.
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A divergência de interpretação dentro de um mesmo Tribunal – Análise comparativa do sistema... 99
Veja-se que o referido recurso é, em tese, de grande valia para trazer
maior segurança jurídica. No entanto, os Tribunais superiores brasileiros, a des-
peito da solução existente no sistema para a divergência intra muros, com uma
frequência maior do que a desejada pelo operador do direito vem deixando de
admitir os embargos de divergência, mantendo a incerteza que a divergência
em questão gera.
Por outro lado, e como visto, o common law não admite a existência de
divergência interna e, em relação ao direito inglês, essa diversidade de enten-
dimento é inconcebível na House of Lords, a mais alta corte do referido sistema.
Tanto é assim que A. L. Goodhart chega a afirmar que, proferida a decisão pela
House of Lords, a questão de direito está plenamente definida:
9
No original: “Erros of the Court of Appeal may , however, if the litigants are prepared to
face the costs, be corrected by the House of Lords, but the House of Lords, having spoken
once, has spoken for all time refusing ever to reconsider the effect of its own judgement”
(GOODHART, op. cit., p. 37).
10
“The problem of what constitutes a conflict of decisions is not altogether free from difficulty.
To take an example from cases which are frequently cited in discussions of Young v. Bristol
Aeroplane Co., in Morrison v. Sheffield Corporation the Corporation had statutory authority
to plant trees in the highway. It did so and protect the trees with dangerous spikes pointing
outwards. During the First World War the plaintiff sustained injuries through walking into the
spikes in the blackout, and the Court of Appeal held that he was entitled to judgement. The
ratio decidendi was stated in wide terms, but Morrison’s case was not cited in woodhouse v.
Levy where, during the Second World War, a passenger in a taxi was injured when it ran into an
unlighted bollard and the Court of Appeal held that he was not entitled to recover against the
local authority. Morrison’s case was cited in Lyus v. Stepney Borough Council where a pedestrian
who collided with an unlighted and unwhitened dustbin also failed to recover damages in the
Court of Appeal. That Court then held that there was no conflict between Woodhouse v. Levy
and Morrison v. Sheffield Corporation because the later case depended on its special facts.
In the later case of Fisher v. Ruislip-Northwood Urban District Council the Court of Appeal
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100 Júlia Schledorn de Camargo
decided that Lyus v. Stepney Borough Council and Woodbouse v. Levy conflicted wieht
Morrison’s case and chose to follow this latter decision. The principle underlying Morrison’s
case was that a local authority owes a duty to users of the highway to light or, in the case of
a blackout, adopt other means of warning against obstruction. This covered Woodhouse v.
Levy and Lyus v. Stepney Borough Council, although there were facts such as the possibility of
rendering the spikes with which Morrison’s case was concerned harmless, by means of which
that decision could have been distinguished” (Precedent in English Law, p. 132-133).
11
No original: “the House of Lords is the only English appellate court with full freedom to
overrule its past decisions” (CROSS, op. cit., p. 133).
12
No original: “A few general points with regard to the criteria for the exercise of the House’s
new power are emerging. The mere fact that a past decision is considered wrong will not
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A divergência de interpretação dentro de um mesmo Tribunal – Análise comparativa do sistema... 101
Interessante observar que, apesar de o common law ter toda uma
preocupação em relação à certeza e segurança jurídica, não se verifica nenhuma
clara definição sobre a forma de solução dos conflitos, exceto em relação à pos-
sibilidade de overruling das próprias decisões pela House of Lords. Tanto é assim
que esta é uma das críticas feitas pelo Dr. Goodhart, citada por Rupert Cross,13 às
exceções à stare decisis na Court of Appeal, que entende que deveria haver uma
regra fixa para a solução do conflito.
Dessas observações feitas, fica clara a diferença existente entre a forma
como o sistema do civil law, no caso em exame do Brasil, e do common law, no
caso do direito inglês, tratam a divergência interna dos Tribunais e aplicam as
formas de solução. No primeiro caso, são frequentes as divergências e formas
para solução expressamente previstas no sistema legal em vigor, mas sua uti-
lização depara-se com óbices originados pelos próprios Tribunais na admissão
dos recursos existentes e no tempo para definir o posicionamento final; já no
segundo caso, não se verifica muita divergência de decisões, no entanto, pela
falta de uma regra fixa para solucionar a divergência interna, quando o Tribunal
se depara com essa situação, apresenta soluções diversas que não garantem a
devida segurança ao jurisdicionado.
Dito isso, passaremos à análise de um caso claro de divergência de enten-
dimento existente no Superior Tribunal de Justiça, a fim de demonstrar a insegu-
rança gerada e a forma de solução adotada até o presente momento.
suffice: ‘In the general interest of certainty in the law we must be sure that there is some very
good reason before we act’. This remark was made by Lord Reid in Knuller Publishing and
Promotion Ltd. v. Director of Public Prosecutions in which a majority of the House declined to
overrule Shaw v. Director of Public Prossecutions, the decision which affirmed the existence
of a crime or conspiring to corrupt public morals, and the remarks rendered all the more
impressive by the fact that Lord Reid dissented in Shaw’s case” (op. cit., p. 134-135).
13
“Dr. Goodhart criticizes the first exception on the ground that it makes no provision for
finality. He suggests that there should be a fixed rule that, where two decisions of the Court
of Appeal conflict, the later should prevail. To this Mr. R. M. Gooderson retorts that logically
the earlier case should be binding authority because in the theory the court in the later case
had no jurisdiction to come to a conflicting conclusion. Either rule would be an arbitrary one.
But the principal answer made by Mr. Gooderson to Dr. Goodhart’s criticismo is that finality is
achieved as soon as the conflict is resolved. When, in case C, the court finds that the rationes
propounded by it in cases A and B conflict, the chouice o fone of these last-mentioned cases
involves the overruling of the other. It is submitted that the answer is correct and that the
first exception to stare decisis mentioned in Young’s case is best expressed by saying that if,
in any case, the Court of Appeal finds two of its past decisions to be in conflict, it must choose
which to follow, and, when it has done so, the decision not followed is overruled. It must be
conceded, however, that, although there is no judicial statemente against this view, there is
none that precisely accords with it” (p. 137).
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102 Júlia Schledorn de Camargo
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A divergência de interpretação dentro de um mesmo Tribunal – Análise comparativa do sistema... 103
4. Nada obstante, e apenas obiter dictum, há de se considerar que,
no caso concreto, o autor não demonstra de forma clara e irrefutável
o efetivo dano moral sofrido pela categoria social titular do interesse
coletivo ou difuso, consoante assentado pelo acórdão recorrido: “[...]
Entretanto, como já dito, por não se tratar de situação típica da exis-
tência de dano moral puro, não há como simplesmente presumi-la.
Seria necessária prova no sentido de que a Municipalidade, de alguma
forma, tenha perdido a consideração e a respeitabilidade e que a socie-
dade uruguaiense efetivamente tenha se sentido lesada e abalada
moralmente, em decorrência do ilícito praticado, razão pela qual vai
indeferido o pedido de indenização por dano moral”.
5. Recurso especial não conhecido. (STJ – 1ª Turma, REsp 821.891/RS,
rel. Min. Luiz Fux, DJ 12.05.2008)
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104 Júlia Schledorn de Camargo
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A divergência de interpretação dentro de um mesmo Tribunal – Análise comparativa do sistema... 105
moral da comunidade. Fixado o cabimento do dano moral coletivo, a
revisão da prova da sua efetivação no caso concreto e da quantifica-
ção esbarra na Súmula 7/STJ. [...]
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106 Júlia Schledorn de Camargo
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A divergência de interpretação dentro de um mesmo Tribunal – Análise comparativa do sistema... 107
uma vez que o acórdão embargado decidiu que no acórdão recorrido,
entendeu-se, na esteira do que afirmou o Tribunal local, que a simples
prática de ato considerado ilícito seria suficiente a essa caracterização.
Considerou-se, portanto, que o dano moral coletivo é decorrência
lógica da violação a direitos ou interesses coletivos.
Relatados. Decido.
É o relatório.
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108 Júlia Schledorn de Camargo
5 Conclusão
Mais do que concluir este estudo, o que se verifica da análise realizada não
envolve apenas a já conhecida diferença entre os sistemas common law e civil law,
força vinculante dos precedentes e a persuasiva da jurisprudência, vimos também
a diferença existente quando nos deparamos com um problema de divergência
interna dos Tribunais.
Nesta situação, assim como se vê em relação à eficácia das decisões, os
sistemas também apresentam enfrentamentos e soluções distintas, pois o com
mon law prefere a segurança em detrimento do desenvolvimento do direito,
tanto que sequer tem uma regra fixa para a solução da divergência intra muros,
e apresenta muita relutância em reconhecer a existência de decisões divergen-
tes, impondo a estagnação do direito, cujo desenvolvimento decorre da atuali-
zação da jurisprudência.
Em contraposição, temos no direito brasileiro vasto sistema para solu-
cionar a divergência dentro dos próprios Tribunais, que abarca a divergência
os Tribunais locais (incidente de uniformização de jurisprudência) e dentro
do Superior Tribunal de Justiça (embargos de divergência). No entanto, a uti-
lização desses instrumentos para pacificar as divergências existentes não é
frequente. Mais ainda, seu uso é dificultado devido, inclusive, a entraves for-
mais, sendo poucos os casos como o analisado em que o Superior Tribunal
de Justiça reconhece a existência da divergência e admite o recurso existente
para sua solução.
14
TARUFFO, op. cit.
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A divergência de interpretação dentro de um mesmo Tribunal – Análise comparativa do sistema... 109
Mesmo assim, muito ainda precisa ser feito para melhorar o sistema
brasileiro, pois a demora para a prestação jurisdicional e, no caso, para a paci
ficação do entendimento do Superior Tribunal de Justiça, é notória e traz
imensos prejuízos à certeza, previsibilidade, economia e igualdade, sendo
imperativo a celeridade na solução dos conflitos que envolvem matéria que
ultrapassa o interesse das partes. Afinal, como bem exposto por Rupert Cross
“é inútil lamentar estas ocorrências, porque eles vão continuar enquanto
advogados, juízes e litigantes permanecerem humanos, mas há algo a ser dito
para um balanço da questão, e especialmente se ele permite que um tribunal
anule uma ou mais de suas decisões passadas por conflitarem com outras”.15
Assim, faz-se ainda mais impositivo que os instrumentos existentes, seja
no sistema do common law ou do civil law, para solucionar as divergências intra
muros dos Tribunais sejam céleres e eficazes, para que a segurança jurídica, tão
importante para os precedentes, se preserve.
Referências
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WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Direito jurisprudencial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.
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SANTOS, Evaristo Aragão. Em torno do conceito e da formação do precedente judicial. In: WAMBIER,
Teresa Arruda Alvim (Coord.). Direito jurisprudencial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.
No original: “it is useless to deplore these occurrences because they will continue as long
15
as barristers, judges, and litigants remain human, but there is something to be said for an
occasion stocktaking, and especially if it enables a court to overrule one or more of its past
decisions which conflict with others” (p. 133).
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 91-110, jul./set. 2012
110 Júlia Schledorn de Camargo
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R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 91-110, jul./set. 2012
A decisão de suspensão de recursos
repetitivos em razão de recurso
representativo de controvérsia –
Impugnabilidade e proteção em
face de risco de dano
Marco Antonio dos Santos Rodrigues
Doutorando em Direito Processual pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestre
em Direito Público pela Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Professor Assistente de Direito
Processual Civil da Faculdade de Direito da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professor
de cursos de pós-graduação em Direito. Procurador
do Estado do Rio de Janeiro. Advogado. Membro do
Instituto Brasileiro de Direito Processual.
Nesse sentido, Câmara (Lições de direito processual civil, p. 54-55), que também denomina
1
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 111-126, jul./set. 2012
112 Marco Antonio dos Santos Rodrigues
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A decisão de suspensão de recursos repetitivos em razão de recurso representativo de controvérsia... 113
relevância e transcendência5 na questão constitucional envolvida, para que
venha a ser admitido. Trata-se de mecanismo que acabou por reduzir muito
os recursos levados ao Supremo Tribunal Federal, já que a ausência de reper-
cussão geral impedirá a admissão de todos os outros recursos sobre idêntica
matéria, como adiante se verá.
Além disso, as Leis nºs 11.418/2006 e 11.672/2008 estabeleceram a sis-
temática de julgamento de múltiplos recursos extraordinários e especiais que
tratem de mesma questão de direito, foco do interesse do presente estudo, e
que se passa a expor.
5
Na mesma linha, defendendo que a repercussão geral exige a relevância e a transcendência
da questão constitucional envolvida, cf. MARINONI; MITIDIERO. Repercussão geral no recurso
extraordinário, p. 33.
6
Cassio Scarpinella Bueno defende, por seu turno, que a sistemática do artigo 543-C ofende o
modelo constitucional do processo civil, por trazer efeito vinculante a decisões do Superior
Tribunal de Justiça, por modificar discretamente as hipóteses de cabimento do recurso
especial, e por alterar a competência para sua apreciação (BUENO. Curso sistematizado de
direito processual civil, v. 5, p. 276).
7
Realizando uma interpretação teleológica do sistema de julgamento de recursos excepcio-
nais repetitivos, e admitindo que, em nome da isonomia, outros processos, ainda que em 1º
ou 2º graus, que tenham por objeto a mesma controvérsia de direito do meio de impugna-
ção representativo de controvérsia, vale conferir o trabalho de Teresa Arruda Alvim Wambier
e Maria Lucia Lins Conceição de Medeiros (Recursos repetitivos: realização integral da finali-
dade do novo sistema impõe mais do que a paralisação dos recursos especiais que estão no
2º grau. Revista de Processo).
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114 Marco Antonio dos Santos Rodrigues
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A decisão de suspensão de recursos repetitivos em razão de recurso representativo de controvérsia... 115
dando regular processamento ao referido mecanismo de impugnação. Nesse
sentido, pode-se verificar que o próprio artigo 543-B, em seu §4º, prevê a pos-
sibilidade de que o órgão local não siga a orientação do Supremo Tribunal
Federal, o que permite ao relator do extraordinário cassar a decisão daquele
primeiro.
Verifica-se, portanto, que a decisão proferida em um caso pode acabar
gerando efeitos sobre terceiros que sejam partes de recursos que tratem de
idêntica questão de direito, já que o acórdão do Supremo Tribunal Federal ou
Superior Tribunal de Justiça pode ser adotado imediatamente pelos Tribunais
locais na apreciação dos recursos que ficaram suspensos.
Como forma de proteção aos interesses de outros jurisdicionados, os
artigos 543-A e 543-C, nos §§6º e 4º, respectivamente, estabeleceram a pos-
sibilidade de participação de terceiros no procedimento dos recursos repre-
sentativos, consagrando manifestação de contraditório participativo nesses
meios de impugnação, já que terceiros poderão ser admitidos a atuar, influen-
ciando na tomada de decisão.8
Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça já admitiu a figura do amicus
curiae no processamento de recurso especial repetitivo, conforme se pode ver
no julgado a seguir:
Leonardo Greco (O princípio do contraditório. In: GRECO. Estudos de direito processual, p. 554)
8
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116 Marco Antonio dos Santos Rodrigues
9
EDcl no REsp nº 976836/RS, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Seção, julgado em 10.11.2010, DJe, 26
nov. 2010.
10
Também segue esse entendimento BUENO. Curso sistematizado de direito processual civil, v. 5,
p. 275.
11
Admitindo que a garantia do contraditório permite uma nova intervenção de terceiro, cha-
mada intervenção de sobrestado, a fim de que recorrentes ou recorridos que possuam teses
argumentativas distintas das presentes do procedimento do recurso selecionado como para-
digma, confira-se: SILVA. Intervenção de sobrestado no julgamento por amostragem. Revista
de Processo.
12
Também reconhecendo que a desistência não está sujeita a condição, concordância do recor-
rido ou homologação judicial, cf. DIDIER JUNIOR; CUNHA. Curso de direito processual civil, p. 36.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 111-126, jul./set. 2012
A decisão de suspensão de recursos repetitivos em razão de recurso representativo de controvérsia... 117
PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. Recurso Especial representativo de
controvérsia (art. 543-C, §1º, do CPC). Pedido de desistência. Indefe-
rimento. Violação ao art. 535, do CPC. INOCORRÊNCIA. IPI. CRÉDITO-
PRÊMIO. DECRETO-LEI 491/69 (ART. 1º). VIGÊNCIA. PRAZO. EXTINÇÃO.
PRESCRIÇÃO.
STJ. REsp nº 1.111.148/SP, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, julgado em
13
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118 Marco Antonio dos Santos Rodrigues
STF. Rcl nº 7569, Rel. Min. Ellen Gracie, Tribunal Pleno, julgado em 19.11.2009, DJe-232 DIVULG
14
10.12.2009 PUBLIC 11.12.2009 EMENT VOL-02386-01 PP-00158. Note-se, por oportuno, que
o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do AI nº 760.358, entendeu pelo não conheci-
mento do agravo de instrumento então previsto no artigo 544 do Código de Processo Civil,
devolvendo-o ao Tribunal de origem, para julgamento como agravo regimental.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 111-126, jul./set. 2012
A decisão de suspensão de recursos repetitivos em razão de recurso representativo de controvérsia... 119
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL CONTRA DECISÃO QUE
JULGA PREJUDICADO AGRAVO DE INSTRUMENTO. CABIMENTO.
15
STJ. AgRg no AgRE no RE nos EDcl no AgRg no Ag nº 679.745/MG, Rel. Min. Ari Pargendler,
Corte Especial, julgado em 16.12.2009, DJe, 18 fev. 2010.
16
É o que se pode verificar, inclusive, no julgado da Reclamação nº 7569, acima transcrito.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 111-126, jul./set. 2012
120 Marco Antonio dos Santos Rodrigues
STJ. AgRg no Ag nº 1223072/SP, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em
17
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 111-126, jul./set. 2012
A decisão de suspensão de recursos repetitivos em razão de recurso representativo de controvérsia... 121
Assim sendo, verifica-se que, apesar de o recurso permanecer paralisado
junto ao Tribunal de origem, a pretensão recursal está tramitando regularmente
por meio de outro meio de impugnação, retirando o interesse de questionar a
suspensão ocorrida, pela ausência de prejuízo, essencial à configuração desse
requisito de admissibilidade do mecanismo de ataque ao ato.18
Em uma situação, contudo, parece ser caso de superação do entendi-
mento manifestado pelo Superior Tribunal de Justiça. À semelhança do que
foi visto no item anterior acerca da aplicação indevida de entendimento de
recurso representativo a especial ou extraordinário sobrestado, pode ser que
o meio de impugnação ofertado seja sobrestado equivocadamente com base
em recurso selecionado que não diz respeito à questão que está em jogo naquele
meio impugnativo suspenso.
Caso isso ocorra, surge interesse em recorrer àquele que teve seu recurso
paralisado, pois está sofrendo prejuízo imediato em razão da decisão de sus-
pensão, já que a questão infraconstitucional federal ou constitucional não está
sendo apreciada pelo Tribunal Superior enquanto o meio de impugnação ficou
paralisado na origem.
Do mesmo modo como exemplificado anteriormente, imagine-se que
um recurso extraordinário que cuidava da constitucionalidade da cobrança
de um tributo foi sobrestado, por já ter sido selecionado, com remessa ao
Supremo Tribunal Federal, outro extraordinário que cuidava da cobrança de
outro tributo, que possui fundamentos diversos. Nessa situação, a decisão de
sobrestamento do meio de impugnação equivocadamente o está suspen-
dendo, pois aquele designado como representativo não trata da mesma ques-
tão de direito. Assim sendo, vê-se que a hipótese é de prejuízo ao recorrente
pela paralisação de seu recurso, demonstrando a clara recorribilidade do ato
do Tribunal de origem sobrestando o meio impugnativo.
A impugnabilidade da referida decisão se configura verdadeira exigên-
cia do devido processo legal, que impõe seja propiciado aos jurisdicionados
um processo justo, pleno das garantias constitucionais.
Nessa hipótese, revela-se cabível, da mesma forma que no item anterior,
o agravo regimental, visando obter a manifestação do Colegiado do Tribunal
sobre o cabimento ou não da suspensão do recurso especial ou extraordinário.
modo geral, o interesse em recorrer vem sempre ligado, de uma forma ou de outra, à questão
relacionada ao prejuízo que a parte teve com a prolação da decisão” (JORGE. Teoria geral dos
recursos cíveis, p. 100).
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 111-126, jul./set. 2012
122 Marco Antonio dos Santos Rodrigues
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 111-126, jul./set. 2012
A decisão de suspensão de recursos repetitivos em razão de recurso representativo de controvérsia... 123
1. O direito defendido pela autora está sobrestado no Superior Tribunal
de Justiça aguardando julgamento do caso emblemático constante
do recurso extraordinário interposto contra o aresto exarado no REsp
932.459/SP, escolhido para gerar efeitos sobre todos os demais recursos
que tratam de matéria idêntica, nos termos do art. 543-B, §1º, do Código
de Processo Civil - motivo pelo qual o processo judicial não pode ser
encerrado, reconhecendo-se o direito postulado.
19
STJ. MC nº 15.142/SP, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 04.11.2010,
DJe, 17 nov. 2010.
20
“Não compete ao Supremo Tribunal Federal conceder medida cautelar para dar efeito suspen-
sivo a recurso extraordinário que ainda não foi objeto de juízo de admissibilidade na origem”.
21
“Cabe ao presidente do tribunal de origem decidir o pedido de medida cautelar em recurso
extraordinário ainda pendente do seu juízo de admissibilidade”.
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124 Marco Antonio dos Santos Rodrigues
AC nº 2177 MC-QO, Rel. Min. Ellen Gracie, Tribunal Pleno, julgado em 12.11.2008, DJe-035
22
DIVULG 19.02.2009 PUBLIC 20.02.2009 EMENT VOL-02349-05 PP-00945 RTJ VOL-00209-03 PP-
01021.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 111-126, jul./set. 2012
A decisão de suspensão de recursos repetitivos em razão de recurso representativo de controvérsia... 125
Vale notar, ainda, que a competência da ação cautelar no Tribunal de
origem possibilita que o acórdão adotado por essa Corte no julgamento final
dessa demanda, caso viole norma infraconstitucional federal ou constitucio-
nal, seja atacado por recurso especial ou extraordinário, na forma da hipótese
concreta, conferindo ao prejudicado uma instância excepcional revisora da
decisão da ação urgente em questão.
4 Conclusões
À luz das considerações precedentes, diante da sistemática de julgamento
de recursos especiais ou extraordinários repetitivos, nem sempre se pode admitir
que a decisão de um Tribunal de origem, ao sobrestar um recurso em virtude de
outro representativo de controvérsia que esteja no Tribunal Superior, não gere
interesse em recorrer. Ao contrário, pode-se estar diante de decisão de sobresta-
mento que equivocadamente realizou a suspensão, com base em demanda para
digma que não se refira à mesma questão de direito.
Em tal situação, a decisão em tela pode ser objeto de agravo, a fim de pro-
vocar o Tribunal de origem a rever a decisão da Presidência ou Vice-Presidência
que suspendeu indevidamente o meio de impugnação, sem realizar seu juízo
de admissibilidade. Caso seja mantido o entendimento monocrático, é possível
também provocar a jurisdição do Superior Tribunal de Justiça, se sobrestado
recurso especial, ou do Supremo Tribunal Federal, se recurso extraordinário.
De outro lado, se o acórdão recorrido pelo recurso sobrestado estiver
gerando prejuízos ou for passível de causar danos ao recorrente, em razão da
falta de efeito suspensivo desses meios impugnativos, a ação cautelar é ins-
trumento cabível para a obtenção da sustação dos efeitos de acórdão impug-
nado, devendo ser demonstrados pelo requerente os requisitos à concessão
da medida de urgência.
Finalmente, cumpre salientar que a competência para apreciação do
pleito cautelar é do Tribunal de origem, tendo em vista que o recurso sobres-
tado ainda não passou por juízo de admissibilidade, permitindo, ainda, que do
acórdão do Tribunal acerca da pretensão de urgência sejam cabíveis recursos
aos Tribunais Superiores, se houver fundamento para tanto.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 111-126, jul./set. 2012
126 Marco Antonio dos Santos Rodrigues
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RODRIGUES, Marco Antonio dos Santos. A decisão de suspensão de recursos repetitivos em razão
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RevistaBrasileiradeDireitoProcessual–RBDPro,BeloHorizonte,ano20,n.79,p.111-126,jul./set.2012.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 111-126, jul./set. 2012
Processo e direitos fundamentais –
Brevíssimos apontamentos
Carlos Alberto Molinaro
Professor no Programa de Mestrado e
Doutorado em Direito da PUCRS. Pesquisador
no NEDEF-PUCRS. Doutor em Direito.
Considerações preliminares
O tempo, no direito, se estabelece a partir daquilo que determinam as
regras previstas em lei. Segundo François Ost, quando pronunciamos dar ou
tomar o tempo, na realidade se está construindo ou temporalizando o tempo,
portanto, temporalizar quer denotar a construção do tempo; motivo pelo qual,
para o autor, o conceito de temporalização serve para visibilizar o tempo, para
assinalar uma instituição social.1 Neste sentido, a afirmação de Ost, segun-
do a qual o tempo “é uma obra frágil e de todos os lados surge a ameaça da
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128 Carlos Alberto Molinaro, Mariângela Guerreiro Milhoranza
2
Op. cit., p. 15.
3
Op. cit., loc. cit.
4
TUCCI. Tempo e processo, p. 26.
5
Op. cit., p. 28.
6
MOLINARO. Racionalidade ecológica e estado socioambiental e democrático de direito, f. 146.
7
MILHORANZA; MOLINARO. Alcance político da Jurisdição no âmbito do Direito à Saúde. In:
ASSIS. Aspectos polêmicos e atuais dos limites da jurisdição e do direito à saúde, p. 203.
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Processo e direitos fundamentais – Brevíssimos apontamentos 129
os primeiros e inscritos os segundos, nas Constituições modernas, respondem a um
peculiar sintagma:8 “dignidade da pessoa humana e a pretensão de segurança,
ou garantia, atribuída ao ordenamento jurídico”.9 Não é por acaso que, há
muito, o emérito professor da Friedrich-Alexander Universität Erlangen-Nürnberg,
Reinhold Zippelius, afirma que “a função principal dos direitos fundamentais con-
siste em proteger um espaço de liberdade individual contra a ingerência do
poder do Estado e contra a sua expansão totalitária”,10 estamos aí frente a um espaço
de contenção do poder, garantido pela inviolabilidade das cláusulas de pereni-
dade que acolhe os direitos e garantias constitucionais,11 próprias de um Estado
Democrático, o que faz Sarlet afirmar que tanto a Constituição quanto os direitos
fundamentais “compõem condição de existência e medida da legitimidade de um
autêntico Estado Democrático e Social de Direito, tal qual como consagrado tam-
bém em nosso direito constitucional positivo e vigente”.12
Assim, é desde o princípio da dignidade humana que se pode discor-
rer sobre os direitos fundamentais e, mais, sobre os direitos humanos, núcleo
essencial de ambos, pois mais que personalidades individuais, os seres huma-
nos incorporam identidades coletivas em permanente mudança, em perma-
nentes contatos, contatos que se definem quotidianamente numa dinâmica de
acertos e contradições. A dignidade é qualidade que mira mais o valor de uso (a
capacidade de fazer) que o valor de troca (capacidade de acumular). A dignidade
é qualidade que objetiva o acesso equitativo dos bens e a luta contra a desigual
repartição que os processos de divisão capitalistas promoveram e promovem
até o presente. A dignidade é pantapórica, pois aposta pela dilatação de todos
os caminhos, pela ampliação do humano. A dignidade do humano é mais res-
trita que a noção de dignidade da pessoa humana. Tal é assim, pois mesmo a
pessoa (persona) que age ou labora de modo intencional no prejuízo do outro,
não perde sua dignidade íntima de pessoa, persona, por isso, por vezes, mais
é máscara, ou em outras, mais é face — também valores (não)humanos. Com
a dignidade do humano, as coisas são diferentes.13 A dignidade do humano
8
Utiliza-se a expressão sintagma no sentido grego tardio de σύνταγμα, do verbo συντάσσω,
isto é, coisa alinhada com outra, ou um conjunto de expressões linguísticas em que um
termo-representação funciona como unidade.
9
MOLINARO. Se educação é a resposta: qual era a pergunta?.
10
ZIPPELIUS. Teoria geral do Estado, p. 419.
11
MOLINARO; SARLET. Não existe o que panoramicamente vemos no céu: o “ponto cego” do
direito (políticas públicas sobre regulação em ciência e tecnologia). In: BAVARESCO. Justiça
democracia e política.
12
SARLET. A eficácia dos direitos fundamentais, 4. ed., p. 72.
13
MILHORANZA; MOLINARO. Da tutela da confiança e do cumprimento da decisão em matéria
de emissão de declaração de vontade e em matéria de pré-contrato. In: MILHORANZA;
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130 Carlos Alberto Molinaro, Mariângela Guerreiro Milhoranza
PORTO; TESHEINER. Instrumentos de Coerção e outros temas de direito processual civil: estudos
em homenagem aos 25 anos de docência do Professor Dr. Araken de Assis.
14
MORAES. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo. In:
SARLET. Constituição, direitos fundamentais e direito privado, p. 116-117.
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Processo e direitos fundamentais – Brevíssimos apontamentos 131
humanos, são mais; são garantias das conquistas que aqueles alcançaram,
pois os direitos humanos cabem dentro dos direitos fundamentais, mas deles
extravasam; são também processos regulatórios não necessariamente vincula-
dos aos direitos humanos, por vezes, revestem garantias derivadas de outros
direitos fundamentais, e até mesmo de direitos humanos ainda não albergados
pela fundamentalidade constitucional, ou albergados e inscritos em normas
de sobre ou superdireito. Imprescindível, pois, demarcar o conceito de direitos
fundamentais que não pode ser confundido com o conceito de direitos huma-
nos. Essa identidade de titular, durante muitos anos, provocou imprecisão con-
ceitual, mas atualmente não restam mais dúvidas de que se trata de noções
jurídicas distintas.15
Ingo Sarlet, ao tratar do assunto, distingue os elementos em tela conside-
rando que fundamentais são: “aqueles direitos do ser humano reconhecidos e
positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado
[...], ao passo que a expressão ‘direitos humanos’ guardaria relação com os docu
mentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se
reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação
com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade uni-
versal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam inequívoco caráter
supranacional (internacional)”.16 O entendimento de Sarlet acompanha a dou-
trina internacional, especialmente germânica, mas também ibérica e platina,
conforme se pode constatar nas lições do emérito professor da Universidade
de Sevilla, Antonio Enrique Pérez Luño, e do emérito professor da Pontifícia
Universidade Católica Argentina, Jorge Rodríguez Mancini, apenas para citar dois
eminentes juristas. Pérez Luño assevera que “Los derechos fundamentales son
aquellos derechos humanos positivizados en las constituiciones estatales”,17
enquanto Jorge Mancini ensina que “Los derechos fundamentales serían aquellos
derechos humanos que los ordenamientos jurídicos nacionales e internacionales
han reconocido como indispensables y que necesariamente deben estar expre-
sados en los documentos básicos y superiores, sin que ello implique agotar la lista
de los que componen el conjunto de derechos esenciales a la persona humana”.18
15
MILHORANZA; MOLINARO. Alcance político da Jurisdição no âmbito do Direito à Saúde. In:
ASSIS. Aspectos polêmicos e atuais dos limites da jurisdição e do direito à saúde, p. 204-205.
16
SARLET. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed., p. 33-34.
17
“Los derechos fundamentales son aquellos derechos humanos positivizados en las constituiciones
estatales” (PÉREZ LUÑO. Derechos humanos, Estado de derecho y Constitución, p. 31).
18
MANCINI. Derechos fundamentales y relaciones laborales, p. 10.
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132 Carlos Alberto Molinaro, Mariângela Guerreiro Milhoranza
19
MENDES. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direitos consti-
tucional, p. 2.
20
VIERA DE ANDRADE. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, p. 111.
21
Nesse particular, Reinnhold Zippelius ensina que a função principal dos direitos fundamentais
consiste em proteger um espaço de liberdade individual contra a ingerência do poder do Estado
e contra a sua expansão totalitária (Teoria geral do Estado, p. 419).
22
HÄBERLE. Die Wesengehaltsgarantie des Arts. 19 Abs 2 Grndgesetz, p. 83.
23
GOUVEIA. Os direitos fundamentais atípicos.
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Processo e direitos fundamentais – Brevíssimos apontamentos 133
sido positivados.24 Entre nós, percebe-se, da leitura do §2º do art. 5º da Carta
Magna,25 a possibilidade de previsão de inserção de outros direitos não con-
textualizados na Constituição brasileira; tendo o processualista paranaense
Luiz Guilherme Marinoni, relativamente ao §2º do art. 5º da CF/1988, afirmado
que “essa norma permite, por meio da aceitação da idéia de fundamentali-
dade material, que outros direitos, mesmo que não expressamente previstos
na CF e, por maior razão, não enumerados no seu título II, sejam considerados
direitos fundamentais. Isso quer dizer que o art. 5º, §2º, da CF institui um sistema
constitucional aberto a direitos fundamentais em sentido material”.26 Por
outro lado, no magistério de Luiz Edson Fachin e de Carlos Eduardo Pianovski
Ruzyk, a incidência dos direitos fundamentais sobre as relações privadas é um
processo ainda em franca construção. Frisa-se que um dos enfoques primor-
diais do constitucionalismo é a transformação de uma série de temas jurídicos
que eram da seara do direito civil em matéria constitucional.27 Sobre a cons-
titucionalização do direito privado, agudas são as observações do emérito
professor do Center for Advanced Studies der Ludwig-Maximilians-Universität
München Claus-Wilhem Canaris, ao afirmar: “podemos constatar uma tendên-
cia ao fortalecimento da influência da Constituição sobre o Direito Privado. [...]
Em quase todo e qualquer ordenamento jurídico moderno, de modo mais ou
menos cogente, coloca-se a questão da relação entre os direitos fundamentais
e o Direito Privado. Ela radica no fato de os direitos fundamentais, enquanto parte
da Constituição, terem um grau mais elevado na hierarquia das normas do que
o Direito Privado, podendo, por conseguinte, influenciá-lo. Por outro lado, a
Constituição, em princípio, não é o lugar correto nem habitual para regulamen-
tar as relações entre cidadãos individuais e entre pessoas jurídicas. Nisso consiste,
muito pelo contrário, a tarefa específica do Direito Privado, que desenvolveu
nesse empenho uma pronunciada autonomia com relação à Constituição; e
isso não vale apenas em perspectiva histórica, mas também no tocante ao
conteúdo, pois o Direito Privado, em regra, disponibiliza soluções muito mais
diferenciadas para conflitos entre seus sujeitos do que a Constituição pode-
ria fazer. Disso resulta uma relação de tensão entre o grau hierárquico mais
elevado da Constituição, por um lado, e a autonomia do Direito Privado, por
24
ALEXY. Teoria de los derechos fundamentales.
25
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade,
à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: §2º Os direitos e garantias
expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por
ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
26
MARINONI. Teoria geral do processo, p. 65.
27
FACHIN; RUZYK. Direitos fundamentais, dignidade da pessoa humana e o novo Código Civil:
uma análise crítica. In: SARLET. Constituição, direitos fundamentais e direito privado, p. 90.
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134 Carlos Alberto Molinaro, Mariângela Guerreiro Milhoranza
28
CANARIS. Influência dos direitos fundamentais da sobre o direito privado na Alemanha. In:
SARLET. Constituição, direitos fundamentais e direito privado, p. 227-228.
29
PEREIRA. Apontamentos sobre a aplicação das normas de direito fundamental nas relações
jurídicas entre particulares. In: BARROSO. A nova interpretação constitucional: ponderação,
direitos fundamentais e relações privadas.
30
Canaris resume o caso paradigmático Lüth da seguinte forma: “Uma sentença do Tribunal
Constitucional Federal, que versou sobre uma colisão entre o direito delitivo (da responsa-
bilidade por atos ilícitos) e a liberdade de opinião, passou a ser fundamental importância
para o tratamento da relação entre direitos fundamentais e Direito Privado na Alemanha. No
caso em exame, um cidadão de nome Lüth apelara, em 1950, aos proprietários e freqüen-
tadores de salas de cinema ao boicote de um novo filme, argumentando que o diretor do
mesmo rodara um filme anti-semita durante o período nacional-socialista. Os tribunais cíveis
consideraram o apelo um ato ilícito, por ofensivo aos bons costumes no sentido do estabe-
lecido pelo §856 do BGB (Código Civil Alemão) condenando, por conseguinte, o Sr. Lüth a
não repeti-lo. Em resposta ao recurso constitucional impetrado pelo Sr. Lüth, o Tribunal Cons-
titucional Federal cassou a sentença do tribunal cível, pois este teria, na aplicação do §826
do BGB, violado o direito fundamental à liberdade de opinião do Sr. Lüth, assegurada pelo
artigo 5º, inciso I, da LF. Assim, o Tribunal Constitucional Federal utilizou-se, pela primeira vez,
da formulação entrementes célebre, de que a Lei fundamental ‘erigiu na seção referente aos
direitos fundamentais uma ordem objetiva de valores [...], que deve valer enquanto decisão
fundamental de âmbito constitucional para todas as áreas do Direito’” (In: SARLET. Constitui
ção, direitos fundamentais e direito privado, p. 229-330); Ingo Wolfgang Sarlet, por seu turno,
também faz uma síntese do caso em tela no ensaio Direitos Fundamentais e direito privado:
algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais
(In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). A Constituição concretizada: construindo pontes com o
público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 124 et seq.).
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Processo e direitos fundamentais – Brevíssimos apontamentos 135
em geral. Hoje, se pode cogitar da agressão estatal aos direitos fundamentais
por ação (quando o ente público desrespeita qualquer direito fundamental do
cidadão) e também por omissão (quando o Estado é omisso ou ineficaz na sua
missão de defender os direitos fundamentais dos indivíduos no seu trato rela-
cional privado). Ressalta-se que o julgamento do caso Lüth repercutiu não ape-
nas na Alemanha, mas também em outros países da Europa Ocidental, como,
por exemplo, em Portugal. Nesse passo, a Carta Constitucional de Portugal afir-
mou no corpo do artigo 18º-1 que: “os preceitos constitucionais respeitantes
aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as
entidades públicas e privadas”. Entretanto, convém anotar que Canaris31 pro-
pôs uma nova interpretação do julgamento do caso Lüth. Segundo o jurista
tedesco, existem dois fatores a serem novamente observados: a) a neces-
sidade de uma separação estrita entre a eficácia de irradiação e a proble-
mática da super-revisão; e b) a substituição da tese da “eficácia de irradiação”
pelo recurso às funções dos direitos fundamentais de proibição de interven-
ção e de imperativo de tutela. Para modificar a natureza jurídico-institucional
do Corte Suprema, Canaris assevera que não se pode transformar o Tribunal
Constitucional em um órgão de super-revisão do que fora discutido nas varia-
das áreas de interesse entre os particulares. Para Canaris, existe falha material
no plano do direito constitucional ao se defender a ideia em destaque (eficá-
cia de irradiação), eis que ela não se revestiria de conceituação jurídica, sendo
mera formulação metafórica transportada da linguagem coloquial. Aduz, ainda,
que melhor solução seria a de se substituir o vago critério adotado pela Corte
Constitucional Alemã pelas funções usuais dos direitos fundamentais, mor-
mente a da proibição interventiva e a do imperativo de proteção.32
Seja como for, aqui se defende o ponto de vista de que o julgamento
Lüth, verdadeiro leading case sobre a exigibilidade de observância dos direitos
fundamentais nas relações privadas, é paradigmático e ponto de partida obri-
gatório para o estudo dos direitos fundamentais e de sua incidência no âmago
das relações entre particulares. Outro aspecto relevante a ser observado no
que tange à incidência dos direitos fundamentais no trato entre os particula-
res é da questão da dupla dimensão dos direitos fundamentais. Ingo Sarlet,33
por exemplo, de longa data reconhece a eficácia direta dos direitos fundamen-
tais na esfera privada relativamente ao direito brasileiro, sendo semelhante
o posicionamento defendido por Marinoni ao expressar: “ao menos no direito
31
CANARIS. Direitos fundamentais e direito privado.
32
Op. cit., p. 131-132.
33
SARLET. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed., p. 176 et seq.; p. 392 et seq.
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136 Carlos Alberto Molinaro, Mariângela Guerreiro Milhoranza
2 Do acesso à justiça
É de José Roberto dos Santos Bedaque a afirmação que o acesso à justiça
é, em verdade, acesso à ordem jurídica justa onde é proporcionado a todos,
sem qualquer discriminação ou restrição, o direito de pleitear a tutela jurisdi-
cional do Estado.37 Ademais, conforme acentua a magistrada Cíntia Teresinha
Burhalde Mua, “ontológica e finalisticamente, o acesso universal à justiça visa à
produção de resultados individual e socialmente justos”.38 Aí, importante ter-se
34
MARINONI. A jurisdição no Estado contemporâneo. In: MARINONI. Estudos de direito processual
civil: homenagem ao Professor Egas Dirceu Moniz de Aragão, p. 43.
35
MENDES. Direitos fundamentais: eficácia das garantias constitucionais nas relações privadas:
análise da jurisprudência da Corte Constitucional Alemã. In: MENDES. Direitos fundamentais e
controle de constitucionalidade.
36
ZAGREBELSKY. El derecho dúctil: ley, derechos, justicia, p. 14 et seq.
37
BEDAQUE. Garantia da amplitude de produção probatória. In: TUCCI. Garantias constitucionais
do processo civil, p. 158.
38
MUA. Acesso material à jurisdição: da legitimidade ministerial na defesa dos individuais homo-
gêneos, f. 12.
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Processo e direitos fundamentais – Brevíssimos apontamentos 137
presente a noção de jurisdição tão intimamente vinculada àquela de Poder
Judiciário e, a esse propósito, esclarece Araken de Assis: “ao proibir os cidadãos
de resolverem por si suas contendas, o Estado avocou o poder de resolver os
conflitos de interesses, inerentes à vida social, e, correlatamente, adquiriu o
dever de prestar certo serviço público, que é a jurisdição. Aos interessados
nessa atividade, o Estado reconhece o direito de provocá-la, preventiva ou
repressivamente (art. 5º, XXXV, da CF/88)”.39 Mas, qual o significado da jurisdi-
ção? O que é, em última análise, jurisdição?40
O brocado jurisdição vem do latim jurisdictio e revela a ação de admi-
nistrar justiça. Juiz é quem diz o direito, na condição de órgão do Estado. Ao
dizer o direito, o juiz não emite um parecer ou uma opinião, mas declara com
a qualidade de imperativo. A jurisdição apresenta-se, assim, como insepa-
rável do imperium.41 Trata-se, em apertada síntese, de um poder do Estado.
Adolf Schönke, que foi professor da Universidade de Freiburg, examinando o
tema pronunciava: “jurisdição é o direito e o dever ao exercício da função de
justiça, e jurisdição civil significa em consequência o direito e o dever de jul-
gar os assuntos cíveis”.42 De outro modo, mas alinhado, Araken de Assis vai
entender que o “poder do Estado destinado a eliminar o conflito se chama
jurisdição”.43 Independentemente das aproximações doutrinárias (acerca do
conceito de jurisdição), o importante é novamente ressaltar que é da garantia
de acesso à justiça prevista no inciso XXXV do art. 5º da Constituição Federal que
advém o direito fundamental à efetividade processual, pois segundo Cândido
Rangel Dinamarco tal provisão constitucional revela “princípio-síntese e obje-
tivo final”44 do acesso à justiça. O direito à prestação jurisdicional efetiva é
decorrência da própria existência dos direitos e é garantia fundamental para a
própria efetividade dos direitos. O direito à prestação jurisdicional efetiva é o
39
ASSIS. Garantia de acesso à justiça: benefício da gratuidade. In: TUCCI. Garantias constitucionais
do processo civil, p. 9.
40
Por não ser o objeto do presente estudo, não exploraremos as teorias conceituais sobre jurisdi-
ção. Para tanto, remete-se o leitor a dois ensaios diferentes. No primeiro ensaio, “Comentários
aos artigos 1º e 2º do Código de Processo Civil”, explanaram-se todas as teorias conceituais de
jurisdição bem como o ponto de vista de seus principais esponsais (MILHORANZA. Comen-
tários aos artigos 1º e 2º do Código de Processo Civil. Disponível em: <www.tex.pro.br>). No
segundo ensaio, de igual forma, Carlos Alberto Molinaro e Mariângela Guerreiro Milhoranza
abordaram o tema com menor profundidade (MILHORANZA; MOLINARO. Alcance político da
Jurisdição no âmbito do Direito à Saúde. In: ASSIS. Aspectos polêmicos e atuais dos limites da
jurisdição e do direito à saúde, p. 215-218).
41
PONTES DE MIRANDA. Comentários ao Código de Processo Civil, t. I, p. 104.
42
SCHÖNKE. Derecho procesal civil, p. 49.
43
ASSIS. Cumulação de ações, p. 52.
44
DINAMARCO. Instituições de direito processual civil, v. 1, p. 134, 267.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 127-145, jul./set. 2012
138 Carlos Alberto Molinaro, Mariângela Guerreiro Milhoranza
mais importante dos direitos, exatamente por constituir o direito a fazer valer
os próprios direitos.45
45
Nesse passo, afirma Marinoni que “o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva é dirigido
contra o Poder Público, mas repercute sobre a esfera jurídica das partes” (MARINONI. O direito à
tutela jurisdicional efetiva na perspectiva da teoria dos direitos fundamentais. Jus Navigandi).
46
RIBEIRO. La pretensión procesal y la tutela judicial efectiva: hacia una teoría procesal del derecho,
p. 75-76.
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Processo e direitos fundamentais – Brevíssimos apontamentos 139
o legislador garante, de forma ampla e genérica, acesso ao meio estatal de
solução de controvérsias, pelo qual é possível obter-se a tutela jurisdicional [...] a
garantia constitucional de ação representa para as pessoas, em última análise,
garantia ao devido processo constitucional, ao instrumento estatal de solução
de conflitos. Garantia implica proteção, ou seja, predisposição de meios para
assegurá-la em concreto”.47 Neste sentido, a busca da efetividade do processo
advém do direito constitucional, da garantia constitucional de acesso à ade-
quada tutela jurisdicional. A efetividade processual como direito fundamen-
tal passa, inevitavelmente, pela busca da tutela jurisdicional adequada, pois
como bem foi observado por Robert Alexy, “una comparación de los derechos
a procedimiento en sentido estricto con los derechos a competencias de dere-
cho privado muestra claramente los diferentes objetivos que se persiguen en
el ámbito de la organización y el procedimiento. Mientras que los derechos a
competencias de derecho privado aseguran, sobre todo, la posibilidad de que
puedan realizarse determinadas acciones iusfundamentalmente garantizadas,
los derechos a procedimiento en sentido estricto sirven en primer lugar, para
la protección de posiciones jurídicas existentes frente al Estado y frente a ter-
ceros. Por ello, es posible tratar a estos últimos también dentro del marco de
los derechos a protección”.48 Assim sendo, percebe-se que a efetivação almejada
pela parte decorre tanto do “direito constitucional de ação” como do “devido
processo legal”, cabendo ao Poder Judiciário efetivar o pedido de prestação
jurisdicional requerido pela parte de forma regular e concreta. Portanto, cabe à
parte dar roupagem técnica quando da feitura do pedido. Aliás, sobre o direito
de ação, consoante bem salienta Nelson Nery Junior: “o direito de ação é um
direito cívico e abstrato, vale dizer, é um direito subjetivo à sentença tout court,
seja essa de acolhimento ou de rejeição da pretensão, desde que preenchidas
as condições da ação”.49 Portanto, a efetividade do processo não é somente um
direito constitucional da parte que procura a efetiva prestação jurisdicional,
como também é um direito subjetivo da mesma na busca pela justiça.
Considerações finais
Jurisdição, no seu núcleo duro, é o poder do Estado de dizer o direito, o
direito objetivo, o direito que é, ademais de concretizar o ordenamento jurídico
objetivo. Todas as funções do Estado (executiva, legislativa e judicial) implicam
poderes jurisdicionais (em sentido lato), só a função judicial tem jurisdição
47
BEDAQUE. Garantia da amplitude de produção probatória. In: TUCCI. Garantias constitucionais
do processo civil, p. 151-152.
48
ALEXY. Teoria de los derechos fundamentales, p. 474.
49
NERY JUNIOR. Princípios do processo civil na Constituição Federal, p. 91.
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140 Carlos Alberto Molinaro, Mariângela Guerreiro Milhoranza
50
Certamente, através da jurisdição é que se solucionam os conflitos (desde a proibição da
autotutela), mas não só através dela, numa perspectiva pluralista do direito, contudo, data
venia, não concordamos com a afirmação do Prof. Luíz Guilherme Marinoni, quando afirma
que “o Estado contemporâneo, em uma perspectiva sociológica, não tem o monopólio
da distribuição da justiça” (cf. MARINONI. Novas linhas do processo civil, p. 76). O Estado,
especialmente numa perspectiva sociológica, tem o dever da distribuição da justiça, tem,
sim, o monopólio, pois ele, pela jurisdição, diz o direito que é. O direito que está invisível nos
textos normativos, que se visibiliza quando confrontado com uma pretensão resistida. As
demais formas de conciliação, inclusive as das máfias, são resultados de outros processos
de adaptação e corrigenda das relações inter-humanas cronotopicamente localizadas, sem,
no entanto, adquirirem compulsoriedade e incondicionalidade de incidência, caso único em
que se as adquirissem de tornar-se-iam jurídicas.
51
O Tribunal (curia) conhece as leis — ou os direitos — (iura é plural de ius).
52
PONTES DE MIRANDA. Comentários ao Código de Processo Civil, t. I, p. 100.
53
Importa dizer que, ainda que imediatamente a função dos juízes e dos tribunais é dizer o direito
objetivo, mediatamente se está concretizando as pretensões à tutela jurídica das partes, negan-
do-se ou atribuindo-se a uma delas, total ou parcialmente o direito.
54
A propósito levemos em consideração a distinção entre pretensões no âmbito do direito proces-
sual como, com precisão, anota Pontes de Miranda: (i) pretensão à tutela jurídica, que é conceito
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Processo e direitos fundamentais – Brevíssimos apontamentos 141
que não é intrínseca ao exercício da pretensão à tutela jurídica a pretensão à
sentença favorável.55
Seguindo a perspectiva sociológica de Pontes de Miranda, entendemos
o direito como um processo de adaptação e corrigenda social, cujos sistemas
jurídicos incorporam as normas do direito (costumes, narrações e textos havi
dos no tráfico das relações inter-humanas num cronotopo social dado) cuja
incidência é independente da adesão dos sujeitos, pois é a incondicionalidade
da incidência a sua característica basilar; os normativos de outra ordem (reli
gião, moral, economia, costumes, etc.) que obtêm essa incondicionalidade
se fazem jurídicos.56 Nesse processo de adaptação e corrigenda das relações
inter-humanas, desenvolvido num espaço e tempo identificados, construí-
mos o conhecimento. Lefebvre já expressava que o conhecimento é fato: não
há como fugir de sua existência, ainda que possa ser questionado.57 O ato de
conhecer se desenvolve num espaço social, perdurando num tempo social.
Assim, toda a história do conhecimento é uma história de superação, é um
processo de desedificação. De desedificação e retificação de conceitos, de
metodologias, é o espaço da metamorfose do pensar e do fazer. O direito,
assim como o “conhecimento” é também fato, e aqui não estamos perfilando
o realismo escandinavo ou americano, mas afirmando, simplesmente, que o
direito é fato do cultural, e como fato do cultural é reflexo, estando projetado
na consciência humana que, como dizia Karel Kosik, é também reflexo e, ao
mesmo tempo, projeção, registra e constrói, toma anotações e planeja, reflete
e antecipa, é, ao mesmo tempo, receptiva e ativa.58 Como fato cultural, o direito
objetiva a justiça, por isso, é oportuno lembrar que Recaséns Siches afirmava
que o direito é sempre um ensaio de ser direito justo,59 pois a consciência (aí
informada pelo cultural) busca a justiça axiologicamente comprometida com
o social, já que o direito sempre se refere ao eu socializado, remanescendo o
eu individual como sujeito do mundo moral. Daí a utilidade da advertência de
Pontes de Miranda, que afirmava: “o problema jurídico é o problema humano
por excelência: do direito dependem todos; sem o direito, nenhum problema
pré-processual, pré-excluída pela falta de interesse de agir, eliminável pela desaparição desse
interesse; (ii) pretensão processual (= pretensão a que se entregue a prestação prometida); e (iii)
pretensão objeto do pedido (pretensão de direito material, merita causae, res in iudicium deducta)
(Ibidem, p. 58).
55
Cf. Ibidem, p. XXXIV et seq.
56
MOLINARO. Racionalidade ecológica e estado socioambiental e democrático de direito.
57
Cf. LEFEBVRE. Lógica formal: lógica dialética, p. 49.
58
Cf. KOSIK. Dialética do concreto, p. 26.
59
Citação que se colhe em MACHADO NETO. Introdução à ciência do direito, p. 82.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 127-145, jul./set. 2012
142 Carlos Alberto Molinaro, Mariângela Guerreiro Milhoranza
se resolve de modo duradouro e eficaz”.60 O aforismo latino ubi societas, ibi ius
bem revela o lugar do direito. É no espaço social que o direito tem lugar, como
fenômeno jurídico que é, só existe na tessitura do social, tramado na história
que se desenvolve neste campo, comprometido com o tempo social.
Todos os direitos, por óbvio, são fundamentais. Onde o adjetivo fun-
damental vai significar o que é necessário e primacial, como são os direitos.61
Mas, alguns direitos são mais fundamentais que outros? Ou, por outra, o uso
do adjetivo qualifica um tipo especial de direito ou direitos? Há, neste sentido,
toda uma história construída metodicamente entre emancipação e regulação
das relações inter-humanas desenvolvidas em um cronotopos social definido.
Uma história por vezes perversa, contudo, com alguns matizes sublimes, como
de resto toda a produção cultural humana.
Todo direito — concretamente considerado — é o resultado de um con-
junto de forças políticas que, em dado momento, se consolidou na conforma-
ção de uma disposição jurídica bem identificada numa ordem constitucional
qualquer, irradiando uma atribuição ou posição para um sujeito (singular ou
plural), de uma faculdade, poder ou permissão. Neste diapasão, alguns direi-
tos foram construídos através de processos de reação cultural havidos nas
lutas para a simetrização das relações sociais, e insertos na concertação ori-
ginal do Estado (contrato social). Entre eles encontramos os denominados
direitos naturais, que a seguir vão conformar razões para os direitos humanos,
estes, na realidade, exigências morais justificatórias de posições jurídicas dos
concertantes, assentadas na expressiva afirmação de dignidade emprestada
ao humano.
Todo o ordenamento jurídico brasileiro está iluminado pelo valor “digni-
dade” emprestada ao humano (art. 1º, III, da CF/1988). Os direitos fundamen-
tais, individuais e sociais alcançam proteção da política jurisdicional última
Devemos afirmar que o valor jurídico atribuído à justiça não emerge, diretamente, da cons-
61
ciência, nem também do sentimento moral. Mas é constituído pela pretensão de “reconhe-
cer” e tornar efetiva a dignidade da pessoa no cenário social com o “acontecimento” (isto é,
também, estabelecimento) da lei (em sentido amplíssimo) em um sistema de titularidades
adequado a esse fim. É o perímetro da ação permissível e operável da liberdade de cada um
como afirmação da mencionada “dignidade”; a variável está em função da qual se distingue
uma ordem jurídica não despótica e genuína, de uma ordem jurídica despótica, não genuína,
por elaborado que esteja o aparato formal capaz de “encobrir” a “relação de dominação” que
possa caracterizar a esta última: econômica, informativa, violenta, ideológica, etc. Revela essa
proposição que todo direito é fundamental, pois “sua identidade não depende da existência
de garantias jurídicas” robustecidas, geralmente, naquilo que é formulado pelas normas bási-
cas, mas sim de sua vinculação com a “dignidade da pessoa humana” e suas “ações possíveis”
no cenário social.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 127-145, jul./set. 2012
Processo e direitos fundamentais – Brevíssimos apontamentos 143
através do Supremo Tribunal Federal, contudo, sem exclusividade, pois a
formatação vigente abriga casos em abstrato e casos em concreto, irradian-
do-se uma jurisdição constitucional, por vezes concentrada, por vezes difusa,
frente aos Tribunais e demais magistrados de primeiro grau. Ao postular-se por
uma efetiva política jurisdicional não se está postulando pela sobreposição de
poder-função, antes se proclama a supremacia da Constituição. Não estamos
propugnando a eliminação do princípio da legalidade, antes o ampliando, pois
uma práxis constitucional comprometida e adequada à concretização dos
direitos fundamentais sociais exige o cumprimento do direito objetivo vigente,
com a efetiva constitucionalidade de todos os atos estatais. De outro modo,
o juiz não é um “ciborg”, automatizado por princípios e regras no diapasão do
“tudo ou nada”, ele é um ser humano que responde à realidade de seu tempo
e é o único que ao interpretar a Constituição o faz com o poder de vincular
compulsoriamente, para isso todos contamos com o processo e mais com a
garantia constitucional do direito fundamental ao devido processo legal.
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O princípio do contraditório e a
cooperação no processo
Leonardo Carneiro da Cunha
Mestre em Direito pela UFPE. Doutor em Direito
pela PUC/SP. Pós-Doutorado pela Universidade de
Lisboa. Professor Adjunto da Faculdade de Direito
do Recife (UFPE), nos cursos de graduação, mestrado
e doutorado. Professor do curso de mestrado da
Universidade Católica de Pernambuco. Membro do
Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e do
Instituto Iberoamericano de Direito Processual – IIDP.
Procurador do Estado de Pernambuco e advogado.
Nos termos do art. 5º, LIV, da Constituição Federal, “ninguém será privado
da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. É necessária, portanto,
obediência ao devido processo legal, daí se extraindo o princípio do contraditório,
previsto no inciso LV do art. 5º da Constituição Federal, segundo o qual ninguém
poderá ser atingido por uma decisão judicial sem ter a possibilidade de influir na
sua formação em igualdade de condições com a parte contrária.
Tais disposições constitucionais, em outras palavras, garantem que não
haverá perdimento de bens nem da liberdade sem que haja decisão judicial
proferida num procedimento adequado, com obediência às regras processuais;
enfim, somente haverá tais perdas se obedecido o devido processo legal e res-
peitados o contraditório e a ampla defesa.
O contraditório, em sua versão tradicional, era mais restritivo, pois se limi-
tava a impor a cientificação das partes acerca dos atos processuais e a obediên-
cia à bilateralidade de audiência.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 147-159, jul./set. 2012
148 Leonardo Carneiro da Cunha
1
DOTTI, Federica. Diritti della difesa e contraddittorio: garanzia di un giusto processo?: spunti
per una riflessione comparata del processo canonico e statale. Roma: Pontificia Università
Gregoriana, 2005. p. 173.
2
Na fase mais recente da ciência processual, há uma diversa concepção nos confrontos entre o
princípio do contraditório e o processo. O processo não é outra coisa senão o juízo e a forma-
ção do juízo. Tornou-se interesse do jurista investigar os mecanismos de formação do juízo e,
antes de tudo, o contraditório e a colaboração das partes na busca da verdade. O contraditó-
rio, a partir daí, passou a ostentar importância central no estudo do processo, sendo erigido
à garantia constitucional. A defesa em juízo é, em primeiro lugar, garantia do contraditório e
a igualdade de armas assume o valor de condição de legitimidade constitucional da norma
processual. Com isso, não se postula a absoluta identidade entre os poderes das partes, mas
se objetiva evitar injustificáveis diferenças de tratamento (PICARDI, Nicola. Il principio del
contraddittorio. Rivista di Diritto Processuale, Padova, n. 3, p. 678, 1998).
3
FAZZALARI, Elio. La sentenza in rapporto alla struttura e all’oggetto del processo. Rivista
Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Milano, n. 2, p. 431, giugno 1986.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 147-159, jul./set. 2012
O princípio do contraditório e a cooperação no processo 149
Às partes deve-se conferir oportunidade de, em igualdade de condições,
participar do convencimento do juiz. O contraditório guarda estreita relação
com o princípio da isonomia, exatamente porque as partes devem dispor da
possibilidade de expor suas versões, apresentar suas defesas e participar,
enfim, do processo em idênticas oportunidades.4
Significa que a principal finalidade do contraditório deixou de ser a apre-
sentação de defesa pelo réu, para passar a ser a influência no desenvolvimento
e no resultado do processo,5 razão pela qual constitui direito não só do réu,
mas também do autor. O contraditório constitui expressão da participação:
todo poder, para ser legítimo, deve permitir a participação de quem poderá
ser atingido com seu exercício.
O juiz também é sujeito do contraditório. Este não concerne apenas às
partes, mas também ao juiz. O contraditório não se resume à defesa do réu,
alcançando todos os sujeitos do processo. O direito à ampla defesa do réu inte
gra o contraditório em seu aspecto substancial. Em outras palavras, o direito
de defesa é conteúdo do contraditório, sendo apenas um de seus aspectos.6
Para que haja participação e exercício do direito de defesa é preciso que
se efetive a informação prévia e a possibilidade de reação.
Na verdade, o princípio do contraditório constitui uma necessidade ine-
rente ao procedimento, ostentando a natureza de direito inviolável em todos
os seus estágios e graus como condição de paridade entre as partes.7 Um pro-
cedimento em que não se assegure o contraditório não é um procedimento
jurisdicional; poderá ser uma sequência de atos, mas não um procedimento
jurisdicional, nem mesmo um processo.8 Com efeito, não seria um processo
civil aquele procedimento em que se conceda audiência a apenas uma das
4
LLOBREGAT, José Garberí. Constitución y derecho procesal: los fundamentos constitucionales
del derecho procesal. Navarra: Thomson Reuters Aranzadi, 2009. p. 307-309.
5
TROCKER, Nicolò. Processo civile e costituzione: problemi di diritto tedesco e italiano. Milano: A.
Giuffrè, 1974. p. 369-371.
6
“É possível dizer que o contraditório exterioriza a defesa, ou que a defesa é o fundamento do
contraditório. Porém, tais conceitos, ainda que corretos, são incompletos, uma vez que o direito
de ação também necessita do contraditório. A confusão certamente deriva da circunstância de
que a defesa, para ser exercida em sua fase inicial, isto é, diante da petição inicial apresentada
pelo autor, requer a efetivação do contraditório, que tecnicamente pressupõe informação e pos-
sibilidade de reação (na generalidade dos casos). Ou seja, relaciona-se defesa com contraditório
porque o réu necessita ser informado e ter a sua disposição os meios técnicos (prazo adequado,
advogado) capazes de lhe permitir a reação” (MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 313-314).
7
VERDE, Giovanni. Profili del processo civile. 6. ed. Napoli: Jovene, 2002. v. 1, p. 106.
8
NICOLETTI, Carlo Alberto. Profili istituzionali del processo civile. 2. ed. Milano: A. Giuffrè, 2003. p. 7.
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150 Leonardo Carneiro da Cunha
partes, se bem que seja suficiente dar a todas elas a simples oportunidade do
contraditório, não sendo necessário que haja efetiva manifestação.9
A obediência ao princípio do contraditório constitui garantia da impar-
cialidade do juiz. O magistrado que não confere audiência a ambas as partes
e, de resto, não cumpre o primado do contraditório já terá, somente por isso,
cometido uma parcialidade por não haver investigado senão a metade do que
poderia verificar.10
Em virtude da atual dimensão conferida ao contraditório, o juiz deve sub-
meter a debate entre as partes as questões jurídicas, aí incluídas as matérias
que ele há de apreciar de ofício.11 Realmente, o exercício pleno do contraditório
não se limita à garantia de alegação oportuna e eficaz a respeito de fatos, impli-
cando a possibilidade de ser ouvido também em matéria jurídica.12
Assim, por exemplo, se ao juiz a parte aparenta ser ilegítima ou a norma
invocada parece-lhe inconstitucional, mas não houve qualquer discussão ou
debate sobre o assunto, cumpre-lhe, antes de se pronunciar a respeito, determi-
nar a intimação das partes para que se manifestem sobre tal matéria. Ainda que
lhe caiba examinar o assunto de ofício, impende conferir às partes a oportunidade de
9
SCHÖNKE, Adolfo. Derecho procesal civil. Barcelona: Bosch, 1950. §10, p. 46.
10
ALONSO, Pedro Aragoneses. Proceso y derecho procesal: introducción. 2. ed. Madrid: Editoriales
de Derecho Reunidas, 1997. p. 130.
11
Daí por que o n. 3 do art. 3º do CPC português assim estabelece: “O juiz deve observar e fazer
cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso
de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conheci-
mento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
Observa-se que o dispositivo dispensa o contraditório em casos de “manifesta desneces-
sidade”, sem esclarecer que casos seriam esses. Segundo António Santos Abrantes Geraldes,
são limitadas as situações em que se permite ao juiz decidir qualquer questão sem ouvir
as partes: a) para indeferir qualquer nulidade invocada por uma das partes; b) em matéria
de procedimentos cautelares, quando necessário prevenir a violação do direito ou garantir
o resultado útil da demanda, destacando-se, ainda, uma específica hipótese de decretação
de falência sem respeito ao contraditório prévio (Temas da reforma do processo civil. 2. ed.
Coimbra: Almedina, 2006. p. 82). Para José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, o con-
traditório prévio pode ser dispensado em procedimentos cautelares, na execução (em que a
penhora é, em certos casos, realizada sem audiência prévia do executado), não devendo ter
lugar o convite para discutir uma questão de direito, “quando as partes, embora não a tenham
invocado expressamente nem referido o preceito legal aplicável, implicitamente a tiveram em
conta sem sombra de dúvida, designadamente por ter sido apresentada uma versão fáctica
não contrariada que manifestamente não consentia outra qualificação” (Código de Processo
Civil anotado. 2. ed. Coimbra: Coimbra Ed., 2008. v. 1, n. 4, p. 7; n. 9, p. 10).
12
Conforme esclarece Armindo Ribeiro Mendes, o Tribunal Constitucional português, a propósito
do princípio do contraditório, impôs a prévia audição dos interessados em caso de eventuali-
dade de condenação de uma parte como litigante de má-fé, procedendo uma interpretação
conforme à constituição dos arts. 456º, nºs 1 e 2, e 458º do Código de Processo Civil (Constitui-
ção e processo civil. In: ESTUDOS em memória do Conselheiro Luís Nunes de Almeida. Coimbra:
Coimbra Ed., 2007. p. 553).
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 147-159, jul./set. 2012
O princípio do contraditório e a cooperação no processo 151
colaborar com a formação do seu convencimento, influenciando, desse modo,
na decisão a ser tomada.13
Essa participação confere maior legitimidade à decisão, evitando, inclu-
sive, a existência de surpresa: as partes não serão surpreendidas com decisão
que trate de matéria a respeito da qual não houve prévio debate, nem sobre a
qual deixaram dar sua contribuição.14
É preciso observar o contraditório, a fim de evitar um “julgamento sur-
presa”. E, para evitar “decisões surpresa”, toda questão submetida a julgamento
deve passar antes pelo contraditório. Quer isso dizer que o juiz tem o dever de pro-
vocar, preventivamente, o contraditório das partes, ainda que se trate de uma
questão que possa ser conhecida de ofício, ou de uma presunção simples. Se
a questão não for submetida ao contraditório prévio, as partes serão surpreen
didas com decisão que terá fundamento numa questão que não foi objeto de
debate prévio, não lhes tendo sido dada oportunidade de participar do con-
vencimento do juiz. A decisão, nesse caso, não será válida, faltando-lhe legitimi-
dade, haja vista a ausência de participação dos litigantes na sua elaboração.
Daí se impor uma releitura à aplicação da máxima iura novit curia, segundo
a qual constituiria tarefa privativa do juiz a aplicação do direito independente-
mente da sua arguição pelas partes, cabendo a estas últimas apenas a alegação
dos fatos. Vale dizer que a máxima iura novit curia há de ser interpretada con-
forme o princípio constitucional do contraditório, concretizando a finalidade de
evitar surpresas de frustrar as expectativas legítimas causadas às partes.
De acordo com o Supremo Tribunal Federal brasileiro, “Assegurada pelo
constituinte nacional, a pretensão à tutela jurídica envolve não só o direito de
manifestação e o direito de informação sobre o objeto do processo, mas tam-
bém o direito de ver seus argumentos contemplados pelo órgão julgador”.15
13
Os antigos brocardos da mihi factum, dabo tibi ius e iura novit curia expressam, tradicionalmente,
que às partes cabe apenas apresentar ao juízo os fatos, cabendo a este examinar o direito
aplicável ao caso. Embora caiba ao juiz analisar e aplicar o direito à espécie, impõe-se-lhe
colher, sempre, a manifestação prévia das partes, a quem se deve permitir contribuir com a
formação do seu convencimento (TROCKER, op. cit., p. 640-647).
14
Segundo Luigi Montesano, a garantia constitucional do contraditório certamente não elimina
nem atenua o princípio fundamental iura novit curia, isto é, o poder-dever oficioso do juiz de
individuar a norma aplicável em causa, não ficando vinculado à impostação da causa “em
direito” por obra das partes. A garantia em debate incide, todavia, fortemente sobre o modo
e o tempo do exercício daquele poder-dever e deveria conduzir, espera-se, a jurisprudência a
mudar a linha de total liberdade de aplicação das normas jurídicas totalmente estranhas ao
debate entre as partes (La garantia costituzionale del contraddittorio e i giudizi civili di “terza
via”. Rivista di Diritto Processuale, Padova, n. 4, p. 931, 2000).
15
Acórdão unânime da 2ª Turma do STF. RMS nº 24.536/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 02.12.2003,
DJ, p. 33, 05 mar. 2004.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 147-159, jul./set. 2012
152 Leonardo Carneiro da Cunha
16
Sobre o conteúdo mínimo do princípio do contraditório, há vários precedentes do STF do Brasil,
sendo oportuno mencionar, a título exemplificativo, o RE nº 431.121/SP, Rel. Min. Sepúlveda
Pertence, DJ, p. 41, 28 out. 2004.
17
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 5. ed. São Paulo: Malheiros,
1996. n. 36.2, p. 285.
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O princípio do contraditório e a cooperação no processo 153
litigante possa influenciar a decisão, mas também para viabilizar a colaboração
das partes com o exercício da atividade jurisdicional.
Significa que, em razão do contraditório, a atividade jurisdicional deve
pautar-se num esquema dialógico, de modo a exigir que o juiz exerça a jurisdi-
ção com o auxílio das partes, proferindo decisão legítima, aprimorada e justa.
A decisão judicial não deve ser fruto de um trabalho exclusivo do juiz, mas
resultado de uma atividade conjunta, em que há interações constantes entre
diversos sujeitos que atuam no processo.
A colaboração e a participação das partes não se configuram apenas como
direitos ou faculdades, mas também como ônus18 e deveres. Em outras palavras,
às partes confere-se oportunidade de participar da formação da decisão do juiz,
suportando as consequências desfavoráveis do próprio comportamento inerte
e negligente. O juiz não pode ser obrigado a inserir na fundamentação de sua
decisão considerações, informações ou detalhes que não foram apresentados
pelas partes.
Em razão do princípio da cooperação, o juiz deixa de ser o autor único e
solitário de suas decisões. A sentença e, de resto, as decisões judiciais passam
a ser fruto de uma atividade conjunta.
A aplicação do princípio da cooperação acarreta um redimensionamento
da máxima iura novit curia, porquanto ao juiz cabe pronunciar-se sobre a norma
jurídica a ser aplicada ao caso depois de realizar o necessário diálogo com as
partes.19 Ao juiz cabe — não restam dúvidas — aplicar o direito ao caso concreto,
mas se lhe impõe, antes de promover tal aplicação, consultar previamente as
partes, colhendo suas manifestações a respeito do assunto.
Na verdade, o princípio da cooperação restringe a passividade do juiz,
afastando-se da ideia liberal do processo como uma “luta” ou “guerra” entre as
partes, meramente arbitrada pelo juiz.20
No Brasil, não há previsão legal do princípio da cooperação, mas ele
tem base constitucional, sendo extraído da cláusula geral do devido processo
legal, bem como do princípio do contraditório. Se o contraditório exige parti-
cipação e, mais especificamente, uma soma de esforços para melhor solução
da disputa judicial, o processo realiza-se mediante uma atividade de sujeitos
em cooperação.
18
TROCKER, Nicolò. Processo civile e costituzione: problemi di diritto tedesco e italiano. Milano: A.
Giuffrè, 1974. p. 667.
19
TROCKER, op. cit., p. 683-684.
20
REGO, Carlos Francisco de Oliveira Lopes do. Comentários ao Código de Processo Civil. Coimbra:
Almedina, 2004. v. 1, p. 266.
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O princípio do contraditório e a cooperação no processo 155
O princípio da cooperação destina-se, enfim, a transformar o processo
civil numa “comunidade de trabalho”,22 potencializando o franco diálogo entre
todos os sujeitos processuais, a fim de se alcançar a solução mais adequada e
justa ao caso concreto.23 O processo, diante disso, deve ser entendido como
uma “comunidade de comunicação”, desenvolvendo-se por um diálogo pelo
qual se permite uma discussão a respeito de todos os aspectos de fato e de
direito considerados relevantes para a decisão da causa.24
Ao longo de todo o procedimento, deve haver um debate, voltando-se
também para o juiz e para todos os agentes estatais no processo.
Da cooperação, cujo fundamento é, em última análise, o princípio do
contraditório, extraem-se deveres a serem cumpridos pelo juiz e pelas partes,
sendo certo que os deveres processuais subtraem do direito de ação qualquer
natureza absoluta, constituindo uma limitação ao seu exercício.25
Há, na verdade, a cooperação das partes com o tribunal, bem como a
cooperação do tribunal com as partes.26
A cooperação das partes com o tribunal envolve:
a) a ampliação do dever de litigância de boa-fé;27
b) o reforço do dever de comparecimento e prestação de quaisquer
esclarecimentos que o juiz considere pertinentes e necessários para
a perfeita inteligibilidade do conteúdo de quaisquer peças proces-
suais apresentadas;
c) o reforço do dever de comparecimento pessoal em audiência,28 com a
colaboração para a descoberta da verdade;29 e,
d) o reforço do dever de colaboração com o tribunal, mesmo quando
este possa envolver quebra ou sacrifício de certos deveres de sigilo ou
confidencialidade (CPC português, arts. 519º e 519º-A).30
Por sua vez, a cooperação do tribunal com as partes comporta:31
22
SOUSA, Miguel Teixeira de. Estudos sobre o novo processo civil. 2. ed. Lisboa: Lex, 1997. p. 62.
23
GERALDES, António Santos Abrantes. Temas da reforma do processo civil. 2. ed. Coimbra: Almedina,
2006. v. 1, p. 88.
24
SILVA. Acto e processo, cit., p. 578-579.
25
SILVA, Paula Costa e. O processo e as situações jurídicas processuais. In: DIDIER JR., Fredie;
JORDÃO, Eduardo Ferreira (Coord.). Teoria do processo: panorama doutrinário mundial. Salvador:
JusPodivm, 2008. p. 790-791.
26
SOUSA, Miguel Teixeira de. Apreciação de alguns aspectos da “revisão do processo civil –
projecto”. Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, ano 55, p. 361, jul. 1995.
27
SOUSA, Miguel Teixeira de. Estudos sobre o novo processo civil, p. 62-63; REGO, op. cit., p. 266.
28
REGO, op. cit., p. 267.
29
SOUSA. Estudos sobre o novo processo civil, p. 64.
30
REGO, op. cit., p. 266-267.
31
REGO, op. cit., p. 267-269.
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156 Leonardo Carneiro da Cunha
O dever de consulta, por sua vez, impõe ao tribunal dar às partes a opor-
tunidade de manifestação sobre qualquer questão de fato ou de direito. O juiz,
antes de se pronunciar sobre qualquer questão, ainda que seja de conhecimento
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oficioso, deve dar oportunidade à prévia discussão pelas partes, evitando, desse
modo, as chamadas “decisões surpresa”.34
Finalmente, o tribunal tem o dever de auxiliar as partes na eliminação ou
superação de obstáculos ou dificuldades que impeçam o exercício de direi-
tos ou faculdades ou, ainda, o cumprimento de ônus ou deveres processuais.
Deve, por exemplo, o juiz providenciar a remoção de obstáculo à obtenção de
um documento ou informação que seja indispensável para a prática de um ato
processual.35
Há, na verdade, um dever de cooperação. O dever de cooperação, nas lições
de José Lebre de Freitas, tem duplo sentido: um material e um formal. Em seu
sentido material, o dever de cooperação recai sobre as partes, incumbindo-lhes
a prestação de sua colaboração para a descoberta da verdade; ao juiz cumpre
requisitar das partes esclarecimentos sobre a matéria de fato ou sobre a matéria
de direito da causa. Em seu sentido formal, o dever de cooperação impõe ao juiz
providenciar o suprimento de obstáculos na obtenção de informação ou docu-
mento necessário ao exercício de uma faculdade, à observância de um ônus ou
ao cumprimento de um dever processual.36
O princípio do contraditório, tal como previsto no art. 5º, LV, da
Constituição Federal, tem aplicação a qualquer processo judicial. Vale dizer que
tal princípio aplica-se ao processo de conhecimento, ao processo de execução
e ao processo cautelar.
É óbvio que o princípio do contraditório não se aplica na execução com a
mesma intensidade que incide no processo de conhecimento, mas é induvidosa
sua aplicação na execução. Na execução, tanto o exequente como o executado têm
direito de ser cientificados dos atos processuais. As partes, na execução, podem
recorrer dos pronunciamentos judiciais. Em eventual questão a ser enfrentada
pelo juiz, devem as partes ser intimadas para manifestar-se, contribuindo com
o convencimento do magistrado, em atividade tipicamente cooperativa. O
contraditório no procedimento executivo, no aspecto do direito de defesa
assegurado à parte demandada, é eventual, porquanto depende da provoca-
ção do executado, que não é chamado a juízo para defender-se, mas sim para
cumprir a obrigação. O procedimento executivo adota a técnica monitória, que
consiste, basicamente, na inversão do ônus de provocar o contraditório: o réu,
em vez de citado para manifestar-se sobre a pretensão do autor, é convocado
para cumprir uma determinada obrigação. Não é correto dizer, então, que não
34
SOUSA, op. cit., p. 66-67.
35
SOUSA, op. cit., p. 67.
36
Introdução ao processo civil: conceito e princípios gerais. 2. ed. n. 8.2-8.3, p. 164-167.
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A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. p. 37-38.
37
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O princípio do contraditório e a cooperação no processo 159
contraditório teria mais validade do que a garantia de efetividade dos provimentos
judiciais, nem que um seria inconstitucional frente ao outro. Enfim, esse não pode-
ria ser o critério para solucionar o conflito ora denunciado.
A solução, ao que parece, resulta da aplicação do postulado da propor
cionalidade, cabendo ponderar os princípios em conflito para, no caso concreto,
verificar o que recebe maiores influxos do direito material ou o que sofrerá maior
dano, caso venha a ter sua aplicação afastada.
Para que se aplique o postulado da proporcionalidade, é preciso que
haja (a) adequação; (b) necessidade; e (c) proporcionalidade em sentido estrito.
Assim, a apreciação de qualquer pedido depende, via de regra, do prévio con-
traditório. O afastamento da exigência do contraditório, com a apreciação ime-
diata do pedido formulado pela parte, deve ocorrer em hipóteses de urgência
na concessão da medida. Nesses casos em que se dispensa o prévio contraditó-
rio, a parte não fica impossibilitada de se manifestar. Na verdade, o contraditório
fica diferido para o momento posterior à apreciação do pedido formulado.
O princípio do contraditório decorre, enfim, do devido processo legal,
dele se extraindo (a) a necessidade de se dar ciência às partes dos atos a serem
realizados no processo e das decisões ali proferidas e (b) a necessidade de confe-
rir oportunidade à parte de contribuir com o convencimento do juiz ou tribunal.
Além da bilateralidade de audiência e de igualdade de oportunidades,
o contraditório deve instaurar um diálogo no processo entre o juiz e as partes,
garantindo uma atividade verdadeiramente dialética, com que se assegura a
prolação de uma decisão justa e, de resto, de um procedimento justo.
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Regime jurídico único, coisa
julgada e a competência residual
da Justiça do Trabalho: em defesa
da inconstitucionalidade da OJ nº 138
da SDI-I do TST
Cynara Monteiro Mariano
Doutora em Direito Constitucional pela
Universidade de Fortaleza. Mestre em Direito
Público (Ordem jurídico-constitucional) pela
Universidade Federal do Ceará. Professora
e Pesquisadora da Universidade de Fortaleza
nas áreas de Direito Constitucional, Processo
Constitucional e Direito Administrativo. Advogada.
Ex-Presidente da Fundação Escola Superior
de Advocacia do Ceará (FESAC) e da Comissão
de Estudos Constitucionais da OAB/CE.
E-mails: <cynaramariano@gmail.com>
e <cynaramariano@unifor.com>.
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162 Cynara Monteiro Mariano
Introdução
Ainda tramitam na Justiça do Trabalho demandas tendo por objeto
direitos e vantagens decorrentes do vínculo de trabalho estabelecido entre
a Administração Pública e seus agentes, envolvendo verbas pertinentes a
períodos em que a relação se lastreava na Consolidação das Leis do Trabalho,
com reflexos no novo regime, criado com o advento do Regime Jurídico Único,
instituído com a Constituição Federal de 1988.
Em muitos dos casos, a reclamação foi julgada procedente e a sentença
transitou em julgado, condenando os entes da Administração Pública à implan-
tação salarial e ao pagamento das diferenças salariais, abrangendo períodos
celetista e estatutário. Isso porque, como a lesão ao direito dos reclamantes não
foi reparada na vigência do regime celetista, a sentença gerou reflexos no novo
regime.
Ocorre que, mesmo após o insucesso das ações rescisórias intentadas
pela Fazenda Pública, na fase de execução, e, muitas vezes, já depois da forma-
ção do respectivo precatório, não têm sido raras as situações em que os juízos
trabalhistas vêm limitando a execução (e, portanto, limitando o cumprimento
da coisa julgada) às diferenças salariais exclusivamente atinentes ao período
celetista, independentemente de essa matéria ter sido discutida ou não na
fase de conhecimento.
A respeito da competência atual da Justiça do Trabalho, a Emenda
Constitucional nº 45/2004, ao ampliar a competência material dessa Justiça
Especializada, estendeu-a aos dissídios envolvendo os entes da Administração
Pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios, sem estabelecer qualquer ressalva quanto ao período estatutá-
rio (art. 114, I da CF/88). Em verdade, o texto original da PEC nº 29/2000, que
originou a EC nº 45/2004, continha a ressalva de que não seriam submetidas à
Justiça do Trabalho as ações que envolvessem os servidores públicos, de regime
estatutário, e a Administração Pública. Todavia, a redação final publicada acabou
não abrangendo essa exceção, o que resultou no ajuizamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 3.395-6, movida pela Associação dos Juízes Federais do
Brasil (AJUFE), em face da redação final do inciso I do art. 114 da CF/88.
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Regime jurídico único, coisa julgada e a competência residual da Justiça do Trabalho... 163
Como relator da referida ação direta, o ministro Nelson Jobim concedeu
liminar suspendendo toda e qualquer interpretação dada ao inciso I do art. 114
da CF/88, na redação dada pela EC nº 45/2004, que compreendesse na compe-
tência da Justiça do Trabalho a apreciação de causas que fossem instauradas
entre servidores e a Administração Pública, a esta vinculados por típica relação
de ordem estatutária. Esse posicionamento acabou sendo referendado pelo
Plenário do STF no dia 05.04.2006.
Assim, em face da interpretação do STF, a Justiça do Trabalho é incom-
petente para processar e julgar as ações que envolvem servidores públicos
estatutários, sendo competente a Justiça Comum. Outra, no entanto, é a situa
ção envolvendo os empregados públicos. Se o servidor da Administração
Pública direta, autárquica ou fundacional for regido pela CLT,1 será a Justiça
laboral competente para apreciar e julgar os dissídios. Com relação às empre-
sas públicas e sociedades de economia mista, como mesmo após a CF/88, tais
entidades, desde que explorem atividade econômica, foram submetidas ao
mesmo regime das empresas privadas, no tocante aos direitos e obrigações
civis, comerciais, trabalhistas e tributários (art. 173, §1º, I), seus empregados
são regidos pela CLT, sendo a Justiça do Trabalho competente para julgar os
conflitos decorrentes dessa relação.
Esse entendimento, todavia, não é novidade, pois já era a orientação
seguida pelos juízos e tribunais trabalhistas após a criação do Regime Jurídico
Único. Nunca houve dúvidas de que, após a implantação do RJU, a Justiça
Especializada passou a ser incompetente para apreciar as demandas envol-
vendo servidores públicos estatutários, tendo por objeto direitos e vantagens
pertinentes exclusivamente ao regime jurídico de direito administrativo, sem
qualquer reflexo do período celetista. Nesse sentido, inclusive, a Súmula nº 137
do Superior Tribunal de Justiça menciona que compete à Justiça Comum esta
dual processar e julgar ação de servidor público municipal, pleiteando direi-
tos relativos ao vínculo estatutário. Já a Súmula nº 218, também do STJ, fixa a
competência da Justiça dos Estados para processar e julgar ação de servidor
Registre-se que no dia 02 de agosto de 2007, o STF concedeu liminar na ADI nº 2.135/2000,
1
proposta pelo Partido dos Trabalhadores e outros, suspendendo a vigência do caput do art. 39
da CF/88, com a redação dada pela EC nº 19/98, em virtude da constatação de um vício formal
no processo de elaboração da norma. Antes dessa suspensão, como se sabe, vigorava a disci-
plina legal introduzida pela EC nº 19/98, que determinou o fim do RJU, facultando à Adminis-
tração direta, autárquica e fundacional contratar trabalhadores simultaneamente pelo regime
estatutário ou celetista. No entanto, a partir da decisão liminar do STF, voltou a vigorar, com
efeitos ex nunc, a redação do art. 39 da Constituição, anterior à EC nº 19/98, restabelecendo a
obrigatoriedade da adoção do RJU na Administração Pública direta, autárquica e fundacional.
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quando a sentença expressamente tiver reconhecido direitos e vantagens desse
regime, com reflexos no novo regime, tendo em vista que esse enunciado não
pode ser aplicado retroativamente para prejudicar a coisa julgada, segundo dis-
ciplina o art. 5º, XXXVI da Constituição Federal de 1988. Isso implicaria admitir
que o juízo da execução pode, por via transversa, alterar os comandos judiciais
transitados em julgado, descurando, porém, que essa via é inadequada, dada a
impossibilidade de se emprestar efeitos rescisórios ao juízo da execução.
Logo, a citada Orientação Jurisprudencial do TST não pode servir de fun-
damento para conferir ao juízo da execução efeitos rescisórios que não lhe são
próprios, autorizando mais uma hipótese de relativização da coisa julgada, no
caso, no âmbito do processo trabalhista. A garantia da coisa julgada deve ser
sempre a regra. Sua relativização, a exceção. Essa deve ser a interpretação con-
ferida diante de toda e qualquer tentativa oblíqua de se introduzir na ordem
jurídica, ou na práxis processual, mais uma hipótese de relativização da coisa
julgada. Vale lembrar que os tribunais brasileiros já imprimem uma interpreta-
ção bastante ampla do conteúdo dos incisos do art. 485 do CPC, bastando citar
o afastamento da incidência da Súmula nº 343 do Supremo Tribunal Federal,
que imunizava a coisa julgada diante de mudanças posteriores de entendi-
mentos jurisprudenciais, quando a interpretação tida por controvertida seja a
respeito de matéria constitucional.2
Como se sabe, na fase de execução não há que se retomar a apreciação
de temas próprios da fase de conhecimento, pois todos os vícios supostamente
existentes nessa fase convalescem com o trânsito em julgado da sentença, o que
somente pode ser alterado pela via estreita da ação rescisória. Nesse sentido,
Alexandre Freitas Câmara (2009, p. 249), discorrendo sobre a invalidade dos atos
processuais, diz o seguinte:
Ver nesse sentido AgRg no Resp nº 709.458/RS, Rel. Min. Gilson Dipp, 5ª Turma do STJ, DJU, p. 409,
2
02 maio 2005.
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tendo em vista ser esta a única via capaz de afastar a coisa julgada, após o seu
insucesso ou o exaurimento do respectivo prazo decadencial de dois anos, a
sentença adquire a qualidade de coisa soberanamente julgada, não mais pas-
sível, sob qualquer hipótese, de alteração.
Inclusive, a propósito da tese processualista que autoriza a desconstitui-
ção da coisa julgada com fundamento no citado art. 471 do CPC,3 que permite
ao embargante alegar a inexigibilidade do título judicial fundado em lei ou ato
normativo tido como inconstitucional pelo STF ou em que se adotou interpre-
tação de lei ou ato normativo não compatível com a Constituição Federal, já
tivemos oportunidade de discorrer sobre o assunto em obra de nossa autoria,
demonstrando que, além dos vícios de inconstitucionalidade de ordem for-
mal, o citado dispositivo também se reveste de induvidosa inconstitucionali-
dade material. Ele conferiu aos embargos à execução uma verdadeira “função
rescindente”, só que sem a necessidade de interposição de ação rescisória, ou
seja, sem a necessidade de se demonstrar o enquadramento legal em alguma
das situações taxativamente previstas pelo art. 485 do CPC, o que, além de
representar burla à legislação processual em si, afronta claramente o art. 5º,
XXXVI da Constituição.4
Nessa mesma esteira, sendo a coisa julgada uma garantia constitu-
cional, ela não pode ser afastada, ainda que parcialmente, pela Orientação
Jurisprudencial nº 138 da SDI-I do Tribunal Superior do Trabalho, que sequer
tem efeito de lei. Aliás, a própria SDI-I tem entendimento pacífico no sentido
contrário. Ela já entendeu que, em havendo discussão expressa na fase de
conhecimento relativa à incompetência da Justiça do Trabalho após o advento
do regime estatutário, com trânsito em julgado, “resulta inviável, em sede de
execução, a reforma da referida decisão para fixar novo limite à condenação,
mediante a alegação de incompetência da Justiça do Trabalho”. É o que se
depreende da leitura da ementa abaixo transcrita, in verbis:
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apenas razoável que a sua alteração se verifique quando ocorram
pressupostos materiais particularmente relevantes.
Dessa forma, se, como dispõe o art. 468 do Código de Processo Civil, “a
sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da
lide e das questões decididas”, considera-se afronta ao princípio da segurança
jurídica a decisão posterior que se sobrepõe a uma relação jurídica consolidada
sob o amparo de decisão anteriormente transitada em julgado, especialmente
para retirar ou tolher direitos dos jurisdicionados/cidadãos. Ou seja, se a incom-
petência da Justiça do Trabalho não foi declarada na fase de conhecimento ou
em eventual juízo rescisório, não é dado ao juízo da execução, e muito menos
ao juízo administrativo dos precatórios, impor limites à execução integral do
julgado com fundamento nessa temática, em respeito ao ditame constitucional
de que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa
julgada” (art. 5º, XXXVI).
Ainda segundo Uadi Lammêgo Bulos (2007, p. 484), em referência ao
inciso XXXVI do art. 5º da CF/88, “quando a norma em epígrafe usou o verbo
no futuro do presente simples, pretendeu deixar a salvo certas situações imper
turbáveis, as quais não poderão ser molestadas por leis novas”. Por isso, a OJ
nº 138 da SDI-I do TST não pode obviamente prevalecer sobre as citadas garan-
tias constitucionais.
A retroatividade pretendida pela OJ nº 138 da SDI-I do TST afigura-se
ainda mais grave porque pretende limitar direitos trabalhistas de natureza ali-
mentar, devendo os juízos trabalhistas, por mais essa razão, afastá-la. Afinal, a
Justiça do Trabalho, nos dissídios individuais, tem por escopo principal realizar
o princípio da proteção. Esse princípio é o fundamento basilar de toda a legis-
lação que integra o Direito do Trabalho, deitando suas bases na contatação da
necessidade fática de erigir instrumentos hábeis à defesa da parte mais vulne-
rável na relação contratual: o trabalhador. Acerca do seu conteúdo e alcance,
disserta Maurício Godinho Delgado:
[...] que o Direito do Trabalho estrutura em seu interior, com suas regras,
institutos, princípios e presunções próprias, uma teia de proteção à
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Regime jurídico único, coisa julgada e a competência residual da Justiça do Trabalho... 171
Desse modo, as Constituições, desde as suas primeiras matizes liberalizantes,
foram criadas como instrumento para evitar que abusos perpetrados pelo
Estado pudessem atingir direitos e garantias dos cidadãos, sendo, pois, um
limite ao poder de editar leis e atos normativos. Por isso, mesmo hoje em
dia, por meio de uma interpretação mais atualizada, ou seja, em tempos de
Estado de Democrático de Direito, de quinta ou sexta dimensão de direitos
fundamentais, e, inclusive, de judicialização da política e da administração,
pode-se dizer que a Constituição é tanto limite para os atos estatais, como
igualmente limite a interpretações legais abusivas dos tribunais.
Portanto, no caso das demandas que tramitam na Justiça do Trabalho,
envolvendo o pagamento de diferenças salariais decorrentes do vínculo de tra-
balho estabelecido entre a Administração Pública e seus agentes, compreen
dendo verbas pertinentes a períodos em que a relação se lastreava na CLT,
mas que produziu reflexos no regime estatutário, a execução deve respeitar o
conteúdo da sentença transitada em julgado e não rescindida, não podendo
sofrer limitação fundada na mudança posterior de entendimento a respeito da
competência da Justiça do Trabalho.
Na hipótese, é de se aplicar o mesmo raciocínio espelhado pelo Supremo
Tribunal Federal quanto à alteração da competência dessa Justiça Especializada
pela EC nº 45/2004, relativamente às indenizações por danos morais e/ou mate-
riais decorrentes de acidentes de trabalho. No CC nº 7.204.1-MG, relatado pelo
min. Carlos Ayres Britto (DJ, 09 dez. 2005), essa Corte suprema firmou entendi-
mento no sentido de que
[...] as ações que tramitam perante a Justiça comum dos Estados, com
sentença de mérito anterior à promulgação da EC 45/2004, lá conti-
nuam até o trânsito em julgado e correspondente execução. Quanto
àquelas cujo mérito ainda não foi apreciado, hão de ser remetidas à
Justiça do Trabalho, no estado em que se encontram, com total apro-
veitamento dos atos praticados até então.
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Conclusão
Dada a garantia da coisa julgada e o princípio da segurança jurídica,
que tornam imutáveis os efeitos da sentença de mérito, conclui-se que nem o
advento do Regime Jurídico Único nem a alteração superveniente da compe-
tência da Justiça do Trabalho, por obra da Emenda Constitucional nº 45/2004,
podem invalidar parte da sentença transitada em julgado, para dela excluir,
em fases processuais posteriores, direitos e vantagens com repercussão no
regime estatutário.
Como a única forma de desconstituir os efeitos da sentença passada em
julgado é, segundo a lei processual, a via da ação rescisória, esgotado o res-
pectivo prazo decadencial para a sua interposição, ou diante do insucesso de
mérito da ação, é defeso aos juízos trabalhistas aplicar a OJ nº 138 da SDI-I do
TST, ou qualquer outra fonte do direito, para limitar a execução da sentença ao
período celetista, empregando ao juízo da execução uma verdadeira eficácia
rescindente, em uma interpretação que vai de encontro à Constituição.
Além disso, nesse caso, militam também em favor da manutenção da
competência da Justiça do Trabalho o princípio da proteção, que se traduz na
verdadeira razão de ser dessa Justiça Especializada, e o entendimento de que
qualquer eficácia retroativa não pode ser aplicada em desfavor do cidadão, na
espécie, o trabalhador.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 161-173, jul./set. 2012
Regime jurídico único, coisa julgada e a competência residual da Justiça do Trabalho... 173
in the Direct Action of Unconstitutionality No. 3.395-6, when interpreting
the extent of the aforementioned rule, excluded from that competence
the appraisal of cases established between the public servants and the
Public Administration, who are bound to it through a typical relationship
of statutory order. It is understood, however, that neither the advent of
the Single Legal Regime nor the subsequent change of the Labor Court
competence can reach the validity of the final sentence previously
issued, not being legitimate the enforcement limitation to the labor law
consolidation period, as it is stated in the Jurisprudential Guideline 138 of
the Specialized Subsection-I of Individual Dissensions under the Superior
Labor Court, for offending the guarantee of the claim preclusion and the
principle of legal certainty.
Referências
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
BULOS, Uadi Lammêgo Bulos. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007.
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 19. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional. 5. ed. Lisboa: Almedina, 1992.
DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil. 2. ed. Salvador: JusPodvim, 2008.
GODINHO, Maurício Delgado. Curso de direito do trabalho. 7. ed. São Paulo: LTr, 2008.
LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de direito processual do trabalho. 5. ed. São Paulo: LTr, 2007.
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Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
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de relativização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
MARIANO, Cynara Monteiro. Regime jurídico único, coisa julgada e a competência residual da
Justiça do Trabalho: em defesa da inconstitucionalidade da OJ nº 138 da SDI-I do TST. Revista
Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 161-173, jul./set. 2012.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 161-173, jul./set. 2012
Crítica à tradicional opção
pela teoria da correspondência
como critério para a obtenção da
verdade no processo penal
Felipe Martins Pinto
Professor Adjunto de Direito Processual Penal da
UFMG. Diretor-Geral da Divisão de Assistência
Judiciária da UFMG. Diretor-Primeiro-Secretário do
Instituto dos Advogados de Minas Gerais.
E-mail: <felipempinto@hotmail.com>.
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176 Felipe Martins Pinto
Se, com efeito, o homem existe, a proposição pela qual nós dizemos
que o homem existe é verdadeira; e, reciprocamente, se a proposição
pela qual nós dizemos que o homem existe é verdadeira, o homem
existe. Contudo, a proposição verdadeira não é de modo algum causa
da existência da coisa; ao contrário, é a coisa que parece ser, de algum
modo, a causa da verdade da proposição, pois é da existência da coisa
ou da sua não existência que dependem a verdade ou a falsidade da
proposição (14b16-23).2
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 175-191, jul./set. 2012
Crítica à tradicional opção pela teoria da correspondência como critério para a obtenção da verdade... 177
se escorou na ideia de que a realidade pode ser perfeitamente refletida através
de enunciados, ou seja, entende possível a existência de uma verdade absoluta
como imagem do mundo real.
Essa corrente filosófica considera que a verdade de uma sentença ou
enunciado consiste em sua coincidência com a realidade, operação esta na
qual se estriba o tradicional e ultrapassado objetivo do processo penal: a ave-
riguação objetiva da verdade histórica.
3
No original: “El hecho mostrado como posible debe convertirse en realidad afirmativa o
negativa en todas sus antecedentes y consecuencias jurídicamente relevantes. La premisa
menor del silogismo judicial debe integrarse completamente, a través de operaciones
prácticas y críticas dirigidas a obtener la verdad del acontecimiento juzgable. Debe revivirse
el pasado en su reconstrucción y reproducción a través de las actuales manifestaciones”
(OLMEDO. Derecho procesal penal, t. I, p. 225 et seq., tradução livre).
4
Wittgenstein, originalmente correspondista, posteriormente, adere à corrente pragmatista,
segundo a qual o significado de um conceito deve ser dado pela referência às consequências
práticas ou experimentais de sua aplicação.
5
CONDÉ. As teias da razão: Wittgenstein e a crise da racionalidade moderna, p. 51.
6
HAACK. Filosofia das lógicas, p. 133-134.
7
O atomismo lógico foi criado por Wittgenstein, mas Russell foi quem divulgou primeiro a filo-
sofia atomista, em suas conferências de 1918, já que a obra de Wittgenstein sobre a matéria,
o Tratactus foi publicada somente em 1922.
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178 Felipe Martins Pinto
8
HAACK, op. cit., p. 134.
9
Ibidem, p. 135-136.
10
GUZMÁN. La verdad en el proceso penal: una contribuición a la epstemología jurídica.
11
No original: “...el tradicional énfasis respecto de la obtención de la ‘verdad real’ ha sido
cuestionado, tanto desde un punto de vista teórico y epistemológico como práctico; más
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 175-191, jul./set. 2012
Crítica à tradicional opção pela teoria da correspondência como critério para a obtenção da verdade... 179
Dessa forma, para reforçar o descabimento e o risco para a segurança
jurídica que representa a escolha da teoria da correspondência como critério
de correção da sentença na esfera penal, a análise será cindida a partir de três
óticas com o intuito de reforçar a ideia e tornar mais clara a crítica que se pre-
tende desenvolver.
bien parece ahora más aceptable hablar de una ‘verdad judicial’, es decir, un grado de
conocimiento aceptado por El cumplimiento de determinadas reglas legales, de experiencia
y psicológicas y hasta por ciertos elementos consensuales...” (OLMEDO, op. cit., t. I, p. 225-226,
tradução livre).
12
No original: “[...] cannot exist independently of the human mind [...]” (RORTY. Contingency,
Irony, and Solidarity, p. 5, tradução livre).
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180 Felipe Martins Pinto
13
“[...] the world does not provide us with any criterion of choice between alternative metaphors,
that we can only compare languages or metaphors with one another, not with something
beyond language called ‘fact’” (Ibidem, p. 20, tradução livre).
14
GONÇALVES. Técnica processual e teoria geral do processo, p. 45-46.
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Crítica à tradicional opção pela teoria da correspondência como critério para a obtenção da verdade... 181
No caso, o Estado brasileiro, como decorrência da sua estrutura democrática,
impõe o respeito a direitos individuais, especialmente à liberdade ambulatorial e à
dignidade da pessoa, seja através de limites probatórios ou critérios de decisão, v.g.,
vedação da utilização de provas ilícitas, presunção de inocência e o consequente
princípio in dubio pro reo, a coisa julgada, o ne bis in idem.
Pois uma lei não se pode aplicar, manejar ou executar a si mesma; ela
não se pode interpretar nem definir ou sancionar a si mesma; ela tam-
bém não pode — sem deixar de ser uma norma — indicar ou nomear,
ela mesma, as pessoas concretas que devem interpretá-la e manejá-la.15
Não diríeis que esse magistrado, cuja velhice venerável impõe respeito
a todo um povo, se governa por uma razão pura e sublime e que julga
as coisas na sua natureza, sem se deter nessas vãs circunstâncias
que só ferem a imaginação dos fracos. Vêde-o entrar, para assistir
ao sermão com um zelo todo devoto reforçando a solidez da razão
pelo ardor da caridade. Ei-lo pronto ao vir com respeito exemplar.
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182 Felipe Martins Pinto
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Crítica à tradicional opção pela teoria da correspondência como critério para a obtenção da verdade... 183
é uma política que pretende, por instinto e experiência, encarnar o
sentimento profundo e real do povo. Esse contato direto do juiz com
a opinião é proveniente, além disso, do aumento de descrédito do
político. O juiz mantém o mito de uma verdade que se basta, que não
precisa mais de mediação processual.19
19
GARAPON. O juiz e a democracia: o guardião das promessas, p. 66.
20
No original, representaciones cognoscitivas (IBÁÑEZ. Acerca de la motivación de los hechos en
la sentencia penal. Doxa, p. 257-299, tradução livre).
21
No original: “Y estas distintas representaciones, que podemos denominarlas imágenes de
la verdad, difieren por lo general, con frecuencia de forma no intrascendente, de suerte que
todos los intervinientes son el ciego de la fábula, que tienta distintas partes del cuerpo de la
especie para ellos desconocida del elefante” (GÖSSEL. En búsqueda de la verdad y la justicia:
fundamentos del procedimiento penal estatal con especial referencia a aspectos jurídico-
constitucionales y político-criminales, p. 61, tradução livre).
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184 Felipe Martins Pinto
Isso implica que quem relata o que foi dito e quem faz o relatório das
declarações pode não desvirtuar conscientemente o que foi dito e,
no entanto, o seu sentido é alterado. Mesmo quando se realiza a mais
cotidiana das falas, se faz presente um traço essencial da reflexão
especulativa, a saber, o caráter inconcebível do que é a reprodução
mais pura do sentido.25
22
FREUD. Lembranças encobridoras, v. 3, p. 337.
23
Ibidem, p. 337.
24
Ibidem, p. 336.
25
GADAMER. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 605-606.
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Crítica à tradicional opção pela teoria da correspondência como critério para a obtenção da verdade... 185
Além disso, os juízes, quando tentam alcançar os episódios pretéritos através
do depoimento de testemunhas, se tornam eles próprios testemunhas da oitiva
das testemunhas, devendo delinear os fatos a partir do que ouvem e veem.
26
No original: “Now, as silent witnesses of the witnesses, the trial judges and juries suffer from
the same human weaknesses as other witnesses. They, too, are not photographic plates or
phonographic discs. If the testifying witnesses make errors of observation, are subject to
lapses of memory, or contrive mistaken, imaginative reconstruction of events they observed,
in the same way trial judges or juries are subject to defects in their recollection of what the
witnesses said and how they behaved” (FRANK. Courts on Trial: Myth and Realism in American
Justice, p. 22, tradução livre).
27
No original: “condizione de ugguaglianza ed simetria” (FAZZALARI. Istituzioni di diritto
processuale, p. 51, tradução livre).
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186 Felipe Martins Pinto
No original: “Es demasiado seductor cultivar un campo al que la gran masa no tiene acceso,
28
donde el brillo de la erudición adquiere su máxima luminosidad y donde hay seguridad de que
inclusive los resultados más absurdos no pueden ser puestos en evidencia por el sentido común”
(KIRCHMANN. El character a-científico de la llamada ciencia del derecho, p. 260, tradução livre).
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Crítica à tradicional opção pela teoria da correspondência como critério para a obtenção da verdade... 187
exame concreto é, diante das imprevisíveis interferências que comprometem o
sucesso do referido teste laboratorial, muito mais complexa do que a singela,
mas possível, fraude ou falta de lisura: troca de tubos, aparelhos contaminados
com sangues de outras pessoas, erros na coleta, no armazenamento e no proces-
samento das amostras de DNA, como sangues expostos ao sol, ao calor e à água,
número deficiente de sondas, uso de dados estatísticos de países estrangeiros,
desconexos com a realidade da miscigenação racial brasileira, dentre outros.
O “entorpecedor” percentual que de tão elevado acaba arredondado
para 100% por muitos profissionais do Direito que simplesmente descartam
quaisquer evidências contrárias ao exame de DNA, mesmo quando este rema-
nesce isolado na instrução, dentre os prejuízos, padece da inexorável partici-
pação de um ser humano na promoção do exame.
Assim, o responsável pela realização do teste de DNA é um ser, corajoso,
negligente, leniente, misericordioso, vingativo, preguiçoso, virtuoso, corruptí-
vel, covarde, de mesma natureza daquele que presta o depoimento na condi-
ção de testemunha, não obstante alguns insensatos entusiastas considerarem
que o perito, enquanto pessoa, detenha uma credibilidade maior, como se a
sua ocupação profissional contaminasse a sua essência humana.
Mas não somente de ingênuos sobrevive o exame de DNA, pois o lucra-
tivo filão é forte motivação para dedicados profissionais que se debruçam para
defender a eficácia da prova pericial em análise e assegurar, dessa maneira,
uma inesgotável e crescente reserva de mercado na seara jurisdicional.
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188 Felipe Martins Pinto
3 Conclusão
Desde a Inquisição Católica até a contemporaneidade, inúmeras foram
as propostas de mudanças, muitas das quais implementadas na estruturação
político-jurídica do Estado. Tantas leis foram publicadas, tantas teorias foram
desenvolvidas, tanta energia foi empregada para empreender alterações que,
por mais radicais e efetivas que transpareçam, não ultrapassam a condição
de cenário de uma mesma peça, pois o jus puniendi continua a perseguição
implacável a pretexto de alcançar objetivos nobres e elevados como a verdade
real e igualmente os espetáculos de massa, v.g., prisões, condenações, opera-
ções, arrebanham a servil massa de seguidores.
A verdade como correspondência do fato ocorrido é elencada, quase
unissonamente pela doutrina, como o fundamento da sentença, como um dos
princípios do processo penal, ou até mesmo como seu principal objetivo e,
apesar de alterarem o adjetivo que lhe sucede, alguns a chamam de verdade
No original: “Parece entonces acertado sostener la imposibilidad de que exista una relación
30
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Crítica à tradicional opção pela teoria da correspondência como critério para a obtenção da verdade... 189
real,31 outros de verdade histórica,32 verdade material, verdade substancial33
ou verdade judicial,34 e ainda que haja a tentativa de enfraquecer o absolutismo
da verdade real, a doutrina, majoritariamente, não enfrenta o problema da
verdade no processo penal e, via de regra, mantém o mesmo conteúdo tradi-
cionalmente atribuído à verdade real, ou, no máximo, distinguem diferentes
níveis de aproximação da verdade real, através da singela alteração de ordem
gramatical no nomem juris do princípio.
A palavra verdade, como outras palavras de nossa linguagem cotidiana,
certamente não está isenta de ambiguidade e, diante da multiplicidade semân-
tica, permite inúmeras representações concretas de suas significações, inclusive
vinculadas a concepções subjetivas, já que todo leitor, de maneira mais ou menos
intensa, possui uma noção intuitiva do conceito de verdade.
A crítica à teoria da correspondência como embasamento para a criação
de um método de aferição da verdade no processo penal consistiu no cerne
dos óbices apresentados sob os aspectos: teórico, ideológico e prático.
Referências
ARISTÓTELES. Categorias. Tradução de Ricardo dos Santos. Porto: Porto Editora, 1995.
31
MIRABETE. Processo penal, p. 47; NUCCI. Manual de processo e execução penal, p. 94; TOURINHO
FILHO. Manual de processo penal, p. 17; NETTO. Instituições de processo penal, p. 144-145;
MARQUES. Elementos de direito processual penal, v. 3, p. 259.
32
TORNAGHI. Instituições de processo penal, t. I, p. 198-199.
33
MARICONDE. Derecho procesal penal, t. II, p.185.
34
OLIVEIRA. Curso de processo penal, p. 281; OLMEDO. Derecho procesal penal, t. I, p. 225 et seq.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 175-191, jul./set. 2012
190 Felipe Martins Pinto
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TEICH, Daniel Hessel; COSTA, Melina. Os negócios da vida. Disponível em: <http://portalexame.
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PINTO, Felipe Martins. Crítica à tradicional opção pela teoria da correspondência como critério
para a obtenção da verdade no processo penal. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro,
Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 175-191, jul./set. 2012.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 175-191, jul./set. 2012
DOUTRINA
Parecer
Morte da parte. Renúncia ao direito
afirmado. Impossibilidade. Ausência
de representação. Ato praticado por
advogado sem poderes. Decisão
homologatória. Ação rescisória
Fredie Didier Jr.
Livre-Docente pela USP. Pós-Doutorado na
Universidade de Lisboa. Doutor pela PUC-SP. Mestre
pela UFBA. Coordenador do curso de Graduação
da Faculdade Baiana de Direito. Professor Adjunto da
Faculdade de Direito da UFBA. Membro da IAPL, do
Instituto Iberoamericano de Direito Processual e
do Instituto Brasileiro de Direito Processual.
Presidente da Associação Norte e Nordeste de
Professores de Processo. Advogado. Consultor
jurídico. E-mail: <www.frediedidier.com.br>.
Daniela Bomfim
Mestre pela UFBA. Professora da Faculdade
Baiana de Direito. Advogada. Consultora jurídica.
1 Síntese da causa
Relatam os consulentes que, em XX/XX/XXXX, foi ajuizada, em nome do
Sr. W., a ação anulatória de débito fiscal nº XXXXXXXXX, visando à anulação
do auto de infração FM nº XXXXXX, que documentava débito de imposto de
renda de pessoa física. Afirmou-se, na ação anulatória, que (i) o eventual ganho
de capital originário do débito estava abarcado pela isenção então prevista pelo
Decreto-Lei nº 1.510/76; e (ii) que o Fisco está cobrando IRPF sobre parcela não
recebida pelo autor.
Relatam, ainda, que, na mencionada demanda, o Sr. W. estava sendo
representado pelo seu filho, W. Jr., em decorrência da sentença proferida nos
autos da ação de interdição nº XXXXXXX. Sucede que, com o falecimento do
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 195-219, jul./set. 2012
196 Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. 4. ed. São Paulo:
1
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 195-219, jul./set. 2012
Morte da parte. Renúncia ao direito afirmado. Impossibilidade. Ausência de representação... 197
regra jurídica incide. A sua incidência é como a da plancha da máquina de
impressão, deixando a sua imagem colorida em cada folha”.2
Os fatos jurídicos (em sentido lato) podem ser classificados em razão
do elemento cerne (nuclear) do suporte fático, assim entendido como aquele
“que determina a configuração final do suporte fático e fixa, no tempo, a sua
concreção”.3
Os atos jurídicos em sentido lato são aqueles cujo suporte fático tenha
como elemento nuclear a exteriorização consciente da vontade humana, que
tenha por objeto a “obtenção de um resultado juridicamente protegido ou não
proibido e possível”.4 Aqui, “o ato humano entra no mundo jurídico como ato”,5
e não como fato do homem. A vontade exteriorizada é cerne do suporte fático.
Dessa forma, o ato jurídico em sentido amplo seria caracterizado por
três elementos: (i) um ato humano volitivo, vale dizer, uma conduta que repre-
sente a exteriorização de uma vontade, juridicamente relevante, razão por que
figura como cerne do suporte fático de dada norma jurídica (suporte fático
abstrato); (ii) a consciência da exteriorização da vontade (vale dizer: o intuito
de realizar a conduta); (iii) que o ato se dirija à obtenção de um resultado (o ato
jurídico há de ser, ao menos, potencialmente eficaz).6 Ressalte-se que apenas
os atos jurídicos em sentido lato são submetidos ao plano da validade (não o
são os fatos jurídicos em sentido estrito, os ato-fatos jurídicos e os atos ilícitos).
O ato jurídico em sentido lato é gênero do qual são espécies o ato jurídico
em sentido estrito e o negócio jurídico.
Em se tratando de ato jurídico em sentido estrito, a vontade humana é
elemento do suporte fático, mas ela não opera quanto aos efeitos decorrentes
do ato jurídico. Cuida-se de efeitos preestabelecidos pela norma, efeitos neces-
sários. Em se tratando de negócios jurídicos, a vontade é elemento relevante
quanto à existência e à eficácia do ato jurídico.
2
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, t. I, p. 11.
3
MELLO, Marcos Bernardes. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 12. ed. São Paulo:
Saraiva, 2003. p. 49.
4
MELLO. Teoria do fato jurídico: plano da existência, p. 138.
5
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi,
1970. t. II, p. 395.
6
MELLO. Teoria do fato jurídico: plano da existência, p. 139 et seq.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 195-219, jul./set. 2012
198 Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim
7
MELLO. Teoria do fato jurídico: plano da existência, p. 148-149.
8
Nesse sentido, Marcos Bernardes de Mello: “para compor o suporte fático suficiente de ato
jurídico a exteriorização da vontade há de ser consciente, de modo que aquele que a declara
ou manifesta deve saber que a está declarando ou manifestando com aquele sentido próprio”
(Teoria do fato jurídico: plano da existência, p. 141).
9
MELLO. Teoria do fato jurídico: plano da existência, p. 143.
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Morte da parte. Renúncia ao direito afirmado. Impossibilidade. Ausência de representação... 199
exteriorizada é, nesse sentido, performativa. Se houve vontade exteriorizada
de renunciar, incidiu a norma jurídica, irradiou-se o seu respectivo efeito: a
extinção da situação jurídica.
A renúncia ao direito afirmado é negócio jurídico praticado pela parte
demandante em um processo. Tem como pressuposto fático a exteriorização de
vontade — expressa ou tácita — daquele que afirmou a existência de uma deter
minada situação jurídica ativa. Tal renúncia tem como fim a extinção de situa-
ção jurídica material que foi inserida no processo por meio da causa de pedir da
demanda para compor o seu objeto litigioso.
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Morte da parte. Renúncia ao direito afirmado. Impossibilidade. Ausência de representação... 201
poderá adquirir a situação jurídica material, pela manifesta razão de que ele já
não existe mais.
Terceiro. O negócio jurídico da representação celebrado pelo Sr. W., por
meio do qual se outorgaram os poderes ao seu advogado, foi extinto com a
morte do outorgante. Nova representação deveria ter sido realizada para que
o advogado tivesse poderes para representar o espólio em Juízo.
Representação é negócio jurídico unilateral por meio do qual um sujeito
de direito outorga poderes a alguém para a prática de atos jurídicos em seu
nome. O ato praticado pelo representante será imputado diretamente ao repre-
sentado, e não ao seu executor material.
Segundo José de Oliveira de Ascenção, o agir como representante de
outrem exige o vínculo de representação, que permite ao representante agir
sobre a esfera jurídica do representado. O vínculo de representação é, assim,
estruturado pelo poder de praticar atos jurídicos que produzem efeitos sobre
esfera jurídica alheia.11
Do negócio jurídico da representação, instrumentalizado pela procuração,
decorre a relação jurídica da representação, estruturada, de um lado, (i) pelos
poderes do outorgado de praticar atos jurídicos em nome do outorgante, que
atingirão a esfera jurídica deste e, do outro, (ii) pela sujeição do outorgante aos
efeitos decorrentes dos atos jurídicos para os quais se outorgaram os poderes.
No caso em análise, o Sr. W., por meio do seu curador, havia outorgado
poderes para que o seu advogado praticasse atos jurídicos em seu nome, idô-
neos a atingir a esfera jurídica do outorgante. O vínculo de representação era
existente entre o Sr. W. e o advogado. O advogado tinha poderes de represen-
tação do Sr. W.
Note-se que a representação foi celebrada pelo Sr. W., por meio do seu
filho, que também atuou como representante. Há, no caso, duas representa-
ções: o curador como representante do Sr. W. executou (materialmente) o ato
jurídico da representação em nome deste, para que se outorgassem os pode-
res ao advogado para a prática de atos jurídicos relacionados à demanda anu-
latória. Que se tenha claro: a representação foi praticada pelo Sr. W., por meio
do seu curador; o outorgante era o Sr. W., e não o seu filho.
Com o seu falecimento, extinguiram-se o negócio e o vínculo de repre-
sentação. O advogado não mais tinha poderes de representar o Sr. W., nem de
praticar atos jurídicos que pudessem atingir a sua órbita jurídica, já que não se
pode representar sujeito que deixou de existir.
ASCENÇÃO, José de Oliveira. Direito civil: teoria geral. 2. ed. Coimbra: Coimbra Ed., 2003. v. 2,
11
p. 250-252.
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202 Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim
O espólio do Sr. W. é sujeito de direito que passa a existir com a sua morte
e que, com ele, não se confunde. Veja-se, inclusive, que se trata de ente desper-
sonalizado. Eventual vínculo de representação entre o espólio e o advogado
só poderia ser decorrente de negócio jurídico de representação praticado pelo
espólio, o que, no caso, não ocorreu. Não se pode pretender que o vínculo de
representação seja decorrente da morte do Sr. W. Não o é. A morte não é fato
jurídico do qual decorre o vínculo de representação entre o espólio e seus even-
tuais advogados.
O espólio era novo sujeito de direito que, para ser representado, pre-
cisaria outorgar poderes para que o advogado pudesse, em seu nome, prati-
car atos jurídicos. Destaque-se, inclusive, que o poder de renunciar ao direito
afirmado é poder especial, nos termos do art. 38 do CPC, que exige outorga
expressa e específica na procuração.
Os herdeiros do Sr. W. também são sujeitos distintos do de cujus, que,
para serem representados pelo advogado, se fosse o caso, precisariam praticar
outro negócio de representação. O vínculo de representação anterior — e não
mais existente — não lhes aproveita, nem mesmo com relação ao antigo cura-
dor do falecido. Isso porque, como já se destacou, a primeira representação foi
celebrada pelo Sr. W., por meio do seu curador. O curador não atuou em nome
próprio, mas como representante. O ato não atingiu a esfera jurídica do cura-
dor, mas do seu representado: o vínculo de representação era existente entre
o falecido e o advogado.
Em síntese, no caso, o advogado praticou o ato de renúncia como repre-
sentante processual. São duas as opções.
Ou ele praticou o ato de renúncia na qualidade de representante do Sr. W.,
o que não seria possível, considerando que o Sr. W. já era, há muito, falecido.
Destaque-se que não se tratava da hipótese excepcional prevista no art. 265, §1º,
“a”, do CPC, na qual, se a morte da parte ocorrer quando já iniciada a audiência de
instrução e julgamento, o advogado do falecido atua como substituto processual
até o fim da audiência. Quando o advogado atua como substituto, atua em nome
próprio, e não como representante. Este não era o caso dos autos.
Ou o advogado praticou o ato como representante do espólio ou dos
seus herdeiros. Todavia ele não tinha poderes para tanto. A renúncia praticada
pelo advogado sem poderes não pode ser oposta ao espólio ou aos herdeiros,
que não ratificaram o ato.
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Morte da parte. Renúncia ao direito afirmado. Impossibilidade. Ausência de representação... 203
mesma razão de ser, o que é mais do que ser análogo, e menos do que ser o
mesmo”.12 A homologação é julgamento sobre estarem satisfeitos os pressu-
postos de forma e/ou os pressupostos de fundo quanto a determinado ato
praticado por sujeito diverso do órgão jurisdicional que homologa. Homologar
é julgar “sobre o que até então se passou”.13
O ato de homologação é pronunciamento de que o que se produziu
está homólogo àquele considerado em um modelo abstrato, para que, assim,
possam ser irradiados os efeitos previstos a este último.14 Na homologação da
sentença estrangeira, por exemplo, o modelo comparado é a sentença profe-
rida pela Justiça brasileira.15
Na homologação de espécies de conciliação (reconhecimento da pro-
cedência do pedido, renúncia ao direito afirmado e transação), o modelo é
o julgamento dos pedidos formulados pelo demandante para que se tenha
certificação de existência ou inexistência do direito idônea a ser revestida pelo
manto da imutabilidade. Ao se homologar, assim, a renúncia ao direito afirmado,
está-se a dizer que o ato praticado pela parte é homólogo à decisão que julga
improcedente o pedido, para que se tenha por certificada a inexistência do
direito afirmado, formando-se a coisa julgada material. Raciocínio semelhante
pode ser feito no que concerne ao reconhecimento da procedência do pedido
e à transação.
No caso em análise, a decisão que homologou a renúncia disse que o ato
da parte era homólogo ao modelo de decisão de improcedência do pedido, para
se ter como certificada a inexistência do direito potestativo afirmado na demanda
anulatória. A inexistência do mencionado direito encontra-se sob o manto da imu-
tabilidade da coisa julgada material por força da decisão homologatória.
A renúncia ao direito afirmado está eivada de problemas e, aqui, carece
de utilidade discutir quais são os planos do mundo jurídico (existência, validade
e eficácia) relacionados aos problemas da renúncia. A decisão homologatória
existe e, enquanto não for desconstituída, é eficaz. Dela decorreu a certificação
da inexistência de um direito, idônea à formação da coisa julgada material pre-
judicial à parte, que não praticou a renúncia e não outorgou poderes para que
o advogado praticasse em seu nome. Dessa forma, a decisão homologatória
12
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado da ação rescisória. Campinas: Bookseller,
1998. p. 410.
13
PONTES DE MIRANDA. Tratado da ação rescisória, p. 410.
14
PONTES DE MIRANDA. Tratado da ação rescisória, p. 410-411.
15
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. 15. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2009. p. 63.
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204 Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim
precisa ser desconstituída, já que a renúncia não poderia ser tida como homóloga
à decisão de improcedência, em razão da série de problemas destacados.
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Morte da parte. Renúncia ao direito afirmado. Impossibilidade. Ausência de representação... 205
Nesse sentido, afirma Pontes de Miranda:
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206 Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim
incidência das hipóteses constantes no art. 485 do CPC, razão por que tem o
autor de, na peça inicial, afirmá-los.
A situação ora analisada é tão absurda que várias são as hipóteses de
rescindibilidade previstas no art. 485 do CPC configuradas no caso concreto:
(i) a decisão homologatória está fundada em prova falsa (art. 485, VI, do CPC) e
(ii) incidiu em erro de fato (art. 485, IX, do CPC); (iii) há documento novo idôneo
a, por si, alterar o conteúdo da decisão rescindenda (art. 485, VII, do CPC); (iv)
houve violação a normas jurídicas de direito material e processual, inclusive à
regra da congruência subjetiva, já que a decisão regulou situação de sujeito
que não era parte no processo (art. 485, V, do CPC); (v) trata-se de decisão fun-
dada em renúncia que não poderia ter sido homologada, em razão dos sérios
problemas que a maculam (art. 485, VIII, do CPC).
Vejamos.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. 13. ed. Rio de Janeiro:
17
Forense, 2006. v. 5, p. 134. Neste sentido, também: PONTES DE MIRANDA. Tratado da ação
rescisória, p. 323; YARSHELL, Flávio Luiz. Ação rescisória: juízos rescindente e rescisório. São
Paulo: Malheiros, 2005. p. 325.
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Morte da parte. Renúncia ao direito afirmado. Impossibilidade. Ausência de representação... 207
da ação rescisória. Ou seja, não há necessidade de a falsidade da prova
ter sido objeto de um processo autônomo, civil ou penal;
c) a falsa prova tanto pode ser a documental quanto a prova oral;18
d) finalmente, como esclarece Evaristo Aragão Ferreira dos Santos, “para
que esteja configurada a falsidade suficiente para fundamentar a
rescisória, basta que o fato atestado pela prova não corresponda à
verdade. Pouco importa que essa alteração da verdade tenha ocorrido
consciente ou inconscientemente. É suficiente, para caracterizar a fal-
sidade, a mera desconformidade entre o efetivamente ocorrido e o
fato atestado pela prova”.19
3.2.2.2 O caso
No caso concreto, a decisão de mérito extinguiu o processo em razão da
homologação da renúncia apresentada.
A renúncia é o ato jurídico que, uma vez considerado existente, serviu
de fundamento para a decisão judicial.
A renúncia é ato jurídico que se comprova por um documento — no caso,
a petição de comunicação da renúncia. A petição é, no caso, o instrumento —
documento, pois — da renúncia.
Pode-se afirmar, então, que a decisão rescindenda se baseia em uma única
prova: a prova documental da renúncia.
Sucede que, conforme já amplamente demonstrado ao longo deste pare
cer, não houve renúncia. A renúncia não existiu pelo simples fato de o suposto
renunciante ser uma pessoa falecida muito antes de a suposta renúncia ter sido
apresentada. A prova da falsidade da petição de renúncia pode ser feita no pro-
cesso da ação rescisória — e é muito simples: a juntada da certidão de óbito
revela claramente a falsidade do documento que serviu de fundamento da
decisão rescindenda.
A petição, que serviu de base para a decisão rescindenda, serviu como
prova de fato inexistente. A petição, portanto, veicula alegação de fato que
não é verídica: o fato documentado (renúncia) não existia.
Este documento é, assim, uma prova falsa.
18
PONTES DE MIRANDA. Tratado da ação rescisória, p. 312; YARSHELL. Ação rescisória: juízos
rescindente e rescisório, p. 326.
19
A ação rescisória fundada em prova falsa e a sentença civil declaratória de falsidade. In: NERY
JR., Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos
cíveis e de outras formas de impugnação às decisões judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2001. p. 340.
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208 Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim
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Morte da parte. Renúncia ao direito afirmado. Impossibilidade. Ausência de representação... 209
3.2.3.2 O caso
A certidão de óbito do Sr. W. é documento novo apto a, por si, descons-
tituir a decisão rescindenda.
Trata-se de documento que já existia ao tempo da decisão que homo-
logou a renúncia — isso porque o próprio inventário do falecido já se havia
iniciado.
Esse documento não pôde ser utilizado no processo originário. O espólio
do Sr. W. não o sucedeu no processo, que continuou tramitando como se ele
ainda estivesse vivo. Exatamente porque não fez parte do processo, o espólio
não pôde juntar a certidão de óbito. Pode-se afirmar, inclusive, que, se tivesse
feito parte do processo, sucedendo, como de direito, o Sr. W., jamais teria havido
uma decisão que homologou a renúncia de uma pessoa já falecida.
A certidão de óbito é, ainda, documento que, por si só, altera o conteúdo
da decisão rescindenda: a demonstração de que o “renunciante” já estava morto
ao tempo da apresentação da renúncia basta para que se perceba a impossibili-
dade de homologá-la.
Como se vê, estão preenchidos todos os pressupostos para aplicação do
inc. VII do art. 485 do CPC.
Também por esse motivo a decisão tem de ser rescindida.
“Segundo a doutrina, ao interpretar as disposições legais, são requisitos para que o julgamento
20
de mérito seja rescindido por erro de fato os seguintes: a) que este seja determinante para
a conclusão contida no julgamento do mérito; b) que não tenha havido controvérsia sob o
ponto de fato; c) que não tenha havido pronunciamento judicial sobre o aludido ponto de
fato” (YARSHELL. Ação rescisória: juízos rescindente e rescisório, p. 339).
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 195-219, jul./set. 2012
210 Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim
(iii) que sobre ele tampouco tenha havido pronunciamento judicial (art. 485,
§2º, CPC).
No presente caso, todos os pressupostos foram preenchidos.
3.2.4.2 O caso
A decisão rescindenda baseia-se no fato jurídico “renúncia ao direito sobre
o que se funda a ação”. A decisão limitou-se a homologar a renúncia, sem decidir
a respeito da sua existência: o órgão jurisdicional restringiu-se a homologar o ato
e extinguir o processo sem exame do mérito.
Trata-se de fato que não foi controvertido — a parte adversária não impug-
nou a renúncia apresentada em nome do Sr. W.
Sucede que não houve renúncia do Sr. W. Este fato jamais existiu. Afinal,
conforme já aludido, o Sr. W. já era falecido ao tempo em que a suposta renún-
cia foi apresentada.
Disso tudo se nota o preenchimento de todos os pressupostos para a
rescisão da sentença por erro de fato: a) a decisão se baseou exclusivamente
no fato renúncia; b) a renúncia foi fato incontroverso no processo (art. 485, §2º,
CPC); c) esse fato não existiu, embora tenha sido tomado como existente pelo
órgão jurisdicional (art. 485, §1º, CPC); d) não houve pronunciamento judicial
a respeito do fato, que se limitou a homologar a renúncia afirmada, com o pro-
pósito de extinguir o processo com resolução do mérito.
Assim, também por essa razão, cabe a rescisão da decisão que extinguiu
o processo, com resolução de mérito, homologando renúncia inexistente.
21
Cf.: ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos.
10. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. Passim.
22
No mesmo sentido: MOREIRA. Comentários ao Código de Processo Civil, p. 131.
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Morte da parte. Renúncia ao direito afirmado. Impossibilidade. Ausência de representação... 211
define a interpretação jurídica como “a atribuição de sentido (ou significado) a
um texto normativo”.23 O discurso do intérprete seria construído na forma do
enunciado “T significa S”, em que T equivale ao texto normativo e S equivale ao
sentido que lhe é atribuído.24 Uma norma pode ser decorrente da interpretação
de vários dispositivos, assim como há norma sem texto (o princípio da segurança
jurídica, por exemplo),25 como texto sem norma (o preâmbulo da Constituição).26
Seguindo a sua linha, Humberto Ávila também afirma: “Normas não são
textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpre-
tação sistemática de textos normativos”.27 Na verdade, como bem observa o
autor, trata-se de uma reconstrução de sentido, do sentido semântico inicial
inerente ao texto, já que “há traços de significado mínimos incorporados ao
uso ordinário ou técnico da linguagem”.28 A norma seria, assim, uma constru-
ção a partir de algo; logo, seria uma reconstrução.29
É a violação à norma jurídica (e não ao seu dispositivo) que deve ser afir-
mada como causa de pedir na demanda rescisória. A exigência de indicação da
norma violada não significa que seja exigida a indicação do texto normativo
(número de artigo, parágrafo etc.). O que precisa estar claramente afirmado é
o conteúdo da norma supostamente violada.30
Cada afirmação de violação a uma norma jurídica distinta constitui uma
causa petendi da demanda rescisória. Nesta hipótese, se houver afirmação de vio-
lação a mais de uma norma, haverá mais de um fundamento fático da demanda
(mais de um elemento fático apreendido pela norma para irradiar o direito potes-
tativo), de forma que estarão sendo cumuladas várias ações rescisórias.31
3.2.5.2 O caso
No caso dos autos, a decisão rescindenda homologou renúncia a direito
afirmado eivada de sérios problemas, notadamente: (i) ausência de exteriori-
zação de vontade do Sr. W., então já falecido; (ii) ausência de titularidade da
situação jurídica renunciada, que já era de titularidade do espólio quando a
23
Das fontes às normas. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 23-24.
24
GUASTINI. Das fontes às normas, p. 24.
25
ÁVILA. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 30.
26
ÁVILA. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 30.
27
ÁVILA. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 30.
28
ÁVILA. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 32.
29
ÁVILA. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 33.
30
Nas palavras de José Carlos Barbosa Moreira: “O autor precisa indicar, na inicial, a norma a seu ver
infringida, embora se deva prescindir, desde que claramente identificável o conteúdo, da referência
a número de artigo ou de parágrafo […]” (Comentários ao Código de Processo Civil, p. 132).
31
No mesmo sentido: MOREIRA. Comentários ao Código de Processo Civil, p. 132.
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Morte da parte. Renúncia ao direito afirmado. Impossibilidade. Ausência de representação... 213
ao advogado para a defesa de seus interesses. O ato de renunciar,
inclusive, exige poder especial, que deve ser expressamente outorgado.
A decisão que homologou a renúncia violou a norma decorrente do
art. 37 do CPC, segundo a qual, sem instrumento de representação, o advo-
gado não pode representar a parte em juízo, e a norma decorrente do art. 38
do CPC, que exige poder especial do advogado para, em nome do represen-
tado, renunciar ao direito afirmado na demanda.
Ato praticado por advogados sem poderes é ato ineficaz com relação
ao representado, que pode, entretanto, ser ratificado. É o que se depreende
do art. 662 do Código Civil. Não houve ratificação no caso em análise e, nada
obstante, a renúncia foi homologada. A renúncia é ineficaz com relação ao
espólio. A decisão que a homologou, por sua vez, existe e está produzindo os
seus efeitos até que seja desconstituída. A demanda rescisória é meio idôneo
para tanto, considerando, inclusive, que a decisão rescindenda violou a norma
decorrente do art. 662 do Código Civil.
d) A decisão homologatória violou a regra da congruência, porque regu-
lou a situação de quem não era (ainda) parte no processo, o espólio.
É requisito de validade de toda e qualquer decisão judicial a sua con-
formação aos limites objetivos e subjetivos da demanda. Isso porque, além de
revestir-se, internamente, dos atributos da certeza, liquidez e exigibilidade, a
decisão precisa ser congruente com os elementos da demanda (sujeitos, causa
de pedir e pedido).
Vale dizer, o pronunciamento decisório não apenas se deve mostrar con-
gruente em si mesmo, como deve estar correlacionado aos limites da demanda
proposta, delineados, objetivamente, pela causa petendi e pelo pedido e, sub-
jetivamente, pelos sujeitos envolvidos no processo. Esta é a chamada regra da
congruência.
A necessidade de que o ato decisório fique adstrito aos limites objetivos
e subjetivos da demanda tem fundamento no princípio de que o exercício da
jurisdição é condicionado, em regra, à provocação do legitimado para defen-
der direito próprio ou alheio (art. 2º, CPC), razão pela qual a prestação jurisdi-
cional deve ser correlata ao conteúdo da demanda. Ademais, essa exigência
tem raízes nas garantias do devido processo legal, do contraditório e da ampla
defesa (art. 5º, LIV e LV, da CF), já que, não raro, a decisão incongruente termina
por afastar-se da exigência de diálogo processual.
Amparado nessas premissas, o legislador pátrio, dando substância à regra da
congruência, estabeleceu expressamente os contornos da atividade a ser desem-
penhada pelo juiz, que não pode julgar fora, além ou aquém do que foi submetido
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à sua apreciação, sob pena de sua decisão ser extra petita, ultra petita ou citra petita,
respectivamente. É o que se depreende dos arts. 128 e 460 do CPC.
Esses dispositivos delimitam objetivamente a atividade do magistrado,
que (i) deve pronunciar-se sobre todos os pleitos realizados no processo, não
podendo ir além deles; e (ii) deve pautar-se, em regra, nos fundamentos sus-
citados pelo demandante (causa de pedir remota — fato jurídico — e causa
de pedir próxima — relação jurídica dele decorrente) e nos fundamentos de
defesa. Tem-se aí a faceta objetiva da regra da congruência.
Mas não é só. A decisão precisa ser também subjetivamente congruente:
deve estar correlacionada com os sujeitos parciais da relação jurídica processual,
somente produzindo, em regra, efeitos com relação a estes, nos termos, inclusive,
do art. 472 do CPC. Em outras palavras, a decisão será subjetivamente incon-
gruente se dispõe sobre situação jurídica de sujeito que não participou do pro-
cesso, já que ninguém pode ser atingido em sua esfera jurídica sem um devido
processo legal, no qual sejam garantidos o contraditório e a ampla defesa.
De um modo geral, vige no nosso sistema a ideia de que é extra petita a
decisão judicial que, alternativamente: (i) aprecia pedido diverso daquele for-
mulado na demanda; (ii) aprecia fundamentos diversos daqueles invocados
pelas partes; (iii) disciplina situação jurídica apenas de sujeito que não é parte
no processo.
No caso em análise, a decisão homologatória é extra petita, pois atingiu
a esfera jurídica — e apenas esta — de sujeito estranho ao processo. Isso por-
que, com a morte do Sr. W., deveria ter sido o espólio habilitado nos autos para
que se operasse a sucessão processual. A sucessão processual não ocorreu. De
outra parte, desde o momento da morte do Sr. W., operou-se a transmissão das
situações jurídicas materiais por ele titularizadas. A sucessão do direito mate-
rial afirmado na demanda ocorreu logo quando da morte do Sr. W.
Ao homologar a renúncia de situação jurídica titularizada pelo espólio,
que não era ainda parte no processo, a decisão extrapolou os limites subjetivos
aos quais o órgão jurisdicional estava adstrito. Violou, assim, a regra da con-
gruência subjetiva, requisito de validade de toda e qualquer decisão judicial,
inclusive da decisão que homologa renúncia de situação jurídica de outrem. A
decisão é extra petita porque (i) não regulou a situação dos sujeitos parciais que
antes figuravam na relação processual (pela óbvia razão de que não poderia a
decisão atingir esfera jurídica de pessoa já falecida); e (ii) atingiu apenas a órbita
jurídica de terceiro, o espólio.
Há, como se vê, violação a diversas normas jurídicas.
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Morte da parte. Renúncia ao direito afirmado. Impossibilidade. Ausência de representação... 215
3.2.6 Ação rescisória fundada em fundamento para
“invalidação” da renúncia ao direito afirmado
(art. 485, VIII, do CPC)
Nos termos do inc. VIII do art. 485 do CPC, há rescindibilidade “quando
houver fundamento para invalidar confissão, desistência ou transação, em que
se baseou a sentença”.
A expressão “desistência” deve ser compreendida como “renúncia ao direito
afirmado”. É pressuposto do direito de rescindir a decisão judicial a coisa julgada
material. A desistência, em nosso direito positivo, é causa de extinção do processo
sem exame do mérito; não se forma, assim, a coisa julgada material. Onde se lê
“desistência”, deve-se ler “renúncia”.32
De outra parte, o significante “invalidação” não pode ser compreendido
restritivamente.
Como explica José Carlos Barbosa Moreira, tal disposição foi decorrente
da transposição que fizemos de regra existente no Código Português de 1939;
a sua interpretação, portanto, deve levar em contar as suas razões históricas.
Segundo o art. 771, 4º, do Código Português, era cabível a “revisão” da sentença
transitada em julgado quando houvesse fundamento para “revogar”, confissão,
desistência ou transação em que se baseara a sentença. Tais atos eram “revo-
gáveis” por “erro de fato, por dolo, coação ou simulação” (art. 306). Nos termos
do art. 771, 5º, do Código Português, admitia-se também a “revisão” em “sendo
nulo qualquer desses atos ‘por irregularidade de mandato ou insuficiência de
poderes do mandatário’”.33
Dessa forma, por suas próprias razões históricas, o significante “invali-
dação” em nosso dispositivo deve compreender também a hipótese de o ato
de disposição ter sido praticado por representante sem poderes (que, tecni-
camente, é questão atinente ao plano da eficácia do ato, e não da validade). É
justamente o caso da decisão rescindenda, que homologou renúncia praticada
por representante sem poderes para atuar em nome do espólio, titular da situa
ção jurídica renunciada.
Mas não só. A interpretação do texto deve atender à finalidade que lhe é
subjacente. No caso, em se tratando de renúncia ao direito afirmado, permite-se
a desconstituição da decisão que a considerou homóloga ao julgamento de
32
No mesmo sentido: MOREIRA. Comentários ao Código de Processo Civil, p. 143. Em sentido um
tanto diverso, mas ainda assim aplicável ao caso, Pontes de Miranda posiciona-se no sentindo
de que a expressão deve compreender tanto a desistência quanto a renúncia (Tratado da
ação rescisória, p. 337-338).
33
No mesmo sentido: MOREIRA. Comentários ao Código de Processo Civil, p. 141-142.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 195-219, jul./set. 2012
216 Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim
improcedência do pedido, em razão dos graves problemas que lhe são inerentes,
ainda que se refiram ao plano da existência ou da eficácia.
Como visto, a decisão de homologação é pronunciamento judicial por
meio do qual se considera determinado ato como homólogo de um modelo
abstrato tido em conta, para lhe atribuir os seus efeitos. É o que ocorre com a
decisão homologatória de renúncia ao direito afirmado, para que se deixe sob
o manto da coisa julgada a certificação de inexistência de direito.
A homologação é meio de processualizar ato jurídico material, que ocorre
em dois momentos: o momento de sua inserção no processo seguido do
momento da homologação. A decisão de homologação é ato jurídico processual,
que reveste o ato material da transparência da processualidade.34 É continente,
que tem como conteúdo o ato homologado. É a decisão homologatória (conti-
nente) que é rescindida.
No caso em análise, o ato material conteúdo foi a renúncia ao direito
afirmado; o ato processual continente, a decisão homologatória. A renúncia,
como visto, está eivada de problemas, já que (i) não poderia ser praticada pelo
Sr. W., que já era falecido e não mais era titular do direito renunciado e (ii) o
advogado que a assinou não tinha poderes para atuar em nome do espólio ou
de qualquer dos herdeiros.
Não interessa saber se a renúncia (o negócio jurídico material isolada-
mente considerado) foi existente/inexistente, válida/defeituosa, eficaz/ineficaz.
Isso porque ela foi tida como existente, válida e eficaz pela decisão homologa-
tória, seu elemento transparente de processualidade, para que restasse certi-
ficada a inexistência do direito renunciado. A decisão homologatória existe e
está produzindo efeitos, até que se proceda à sua desconstituição.
A processualização da renúncia (por meio da sua homologação) — pelos
problemas a ela inerentes — está eivada de vícios. O ato jurídico global é defei
tuoso e, por isso, pode ser desconstituído em sua integralidade por meio de
demanda rescisória tendo como fundamento a incidência do art. 485, VIII, do
CPC. Nesse caso, a desconstituição do ato da parte será decorrente da des-
constituição da decisão rescindenda; mediata, pois. Nas palavras de José
Carlos Barbosa Moreira:
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 195-219, jul./set. 2012
Morte da parte. Renúncia ao direito afirmado. Impossibilidade. Ausência de representação... 217
ato que lhe servira de suporte; mas deve entender-se que, vingando
a rescisória, caem ambos, o ato-base (confissão, renúncia, reconheci-
mento do pedido, transação) junto com a decisão. Ocorre aí, substan-
cialmente, verdadeira cumulação implícita de pedidos: o de invalidação
do ato-base e o de rescisão da sentença.35
3.3 Competência
A competência para o julgamento desta ação rescisória é do Tribunal
Regional Federal.
Aplica-se, no caso, a regra do art. 108, I, “b”, da Constituição Federal, que
expressamente comina ao TRF a competência para julgar a ação rescisória de
seus julgados.
A decisão homologatória da renúncia, proferida pela Desembargadora
relatora, é decisão do TRF — e, nesta qualidade, atrai para o Tribunal a compe-
tência para o processo em que se pretenda a sua rescisão.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 195-219, jul./set. 2012
218 Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim
4 Conclusão
Por tudo quanto foi exposto, conclui-se que:
(i) a renúncia ao direito afirmado está eivada de problemas, já que (i)
não poderia ser praticada pelo Sr. W., que já era falecido e não mais
era titular do direito renunciado e (ii) o advogado que a assinou não
36
Corretamente identificando a questão como atinente ao plano da eficácia: DEMARCHI,
Juliana. Ato processual juridicamente inexistente: mecanismos predispostos pelo sistema
para a declaração da inexistência jurídica. Revista Dialética de Direito Processual, São Paulo, n. 13,
p. 52, 2004; TESHEINER, José Maria. Pressupostos processuais e nulidades no processo civil.
São Paulo: Saraiva, 2000. p. 284; ASSIS, Araken de. Suprimento da incapacidade processual
e da incapacidade postulatória. In: ASSIS, Araken de Doutrina e prática do processo civil
contemporâneo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 144; CAHALI, Yussef Said. Honorários
advocatícios. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 220; GOUVEIA FILHO, Roberto P.
Campos. As capacidades processuais sob a égide da capacidade jurídica e como “pressupostos
processuais”. Monografia (Curso de Direito) – Universidade Católica de Pernambuco, Recife,
2006. f. 121-126; MITIDIERO, Daniel. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo:
Memória Jurídica, 2004. t. I, p. 241-242.
37
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. 3. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1983. t. IV, p. 27.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 195-219, jul./set. 2012
Morte da parte. Renúncia ao direito afirmado. Impossibilidade. Ausência de representação... 219
tinha poderes para atuar em nome do espólio ou de qualquer dos
herdeiros;
(ii) a decisão homologatória da renúncia existe e, enquanto não for des-
constituída, é eficaz. Dela decorreu a certificação da inexistência de um
direito, idônea à formação da coisa julgada material prejudicial à parte;
(iii) houve coisa julgada formal acerca da decisão homologatória de
mérito; formou-se a coisa julgada material, passível de ser impugnada
por meio da ação rescisória, desde que se afirme incidência de norma
decorrente de, ao menos, um dos incisos constantes no art. 485 do CPC;
(iv) a situação sob consulta é tão absurda que várias são as hipóteses de
rescindibilidade configuradas no caso concreto: (a) a decisão homo
logatória está fundada em prova falsa (art. 485, VI, do CPC) e (b) inci
diu em erro de fato (art. 485, IX, do CPC); (c) há documento novo
idôneo a, por si, alterar o conteúdo da decisão rescindenda (art. 485,
VII, do CPC); (d) houve violação a normas jurídicas de direito material
e processual, inclusive da regra da congruência subjetiva, já que a
decisão regulou situação de sujeito que não era parte no processo
(art. 485, V, do CPC); (e) trata-se de decisão fundada em renúncia macu-
lada por sérios problemas (art. 485, VIII, do CPC);
(v) a competência para o julgamento desta ação rescisória é do Tribunal
Regional Federal da 3ª Região;
(vi) rescindida a decisão, enfim, renasce a apelação, pendente ao tempo
da homologação, que, por ter sido ratificada, tem de ser rejulgada
por este Tribunal, no iudicium rescissorium desta ação rescisória.
DIDIER JR., Fredie; BOMFIM, Daniela. Morte da parte. Renúncia ao direito afirmado. Impossibilidade.
Ausência de representação. Ato praticado por advogado sem poderes. Decisão homologatória.
Ação rescisória. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 20, n. 79,
p. 195-219, jul./set. 2012. Parecer.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 195-219, jul./set. 2012
NOTAS E COMENTÁRIOS
Comentários sobre o parecer
“Os poderes do Ministério Público
na Ação Civil Pública” proferido por
José Manoel de Arruda Alvim Netto1
Gisele Mazzoni Welsch
Advogada. Doutoranda em Direito (Teoria Geral
da Jurisdição e Processo) pela PUCRS. Mestre em
Direito (Teoria Geral da Jurisdição e Processo)
pela PUCRS. Especialista em Direito Público pela
PUCRS. Professora dos cursos de graduação e pós-
graduação lato sensu da Universidade FEEVALE.
Professora dos Cursos de Especialização em Direito
Processual Civil da PUCRS e do IMED-CETRA.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 223-230, jul./set. 2012
224 Gisele Mazzoni Welsch
2
No sentido de entender pela impossibilidade de desistência infundada pelo Ministério Público,
por analogia com a ação penal pública: ABELHA. Ação Civil Pública e meio ambiente, p. 80.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 223-230, jul./set. 2012
Comentários sobre o parecer “Os poderes do Ministério Público na Ação Civil Pública”... 225
conferido ao órgão ministerial. Dessa forma, estaria o interesse público protegido
das hipóteses de conluio ou má gestão processual.
Ademais, a possibilidade de desistência da Ação Civil Pública estaria
implícita no sistema da Lei nº 7.347/1985 quando, em seu art. 5º, §3º,3 determina
que o Ministério Público deve assumir a titularidade quando a associação
autora desistir da ação. Em que pese a legislação preveja apenas a desistência
da associação, a interpretação mais coerente apontaria para a possibilidade de
desistência por qualquer dos colegitimados, inclusive pelo Ministério Público.4
Por fim, é aduzida fundamentação no sentido de necessidade de pon-
deração de princípios e interesses, pois, no caso em concreto, a desistência
da ação significaria favorecimento do interesse público, no sentido de conferir
ao processo efetividade e economia processual, já que a existência de direito
adquirido e coisa julgada tornariam a ação prejudicada e eivada de vícios.
3
Art. 5º Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar: (Redação dada pela
Lei nº 11.448, de 2007)
I - o Ministério Público; (Redação dada pela Lei nº 11.448, de 2007)
II - a Defensoria Pública; (Redação dada pela Lei nº 11.448, de 2007)
III - a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; (Incluído pela Lei nº 11.448, de 2007).
IV - a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista; (Incluído pela
Lei nº 11.448, de 2007)
V - a associação que, concomitantemente: (Incluído pela Lei nº 11.448, de 2007)
a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil; (Incluído pela Lei nº 11.448,
de 2007)
b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor,
à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turís-
tico e paisagístico. (Incluído pela Lei nº 11.448, de 2007)
§1º O Ministério Público, se não intervier no processo como parte, atuará obrigatoriamente
como fiscal da lei.
§2º Fica facultado ao Poder Público e a outras associações legitimadas nos termos deste artigo
habilitar-se como litisconsortes de qualquer das partes.
§3º Em caso de desistência infundada ou abandono da ação por associação legitimada, o Ministério
Público ou outro legitimado assumirá a titularidade ativa. (Redação dada pela Lei nº 8.078, de 1990)
§4º O requisito da pré-constituição poderá ser dispensado pelo juiz, quando haja manifesto
interesse social evidenciado pela dimensão ou característica do dano, ou pela relevância do
bem jurídico a ser protegido. (Incluído pela Lei nº 8.078, de 11.09.1990)
§5º Admitir-se-á o litisconsórcio facultativo entre os Ministérios Públicos da União, do Distrito
Federal e dos Estados na defesa dos interesses e direitos de que cuida esta lei. (Incluído pela
Lei nº 8.078, de 11.09.1990) (Vide Mensagem de veto) (Vide REsp 222582/MG - STJ)
§6º Os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajusta-
mento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título
executivo extrajudicial. (Incluído pela Lei nº 8.078, de 11.09.1990) (Vide Mensagem de veto)
(Vide REsp 222582/MG - STJ).
4
Sobre tal questão: “A leitura que deve ser feita é a de que ‘se qualquer co-legitimado ativo
(e não apenas a associação civil) desistir do pedido ou abandonar a ação civil pública ou
coletiva’” (MAZZILLI. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor,
patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses, p. 325).
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226 Gisele Mazzoni Welsch
5
“Há legitimação extraordinária autônoma quando o legitimado extraordinário está autorizado
a conduzir o processo independentemente da participação do titular do direito litigioso”
(MOREIRA. Apontamentos para um estudo sistemático da legitimação extraordinária. Revista
dos Tribunais, p. 10).
6
NERY JÚNIOR; NERY. Código de Processo Civil comentado e legislação processual civil extrava
gante em vigor, p. 1339.
7
TESHEINER. O Ministério Público não é nunca um substituto processual.
8
MAZZILLI. Aspectos polêmicos da Ação Civil Pública. Revista Magister, p. 89.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 223-230, jul./set. 2012
Comentários sobre o parecer “Os poderes do Ministério Público na Ação Civil Pública”... 227
Pode-se dizer que o Brasil possui uma legitimação plúrima e mista; plúrima
por serem vários os entes legitimados, mista por serem legitimados entes da socie-
dade civil e do Estado.9 Além disso, ao contrário do que ocorre no sistema norte-
americano, os legitimados são indicados na lei, não cabendo ao juiz, pelo menos
em princípio, a verificação do “representante adequado”.10
Interessante critério de classificação da legitimidade do Ministério
Público é desenvolvido por José Maria Tesheiner, o qual afirma que o órgão
ministerial não é um substituto processual, mesmo nas ações relativas a direi-
tos individuais, pois sua função institucional é a de concretização do Direito
objetivo, desempenhando verdadeira função pública, sem implicar tutela direta
de direitos subjetivos.11
9
DIDIER JR.; ZANETI JR. Curso de direito processual civil, v. 4, p. 207.
10
MATTE. Ação Civil Pública: tutela de interesses ou direitos difusos e coletivos stricto sensu. In:
TESHEINER. Processos coletivos, p. 119.
11
TESHEINER. O Ministério Público não é nunca um substituto processual.
12
ZAVASCKI. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos, p. 151.
13
ALVIM. Código de Processo Civil comentado, v. 3, p. 382-383.
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228 Gisele Mazzoni Welsch
14
ZAVASCKI. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos, p. 151.
15
BONAVIDES. Curso de direito constitucional, p. 386.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 223-230, jul./set. 2012
Comentários sobre o parecer “Os poderes do Ministério Público na Ação Civil Pública”... 229
julgada (representantes do direito fundamental à segurança jurídica — art. 5º,
XXXVI da CF/1988) e tutela do meio ambiente e patrimônio público (direitos
fundamentais igualmente tutelados pela Constituição Federal). Nessa medida
se faz necessário o controle judicial, evitando a concentração de poder no órgão
ministerial e aplicando a cláusula do devido processo legal à tutela jurisdicional
coletiva.16
Referências
ABELHA, Marcelo. Ação Civil Pública e meio ambiente. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
ALVIM, Arruda. Código de Processo Civil comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976. v. 3.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 9. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2000.
DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de direito processual civil. 7. ed. rev. ampl. e atual.
Salvador: JusPodivm, 2012. v. 4, Processo coletivo.
GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo et al. (Coord.).
Direito processual coletivo e o Anteprojeto de Código brasileiro de processos coletivos. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2007.
MATTE, Mauricio. Ação Civil Pública: tutela de interesses ou direitos difusos e coletivos stricto
sensu. In: TESHEINER, José Maria (Org.). Processos coletivos. Porto Alegre: HS, 2012.
MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor,
patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. 16. ed. rev. ampl. e atual. São Paulo:
Saraiva, 2003.
MAZZILLI, Hugo Nigro. Aspectos polêmicos da Ação Civil Pública. Revista Magister, v. 1, n. 4,
p. 89-99, fev./mar. 2006.
MAZZILLI, Hugo Nigro. Tutela dos interesses difusos e coletivos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Apontamentos para um estudo sistemático da legitimação
extraordinária. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 404.
NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado e legislação
processual civil extravagante em vigor. 6. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
16
DIDIER JR.; ZANETI JR. Curso de direito processual civil, v. 4, p. 214.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 223-230, jul./set. 2012
230 Gisele Mazzoni Welsch
TESHEINER, José Maria Rosa. Ações coletivas no Brasil: atualidades e tendência. In: TESHEINER,
José Maria Rosa; MILHORANZA, Mariângela Guerreiro. Temas de direito e processos coletivos. Porto
Alegre: HS, 2010.
TESHEINER, José Maria. O Ministério Público não é nunca um substituto processual. Disponível
em: <http://www.tex.pro.br/tex/listagem-de-artigos/353-artigos-abr-2012/8468-o-ministerio-
publico-nao-e-nunca-um-substituto-processual-uma-licao-heterodoxa>. Acesso em: 26 abr. 2012.
VARGAS, Abraham Luis. La legitimación activa en los processos colectivos. In: OTEIZA, Eduardo
(Coord.). Procesos colectivos. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni Editores, 2006.
ZAVASCKI, Teori Albino. Ação Civil Pública: competência para a causa e repartição de atribuições
entre os órgãos do Ministério Público. In: ASSIS, Araken de et al. (Org.). Processo coletivo e outros
temas de direito processual: homenagem 50 anos de docência do Professor José Maria Rosa
Tesheiner, 30 anos de docência do Professor Sérgio Gilberto Porto. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2012.
ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
WELSCH, Gisele Mazzoni. Comentários sobre o parecer “Os poderes do Ministério Público na
Ação Civil Pública” proferido por José Manoel de Arruda Alvim Netto. Revista Brasileira de Direito
Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 223-230, jul./set. 2012.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 223-230, jul./set. 2012
Por que a prova de ofício contraria o
devido processo legal? Reflexões na
perspectiva do garantismo processual
Sérgio Luiz de Almeida Ribeiro
Mestrando em Direito Processual Civil
na PUC-SP. Mestrando Direito Processual
na Universidad Nacional de Rosario
(UNR – Argentina). Advogado em São Paulo.
1
El garantismo procesal. Rosario: Juris, 2010. p. 98.
2
Repensando a prova de ofício. Revista de Processo – RePro, v. 35, n. 190, p. 315. Ressalta-se que
também é de Glauco Gumerato Ramos o texto que — o que tudo indica — pela primeira vez no Brasil
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 231-238, jul./set. 2012
232 Sérgio Luiz de Almeida Ribeiro
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 231-238, jul./set. 2012
Por que a prova de ofício contraria o devido processo legal? Reflexões na perspectiva do garantismo processual 233
Além disso, o devido processo legal, por meio de seus subprincípios, permite
que a tutela jurisdicional seja formada mediante um debate ético entre as partes
que compõe o processo, conforme nos ensina Celso Ribeiro Bastos:
4
BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários à Constituição do Brasil.
São Paulo: Saraiva, 1988-1989. p. 264.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 231-238, jul./set. 2012
234 Sérgio Luiz de Almeida Ribeiro
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 231-238, jul./set. 2012
Por que a prova de ofício contraria o devido processo legal? Reflexões na perspectiva do garantismo processual 235
Como se defende aqui, a produção da prova integra o direito de ação/
defesa do indivíduo e, se a parte tem a prerrogativa de pleitear a prestação
jurisdicional em momento que entender oportuno, ela deve ter também asse
gurada a decisão de produzir prova de acordo com sua vontade, sob pena de
se constituir numa medida autoritária em relação ao exercício do direito de
ação e defesa da parte.
Não há coerência lógica entre a vedação de o juiz em agir de ofício em
sede de tutela antecipada, justamente sob o argumento de ferir a liberdade
individual da parte em pleitear quando e como a tutela jurisdicional de urgên-
cia lhe é necessária, com a admissão de poderes instrutórios oficiosos para o
juiz buscar a “verdade real” para entregar a tutela jurisdicional.
A explicação, que não parece lógica para esta discrepância, é de que a
tutela antecipada se relaciona diretamente com o direito material — logo, não
pode o juiz interferir na vontade das partes —, ao passo que o direito à prova
se aproxima do direito processual, cuja atividade do juiz não pode ser limitada
pela vontade das partes, pois tem o magistrado intenção de julgar bem, com
base em uma — supostamente legítima — busca da “verdade real”.
Esquece-se, porém, que a “verdade real” é aquela que resultou no conflito
de interesse entre as partes, pois cada uma das partes tem um entendimento
próprio sobre o que seja a sua “verdade real”, e somente elas serão capazes de
reconstruir os fatos como eles realmente aconteceram.
Ademais, o garantismo processual entende que não é escopo do processo
buscar a verdade real. Vejamos o que diz de Adolfo Alvarado Veloso:
5
El garantismo procesal. Rosário: Juris, 2010. p. 33-34, nota 47.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 231-238, jul./set. 2012
236 Sérgio Luiz de Almeida Ribeiro
6
LOPES, Maria Elizabeth de Castro. O juiz e o princípio dispositivo. São Paulo: Revista dos Tribu-
nais, 2006. p. 74.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 231-238, jul./set. 2012
Por que a prova de ofício contraria o devido processo legal? Reflexões na perspectiva do garantismo processual 237
Ao aproximarmos a evidência do sujeito e do sentido, imposta pela
ideologia, como sugere Pêcheux (1988), podemos compreender a difi-
culdade existente no jogo de efeitos ideológicos do discurso do Direito.
Quando dissimulamos a “intersubjetividade do falante” do sujeito do
direito (sujeito-juiz) pudemos observar outro valor em sua enunciação,
e não o ditado pela lei: foi possível observar a história se inscrevendo no
discurso desse sujeito constituindo o sujeito jurídico em sua enunciação
durante uma audiência. Levanto em conta o que Elia (2004) ensina
sobre o inconsciente psicanalítico, como algo que não é articulável,
mas que pode já estar articulado ao nível do inconsciente e do sujeito
a esse inconsciente que se articula sem seu arbítrio, pudemos observar
a produção de atos falhos e lapsos discordantes das características que
deveriam estar presentes no sujeito do direito, sujeito do enunciado do
termo de audiência ou da sentença.7
Significa que a prova de ofício faz do juiz um investigador do fato, mas não
aquele relacionado com o processo, mas sobre o fato surgido do seu inconsciente,
fazendo com que ele acabe por substituir os argumentos das partes por suas con-
vicções pessoais sobre o objeto da demanda.
Quando o juiz passa a investigar os fatos, ele deixa de dar crédito às ale-
gações das partes, uma vez que em seu âmago já definiu uma situação fática
preestabelecida no seu inconsciente (psique), utilizando-se de alguns elemen-
tos contidos no processo e buscando outros para justificar na sentença aquela
situação imaginária iniciada com sua investigação pessoal. Ou seja, afasta-se das
regras jurídico-processuais preestabelecidas, para trabalhar com elementos
metajurídicos (= justiça, verdade, ética, ponderação) que se amoldem ao pró-
prio sentimento subjetivo sobre o que é certo ou não, justo ou não, ético ou não.
7
MONTE-SERRAT, Dionéia Motta; TFOUNI, Leda Verdiani. A dimensão política do sujeito na cadeia
discursiva. Disponível em: <http://www.red.unb.br/index.php/les/article/viewFile/2829/2441>.
Acesso em: 16 jul. 2012.
8
MARIANI, Bethania. Subjetividade e imaginário linguístico. Disponível em: <http://www3.unisul.
br/paginas/ensino/pos/linguagem/0303/6%20art%204%20P.pdf>. Acesso em: 16 jul. 2012.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 231-238, jul./set. 2012
238 Sérgio Luiz de Almeida Ribeiro
ensejo à disputa dos litigantes pelo direito e, por meio da iniciativa probatória ofi-
ciosa, o juiz se sente livre e acaba por buscar aquele fato imaginário idealizado por
ele e que converge com a sua expectativa formada previamente ao início de sua
investigação, lamentavelmente fomentada por fatores arbitrários e inquisitivos.
Neste instante, o juiz perde sua imparcialidade investigando ele próprio
os fatos. Há atribuição inconsciente de um valor particular, que se distancia
daquele valor preconizado na lei e buscado pelas partes.
Portanto, ao contrário do que se tem sustentado em defesa da prova ofi-
ciosa, o aspecto psicológico que permeia a teoria da decisão jurisdicional — seja
quanto ao proceder, seja quanto ao propriamente decidir — mostra que, com a
ampliação de poderes instrutórios do juiz, não há uma adequação melhor dos fatos
apresentados no processo à respectiva norma jurídica de incidência. O que ocorre,
é que os fatos investigados pelo juiz são aqueles criados no seu inconsciente e nas
suas convicções ideológicas acerca do assunto que ele terá que decidir.
4 Conclusão
Por tudo isso, temos que a prova de ofício contraria o devido processo
legal, uma vez que fica o processo privado de uma participação mais abran-
gente das partes, que é a essência do garantismo processual que, não tenho
dúvida, é projetado desde a Constituição, e por isso mesmo deveria ser traba-
lhado e concretizado no dia a dia pragmático da praxe judiciária, civil ou penal.
A sentença proferida pelo juiz tem que ser formada pelos argumentos fáti-
cos e jurídicos trazidos pelas partes, que o auxiliam na formação da sua convicção,
permitindo que a lei seja aplicada corretamente ao caso concreto e se obtenha
um pronunciamento decorrente da dinâmica dialética que legitima o processo.
A iniciativa probatória feita pelo juiz o afasta da imparcialidade, já que
como investigador dos fatos, psicologicamente, o magistrado vai atrás das
suas convicções ideológicas e, inconscientemente, busca sua “verdade” — a
sua verdade! — no processo, privando as partes de participarem amplamente
na formação do provimento jurisdicional.
E por esses motivos — dentre tantos outros fundados na perspectiva
dogmática que orienta o garantismo processual — que a denominada prova
de ofício é incompatível com o devido processo legal.
RIBEIRO, Sérgio Luiz de Almeida. Por que a prova de ofício contraria o devido processo legal?:
reflexões na perspectiva do garantismo processual. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro,
Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 231-238, jul./set. 2012.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 231-238, jul./set. 2012
RESENHAS
DIDIER JR., Fredie. Sobre a Teoria Geral do Processo,
essa desconhecida. Salvador: JusPodivm, 2012.
Em outra primorosa iniciativa, a Editora JusPodivm traz a lume a obra
Sobre a teoria geral do processo, essa desconhecida, versão comercial da original
tese que Fredie Didier Jr. defendeu, em fevereiro de 2012, para conquistar o
merecidíssimo título de Livre-Docente pela Universidade de São Paulo (USP).
Aviso preliminar que se impõe: a utilização da palavra “sobre”, e não
“de”, no título, é proposital para destacar o objeto da tese. Não se trata “de”
uma investigação sobre TGP (simples explicação dos conceitos tradicionais
de jurisdição, ação, processo e dos temas correlatos), mas de um estudo
“sobre” a Teoria Geral do Processo. Aprofundam-se, assim, o significado, os
pressupostos e as consequências da Teoria Geral do Processo, realmente uma
desconhecida quando se investiga a rarefeita quantidade e profundidade de
estudos sobre ela.
Fredie parte da análise epistemológica e filosófica da Teoria Geral do
Direito, para explicar conceitos fundamentais e aspectos comuns ao objeto
em estudo. Em seguida, Fredie diferencia expressões comumente utilizadas
pelos processualistas, como “processo”, “Ciência do Direito Processual”, “Direito
Processual”, “Parte Geral” e, finalmente, “Teoria Geral do Processo”. Aspectos
que também tocam o tema são investigados, tais como a relação do pro-
cesso penal com a chamada “TGP” e a polêmica sobre se há, efetivamente,
uma Teoria Geral do Processo que seja comum também à seara criminal.
Logo após, o autor alcança outra etapa importante de seu estudo: a
utilidade da Teoria Geral do Processo. Aqui, são aprofundados diversos aspec
tos, que, de tão densos e relevantes, são de impossível resumo em breve rese-
nha. Porém, tentando desempenhar satisfatoriamente a missão desta notícia,
destacamos a “função bloqueadora” da “TGP”, que contribui também para o
controle da fundamentação das decisões (impede a diversidade descompro-
missada de interpretações ao exigir que toda interpretação resulte de argu-
mentação coerente com padrões dogmáticos); a necessidade do bom uso de
conceitos lógico-jurídicos processuais para a correta interpretação da juris-
prudência; a construção, pela Ciência Dogmática do Processo, dos conceitos
processuais jurídico-positivos; e, finalmente, a possibilidade de, pela ade-
quada dimensão da “TGP”, diminuir-se a equivocidade terminológica, “terrível
moléstia de que a ciência em geral pode ser vítima”, como alerta o autor em
trecho da referida tese.
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242 Bruno Garcia Redondo
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Resenha 243
DIDIER JR., Fredie. Sobre a Teoria Geral do Processo, essa desconhecida. Salvador: JusPodivm, 2012.
Resenha de: REDONDO, Bruno Garcia.Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte,
ano 20, n. 79, p. 241-243, jul./set. 2012.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 241-243, jul./set. 2012
ATAÍDE JÚNIOR, Jaldemiro Rodrigues de.
Precedentes vinculantes e irretroatividade do
direito no sistema processual brasileiro: os
precedentes dos tribunais superiores e sua
eficácia temporal. Curitiba: Juruá, 2012.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 245-246, jul./set. 2012
246 José Henrique Mouta Araújo
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 245-246, jul./set. 2012
BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Processo
constitucional e Estado Democrático de Direito.
2. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2012.
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248 Fernanda Gomes e Souza Borges, Lúcio Delfino
BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Uma introdução ao estudo do direito político. Revista do
1
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 247-251, jul./set. 2012
Resenha 249
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250 Fernanda Gomes e Souza Borges, Lúcio Delfino
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Resenha 251
reconstrução cognitiva do caso concreto, por meio da moderna e
inafastável estrutura normativa (devido processo legal) e dialética
(em contraditório) do processo, não havendo outro modo substi-
tutivo racional e democrático de fazê-lo.
Lúcio Delfino
Doutor em Direito das Relações Sociais
(Direito Processual Civil) pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP). Membro do Instituto
Brasileiro de Direito Processual. Membro do Instituto
Ibero-Americano de Direito Processual.
Membro do Instituto Pan-Americano de Direito
Processual. Diretor da Revista Brasileira de
Direito Processual. Advogado.
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256 Índice
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G MODELO ACUSATÓRIO
GARANTISMO PROCESSUAL - Ver: O garantismo processual. Artigo de:
- Ver: O garantismo processual. Artigo de: Adolfo Alvarado Velloso......................................... 13
Adolfo Alvarado Velloso......................................... 13
P
I PARTICIPAÇÃO DIALÉTICA
IMPARCIALIDADE DO JUIZ - Ver: Por que a prova de ofício contraria o devido
- Ver: Por que a prova de ofício contraria o devido processo legal? Reflexões na perspectiva do
processo legal? Reflexões na perspectiva do garantismo processual. Notas e Comentários
garantismo processual. Notas e Comentários de: Sérgio Luiz de Almeida Ribeiro....................231
de: Sérgio Luiz de Almeida Ribeiro....................231
PODER JUDICIÁRIO
IMPOSSIBILIDADE DA LIMITAÇÃO DA EXECUÇÃO - Ver: Comentários sobre o parecer “Os poderes
- Ver: Regime jurídico único, coisa julgada e a do Ministério Público na Ação Civil Pública”
competência residual da Justiça do Trabalho: proferido por José Manoel de Arruda Alvim
em defesa da inconstitucionalidade da OJ Netto. Notas e Comentários de: Gisele Mazzoni
nº 138 da SDI-I do TST. Artigo de: Cynara Welsch........................................................................223
Monteiro Mariano..................................................161
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
INCOMPATIBILIDADE
- Ver: O princípio do contraditório e a coopera-
- Ver: Por que a prova de ofício contraria o devido
ção no processo. Artigo de: Leonardo Carneiro
processo legal? Reflexões na perspectiva do
da Cunha...................................................................147
garantismo processual. Notas e Comentários
de: Sérgio Luiz de Almeida Ribeiro....................231
PRINCÍPIOS DA ISONOMIA E DA RAZOÁVEL
INTERESSE PÚBLICO E PRIVADO EXISTENTES DURAÇÃO DO PROCESSO
NO INTERIOR DO PROCESSO - Ver: Da análise da desistência do recurso
- Ver: Da análise da desistência do recurso excepcional a partir da objetivação do
excepcional a partir da objetivação do processo constitucional subjetivo. Artigo de:
processo constitucional subjetivo. Artigo de: Magno Federici Gomes, Daniel Lin Santos..... 59
Magno Federici Gomes, Daniel Lin Santos..... 59
PROCEDIMENTO RECURSAL PRINCIPAL
J E INCIDENTAL
JUIZ - Ver: Da análise da desistência do recurso
- Ver: O princípio do contraditório e a coopera- excepcional a partir da objetivação do
ção no processo. Artigo de: Leonardo Carneiro processo constitucional subjetivo. Artigo de:
da Cunha...................................................................147 Magno Federici Gomes, Daniel Lin Santos..... 59
L PROCESSO
LIMITES DEMOCRÁTICOS NO EXERCÍCIO - Ver: Processo e direitos fundamentais –
DO PODER Brevíssimos apontamentos. Artigo de:
- Ver: O garantismo processual. Artigo de: Carlos Alberto Molinaro, Mariângela
Adolfo Alvarado Velloso......................................... 13 Guerreiro Milhoranza............................................127
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Índice 257
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Instruções para os autores
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 259-260, jul./set. 2012
260 Instruções para os autores
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 259-260, jul./set. 2012