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REVISTA BRASILEIRA DE DIREITO PROCESSUAL - RBDPro

ano 20 . n. 79 . julho/setembro 2012 - Publicação trimestral


79
ISSN 0100-2589

79
Revista Brasileira de
Revista Brasileira de DIREITO PROCESSUAL

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DOUTRINA, NOTAS E COMENTÁRIOS e RESENHAS constante
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ano 20 . jul./set. 2012

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REVISTA BRASILEIRA DE DIREITO PROCESSUAL – RBDPro
Diretores
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Fernando Rossi

Conselho Editorial
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R454 Revista Brasileira de Direito Processual : RBDPro. – ano 15,


n. 59, (jul./set. 2007)- . – Belo Horizonte: Fórum, 2007-

Trimestral
ISSN 0100-2589

Publicada do n. 1, jan./mar. 1975 ao n. 14, abr./jun.1978
pela Vitória Artes Gráfica, Uberaba/MG.
Publicada do n. 15, jul./set. 1978 ao n. 58, abr./jun. 1988
pela Editora Forense, Rio de Janeiro/RJ.
Publicação interrompida em 1988 e retomada pela
Editora Fórum em 2007.
1. Direito processual. I. Fórum.
CDD: 347.8
CDU: 347.9
© 2012 Editora Fórum Ltda.
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico ou mecânico,
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são de responsabilidade exclusiva de seus autores.
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Sumário

Editorial ..........................................................................................................................................................7

DOUTRINA
Artigos

O garantismo processual
Adolfo Alvarado Velloso..............................................................................................................................................13
1 O que é o processo: sua causa e razão de ser.................................................................... 14
2 Os princípios que regulam o processo................................................................................. 15
3 Os sistemas judiciais.................................................................................................................... 20
3.1 O sistema acusatório ou dispositivo ..................................................................................... 20
3.2 O sistema inquisitório................................................................................................................. 23
3.3 O sistema misto............................................................................................................................ 24
4 O que é o devido processo....................................................................................................... 27
5 O que é o garantismo processual........................................................................................... 30
6 O que é o ativismo judicial a partir da ótica garantista.................................................. 33

Tipologia dos direitos humanos de terceira dimensão e acesso à justiça


Eduardo Maia Tenório da Cunha, Carlos Henrique Bezerra Leite............................................................39
Introdução...................................................................................................................................... 39
1 As dimensões dos direitos humanos como critério pedagógico............................... 41
2 Dos direitos individuais aos interesses metaindividuais............................................... 43
2.1 A evolução dos direitos humanos e os modelos de estado......................................... 43
2.2 O Estado Democrático de Direito e os direitos humanos de terceira dimensão.. 44
2.3 Direitos versus interesses de terceira dimensão............................................................... 45
3 Interesses metaindividuais e acesso à justiça.................................................................... 46
3.1 Acesso à justiça como direito humano................................................................................ 46
3.2 Critérios para identificação dos interesses metaindividuais........................................ 47
3.3 Instrumentos de tutela dos interesses metaindividuais................................................ 49
3.3.1 Instrumentos judiciais................................................................................................................ 49
3.3.2 Instrumentos extrajudiciais...................................................................................................... 51
Considerações finais.................................................................................................................... 55
Referências..................................................................................................................................... 57

Da análise da desistência do recurso excepcional a partir da objetivação do processo


constitucional subjetivo
Magno Federici Gomes, Daniel Lin Santos.........................................................................................................59
1 Introdução...................................................................................................................................... 60
2 Princípios constitucionais e interesse público no âmbito da novel sistemática
de julgamento dos Recursos Especiais................................................................................. 64
3 A decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça na Questão de Ordem
Suscitada no Recurso Especial nº 1.063.343 e o instituto da desistência recursal –
Aparente conflito entre interesse público e privado dentro do processo............... 68
4 O fenômeno da “objetivação” do processo subjetivo – Mudança de paradigma. 73
5 O processo de coletivização no anteprojeto do novo Código de Processo Civil
(PLS nº 166/2010)......................................................................................................................... 75
6 Alternativa à solução desenhada pelo Superior Tribunal de Justiça......................... 78
7 Conclusões..................................................................................................................................... 86
Referências..................................................................................................................................... 88
A divergência de interpretação dentro de um mesmo Tribunal – Análise comparativa do
sistema do common law e da solução existente no direito brasileiro
Júlia Schledorn de Camargo......................................................................................................................................91
1 Introdução...................................................................................................................................... 91
2 O precedente no common law e no civil law..................................................................... 92
3 A divergência de interpretação dentro do próprio Tribunal e soluções
existentes para resolução do problema no common law e civil law......................... 97
4 Análise do caso concreto e solução encontrada no direito brasileiro pelo STJ...102
5 Conclusão.....................................................................................................................................108
Referências...................................................................................................................................109

A decisão de suspensão de recursos repetitivos em razão de recurso representativo


de controvérsia – Impugnabilidade e proteção em face de risco de dano
Marco Antonio dos Santos Rodrigues............................................................................................................... 111
1 Introdução – A “crise” dos tribunais superiores...............................................................111
2 O regime de julgamento de recursos repetitivos...........................................................113
2.1 Impugnabilidade da decisão do recurso sobrestado aplicando o
entendimento do recurso paradigma................................................................................117
3 A decisão de suspensão de recursos de idêntica questão de direito......................120
3.1 Possibilidade de impugnação...............................................................................................120
3.2 Cabimento de suspensão dos efeitos do acórdão recorrido e que teve
seu recurso suspenso................................................................................................................122
4 Conclusões...................................................................................................................................125
Referências...................................................................................................................................126

Processo e direitos fundamentais – Brevíssimos apontamentos


Carlos Alberto Molinaro, Mariângela Guerreiro Milhoranza.................................................................. 127
Considerações preliminares...................................................................................................127
1 Um breve percurso pelos direitos fundamentais e o correspondente princípio
da dignidade humana..............................................................................................................128
2 Do acesso à justiça.....................................................................................................................136
3 Do acesso à justiça e da efetividade da tutela jurisdicional como direitos
fundamentais...............................................................................................................................138
Considerações finais..................................................................................................................139
Referências...................................................................................................................................143

O princípio do contraditório e a cooperação no processo


Leonardo Carneiro da Cunha................................................................................................................................. 147

Regime jurídico único, coisa julgada e a competência residual da Justiça do Trabalho:


em defesa da inconstitucionalidade da OJ nº 138 da SDI-I do TST
Cynara Monteiro Mariano........................................................................................................................................ 161
Introdução....................................................................................................................................162
Da inconstitucionalidade da limitação da execução por ofensa à garantia da
coisa julgada e ao princípio da segurança jurídica........................................................164
Conclusão.....................................................................................................................................172
Referências...................................................................................................................................173

Crítica à tradicional opção pela teoria da correspondência como critério para a obtenção
da verdade no processo penal
Felipe Martins Pinto................................................................................................................................................... 175
1 Apontamentos sobre a teoria da correspondência.......................................................175
2 A impossibilidade ideológica, teórica e prática de se alcançar – A verdade no
processo penal a partir da teoria da correspondência.................................................178
2.1 Impossibilidade ideológica....................................................................................................179
2.2 Impossibilidade teórica............................................................................................................179
2.3 Impossibilidade prática............................................................................................................181
3 Conclusão.....................................................................................................................................188
Referências ..................................................................................................................................189

Parecer

Morte da parte. Renúncia ao direito afirmado. Impossibilidade. Ausência de representação.


Ato praticado por advogado sem poderes. Decisão homologatória. Ação rescisória
Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim........................................................................................................................ 195
1 Síntese da causa.........................................................................................................................195
2 Os vícios da decisão homologatória...................................................................................196
2.1 A renúncia como negócio jurídico unilateral...................................................................196
2.2 Problemas da renúncia ao direito afirmado no caso concreto..................................199
2.3 A decisão que homologou a renúncia...............................................................................202
3 O meio de impugnação da decisão homologatória – Ação rescisória...................204
3.1 Introdução – A rescindibilidade da decisão.....................................................................204
3.2 Hipóteses de rescindibilidade...............................................................................................205
3.2.1 Introdução....................................................................................................................................205
3.2.2 Ação rescisória em razão de a decisão rescindenda fundar-se em prova falsa
(art. 485, VI, CPC).........................................................................................................................206
3.2.2.1 Generalidades.............................................................................................................................206
3.2.2.2 O caso.............................................................................................................................................207
3.2.3 Ação rescisória em razão da obtenção de documento novo (art. 485, VII, CPC)...208
3.2.3.1 Generalidades.............................................................................................................................208
3.2.3.2 O caso.............................................................................................................................................209
3.2.4 Ação rescisória em razão de erro de fato (art. 485, IX, CPC)........................................209
3.2.4.1 Generalidades.............................................................................................................................209
3.2.4.2 O caso.............................................................................................................................................210
3.2.5 Ação rescisória em razão de violação a preceitos normativos
(art. 485, V, do CPC)....................................................................................................................210
3.2.5.1 Generalidades.............................................................................................................................210
3.2.5.2 O caso.............................................................................................................................................211
3.2.6 Ação rescisória fundada em fundamento para “invalidação” da renúncia ao
direito afirmado (art. 485, VIII, do CPC)...............................................................................215
3.3 Competência................................................................................................................................217
3.4 Sobre o rejulgamento – Iudicium rescissorium..............................................................217
4 Conclusão.....................................................................................................................................218

NOTAS E COMENTÁRIOS

Comentários sobre o parecer “Os poderes do Ministério Público na Ação Civil Pública”
proferido por José Manoel de Arruda Alvim Netto
Gisele Mazzoni Welsch.............................................................................................................................................. 223
1 Breve resumo do parecer........................................................................................................223
2 Fundamentos jurídicos do parecer......................................................................................224
3 Breves comentários à fundamentação do parecer........................................................226
3.1 Legitimação ativa do Ministério Público...........................................................................226
3.2 Inviabilidade da desistência da ação..................................................................................227
Legislação e dispositivos legais utilizados........................................................................229
Referências...................................................................................................................................229
Por que a prova de ofício contraria o devido processo legal? Reflexões na perspectiva
do garantismo processual
Sérgio Luiz de Almeida Ribeiro............................................................................................................................. 231
1 Garantismo processual e devido processo legal............................................................231
2 Iniciativa probatória das partes............................................................................................233
3 Da imparcialidade comprometida com a prova de ofício...........................................236
4 Conclusão.....................................................................................................................................238

RESENHAS

DIDIER JR., Fredie. Sobre a Teoria Geral do Processo, essa desconhecida. Salvador:
JusPodivm, 2012.
Bruno Garcia Redondo.............................................................................................................................................. 241

ATAÍDE JÚNIOR, Jaldemiro Rodrigues de. Precedentes vinculantes e irretroatividade


do direito no sistema processual brasileiro: os precedentes dos tribunais superiores
e sua eficácia temporal. Curitiba: Juruá, 2012.
José Henrique Mouta Araújo.................................................................................................................................. 245

BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Processo constitucional e Estado Democrático


de Direito. 2. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2012.
Fernanda Gomes e Souza Borges, Lúcio Delfino.......................................................................................... 247

ÍNDICE ............................................................................................................................................................................ 253

INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES..................................................................................................................259


Editorial
No mês de setembro — dias 20 e 21 — realiza-se o Congresso de Direito
Processual de Uberaba – 6. ed., com a participação de importantes processua­
listas nacionais e estrangeiros. Entre eles estarão presentes os professores
Juan Monteiro Aroca (Espanha) e Adolfo Alvarado Velloso (Argentina), ambos
representantes do garantismo processual, movimento filosófico que se opõe
vigorosamente ao chamado solidarismo judicial e, por essa razão, ataca a visão,
hoje predominante, de um juiz ativista e comprometido, a todo custo, com a
busca da “verdade real” e que atua em prol do alcance de uma decisão “justa”.
Segundo a perspectiva garantista, os ideais “verdade” e “justiça” — valores pura­
mente subjetivos — não podem jamais ser colocados acima da Constituição,
de sorte que cumpre ao juiz, isso sim, respeitar, e fazer respeitar, as garantias
constitucionais, entre elas sobretudo aquelas que atribuem contornos ao
devido processo legal, sendo inadmissível, por essa ótica, um protagonismo
judicial voltado a desconsiderá-las ou relativizá-las, por mais nobres que sejam
os motivos daquele que é revestido do poder jurisdicional.
Vamos a apresentação de mais esta edição da RBDPro:
1 O garantismo processual. O ilustrado professor argentino Adolfo
Alvarado Velloso desenvolve neste texto, traduzido pela pena competente de
Glauco Gumerato Ramos, os diversos fundamentos dogmáticos do garantismo
processual, na perspectiva das Constituições modernas e dos sistemas proces-
suais conhecidos.
2 Tipologia dos direitos humanos de terceira dimensão e acesso à justiça.
Eduardo Maia Tenório da Cunha e Carlos Henrique Bezerra Leite analisam a evo-
lução dos direitos humanos, sobretudo aqueles alocados na terceira dimensão,
tudo com base no acesso à justiça.
3 Da análise da desistência do recurso excepcional a partir da objetiva­
ção do processo constitucional subjetivo. Magno Federici Gomes e Daniel Lin
Santos fazem análise de polêmico acórdão da lavra do Superior Tribunal de
Justiça, que definiu a impossibilidade de desistência pelo recorrente, que teve
seu recurso especial selecionado como representativo de uma determinada
controvérsia, quando já instruído e afetado para julgamento através da Lei de
Recursos Repetitivos. A posição advogada pelos processualistas segue rumo a
uma opção diversa: a possibilidade da desistência recursal do processo consti-
tucional subjetivo, sem prejuízo da apreciação objetiva pela Corte da matéria
jurídica aplicável à multiplicidade de recursos especiais amparados em idêntica
questão de direito.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 7-9, jul./set. 2012
8 Editorial

4 A divergência de interpretação dentro de um mesmo Tribunal – Análise


comparativa do sistema do common law e da solução existente no direito bra­
sileiro. Júlia Schledorn de Camargo examina o problema da divergência intra
muros dentro de um mesmo tribunal — com enfoque no Superior Tribunal de
Justiça, que é o competente para dirimir a divergência de entendimentos em
outros tribunais e, assim, pacificar a interpretação da lei — e as soluções exis-
tentes no common law e no direito brasileiro.
5 A decisão de suspensão de recursos repetitivos em razão de recurso repre­
sentativo de controvérsia – Impugnabilidade e proteção em face de risco de dano.
Marco Antonio dos Santos Rodrigues defende: i) a impugnabilidade da decisão
que determina a suspensão de recurso extraordinário em virtude de recurso
representativo de controvérsia; e ii) o cabimento de ação cautelar para buscar
a sustação dos efeitos do acórdão recorrido pelo recurso sobrestado, caso pre-
sentes os requisitos autorizativos da medida de urgência.
6 Processo e direitos fundamentais – Brevíssimos apontamentos. Carlos
Alberto Molinaro e Mariângela Guerreiro Milhoranza desenvolvem estudo cuja
tônica é alinhar considerações relativas a uma interdependência entre processo
e direitos fundamentais na perspectiva do Estado de Direito.
7 O princípio do contraditório e a cooperação no processo. Leonardo
Carneiro da Cunha trabalha o contraditório em sua visão dinâmica, como diá-
logo entre partes e juiz e como influência daquelas no convencimento deste,
seja com relação aos fatos, seja ainda no que concerne à matéria de direito. E
é segundo essa tônica que também alude ao modelo cooperativo de processo
como o mais adequado ao Estado Democrático de Direito, realçando os cha-
mados deveres de cooperação.
8 Regime jurídico único, coisa julgada e a competência residual da Justiça
do Trabalho: em defesa da inconstitucionalidade da OJ nº 138 da SDI-I do TST.
Cynara Monteiro Mariano aborda o tema da competência residual da Justiça
do Trabalho após a implantação do Regime Jurídico Único, instituído pela
Constituição Federal de 1988, bem assim os reflexos da ampliação da compe-
tência após a edição da Emenda Constitucional nº 45/2004.
9 Crítica à tradicional opção pela teoria da correspondência como critério
para a obtenção da verdade no processo penal. Felipe Martins Pinto demonstra a
inconveniência da teoria filosófica da correspondência — sob uma perspectiva
teórica, ideológica e prática — para nortear a obtenção da verdade no processo
penal no panorama de um Estado Democrático de Direito. Argumenta que no
processo penal, cuja natureza é cognitiva, é possível almejar tão somente uma
verdade relativa, submetida a condicionantes e limites próprios do modelo jurí-
dico adotado pelo ordenamento jurídico.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 7-9, jul./set. 2012
Editorial 9

A edição traz, outro giro, interessante parecer de autoria do festejado


Professor Fredie Didier Jr., escrito em coautoria com Daniela Bomfim, no qual
se trabalham os problemas atinentes à renúncia praticada, via advogado, por
pessoa já falecida e se defende o uso da ação rescisória como meio de impug-
nação da decisão que a homologou.
Na seção “Notas e Comentários”, por sua vez, há dois breves ensaios: o
primeiro, escrito por Gisele Mazzoni Welsch, destinado a comentar parecer,
elaborado pelo Professor José Manoel de Arruda Alvim Neto, sobre os pode-
res do Ministério Público na ação civil pública; e outro, elaborado por Sérgio
Luiz de Almeida Ribeiro, reservado a trabalhar, numa perspectiva garantista, a
incoe­rência da prova de ofício com o devido processo legal.
Finalmente, publicam-se algumas resenhas como sugestão de leitura
atinentes a obras dos professores Fredie Didier Jr., Ronaldo Brêtas de Carvalho
Dias e Jaldemiro Rodrigues de Ataíde Júnior.
Boa leitura!

Os Diretores

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 7-9, jul./set. 2012
DOUTRINA
Artigos
O garantismo processual1
Adolfo Alvarado Velloso
Professor de Teoria Geral de Direito Processual
em várias Universidades da América. Diretor do
Mestrado em Direito Processual da Universidad
Nacional de Rosario (UNR – Argentina). Presidente
do Instituto Argentino de Derecho Procesal Garantista.
Ex-Presidente do Instituto Panamericano de Derecho
Procesal. Currículo completo pode ser visualizado
em <www.adolfoalvarado.com.ar>.
E-mail: <aav@alvarado-abogados.com>.

Resumo: O texto aborda diversos fundamentos dogmáticos do garantismo


processual na perspectiva das Constituições modernas e dos sistemas
processuais conhecidos, fundamentalmente na experiência ocidental da
Ibero-América e Europa continental. Argumenta, ademais, que o denomi-
nado ativismo judicial é incompatível o equilíbrio processual decorrente da
cláusula do devido processo legal.

Palavras-chave: Constituição. Processo jurisdicional. Devido processo legal.


Garantismo processual. Modelo acusatório. Processo civil. Processo penal.
Limites democráticos no exercício do poder.

Sumário: 1 O que é o processo: sua causa e razão de ser – 2 Os princípios


que regulam o processo – 3 Os sistemas judiciais – 4 O que é o devido
processo – 5 O que é o garantismo processual – 6 O que é o ativismo judi­
cial a partir da ótica garantista

Glauco Gumerato Ramos2 pediu-me para intervir nesta sua obra que
pretende mostrar aos juristas brasileiros a existência do árduo e recorrente
debate doutrinário que teve início na última década do século passado e que
hoje segue vigente entre alguns processualistas argentinos e ibero-america-
nos em geral.

Tradução do original em espanhol de Glauco Gumerato Ramos.


1

Glauco é aluno egresso da 11ª turma do curso de Mestrado em Direito Processual ministrado
2

na Faculdade de Direito da Universidade Nacional de Rosario (UNR), Argentina. Frequentou


o curso regularmente no período de dois anos, através de oito módulos de ensino intensivo
(full time) com duração de uma semana cada. Graduado no final de 2009, a frequência de suas
viagens ao meu país e o contato que ali teve com mestrandos de quase todos os lugares da
América espanhola permitiram-lhe descobrir o tema que hoje se apresenta neste seu livro.
Preo­cupado com o teor das discussões que presenciou nos mais diversos congressos da nossa
especialidade, vislumbrou a necessidade de mostrar, em seu próprio país, o conteúdo e o alcance
dos temas em análise, mediante os quais se coloca em discussão o próprio sistema judicial.
Máxime quando vários dos tópicos em debate nasceram na própria doutrina brasileira.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 13-37, jul./set. 2012
14 Adolfo Alvarado Velloso

Com efeito, instruiu-me acerca daquilo a que me cabia escrever neste livro:
explicar o que é o movimento filosófico autodenominado garantismo processual,
hoje com ramificações por toda a América hispanoparlante, Espanha, Itália e no
próprio Brasil. De tal modo, o leitor poderá comparar seu conteúdo com o da
filosofia mostrada pelo discurso do chamado ativismo judicial, a respeito do qual
aqui, neste mesmo livro, escreveu um eminente autor de meu país.
Para tanto, não tenho outra alternativa a não ser abusar da paciência do
leitor e, assim, recordar conceitos por todos conhecidos, mas, a respeito dos
quais, tais movimentos (ativismo e garantismo) discrepam contundentemente
por diferentes razões, fonte e fim.
E isso porque o garantismo postula e pretende a irrestrita e plena vigência
do sistema acusatório ou dispositivo de ajuizamento, tanto no processo penal
como no civil, enquanto o ativismo aceita e mantém o sistema inquisitivo ou
inquisitório para todo tipo de processo (penal ou civil). E, como logo se verá,
ambos são claramente antagônicos e incompatíveis, jurídica e moralmente.
Que esta explicação sirva como respeitosa escusa pela reiteração das
ideias que começo a expor a seguir!

1 O que é o processo: sua causa e razão de ser


Apesar de prestigiosa doutrina ter sustentado que todos sabem onde
está o processo, apesar de ninguém poder dizer o que é, tendo sido qualifi-
cado como um drama e, mais ainda, um enigma e um mistério, desde o mais
remoto passado foram várias as explicações acerca de o que é o processo, parti-
cularmente quando se trata de estabelecer sua natureza jurídica.
De minha parte, sustento faz tempo — e adianto agora brevemente —
que o processo é só um método pacífico de debate dialogal e argumentativo.3
E para explicar isso creio que o ponto de partida deve estar na inicial
determinação de sua causa: a existência de um conflito intersubjetivo de inte­
resse no plano da realidade da vida, que deve ser solucionado o antes possível
para manter a coesão do grupo social num lugar e tempo determinados.
Historicamente, tão grave problema de convivência era solucionado
só com a autodefesa, mediante a aplicação da razão da força pelos próprios
antagonistas entre si, até que se percebeu que se deveria dar preferência ao
diálogo e, portanto, à força da razão, graças a que se possibilitou a autocom­
posição, que se mantém até hoje. E com isso a sociedade ganhou muito em
tranquilidade e paz.

E não como método de investigação, tal como o concebe o sistema inquisitivo, como logo se verá.
3

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 13-37, jul./set. 2012
O garantismo processual 15
Quando, por outras razões, a autocomposição não se fazia possível, a
civilidade não deixava ao indivíduo outra alternativa — tal como ocorre até
nossos dias — que não fosse a heterocomposição pública, que opera sob a
forma de processo judicial.
A par disso, e complementando o que a pouco foi assinalado de que o pro-
cesso é um método de discussão, agora o apresento como meio4 de debate dia-
logal e argumentativo que se realiza entre dois sujeitos naturalmente desiguais
em posições anta­gônicas em relação a um mesmo bem da vida e que se igualam
juridicamente para os fins da atuação do diretor do debate (= juiz), que com isso
deve ostentar sempre três qualidades essenciais: imparcialidade, impartialidade
e independência, e tudo para assegurar a permanente bilateralidade.5
Assim concebido e a fim de completar a ideia inicialmente esboçada,
creio que nesses termos pode se afirmar que a razão de ser do processo é a
erradicação de toda força ilegítima dentro de dada sociedade, para manter um
estado perpétuo de paz e de respeito às normas adequadas de convivência que
todos devem acatar.6
Com efeito, não importa se uma corrente doutrinária considera que o ato
de julgar nada mais é do que a concretização da lei, ainda que outras ampliem
notavelmente esse critério; em todo caso é imprescindível deixar claro que a
razão de ser do processo permanece inalterada: trata-se de manter a paz social,
evitando que os particulares façam justiça pelas próprias mãos. E para isso a dis-
cussão é pacífica e regulada por lei. Finda a discussão, e desde que os próprios
interessados não logrem autocompor o conflito, sua heterocomposição será rea-
lizada pelo juiz em sua sentença que, assim vista, erige-se no objeto do processo.

2 Os princípios que regulam o processo


Da maior importância é estabelecer quais são os princípios processuais, aqui
enten­didos como regras-diretrizes expressas ou implicitamente estabelecidas

4
Atenção para essa ideia: o processo é método e, como tal, meio, não meta a atingir (a meta do
processo como meio de discussão é a obtenção de uma sentença). Por outro lado, quando o
processo é visto como método de investigação, a meta é a busca da verdade, e isso às vezes
ocorre a qualquer preço. Adianto desde já que na ocorrência de tensão entre meio e meta
(método e sentença), o pensamento garantista privilegia sempre o método, pois, do contrário,
ter-se-á que dar razão a Maquiavel: os fins justificam os meios.
5
A bilateralidade significa audiência recíproca (= contraditório). De tal modo, e graças a ela,
tudo o que diz ou faz uma das partes deve ser comunicado a outra para que diga e faça o que
pretenda a respeito. E vice-versa.
6
Fique claro desde já que, para o garantismo, o processo pouco tem que ver com a busca da
verdade, como habitualmente se diz de seu objeto ou de sua razão de ser. Voltaremos a nos
referir a esse tema.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 13-37, jul./set. 2012
16 Adolfo Alvarado Velloso

pelo legislador para que o método de ajuizamento possa operar eficazmente de


acordo com a orientação filosófico-política de quem exerce o poder em determi-
nado tempo e lugar.
Por assim ser, um princípio é simplesmente um ponto de partida. Mas, da
mesma forma que ninguém pode caminhar a parte alguma (sempre que o faz
seguirá a algum sentido), esse ponto de partida deve ser visto em função do
que se pretende achar ou atingir ao chegar (no direito privado isso se chama
causa eficiente e causa fim).
Se o que se deseja é regular um meio pacífico de debate dialético entre
dois antagonistas em pé de igualdade ante um terceiro que heterocomporá o
litígio, formular os princípios necessários para atingir tal resultado implica estabe-
lecer as linhas diretivas fundamentais que devem ser imprescindivelmente respei-
tadas para que se alcance um mínimo de coerência que supõe todo o sistema.
Quando se lê com atenção qualquer obra de direito processual, ver-­
se-á que sempre existe um capítulo destinado à pontual explicação do tema, ao
que invariavelmente se lhe denomina de “princípios processuais”. Além disso,
advertir-se-á que seu conteúdo se refere a muitas coisas que não são similares
entre si. A par disso, fala-se do princípio da igualdade, do princípio da imediação,
do princípio inquisitivo, do princípio da imparcialidade, do princípio da oralidade,
do princípio acusatório etc.
Mas, se se pensa o Direito (e isso implica meditar o que se diz e não aceitar
sem maiores críticas as opiniões alheias em razão da importância autoral de quem
as expressa) e se lê atentamente cada um de tais “princípios” e se os compara com
os demais, notar-se-á que, com essa palavra — “princípios” —, mencionam-se as
mais diver­sas coisas, algumas das quais nada tem a ver com as outras. E isso não
é bom para a adequada compreensão de cada tema e, acima de tudo, para a do
próprio fenômeno do processo, cujo termo está permeado de equivocidade por
multivocidade.
Para solucionar o problema apontado é necessário indagar a essência
mesma de cada um desses chamados “princípios” a fim de tornar possível sua
adequada metodização. E quando isso acontece, compreende-se que com tal
palavra mencionam-se indistintamente três coisas que, na verdade, devem ser
encaradas diferentemente.
E isso é assim por que a maioria dos “princípios” enunciados pelos autores
se apresenta com essência binária, como pares antinômicos: oralidade ou escri-
tura, mediação ou imediação, preclusão ou livre desenvolvimento etc. Tal fato
permite ao legislador optar por um ou por outro no momento de criar a norma.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 13-37, jul./set. 2012
O garantismo processual 17
E quando elege um deles para consagrá-lo na lei, por exemplo, a imediação,
automaticamente deixa de lado o seu par antinômico, a mediação, pois resulta
impossível aceitar que o juiz possa atuar com mediação e imediação ao mesmo
tempo.
Ao lado desses, existem outros “princípios” que se apresentam invaria-
velmente em forma unitária, já que logicamente não admitem a existência de
um par antinômico. Por exemplo: a imparcialidade do julgador (admite-se sua
parcialidade?), a igualdade das partes litigantes (admite-se sua desigualdade?),
e assim por diante.
Dadas essas óbvias diferenças e tendo em conta que alguns “princípios”
constituem a essência mesma do processo, ao passo que outros não, pois apenas
referem-se ao desenvolvimento do trâmite procedimental, é de se aceitar tranqui-
lamente a opinião daqueles que propõem denominar princípios apenas os que
sejam unitários, já que isso propicia o uso do sintagma regras procedimentais (pró-
prias das atividades de processar e sentenciar) para nomear a todos os binários.
Finalmente, na doutrina majoritária existem outros “princípios”: o acusa­
tório ou dispositivo e o inquisitório ou inquisitivo que não são unitários e, por-
tanto, não podem ser catalogados como princípios. Mas tampouco são regras,
ainda que se mostrem com aparência binária já que, em essência, são sistemas
de ajuizamento e, como tais, compreendem uma gama diferenciada de verda-
deiros princípios e de autênticas regras.
De tal maneira, nesta exposição apresentarei como tópicos diferentes o
dos princípios processuais, o sobre as regras técnicas do debate e da atividade
de sentenciar, e outro sobre os sistemas de ajuizamento.
Como compreender-se-á logo, o sistema acusatório é a conjunção dos
princípios que fazem a essência mesma do processo e aparece como tal no
mundo jurídico sem se importar com as regras que de fato7 utilizam-se para o
desenvolvimento de seu trâmite. Do mesmo modo, o sistema inquisitivo é uma
simples somatória de regras procedimentais que se exibem sempre em forma
isolada e carente dos princípios antes enunciados.8

7
É evidente que o sistema acusatório sempre gera um verdadeiro processo, pois o juiz é imparcial
e, com isso, possibilita a igualdade dos parciais. E para tais fins, é indiferente se o trâmite é oral
ou escrito, com ou sem imediação etc.
8
Bem observadas as coisas, o sistema inquisitório é um conjunto de regras que não corresponde
ao que eu qualifiquei como princípios processuais, pois o fato de o juiz ser o responsável pelo
impulso oficial e, ademais, proceder de ofício (no penal) e provar por si mesmo as afirmações
das partes civis quando elas não se ocuparam de fazê-lo, resulta numa óbvia perda da
imparcialidade nos termos em que se conceitua neste trabalho. Para terminar: nada importa
se o procedimento é oral ou escrito quando o juiz não é imparcial. O que disso resulta será
sempre um procedimento e não um verdadeiro processo.

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18 Adolfo Alvarado Velloso

Assim concebidos, os princípios processuais — propriamente ditos, sem


importar agora as denominações errôneas que lhe outorgam alguns autores,
tal como consignei acima — são apenas cinco9 e sua enunciação deve começar
pelo mais importante de todos: o da imparcialidade do julgador.
Para os fins deste trabalho importa apenas que eu me ocupe dele, já que
sua conceituação é o que liminarmente diferencia ativistas e garantistas.
A ideia de imparcialidade indica que o terceiro que atua na qualidade de
autoridade para processar e sentenciar o litígio deve ostentar claramente esse atri-
buto; para tanto, não há de estar colocado na posição de parte (= impartialidade),
já que ninguém pode ser autor, ou acusador, e juiz ao mesmo tempo; deve carecer
de todo interesse subjetivo na solução do litígio (= imparcialidade) e deve poder
atuar sem subordinação hierárquica no que toca às partes (= independência).
Mas há algo mais: a palavra imparcialidade significa várias coisas diferen-
tes da falta de interesse que comumente se menciona como vetor a definir a
atuação cotidiana do juiz.
Por exemplo, implica ausência de preconceitos de todo tipo (particular-
mente racial ou religioso); independência de qualquer opinião e, consequente-
mente, ter ouvidos surdos ante a sugestão ou persuasão da parte interessada
que possa influir em seu ânimo; não identificação com alguma ideologia deter-
minada; completo alhea­mento frente à possibilidade de dádiva ou suborno, e à
influência de amizade, ódio, piedade, da imprensa etc. Também não se envolver
pessoal nem emocionalmente com o assunto litigioso e evitar toda participa-
ção na investigação dos fatos ou na formação dos elementos de convicção, bem
como de julgar segundo seu próprio conhecimento privado do assunto, e
assim por diante.
Tudo isso que se apresenta como óbvio — e de fato o é — não se vê
tão claro quando o leitor parte a estudar o tema nas obras gerais sobre direito
processual.
Verá nelas que, da mesma forma com o que passa com o conceito de
devido processo legal, em geral se trabalha por aproximação e ninguém o define
em termos positivos.
Na realidade, creio que todos — particularmente os magistrados — suben-
tendem tacitamente o conceito de imparcialidade, mas ninguém afirma em que
consiste com precisão e sem dúvidas.

São eles: 1) a imparcialidade do julgador; 2) a igualdade dos parciais (partes) que litigam; 3) a
9

transitoriedade do processo como meio de debate; 4) a eficácia da seria procedimental prevista


pelo legislador; e 5) a moralidade no debate. O desenvolvimento integral do tema é feito em
meu El debido proceso de la garantia constitucional, com várias edições em diversos países.

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O garantismo processual 19
Por isso é que se diz despreocupada e erroneamente que os juízes do
sistema inquisitivo podem ser e de fato são imparciais nos processos em que
atuam.
E isso ocorre por que os juízes em geral, e desde sempre, vislumbram
a palavra imparcialidade a partir de uma ótica puramente pessoal, e nunca a
partir da ótica funcional, que é a perspectiva correta de enxergá-la.
É certo que um juiz impoluto do sistema inquisitivo pode não ter interesse
pessoal em que alguém saia vitorioso ou derrotado da demanda. Mas é óbvio que
o interesse deve ser funcional, da mesma forma que deve tê-lo o Ministério Público
quando acusador, em relação a quem, absurdamente, já foi afirmado que é parte
imparcial do processo penal.10
De tal forma, o juiz não deve ter interesse pessoal nem funcional no desen-
volvimento nem no resultado do processo.
Se bem se vislumbra todas as qualidades definidoras do vocábulo que acabo
de mencionar, a tarefa de ser imparcial é assaz difícil já que exige absoluta e assép­
tica neutralidade, que deve ser praticada na atividade judicante com todas as qua-
lidades que envolvem o vocábulo.
A natural consequência dessa concepção da imparcialidade gera o segundo
dos princípios e ao qual a doutrina coloca sempre sobre o primeiro. Refiro-me ao
princípio da igualdade das partes, que vigerá plenamente conforme seja o juiz devi­
damente imparcial.
Assim é já que essencialmente todo processo supõe a presença de dois
sujeitos (caráter dual do conceito de parte) que mantém posições antagôni-
cas a respeito de uma mesma questão (pretensão e resistência; protagonista
e antagonista). E bem se sabe que se isso não ocorre estar-se-á diante de um
simples procedimento, e não ante um processo.11
Se a razão do processo é erradicar a força ilegítima de uma dada socie-
dade e, com isso, igualar juridicamente as diferenças naturais que irremediavel-
mente separam os homens, é da essência lógica do processo que o debate12 se
efetue em pé de perfeita igualdade.13

10
Sem chamar a atenção para quem assim o afirma, isso é uma contradictio in terminis (uma
contradição do substantivo com adjetivo), um disparate lógico impossível de explicar. É o
mesmo que dizer o bom-mau, o belo-feio etc.
11
Desenvolvi com vagar todas essas ideias em meu Sistema processal: garantia de la libertad.
Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, 2009. 2. t.
12
Insisto recorrentemente que o debate processual é luta, e não um passeio alegre e despreocu-
pado das partes, de mãos dadas, a caminho do parque. Portanto, os contendores — protago-
nista e antagonista — não estão interessados na busca da verdade — tal como afirmam ilustres
tratadistas — senão em ganhar quanto ao que foi pretendido ou quanto ao que foi resistido.
13
Se não se aceita a imprescindível necessidade que tem as partes de discutir em situação de
exata igualdade jurídica, e com isso se mantém no processo a natural desigualdade humana,

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20 Adolfo Alvarado Velloso

Isso é tão importante que todas as Constituições do mundo consagram


de modo expresso o direito de igualdade ante a lei, proibindo situações que
implicam clara desigualdade, tais como: prerrogativa de sangue ou de nasci-
mento, títulos nobiliárquicos, foros pessoais etc., e admitindo outras que per-
mitem aplacar a desigualdade: livre acesso, aos tribunais, dos que carecem de
meios econômicos suficientes, dentre tantas.
No campo do processo, igualdade significa paridade de oportunidades
e de audiência; de tal modo, as normas que regulam a atividade de uma das
partes antagônicas não podem constituir, em relação à outra, uma situação
de vantagem ou de privilégio, tampouco pode o juiz deixar de dar tratamento
absolutamente similar a ambos os contendores.
A consequência natural desse princípio é a regra da bilateralidade ou con­
traditório: cada parte tem o irrestrito direito de ser ouvida a respeito do afirmado
e confirmado pela outra. Sem respeito a essa dinâmica, haverá um simples
arremedo de processo. Jamais um verdadeiro processo, tal como o concebo neste
trabalho, o que procuro fazer de acordo com a ordem constitucional.
A esta altura, creio já estou em condições de explicar como funciona
cada um dos sistemas judiciais referidos precedentemente.

3 Os sistemas judiciais
Vejamos agora as diferenças existentes entre ambos os sistemas já men-
cionados.

3.1 O sistema acusatório ou dispositivo


É um método bilateral no qual dois sujeitos naturalmente desiguais dis-
cutem pacificamente em situação de igualdade jurídica14 assegurada por um
terceiro que atua na qualidade de autoridade, dirigindo e regulando o debate
para, chegado ao momento, sentenciar a pretensão discutida.15

por que então optamos por adotar o processo como método de debate? Não é isso uma
simples hipocrisia? Não é mais fácil e honesto continuar a antiga tradição do uso da força?
14
A igualdade jurídica não se corresponde com a igualdade física, já que esta é natural ao homem
tanto quanto aquela é dada pela lei para aplacar essa desigualdade mediante a outorga de
uma simples igualdade no trato, e nada mais. Advirta-se que num pleito entre empregado e
empregador, ambos seguem sendo quem sempre foram durante todo o curso do processo,
por mais esforço que faça o juiz do sistema inquisitivo, que jamais poderá atingir uma igual-
dade efetivamente real entre eles. E é essa igualdade, e não outra, a que se referem todos os
Pactos que buscam a igualdade entre os homens.
15
Insista-se que a ideia lógica do processo requer a presença contemporânea de três pessoas:
quem pretende algo, aquele contra quem se pretende e o terceiro que dirigirá o debate e que
eventualmente o sentenciará. Daí sua tipificação como método bilateral.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 13-37, jul./set. 2012
O garantismo processual 21
É entendimento assente na doutrina majoritária que um processo se
desen­volve no sistema dispositivo quando as partes são donas absolutas do
impulso processual (portanto, são elas que decidem quando ativar ou paralisar
a marcha do processo), e são as que fixam os termos exatos do litígio a resolver,
afirmando e reconhecendo, ou negando, os fatos apresentados a apreciação e
julgamento, levando aos autos o material necessário para confirmar suas alega-
ções, e que podem por fim ao pleito no momento e pelos meios que desejarem.
Como se vê, isso sugere uma filosofia liberal que tem o sujeito como centro e
destinatário do sistema. A natural consequência disso é que o juiz do sistema
acusatório carece de poder impulsionador, tem de aceitar como certos os fatos
admitidos pelas partes, bem como conformar-se com os meios de prova por elas
produzidos e, com isso, deve resolver conforme o ordenamento legal, ajustan-
do-se estritamente à matéria controvertida em função daquilo que foi afirmado
e negado nas respectivas etapas.
Esse antigo sistema de processamento é o único que se pode adequar
cabalmente com a ideia lógica de processo, como fenômeno jurídico especí-
fico e, portanto, inconfundível que une os três sujeitos de uma relação dinâ-
mica e contínua.
Mas não só ao litígio puramente civil se aplicou este sistema num passado
remoto: há notícias que mostram esse fenômeno também em matéria penal nas
antigas repúblicas da Grécia e de Roma, na época dos Comícios.
Na primitiva concepção do juízo penal exigia-se que fosse iniciado atra-
vés de um acusador (já que prevalecia o interesse particular do ofendido e seus
parentes) que atuava contra o réu diante da pessoa que oficiava como julgador.
Tanto é assim que o que hoje se poderia chamar de processo penal comum
foi acusatório antes mesmo do século XII em diversos países da Europa.
Para melhor compreensão do tema examinado, cabe lembrar que o sistema
dispositivo (no âmbito do processo civil), ou acusatório (no âmbito do processo
penal), apresenta-se historicamente — e até hoje — com os seguintes aspectos
que o caracterizam:
- o processo só pode ser iniciado pelo particular interessado. Nunca
pelo juiz;
- o impulso processual só é dado pelas partes. Nunca pelo juiz;
- o processo é público, salvo casos excepcionais;
- existe paridade absoluta de direitos e igualdade de instâncias16 entre o
autor (ou acusador) e o demandado (ou réu);

Excederia muito o objeto deste trabalho a explicação do que é uma instância e todas as impli-
16

cações lógicas e jurídicas próprias do tema, coisa que fiz nos meus Sistema procesal: garantia
de la libertad e Lecciones de derecho procesal civil, de onde, inclusive, extraí o texto que aqui
desenvolvo.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 13-37, jul./set. 2012
22 Adolfo Alvarado Velloso

- o juiz é um terceiro que, como tal, é impartial, imparcial e independente de


cada um dos contendores. Portanto, o juiz é pessoa distinta do acusador;
- não cabe nem interessa ao juiz a busca “empenhada” e a todo custo
da verdade real, mas sim, muito mais modesta, porém, realisticamente,
deve buscar manter a paz social fixando fatos para adequá-los a uma
norma jurídica, tutelando assim o cumprimento daquilo que é preten-
dido pela lei;17
- não se tenta buscar a confissão do demandado ou imputado, pois sua
declaração é um meio de defesa e não de prova, pelo que se proíbe
sua provocação para tal fim (declaração indagatória e absolvição de
posições*);

17
É de todo elementar que o Direito não privilegia a Verdade como um valor jurídico de máxima
importância, já que, observando detidamente o que diz a Lei, nota-se que os valores trans-
cendentes são a paz social, com o conseguinte respeito às regras de convivência, bem como a
certeza das relações individuais atingida com o simples acatamento das normas vigentes num
dado tempo e lugar. Se a Verdade fosse um autêntico valor, e o mais importante para o Direito,
tal como sustenta o ativismo judicial, as instituições legais deveriam com ela logicamente se ali-
nhar para manter um sistema coerente e compreensível. Uma simples análise da lei processual
mostra, sem maiores dificuldades, que não é assim que se passa, já que não há compatibilidade
lógica alguma entre a denominada busca da verdade real e, por exemplo: a absolvição fundada
na dúvida; a extinção do processo sem resolução de mérito por abandono (=<caducidad de la
instancia>); a prescrição liberatória; o ônus da prova; o indeferimento da produção de uma pro-
va por eventual negligência de quem a requereu; o princípio da congruên­cia do pedido com o
dispositivo da sentença; a coisa julgada material; etc. Além disso, conforme sustentar-se-á neste
texto, os juízes não podem fazer o que bem entendem por mero voluntarismo em qualquer e
em todo caso, pois sempre estão sujeitos à Constituição e à Lei, já que devem reconhecer, por
exemplo, as caducidades, as prescrições alegadas, as preclusões, a coisa julgada, a litispendên-
cia etc. Daí eu pergunto: o leitor acredita de verdade que a Verdade importa tanto no processo
a ponto de ser erigida num valor fundamental na hora de os juízes resolverem os litígios?
* N.T.: “Declaração indagatória” e “absolvição de posições”, tradução literal de declaración
indagatoria e absolución de posiciones, são institutos do direito probatório de formação
hispânica. Em suma, são meios de provas voltados a obter a confissão judicial. A primeira figura
— declaración indagatoria — constitui-se na prerrogativa outorgada ao juiz penal de convocar
para ser ouvido o sujeito sobre o qual pesam fortes suspeitas de envolvimento com certo delito, o
que se dá na fase de instrução e como reflexo de uma postura inquisitiva. No processo argentino
a respectiva base legal está no art. 294 do Código Procesal Penal de la Nación: “Art. 294. Cuando
hubiere motivo bastante para sospechar que una persona ha participado en la comisión de un
delito, el juez procederá a interrogarla; si estuviere detenida, inmediatamente, o a más tardar en
el término de veinticuatro (24) horas desde su detención. Este término podrá prorrogarse por
otro tanto cuando el magistrado no hubiere podido recibir la declaración, o cuando lo pidiere el
imputado para designar defensor”. Já a absolución de posiciones seria o equivalente à confissão
obtida através do meio de prova que o processo civil brasileiro chama de depoimento pessoal
(CPC, arts. 342-347). Quanto a esta figura — absolución de posiciones —, o próprio Diccionario
de la lengua española da Real Academia Española, referência em todos os países do respectivo
idioma, oferece a acepção jurídica do vocábulo absolución, em especial, de posiciones: “En la
prueba de confesión o interrogatorio de las partes, acto de responder el litigante bajo juramento
o promesa a las preguntas de la otra parte” (cf. Diccionario de la lengua española. 22. ed. Madrid:
Editorial ESPASA, 2001. p. 14). Também é possível acesso virtual desse dicionário, e respectivo
vocábulo, na página web da Real Academia Española: <www.rae.es>.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 13-37, jul./set. 2012
O garantismo processual 23
- correlatamente, exige-se que quando a parte deseja declarar algo
espontanea­mente deverá fazê-lo sem mentir. Portanto, despreza-se a
inverdade;
- proíbe-se a tortura;
- o acusado sempre sabe o fato pelo qual é acusado;
- também sabe que o acusa;
- bem como as respectivas testemunhas etc.
A meu juízo, tudo isso mostra a plenitude da liberdade civil a que faz jus o
demandado (ou réu).

3.2 O sistema inquisitório18


Originariamente, foi um método unilateral19 — e segue sendo — no qual
o próprio pretendente, agora convertido em acusador de alguém (a quem sigo
chamando de resistente para manter a sinonímia dos vocábulos utilizados), impu-
ta-lhe a consumação de um delito. Essa imputação — e aqui está a perversa novi­
dade do sistema — era feita pelo mesmo agente encarregado de julgá-la. Com
efeito, se o acusador era quem afirmava (começando assim o desenvolvimento
do respectivo trâmite), resultava elementar que seria também encarregado de
prová-la. Só que — outra vez — o fazia por si e diante de si, para poder julgar a
imputação depois de se convencer da verdade da própria imputação.20 Por razões
óbvias, esse método de ajuizamento não podia desenvolver-se publicamente.
E nesse panorama as características próprias do método eram: o processo
era sempre escrito e em absoluto segredo; o juiz confundia-se na mesma pes­
soa do acusador e, portanto, era quem iniciava o procedimento, fosse porque
assim lhe parecesse necessário (era atividade própria de seu ofício) ou porque
admitia uma denúncia nomi­nada ou anônima (aqui, como reflexo de seu ofício

18
O método foi idealizado pela Organização inquisitorial como via de investigação para se chegar
ao perfeito conhecimento da verdade real. Com isso, procurou-se obter a confissão e o arrepen-
dimento do confitente, pois, o objetivo era buscar a reconciliação do pecador com a Igreja.
Só que se atingia a confissão por meio de tortura, pois isso ajudava a alma a arrancar de si o
pecado, e a condenação por heresia era acompanhada da ordem de absoluta expropriação dos
bens do condenado. Esse método de enjuizamento — certamente, de caráter penal — estava
muito afastado, em sua estrutura, daquele que a pacificação dos povos supôs ter conquistado
e que já se apresentava como uma figura triangular, que se seguiu praticando para as situa-
ções que não se constituíam em delito. Como esse método era praticado por uma organização
conhe­cida como Inquisição, passou à história com o nome de sistema inquisitório (em oposição
ao acusatório) ou inquisitivo (em oposição a dispositivo). E assim se conhece até os dias de hoje.
19
Adverte-se que a ideia lógica de procedimento existente no sistema inquisitivo requer a pre-
sença contemporânea de dois sujeitos: aquele em face de quem se pretende, e aquele que
pretende e que, ao mesmo tempo, dirige o debate e eventualmente o sentencia. Daí sua
tipificação como método unilateral.
20
Este é o típico “processo” penal vigente em quase toda a América latina, até hoje.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 13-37, jul./set. 2012
24 Adolfo Alvarado Velloso

de acionar); como que julgava era quem acusava, a fim de não pairar dúvida de
consciência (pois também deveria confessar para não viver em pecado21), bus-
cava-se a prova para confirmar suas afirmações, o que deveria ser feito de modo
que o resultado coincidisse estritamente com aquilo que a acusação sustentava
ter ocorrido no plano da realidade social; daí surge a busca pela verdade real;
acreditava-se que isso só aconteceria através da confissão,22 por isso que ela se
converteu em um meio de prova e, consequentemente, na rainha de todas as
provas (a probatio probatissima); e para atingi-la (a confissão), instrumentalizou-se
e regulamentou-se minuciosamente a tortura. Como se observa, esse método
é radicalmente diferente ao que imperou na história da sociedade civilizada.23
Na atualidade esse é o método que se pratica em quase toda a América
para o julgamento penal, e também aplicado em toda parte quanto ao processo
civil com os lógicos abrandamentos do tempo em que vivemos (por exemplo, já
não se pode dizer que haja tortura indiscriminada por todas as partes).

3.3 O sistema misto


Comparando os sistemas descritos nos parágrafos anteriores, é possível
deduzir com facilidade que os conhecidos como dispositivos ou inquisitivos são
franca e absolutamente antagônicos e que, por razões óbvias, não se pode
falar seriamente numa convivência entre eles, ainda que resulte aceitável que
podem alternar-se no tempo conforme distintas filosofias políticas imperantes
numa determinada época.
Se embargo, graças à persistente vigência na lei da filosofia inquisitiva
do auto­ritarismo que lhe está à base — e isso por mais de quinhentos anos —,
hoje vários são os códigos mistos, coisa que se pode ver com facilidade no pro-
cesso civil: todos os códigos da América são, segundo a maioria dos autores,
predominantemente dispositivos, mas com leves traços inquisitivos.
Apesar disso — e basta a simples leitura dos parágrafos anteriores — não
são exatas essas afirmações da doutrina, pois disposição e inquisição são estru-
turas que geram sistemas de processamento incompatíveis em sua essência.
Por isso é que não se apresenta factível conceber racionalmente o sistema misto.24

21
Recorde-se que os juízes originários do sistema inquisitório eram sacerdotes.
22
Até então, um sacramento que possibilitava ao pecador confessar seus pecados a um sacer-
dote para obter sua absolvição mediante duas condições: a existência de verdadeiro arre-
pendimento e o firme propósito de não voltar a pecar.
23
Desde as origens da civilização empregou o método triangular, próprio do sistema acusatório.
24
É o que ocorre com regras técnicas que orientam como processar, que podem ser modificadas
no curso do tempo. E faço a advertência, pois o que venho explicando até agora não é uma
simples regra para instrumentar o método de debate; mais do que isso, é a representação

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O garantismo processual 25
Para reforçar o que acabo de dizer recorro a um exemplo: pense-se num
corpo de leis que contenha normas claramente dispositivas em matéria de
provas. Suponha-se que, ao mesmo tempo, tal normatização consagre uma só
norma que, sob o inocente título de medidas para mejor proveer ou resolver*,
outorgue ao juiz amplíssimas faculdades para determinar de ofício qualquer
dili­gência conducente à investigação da verdade real acerca dos fatos litigiosos,
independentemente de aceitação — ou mesmo iniciativa nesse sentido — das
partes. Nesse caso, não tenho dúvida de que abundariam os mais elogiosos
comentários, tal como: o adequado equilíbrio da norma, pois, ao estatuir as regras
tradicionais em matéria de prova, recorre-se a idrias mais avançadas que concor-
dam em outorgar ao juiz uma maior quantidade de poderes voltados ao melhor
e mais autêntico conhecimento dos fatos etc.
Afirmo que tal comentário é incoerente. Basta uma simples reflexão
para justificar o que digo: a norma que confere ao juiz a faculdade de certifi-
car-se por si mesmo a respeito de um fato litigioso (= determinar a produção
da prova de ofício) não teria a aptidão de esvaziar a regulação dispositiva refe-
rente a ônus, prazos, negligência, caducidade etc., em matéria de oferecimento
e produção da prova?25
Por que, então, chegou-se historicamente ao sistema misto?
A mim parece-me que são várias as razões determinantes da atual coexis­
tência de sistemas antagônicos: a secular tradição do Santo Ofício e a abun-
dante literatura jurídica que fundamentou e justificou a atuação da Inquisição
espanhola durante mais de quinhentos anos, assim como a fascinação que o
sistema provoca em regimes tota­litários que, ao normatizar o processo, deixam
de lado o homem comum para erigir o próprio Estado como centro e eixo do
sistema (recorde-se que nossa disciplina atualmente é denominada em muitas
partes como direito jurisdicional). Além disso, toda a doutrina processual publi-
cada no continente, desde os anos 50 do século passado em diante, contribuiu

no processo de filosofias políticas antagônicas que não podem coexistir, sob risco de uma
simples e deplorável incoerência sistêmica.
* N.T.: No processo civil de formação hispânica, entende-se por medida para mejor proveer a
possibilidade de o juiz determinar a produção de algum meio de prova de ofício após a con-
clusão da fase instrutória do procedimento. Ou, para fazermos um paralelo com a linguagem
que utilizamos no processo civil brasileiro, seria a utilização dos poderes instrutórios do juiz
após o encerramento da fase probatória.
25
Se num copo de água pura e cristalina se introduz uma única gota de tinta azul, todo o conteúdo
ficará desta cor e nunca mais o que era até então. Da mesma forma ocorre com o processo: é pos-
sível afirmar que se o legislador normatizou a base de um sistema como puramente acusatório,
bastará uma só norma que tolere a prova de ofício pelo juiz para que todo o corpo legal seja tingido
pelo mais puro inquistivismo.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 13-37, jul./set. 2012
26 Adolfo Alvarado Velloso

enormemente para isso, cuja leitura e estudo acabou por formar aqueles que
ensinam nossa disciplina nos mais diversos países latino-americanos. E aqui,
naturalmente, eu também me incluo.
Finalmente, em geral, a Argentina de hoje conta com normatizações pro-
cessuais fortemente inquisitivas, tanto no processo penal quanto no civil.*
De minha parte mantenho a esperança de reverter tal estado de coisas. E
isso por simples e óbvias razões: o constituinte de 1853* normatizou em função
da dolorosa história vivida no país até então, tratando de evitar, a partir da pró-
pria Constituição, a reiteração dos erros e aberrações do passado.
De acordo com textos constitucionais vigentes na época, reitero que
a ideia do constituinte quanto à atividade de processar não pode ser mais
clara, mais pura, nem pode se conceber mais liberal: estabeleceu-se a igual­
dade diante da lei, remarcou-se a inviolabilidade da defesa em juízo, firmou-se
o princípio do juiz natural e do estado de inocência, proibiu-se a condenação
sem prévio processo fundado em lei anterior ao fato que o motivou etc.
Dentro do espírito da Constituição, tudo isso mostra que sua meta era — e
é — um processo estruturado e regulado com as peculiaridades até aqui explica-
das: fenômeno jurídico que vincula três sujeitos, dois em situação de igualdade
e outro em situação de imparcialidade (o que ocorre exclusivamente no sistema
dispositivo ou acusatório).
De nenhuma maneira creio seja possível afirmar, ao menos congruente
e fundamentadamente, que todas as garantias constitucionais há pouco enun-
ciadas façam parte do sistema inquisitivo (próprio do nosso processo penal
de até pouco tempo atrás), pois, ao possibilitar que seja o próprio juiz quem
inicie de ofício uma investigação, imputando a alguém o cometimento de um
delito, por exemplo, e, ao mesmo tempo, ao permitir que esse juiz resolva por
si a própria imputação levada a efeito, isso vem a resultar em algo óbvio: o juiz
é juiz e parte ao mesmo tempo. Até os menos avisados podem deduzir que
isso gera não um processo (necessariamente composto por três integrantes, à

* N.T.: Vale lembrar que na Federação argentina, diferente do que ocorre no Brasil, o direito
processual é provincial (= estadual), e não federal. Cf. arts. 5º e 126 da Constitución de La
Nación Argentina, de 1º de março de 1995.
* N.T.: O processualista da UNR refere-se ao “constituinte de 1853” em razão de que a primeira
Constituição argentina data desse ano e aí está a base da ordem constitucional daquele país.
A partir de 1853 as reformas constitucionais sempre tiveram por base aquele texto. Cf. art. 1º
da Lei nº 24.430, que concretizou a reforma constitucional sancionada em 15 de dezembro de
1994 e promulgada em 1º de março de 1995, e que deu o atual perfil da ordem constitucional
argentina: “Artículo 1º Ordénase la publicación del texto oficial de la Constitución Nacional
(sancionada em 1853 con las reformas de los años 1860, 1866, 1898, 1957 y 1994) que es el
que se transcribe a continuación”.

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O garantismo processual 27
míngua de litisconsórcio), senão um simples procedimento que apenas une dois
sujeitos: o juiz-acusador e o réu.
Insisto reiteradamente, ainda que sob risco de cansar o leitor: não obs-
tante tal afirmação, que não pode ser desvirtuada com raciocínio lógico jurí-
dico (ainda que possível com argumentação política ou sob caprichos), a antiga
voca­ção pelo totalitarismo que tão persistentemente mostrou o legislador
argentino, o que o levou a positivar normas que, ao permitir a coexistência
incoerente de sistemas antagônicos, descartam per se a vigência do devido pro­
cesso ao estabelecer, a um sem número de casos, meros procedimentos judiciais
aos quais se lhes atribui — indevidamente — a denominação de processos. Mas
como as coisas são o que realmente são, sem que para isso importe o nome que
se lhes atribui, não creio que isso seja suficiente para que se aceite com alegria
e boa vontade um sistema processual filosoficamente errôneo, politicamente
nefasto e juridicamente inconstitucional.

4 O que é o devido processo


Desde o século passado a doutrina publicista refere-se insistentemente
ao devido processo como um claro direito constitucional específico e que gera o
irrestrito dever de observâncias por parte das autoridades.
A ideia surgiu como novidade à época — e apesar de a estrutura interna
do processo concebido como método de discussão, e não como meio de investi­
gação, aparecer natural e logicamente no curso da história com antecedência
à própria ideia de Constituição —, só algumas cartas políticas do continente
incluem a adjetivação devido, ao passo que noutras a norma concreta é asse-
gurar a inviolabilidade da defesa em juízo ou um procedimento racional e justo,
como o fez a Constituição do Chile.
A origem geralmente aceita da palavra devido — para adjetivar a ideia
de processo — acha-se na Quinta Emenda à Constituição dos Estados Unidos,
ao estabelecer o direito de todo cidadão nas causas penais, e a partir daí passa
com diferentes denominações às Constituições americanas.
Talvez pela imprecisão terminológica que sistematicamente empregam
os auto­res que estudam o tema, a doutrina em geral absteve-se de definir em
forma positiva o devido processo, fazendo-o sempre negativamente: e assim
diz-se que não é devido processo legal aquele através do qual, por exemplo,
restringiu-se o direito de defesa ou alguma outra violação do gênero. Tal fato
observa-se na doutrina que surge a partir da jurisprudência de todos os tribu-
nais supremos da América hispanoparlante.

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28 Adolfo Alvarado Velloso

Não obstante tudo isso, passando pelas afirmações das concepções


negativas e fazendo um inventário mínimo das frases feitas cunhadas pela
juris­prudência local, pode-se dizer que o devido processo abarca as seguintes
ideias:
- supõe o direito à jurisdição, que é imprescritível, irrenunciável e não
afetado por causas extintivas das obrigações nem pela sentença;
- implica o livre acesso ao tribunal;
- a possibilidade plena de audiência, bilateralidade;
- a determinação prévia do lugar do processo;
- o direito do réu de se explicar em sua própria língua;
- o direito de que o processo se efetue com um procedimento eficaz e
sem dilações;
- um procedimento adequado à natureza do caso concreto;
- que seja público;
- que tenha assistência técnica eficiente, por advogado, desde o
momento da imputação ou detenção.
Especificamente quanto à prova, compreende:
- o direito de provar com a utilização de todos os meios legais perti-
nentes;
- o direito a que o julgador se atenha só ao regular e legalmente previsto
para suas atuações.
Especificamente no que tange à sentença, compreende o direito de:
- que seja ditada por um juiz imparcial, impartial e independente;
- que emita seu pronunciamento de forma completa, referindo-se a
todos os fatos essenciais com eficácia decisiva, bem como ao direito
aplicável;
- que seja legítima: baseada em provas válidas e sem omissão das que
são essenciais;
- que seja lógica: adequada às regras do pensamento lógico e à expe-
riência comum;
- que seja motivada: deve ser uma derivação razoável do direito vigente
com relação à pretensão deduzida e em função dos fatos provados no
processo;
- que seja congruente: deve versar exclusivamente sobre o pretendido e
o resistido pelas partes.
A sentença que não cumpre tais condições é habitualmente taxada de
arbi­trária, cujos parâmetros geradores também constituem frases feitas inteligen-
temente cunhadas pela jurisprudência. Assim, uma sentença é arbitrária quando:

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O garantismo processual 29
i) não decide acerca das questões oportunamente propostas, ou ii) decide acerca
de questões não propostas, ou iii) contradiz aquilo que consta no processo, ou
iv) incorre em autocontradição, ou v) pretende deixar sem efeitos decisões ante­
riormente tomadas, ou vi) o juiz se arroga no papel de “legislador” na hora de sen-
tenciar, ou vii) prescinde do texto legal sem indicar qualquer razão plausível, ou
viii) aplica normas derrogadas ou ainda não vigentes, ou ix) dá como fundamento
questões de excessiva latitude, ou x) prescinde de uma prova decisiva, ou xi) invoca
“jurisprudência” inexistente, ou xii) incorre em manifesto excesso procedimental,
ou xiii) sustenta o julgado em afirmações dogmáticas ou em fundamentos que só
tem a aparência de tal, e assim por diante.
Como se vê, trata-se de uma simples enunciação mais ou menos deta-
lhada de alguns vícios contidos nas atividades de processar e sentenciar que,
ademais, estão aglutinadas numa mesma ideia, não obstante ostentem óbvias
e profundas diferenças lógicas e materiais.
Se se tenta definir tecnicamente a ideia de devido processo, é mais fácil
sustentar que é aquele que se adapta plenamente à ideia lógica de processo:
dois sujeitos que atuam como antagonistas em pé de perfeita igualdade no ins­
tar (= provocar e resistir) ante uma autoridade que é um terceiro na relação
litigiosa (e, como tal, imparcial, impar­tial e independente).
Em outras palavras: o devido processo não é nem mais nem menos do
que o processo que respeita seus próprios princípios, tal como expliquei alhu-
res, e mediante o qual opera e pode operar o sistema acusatório.
Conforme sustentado acima, já posso afirmar que a ideia constitucional
de devido processo encontra-se única e exclusivamente no sistema acusatório,
pela clara concepção que ali se tem do princípio da imparcialidade, tal como
expliquei detidamente supra.
Da mesma forma, posso afirmar que o sistema inquisitivo não permite a
existência do devido processo, pois funciona à base de regras próprias e sem a
presença dos princípios essenciais que fazem com que o procedimento seja só
isso, e não um verdadeiro processo.
A nata da filosofia do ativismo judicial na Argentina não comparte essa
afirmação e, em contrapartida, sustenta que o procedimento inquisitorial é
verdadeiro processo e, como tal, suficiente garantia constitucional.
Se bem observadas as coisas, nota-se com facilidade que ambas as posi-
ções diferem na concepção da imparcialidade judicial, pois o ativismo apenas
a radica na pessoa do juiz e não em seus atributos funcionais.
E isso torna inconciliáveis as posições doutrinárias que sustentam ambos
os movimentos aqui tratados (= ativismo e garantismo), conforme ver-se-á a
seguir.

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30 Adolfo Alvarado Velloso

5 O que é o garantismo processual


Creio já estar em condições de me referir ao tema, lamentavelmente não
sem antes chamar a atenção ao fato de que a imprensa, que se apoderou dos
sistemas de justiça de nossos países, insiste em aconselhar aos juízes como
devem atuar em seus respectivos julgamentos, tanto através do processo civil
quanto do penal. E, na maioria das vezes, com exagerada ignorância, repro-
vam-lhes dura e publicamente se fazem o contrário, sem antes advertir que
eles — os juízes — não podem se afastar da normatização constitucional, dos
Pactos que integram o bloco constitucional que alcançamos com o advento
da democracia e das leis vigentes. Tudo isso não é bom à saúde da República.
Insisto com isso. É por todos sabido que a “justiça midiática” que se impôs
em nossos tempos, pela recorrente e tenaz atuação de uma certa imprensa mar-
rom (= <periodismo amarillo>), bem como de certos programas televisivos de
caráter sensacionalista, originou na população uma decidida vocação popular
(claro que fomentada pela insegurança reinante em nossos países) — sustentada
por numerosos meios de informação — que apregoa a necessidade de “castrar o
estuprador”, “matar o homicida”, “cortar a mão do ladrão”, “aumentar as penas dos
delitos da moda” etc.
Sabe-se que tal posição filosófica é conhecida no direito penal com a
denominação de solidária geradora do solidarismo penal26 e este, por sua vez,
gera o solidarismo ou decisionismo27 judicial, que se caracteriza na tendência
doutrinária que procura fazer com que os juízes sejam cada vez mais ativos,
mais viris — não obstante mais piedosos —, mais comprometidos com seu tempo
e decididos a viver perigosamente, com a Verdade e com a Justiça.
Graças à recorrência desse jornalismo de barricada, fundado numa filosofia
super­ficial (= <light>), ao qual inexplicavelmente somou-se importante número

26
Ser solidário é mostrar ou prestar apoio a uma causa alheia, ideia da qual surge o solidarismo
considerado uma corrente destinada a ajudar altruisticamente os demais. A noção impôs-se
há anos no direito penal e, particularmente, no direito processual penal, onde existem autores
e numerosos juízes movidos pelas melhores intenções que solidarizam-se com a vítima de um
delito. Esse movimento doutrinário e judicial também estendeu-se aos processualistas que
operam o processo civil, onde ganhou numerosos e apaixonados adeptos. Reconheço que
a ideia e a bandeira que carregam são realmente fascinantes: trata-se — nada menos — de
ajudar o mais fraco, o pobre, o que se acha mal ou pior defendido etc. Mas quando um juiz
adota essa postura no processo, não se apercebe que, automaticamente, deixa de lado e não
cumpre o necessário dever de imparcialidade. E, dessa forma, vulnera a igualdade processual.
27
Conhece-se como decisionismo a missão que cumpre o movimento formado por certos
juízes solidaristas que resolvem os litígios que lhes são apresentados à base exclusiva de
seus próprios sentimentos ou simpatias por alguma das partes, sem sentirem-se vinculados
com a ordem legal vigente.

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O garantismo processual 31
de processualistas, tem-se entendido que a palavra garantismo representa coisa
anômala, perversa e extravagante, pois afirma-se com insistência que através de
seus postulados põem-se em liberdade os mais cruéis facínoras que, segundo os
críticos, deveriam estar presos para um exemplar escárnio. E se isso ocorrer sem
sentença, melhor ainda!
Nada disso é exato. Como movimento jusfilosófico que é, o que o garan­
tismo pretende é o irrestrito respeito à Constituição e aos Pactos internacionais
que se encon­trem no mesmo nível jurídico. Os autores que assim pensam não
buscam um juiz comprometido com pessoa ou coisa distinta da Constituição,
senão um juiz que se empenhe em respeitar e fazer respeitar, a todo custo, as
garantias constitucionais.28
Do exposto conclui-se que o garantismo mostra-se antagônico diante
do solidarismo judicial (não quer nem admite castrar alguém, nem matar, nem
cortar a mão de quem quer que seja, sem o prévio e devido processo legal; tam-
pouco pretende que não haja presos, mas sim que os que se encontram nessa
situação assim estejam por força de uma sentença judicial).
O processo judicial é a grande e máxima garantia que a Constituição esta-
belece para a defesa dos direitos individuais desrespeitados por qualquer pes-
soa — a começar pela própria liberdade — e, mais particularmente, pela própria
autoridade, com a qual o indivíduo só pode se igualar juridicamente através
do processo, já que ali há um terceiro que lhe confere um trato absolutamente
igualitário a partir de sua própria imparcialidade. Por isso o nome de garantista
ou libertária (aqui, em oposição a totalitária).
A palavra garantista ou seu sucedâneo garantidor provém do subtítulo
que Luigi Ferrajoli pôs em sua magnífica obra Direito e Razão e quer significar
que, sobre a lei, com minúscula, está a Lei com maiúscula (a Constituição). Em
outras palavras: guarda adequado respeito à graduação da pirâmide jurídica.
Não me escapa que as bandeiras levantadas pelo solidarismo (a Justiça,
a Verdade, o compromisso do juiz com seu tempo, com a sociedade, com o
litigante mal defendido etc.) ganham adeptos rapidamente. Afinal, quem não
quer a Justiça? Quem não quer a Verdade?
Contudo, não se trata de abandonar ou substituir essas bandeiras para
sempre, mas, sim, de não colocá-las por sobre a Constituição (rogo que se
recorde que os códi­gos processuais nazistas, fascistas e comunistas soviético
pretendiam um juiz altamente comprometido com a filosofia imperante nos

É precisamente o que o juiz jura fazer quando é investido no cargo. Em minha longa vida no
28

Poder Judiciário (há mais de 15 anos aposentei-me como Desembargador no Tribunal de Jus-
tiça da Província de Santa Fé), nunca jurei fazer justiça nem buscar a verdade no processo, mas
sim “respeitar e fazer respeitar a Constituição e as leis que, em sua consequência, ditem-se”.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 13-37, jul./set. 2012
32 Adolfo Alvarado Velloso

respectivos governos de Estado. E rogo também para que se recorde no que


e como terminaram os países que tudo isso proclamavam!).
Insisto: o garantismo processual não tolera tergiversação da norma fun-
damental; ao contrário, contenta-se modestamente que os juízes — mais uma
vez: comprometidos apenas com a Lei — declarem a certeza das relações jurídi­
cas conflitivas através da outorga do direito de defesa a todos os interessados,
resguardando a igualdade processual com uma clara imparcialidade funcional
para, assim, fazer plenamente efetiva a tutela legal de todos os direitos.
Como se vê, o tema é o reflexo atualizado do antigo enfrentamento dos
dois sistemas de ajuizamento que mencionei antes: inquisitivo e dispositivo, que
segue vigente de forma inexplicável e com possibilidade de não melhorar, ao
menos no campo do direito processual civil.
Com efeito, reitero aqui que os processualistas civis sustentam com fre-
quência a necessidade de dotar o juiz de maiores poderes instrutórios.
Chega-se ao glorioso extremo de sustentar, como já fez algum autor, a irre-
levância do debate processual quando, aos olhos do juiz atuante, a razão estiver
do lado daquele que postula — fala-se de indícios veementes —, e tudo isso sem
contraditório prévio em relação àquele contra quem a pretensão é dirigida e que
sofrerá os efeitos imediatos da respectiva ordem judicial. Simplesmente con-
fere-se o bem da vida sem qualquer debate, prévio ou posterior (por exemplo,
através daquilo que denominam como medidas autosatisfativas).
Por outro lado, os processualistas penais, que trabalham com a vida, a
liberdade, a honra das pessoas (e não só com seus patrimônios), exigem cada
dia com mais força que se restrinja, a partir da própria lei, toda possibilidade de
eventual atividade probatória de ofício do juiz.
Em data relativamente recente — 1998 — começou a vigorar, na
Província de Buenos Aires, um Código de Processo Penal que, organizando um
sistema acusatório, viabilizou interpretação na qual está proibida, sob pena de
nulidade, que o juiz decrete meios de prova de ofício.
Estranho movimento conceitual esse que mostra um exótico cruza-
mento filosófico doutrinário: quanto mais se pretende penalizar o processo
civil, mais se civiliza o processo penal.29
A transcendência da visão garantista é óbvia em nosso mundo e, particu-
larmente, à disciplina do direito processual. Há temas que são eminentemente

29
Como é possível ao estudante de Direito compreender tudo isso? Como explicar que o juiz
penal, que maneja direitos indisponíveis, não pode sair a provar a favor de uma das partes,
ao passo que o juiz cível, que habitualmente maneja direitos disponíveis, não só pode, como
deve, sair a provar a favor de uma, e contra outra, parte processual? Não se vê que isso, além de
ilegítimo, é absolutamente esquizofrênico?

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O garantismo processual 33
técnicos (preclusão, por exemplo), ao passo que há outros que são decididamente
políticos (aquilo que os juízes podem ou não podem, por exemplo). E tudo que é
político tem a ver com o exercício do Poder, condicionado desde sempre por um
cúmulo de fatores conhecidos: a economia, a sociologia, o direito, a igreja, as for-
ças armadas, os sindicatos, os meios de comunicação etc.
Mas aceitar, sem mais, um novo fator desconhecido até há pouco tempo —
o solidarismo judicial — parece realmente perigoso para a vigência da República,
já que isso é difícil de controlar.
E a tranquilidade cidadã, ao amparo das garantias prometidas pela
Constituição, não pode aceitar despreocupadamente a existência de um fator
incontrolável que pode chegar a por em jogo nada menos que o valor liberdade.
Daí a importância de se conhecer o tema, ao qual pretende contribuir o
presente trabalho.

6 O que é o ativismo judicial a partir da ótica garantista


É extreme de dúvida que a Justiça da América se encontra em gra-
víssima crise: o número de juízes e de funcionários existentes nos diversos
Poderes Judiciários não corresponde à magnitude do trabalho que devem
cumprir diariamente. A crise persiste pela coexistência de um cúmulo enorme
de outras causas que ninguém quer enfrentar e, consequentemente, reverter.
Cresceu desmensuradamente o índice de litigiosidade, tanto no processo
civil, quanto no penal. Em vários países exibe-se uma clara e, às vezes, desca-
rada ingerência do poder político no trabalho diário do Judiciário num inde-
vido controle do conteúdo das sentenças dos juízes etc.
Além disso, a crise é alimentada por outros fatores: a inexplicável com-
placência do jurisdicionado em relação a casos não jurisdicionais; a aceitação
imediata por parte dos juízes dos chamados direitos de terceira geração que se
aplicam sem que os mesmos tenham sido regulamentados; a indevida impor-
tação de soluções jurisprudenciais vigentes no sistema do common law e que
resultam estranhas à ordem jurídica nacional; o discurso constante, apaixonado
e — claro — de boa-fé dos autores que se envolvem com a doutrina publicista
e o desconhecimento quase generalizado da ordem dos valores jurídicos con-
sagrados na Constituição; a fascinação que sobre os homens de boa-fé e, em
particular, dos juízes do ativismo, sempre desperta o sistema inquisitivo em
homenagem ao valor “justiça” que ali se pode alcançar segundo o particular
entendimento de cada um etc.
Tudo isso, em conjunto, acabou por instalar na mente de muitos juízes
argentinos a ideia de um ativismo que, sem que isso seja expressamente dito,
apresenta-se com toda sorte de um direito de exceção, e que acabou por gerar:

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34 Adolfo Alvarado Velloso

a) a prova de ofício determinada pelo juiz no tocante as pretensões


não provadas das partes, o que na Argentina se faz no processo civil
mediante o uso daquilo que se convencionou chamar de medidas
para mejor proveer;
b) a aplicação de instituições alheia à ideia constitucional do devido pro­
cesso: a inversão do ônus da prova mediante a utilização do conceito
de cargas dinâmicas;30
c) a tutela antecipada de todo e qualquer tipo de pretensão;31

30
Isso é tão ou mais grave e preocupante a tudo o que até aqui foi exposto: trata-se de uma
instituição na qual o juiz modifica, ao sentenciar, as regras do jogo que escrupulosamente
respeitaram os litigantes durante todo o desenvolvimento do processo, numa clara mostra
de decisionismo, pois o juiz julga como melhor lhe parece, ainda que isso seja expressamente
o contrário do estabelecido para caso pela lei positiva. E assim, com indubitável atitude
justiceira, alguma jurisprudência começou a sustentar, e isso no momento de apreciar o recurso
de apelação — é dizer, depois que o processo terminou em primeiro grau — que se o autor
não provou adequadamente o fato constitutivo da responsabilidade aquiliana, isso não teria
relevância na espécie, pois o respectivo ônus caberia à parte contrária e, portanto, como esta nada
fez, deveria simplesmente aceitar a pretensão demandada (!). Em outras palavras: que assim
decidiu, alterou, ao seu talante, as regas do jogo, as quais as partes se sujeitaram durante todo
o processo. Só que o fez depois que o jogo acabou! E isso é de manifesta ilegitimidade por mais
que se possa considerar “justa”, na ótica do julgador, a solução dada ao caso. Mas há lugares
em que ocorre exatamente o contrário do aqui relatado. Por exemplo, o art. 377 do CPC da
Nación Argentina estabelece que: “Incumbirá o ônus da prova à parte que afirme a existência
de um fato controvertido ou de um preceito jurídico que o juiz ou tribunal não tenha o dever
de conhecer. [...]”. A partir daí, fica claro que a tese que aceita, sem maiores reflexões, a ideia da
distribuição dinâmica do ônus da prova não pode coexistir com o dispositivo de lei mencionado,
por razões que, creio, não preciso voltar a insistir. A lei — e só a lei, nunca a jurisprudência —
é a que deve regular tudo o que diz respeito à incumbência probatória, a fim de dar total e
objetiva segurança jurídica a atividade que os juízes cumprem ao sentenciar, evitando, com
isso, alterar as regras do onus probandi discricionariamente e, o que é ainda pior, depois de o
processo já encerrado em primeiro grau. Em suma: alterar as regras do jogo após seu término,
convertendo em ganhador aquele que perdeu conforme as normas tidas como vigentes pelos
contendores, sem dúvida viola a garantia da defesa em juízo. E isso — é bom que se diga —
por mais empenho justiceiro que eventualmente ostente o juiz atuante.
31
Mediante essa via o autor pretende alterar uma situação fática sobre a qual ainda não começou
a discussão judicial e que deseja evitar obtendo, antecipadamente e sem prévia discussão, o
resultado que deve ser o necessário conteúdo da sentença a ser proferida após todo o desenrolar
das fases do processo, com prévia e completa audiência (= bilateralidade) dos interessados. Em
outras palavras: o juiz ouve a uma só das partes, estima com base em sua versão unilateral
que lhe assiste algum direito verossímil e lhe dá razão, interferindo de surpresa na esfera de
liberdade daquele que deverá sofrer os efeitos da respectiva decisão. Para tanto, algumas leis
toleram a antecipação da sentença com apenas a versão unilateral do pretendente quando:
i) existe verossimilhança do direito em grau maior que nas medidas cautelares ordinárias; ii)
alega-se no caso uma urgência impostergável que se a medida antecipatória não for deferida, o
direito que está à base da pretensão se frustraria; iii) se efetive uma contra-cautela suficiente; iv) a
antecipação não se apresente irreparável. E, às vezes, a mesma norma que a tudo isso consagra
e autoriza acaba por afirmar que “a decisão não configurará prejulgamento”.

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O garantismo processual 35
d) a eliminação do processo mesmo como meio de debate quando, na
ótica do juiz ativo, parecer-lhe deva o feito receber sentença defini-
tiva, pois crê plenamente no autor postulante e, com isso, decreta a
sentença autossatisfativa;32
e) a flexibilização da regra processual da congruência, o que permite ao
juiz julgar um tema litigioso transigível além do pretendido e aceito
pelas partes;
f ) o desconhecimento do valor político da coisa julgada, pois há juízes
que não aceitam a justiça contida numa sentença firme;
g) a eliminação da preclusão processual, pois ela faz prevalecer a forma
sobre o sentido de justiça etc.
Em suma: através de todos esses fatores mencionados se elimina a ideia
de processo como método de discussão e se o utiliza como meio de investiga­
ção, lançando o processo na perspectiva do sistema inquisitivo que, a meu
juízo, passa ao largo da Constituição.
Mas algo muito mais grave tem ocorrido nos últimos tempos: sob o argu-
mento de uma pretensa defesa da Constituição, alguns juízes com vocação a ser
protagonista midiático começaram a intervir em toda sorte de assuntos, que
em princípio são da esfera de atribuição de outros Poderes do Estado, interfe-
rindo, assim, na tarefa de governar, ao assumir o cumprimento de funções que
são privativas de outras autoridades. Dessa forma, abandonam o acatamento à
lei para entrar no campo do cogoverno e, ainda por cima, ingressam num ter-
reno muito perigoso: o de um incrível desgoverno, já impossível de controlar.
Isso porque aqueles que assim atuam sustentam que o fazem por ele-
mentar solidariedade com o mais débil, com o mal defendido, com o mais
pobre, com o que “tem razão mas não consegue demonstrá-la”(!) etc. Dessa
forma, foi gerado o movimento — conforme já disse — conhecido na doutrina
com a denominação de solidarismo, o qual, porque se pratica mesmo ao arre-
pio da lei, decidindo o juiz conforme sua exclusiva vontade, também se chama
decisionismo.
Bem se vê que quem assim atua não cumpre uma tarefa propriamente
jurisdicional, uma vez que, com isso, não resolve conflitos intersubjetivos de
interesses que é a essência da tarefa de outorgar justiça comutativa. A rigor,

Isso é consequência do ativismo dos juízes: inteligente doutrina gerou uma nova sorte de
32

medida cautelar que se conhece com o nome de medida autossatisfativa que, no sentir e no
discurso daqueles que a propiciam, vem a constituir na solução eficaz para os pedidos urgen­
tes. E isso fazem sob o lema: direitos evidentes, satisfação imediata.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 13-37, jul./set. 2012
36 Adolfo Alvarado Velloso

pratica-se justiça distributiva sem se ter os elementos para poder fazê-lo, como,
por exemplo, legitimidade através de votação popular.
Quando se explica a solução de um problema na via cautelar e sem neces-
sidade de prévia tramitação de um processo sério legitimamente desenvolvido,
advirto que os jovens advogados — impressionados pela excessiva morosidade
dos pleitos em geral — entusiasmam-se com o rápido final que se dá a um deter­
minado problema e se encantam pela autossatisfatividade.
Mas também advirto que todos só enxergam o problema na ótica do
autor que se beneficia com o imediatismo do resultado e jamais pensam o
problema da ótica do demandado que não foi escutado previamente e que
deve sofrer de imediato os efeitos contrários ao seu interesse provocados pela
decisão judicial.
É evidente que é possível e aconselhável que se acautele os resultados
de uma eventual sentença que será proferida. Mas é manifestamente ilegítimo
resolver um litígio com pura cautela, sem posterior processo que a ampare.
E isso porque tudo o que se resolve pela via cautelar sem prévia audiência
do interessado, é absoluta, racional, lógica e constitucionalmente inadmissível.
Insisto: os juízes não se podem equiparar aos comissários de polícia —
por melhores e mais justiceiros que estes possam ser — com o fim de atingir
uma eficiên­cia que não encontram respeitando a Constituição. Não foi isso
que precisamente juraram quando foram investidos em seus cargos.
Até aqui passei em revista algumas atitudes decisionistas, vejamos:
- a solução de conflitos pela via cautelar, eliminando diretamente o método
processual de discussão em homenagem a uma meta difusa que se mos-
tra, ao menos para o respectivo juiz, como justa e verdadeira;
- a atitude de alguns juízes em campos de atuação que lhes estão veda-
dos — casos não jurisdicionais — em razão de que ali deve operar de
forma exclusiva e excludente outro Poder do Estado;
- um marcante distanciamento do que dispõe a lei positivada, com
abandono da dogmática para atingir o império do valor relativo da
equidade.
Ainda que muitos juízes encontrem-se bastantes contentes com o resul-
tado de rapidez e justiça que descobre na aplicação ativista do sistema, quando
se pergunta a qualquer advogado sério e responsável no exercício de sua pro-
fissão se com tais atitudes se atingiu um melhor resultado da Justiça, invariavel-
mente dirá que não. Ao contrário, argumentará em prol da Justiça de antanho
quando os resultados das sentenças eram obtidos num ambiente de regular
segurança jurídica.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 13-37, jul./set. 2012
O garantismo processual 37
Hoje, mediante o ativismo, chegou-se a uma insegurança jurídica em
estado terminal graças à imprevisibilidade absoluta da maioria das soluções
judiciais e, graças a isso, a advocacia séria tende a desaparecer.
Nada disso eu poderia dizer caso observasse, como resultado do ativismo
vigente em meu país, i) o público em geral aplaudindo os juízes; ii) que a solução
buscada e a forma de atuação da Justiça estivesse prevista legalmente, para que
fossem rigorosamente cumpridas pelos juízes e advogados através das claras
regras do fair play que deve dominar toda a cena processual; iii) a não modifica-
ção dessas regras a todo o momento, fazendo com que percam a vigência quando
não se goste delas ou mesmo quando elas não resultem úteis para torcer a vara
da justiça para um lado distinto ao que tenderia cair etc.
Mas como o ativismo mostra que nada disso tem sentido na aplicação
justiceira da lei na perspectiva da vontade de um dado juiz, já que o público
não aplaude os juízes, os advogados não os respeitam como merece sua fun-
ção etc., sustento todas as ideias até aqui desenvolvidas, as quais defendo e rei-
tero desde o ano de 1999 quando inaugurei, na cidade Azul, o Primer Congreso
Nacional de Derecho Procesal Garantista33 e do qual tem saído numerosos tra-
balhos elaborados por um cada vez maior número de participantes nos res-
pectivos encontros anuais que ali se realizam.
Com esta exposição espero ter cumprido o que me pediu Glauco Gumerato.
Caso o leitor entenda que não, ou mesmo caso deseje quaisquer outras ampliações/
explicações destas ideias, deixo aqui meu endereço eletrônico no qual receberei,
com muito gosto, as críticas que desejem fazer, as quais farei publicar em <www.
garantismoprocesal.com>.

Rosario, Argentina, outono de 2012.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de


Normas Técnicas (ABNT):

VELLOSO,AdolfoAlvarado.Ogarantismoprocessual.RevistaBrasileiradeDireitoProcessual–RBDPro,
Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 13-37, jul./set. 2012.

A cidade de Azul, localizada no centro geográfico da Província de Buenos Aires, se converteu no


33

pólo do garantismo processual. Na década de noventa coube à Universidade Nacional de Rosario


(UNR), após solicitação da Associação de Advogados da localidade, instalar um curso de pós-
graduação de Especialização em Magistratura Judicial que atingiu um êxito surpreendente. Ali se
manejou, diante de um importante número de juízes de localidades próximas, as ideias garantistas
que, grosso modo, estão expostas aqui neste escrito e, a pedido dos próprios advogados da
região, presididos por LUIS MIRALLES, realizou-se no mês de novembro de 1998 o Primer Congreso
Nacional de Derecho Procesal Garantista que se repetiu anualmente até novembro de 2008, ocasião
em que se deliberou que os encontros seriam bienais e não mais anuais. Aos que tiverem interesse
em conhecer os trabalhos produzidos nesses vários anos do congresso garantista de Azul deve
ingressar em: <http://www.e-derecho.org.ar/congresoprocesal/index.html>.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 13-37, jul./set. 2012
Tipologia dos direitos humanos de
terceira dimensão e acesso à justiça
Eduardo Maia Tenório da Cunha
Mestrando em Direito e Garantias Fundamentais
(FDV/ES). Especialista em Direito Processual Civil
(FDV/ES). Especialista em Direito e Processo do
Trabalho (Faculdade Candido Mendes de Vitória/ES).
Especialista em Teoria da Constituição e Dogmática
Constitucional (UFES). Integrante do Grupo de
Pesquisa Acesso à Justiça na Perspectiva dos Direitos
Humanos do Mestrado em Direitos e Garantias
Fundamentais da FDV. Procurador do Trabalho.

Carlos Henrique Bezerra Leite


Doutor e Mestre em Direito das Relações Sociais
(PUC/SP). Professor Adjunto IV do Departamento de
Direito (UFES). Professor de Direitos Metaindividuais
do Mestrado (FDV). Diretor da Escola
de Magistratura do Trabalho no Estado do
Espírito Santo. Membro da Academia Nacional de
Direito do Trabalho. Medalha do Mérito Judiciário do
Trabalho (Comendador). Ex-Coordenador Estadual
da Escola Superior do MPU/ES. Coordenador do
Grupo de Pesquisa Acesso à Justiça na Perspectiva
dos Direitos Humanos do Mestrado em Direitos e
Garantias Fundamentais da FDV. Desembargador
Federal do Trabalho do Tribunal Regional do
Trabalho da 17ª Região/ES. Ex-Procurador Regional
do Ministério Público do Trabalho/ES.

Resumo: Trata-se de pesquisa jurídica interdisciplinar abrangendo o


Direito Constitucional, o Direito Processual Civil e Direitos Humanos.
Analisa-se a evolução dos direitos humanos e a efetivação dos de terceira
dimensão com base no acesso à justiça.

Palavras-chave: Direitos humanos. Acesso à justiça. Direitos coletivos.

Sumário: 1 As dimensões dos direitos humanos como critério pedagó­


gico – 2 Dos direitos individuais aos interesses metaindividuais 3 Interes-
ses metaindividuais e acesso à justiça – Considerações finais – Referências

Introdução
A temática dos direitos humanos goza de maior importância a cada dia na
sociedade mundial. O terceiro milênio tem sido pródigo na difusão de seus valores

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 39-57, jul./set. 2012
40 Eduardo Maia Tenório da Cunha, Carlos Henrique Bezerra Leite

éticos. Mas nem sempre foi assim. Por muito tempo os direitos humanos foram
considerados como um valor distante da justiça e muito mais distante ainda de sua
efetivação no plano concreto. Foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos,
fruto da reflexão dos povos sobre os horrores da Segunda Guerra Mundial, que
estabeleceu um marco filosófico e jurídico sobre a inerência dos direitos humanos.
Passados sessenta e três anos da declaração, é reconfortante verificar que
muito se caminhou. Por outro lado, é inevitável constatar que muito ainda há
que se caminhar, principalmente no que toca à efetivação desses direitos, que
vislumbram dificuldades várias, principalmente em face de relativismos culturais
e da capacidade econômica das nações pobres e em vias de desenvolvimento.
Se às próximas gerações caberá a missão de efetivar os direitos huma-
nos, não se pode olvidar que é uma conquista desta geração e das gerações
passadas o estabelecimento de tipologias de direitos humanos (difusos, coleti-
vos e individuais homogêneos) e de instrumentos jurídicos de sua proteção. A
superação da defesa quase que exclusiva dos direitos individuais para a defesa
dos chamados “direitos ou interesses metaindividuais” é exemplo eloquente
O desenvolvimento de instrumentos jurídicos para a defesa dos direitos
metaindividuais, como a ação civil pública, a ação civil coletiva, o mandado de
segurança coletivo e a ação popular, marca a passagem do processo individual
para processo coletivo. No plano político, revela a transição do Estado Liberal
para o Estado Social e depois para o Estado Democrático de Direito. Do ponto
de vista espacial-geográfico, a instituição de direitos migra seu locus da cidade
para o estado, deste para o mundo e agora para o plano virtual.
O foco desse trabalho, porém, é limitado. Conquanto registre a transição
histórica dos direitos individuais aos interesses metaindividuais e os instrumen-
tos de sua garantia, centrará esforços em analisar os direitos humanos de terceira
dimensão e sua tutela jurídica lato sensu, perpassando pela distinção de acesso
à justiça e acesso ao judi­ciário, bem como nos meios extrajudiciais de solução de
demandas metaindividuais.
A peculiaridade de os direitos fundamentais de terceira dimensão ter como
objeto, em última análise, a proteção do gênero humano (universalidade da paz,
meio ambiente, informação) traz novos desafios, notadamente no âmbito interna-
cional, em que se contrapõem direitos universais de um lado e relativismo cultural
e soberania dos estados nacionais de outro.
Nesse contexto, indaga-se se como são tutelados os direitos humanos de
terceira dimensão hoje no Brasil. Essa tutela tem sido realizada do mesmo jeito
que foram os direitos humanos de primeira e segunda dimensão? Essa tutela é
efetiva para todos?

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 39-57, jul./set. 2012
Tipologia dos direitos humanos de terceira dimensão e acesso à justiça 41
1 As dimensões dos direitos humanos como critério
pedagógico
Encontra-se superada antiga cizânia doutrinária sobre a adequação dos
vocá­bulos “dimensão” e “geração” como melhor significante da evolução histó-
rica dos direitos humanos. O primeiro tornou-se mais aceito porque representa
a ideia de extensão ou abrangência e não de sucessão ou de substituição de
direitos, como se extrai do segundo. Conquanto o termo “geração” tenha a vir-
tude de bem situar no tempo a origem dos direitos humanos, torna-se equívoco
quando tratamos de sua incorporação e eficácia nos ordenamentos jurídicos
nacionais. Essa equivocidade é facilmente perceptível quando se constata que a
positivação dos direitos econômicos, sociais e culturais pelos estados nacionais
não sucedeu naturalmente aos direitos civis e políticos em todos os lugares do
planeta. Há lugares em que houve inversão dessa cronologia e outros em que
sequer os se reconhecem na integralidade. Para exemplificar não precisamos
de exemplos estrangeiros: a ditadura militar brasileira (1964-1985) proscreveu
boa parte dos direitos civis e políticos e tornou inexequíveis outros tantos direi-
tos econômicos, sociais e culturais. A simples negação desses direitos ou parte
deles em determinado tempo e espaço, por si só, demonstra a incompatibili-
dade do termo “geração”, que pressupõe uma ordem evolutiva, cronológica e
irreversível. O termo “dimensão”, por representar uma natureza comum a cada
um desses tipos históricos, atende aos pressupostos de uma classificação histó-
rico-filosófica sem o pecadilho de comprometer sua normatividade.
Os direitos humanos de primeira dimensão originaram-se nas revolu-
ções burguesas dos séculos XVII e XVIII como decorrência da luta por direitos
civis e políticos contra o regime feudalista de produção e o absolutismo aristo-
crata. São direitos de conotação individual e de defesa perante o estado. Estão
baseados no ideário de liber­dade, propriedade, segurança e participação do
indivíduo no governo e no processo político de decisão. Essa ideia de uma ca-
tegoria de direitos que poderiam ser exercidos até contra o Estado visava mais
à proteção da propriedade do que efetiva participação política, já que o pen-
samento iluminista da época temia que uma eventual democracia sem limites
comprometesse a segurança da propriedade privada. De qualquer sorte, institui
no plano jurídico um plexo de direitos destinados a garantir a não intervenção
do Estado na propriedade de qualquer indivíduo, com o intuito de preservar-lhe
as liberdades públicas.
A disseminação do pensamento econômico liberal-burguês na Europa
por meio das invasões napoleônicas acaba sedimentando a base da Revolução
Industrial do século XIX. Esse modelo de desenvolvimento vai gerar concentração

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 39-57, jul./set. 2012
42 Eduardo Maia Tenório da Cunha, Carlos Henrique Bezerra Leite

de renda para a burguesia, doravante capitalista, êxodo rural e trabalho urbano


juridicamente livre e assalariado, mas com péssimas condições de labor e pouco
poder de compra. Os direi­tos humanos de segunda dimensão estão ligados aos
aspectos econômicos, sociais e culturais decorrentes da Revolução Industrial e
se confundem com o aparecimento do Direito do Trabalho, haja vista que tais
direitos foram concebidos como forma de inclusão dos mais fracos e de promo-
ver justiça social.
Se o absenteísmo estatal era a marca dos direitos de primeira dimensão,
uma das características mais marcantes dos direitos de segunda dimensão é a
imprescindibilidade da intervenção estatal, seja para contrapor a força do capi-
tal, como para garantir direitos mínimos ao proletariado. Por isso que esses
direitos são considerados de inclusão social e demandam políticas públicas
para a sua implementação, haja vista que o Estado assume uma função social e
supre a lacuna do modelo liberal, que não deu acesso ao consumo da riqueza,
aos avanços tecnológicos e a uma existência digna para todos. Enquanto os
direitos de primeira dimensão eram atuados contra o Estado, os direitos de
segunda dimensão são efetivados por meio do Estado.
Bom que se diga que a intervenção estatal no domínio econômico não
adveio de uma reflexão do poder político dominante e tampouco de um reco-
nhecimento crítico da classe burguesa dos malefícios causados aos desprote-
gidos pelo sistema. Foi antes uma adequação concessiva das classes políticas e
econômicas em função do crescente poder de organização dos trabalhadores
em sindicatos e do temor do pensamento marxista e das revoluções comunistas
sobre o dogma da propriedade privada. A concessão de direitos ao trabalhador
era a solução possível ao capitalismo de então ante o risco da criação de um
estado socialista. A opção da intervenção estatal na economia foi a fórmula das
classes dominantes para arrefecer as tensões sociais e dar sobrevida ao capita-
lismo. Nesse sentido a conclusão de Pedro Rui da Fontoura Porto:

Trata-se, pois, da alteração da visão de Estado meramente garantidor


das liberdades individuais, para a concepção de Estado obrigado a
prestações sociais tendentes à obtenção de uma maior igualdade
social, donde decorre o elevado cunho ideológico desses direitos,
resultantes de reflexões antiliberais, desenvolvidas, notoriamente,
na primeira metade do Século XX.1

1
PORTO. Direitos fundamentais sociais: considerações acerca da legitimidade política e pro­
cessual do Ministério Público e do sistema de justiça para sua tutela, p. 59.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 39-57, jul./set. 2012
Tipologia dos direitos humanos de terceira dimensão e acesso à justiça 43
A expansão do modelo capitalista de produção de forma global introduz
nas sociedades uma nova forma de viver e de comportar-se, tendo o consumo
como necessidade básica e a tensão entre capital e trabalho como compo-
nente social. A complexidade e o expressivo número dessas relações produ-
zem no mundo jurídico o aparecimento de uma nova espécie de interesses e
de direitos, que possuem a cara­terística de serem de todos e de ninguém ao
mesmo tempo. Os direitos de terceira dimensão qualificam-se justamente pela
transindividualidade, pois não pertencem exclusivamente ao indivíduo e tam-
pouco a grupos sociais específicos. São também conhecidos como direitos de
solidariedade ou fraternidade porque representam o reco­nhecimento racional
de que a paz social só será alcançada sem as enormes disparidades econômi-
cas entre os povos do mundo. “Decorrem, pois, da reflexão acerca de temas
referentes ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, à comunicação e ao
patrimônio comum da humanidade”.2 São destinados ao gênero humano e
dotados de alto grau de ética.

2 Dos direitos individuais aos interesses metaindividuais


2.1 A evolução dos direitos humanos e os modelos de estado
A instituição de direitos inerentes a qualquer ser humano e independen-
tes dos governantes é consequência direta da criação do Estado Moderno, pois
somente com unidade territorial e poder soberano tornou-se possível garanti-los
e disseminá-los. Ainda que oriundo do absolutismo feudal e auto­ritário, esses ele-
mentos sociais formaram, em conjunto com pensamentos filosóficos iluministas, a
base que deu ensejo às futuras declarações de direitos das revoluções burguesas.3 É
esse poder, o Estado, que condicionou as sociedades modernas e contemporâneas.
É possível extrair da história da humanidade um paralelo entre a evo-
lução dos direitos e os modelos de estado. Os diretos de primeira dimensão
vieram a lume em um momento de superação do Estado feudal para o Estado
Liberal. Os direitos de segunda dimensão assinalam a passagem do Estado
Liberal para o Estado Social. E os direitos de terceira dimensão aparecem jun-
gidos ao Estado Democrático de Direito. Sobre este último e a evolução dos
direitos humanos, destaca a doutrina que:

Em tal modelo estatal não há, necessariamente, uma ordem cronoló-


gica entre as dimensões, mas uma ampliação crescente dos titulares,

2
LEITE. Ação Civil Pública na perspectiva dos direitos humanos, p. 35.
3
MARUM. Ministério Público e direitos humanos: um estudo sobre o papel do Ministério Público
na defesa e na promoção dos direitos humanos, p. 109.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 39-57, jul./set. 2012
44 Eduardo Maia Tenório da Cunha, Carlos Henrique Bezerra Leite

de forma que, nos direitos de primeira dimensão, o beneficiário é o


homem individual, o homem concreto em face do Estado e dos outros
homens. Na segunda dimensão, os direitos são referentes a classes ou
grupos de pessoas determinadas ou determináveis: são direitos sociais
como educação, saúde, lazer, trabalho. E, finalmente, na terceira dimen-
são situam-se aquelas aspirações difusas, não mais de homens concretos
ou grupos determinados, mas atinentes ao gênero humano e à quali-
dade de vida geral dos membros das comunidades humanas.4

2.2 O Estado Democrático de Direito e os direitos humanos


de terceira dimensão
Sob os auspícios do Estado Democrático de Direito e em função da atual
conjuntura social de crescente globalização da economia e unificação dos mer-
cados em uma grande sociedade de consumo em massa de amplitude universal,
hoje já discutimos o fim dos estados como até então concebidos. A mitigação da
soberania dos estados nacionais em prol da formação de blocos regionais deixa
cada vez mais pungente a ideia de direitos humanos universais não submetidos
ao relativismo cultural nacional. Se por um lado essa perspectiva pode causar
apreensão de uma indevida submissão de culturas menos influentes a outras
de maior poder de cooptação, por outro lado é inegável a institucionalização de
patamares mínimos de civilização para qualquer habitante do planeta, situação
mais condizente com o princípio da solidariedade e fraternidade que caracteriza
a terceira dimensão dos direitos humanos.
Ainda que não seja possível no plano dos fatos vivenciar hoje uma socie­
dade mundial sem desigualdades e que atinja esses patamares mínimos de
dignidade humana, tão ideologicamente plasmados nos direitos de terceira
dimensão, de paz social, de desenvolvimento sustentável em equilíbrio com
o meio ambiente, de democratização do conhecimento e de valorização do
gênero humano, é fundamental assentar a necessidade de disseminá-los e
posi­tivá-los no plano jurídico das nações. De qualquer sorte, é facilmente per-
ceptível a vocação cosmopolita dos direitos de terceira dimensão, mais próxi-
mos do modelo democrático das sociedades contemporâneas do que dos limites
geográficos da soberania estatal.

4
PORTO. Direitos fundamentais sociais: considerações acerca da legitimidade política e proces-
sual do Ministério Público e do sistema de justiça para sua tutela, p. 62.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 39-57, jul./set. 2012
Tipologia dos direitos humanos de terceira dimensão e acesso à justiça 45
Se no passado a unidade territorial e o poder soberano foram fundamentais
para a implementação dos direitos humanos de primeira dimensão e posterior-
mente foram também fundamentais para o condicionamento das sociedades
aos sucessivos paradigmas liberal, social e democrático, parece que hoje o fator de
aglutinação mais importante é o regime democrático. Essa circunstância pode ser
verificada nos blocos regionais, como a União Europeia e o Mercosul, cuja integração
se deu mais em função da similaridade dos regimes políticos. A integração aperfei-
çoou-se de tal forma que os objetivos inicialmente restritos ao plano econômico e
aduaneiro já foram ampliados, abarcando múltiplos aspectos nos planos jurídicos,
culturais e sociais. Exemplo marcante é a possibilidade de trabalho de um nacional
em outro país do bloco sem o gozo da cidadania estrangeira ou sem o visto de tra-
balho especial para isso. Democracia, fraternidade e desenvolvimento econômico
e social aparecem, por isso, como fatores de especial importância na efetivação
dos direitos humanos.

2.3 Direitos versus interesses de terceira dimensão


Outra questão conceitual que se mostrou relevante no estudo do tema
dos direi­tos humanos de terceira dimensão e que parece pacificada hoje na
doutrina diz respeito ao uso dos termos “direitos” e “interesses”. Isso porque a
característica da transindividualidade de seus titulares e da indivisibilidade do
objeto desses direitos contrapõe-se à ideia de direito subjetivo, de conotação
individual, cujo conceito está atavicamente relacionado ao Estado Liberal e aos
direitos humanos de primeira dimen­são. Daí a necessidade da ampliação ter-
minológica para que possa abarcar não só direitos consagrados ao indivíduo
ou a coletividades, mas também qualquer forma de interesse cujo detentor
não seja sequer determinável como sói acontecer com os interesses difusos.
Por todos, podemos citar José Luis Bolzan de Morais:

A preferência pela utilização do termo direito apenas para o âmbito dos


interesses juridicamente protegidos que têm sua titularidade ligada ao
indivíduo aponta para vínculos que se estabelecem entre a noção de
direito e sua projeção como direito individual, uma tradição vinculada
ao liberalismo. Assim, direito seria aquele fato juridicamente definido
para o qual temos uma titularidade e um sujeito definidos, além de um
objeto perfeitamente delimitado, ou seja, identifica-se com a noção de
direito subjetivo. Há, entre direito e interesse, uma vinculação na qual
a predominância daquele se reflete uma negação deste. Ou seja: a
hege­monia do direito subjetivo implica a desqualificação do interesse
como portador de alguma relevância jurídica [...] O que se percebe é

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 39-57, jul./set. 2012
46 Eduardo Maia Tenório da Cunha, Carlos Henrique Bezerra Leite

que tal atrelamento seria próprio à história do direito liberal. Mas, como
a emergência de novas realidades juridicamente relevantes é mister
que se desfaça este vínculo restritivo, abrindo-se a aplicabilidade desta
nomen­clatura para casos outros, tais como os interesses transindivi-
duais, que não se enquadram em tal feitio...5

Não se quer com isso estabelecer um vínculo necessário entre metain-


dividualidade e o termo interesse ou quiçá entre individualidade e o termo
direito. Não são incorretos os usos dos termos “direito metaindividual” ou “inte-
resse individual”. Apenas mostra-se mais adequado usar um termo que melhor
represente a passagem histórica do direito individual para o metaindividual,
com a vantagem de evitar questionamentos acerca de sua plausibilidade. Para
evitar interpretações restritivas o próprio constituinte foi pragmático e men-
cionou ambos os termos nos artigos 8º, III; 129, V, e 232, assentando, todavia, a
maior amplitude do termo interesse no caput do art. 127,6 que trata da atribui-
ção do Ministério Público.

3 Interesses metaindividuais e acesso à justiça


3.1 Acesso à justiça como direito humano
A clássica obra de Cappelletti e Garth7 enfrentou o tema do acesso à
justiça sob a perspectiva de ondas. Tais quais ondas marítimas que avançam
sobre a costa para renovar o ciclo natural da vida, as ondas renovatórias de
soluções jurídicas são demandadas para superar os obstáculos do acesso à
justiça e moldar um novo cenário jurídico para aqueles que clamam por jus-
tiça. A primeira onda trazia a assistência judiciária aos pobres como tentativa
de universalização do acesso à justiça, incluindo uma boa parte da população
até então alijada da tutela jurisdicional por falta de condições financeiras de
demandar. A segunda onda inseria a coletivização dos processos como forma
de enfrentamento das demandas de natureza difusa, coletiva ou individual
homogênea (como hoje se concebe no sistema jurídico brasileiro), tendo em
vista o cenário socioeconômico de sociedades de massa. A terceira onda trouxe
os meios alternativos de solução de conflitos, combinando a otimização do
uso da máquina judiciária, mediante a reforma dos procedimentos judiciais

5
MORAIS. Do direito social aos interesses transindividuais, p. 109-110.
6
“Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado,
incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e indi-
viduais indisponíveis.”
7
CAPPELLETTI; GARTH. Acesso à justiça, 2002.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 39-57, jul./set. 2012
Tipologia dos direitos humanos de terceira dimensão e acesso à justiça 47
e simplificação do direito (combate ao formalismo jurídico), com a utilização
de procedimentos extrajudiciais, tais como mediação, arbitragem, conciliação.
Se a evolução dos direitos humanos e, sobretudo, sua disseminação e exi-
gibilidade vislumbram uma necessidade cada vez mais iminente de superação
dos limites soberanos dos estados nacionais, logicamente que tal desiderato
só se tornará possível quando a tutela desses direitos ganhar efetividade em
boa parte dos países que compõem a comunidade internacional. Além disso, o
aprimoramento dos meios de exigibilidade e “justicialidade” regionais subsidia-
rão o estudo do Direito Comparado para engendrar soluções mais adequadas
(abrangentes e ao mesmo tempo específicas em função da realidade de cada
sociedade regional) para a efetivação dos direitos humanos em um contexto
planetário. É a pluralidade das soluções regionais e as espe­cificidades que lhes
subjazem que irão munir o Direito Internacional dos meios de instrumentalizar
essa tutela.
É preciso ressaltar que a divisão dos direitos humanos em dimensões
presta-se ao fim de explicá-los e justificá-los do ponto de vista histórico, mas
não se presta a garan­tir a sua tutela. A “sindicabilidade” desses direitos exige
acesso à justiça. E é por isso que o acesso à justiça passou a ser considerado
um direito humano. Sem instrumentos jurídicos capazes de garantir direitos
humanos, a mera declaração de direitos torna-se ineficaz. “De fato, o direito ao
acesso efetivo tem sido progressivamente reco­nhecido como sendo de impor-
tância capital entre os novos direitos individuais e sociais, uma vez que a titula-
ridade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua
efetiva reivindicação.”8

3.2 Critérios para identificação dos interesses metaindividuais


Conquanto os direitos de terceira dimensão tenham características espe-
cíficas que os distinguem dos demais — e daí a sua divisão em espécie do
gênero direitos humanos — não há uma correspondência única e peculiar no
plano processual. Ou seja, um direito material de terceira dimensão, como o
direito do consumidor, por exemplo, nem sempre demandará uma tutela cole-
tiva ou difusa; poderá ser objeto até de uma ação de cunho individual no caso
concreto. Na verdade, os critérios para a sua identificação são variados, podendo
estar preestabelecidos na lei de direito material ou determinados em função da
causa de pedir ou do pedido ou de ambos, no plano processual.

8
CAPPELLETTI; GARTH. Acesso à justiça, 2002, p. 12.

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48 Eduardo Maia Tenório da Cunha, Carlos Henrique Bezerra Leite

Como esclarece Nelson Nery Junior, o que determina a classificação de um


direito como difuso, coletivo, individual puro ou homogêneo é o tipo de tutela juris­
dicional que se pretende. Cite-se o acidente com o Bateau Mouche como amostra:
se uma das vítimas pede indenização, o direito é individual puro (individualizado o
direito e determinado o titular); se todas as vítimas pedem indenização através de
entidade associativa, o direito é individual homogêneo (direito divisível e determi-
náveis os titulares); se entidade das empresas de turismo pede obrigação de fazer
consistente em garantir a segurança da embarcação, para garantir a imagem do
setor, o direito é coletivo (indivisível o direito, mas determináveis os titulares); e se
o Ministério Público ajuíza ação civil pública para interdição da embarcação, a fim
de se evitar novos acidentes, o direito é difuso (indivisível o direito e indeterminá-
veis os titulares).9
Na verdade, a teoria dos interesses transindividuais é uma espécie de tutela
e não o correspondente processual dos direitos humanos de terceira dimensão.
É dizer, o fato de as ondas de acesso à justiça de Cappelletti e Garth10 correspon-
derem no âmbito do processo a uma evolução histórica similar às dimensões dos
direitos humanos não significa que haja vinculação atávica entre espécies de direi-
tos humanos e espécies de tutela. Mas essa aproximação pôde ser percebida por
Carlos Weiss:

O final do século XX revelou ao Direito o desenvolvimento de duas


importantes teorias, matizadas pela noção comum da coletivização
dos conflitos e pela preocupação em proteger interesses pulveriza-
dos pela sociedade ou parcelas sociais. De um lado, a evolução dos
direitos humanos privilegiou sua indivisibilidade, interdependência
e complementaridade e induziu à criação de novos direitos híbridos,
decorrentes da superação da distinção absoluta entre direitos civis e
políticos e direitos econômicos, sociais e culturais. Além disso, novos
direitos humanos vêm sendo reconhecidos, em atenção à preocupa-
ção com a qualidade de vida no Planeta, ao desenvolvimento susten-
tado e integrado da espécie humana e à preservação da Natureza. De
outro lado, a teoria dos interesses transidividuais, como superação da
doutrina individualista do processo, propiciou nova categorização de
direitos e interesses e sua justiciabilidade, antes inimaginável.11

9
NERY JUNIOR. Princípios do processo civil na Constituição Federal, p. 125.
10
CAPPELLETTI; GARTH. Acesso à justiça, 2002.
11
WEIS. Direitos humanos contemporâneos. 2. ed., p. 177.

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Tipologia dos direitos humanos de terceira dimensão e acesso à justiça 49
É inegável que os instrumentos processuais concebidos para a tutela
de direitos individuais são, no mais das vezes, inadequados para a defesa de
interesses metaindividuais, a começar pela pluralidade das partes e a indivisi-
bilidade de seu objeto. Por isso, o aparecimento das ações coletivas e a criação
de legitimados adequados para a defesa desses direitos mudaram o panorama
de acesso à justiça.

3.3 Instrumentos de tutela dos interesses metaindividuais


3.3.1 Instrumentos judiciais
Não obstante a existência de inúmeros instrumentos jurídicos para tutelar
inte­resses metaindividuais, é inegável a importância dos meios judiciais para tor-
ná-los efetivos. A tutela judicial coletiva no Brasil começou a despontar na década
de 60. A introdução da Lei de Ação Popular (Lei nº 4.714/65), que permite a defesa
do patrimônio público por qualquer cidadão, e a lei que institui a política nacional
de meio ambiente, que atribui a tutela ambiental ao Ministério Público (art. 14,
§1º, da Lei nº 6.398/81), são as precursoras desse novo regime de tutela de massa.
O sistema processual de tutela coletiva começa a se estruturar com a
previsão da ação civil pública na LC nº 40/81, como instrumento privativo do
Ministério Público, e depois pela sua generalização na Lei de Ação Civil Publica
de 1985. Essa lei ganha importância de norma constitucional em 1988 e, com
o Código de Defesa do Consumidor de 1990, passa a abarcar “qualquer outro
interesse difuso ou coletivo”. Hoje, os instrumentos processuais coletivos mais
importantes são a ação civil pública, a ação civil coletiva, o mandado de segu-
rança coletivo, mandado de injunção, dissídio coletivo e a ação popular.
Ante a falta de um código de processo coletivo, o sistema processual
de tutela coletiva é composto precipuamente pela CF (arts. 5º, XXXV, LIV e LV;
127 e 129, III e IX), LOMPU (art. 6º, VII, “d”), LACP (arts. 1º, IV, e 21) e na parte
processual do CDC (arts. 81, parágrafo único, I, II e III; 90 e 91). O CPC é aplicável
apenas subsidiariamente, quando compatível (LACP, art. 19).
A ação civil pública e a ação civil coletiva são as espécies mais utili-
zadas, principalmente pelo Ministério Público, órgão a quem a Constituição
atribuiu a missão de tutela dos interesses sociais e dos interesses individuais
indisponíveis, hipóteses que podem ser enquadradas como direitos metain-
dividuais de acordo com o pedido deduzido em juízo, na forma do parágrafo
único do art. 81 do CDC.
Inspirada nas class actions norte-americanas, a ação civil pública brasileira
apresenta a peculiaridade de estabelecer um rol de legitimados taxativos e concor-
rentes. Na versão norte-americana, a legitimação pode ser exercida por qualquer

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 39-57, jul./set. 2012
50 Eduardo Maia Tenório da Cunha, Carlos Henrique Bezerra Leite

um, desde que tenha capacidade (representatividade, capacidade financeira e


técnica, experiência...) para dar andamento adequado ao processo. Já no polo pas-
sivo, pode estar qualquer pessoa física ou jurídica, inclusive os legitimados ativos.
O objeto da ação civil pública é reprimir ou impedir danos morais e patri-
moniais ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico,
estético, histórico, turístico e paisagístico (Lei nº 7.347/85, art. 1º); a qualquer outro
interesse difuso ou coletivo (inciso IV, acrescido pela Lei nº 8.078/90, art. 110); à
ordem urbanística (inciso VI, acrescido pela MP nº 2.180/35); à ordem econômica
(inciso V, primeira parte, acrescido pela Lei nº 8.884/94); à economia popular
(inciso V, segunda parte, acrescido pela MP nº 2.102-26/2000).
O rito é o ordinário comum, com as especificidades da Lei nº 7.347/85, e
o Ministério Público atuará necessariamente como parte ou como fiscal da lei.
Aos legi­timados para a ação civil pública é facultada a formação litisconsorcial.
Em caso de abandono ou desistência infundada pela associação legitimada, o
Ministério Público ou qualquer outro legitimado assumirá a titularidade ativa.
Está previsto o litisconsórcio facultativo entre os ramos dos Ministérios Públicos
da União, do Distrito Federal e dos Estados, circunstância que evidencia a possi-
bilidade de quaisquer deles demandar isoladamente em qualquer juízo para o
cumprimento de sua missão institucional.
Nas ações cujo objeto consista em obrigação de fazer ou não fazer, o
juiz, além da execução específica, poderá fixar multa diária (astreintes) de ofí-
cio. Poderá o juiz ainda conceder liminar, com ou sem justificação prévia, em
decisão sujeita a agravo. A multa liminar só será exigível depois do trânsito
em julgado, mas o dies a quo será o do descumprimento da liminar. A conde-
nação em dinheiro reverterá para fundos federais ou estaduais. O juiz poderá
conferir efeito suspensivo aos recursos para evitar dano irreparável à parte.
Decorridos 60 dias do trânsito em julgado de sentença condenatória, sem que
a associação autora promova a execução, o Ministério Público ou qualquer um
dos demais legitimados deverão fazê-la.
A sentença civil de procedência faz coisa julgada erga omnes. A Lei nº 9.494/97
limitou os efeitos da sentença aos lindes territoriais do órgão prolator. O dispositivo
do art. 16 é duramente criticado pela doutrina, pois confunde os limites subjetivos
da coisa julgada com a competência do órgão prolator. Não fará coisa julgada a
sentença de improcedência por insuficiência de provas. Poderá ser intentada nova
ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.
A ação civil coletiva é considerada pela doutrina como uma espécie de
ação civil pública. Destinada especificamente à defesa dos interesses individuais
homogêneos (CDC, art. 91 e LOMPU, art. 6º, VII, “d”), visa à reparação concreta

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 39-57, jul./set. 2012
Tipologia dos direitos humanos de terceira dimensão e acesso à justiça 51
dos danos sofri­dos individualmente pelas vítimas do dano, diferentemente da
ação civil pública, que tem caráter genérico e abstrato. De acordo com o art. 95
do CDC, a condenação será genérica pelos danos causados individualmente, mas
a extensão será apurada em liqui­dação pelas vítimas individualmente ou pelos
legitimados coletivos, nos moldes dos artigos 97 a 100 do CDC.
A tutela metaindividual pode também ser realizada pelo mandado de segu-
rança coletivo com vista a afastar lesão a interesses metaindividuais líquidos e cer-
tos; por mandado de injunção coletivo, quando a falta de norma regulamentadora
inviabilizar o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas
inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania, de uma comunidade, ainda
que indetermináveis.
Já na tutela pela ação popular, o particular, ou melhor, o cidadão, defende
direitos de cunho difuso, como o patrimônio público, a moralidade administra-
tiva, o meio ambiente e o patrimônio histórico e cultural. Nesse caso, há uma
autorização no ordenamento para que o indivíduo possa ser o condutor autô-
nomo na condução do processo coletivo.
Por fim, mas não menos importante, o dissídio coletivo de trabalho é meio
de tutela do interesse de trabalhadores e de empresas, assim reconhecida esta
última como um organismo ontologicamente coletivo. Esse instrumento possi-
bilita a criação de normas jurídicas pela via heterônoma, isto é, pela Justiça do
Trabalho, desde que haja malogro na celebração de convenção ou acordo coletivo
de trabalho. A natureza metaindividual dessa ação torna-se evidenciada pela
especial característica de dispor regulação abstrata e futura para todos aqueles
que se encontrem vinculados àquele grupo ou que venham a ele pertencer.
A positivação dos interesses metaindividuais como direitos fundamen-
tais, a força coativa da coisa julgada e a inafastabilidade da jurisdição são instru-
mentos impor­tantes do Estado Democrático de Direito para tornar exigíveis os
interesses meta­individuais. Não obstante a evolução legislativa para a proteção
desses interesses, o número elevado de demandas para o aparato judiciário
brasileiro e a falta de um processo coletivo mais célere tendem a tornar tardio
o exercício de direitos humanos básicos, circunstância que lhes retira a efetivi-
dade plena do acesso à justiça, especialmente aos grupos sociais vulneráveis,
como trabalhadores, crianças, jovens, idosos, pessoas com deficiência, etc.

3.3.2 Instrumentos extrajudiciais


Há de ser ultrapassada a ideia de identificar acesso à justiça simplesmen-
te como acesso ao Poder Judiciário. A experiência atual, em consonância com
a terceira onda de acesso à justiça, tem mostrado que os instrumentos extraju-
diciais de tutela dos interesses metaindividuais estão sendo mais efetivos que

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 39-57, jul./set. 2012
52 Eduardo Maia Tenório da Cunha, Carlos Henrique Bezerra Leite

os judiciais no Brasil. Destacam-se nesse sentido o inquérito civil e o termo


de ajuste de conduta. Há também mediação, arbitragem, audiências públicas,
políticas públicas e toda a sorte de participação de organizações da sociedade
para a efetivação de direitos humanos.
A atuação extrajudicial talvez seja a mais profícua atualmente no âmbito
não penal. Primeiramente porque “deve-se evitar, sempre que possível, o afora-
mento de demandas que necessitem de pronunciamento jurisdicional, muitas
vezes demorado e oneroso”.12 Segundo porque a imprevisibilidade que habita
qualquer demanda posta em juízo, notadamente um certo estranhamento de
alguns juízes com o processo coletivo, acaba por tornar incerta a concretiza-
ção de direitos humanos comezinhos. Terceiro porque o sistema processual
coletivo é uma construção doutrinária e jurisprudencial, haja vista a inexistên-
cia de um código de processo coletivo brasileiro. Quarto porque o processo
executivo é ainda mais imprevisível que o processo coletivo de conhecimento
e pouco eficaz. Quinto porque a participação das partes no processo adminis-
trativo perante o Ministério Público na construção de uma solução negociada é
democrática (podem atuar, além das partes, quaisquer entidades interessadas),
abrangente (os limites objetivos e subjetivos da lide podem ser ampliados ou
reduzidos a qualquer instante) e menos sujeita a descumprimentos.
A construção da solução extrajudicial conta com o importante instrumento
jurídico do inquérito civil, que nasceu com a Lei de Ação Civil Pública (art. 8º, §1º).
Tornou-se instrumento exclusivo do Ministério Público com a Constituição de
1988. Espraiou-se pelo ordenamento jurídico em diversas outras leis, como a de
proteção de pessoas portadoras de deficiência (Lei nº 7.853/89), lei de responsa-
bilidade por danos causados aos investidores do mercado de valores mobiliários
(Lei nº 7.913/89), Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), Código
de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), Lei Orgânica Nacional do Ministério
Público (Lei nº 8.625/93) e da União (LC nº 75/93).
Inspirado no inquérito policial, o inquérito civil serve como procedimento
inves­tigatório do Ministério Público. Trata-se de procedimento administrativo
destinado a investigar o ato denunciado, colher elementos de convicção para
o ajuizamento de ação civil pública ou qualquer outra medida judicial ou tomar
termo de ajuste de conduta. Abrange a proteção dos interesses e direitos difu-
sos, coletivos e individuais homogêneos ligados aos direitos indisponíveis. Não
constitui pressuposto para o ajuizamento de ação ou a para o entabulamento

12
JATAHY. 20 anos de Constituição: o novo Ministério Público e suas perspectivas no Estado
Democrático de Direito. In: CHAVES; ALVES; ROSENVALD. Temas atuais do Ministério Público: a
atuação do Parquet nos 20 anos da Constituição Federal, p. 13.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 39-57, jul./set. 2012
Tipologia dos direitos humanos de terceira dimensão e acesso à justiça 53
de termo de ajuste de conduta, haja vista que os demais legitimados não detêm
a prerrogativa do inquérito. Só será instaurado se realmente for necessária a
colheita de elementos de convicção, pois em muitos casos a denúncia já vem
com provas suficientes para o ajuizamento da demanda ou obtenção do termo
de ajuste de conduta.
Na instrução do inquérito são coletadas todas as provas que embasam a
conclusão do procedimento. O Parquet tem a prerrogativa de requisitar infor-
mações e dados técnicos de quaisquer pessoas. As suas requisições têm assento
constitucional, dotando-o de poderes instrutórios (CF, art. 129, VI). Acaso o orde­
namento jurídico não o dotasse de tais poderes, poucos colaborariam com ele,
mormente os inquiridos, que não têm qualquer interesse de produzir prova con-
tra si. A recusa ou retardamento implica crime, punido com reclusão de um a três
anos e multa (LACP, art. 10).
O inquérito terá três conclusões possíveis: assinatura de termo de ajuste
de conduta, no qual o inquirido se compromete ao cumprimento da lei,
mediante a cominação de multa por descumprimento; ajuizamento de ação
civil pública ou outra ação, quando o órgão do Ministério Público estiver con-
vencido da irregularidade e o inquirido se recusa a assinar o termo; ou o
arquivamento por ausência de provas, legalidade do ato investigado ou
perda do objeto (LACP, art. 9º e 11).
A homologação do arquivamento do inquérito civil, assim como qual-
quer outro procedimento investigatório, será procedida pela remessa, obri-
gatória, em até três dias, para o Conselho Superior do Ministério Público, sob
pena de incorrer o órgão condutor em falta grave (art. 9º, §1º). O arquiva-
mento será sempre fundamentado. Recusada a homologação, será notificado
o Procurador-Geral ou o Procurador-Chefe da Regional para designar outro
órgão para: prosseguir nas investigações, se insuficientes as realizadas até
então; instaurar inquérito civil, se se tratar de peça informativa; ajuizar ação civil
pública ou qualquer outra medida judicial (LACP, art. 9º e §§). A nova designa-
ção não significa qualquer punição ao membro que propôs o arquivamento,
mas, antes, respeito ao princípio da independência funcional (CF, art. 127, §1º).
Além do mais, não seria conveniente que quem sugeriu o arquivamento fosse
obrigado a continuar investigando fatos ou promover medidas judiciais que
entende inviáveis ou inadequadas. Sinale-se que as associações legitimadas,
ou quem ofereceu a denúncia, podem manifestar-se quando da aprecia-
ção da homologação (LACP, art. 9º, §2º). Mesmo arquivado o inquérito, nada
impede aos demais legitimados a propositura da ação civil pública, cabendo
ao Ministério Público atuar como fiscal da lei.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 39-57, jul./set. 2012
54 Eduardo Maia Tenório da Cunha, Carlos Henrique Bezerra Leite

O termo de ajuste de conduta é hoje a opção jurídica mais eficaz ao


ajuizamento da demanda judicial. Teve origem no parágrafo único do art. 55
da Lei nº 7.244/84 (Lei de Pequenas Causas), que conferiu ao acordo judicial
celebrado entre as partes, e referendado pelo Ministério Público, a natureza
de título executivo extrajudicial. Foi introduzido pelo art. 113 do CDC, quando
acresceu o §6º ao art. 5º da LACP, e tem natureza jurídica de título executivo
extrajudicial (art. 5º, §6º, LACP).
É considerado como ato jurídico administrativo bilateral em relação
à vontade das partes e unilateral em onerosidade. Pode ser instituído por
quaisquer dos órgãos públicos que estejam legitimados para propor a ação
civil pública, consoante a literalidade do art. 5º, §6º, da LACP.
O objeto do termo de ajuste de conduta é em regra uma obrigação de
fazer ou não fazer, mas nada obsta seja uma obrigação de dar. A sua finalidade
é o cumprimento da lei de forma espontânea, rápida, simples e barata, além
de contribuir para o desafogo do Judiciário. Ademais, prejuízo algum traz ao
interesse individual tutelado, pois constitui garantia mínima de observância
da lei e não de limitação máxima de responsabilidade do causador do dano.
Não é acordo e nem transação, porquanto o órgão legitimado não pode
dispor dos interesses difusos da coletividade. É um ato negocial restrito, não
lhe sendo aplicáveis as regras do Código Civil sobre transação (art. 840 do
CCB/02). A transigência se dá unicamente quanto ao prazo, lugar e a forma de
cumprimento da obrigação prescrita em lei.
Para ser válido, exige-se reparação integral do dano, identificação das
obrigações a serem prestadas, estipulação de multas cominatórias para o caso
de descumprimento, assinatura das partes compromitente e compromissária.
Via de regra não possui termo final de validade. As multas cominatórias não se
confundem com cláusula penal, pois o objetivo da primeira é de coação de cará-
ter econômico, enquanto a segunda é cláusula estabelecida em contrato como
forma de ressarcir perdas e danos em função do inadimplemento do contrato.
Os compromissos são firmados normalmente com o fito de cumprimento
de obrigações de fazer ou não fazer e por isso são insusceptíveis de quantificação,
não substituem a obrigação principal e nem podem ser substituídos por obriga-
ção de dar. Os valores arrecadados com as multas, segundo a Lei de Ação Civil
Pública (art. 13), são destinados a um fundo gerido por um conselho estadual ou
federal, com a participação obrigatória do Ministério Público e de representantes
da comunidade, cujo valor destina-se a reconstituição dos bens difusos lesados.
A execução do termo em caso de descumprimento será feita perante
o juízo que teria competência para a ação de conhecimento (artigos 576 do
CPC ou 877-A da CLT) e comporta tanto a obrigação ajustada como o valor da

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Tipologia dos direitos humanos de terceira dimensão e acesso à justiça 55
multa cominatória. O termo de ajuste de conduta é um dos mais importantes
instrumentos de efetivação dos direitos e interesses metaindividuais de forma
célere e barata, prestando-se, sobretudo, ao diálogo social.
A arbitragem e a mediação também são formas de acesso à justiça para
a tutela de interesses metaindividuais, conquanto menos utilizados na prática.
A força coativa da arbitragem é significativa, uma vez que a sentença arbitral
impede a renovação da lide (CPC, 267, VII e 301, IX). Na mediação o poder de
coerção é mínimo ou quase inexistente, cabendo ao mediador a função de
aproximar as partes. Não obstante seu reduzido uso no Brasil, são formas céle-
res de solução de conflitos e uma alternativa ao abarrotado Poder Judiciário.
Há também notificações recomendatórias (art. 6º, XX, da LOMPU), audiências
públicas, oficinas, reuniões setoriais e outros eventos semelhantes. Desenvolve-se
por esses meios uma verdadeira participação democrática dos vários organismos
da sociedade organizada, como forma de promover os interesses metaindividuais
de maneira negociada. Com essas práticas, dissemina-se a consciência de cidada-
nia, em que qualquer do povo é um representante de toda a sociedade no mister
de cumprimento dos objetivos determinados pelo constituinte no seu projeto de
nação.

Considerações finais
A evolução dos direitos humanos no Brasil encontrou diversos entra-
ves de ordem filosófica e política. A origem colonial deixou um legado de
injustiça social difícil de ser combatido, sendo perceptível no inconsciente
coletivo da sociedade brasileira que a desventura de boa parte da população
é culpa de ninguém ou dos próprios desventurados. As diversas experiências
totalitárias e a insipiência de nossa democracia conjugaram fatores políticos
determinantes para o estabelecimento de uma cultura pouco valorativa dos
direitos humanos, não sendo raro nos dias de hoje relatos de caso de tortura
por agentes do estado.
Malgrado esse histórico de pouca tradição de respeito aos direitos huma-
nos, a marcha para o seu reconhecimento no plano jurídico e no plano dos
fatos é acelerada. A Constituição Cidadã positivou os direitos civis e políticos, os
direitos econômicos, sociais e culturais e diversos interesses metaindividuais. Além
disso, introduziu o Estado Democrático de Direito e estabeleceu uma série de ins-
trumentos de garantia para a efetivação dos direitos humanos.
O rápido desenvolvimento econômico brasileiro na última metade de
século precipitou o aparecimento aqui da sociedade de consumo em massa. A
globalização e a informatização, unidas a um mercado de consumo de duzen-
tos milhões de habi­tantes, acabaram por inserir o Brasil dentre as economias

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56 Eduardo Maia Tenório da Cunha, Carlos Henrique Bezerra Leite

mais fortes do planeta, circunstância que demandou mecanismos jurídicos de


acesso à justiça para a solução de conflitos e de efetivação dos direitos humanos.
Essa evolução socioeconômica brasileira teve de ser acompanhada de
um processo similar no plano jurídico. O velho instituto do direito subjetivo
teve de ser superado pela teoria dos interesses metaindividuais. Não seria mais
possível resolver demandas cada vez mais complexas com o processo de cariz
individual. Não seria mais possível deixar de efetivar os direitos humanos. A
evolução do processo coletivo e o desenvolvimento de meios extrajudiciais de
solução de conflitos têm sido fundamentais na efetivação dos direitos huma-
nos de terceira dimensão no Brasil.
Ainda que nossa experiência cultural seja relativamente nova, perce-
be-se que o desenvolvimento dos instrumentos jurídicos de tutela dos inte-
resses metaindividuais tem tido um incremento bastante significativo nas
últimas décadas, desde o seu nascedouro nos anos 70 do século passado.
Conquanto a efetivação dos direitos não seja igual para todas as clas-
ses sociais no Brasil e, por conseguinte, o acesso à justiça, é possível perceber
mudanças nesse cenário. Proliferam vários organismos associativos sindicais,
de grupos de interesse ou de parcelas excluídas da sociedade por intermé-
dio de organizações não governais postulando seus interesses e a efetivação
dos direitos humanos, de forma a debelar essa desigualdade ainda existente.
Outrossim, o aparelho estatal também tem se aperfeiçoado, haja vista que o
Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública têm-se estruturado para
melhorar seu desempenho como órgãos de garantia dos direitos humanos.
A evolução do direito como produto cultural representa a leitura moral
que o homem faz de si mesmo tendo em vista o sentimento de justiça. A teo­
ria dos direitos humanos e as ondas de acesso à justiça são demonstrações
desse progresso. Os interesses metaindividuais são espécies de direitos híbri­
dos, que perpassam a divisão histórica entre os direitos de primeira e segunda
dimensão e consagram valores de solidariedade para a raça humana. A sua
positiva­ção e efetivação são corolários do Estado Democrático de Direito
e, por isso, são inevitáveis para o Estado brasileiro. Mesmo num cenário de
grande concentração de renda e injustiça social, é possível olhar para o futuro
com otimismo, porquanto a efetivação dos interesses metaindividuais está se
aperfeiçoando, como bem demonstra a valorização do consumidor e do meio
ambiente, só para dar alguns exemplos.
Não obstante tais progressos, necessários se fazem a construção legis-
lativa de um código de processo coletivo, dotado de celeridade e meios de
efetivação dos provimentos judiciais, e o aperfeiçoamento legislativo dos pro-
cedimentos administrativos, com a concessão de meios ao Ministério Público
para coibir de per si ilicitudes. Sem meios eficazes para combater a injustiça de

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Tipologia dos direitos humanos de terceira dimensão e acesso à justiça 57
forma rápida, o Estado brasileiro poderá condenar-se ao descrédito perante a
população e deixar de cumprir os objetivos determinados pela Constituição.
Não se pode esmorecer. Se muito caminhamos, muito há por fazer.

Abstract: This paper is an interdisciplinary legal research, covering Cons­


titutional Law, the Civil Procedural Law, and Human Rights. We analyze
the evolution of human rights and realization of the rights of third
dimension based on access to justice.

Key words: Fundamental Rights. Right to Housing. Collective Rights.

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WEIS, Carlos. Direitos humanos contemporâneos. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
WEIS, Carlos. Direitos humanos contemporâneos. São Paulo: Malheiros, 1999.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

CUNHA, Eduardo MaiaTenório da; LEITE, Carlos Henrique Bezerra.Tipologia dos direitos humanos de
terceira dimensão e acesso à justiça. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte,
ano 20, n. 79, p. 39-57, jul./set. 2012.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 39-57, jul./set. 2012
Da análise da desistência do recurso
excepcional a partir da objetivação do
processo constitucional subjetivo
Magno Federici Gomes
Pós-Doutor em Direito Público e Educação pela
Universidade Nova de Lisboa – Portugal. Pós-Doutor
em Direito Civil e Processual Civil, Doutor em Direito
e Mestre em Direito Processual, pela Universidad
de Deusto-Espanha. Mestre em Educação pela
PUC Minas. Coordenador do curso de Direito
da Faculdade Padre Arnaldo Janssen. Professor
do Mestrado Acadêmico em Direito do Centro
Universitário UNA. Professor Adjunto da PUC Minas.
Advogado Sócio do Escritório Raffaele & Federici
Advocacia Associada. E-mail: <federici@pucminas.br>.

Daniel Lin Santos


Especialista em Direito Processual Civil
pela PUC Minas. Procurador Federal.
E-mail: <daniellinsantos@yahoo.com.br>.

Resumo: A Lei Federal nº 11.672/2008 acrescentou o art. 543-C ao Código


de Processo Civil (CPC), disciplinando o procedimento para julgamento,
em nova sistemática recursal, no Superior Tribunal de Justiça (STJ), dos
recursos especiais repetitivos e representativos de controvérsia, cujo
objetivo foi o de relativizar o dilema representado pelo grande número de
demandas submetidas ao crivo daquele Tribunal. Em dezembro de 2008,
o Órgão Especial do STJ, ressaltando o fato de que o interesse coletivo
da questão posta em Juízo é da essência do sistema de processamento
e julgamento dos recursos repetitivos, definiu a impossibilidade de
desistência recursal da parte recorrente que teve seu recurso especial
selecionado como representativo de uma determinada controvérsia,
quando o mesmo já estiver instruído e afetado para julgamento através
da Lei de Recursos Repetitivos. Assentou-se, na ocasião, que uma vez
escolhido o recurso modelo, a questão passa a ser de ordem pública, pois
há interesse geral e coletivo na fixação da tese jurídica a ser aplicada à
multiplicidade de recursos especiais sobrestados, com fundamento em
questão de direito idêntica. O procedimento passaria a ser considerado
de natureza coletiva, não podendo, por conseguinte, ficar à disposição
do recorrente. Trata-se de um estudo teórico-documental, sob um prisma
jurídico-propositivo. Ao se constatar haver tão somente um conflito
aparente de normas e princípios, bem como diante da verificação de
coexistência de dois procedimentos distintos no interior do recurso
especial paradigma (procedimento recursal principal e procedimento
coletivo incidental), verifica-se que é possível a desistência recursal do

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 59-90, jul./set. 2012
60 Magno Federici Gomes, Daniel Lin Santos

processo constitucional subjetivo, sem prejuízo da apreciação objetiva,


pelo STJ, da matéria jurídica aplicável à multiplicidade de recursos
especiais amparados em idêntica questão de direito.

Palavras-chave: Recursos especiais repetitivos. Recursos especiais represen-


tativos. Desistência recursal. Princípios da isonomia e da razoável duração do
processo. Interesse público e privado existentes no interior do processo. Pro-
cedimento recursal principal e incidental.

Sumário: 1 Introdução – 2 Princípios constitucionais e interesse público


no âmbito da novel sistemática de julgamento dos Recursos Especiais – 3 A
decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça na Questão de Ordem
Suscitada no Recurso Especial nº 1.063.343 e o instituto da desistência
recursal – Aparente conflito entre interesse público e privado dentro
do processo – 4 O fenômeno da “objetivação” do processo subjetivo –
Mudança de paradigma – 5 O processo de coletivização no anteprojeto
do novo Código de Processo Civil (PLS nº 166/2010) – 6 Alternativa à
solução desenhada pelo Superior Tribunal de Justiça – 7 Conclusões

1 Introdução
A Lei Federal nº 11.672, de 08 de maio de 2008, acrescentou o art. 543-C
ao Código de Processo Civil (CPC), disciplinando o procedimento para o jul-
gamento de recursos especiais repetitivos no âmbito do Superior Tribunal de
Justiça (STJ).
A exposição de motivos da Lei nº 11.672/2008 deixa clara a intenção do
legislador:

De há muito surgem propostas e sugestões, nos mais variados âmbitos


e setores, de reforma do processo civil. [...] O presente projeto de lei é
baseado em sugestão do ex-membro do Superior Tribunal de Justiça,
Ministro Athos Gusmão Carneiro, com o objetivo de criar mecanismo
que amenize o problema representado pelo excesso de demanda
daquele Tribunal. [...] Somente em 2005, foram remetidos mais de
210.000 processos ao Superior Tribunal de Justiça, grande parte deles
fundados em matérias idênticas, com entendimento já pacificado
naquela Corte. Já em 2006, esse número subiu para 251.020, o que
demonstra preocupante tendência de crescimento.

Com o intuito de amenizar esse problema, o presente anteprojeto


inspira-se no procedimento previsto na Lei nº 11.418/06 que criou

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 59-90, jul./set. 2012
Da análise da desistência do recurso excepcional a partir da objetivação do processo constitucional subjetivo 61
mecanismo simplificando o julgamento de recursos múltiplos,
fundados em idêntica matéria, no Supremo Tribunal Federal. [...]
Busca-se disponibilizar mecanismo semelhante ao Superior Tribu-
nal de Justiça para o julgamento do recurso especial.1

Assim, desde a vigência da Lei Federal nº 11.672/2008 — que foi regu-


lamentada pela Resolução do STJ nº 8, de 07 de agosto de 2008 —, se houver
multiplicidade de recursos especiais fundados na mesma matéria, caberá ao
presidente ou ao vice-presidente do Tribunal recorrido (art. 541 do CPC) sele-
cionar um ou mais processos representativos da controvérsia e encaminhá-los
ao STJ, suspendendo os demais recursos com idêntica fundamentação jurí-
dica até o seu pronunciamento definitivo (art. 543-C, §1º, do CPC, e art. 1º da
Resolução STJ nº 8/2008). Quando sobrevier a decisão da Corte Especial, serão
denegados os recursos que atacarem decisões proferidas no mesmo sentido.
Por outro lado, caso a decisão recorrida contrarie o entendimento firmado no
STJ, será dada oportunidade de retratação aos Tribunais de origem, devendo
ser retomado o trâmite do recurso caso a decisão recorrida seja mantida. Para
assegurar que todos os argumentos sejam levados em conta no julgamento
dos recursos selecionados, a lei permite que o relator solicite informações sobre
a controvérsia aos Tribunais de origem e admite a manifestação de pessoas, órgãos
ou entidades, inclusive daqueles que figurarem como parte nos processos suspen-
sos, bem como do Ministério Público (art. 543-C, §§3º, 4º e 5º, do CPC).
Pois bem. Em determinada questão submetida ao novo regramento legal,
foi selecionado para julgamento no STJ o caso representativo de controvérsia
contido no recurso especial nº 1.063.343/RS. Na referida hipótese, após verifi-
cada a existência de inú­meros recursos que versavam sobre a mesma matéria,
foi instaurado o proce­di­mento de recursos repetitivos, tendo havido a comuni-
cação aos Presidentes dos Tri­bunais Regionais Federais (TRFs) e dos Tribunais
de Justiça (TJs) da aludida instauração, bem como a determinação do sobresta-
mento do processamento dos Recursos Especiais que versassem sobre a mesma
matéria (interpretação controvertida sobre a aplicação do orde­namento jurídico),
bem assim a participação, na qualidade de amicus curiae, de diver­sas entidades,
e a consequente juntada de pareceres atinentes à questão. Entretanto, após a
inclusão do processo em pauta para julgamento, mas antes de iniciada a ses-
são, foi protocolada, pelo recorrente que teve seu recurso selecionado como
paradigma e representativo da discussão jurídica, petição de desistência do
recurso interposto.

1
BRASIL. Exposição de motivos, 2007.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 59-90, jul./set. 2012
62 Magno Federici Gomes, Daniel Lin Santos

Diante dessas circunstâncias, em dezembro de 2008, a Corte Especial


do STJ, ressaltando o fato de ser da essência do sistema de processamento e
julgamento de recursos especiais repetitivos o interesse coletivo da questão
posta em Juízo, definiu a impossibilidade de desistência recursal por parte do
recorrente que teve seu Recurso Especial selecionado como representativo da
controvérsia. Dessa feita, após a instrução e afetação do recurso especial para
julgamento através da sistemática da Lei de Recursos Repetitivos (art. 543-C
do CPC), a parte recorrente, cujo recurso foi selecionado, fica obrigada a vê-lo
analisado no mérito mesmo que assim não mais deseje.2
A controvérsia em torno da questão iniciou no âmbito da Segunda
Seção do STJ, cujos ministros discutiram, de forma acalorada, a possibilidade
de o Tribunal julgar o recurso e fixar a orientação que seria aplicada a milha-
res de causas idênticas, apesar do pedido de desistência do autor do remédio
processual paradigma. Na ocasião, a ministra Nancy Andrighi levantou ques-
tão de ordem, demonstrando inconformismo com o fato dos advogados do
Banco Volkswagen S/A terem pedido desistência de dois recursos depois que
eles foram colocados na pauta de julgamento pela sistemática em tela. Para
a ministra, depois que o recurso é encaminhado à Seção ou à Corte Especial,
o interesse na definição da causa deixa de ser apenas das partes e passa a ser
público, não obstante estar se tornando rotina pedidos de desistência após o pro-
cesso estar preparado para julgamento pelo incidente de recursos repetitivos.
A questão foi submetida à apreciação da Corte Especial do STJ em sede de
questão de ordem. Os votos da relatora e dos demais ministros registraram a coli-
são de interesses entre o pedido de desistência recursal e o interesse coletivo que
caracteriza o julgamento dos processos submetidos ao disposto no novel regime
inaugurado pelo art. 543-C do CPC. Afirmou-se que, com a modificação introdu-
zida pela Lei nº 11.672/2008, há interesse público na fixação da tese jurídica a ser
aplicada à multiplicidade de recursos especiais sobrestados na origem, a partir do
momento em que se reconhece um recurso como repetitivo, afetado, portanto,
ao regime da referida lei e ditado pela necessidade de uma pronta solução para

Em conformidade com: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Corte Especial. QO no REsp nº 1.063.343/
2

RS (Questão de Ordem no Recurso Especial). Rel. Min. Nancy Andrighi, Brasília, 17 dez. 2008. Diário
de Justiça Eletrônico, Brasília, 04 jun. 2009. Em sentido equivalente: BRASIL. Superior Tribunal de
Justiça. Segunda Seção. REsp nº 1.058.114/RS (Recurso Especial 2008/0104144-5). EMENTA: Direito
comercial e bancário. Contratos bancários sujeitos ao código de defesa do consumidor. Princípio
da boa-fé objetiva. Comissão de permanência. Validade da cláusula. Verbas integrantes. Decote
dos excessos. Princípio da conservação dos negócios jurídicos. Artigos 139 e 140 do Código Civil
alemão. Artigo 170 do Código Civil brasileiro. Rel. para o Acórdão Min. João Otávio de Noronha, Rel.
Min. Nancy Andrighi, Brasília, 12 ago. 2009. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 16 nov. 2010.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 59-90, jul./set. 2012
Da análise da desistência do recurso excepcional a partir da objetivação do processo constitucional subjetivo 63
a causa, que é representativa de inúmeras outras. E, pelo fato de o procedimento
passar a ser considerado de natureza coletiva, não poderia, por conseguinte, ficar
à disposição do recorrente que teve seu recurso especial selecionado como repre-
sentativo de uma determinada discussão interpretativa do ordenamento jurídico.
Eis, assim, a delimitação do arcabouço fático-jurídico ensejador do debate
proposto. A questão versa sobre a possibilidade das partes desistirem do recurso
depois que ele for colocado na pauta de julgamento do Tribunal sob os ditames
do procedimento da Lei de Recursos Repetitivos, tornando-se imperativo pro-
ceder à análise dos pressupostos dessa compreen­são — que inadmite a desis-
tência recursal — à luz dos demais institutos jurídicos envolvidos na demanda.
Para além do acerto ou não da decisão proferida pelo STJ, na Questão de
Ordem no Recurso Especial nº 1.063.343/RS, este estudo coloca em discussão a
idoneidade e consistência da técnica do art. 543-C do CPC na busca da resolução
efetiva dos litígios em massa ou macrolides. Mais especificamente no aspecto da
desistência enquanto instituto jurídico-processual, visto que, ao se consolidar
a posição adotada pelo STJ, haverá restrição do poder da parte de desistir do
recurso interposto, ato este que sempre foi afeto exclusivamente à autonomia
privada do recorrente e ao princípio da disponibilidade da demanda (ou prin-
cípio dispositivo). Afinal, como é cediço, a desis­tência do recurso produz efeitos
imediatos (art. 158 do CPC), não necessitando de homo­logação judicial, nem de
concordância da parte contrária (art. 501 do CPC).
Nas palavras dos doutrinadores Didier Júnior e Cunha (2009), “é dizer:
não se pode, em princípio, rejeitar a desistência, pois não se pede a desistência,
simplesmente se desiste e a desistência produz efeitos imediatos”.3
Em síntese, a decisão do STJ provocou discussão em torno do suposto
conflito que se teria instaurado entre o interesse público — consistente na
necessidade de resolução da causa e consequente fixação da tese a ser apli-
cada aos demais recursos especiais suspensos na origem —, e o interesse pri-
vado, consubstanciado no exercício regular de um direito subjetivo, qual seja,
a desistência recursal (art. 501 do CPC); instituto este que foi tradicionalmente
tratado pela doutrina como manifestação do princípio da disponibilidade da
demanda (ou princípio dispositivo) e da autonomia privada.
O tema ora proposto se mostra relevante. A uma, por se tratar de alteração
legis­lativa relativamente recente, muito ainda havendo a ser investigado sobre
o procedimento introduzido pelo art. 543-C do CPC, dentre o que se destaca

DIDIER JÚNIOR; CUNHA. Curso de direito processual civil: meios de impugnação às decisões
3

judiciais e processo nos tribunais, v. 3, p. 323.

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64 Magno Federici Gomes, Daniel Lin Santos

a problemática em torno da desistência do Recurso Especial representativo de


uma controvérsia em processo afetado como repetitivo (coletivo); a duas, tendo
em vista a importância do tema para os denominados “litigantes habituais”, cujo
pedido de desistência em um determinado processo repetitivo — ou a opção
pelo desfecho através de decisão judicial nele proferida —, repercute em inúme-
ros outros processos judiciais semelhantes em que é parte.
A pesquisa analisou as bases teóricas, em separado, dos institutos da desis­
tência recursal e do procedimento de julgamento dos recursos especiais repeti-
tivos por amostragem. Para isso, procedeu-se à leitura do que já se escreveu sobre
ambos os temas. Mais especificamente, quanto ao primeiro instituto, sobre os
princípios dispositivo e da autonomia privada; e, quanto ao segundo, sobre o dito
interesse público inerente ao procedimento de fixação da tese jurídica aplicável à
multiplicidade de recursos especiais sobrestados com fundamento em idên-
tica questão de direito. Uma vez compreendidas as razões desses institutos em
sepa­rado, elas foram analisadas sob uma situação aparentemente antagônica,
qual seja, a hipótese paradigmática decidida pelo STJ no Recurso Especial
nº 1.063.343/RS. Dito isso, trata-se, a presente, de pesquisa teórico-­documental e
jurídica propositiva que, por meio de subsídios legais, jurisprudenciais e doutri-
nários, tem como escopo principal propor algumas soluções para o aprimora-
mento da sistematização dos pronunciamentos judiciais nos Tribunais pátrios.

2 Princípios constitucionais e interesse público no âmbito da


novel sistemática de julgamento dos Recursos Especiais
O Direito processual contemporâneo adota a sistemática de coletiviza-
ção para ampliar o acesso à jurisdição. Com efeito, o legislador, paulatinamente,
incor­pora ao ordenamento jurídico processual soluções judiciais de massa para
uma sociedade igualmente massificada. Assim foram com o art. 285-A do CPC
(julgamento liminar de improcedência do pedido ou julgamento ultra anteci-
pado da lide), o art. 518, §1º, do CPC (súmula impeditiva de recursos), o art. 557,
caput e seu §1º, do CPC (poderes do Relator), os arts. 543-A e 543-B do CPC (reper-
cussão geral em recurso extraordinário), a Lei nº 11.417/2006 (súmula vinculante)
etc. Hoje, o mesmo sistema avança, introduzindo instrumentos processuais como
o do art. 543-C do CPC, idealizado para solucionar o excesso de processos com
idêntica questão interpretativa de direito que tramitam pelos diversos graus de
jurisdição, numa dimensão que se pretende transindividual.
Tal dimensão ostenta a nobre função de resguardar o direito objetivo,
mantendo a coesão do ordenamento jurídico. É, a rigor, uma consequência ina-
fastável do sistema político nacional, em razão da necessidade de uniformização

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Da análise da desistência do recurso excepcional a partir da objetivação do processo constitucional subjetivo 65
na aplicação e interpretação do direito constitucional e do infraconstitucional
federal de todo o território nacional.
São duas as perspectivas constitucionais sob as quais o incidente previsto
no art. 543-C do CPC deve ser analisado: a primeira, de maximizar o direito funda-
mental à isonomia (art. 5º, caput, da Constituição da República de 1988 – CR/88);
e a segunda, de garantir a plena realização do direito à razoável duração do pro-
cesso (art. 5º, inciso LXXVIII, da CR/88), conforme disposto na Questão de Ordem
no Recurso Especial nº 1.063.343/RS, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi.4 Por
isso é que se toma, como uma das características desta lei, bem como de outras
que também vieram reformar o CPC, a tentativa de adoção, tanto quanto possí-
vel, da uniformização de soluções para situações semelhantes, ou seja, em igual-
dade de condições.
Trata-se, em verdade, de um fenômeno moderno da sociedade de massa,
que introduziu no sistema brasileiro de origem romano-germânica a técnica
inerente ao sistema anglo-saxônico, inspirado no princípio da isonomia, de se
aplicar o precedente judicial em caráter erga omnes nas causas que apresentam
um interesse comum a uma multiplicidade inidentificável de jurisdicionados.
Ora, como é cediço, inúmeras causas repetitivas são distribuídas aos Tribunais
Superiores, demandando receber, por força do princípio da isonomia, o mesmo
tratamento meritório.
Por outro lado, à luz da concepção da efetividade dos processos e da
celeridade dos procedimentos, o legislador pátrio debruça-se em propostas
“cuja técnica de julgamento atende a necessidade de eficácia da decisão sob
o enfoque transindividual, mercê de imprimir metodologia apta a esvaziar o
acervo incalculável de processos nos Tribunais Superiores”.5
Nesse sentido, a Lei nº 11.672/2008 certamente tem a mesma inspiração
de todos os outros instrumentos processuais apontados anteriormente, o que
demonstra tratar-se de forte tendência do ordenamento jurídico-processual
pátrio. É dizer, o art. 543-C do CPC será mais uma técnica de solução de massa
para situações jurídicas idênticas. Isso só vem a prestigiar os princípios da iso-
nomia e da segurança jurídica, além, é claro, do princípio da eficiência proces-
sual e de sua razoável duração, conferindo ao recurso especial uma expressiva
dimensão transindividual e assemelhando-o às tutelas jurisdicionais prestadas

4
Conforme BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Corte Especial. QO no REsp nº 1.063.343/RS
(Questão de Ordem no Recurso Especial). Rel. Min. Nancy Andrighi, Brasília, 17 dez. 2008. Diário
de Justiça Eletrônico, Brasília, 04 jun. 2009.
5
FUX. A desistência recursal e os recursos repetitivos. Revista de Direito Renovar, p. 4.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 59-90, jul./set. 2012
66 Magno Federici Gomes, Daniel Lin Santos

em demandas coletivas (e.g., ação popular, ação civil pública, ação direta de
inconstitucionalidade e outras).6
A constatação dessa tendência não passou despercebida pela doutrina,
ainda que sob severas críticas, como registrou o Professor Bahia (2009):

Há muito que se reafirma a prevalência de um pretenso interesse público


a guiar o STF (e agora também o STJ) no julgamento dos recursos extraor-
dinários. Tal prevalência justifica boa parte dos “óbices” a que se submete
o recorrente para conseguir ter acesso aos Tribunais Superiores, além de
afetar o próprio julgamento por esses tribunais — quando é o caso de
haverem sido admitidos —, já que despidos da análise do “caso”, que é
tratado como um “tema”, um standard. [...] Repisamos: eles (os Tribunais
Superiores) não formulam “teses”, mas julgam “casos”. [...] Ao contrário do
que até então se afirmara, não há uma prevalência do interesse público
(preservação da uniformidade na interpretação e da autoridade da lei e/
ou preservação de interesses estatais) sobre um “mero” interesse das par-
tes, mas uma relação co-produtiva entre ambos, da qual deve fazer surgir
a decisão correta.7

Nesse mesmo sentido, disserta Nunes (2008), bem sintetizando as crí-


ticas doutrinárias acerca do tema:

As técnicas de recursos repetitivos (543-C, CPC) e da repercussão


geral (art. 102, §3º, CRFB/88 e 543-A e B, CPC) se encaixam no perfil
das chamadas “causas piloto” ou “processos teste” (Pilotverfahren ou
test claims), no qual, para resolução dos litígios em massa, “uma ou
algumas causas que, pela similitude na sua tipicidade, são escolhi-
das para serem julgadas inicialmente, e cuja solução permite que se
resolvam rapidamente todas as demais” (apud CABRAL). No entanto,
a técnica dos “processos teste” não permite uma participação efetiva
dos interessados, eis que os “recursos representativos da controvér-
sia” serão escolhidos (pinçados) pelo órgão a quo ou ad quem, sem
qualquer garantia de que todos os argumentos relevantes para o

6
Para aprofundamentos, ver NOGUEIRA. A nova sistemática do processamento e julgamento
do recurso especial repetitivo, art. 543-C, do CPC. Revista de Processo.
7
BAHIA. Os Recursos Extraordinários e a co-originalidade dos interesses público e privado no
interior do processo: reformas, crises e desafios à jurisdição desde uma compreensão proce-
dimental do Estado Democrático de Direito. In: OLIVEIRA; MACHADO. Constituição e processo:
a contribuição do processo no constitucionalismo democrático brasileiro. cap. 3, p. 369.

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Da análise da desistência do recurso excepcional a partir da objetivação do processo constitucional subjetivo 67
deslinde da causa, suscitados por todos os interessados, sejam levados
em conta no momento da decisão. A participação se limita às partes
dos recursos afetados, que podem ou não ter apresentado uma argu-
mentação idônea e técnica. Perceba-se que, com a técnica de “proces-
sos teste”, adotada pelos institutos, os Tribunais Superiores (STF e STJ)
não julgarão mais todos os recursos que lhe forem dirigidos (não
julgará mais as causas), mas, sim, o tema (tese) que estiver sendo
abordado nos recursos representativos (apud BAHIA). O mecanismo
de pinçamento, em última análise, é uma clara técnica de varejo para
solucionar um problema do atacado [...].8

Críticas a parte9 — pois não fazem parte do escopo deste trabalho —, veri­
fica-se que a decisão proferida pelo STJ, além das perspectivas constitucionais
do direito à razoá­vel duração do processo e do direito fundamental à isonomia,
conferiu ao sistema do art. 543-C do CPC outro atributo, de cunho infraconstitu-
cional, mas não menos importante, qual seja, o de assegurar o inte­resse público
consistente na fixação do precedente a ser aplicado à multiplicidade de recursos
sobrestados, na origem ou perante o Tribunal Superior, e na necessidade de uma
pronta solução para a causa modelo. Esta, por extrapolar a esfera jurídica indivi-
dual das partes, é representativa de inúmeras outras, de cujo procedimento, por
conseguinte, não poderia desistir o recorrente.
Nesse sentido, à luz do processo civil moderno, a parte não teria o direito
de desistir de um caso que terá efeitos sobre milhares de outros, sob pena de
afronta à própria ideia de jurisdição enquanto poder/dever de “dizer o direito”
ao(s) caso(s) concreto(s), solucionando a lide. Por todos, cumpre registrar a lição
de Fux (2010):

É que a técnica dos recursos repetitivos abarca interesse público


indis­ponível pela vontade das partes. O escopo da novel técnica é
atingir uma multiplicidade de demandantes, o que significa o seu
espectro transindividual, suficiente por si só para tornar indisponível
e impossível de desistência o recurso interposto. A doutrina do
processo coletivo, a que pertencem os recursos repetitivos, assenta
que na jurisdição transindividual o próprio Poder Judiciário tem
interesse jurisdicional no conhecimento do mérito. [...] O Princípio
da Efetividade Processual nas demandas coletivas assume relevo

NUNES. Decisão do STJ: Corte Especial nega desistência de recurso repetitivo. Jus Navigandi.
8

Entre elas a de possível negativa de acesso à jurisdição (art. 5º, inciso XXXV, da CR/88).
9

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 59-90, jul./set. 2012
68 Magno Federici Gomes, Daniel Lin Santos

singular, porquanto nessa moda­lidade de tutela jurisdicional coletiva


visa-se numa só relação processual pacificar o maior número de
conflitos sociais possíveis, mercê da função preventiva de evitar a
proliferação dos mesmos, gerando instabilidade social.10

A partir da visão do STJ, o interesse público que gravita em torno dos


recursos repetitivos impediria a aplicação literal da regra ínsita no art. 501 do
CPC. No entanto, como será demonstrado adiante, a existência conjunta de
interesses público e privado dentro do processo submetido à sistemática do
art. 543-C do CPC enseja igualmente a coe­xistência, ali, de dois procedimentos
autônomos, quais sejam, o procedimento recursal principal, esse individual, e
procedimento recursal incidental, este último coletivo.

3 A decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça


na Questão de Ordem Suscitada no Recurso Especial
nº 1.063.343 e o instituto da desistência recursal – Aparente
conflito entre interesse público e privado dentro do processo
A possibilidade de desistência recursal está prevista no art. 501 do
CPC. Consiste no direito subjetivo do recorrente de requerer que seu recurso,
outrora interposto, não seja apreciado pelo órgão ad quem, o que lhe asse-
gura, a qualquer tempo, independentemente da anuência do recorrido ou
de eventuais litisconsortes, desistir. Nesse ponto reside a clara manifestação
da autonomia privada da parte na relação jurídica processual, posto se tratar,
a desistência, de ato unilateral do recorrente.
Não por outra razão, o instituto da desistência em matéria de recursos
sempre foi tradicionalmente tratado pela doutrina como manifestação do
princípio da disponibilidade da demanda (ou princípio dispositivo) e da auto-
nomia privada, como asseveram Marinoni e Arenhart (2010):

Interposto o recurso, mas não tendo mais interesse em prosseguir


na apreciação da insurgência, pode o recorrente desistir do recurso
já inter­posto, mesmo sem a anuência da parte contrária ou de seus
litisconsortes, seguindo-se então o curso normal do procedimento
no Juízo a quo (art. 501 do CPC). Ocorrendo a desistência do recurso,
impede-se o prosseguimento do respectivo processamento, ficando
ao tribunal vedado conhecer da insurgência.11

10
FUX. A desistência recursal e os recursos repetitivos. Revista de Direito Renovar, p. 12.
11
MARINONI; ARENHART. Curso de processo civil: processo de conhecimento, v. 2, p. 523.

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Da análise da desistência do recurso excepcional a partir da objetivação do processo constitucional subjetivo 69
Mais um fator mostra-se como afirmação dos princípios da disponibilidade
da demanda e da autonomia privada nesta matéria, qual seja, o fato da desistência
recursal também prescindir de homologação judicial para que produza seus efei-
tos jurídicos. Com efeito, extrai-se do art. 158, caput, do CPC que “os atos das partes,
consistentes em declarações unilaterais ou bilaterais de vontade, produzem ime-
diatamente a constituição, a modificação ou a extinção de direitos processuais”,12
excepcionando-se a hipótese prevista no parágrafo único do referido dispositivo,
na qual o legislador previu a necessidade de homologação por sentença da desis-
tência da ação. Nesse sentido, vale mencionar as lições de Moreira (2008 e 2004):

A diferença em relação às hipóteses de ato dependente de homolo-


gação reside em que, nestas, o pronunciamento judicial tem natureza
constitutiva, acrescenta algo novo, e é ele que desencadeia a produ-
ção dos efeitos, ao passo que, aqui, toda eficácia remonta à desistên-
cia, cabendo tão-só ao juiz ou ao tribunal apurar se a manifestação
de vontade foi regular e — através de pronunciamento meramente
declaratório — certificar os efeitos já operados.13

É desnecessária, em qualquer caso, a lavratura de termo. Nem sequer


exige o Código que a desistência do recurso seja homologada, con-
forme resulta do disposto no art. 158, caput: a exceção contemplada
no parágrafo único apenas concerne à desistência da ação. O órgão
judicial, tomando conhecimento da desistência do recurso e verifican-
do-lhe a validade, simplesmente declarará extinto o procedimento
recursal.14

A matéria constante da decisão do STJ, ora analisada, esbarra na previ-


são legal insculpida no art. 501 do CPC. Ocorre que a aludida decisão da Corte
Especial do STJ praticamente negou validade ao referido dispositivo infracons-
titucional, modificando a sua interpretação na hipótese do Recurso Especial
afetado como representativo, nos moldes do art. 543-C do CPC, incluído pela
Lei nº 11.672/08. Assim, para o STJ a desistência recursal não será mais permi-
tida nessas hipóteses, sendo a parte, que teve seu recurso selecionado como
paradigma, obrigada a vê-lo analisado no mérito, mesmo que assim não mais
pretenda. Na ocasião, firmou-se o entendimento segundo o qual “é inviável o

12
BRASIL. 1973, art. 158.
13
MOREIRA. Comentários ao Código de Processo Civil, v. 5, p. 334-335.
14
MOREIRA. O novo processo civil brasileiro: exposição sistemática do procedimento, p. 126.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 59-90, jul./set. 2012
70 Magno Federici Gomes, Daniel Lin Santos

acolhimento de pedido de desistência recursal formulado quando já iniciado o


procedimento de julgamento do Recurso Especial representativo da controvér-
sia, na forma do art. 543-C do CPC c/c Resolução nº 08/08 do STJ”.15
O voto condutor da Ministra Relatora Nancy Andrighi consignou que o
interesse público inerente ao procedimento incidente dos recursos repetitivos
deve preponderar sobre o interesse particular do recorrente na desistência do
recurso, in verbis:

Para a instauração do incidente do processo repetitivo, inédito perante


o Código de Processo Civil, praticam-se inúmeros atos processuais, de
reper­cussão nacional, com graves conseqüências. Basta, para tanto,
analisar o ato processual de suspensão de todos os recursos que ver­
sem sobre idêntica questão de direito, em andamento nos diver­
sos Tribunais do país. Tomando-se este exemplo da suspensão dos
processos, sobrevindo pedido de desistência do recurso representativo
do incidente e defe­rido este, mediante a aplicação isolada do art. 501
do CPC, será atendido o interesse individual do recorrente que teve seu
processo selecio­nado. Todavia, o direito individual à razoável duração
do processo de todos os demais litigantes em processos com idêntica
questão de direito será lesado, porque a suspensão terá gerado mais um
prazo morto, adiando a decisão de mérito da lide. Não se pode olvidar
outra grave conseqüência do deferimento de pedido de desistência puro
e simples com base no art. 501 do CPC, que é a inevitável necessidade de
selecionar novo processo que apresente a idêntica questão de direito,
de ouvir os amici curiae, as partes interessadas e o Ministério Público,
oficiar a todos os Tribunais do país, e determinar nova suspensão, sendo
certo que a repetição deste complexo procedimento pode vir a ser
infinitamente frustrado em face de sucessivos e incontáveis pedidos
de desistência. A hipótese não é desarrazoada, por ser da natureza das
lides repetitivas que exista uma parte determinada integrando um de
seus pólos. Entender que a desistência recursal impede o julgamento
da idêntica questão de direito é entregar ao recorrente o poder de
determinar ou manipular, arbitrariamente, a atividade jurisdicional que
cumpre o dever constitucional do Superior Tribunal de Justiça, podendo
ser caracterizado como verdadeiro atentado à dignidade da Justiça.16

15
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Corte Especial. QO no REsp nº 1.063.343/RS (Questão de
Ordem no Recurso Especial). Rel. Min. Nancy Andrighi, Brasília, 17 dez. 2008. Diário de Justiça
Eletrônico, Brasília, 04 jun. 2009.
16
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Corte Especial. QO no REsp nº 1.063.343/RS (Questão de
Ordem no Recurso Especial). Rel. Min. Nancy Andrighi, Brasília, 17 dez. 2008. Diário de Justiça
Eletrônico, Brasília, 04 jun. 2009.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 59-90, jul./set. 2012
Da análise da desistência do recurso excepcional a partir da objetivação do processo constitucional subjetivo 71
Nesse mesmo sentido e explicitando a classificação quanto ao objeto,
o Ministro Ari Pargendler, concluindo pela impossibilidade de desistência de
recurso especial que o Tribunal tenha afetado ao regime da Lei nº 11.672/2008,
consignou em seu voto:

[...] o recurso especial serve para a proteção do ordenamento jurídico.


O interesse privado só conta de modo mediato, como veículo. Isso, não
obstante, nunca foi impedimento para a desistência do recurso espe-
cial. No entanto, com a modificação introduzida pela lei em comento,
entendo que o interesse público ditado pela necessidade de uma pronta
solução para essa causa, que é representativa de inúmeras outras, não
pode ser obstado pelo interesse da parte. Aliás, é exatamente isso o que
me parece, dado o empenho que vejo na desistência deste recurso, ou
seja, o empenho de se opor ao interesse público, de o Judiciário resol-
ver a questão. Havendo interesse privado subalterno, dou prevalência
ao interesse público decidindo no sentido de que não se pode desistir
de um recurso especial que o Tribunal afetou ao regime da lei.17

Várias críticas foram dirigidas ao posicionamento adotado pelo STJ no


julgamento da QO no REsp nº 1.063.343/RS. Nas palavras de Nunes (2008),
criou-se “uma exceção interpretativa, uma ficção jurídica, além de se aumen-
tar o grau de complexidade normativa na utilização da sistemática processual,
para se resolver um problema pragmático do Tribunal Superior, na utilização
da técnica”.18
Já para Streck (2008), “a decisão do STJ nitidamente descaracteriza o ins-
tituto do recurso especial como forma de impugnação de decisões, transfor-
mando-o em um processo quase objetivo”.19 Nas palavras do autor (2008):

De ressaltar, desde logo, que a decisão do STJ nitidamente descarac-


teriza o instituto do recurso especial, ou seja, como forma de impug-
nação de decisões dando prolongamento ao processo, por disposição
dos diretamente interessados, as partes, transformando-o, a partir da
sua interposição, em um processo quase objetivo, no que diz respeito não

17
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Corte Especial. QO no REsp nº 1.063.343/RS (Questão de
Ordem no Recurso Especial). Rel. Min. Nancy Andrighi, Brasília, 17 dez. 2008. Diário de Justiça
Eletrônico, Brasília, 04 jun. 2009. Voto do Min. Ari Pargendler.
18
NUNES. Decisão do STJ: Corte Especial nega desistência de recurso repetitivo. Jus Navigandi.
19
STRECK. O STJ e a desistência de recurso. Jus Navigandi.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 59-90, jul./set. 2012
72 Magno Federici Gomes, Daniel Lin Santos

apenas àquele processo, mas aos efeitos nos outros. Ora, as partes não
têm legitimidade para discutir algo como “a aplicação da lei em tese”,
ou seja, acerca de quais seriam as aplicações que, em princípio, uma lei
teria para além do caso. Veja-se: as partes no recurso não representam
nem substituem a socie­dade; estão ali na defesa dos seus direitos, elas não
foram eleitas por ninguém... E se aquela decisão pode vir a afetar outros
processos em razão de uma suposta eficácia erga omnes, o que ocorre
é a violação do devido processo, do contraditório, da ampla defesa
em relação aos demais. Em outras palavras, o que fica claro nessa
decisão do STJ é que o Recurso Especial, agora, mais do que nunca,
não “pertence” às partes; não “serve” às mesmas, mas apenas (ou quase
tão somente) ao “interesse público”, que, convenhamos, não passa de
uma expressão que sofre de “anemia significativa”, nela “cabendo qual-
quer coisa”, mormente se for a partir do “princípio” da razoabilidade,
álibi para a prática de todo e qualquer pragmatismo. Assim decidindo,
o STJ quis transmitir-nos o seguinte recado: se o recurso não serve às
partes, mas a um interesse “maior”, “transcendente”, nada mais “natu-
ral” (sic) que o recorrente não possa dele desistir, já que (seu recurso)
está sendo utilizado para um “bem maior” (mais uma vez aqui as
velhas “razões de Estado”...). Em linha divergente, penso que o Tribu-
nal se equivoca, pois se considerarmos que, com a figura da reunião
de recursos “idênticos” o que se tem é um “litisconsórcio por afinidade”
(a expressão é de Fredie Didier), o que temos aí é mais um argumento
para mostrar que a decisão fere, também por esse viés, o art. 501 do CPC.20

A inclusão do art. 543-C no CPC, de fato, trouxe conteúdo que culminou na


objetivação do julgamento dos recursos especiais, com a análise, em abstrato, de
questões reiteradamente conduzidas à apreciação do STJ. Daí a inevitável discus-
são em torno do conflito entre interesse público e interesse privado no interior do
processo civil. Segundo o STJ, a objetivação do processo subjetivo não permitiria
a sobreposição da conveniência do recorrente ao interesse dos demais litigantes
em remédios processuais repetitivos que queiram ver o assunto pacificado. Afinal,
uma vez afetado para julgamento pelo procedimento previsto no art. 543-C,
o recurso especial eleito deixaria de dizer respeito somente à pretensão de seu
recorrente e passaria a interessar ao universo dos demais jurisdicionados cujos
meios impugnativos endoprocessuais aguardam o desfecho daquele julgamento.

20
STRECK. O STJ e a desistência de recurso. Jus Navigandi.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 59-90, jul./set. 2012
Da análise da desistência do recurso excepcional a partir da objetivação do processo constitucional subjetivo 73
4 O fenômeno da “objetivação” do processo subjetivo –
Mudança de paradigma
A introdução de institutos como o inaugurado pelo art. 543-C do CPC
no direito positivo brasileiro está trazendo, para o processo civil ordinário —
até pouco tempo marcadamente individualista —, certos contornos objetivos
que são próprios dos típicos processos de controle concentrado de constitu-
cionalidade, nos quais se discute a constitucionalidade de um ato jurídico em
abstrato.
Como é cediço, no ordenamento jurídico pátrio, o modelo de controle
reser­vado de constitucionalidade está vinculado a um processo eminentemente
objetivo, tendo em vista que o julgamento levado a efeito pelo Tribunal não
está diretamente vinculado a uma questão de interesse direto das partes. Ao
se tomar por fundamento o princípio da supremacia da Constituição frente às
demais espé­cies normativas, a instauração de um procedimento de controle abs-
trato de normas tem por objeto a verificação da compatibilidade ou não entre os
preceitos de determinado ato normativo em face dos princípios e regras inscul-
pidos na CR/88. Quando em confronto, a questão resolve-se em detrimento dos
primeiros, os quais serão extirpados do ordenamento jurídico por serem contrá-
rios à Constituição, formal ou materialmente.
As decisões tomadas em sede de controle concentrado de constitucio-
nalidade possuem, em regra, eficácia erga omnes e efeitos ex tunc e vinculante.
Não se discute situações individuais, isto é, inerentes ao caso concreto. Tutela-se,
sim, com alto grau de abstração e generalidade, o ordenamento jurídico como
um todo, em conformidade com a lei fundamental. Daí dizer que o controle
normativo abstrato de constitucionalidade constitui processo de natureza emi-
nentemente objetiva, vocacionado à defesa, em tese, da harmonia da ordem
constitucional.
Postas, em apertada síntese, as características deste procedimento abs-
trato de controle normativo, fala-se em tendência à consolidação do fenômeno
da objetivação do processo constitucional subjetivo — numa nítida viragem de
paradigma —, na medida em que aqueles contornos, que antes eram próprios
dos procedimentos de controle abstrato de normas, agora estendem seus ten-
táculos aos processos ordinários de caráter tradicionalmente subjetivo ou de
defesa de interesses exclusivamente das partes, em função de afetação coletiva
e transcendente do julgamento em recursos excepcionais. É o que se verifica nas
hipóteses de recorribilidade extraordinária lato sensu (recursos extraordinários e
especiais) e, mais especificamente, no que é pertinente ao objeto do presente

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 59-90, jul./set. 2012
74 Magno Federici Gomes, Daniel Lin Santos

trabalho, no caso da sistemática de julgamento dos recursos especiais repetitivos.


Tal interpretação também deve ser utilizada no instituto da repercussão geral em
recursos extraordinários stricto sensu (arts. 102, §3º, da CR/88, 543-A e 543-B do CPC).
Nas palavras de Côrtes (2009), os “contornos do processo de controle de
constitucionalidade concentrado, tipicamente objetivo, estão cada vez mais
presentes na recorribilidade extraordinária”,21 e conclui acerca do procedimento
introduzido pelo art. 543-C do CPC e do julgamento do STJ em tela:

Essa decisão bem demonstra o prestígio maior que a Corte deu, no


caso, ao interesse público, mitigando o interesse do particular (que
optou por recorrer e gostaria de optar por desistir). Ao mitigar o inte-
resse privado, no caso, a despeito inclusive do artigo 501, do CPC, res-
tou clara a valorização do interesse público, atribuindo características
mais objetivas ao procedimento recursal.22

Sabe-se que todos os recursos de natureza extraordinária possuem o inte-


resse público destacado, mas o que impulsiona a recorribilidade é sempre o inte-
resse privado. De maneira que existe a classificação dos recursos quanto ao objeto.
Se ordinários, tutelam apenas o direito subjetivo das partes. Se extraordinários lato
sensu, desejam a proteção do direito objetivo por via direta, ou seja, do ordena-
mento jurídico, e, por meio indireto, as pretensões subjetivas dos demandantes.
Entretanto, sob o prisma da tutela jurisdicional efetiva,23 constata-se, a
partir das inovações introduzidas no CPC em função da Emenda Constitucional
(EC) nº 45, de 08 de dezembro de 2004, a criação e o desenvolvimento de um
espaço público de discussão jurídica mais amplo no bojo do processo constitu-
cional subjetivo. A mudança de paradigma é clara: ruptura do que se tinha até
então — representado pelos interesses e pelas vontades predominantes dos
litigantes individualmente considerados (subjetivismo) — para a preponderân-
cia dos interesses públicos e de realização das funções dos Tribunais Superiores
(objetivismo), rumo a um processo constitucional em franca aproximação à teo-
ria do stare decisis (respeito aos precedentes jurisprudenciais), ante a crescente
importância que a jurisprudência vem adquirindo.

21
CÔRTES. A “objetivação” no processo civil: as características do processo objetivo no procedi-
mento recursal. Revista de Processo, p. 220.
22
CÔRTES. A “objetivação” no processo civil: as características do processo objetivo no procedi-
mento recursal. Revista de Processo, p. 225-226.
23
Justificada por razões de segurança, celeridade do procedimento e pela atribuição dos Tribu-
nais Superiores em exercerem os seus papéis constitucionais de primazia pelo respeito às leis
e à CR/88 de maneira uniforme.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 59-90, jul./set. 2012
Da análise da desistência do recurso excepcional a partir da objetivação do processo constitucional subjetivo 75
Como afirmado anteriormente, trata-se de fenômeno a que se pode
denominar “objetivação do processo constitucional subjetivo”, em que a deci­
são jurisdicional ganha contornos de generalidade e assume a função não
apenas de dirimir determinada controvérsia posta à apreciação do Juízo, mas
também de desempenhar a tarefa de estabelecer um precedente com força
vinculante a casos análogos.
O procedimento desenvolvido pelo STJ no julgamento conjunto de pro-
cessos com mesma questão jurídica é típico exemplo de instituto que já tem
por paradigma o fenômeno da objetivação. Nele, prestigia-se a aplicação do
mesmo direito a todos os casos que possuem idêntica controvérsia interpreta-
tiva, sem apresentar preocupação com a ideia de identidade de partes, a partir
do primado de que causas iguais24 merecem as mesmas soluções e de que o
interesse público ínsito a essas demandas deve prevalecer sobre o interesse
exclusivamente particular. O que importa, adotando-se linguagem própria do
sistema romano-germânico, especialmente na senda brasileira de tal família
jurídica, é a semelhança no suporte fático e a identidade de pretensão jurídica.
Se há, pois, identidade de causas de pedir, há vínculo a ser seguido e respeitado,
como garantia de isonomia de tratamento jurisdicional, a fim de se alcançar a
segurança jurídica.

5 O processo de coletivização no anteprojeto do


novo Código de Processo Civil (PLS nº 166/2010)
O Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 166, de 2010, dispõe sobre a reforma
do CPC. Após 38 anos de vigência do texto em vigor (Lei nº 5.869, de 11 de janeiro
de 1973) — que há muito deixou de refletir a sua redação original (ao longo des-
ses anos de vigência, computa-se cerca de 65 leis modificadoras, além, claro, da
inauguração da nova ordem constitucional a partir de 1988) —, a expectativa em
torno do advento do novo CPC já é bastante festejada, como se pode perceber a
partir do trecho a seguir transcrito de parecer de lavra da Comissão Temporária
de Senadores criada para discutir a reforma do Código de Processo Civil, e em
especial o PLS nº 166/2010:

Jamais na história um projeto de Código passou por tamanha


consulta popular. Nunca um Código foi construído de maneira
tão aberta. Do cidadão mais simples ao mais prestigiado e culto
jurista, todos puderam opinar. Quem quis falar foi ouvido, e, o que
é principal, a ponderação de todos — na medida do possível — foi

Leia-se com mesma controvérsia na interpretação do ordenamento jurídico.


24

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 59-90, jul./set. 2012
76 Magno Federici Gomes, Daniel Lin Santos

efetivamente considerada. Foram comissões e mais comissões em


todas as regiões do país, de todos os segmentos, que estudaram o
projeto e nos remeteram sugestões. Não poderia ser diferente! É o
primeiro Código estrutural brasileiro que é integralmente construído
sob o regime democrático.25

Diante desse atual cenário, qualquer trabalho que se proponha a discutir


determinado instituto de direito processual civil não pode passar ao largo de
traçar considerações, ainda que incipientes, acerca do tratamento dispensado
pelo anteprojeto de lei que dará origem ao novo CPC sobre tal ou qual assunto.
Salientou-se, até aqui, que o Direito processual contemporâneo adota
a sistemática de coletivização para ampliar o acesso à jurisdição, por meio da
paulatina incorporação ao ordenamento jurídico processual de soluções judi-
ciais de massa para uma sociedade igualmente massificada. O anteprojeto do
novo CPC caminhou no mesmo sentido dessa tendência, como se pode verifi-
car a partir do excerto abaixo:

Vivemos em uma sociedade globalizada, onde produtos e serviços


são oferecidos de forma massificada. [...] Essa nova postura comercial
fez com que bens e produtos passassem a ser oferecidos e consu-
midos por um número expressivo de pessoas. Essa massificação do
consumo, como não poderia ser diferente, passou a gerar conflitos
igualmente massificados. Ocorre que, no modelo atual, demandas
que se repetem podem receber respostas judiciárias díspares e em
tempo diferenciado. Entretanto, pelo princípio da igualdade previsto
no art. 5º, caput, da Constituição da República, e pelo ideário de Jus-
tiça, casos iguais merecem idênticas soluções jurídicas¸ o que, portanto,
também demanda alteração legislativa que crie meios para que essa
orientação se transforme em realidade. [...] O que se pretende, na ver-
dade, é adequar o Código aos novos tempos.26

Com isso, o anteprojeto prevê o Livro IV do novel CPC, intitulado “Dos


Processos nos Tribunais e meios de impugnação das decisões judiciais”. Em
nome da preservação da segurança jurídica, do interesse social, da estabilidade
das relações e da isonomia, este Livro aproxima o sistema adotado no Brasil
(romano-germânico), com o sistema anglo-saxônico (common law), na medida

25
BRASIL. 2010, p. 32.
26
BRASIL. 2010, p. 41.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 59-90, jul./set. 2012
Da análise da desistência do recurso excepcional a partir da objetivação do processo constitucional subjetivo 77
em que confere mais força aos precedentes jurisprudenciais, exatamente para
permitir que casos repetitivos recebam soluções jurídicas idênticas.
Dada a sua importância ao tema debatido, digno é de destaque o conteúdo
das disposições gerais de Livro IV em comento, os quais, fazendo expressa men-
ção ao julgamento dos recursos especiais repetitivos, buscam consolidar a efetiva
observância da jurisprudência reiterada dos tribunais pelos órgãos fracionários,
juízos de primeira instância e outros:

Art. 882 da Emenda nº 221-CTRCPC. Os tribunais, em princípio, vela-


rão pela uniformização e pela estabilidade da jurisprudência, obser-
vando-se o seguinte:

I - sempre que possível, na forma e segundo as condições fixadas


no regimento interno, deverão editar enunciados correspondentes
à súmula da jurisprudência dominante;

II - os órgãos fracionários seguirão a orientação do plenário, do órgão


especial ou dos órgãos fracionários superiores aos quais estiverem
vinculados, nesta ordem;

III - a jurisprudência pacificada de qualquer tribunal deve orientar as


decisões de todos os órgãos a ele vinculados;

IV - a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais


superiores deve nortear as decisões de todos os tribunais e juízos
singulares do país, de modo a concretizar plenamente os princípios
da legalidade e da isonomia;

V - na hipótese de alteração da jurisprudência dominante do Supremo


Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de jul-
gamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da
alteração no interesse social e no da segurança jurídica.

§1º A mudança de entendimento sedimentado observará a neces-


sidade de fundamentação adequada e específica, considerando o
imperativo de estabilidade das relações jurídicas.

§2º Os regimentos internos preverão formas de revisão da jurispru-


dência em procedimento autônomo, franqueando-se inclusive a rea­
lização de audiências públicas e a participação de pessoas, órgãos
ou entidades que possam contribuir para a elucidação da matéria.27

BRASIL. 2010, art. 882.


27

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 59-90, jul./set. 2012
78 Magno Federici Gomes, Daniel Lin Santos

Art. 883 da Emenda nº 221-CTRCPC. Para os fins deste Código,


considera-se julgamento de casos repetitivos:

I - o do incidente de resolução de demandas repetitivas;

II - o dos recursos especial e extraordinário repetitivos.28

Como se pode depreender, aquela tendência de coletivização/objetiva-


ção do processo civil contemporâneo, até então positivada no ordenamento
jurídico através de reformas esparsas e paulatinas do texto do CPC de 1973,
hoje encontra espaço no próprio anteprojeto de lei de novo CPC. A inserção
desses dispositivos no novo CPC confirma a nítida consolidação dos instrumen-
tos e institutos pensados para promover a solução em massa dos litígios que se
apresentam ao Poder Judiciário de forma repetitiva e igualmente massificada.

6 Alternativa à solução desenhada pelo Superior


Tribunal de Justiça
Como ficou registrado a partir da discussão acima exposta, o STJ vislum-
brou um conflito entre o interesse individual do recorrente — representado
pela possibilidade de desistência do recurso — e o interesse público/coletivo
— consubstanciado na fixação da tese a partir do incidente do recurso espe-
cial representativo da controvérsia, quando se está diante da nova sistemática
de julgamento de recursos especiais repetitivos, introduzida pelo art. 543-C
do CPC.
No entanto, este antagonismo, ou conflito, entre os institutos em comento,
é apenas aparente, senão veja-se.
De acordo com a Lei nº 11.672/2008, o recurso especial que tiver por
objeto uma questão repetitiva em várias causas será submetido à técnica de
julgamento do art. 543-C do CPC. Significa que, em casos repetitivos, um ou
alguns dos recursos são escolhidos para julgamento pelo STJ, ficando os
demais sobrestados, no aguardo de tal julgamento. É o que se chama de
julgamento por amostragem.
Pois bem. Diante da nova sistemática introduzida pelo art. 543-C do
CPC, e de modo a compatibilizar os interesses, público e particular, existentes
no interior do processo judicial, cumpre proceder à devida distinção entre, de
um lado, o procedimento recursal principal (destinado a resolver a questão
individual do recorrente) e, de outro, o procedimento incidental coletivo de

28
BRASIL. 2010, art. 883.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 59-90, jul./set. 2012
Da análise da desistência do recurso excepcional a partir da objetivação do processo constitucional subjetivo 79
definição do precedente ou da tese a ser adotada pelo Tribunal Superior, que
haverá de ser seguida pelos demais Tribunais e que repercutirá na análise dos
demais recursos que estão sobrestados. Trata-se da solução já aventada por
Didier Júnior, Cunha (2009) e Lourenço (2009).
Com efeito, as Leis nºs 11.418/2006 e 11.672/2008 inovaram sobrema-
neira o procedimento de julgamento dos recursos repetitivos, sejam eles extra-
ordinários ou especiais, introduzindo novo paradigma legal à sistemática dos
mesmos. Após a vigência de tais atos normativos, está-se diante de situação
diversa daquela anterior à inovação legislativa, em que os únicos diretamente
interessados no julgamento dos recursos eram as partes. Agora, as circuns-
tâncias são diferentes. O julgamento proferido pelo Supremo Tribunal Federal
(STF) ou pelo STJ a partir do recurso selecionado como repre­sentativo de uma
determinada controvérsia repercutirá diretamente nos milhares de recursos
repetitivos suspensos, seja na origem ou mesmo nos Tribunais Superiores.
O problema da avalanche de recursos remetidos aos Tribunais Superiores
não é novo. Os números são expressivos e surpreendem. Deveras, milhares de
ações individuais idênticas quanto ao pedido e a causa de pedir, cujos julgamen-
tos redundam em recursos repetitivos, abarrotam os Tribunais brasileiros, colo-
cando-os no patamar de Cortes com o maior número de recursos pendentes de
decisão. De acordo com o Ministro Luiz Fux, à época, os anais das jornadas Ibero-
americanas de Direito Processual de 2006, registraram Tribunais Superiores que
julgaram 50 causas por ano (EUA), 50.000 (Itália) e 264.000 (Brasil).29 Já o Ministro
Sidnei Beneti, quando de seu voto na Questão de Ordem no REsp nº 1.063.343/RS,
em tom de lamento, registrou o fato de, em caso semelhante ocorrido anterior-
mente, ter homologado a desistência em um processo que estava na pauta de
julgamento e que iria definir cerca de 60 mil causas idênticas pelo país afora. O
ministro ainda lembrou que a Suprema Corte dos Estados Unidos levou nove
anos para decidir sobre o direito ao aborto: “A criança nasceu e o processo per-
deu o objeto, mas eles decidiram manter o julgamento para fixar uma orientação
para a sociedade”.30
Outrossim, após a verificação da existência de inúmeros recursos que
versem sobre a mesma matéria interpretativa sobre o ordenamento jurídico e
uma vez instaurado o procedimento do recurso representativo, praticam-se, no
bojo do mesmo, inúmeros atos processuais, de repercussão nacional, com gra-
ves consequências que transcendem os limites subjetivos daquele feito, como

FUX. A desistência recursal e os recursos repetitivos. Revista de Direito Renovar, p. 4.


29

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Corte Especial. QO no REsp nº 1.063.343/RS (Questão de


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Ordem no Recurso Especial). Rel. Min. Nancy Andrighi, Brasília, 17 dez. 2008. Diário de Justiça
Eletrônico, Brasília, 04 jun. 2009. Voto do Min. Sidnei Beneti.

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80 Magno Federici Gomes, Daniel Lin Santos

acontece com a determinação da suspensão do processamento dos recursos


repetitivos que versem sobre a mesma matéria nos diversos Tribunais do país,
a comunicação aos Presidentes dos Tribunais hierarquicamente inferiores da
aludida instauração, bem como a oitiva dos amici curiae, das partes, demais
entidades interessadas, do Ministério Público e as consequentes juntadas de
pareceres atinentes à questão debatida.
Nesse sentido, não seria razoável supor que, sobrevindo pedido de desis-
tência do recurso representativo do incidente de coletivização e deferido este,
mediante a aplicação isolada do art. 501 do CPC, estaria o Tribunal Superior
impedido de proceder ao julgamento da idêntica questão de direito e à fixa-
ção da tese jurídica solucionadora, ou compelido a renovar todos os trâmites
e atos processuais preparatórios do complexo procedimento para a seleção de
um novo recurso representativo daquela controvérsia, mormente em se consi-
derando que a resolução de mérito da demanda supera os limites individuais
das partes. Caso contrário, aquele Tribunal Superior ficaria sempre à mercê da
conveniência e oportunidade da parte recorrente cujo recurso foi selecionado
para, enfim, poder julgar o recurso que trata da idêntica questão de direito. Sem
considerar que a repetição deste complexo procedimento pode vir a ser infini-
tamente frustrado em face de sucessivos e incontáveis pedidos de desistência.
Não se pode olvidar, ademais, que, uma vez julgado o recurso repre-
sentativo da controvérsia, a decisão paradigma ganha eficácia erga omnes,
espraiando seus efeitos, automaticamente, a todos os demais recursos excep-
cionais em trâmite naquela Corte, bem como aos que estejam suspensos nos
Tribunais de origem, que perderão seu objeto ou serão remetidos aos relatores
originários, a fim de possibilitar eventual juízo de retratação. Salienta-se que a
força vinculante seria adstrita somente aos recur­sos extraordinários repetitivos
(sobrestados), que seriam afetados pela edição de súmula com esse efeito
(art. 103-A da CR/88) ou pelo julgamento de ação que verse controle concen-
trado de constitucionalidade (art. 102, §2º, da CR/88), havendo, portanto, para
essas hipóteses, a transcendência dos motivos determinantes da decisão.
Por outro lado, em aparente antinomia com o acima exposto, o instituto
da desistência recursal sempre foi tratado como direito subjetivo do recorrente,
orientado pelos princípios dispositivo e da autonomia privada, sendo certo que
seu manejo é, por vezes, até de real utilidade para as partes em conflito, como
na hipótese de acordo firmado extrajudicialmente ou outro motivo legítimo
que não necessita ser declinado ou justificado. Como declarado anteriormente,
a desis­tência recursal produz efeitos imediatos, não dependendo de concordân-
cia da outra parte, nem de autorização ou homologação judicial, sendo, inclusi-
ve, irretratável e irrevogável. Cabe ao advogado, aliado a seu constituinte — e
não ao julgador — definir quando desistir do recurso por ele interposto.

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Da análise da desistência do recurso excepcional a partir da objetivação do processo constitucional subjetivo 81
Ademais, o art. 543-C do CPC não consiste em norma derrogadora do
art. 501 do CPC. A sistemática dos recursos especiais repetitivos não retirou do
recorrente a condição de dominus litis da causa levada em grau de recurso a
Juízo, não sendo correto, por via transversa, negar vigência ao art. 501 do CPC,
suprimindo do recorrente o regular exercício de um direito que lhe é assegu-
rado, qual seja, o de desistir do prolongamento do direito de ação ou defesa,
sob pena do Poder Judiciário invadir a esfera legislativa, em flagrante ativismo
judicial.31 Vale dizer que o STJ poderia ter declarado inconstitucional o mencio-
nado artigo, pelo controle difuso de constitucionalidade, como fundamento
de sua decisão, mas não o fez. Poderia também pensar na possibilidade de
conferir interpretação conforme a CR/88 ou, ainda, na declaração de incons-
titucionalidade sem redução de texto, o que também não aconteceu. Dessa
forma, faz-se presumir a constitucionalidade do citado art. 501 do CPC.
Outrossim, como bem lembrou o Ministro João Otávio de Noronha, não é a
parte que pede para que o seu recurso seja enviado às Seções ou ao Corte Especial
para julgamento por meio da Lei dos Recursos Repetitivos, não podendo, assim,
ser punida com a impossibilidade de desistência da demanda só porque o seu
recurso foi escolhido como paradigma.32
Enfim, percebe-se claramente que, se por um lado há o direito do recor-
rente de desistir da sua pretensão recursal, de outro há o interesse coletivo na
formulação da orientação quanto à idêntica questão de direito existente nos
múltiplos recursos.
Ante este cenário de conflito — frise-se, apenas aparente — entre a deci-
são tomada pelo STJ e o instituto da desistência recursal, cumpre ao intérprete
das normas jurídicas proceder a uma interpretação sistemática, que compatibili-
ze os preceitos em jogo. Afinal, a construção do sistema jurídico exige a solução
das antinomias jurídicas, com a ponderação de valores e princípios, pois todo
sistema deve ter coerência interna, possibilitando, desta maneira, uma solução
por meio da lógica jurídica. E, por normas, deve-se entender não só a lei, mas
também a jurisprudência, como fonte do direito que é e que vem ganhando
cada vez mais força no ordenamento jurídico pátrio. O escopo será sempre a
afirmação dos princípios da consistência, unidade e harmonia do ordenamento
jurídico nacional.

31
Coloca-se de manifesto que o ativismo judicial não é objeto do presente estudo, não cabendo
nesta sede aprofundamentos maiores.
32
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Corte Especial. QO no REsp nº 1.063.343/RS (Questão de
Ordem no Recurso Especial). Rel. Min. Nancy Andrighi, Brasília, 17 dez. 2008. Diário de Justiça
Eletrônico, Brasília, 04 jun. 2009. Voto do Min. João Otávio de Noronha.

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82 Magno Federici Gomes, Daniel Lin Santos

Assim, conclui-se que. quando o STJ aprecia um recurso especial repre-


sentativo de uma multiplicidade de outros recursos especiais repetitivos (com
fundamento em idêntica questão de direito), em acordo com o art. 543-C do
CPC, há a coexistência de dois procedimentos distintos no interior do recurso
especial selecionado.33 De um lado, o procedimento recursal principal, aventado
pelo recorrente que teve seu recurso espe­cial selecionado e cujo deslinde
repercutirá nas esferas jurídicas das partes daquele recurso (inter partes); de
outro, o procedimento incidental coletivo instaurado por força do art. 543-C do
CPC, de ordem pública, objetivo, cujo desfecho repercutirá em toda uma gama
de recursos especiais sobrestados nos diversos Tribunais do país (erga omnes) e
cujo trâmite dar-se-á por impulso oficial.
Sobre esse assunto, vale trazer o posicionamento de Didier Júnior e Cunha
(2009):

Quando se seleciona um dos recursos para julgamento, instaura-se


um novo procedimento. Esse procedimento incidental é instaurado
por provocação oficial e não se confunde com o procedimento prin-
cipal recursal, instaurado por provocação do recorrente. Passa, então,
a haver, ao lado do recurso, um procedimento específico para jul-
gamento e fixação da tese que irá repercutir relativamente a vários
outros casos repetitivos. Quer isso dizer que surgem, paralelamente,
dois procedimentos: o procedimento recursal, principal, destinado a
resolver a questão individual do recorrente; e o procedimento inci­
dental de definição do precedente ou da tese a ser adotada pelo Tri-
bunal Superior, que haverá de ser seguida pelos demais tribunais e
que repercutirá na análise dos demais recursos que estão sobrestados
para julgamento. Este último procedimento tem uma feição coletiva,
não devendo ser objeto de desistência, da mesma forma que não se
admite a desistência em ações coletivas (Ação Civil Pública e Ação
Direta de Inconstitucionalidade, por exemplo). O objeto desse inci-
dente é a fixação de uma tese jurídica geral, semelhante ao de um
processo coletivo em que se discutam direitos individuais homogê-
neos. Trata-se de um incidente com objeto litigioso coletivo. Quando
o recorrente, num caso como esse, desiste do recurso, a desistência

Essa afirmação também deve ser empregada nos recursos extraordinários representativos e
33

repe­titivos, afetados pela repercussão geral (arts. 102, §3º, da CR/88, 543-A e 543-B do CPC), pré-
vio incidente de arguição de relevância (art. 555, §1º, do CPC), ou mesmo pelo controle reser­vado
de constitucionalidade (arts. 102, inciso I, alínea “a”, §§1º e 2º, 103 da CR/88, Leis nºs 9.868/1999,
9.882/1999 e 12.562/2011).

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Da análise da desistência do recurso excepcional a partir da objetivação do processo constitucional subjetivo 83
deve atingir, apenas, o procedimento recursal, não havendo como
negar tal desis­tência, já que, como visto, ela produz efeitos imediatos,
não dependendo de concordância da outra parte, nem de autoriza-
ção ou homologação judicial. [...] Tal desistência, todavia, não atinge o
segundo procedimento, instaurado para definição do precedente ou
da tese a ser adotada pelo Tribunal Superior. Esse procedimento
incidental é, inclusive, instaurado por provocação oficial, o que revela
o interesse público que lhe é subjacente. Em suma, a desis­tência não
impede o julgamento, com a defi­nição da tese a ser adotada pelo Tri-
bunal Superior, mas tal julgamento não atinge o recorrente que desis-
tiu, servindo, apenas, para estabelecer o entendimento do Tribunal, a
influenciar e repercutir nos outros recursos que ficaram sobrestados.34

No âmbito do STJ, o procedimento incidental coletivo poderia ser instau-


rado, após a desistência do recurso especial representativo, por meio de incidente
recursal de uniformização de jurisprudência,35 previsto nos arts. 476 et seq. do
CPC e nos arts. 118 et seq. do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça
(RISTJ). Salienta-se que o referido incidente pode ser suscitado de ofício por
qualquer membro do órgão julgador e existe pelo interesse público decorrente
da necessidade de pacificação das divergências internas nos Tribunais. Ademais,
lavrado o acórdão de uniformização de jurisprudência, que reconhece a diver-
gência em abstrato, será possível, simultaneamente, declarar a desistência do
recurso da parte e afetar o julgamento como representativo. Contudo, após tal
trâmite, será possível a prolação de acórdão solucionador pelo Órgão Especial
(art. 11, inciso VI, do RISTJ), também em abstrato, que poderá editar súmula em
uniformização de jurisprudência, segundo os arts. 479 do CPC e 120 do RISTJ.
Por sua vez, perante o STF, o incidente recursal adequado seria a arguição
de relevância, puramente, ante a inexistência de uniformização de jurisprudên-
cia no Excelso Pretório, deslocando-se a competência decisória do órgão fracio-
nado do Tribunal, mediante resolução monocrática do Relator, ao Plenário, em
conformidade com o disposto no §1º, do art. 555 do CPC.
Em verdade, trata-se de uma nova construção na teoria geral dos recur-
sos, isto é, uma espécie de atuação objetiva por parte dos Tribunais Superiores
quando do exame de recursos representativos, julgando as teses que lhe são

34
DIDIER JÚNIOR; CUNHA. Curso de direito processual civil: meios de impugnação às decisões
judiciais e processo nos tribunais, p. 323-324.
35
Em sentido equivalente: LOURENÇO. Desistência da pretensão recursal no julgamento por amos-
tragem em recursos repetitivos: uma proposta. Revista Forense.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 59-90, jul./set. 2012
84 Magno Federici Gomes, Daniel Lin Santos

encaminhadas a partir da decisão proferida no procedimento incidentalmente


instaurado, ainda que tenha havido desistência por parte do recorrente paradigma.
Cabe salientar que, por se tratar de objetivação do processo constitucional subje-
tivo, na hipótese de desistência do recurso representativo, o procedimento coletivo
incidental determinará uma decisão em abstrato sobre a interpretação jurídica a
ser observada em tais controvérsias, de modo geral e com eficácia erga omnes, sob
pena de, resolvendo o caso concreto, ter por indeferido o pleito de desistência e
apreciar o mérito do remédio endoprocessual.36
Cumpre registrar, por oportuno, nos ensinamentos de Cabral (2007),
quando disserta sobre o novo procedimento-modelo alemão (Musterverfahren)
para as tutelas coletivas e seu escopo de solucionar, a partir da instauração de
um incidente de coletivização no interior do processo, questões comuns a lití-
gios individuais, cujo procedimento se assemelha bastante em certos aspectos
ao quanto proposto neste trabalho:

Procuram-se métodos de decisão em bloco que partam de um caso


con­creto entre contendores individuais. Trata-se da instauração de
uma espé­cie de incidente coletivo dentro de um processo individual.
Preserva-se, dentro da multiplicidade genérica, a identidade e a espe-
cificidade do particular. Cada membro do grupo envolvido é tratado
como uma parte, ao invés de uma “não-parte substituída”. É a tentativa
de estabelecer algo análogo a uma classaction, mas sem classe.37 [...]

O escopo do Procedimento-Modelo é estabelecer uma esfera de deci­


são coletiva de questões comuns a litígios individuais, sem esbarrar
nos ataques teóricos e entraves práticos da disciplina das ações cole­
tivas de tipo representativo. Objetiva-se o esclarecimento unitário de
características típicas a várias demandas isomórficas, com um espe­c­
tro de abrangência subjetivo para além das partes. A finalidade do
procedimento é fixar posicionamento sobre supostos fáticos ou
jurídicos de pretensões repetitivas. [...] Não é difícil identificar o
objeto do incidente coletivo: no Musterverfahren decidem-se ape-
nas alguns pontos litigiosos (Streitpunkte) expressamente indi­cados
pelo requerente (apontados concretamente) e fixados pelo Juízo,
fazendo com que a decisão tomada em relação a estas questões atinja

36
Como ocorreu na decisão da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, na Questão de Ordem
no Recurso Especial nº 1.063.343/RS, julgada em 17 de dezembro de 2008 e publicada em 04 de
junho de 2009.
37
CABRAL. O novo procedimento-modelo (Musterverfahren) alemão: uma alternativa às ações cole-
tivas. Revista de Processo, p. 128.

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Da análise da desistência do recurso excepcional a partir da objetivação do processo constitucional subjetivo 85
vários litígios individuais. Pode-se dizer, portanto, que o mérito da
cognição no incidente compreende elementos fáticos ou questões
prévias (Varfragen) de uma relação jurídica ou de fundamentos da
pretensão individual. Ressalte-se que o objeto da cognição judicial
neste procedimento pode versar tanto sobre questões de fato como
de direito, o que denota a possibilidade de resolução parcial dos
fundamentos da pretensão, com a cisão da atividade cognitiva em
dois momentos: um coletivo e outro individual. Esse detalhe é de
extrema importância, pois evita uma potencial quebra da necessária
correlação entre fato e direito no juízo cognitivo. Vale dizer, se na ati-
vidade de cognição judicial, fato e direito estão indissociavelmente
imbricados, a abstração excessiva das questões jurídicas referentes às
pretensões individuais poderia apontar para um artificialismo da
decisão, o que não ocorre aqui, com a vantagem de evitar as críticas
aos processos-teste.38

Apesar da não utilização dos termos aqui aduzidos, a solução ora proposta
também foi similar — apenas em termos práticos — à orientação inicialmente
adotada pela Ministra Nancy Andrighi — não obstante tenha sido por ela pos-
teriormente reconsiderada —, mas que conduziu os votos dos Ministros Aldir
Passarinho Júnior, Eliana Calmon, Francisco Falcão e Laurita Vaz, vencidos, os
quais deferiam o pedido de desistência formulado pelo recorrente paradigma,
mas sem afastar do Tribunal a possibilidade de manifestação a respeito do tema
em debate com a consequente fixação da tese. Na ocasião, a Ministra Relatora
ressaltou a necessidade de conciliação entre interesse público e particular à luz
da ordem constitucional vigente:

A nova ótica constitucional deixou para trás a clássica divisão entre


Direito Público e Direito Privado. A CF/88, denominada “Constitui-
ção Cidadã”, foi construída sobre outra base sólida de divisão de
direitos. Hoje, a summa divisio é Direito Individual e Direito Coletivo.
Portanto, nenhum esforço interpretativo dissociado dessa orienta-
ção produzirá os efeitos constitucionais perseguidos.39

A solução aqui sugerida, diferentemente da orientação que acabou pre-


valecendo na decisão do STJ, não desconsidera o que dispõe o art. 501 do CPC,

38
CABRAL. O novo procedimento-modelo (Musterverfahren) alemão: uma alternativa às ações cole-
tivas. Revista de Processo, p. 132-133.
39
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Corte Especial. QO no REsp nº 1.063.343/RS (Questão de
Ordem no Recurso Especial). Rel. Min. Nancy Andrighi, Brasília, 17 dez. 2008. Diário de Justiça
Eletrônico, Brasília, 04 jun. 2009.

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86 Magno Federici Gomes, Daniel Lin Santos

que é norma cogente de processo e que se encontra em pleno vigor. Trata-se,


em verdade, de alternativa intermediária e conciliatória em relação à negativa de
desistência pura e simples e ao anseio pela fixação do precedente em abstrato.
Portanto, é possível a desistência recursal (art. 501 do CPC) por parte
do recorrente que teve seu recurso selecionado como representativo de uma
determinada controvérsia, mesmo quando já iniciado o procedimento cole-
tivo previsto para o julgamento de recursos repetitivos (arts. 543-B e 543-C do
CPC). Entretanto, o exercício de tal prerrogativa processual não terá o condão
de afastar da apreciação do STF e STJ o procedimento incidente e coletivo de
fixação da tese jurídica, em abstrato, aplicável à multiplicidade de recursos
sobrestados com fundamento em idêntica questão de direito, podendo aque-
les Tribunais Superiores, desde logo, realizar o julgamento e fixar o respectivo
precedente, a fim de não prejudicar a solução em massa da questão de mérito
repetitivamente posta nos recursos suspensos. E isso se dá justamente por força
da instauração de um incidente coletivo no interior do processo originalmente
subjetivo.40
A alternativa proposta é consentânea com os princípios constitucionais
envolvidos e os direitos individuais garantidos infraconstitucionalmente, na
medida em que harmoniza os interesses contrapostos, permitindo a defini-
ção da tese jurídica a ser adotada nos casos similares, ao tempo em que não
prejudica o direito do recorrente insculpido no art. 501 do CPC, que pode ser
decorrente de uma legítima perda superveniente do interesse de recorrer.
Assim, será mantido o objetivo da lei que estabeleceu o procedimento
de julgamento dos recursos repetitivos, qual seja, a efetivação dos princípios da
duração razoável do processo, da igualdade de partes e da segurança jurídica,
da mesma forma que se resguardariam os direitos individuais do recorrente.

7 Conclusões
Ao considerar que ambas as teses expostas possuem argumentações
igualmente fortes a seu favor, a solução para o deslinde da questão encontra-se
naquilo que parece ser um justo meio termo.
Portanto, no aspecto atinente à presente discussão, o justo meio-termo
aristotélico estaria nem tanto pela possibilidade pura e simples da desistência
recursal, nem tanto pela sua total impossibilidade, quando se tratar de recurso
submetido à técnica dos arts. 543-B e 543-C do CPC. Faz-se necessário, sim, a
compatibilização entre os preceitos normativos, legal (art. 501 do CPC) e juris-
prudencial (decisão do STJ), enquanto fontes do direito.

Em sentido equivalente: LOURENÇO. Desistência da pretensão recursal no julgamento por amos-


40

tragem em recursos repetitivos: uma proposta. Revista Forense.

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Da análise da desistência do recurso excepcional a partir da objetivação do processo constitucional subjetivo 87
E a solução perpassa pela ideia de coexistência de dois procedimentos
no bojo da sistemática introduzida pelas Leis nºs 11.418/2006 e 11.672/2008, do
mesmo modo que há a coexistência de interesse público e particular no interior
do processo nesses casos.
De acordo com o entendimento ora defendido, a escolha de determinado
recurso excepcional como representativo da controvérsia não impede que o recor-
rente disponha do seu interesse recursal, antes o permite, haja vista que as partes
diretamente envolvidas no recurso selecionado podem verdadeiramente ter inte-
resse na desistência (eficácia inter partes). Por outro lado, o interesse da coletivi-
dade de ter solucionada a questão de direito objeto dos processos repetitivos
não sofrerá prejuízo, pois aquela desistência não terá o condão de suprimir aos
Tribunais Superiores a fixação do respectivo precedente a ser aplicado aos diversos
recursos sobrestados, desde que o façam em abstrato (abstração), a fim de produzir
eficácia erga omnes. De forma que não se vislumbra razão para que se privilegie o
interesse privado em detrimento do interesse público, ou vice-versa, se na hipótese
é possível que ambos caminhem lado a lado.
A CR/88 designou o STJ como responsável pela defesa da legislação
federal (correta e adequada) e pela uniformização da jurisprudência em se
tratando de maté­ria infraconstitucional. Cumpre àquele Tribunal Superior,
precipuamente, exercer a guarda e o controle do ordenamento jurídico infra-
constitucional de forma ampla, intér­prete final que é das leis federais. Não lhe
compete, de outro lado, imiscuir-se nas questões de fato dos casos sob seu
julgamento, tendo em vista que tais matérias já foram definidas e delimitadas
por um duplo grau de jurisdição antes de serem submetidas ao crivo daquele
Tribunal.
O procedimento inaugurado pelo art. 543-C do CPC fortalece e coloca
em evidência essa missão constitucional uniformizadora do recurso especial,
conferindo maiores contornos de objetividade e generalidade aos processos
constitucionais subjetivos. Com efeito, é enorme a utilidade de um procedi-
mento como o dos recursos especiais repetitivos, que permite a tratativa cole­
tiva de questões de direito comuns a muitas demandas, pacificando-as de
maneira única para todas as causas.

The Study of the Withdrawal of Exceptional Appeal and the Objective


Analysis in the Constitutional Subjective Procedure

Abstract: The Federal Law nº 11.672/2008 added the art. 543-C to the
Brazilian Code of Civil Procedure (CPC), regulating the procedure for
judging new appellate process under the Supreme Court of Justice (STJ),

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and the repetitive special appeal representative of controversy, which


aim was to reduce the problem represented by the excess of demands
submitted to the scrutiny of that high court. In December 2008, the Spe-
cial Organ of STJ, highlighting the fact that it is the essence of the system
of trial of repetitive appeal the collective interest of the question raised in
court, defined the impossibility of withdrawal of appeal by the appellant
that had his special appeal selected as representative of a specific con-
troversy, after its instruction and affectation for trial through the Repeti-
tive Appeals Law. It was established on that occasion that, once chosen
the model appeal, the question becomes one of public policy, because
there is public interest in the establishment of the legal argument to be
applied to the multitude of special appeals over states of origin based
on identical question of right, the procedure is, then, to be considered
of a collective nature and could not, therefore, be at the disposal of the
appellant. In this direction, this is a theoretical-documental study, under
a judicial-propositional prism. When considering a conflict apparently
only of norms and principles, as well as observing the co-existence of
two distinct procedures within the special appeal paradigm (principal
recourse procedure and incidental collective procedure), one finds that
the appeal withdrawal is possible in the constitutional subjective proce-
dure, without jeopardizing the objective appreciation by the STJ of the
legal matters applicable to the multitude of special appeals based on an
identical question of right.

Key words: Repetitive special appeals. Representative appeals of contro-


versy. Appeal withdrawal. Principles of equality and of reasonable duration
of the process. Public interest and private interest in the process. Principal
and incidental appeal procedure.

Referências
BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Os Recursos Extraordinários e a co-originalidade dos
interesses público e privado no interior do processo: reformas, crises e desafios à jurisdição desde
uma compreensão procedimental do Estado Democrático de Direito. In: OLIVEIRA, Marcelo A.
Cattoni de; MACHADO, Felipe D. Amorim (Coord.). Constituição e processo: a contribuição do
processo no constitucionalismo democrático brasileiro. Belo Horizonte: Autores Associados; Del
Rey, 2009. cap. 3.
BRASIL. Código Civil, Código de Processo Civil, Código Comercial, Constituição Federal, Legislação
civil, processual civil e empresarial. Organização de Yussef Said Cahali. 13. ed. São Paulo: Revistas
dos Tribunais, 2011.
BRASIL. Congresso Nacional. Senado Federal. Comissão Temporária da Reforma do Código de
Processo Civil. Código de Processo Civil: Parecer nº 1.624, de 2010, e Emenda nº 221-CTRCPC
(substitutivo aprovado). Brasília: Senado Federal, 2010. Disponível em: <http://www.senado.gov.
br/atividade/materia/getPDF.asp?t=84495&tp=1>. Acesso em: 20 jan. 2011.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 59-90, jul./set. 2012
Da análise da desistência do recurso excepcional a partir da objetivação do processo constitucional subjetivo 89
BRASIL. Ministério da Justiça. Projeto de Lei nº 1.213, de 05 abr. 2007. Acresce o art. 543-C à Lei
nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Código de Processo Civil, estabelecendo o procedimento
para o julgamento de recursos repetitivos no âmbito do Superior Tribunal de Justiça. Brasília:
Ministério da Justiça, 2007. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/sileg/integras/465291.
pdf>. Acesso em: 12 mar. 2011.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Corte Especial. QO no REsp n º 1.063.343/RS (Questão de
Ordem no Recurso Especial). EMENTA: Processo civil. Questão de ordem. Incidente de Recurso
Especial Repetitivo. Formulação de pedido de desistência no Recurso Especial representativo
de controvérsia (art. 543-C, §1º, do CPC). Indeferimento do pedido de desistência recursal.
É inviável o acolhimento de pedido de desistência recursal formulado quando já iniciado o
procedimento de julgamento do Recurso Especial representativo da controvérsia, na forma do
art. 543-C do CPC c/c Resolução nº 08/08 do STJ. Questão de ordem acolhida para indeferir o
pedido de desistência formulado em Recurso Especial processado na forma do art. 543-C do CPC
c/c Resolução nº 08/08 do STJ. Rel. Min. Nancy Andrighi, Brasília, 17 dez. 2008. Diário de Justiça
Eletrônico, Brasília, 04 jun. 2009. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ita.
asp?registro=200801289049&dt_publicacao=04/06/2009>. Acesso em: 06 nov. 2010.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Presidência. Resolução nº 8, de 07 ago. 2008. Estabelece os
procedimentos relativos ao processamento e julgamento de recursos especiais repetitivos. Ministro
Cesar Asfor Rocha, Brasília, 07 ago. 2008. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, 08 ago. 2008. Disponível
em: <http://bdjur.stj.jus.br/xmlui/bitstream/handle/2011/17559/Res_8_2008_PRE.pdf;­jsessionid=
22C18B3426A3BEC2A6229A404DFED0E5?sequence=4>. Acesso em: 05 abr. 2012.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça. Organizado
pelo Gabinete do Ministro Diretor da Revista. Brasília: STJ, jan. 2012.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Segunda Seção. REsp nº 1.058.114/RS (Recurso Especial
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de


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R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 59-90, jul./set. 2012
A divergência de interpretação
dentro de um mesmo Tribunal –
Análise comparativa do sistema do
common law e da solução existente
no direito brasileiro
Júlia Schledorn de Camargo
Mestranda em Direito Processual Civil pela
PUC-SP, sob orientação do Prof. Donaldo Armelin.
Pós-Graduada em Direito Processual Civil, pela PUC/
Cogeae. Especialista em Arbitragem pela GVLaw.
Especialista em Contratos pelo Centro de
Estudos Universitários de São Paulo.
Professora Assistente no Mestrado da PUC-SP.
Advogada de Wald e Associados Advogados.

Resumo: A partir da análise da já conhecida diferença entre os sistemas


do common law e civil law, a autora analisa o problema existente na
divergência de entendimento dentro de um mesmo Tribunal e as soluções
existentes no common law e no direito brasileiro. Verificando um caso
prático de divergência intra muros no STJ, a autora conclui no sentido de
ser necessário dar maior segurança jurídica aos jurisdicionados e eficácia
à solução prevista no ordenamento jurídico brasileiro para a divergência
interna, que é pouco usada e admitida pelos Tribunais.

Palavras-chave: Common law. Civil Law. Divergências internas. Superior


Tribunal de Justiça.

Sumário: 1 Introdução – 2 O precedente no common law e no civil law


– 3 A divergência de interpretação dentro do próprio Tribunal e solu-
ções existentes para resolução do problema no common law e civil law
– 4 Análise do caso concreto e solução encontrada no direito brasileiro
pelo STJ – 5 Conclusão – Referências

1 Introdução
O estudo do instituto do precedente, com base no civil law e common
law, faz surgir interessantes questões a respeito do assunto. Dentre elas,
encon­tra-se a divergência de entendimento sobre determinada questão

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 91-110, jul./set. 2012
92 Júlia Schledorn de Camargo

dentro de um mesmo Tribunal, assim como as formas de eventual solução


dessa controvérsia.
Trata-se, certamente, de questão tormentosa, com a qual, não raramente,
o operador do direito se depara e, em relação a qual, surgem muitos questio-
namentos. Tome-se como exemplo o caso de a divergência interna de entendi-
mento se verificar no mesmo Tribunal que é competente para também dirimir a
divergência de jurisprudência em outros Tribunais e, portanto, pacificar a inter-
pretação da lei, como ocorre com o Superior Tribunal de Justiça, aqui no Brasil.
Diante disso, e longe de exaurir o tema e o estudo da matéria, inicia-
remos o presente estudo a partir da função e importância do precedente no
common e civil law, passando à análise das soluções existentes nos referidos
sistemas para a questão das divergências internas dos Tribunais. A partir daí,
com base no caso concreto da atual divergência existente no Superior Tribunal
de Justiça sobre o dano moral, verificaremos as soluções efetivamente utiliza-
das para a questão.

2 O precedente no common law e no civil law


Antes da análise das diferenças sistemáticas existentes concernente ao
uso e função do precedente no common law e civil law, faz-se necessário veri-
ficar o conceito do referido instituto e sua diferenciação em relação à jurispru-
dência.
Diante disso, verifica-se que o uso do precedente como base do exer-
cício da jurisdição nos países cujo sistema jurídico adotado é o common law
decorre, principalmente, da preocupação com a igualdade, certeza, previsibi-
lidade, economia e respeito.
Em breves palavras, a igualdade decorre do preceito que casos seme-
lhantes devem ser tratados e decididos de formas idênticas (“like cases treat
like cases alike”). Já a certeza e previsibilidade são verificadas pelo fato de o
jurisdicionado ter conhecimento do resultado de uma futura demanda devido à
decisão proferida anteriormente em caso idêntico, que constitui o precedente,
o que afasta o evento surpresa. Em relação à economia, verifica-se que, sob o
ponto de vista do Tribunal, ela está presente pelo menor tempo dedicado à deci-
são de cada caso, pois a regra extraída do precedente será utilizada; quanto às
partes, também há economia, pois despenderão valor menor com o processo,
que também será decidido em um tempo menor. Por fim, quanto ao respeito,
o uso do precedente demonstra a consideração às decisões dos Tribunais
superiores, e, consequentemente, a estima à experiência e aos magistrados
mais antigos.

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A divergência de interpretação dentro de um mesmo Tribunal – Análise comparativa do sistema... 93
Essas características, intrínsecas ao sistema do common law que se baseia
no uso do precedente, estão menos presentes no sistema do civil law, no qual
não há referido instituto, mas apenas se verifica a existência de jurisprudência.
Neste sentido, deve-se ter em mente a nítida distinção que há entre prece-
dente e jurisprudência, que Taruffo1 bem pontua. A diferença entre precedente e
jurisprudência é verificada no aspecto quantitativo, pois o precedente refere-se
a uma decisão, enquanto jurisprudência implica, normalmente, a existência de
uma pluralidade.
Mas há também uma diferença no aspecto qualitativo, pois o precedente
fornece uma regra a ser aplicada no caso sucessivo em função da similitude
fática, aferida pelo juiz do caso sucessivo que, ao identificar as semelhanças dos
casos, utilizará a ratio decidendi da decisão antecedente. Justamente por isso é
que se pode afirmar que quem cria o precedente é o julgador do segundo caso.
A jurisprudência, por sua vez, é identificada pelos enunciados, sobretudo, que
contêm as regras jurídicas da decisão, sem incluir os fatos, razão pela qual a sua
aplicação não se funda na similitude fática, mas “sobre subsunção da fattispecie
sucessiva em uma regra geral”.2
Quanto ao surgimento do precedente, verifica-se que uma decisão somente
passa a ser considerada como um verdadeiro precedente se, além de seu con-
teúdo envolver uma matéria nova, que ainda não havia sido decidida, for utilizada
em uma decisão subsequente. Veja-se que o uso da primeira decisão é essencial
para que surja o precedente, caso contrário, será apenas uma decisão isolada, sem
qualquer força vinculante, característica esta inerente ao sistema dos precedentes.
Por sua vez, a jurisprudência surge quando se verifica mais de uma decisão a res-
peito da matéria tratada, não havendo a necessidade de efetivo uso nas razões de
decidir de outra decisão.
Passando à análise especificamente do precedente, verifica-se, em um
primeiro ponto, que “todo precedente judicial é composto por duas partes dis-
tintas: a) as circunstâncias de fato que embasam a controvérsia; e b) a tese ou
o princípio jurídico assentado na motivação (ratio decidendi) do provimento
decisório”.3 No entanto, apenas a ratio decidendi é relevante para o uso e carac­
terização propriamente dita do precedente, pois é nela que está a regra jurídica,
e não na obter dictum, parte da decisão composta por todas as demais afirma-
ções e argumentos contidas na decisão, especificamente, em sua motivação,
úteis para a compreensão da decisão em si dos seus fundamentos.

1
Precedente e jurisprudência. Revista de Processo, p. 139 et seq.
2
TARUFFO, op. cit.
3
TUCCI. Precedente judicial como fonte do direito, p. 12

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94 Júlia Schledorn de Camargo

Neste sentido, valemo-nos das claras lições de Teresa Arruda Alvim


Wambier sobre a questão:

A parte da decisão que realmente vincula é a ratio decidendi.

Os americanos usam a expressão holding. A holding é a essência da


regra (expressa ou implícita na decisão) necessária para explicar o
resultado do julgamento.

Claro que a expressão ratio decidendi também pode ser entendida em


sua dimensão descritiva: “descritivamente, a expressão significa sim-
plesmente uma explicação do raciocínio que levou a corte à conclu-
são, baseado em elementos sociológicos, históricos e até psicológicos
(...)”. Mas o que interessa aqui é o sentido prescritivo da expressão ratio
decidendi e é deste tema, entre outros, que se ocupará este capítulo.

Trata-se da proposition of law (= proposição de direito), explícita ou


implícita, considerada necessária para a decisão. É o core da decisão.

Há na decisão, também os obter dicta ou os gratis dicta, termos que


significam, literalmente, o que foi dito para morrer (= para perder
importância). Obter dicta têm função meramente persuasiva.

A ratio decidendi equivale à rule.4

Além disso, e como acima mencionado, a eficácia do precedente tradicio-


nalmente é considerada vinculante, em contraposição ao sistema do civil law, no
qual o precedente tem eficácia meramente persuasiva e argumentativa, tanto
para a parte quanto para o magistrado.
Neste aspecto, devemos considerar que há uma relação entre o órgão
prolator da decisão, que se torna o precedente, e o juiz do caso subsequente,
a qual se denomina de direção do precedente. Isto porque a direção do prece-
dente é vertical quando o órgão prolator da decisão se encontra em um grau
superior na hierarquia judiciária em relação ao segundo juiz e, nesta hipótese,
a força do precedente desce de alto a baixo, tanto que as cortes superiores são
as verdadeiras “cortes do precedente”, nas palavras de Taruffo,5 que também cita
Piero Calamandrei a esse respeito.
Já o precedente horizontal se verifica nas hipóteses de a decisão e o
juiz sucessivo, que utilizar a decisão como precedente, estarem no mesmo

4
WAMBIER. Precedentes e evolução do direito. In: WAMBIER. Direito jurisprudencial, p. 43-44.
5
TARUFFO, op. cit.

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A divergência de interpretação dentro de um mesmo Tribunal – Análise comparativa do sistema... 95
grau hierárquico, o que fará com que a força do precedente seja persuasiva, e,
portanto, inferior à vertical que é vinculativa.
Como corolário da eficácia vinculante do precedente, deve-se ter em
mente que é possível que esse juiz afaste o uso da decisão antecedente por
meio de técnicas específicas denominadas distinguishing e overruling. Com
efeito, para o uso do precedente, faz-se necessário verificar os seguintes requi-
sitos: (i) similaridade nas questões de direito, (ii) similaridade nos fatos, e (iii) se
o precedente foi bem fundamentado. Após a análise destes, o Tribunal pode
concluir que não há semelhanças entre os fatos e a matéria de direito do caso
anterior em relação ao caso em exame e, assim, poderá afastar o precedente,
de forma fundamentada, o que caracteriza o distinguishing.
Quanto ao overruling, trata-se da revogação do precedente, de sua ratio,
por se revelar ultrapassado ou mal fundamentado. Referido instituto, apesar de
ser de grande valia para os casos de decisões anacrônicas, não condizentes com
a realidade e mal arrazoados, é de pouca utilização, tendo em vista a necessidade
de manter a segurança jurídica.
No sistema do civil law, por sua vez, apesar de não haver, via de regra,6 a
força vinculante do precedente, não há impedimento para a aplicação de uma
decisão em casos subsequentes e, caso isso não ocorra, basta que o julgador
fundamente seu entendimento, tanto que a identificação de decisões como
precedentes ocorre de forma pouco frequente.
Diante disso, podemos observar que a doutrina do stare decisis envolve,
justamente, o efeito coercitivo e vinculativo do precedente, ou seja, da decisão
anterior que irá criar efetivamente o direito. E o efeito vinculativo é de tamanha
importância para essa teoria, tipicamente do common law, que José Rogério
Cruz e Tucci afirma o seguinte:

O fundamento dessa teoria impõe aos juízes o dever funcional de


seguir, nos casos sucessivos, os julgados já proferidos em situações
análogas. Não é suficiente que o órgão jurisdicional encarregado de
proferir decisão examine os precedentes como subsídio persuasivo
relevante, a considerar no momento de construir a sentença. Estes
precedentes, na verdade, são vinculantes, mesmo que exista apenas

Dissemos que não há via de regra à força vinculante, pois, atualmente, o sistema jurídico
6

brasileiro prevê a eficácia vinculante para (i) a súmula vinculante; (ii) o incidente de uniformi-
zação de jurisprudência; e (iii) o julgamento de recursos com o regime de recursos repetitivos
prevista nos arts. 543 B e C, do CPC.

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96 Júlia Schledorn de Camargo

um único pronunciamento pertinente (precedent in point) de uma


corte de hierarquia superior.7

No mesmo sentido é a lição de Edward D. Re, Professor da Faculdade


de Direito da St. John’s University, Nova Iorque, e Juiz Presidente da Corte de
Comércio Internacional dos EUA, traduzida pela não menos ilustre Ellen Gracie
Northfleet:

O que é a doutrina do stare decisis e quais são suas inerentes limi-


tações? É preciso compreender que o caso decidido, isto é, o prece-
dente, é quase universalmente tratado como apenas um ponto de
partida. Diz-se que o caso decidido estabelece um princípio, e ele é
na verdade um principium, um começo, na verdadeira acepção eti-
mológica da palavra.

Um princípio é uma suposição que não põe obstáculo a maiores


indagações. Como ponto de partida, o juiz no sistema do common
law afirma a pertinência de um princípio extraído do precedente
considerado pertinente. Ele, depois, trata de aplica-lo moldando
e adaptando aquele princípio de forma a alcançar a realidade da
decisão do caso concreto que tem diante de si. O processo de apli-
cação, quer resulte numa expansão ou numa restrição do princípio,
é mais do que apenas um verniz; representa a contribuição do juiz
para o desenvolvimento e evolução do direito.

Com efeito, devido à inexistência do efeito vinculante dos precedentes


no sistema do civil law, não raro ocorrem situações que geram incerteza jurídica,
dentre as quais encontra-se a divergência de interpretação intra muros, ou seja,
dentro de um mesmo Tribunal.
No entanto, alguns casos de divergência interna também são obser-
vados pelo common law, mas sua frequência é muito menor que a verificada
no sistema do civil law, em particular no Brasil, como também o são as
soluções existentes e admitidas no sistema, o que passamos a analisar sob
o enfoque apenas do Superior Tribunal de Justiça, por ser aquele que tem
por finalidade a uniformização da jurisprudência em relação às matérias
infraconstitucionais.

7
TUCCI, op. cit., p. 12-13.

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A divergência de interpretação dentro de um mesmo Tribunal – Análise comparativa do sistema... 97
3 A divergência de interpretação dentro do próprio Tribunal
e soluções existentes para resolução do problema no
common law e civil law
Como visto, o sistema do common law baseia-se na obrigatoriedade e
vinculação do precedente, mas há exceções que se referem à hierarquia dos
Tribunais, pois, via de regra, um Tribunal superior não está vinculado a uma
decisão proferida por um Tribunal inferior. Além disso, e como bem esclarece
Arthur L. Goodhart, a House of Lords, o mais alto Tribunal inglês está vinculado
às suas próprias decisões, não podendo, portanto, divergir de entendimentos
anteriores:

Esta absoluta e vinculação característica [do precedente] não se aplica


a todos os casos. Assim, um Tribunal superior não está vinculado pelas
decisões dos Tribunais inferiores, mas, se uma prática geral se desen-
volveu a partir destes Tribunais, o Tribunal superior hesitará em diver-
gir dele, nem irá, via de regra, reverter a decisão que é aceita como
um modelo pela Ordem. Tampouco um Tribunal de primeira instância
está vinculado por uma decisão de outro Tribunal de igual jurisdição,
apesar disso seu uso demonstrará grande respeito. Autoridade abso-
luta somente existe nos seguintes casos:

1. Todo Tribunal está absolutamente vinculado às decisões de todos


os Tribunais superiores.

2. A House of Lords está absolutamente vinculada às suas próprias


decisões.

3. O Court of Appeal está provavelmente vinculado às suas próprias


decisões, mas, neste aspecto, há algumas dúvidas a respeito.8

Como consequência da vinculação obrigatória existente no common


law, não raramente os precedentes citados e utilizados em casos atuais datam

No original: “This absolute and binding quality does not apply to all cases. Thus, a superior
8

Court is never bound by the decisions of the lower Courts, although, if a feneral practice has
developed in these Courts, the superior Court will hesitate to depart from it, nor will it, as a
rule, reverse a case which has been generally accepted as a model by the Bar. No ris one Court
of firtst instance bound by the decision of another Court of similar jurisdiction, although it
will pay it great respect. Absolute authority exists only in the following cases: 1. Every Court
is absolutely bound by the decisions of all Courts superior to itself. 2. The House of Lords is
absolutely bound by its own decisions. 3. The Court of Appeal is probably bound by its own
decisions, though on this point there is some doubt” (GOODHART. Precedent in English Law
and Continental Law, p. 9-10).

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 91-110, jul./set. 2012
98 Júlia Schledorn de Camargo

de mais de 200 anos, o que não ocorre no civil law, sendo raro o uso de decisões
que datam de mais de 50 anos.
No entanto, nota-se que pela rígida adstrição do common law aos pre-
cedentes e às regras criadas pelas decisões, o direito em si pode apresentar
um desenvolvimento mais lento e que não condiz com a velocidade que as
relações sociais, objeto das ações, evoluem. Isto é menos frequente de se veri-
ficar no sistema do civil law, pois ante a inexistência do efeito vinculativo dos
precedentes e dos Tribunais em relação a suas próprias decisões, não raro nos
deparamos com decisões das mais distintas possíveis sobre uma mesma ques-
tão, nos casos em que a lei possui conceitos vagos e que permitem diversas
interpretações.
Se por um lado a diversidade de decisões sobre uma mesma matéria
traz indubitável evolução ao direito propriamente dito no sistema do civil law,
por óbvio, traz grande insegurança ao jurisdicionado, com notório prejuízo à
segurança jurídica. Essa incerteza por um determinado período pode ser acei-
tável, se ele for considerado razoável e suficiente para que o Tribunal, de forma
segura e, após maturar seu entendimento, profira um entendimento final a ser
seguido futuramente.
Ocorre que, no Brasil, a razoabilidade para que o Tribunal fixe seu enten-
dimento quando há uma divergência intra muros está longe de ser observada.
Maior problema surge quando o Tribunal que apresenta divergência de entendi-
mento internamente é o responsável por uniformizar o entendimento da juris-
prudência, caso do Superior Tribunal de Justiça.
Com efeito, em que pese a possibilidade de divergência de entendimento
no Superior Tribunal de Justiça, deve-se observar que o sistema processual prevê
solução para essa questão. Trata-se da possibilidade de apresentação de embar-
gos de divergência, recurso que, nos termos do art. 546, do Código de Processo
Civil, é o recurso cabível para que o Superior Tribunal de Justiça e Supremo
Tribunal Federal, nas respectivas competências, uniformizem seu entendimento.
Neste aspecto, exemplificativamente, vale observar o disposto no Regi­
mento Interno do Superior Tribunal de Justiça que, em seu art. 266, trata dos
embargos de divergência, estabelecendo que eles são cabíveis contra decisões
da Turma proferidas em recurso especial.

Art. 226. Das decisões da Turma, em recurso especial, poderão, em


quinze dias, ser interpostos embargos de divergência, que serão jul-
gados pela Seção competente, quando as Turmas divergirem, entre
si ou de decisão da mesma Seção. Se a divergência for entre Turmas
de Seções diversas, ou entre Turma e outra Seção ou com a Corte
Especial, competirá a esta o julgamento dos embargos.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 91-110, jul./set. 2012
A divergência de interpretação dentro de um mesmo Tribunal – Análise comparativa do sistema... 99
Veja-se que o referido recurso é, em tese, de grande valia para trazer
maior segurança jurídica. No entanto, os Tribunais superiores brasileiros, a des-
peito da solução existente no sistema para a divergência intra muros, com uma
frequência maior do que a desejada pelo operador do direito vem deixando de
admitir os embargos de divergência, mantendo a incerteza que a divergência
em questão gera.
Por outro lado, e como visto, o common law não admite a existência de
divergência interna e, em relação ao direito inglês, essa diversidade de enten-
dimento é inconcebível na House of Lords, a mais alta corte do referido sistema.
Tanto é assim que A. L. Goodhart chega a afirmar que, proferida a decisão pela
House of Lords, a questão de direito está plenamente definida:

Erros da Court of Appeal podem, no entanto, se um dos litigantes


está preparado para arcar com os custos, ser corrigidos pela House
of Lords, mas quando a House of Lords decide a questão, decidiu por
todo o tempo, estando efetivamente impedida de reconsiderar os
efeitos de seu próprio julgamento.9

Apesar da inadmissibilidade da divergência de interpretação interna no


Tribunal, isso não significa que ela não ocorra no common law, até porque é
considerada em alguns casos como exceção à regra da stare decisis. E a ques-
tão é de tamanha relevância para o common law que já se discutiu, inclusive
em precedentes ingleses, no que consiste um conflito de decisões, como já
pontuado por Rupert Cross.10

9
No original: “Erros of the Court of Appeal may , however, if the litigants are prepared to
face the costs, be corrected by the House of Lords, but the House of Lords, having spoken
once, has spoken for all time refusing ever to reconsider the effect of its own judgement”
(GOODHART, op. cit., p. 37).
10
“The problem of what constitutes a conflict of decisions is not altogether free from difficulty.
To take an example from cases which are frequently cited in discussions of Young v. Bristol
Aeroplane Co., in Morrison v. Sheffield Corporation the Corporation had statutory authority
to plant trees in the highway. It did so and protect the trees with dangerous spikes pointing
outwards. During the First World War the plaintiff sustained injuries through walking into the
spikes in the blackout, and the Court of Appeal held that he was entitled to judgement. The
ratio decidendi was stated in wide terms, but Morrison’s case was not cited in woodhouse v.
Levy where, during the Second World War, a passenger in a taxi was injured when it ran into an
unlighted bollard and the Court of Appeal held that he was not entitled to recover against the
local authority. Morrison’s case was cited in Lyus v. Stepney Borough Council where a pedestrian
who collided with an unlighted and unwhitened dustbin also failed to recover damages in the
Court of Appeal. That Court then held that there was no conflict between Woodhouse v. Levy
and Morrison v. Sheffield Corporation because the later case depended on its special facts.
In the later case of Fisher v. Ruislip-Northwood Urban District Council the Court of Appeal

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 91-110, jul./set. 2012
100 Júlia Schledorn de Camargo

No entanto, diversamente do que ocorre aqui no Brasil, que admite a


solução de divergência interna não só pelos Tribunais superiores, mas tam-
bém pelos Tribunais inferiores, estes por meio do incidente de uniformização
de juris­prudência previsto nos arts. 476 e seguintes, do Código de Processo
Civil, o direito inglês, no que tange ao instituto do common law, prevê que
“a House of Lords é o único Tribunal inglês com total liberdade para overrule
suas decisões passadas”,11 técnica aceita para que o referido Tribunal reveja seu
entendimento anterior.
Interessante observar que apesar da possibilidade de a House of Lords
overrules suas decisões anteriores, espera-se que isso não ocorra, para que haja
a manutenção da certeza e das regras concernentes à sare decisis.
Além disso, o que se verifica nos casos existentes e mencionados na dou-
trina do common law, em relação à solução das divergências pelos Tribunais, é
que a decisão proferida com base no overruling ou no distinguishing não cos-
tuma estudar efetivamente as ratio decidendi das decisões, deixando, assim, de
também analisar a melhor expressão e interpretação do direito.
Neste aspecto, verifica-se também que a House of Lords considera que deve
haver um relevante motivo para se considerar um precedente antigo equivocado,
justamente, pela necessidade de preservar a certeza, como defende Rupert Cross:

Poucos pontos gerais com relação aos critérios para o exercício do


novo poder da House. O simples fato que uma decisão passada é
considerada errada não é suficiente: “No interesse geral da certeza da
lei nós temos que ter certeza que há algumas boas razões antes de
agirmos”. Esta observação foi feita por Lord Reid em Knuller Publishing
and Promotions Ltd. v. Director of Public Prossecution no qual a maior
da House recusou overrule Shaw v. Director of Public Prosecutions,
uma decisão que afirma a existência de um crime de conspiração de
corrupção moral pública, e a observação da decisão proferida que
mais impressionou foi a divergência entre Lord Reid no caso Shaw.12

decided that Lyus v. Stepney Borough Council and Woodbouse v. Levy conflicted wieht
Morrison’s case and chose to follow this latter decision. The principle underlying Morrison’s
case was that a local authority owes a duty to users of the highway to light or, in the case of
a blackout, adopt other means of warning against obstruction. This covered Woodhouse v.
Levy and Lyus v. Stepney Borough Council, although there were facts such as the possibility of
rendering the spikes with which Morrison’s case was concerned harmless, by means of which
that decision could have been distinguished” (Precedent in English Law, p. 132-133).
11
No original: “the House of Lords is the only English appellate court with full freedom to
overrule its past decisions” (CROSS, op. cit., p. 133).
12
No original: “A few general points with regard to the criteria for the exercise of the House’s
new power are emerging. The mere fact that a past decision is considered wrong will not

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A divergência de interpretação dentro de um mesmo Tribunal – Análise comparativa do sistema... 101
Interessante observar que, apesar de o common law ter toda uma
preocupação em relação à certeza e segurança jurídica, não se verifica nenhuma
clara definição sobre a forma de solução dos conflitos, exceto em relação à pos-
sibilidade de overruling das próprias decisões pela House of Lords. Tanto é assim
que esta é uma das críticas feitas pelo Dr. Goodhart, citada por Rupert Cross,13 às
exceções à stare decisis na Court of Appeal, que entende que deveria haver uma
regra fixa para a solução do conflito.
Dessas observações feitas, fica clara a diferença existente entre a forma
como o sistema do civil law, no caso em exame do Brasil, e do common law, no
caso do direito inglês, tratam a divergência interna dos Tribunais e aplicam as
formas de solução. No primeiro caso, são frequentes as divergências e formas
para solução expressamente previstas no sistema legal em vigor, mas sua uti-
lização depara-se com óbices originados pelos próprios Tribunais na admissão
dos recursos existentes e no tempo para definir o posicionamento final; já no
segundo caso, não se verifica muita divergência de decisões, no entanto, pela
falta de uma regra fixa para solucionar a divergência interna, quando o Tribunal
se depara com essa situação, apresenta soluções diversas que não garantem a
devida segurança ao jurisdicionado.
Dito isso, passaremos à análise de um caso claro de divergência de enten-
dimento existente no Superior Tribunal de Justiça, a fim de demonstrar a insegu-
rança gerada e a forma de solução adotada até o presente momento.

suffice: ‘In the general interest of certainty in the law we must be sure that there is some very
good reason before we act’. This remark was made by Lord Reid in Knuller Publishing and
Promotion Ltd. v. Director of Public Prosecutions in which a majority of the House declined to
overrule Shaw v. Director of Public Prossecutions, the decision which affirmed the existence
of a crime or conspiring to corrupt public morals, and the remarks rendered all the more
impressive by the fact that Lord Reid dissented in Shaw’s case” (op. cit., p. 134-135).
13
“Dr. Goodhart criticizes the first exception on the ground that it makes no provision for
finality. He suggests that there should be a fixed rule that, where two decisions of the Court
of Appeal conflict, the later should prevail. To this Mr. R. M. Gooderson retorts that logically
the earlier case should be binding authority because in the theory the court in the later case
had no jurisdiction to come to a conflicting conclusion. Either rule would be an arbitrary one.
But the principal answer made by Mr. Gooderson to Dr. Goodhart’s criticismo is that finality is
achieved as soon as the conflict is resolved. When, in case C, the court finds that the rationes
propounded by it in cases A and B conflict, the chouice o fone of these last-mentioned cases
involves the overruling of the other. It is submitted that the answer is correct and that the
first exception to stare decisis mentioned in Young’s case is best expressed by saying that if,
in any case, the Court of Appeal finds two of its past decisions to be in conflict, it must choose
which to follow, and, when it has done so, the decision not followed is overruled. It must be
conceded, however, that, although there is no judicial statemente against this view, there is
none that precisely accords with it” (p. 137).

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102 Júlia Schledorn de Camargo

4 Análise do caso concreto e solução encontrada no


direito brasileiro pelo STJ
Realizamos pesquisa de jurisprudência no Superior Tribunal de Justiça
para verificar a existência de divergência intra muros e forma de solução ado-
tada, considerando, ainda, o tempo para que fosse sanada a divergência em
comento.
Diante disso, verificamos que o entendimento do referido Tribunal supe-
rior sobre o dano moral coletivo é totalmente divergente, existindo, atualmente,
três posições distintas.
A primeira posição encontrada foi no sentido de ser considerado inexis-
tente o dano moral coletivo, por ser incompatível o conceito de dano moral com
a pretensão coletiva. Neste sentido, as seguintes decisões foram localizadas:

PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DANO AMBIENTAL. DANO


MORAL COLETIVO. NECESSÁRIA VINCULAÇÃO DO DANO MORAL À NOÇÃO
DE DOR, DE SOFRIMENTO PSÍQUICO, DE CARÁTER INDIVIDUAL. INCOM-
PATIBILIDADE COM A NOÇÃO DE TRANSINDIVIDUALIDADE (INDETER-
MINABILIDADE DO SUJEITO PASSIVO E INDIVISIBILIDADE DA OFENSA E
DA REPARAÇÃO). RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO. (STJ – 1ª Turma, REsp
598.281/MG, rel. Min. Luiz Fux, rel. p/ acórdão Min. Teori Albino Zavascki,
DJ 01.06.2006)

[...] 2. Ad argumentandum tantum, ainda que ultrapassado o óbice


erigido pelas Súmulas 282 e 356 do STF, melhor sorte não socorre ao
recorrente, máxime porque a incompatibilidade entre o dano moral,
qualificado pela noção de dor e sofrimento psíquico, e a transindivi-
dualidade, evidenciada pela indeterminabilidade do sujeito passivo
e indivisibilidade da ofensa objeto de reparação, conduz à não inde-
nizabilidade do dano moral coletivo, salvo comprovação de efetivo
prejuízo dano.

3. Sob esse enfoque decidiu a 1ª Turma desta Corte, no julgamento de


hipótese análoga, verbis: PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.
DANO AMBIENTAL. DANO MORAL COLETIVO. NECESSÁRIA VINCULA-
ÇÃO DO DANO MORAL À NOÇÃO DE DOR, DE SOFRIMENTO PSÍQUICO,
DE CARÁTER INDIVIDUAL. INCOMPATIBILIDADE COM A NOÇÃO DE
TRANSINDIVIDUALIDADE (INDETERMINABILIDADE DO SUJEITO PAS-
SIVO E INDIVISIBILIDADE DA OFENSA E DA REPARAÇÃO). RECURSO
ESPECIAL IMPROVIDO. (REsp 598.281/MG, Rel. Ministro LUIZ FUX, Rel.
p/ Acórdão Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA TURMA, jul-
gado em 02.05.2006, DJ 01.06.2006)

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A divergência de interpretação dentro de um mesmo Tribunal – Análise comparativa do sistema... 103
4. Nada obstante, e apenas obiter dictum, há de se considerar que,
no caso concreto, o autor não demonstra de forma clara e irrefutável
o efetivo dano moral sofrido pela categoria social titular do interesse
coletivo ou difuso, consoante assentado pelo acórdão recorrido: “[...]
Entretanto, como já dito, por não se tratar de situação típica da exis-
tência de dano moral puro, não há como simplesmente presumi-la.
Seria necessária prova no sentido de que a Municipalidade, de alguma
forma, tenha perdido a consideração e a respeitabilidade e que a socie-
dade uruguaiense efetivamente tenha se sentido lesada e abalada
moralmente, em decorrência do ilícito praticado, razão pela qual vai
indeferido o pedido de indenização por dano moral”.
5. Recurso especial não conhecido. (STJ – 1ª Turma, REsp 821.891/RS,
rel. Min. Luiz Fux, DJ 12.05.2008)

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO


DE TELEFONIA. POSTOS DE ATENDIMENTO. INSTALAÇÃO. AUSÊNCIA
DE PREVISÃO NO CONTRATO DE CONCESSÃO. DISCRICIONARIEDADE
DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. FUNDAMENTOS INATACADOS. SÚMULA
283/STF. MATÉRIA FÁTICA. SÚMULA 07/STJ. DANO MORAL COLETIVO.
EXISTÊNCIA NEGADA. SÚMULA 07/STJ. ACÓRDÃO COMPATÍVEL COM
PRECEDENTES DA 1ª TURMA. RESP 598.281/MG, MIN. TEORI ALBINO
ZAVASCKI. DJ DE 01.06.2006; RESP 821891, MIN. LUIZ FUX, DJ DE
12/05/08. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESTA
PARTE, DESPROVIDO. (STJ - 1ª Turma, REsp 971.844/RS, rel. Min. Teori
Albino Zavascki, DJ 12.02.2010)

[...] 10. Em relação à indenização por danos morais tem-se insubsis-


tente a sua condenação no caso presente, uma vez que o dano moral
tem por objetivo reparar lesão a tributo da personalidade, qualifi-
cado pela noção de dor, sofrimento psíquico, imagem, reputação e
etc., não podendo se estender à coletividade em geral pela indeter-
minabilidade do sujeito passivo e indivisibilidade da ofensa objeto
de reparação.
11. Recursos especial de I. A. F. parcialmente provido.
12. Recurso especial de Y. O. A e I. G. A parcialmente provido. (STJ.
1ª Turma, REsp nº 1.171.680/PB, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJ, 23
nov. 2010)

Como se nota, o entendimento da 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça


é claro no sentido de não aceitar a existência de dano moral coletivo, sendo certo
que no primeiro julgado, proferido em 2006, houve entendimento divergente do

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104 Júlia Schledorn de Camargo

Ministro Luiz Fux. No entanto, posteriormente, revendo os fundamentos do Ministro


Teori Albino Zavascki, passou o Ministro Fux a acompanhá-lo, gerando entendi-
mento unânime na referida Turma.
Já o entendimento da 2ª Turma é em sentido diametralmente oposto,
ou seja, entende-se pela existência do dano moral coletivo e cabimento de sua
indenização. Veja-se o voto da Ministra Eliana Calmon que, embora tenha ana-
lisado e confrontado todos os argumentos expostos e utilizados pelo Ministro
Teori Albino Zavascki, concluiu pela possibilidade de existência do dano moral
coletivo.
Nesse sentido, os julgados encontrados na pesquisa realizada:

1. O dano moral coletivo, assim entendido o que é transindividual e


atinge uma classe específica ou não de pessoas, é passível de com-
provação pela presença de prejuízo à imagem e à moral coletiva dos
indivíduos enquanto síntese das individualidades percebidas como
segmento, derivado de uma mesma relação jurídica-base.

2. O dano extrapatrimonial coletivo prescinde da comprovação de dor,


de sofrimento e de abalo psicológico, suscetíveis de apreciação na esfera
do indivíduo, mas inaplicável aos interesses difusos e coletivos.

3. Na espécie, o dano coletivo apontado foi a submissão dos idosos a


procedimento de cadastramento para o gozo do benefício do passe
livre, cujo deslocamento foi custeado pelos interessados, quando o
Estatuto do Idoso, art. 39, §1º exige apenas a apresentação de docu-
mento de identidade.

4. Conduta da empresa de viação injurídica se considerado o sistema


normativo.

5. Afastada a sanção pecuniária pelo Tribunal que considerou as cir-


cunstâncias fáticas e probatória e restando sem prequestionamento
o Estatuto do Idoso, mantém-se a decisão.

5. Recurso especial parcialmente provido. (STJ – 2ª Turma, REsp


1.057.274/RS, rel. Min. Eliana Calmon, DJ 26.02.2010)

[...] 5. O dano moral coletivo atinge interesse não patrimonial de classe


específica ou não de pessoas, uma afronta ao sentimento geral dos
titulares da relação jurídica-base.

6. O acórdão estabeleceu, à luz da prova dos autos, que a interrupção


no fornecimento de energia elétrica, em virtude da precária quali-
dade da prestação do serviço, tem o condão de afetar o patrimônio

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A divergência de interpretação dentro de um mesmo Tribunal – Análise comparativa do sistema... 105
moral da comunidade. Fixado o cabimento do dano moral coletivo, a
revisão da prova da sua efetivação no caso concreto e da quantifica-
ção esbarra na Súmula 7/STJ. [...]

8. Recursos Especiais não providos. (STJ. 2ª Turma, REsp nº 1.197.654/


MG, Rel. Min. Herman Benjamim, DJ, 08 mar. 2012. No mesmo sentido:
REsp nº 1.114.893/MG, Rel. Min. Herman Benjamim, DJ, 28 fev. 2012,
REsp nº 1.180.078/MG, Rel. Min. Herman Benjamim, DJ, 28 fev. 2012)

No entanto, essas não são as duas únicas posições encontradas no refe-


rido Tribunal. Isso porque, a 3ª Turma, em julgamento relatado pelo Ministro
Massami Uyeda, decidiu a questão concernente ao dano moral coletivo de uma
terceira e distinta forma, qual seja: é possível a existência do dano moral coletivo,
mas, para sua caracterização, não basta a mera existência de um direito coletivo
violado. Faz-se necessário que haja relevância no fato transgressor e na violação
em si, que deverá impactar de forma sensível a coletividade. Confira-se:

RECURSO ESPECIAL – DANO MORAL COLETIVO – CABIMENTO –


ARTIGO 6º, VI, DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR – REQUI-
SITOS – RAZOÁ­VEL SIGNIFICÂNCIA E REPULSA SOCIAL – OCOR-
RÊNCIA, NA ESPÉCIE – CONSUMIDORES COM DIFICULDADE DE
LOCOMOÇÃO – EXIGÊNCIA DE SUBIR LANCES DE ESCADAS PARA ATEN-
DIMENTO – MEDIDA DESPROPORCIONAL E DESGASTANTE – INDENIZA-
ÇÃO – FIXAÇÃO PROPORCIONAL – DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL
– AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO – RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO.

I - A dicção do artigo 6º, VI, do Código de Defesa do Consumidor é


clara ao possibilitar o cabimento de indenização por danos morais
aos consumidores, tanto de ordem individual quanto coletivamente.

II - Todavia, não é qualquer atentado aos interesses dos consumidores


que pode acarretar dano moral difuso. É preciso que o fato transgressor
seja de razoável significância e desborde os limites da tolerabilidade.
Ele deve ser grave o suficiente para produzir verdadeiros sofrimentos,
intranquilidade social e alterações relevantes na ordem extrapatrimo-
nial coletiva. Ocorrência, na espécie.

III - Não é razoável submeter aqueles que já possuem dificuldades de


locomoção, seja pela idade, seja por deficiência física, ou por causa
transitória, à situação desgastante de subir lances de escadas, exa-
tos 23 degraus, em agência bancária que possui plena capacidade
e condições de propiciar melhor forma de atendimento a tais con-
sumidores.

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106 Júlia Schledorn de Camargo

IV - Indenização moral coletiva fixada de forma proporcional e razoável


ao dano, no importe de R$50.000,00 (cinquenta mil reais).

V - Impõe-se reconhecer que não se admite recurso especial pela


alínea “c” quando ausente a demonstração, pelo recorrente, das cir-
cunstâncias que identifiquem os casos confrontados.

VI - Recurso especial improvido. (STJ. 3ª Turma, REsp nº 1.221.756/RJ,


Rel. Min. Massami Uyeda, DJ, 10 fev. 2012)

Como se verifica, a existência de divergência interna no Superior Tribunal


de Justiça a respeito do dano moral coletivo é notória. No entanto, não foi solu-
cionada até o presente momento, pois os três entendimentos distintos prevale-
cem concomitantemente.
Em situações como a ora em exame, o common law admitiria apenas a
utilização do distinguishing e do overruling para justificar as decisões proferi-
das pelas 2ª e 3ª Turmas e a não utilização do precedente da 1ª Turma, o qual
representa a primeira interpretação e entendimento sobre dano moral coletivo,
pois não admite a coexistência de três interpretações distintas em relação a
casos semelhantes, quando não, idênticos. Até porque, referidas técnicas são os
únicos instrumentos existentes no common law para não utilização do prece-
dente, pois em referido sistema não há uma regra fixa de solução da divergên-
cia interna no Tribunal.
O direito brasileiro, por sua vez, não impede a interpretação distinta de
uma norma, nem impõe ao magistrado o dever de seguir a interpretação dada a
uma regra pela jurisprudência. No entanto, o direito brasileiro apresenta soluções
normatizadas para o caso de divergência interna em um Tribunal, admitindo, na
hipótese em exame, a apresentação de embargos de divergência.
Neste sentido, em que pese a importância dos embargos de divergên-
cia para uniformização da jurisprudência dentro do próprio Tribunal, verifica-se
que o Superior Tribunal de Justiça admitiu dois embargos de divergência sobre
o caso em exame, o que, com todo o respeito ao referido Tribunal, é fato pouco
visto, pois na grande maioria das vezes, prefere se ater a formalismos, por vezes
até mesmo inconsistentes, a decidir a divergência existente e pacificar a juris-
prudência interna.
As decisões proferidas para admissão dos embargos de divergência são
as seguintes:

[...] Sustenta o embargante, em síntese, que do confronto analítico


entre os arestos confrontados evidencia-se o dissídio jurisprudencial

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A divergência de interpretação dentro de um mesmo Tribunal – Análise comparativa do sistema... 107
uma vez que o acórdão embargado decidiu que no acórdão recorrido,
entendeu-se, na esteira do que afirmou o Tribunal local, que a simples
prática de ato considerado ilícito seria suficiente a essa caracterização.
Considerou-se, portanto, que o dano moral coletivo é decorrência
lógica da violação a direitos ou interesses coletivos.

Nos acórdãos paradigmas entendeu-se de modo diverso, afastando-se


o dano moral coletivo nos casos em que não há demonstração efetiva
de prejuízo.

No presente caso, a divergência que se pretende seja reconhecida


por essa C. Corte reside na impossibilidade de caracterização do dano
moral coletivo como decorrência lógica e automática da prática de
ato ofensivo a direitos ou interesses individuais homogêneos. O acór-
dão recorrido, diversamente dos Acórdãos citados como paradigmas,
entendeu que essa caracterização é possível, mesmo não tendo havido
comprovação do prejuízo (fl. 1.528).

Relatados. Decido.

Prima facie, verifica-se que a divergência restou devidamente com-


provada. Ex positis, admito os presentes embargos para que seja diri-
mida a controvérsia no âmbito da Corte Especial deste Tribunal.

Vista à parte embargada para, querendo, apresentar resposta no prazo


legal (Art. 267, do RISTJ). (STJ – EResp 1.150.530/SC, rel. Min. Luiz Fux,
DJ 01.07.2010)

[...] A União e a ANATEL sustentam a possibilidade de condenação em


dano moral coletivo. A primeira embargante salienta que a dissidên-
cia jurisprudencial reside no entendimento firmado pela Segunda
Turma desta Corte no REsp 1057274/RS, Rel. Ministra Eliana Calmon,
enquanto a segunda embargante aduz dissídio com o REsp 1150530/
SC, Rel. Ministro Humberto Martins. Requerem que sejam recebidos
e providos os presentes embargos de divergência, a fim de que pre-
valeça a orientação adotada pelos acórdãos paradigmas.

É o relatório.

A leitura das ementas supracitadas demonstra que, em princípio,


existe divergência jurisprudencial entre os julgados. Assim, preen-
chidos os requisitos de admissibilidade, ADMITO o processamento
dos embargos de divergência, nos termos do art. 266, §1º, do RI/STJ.

Vista ao embargado para impugnação, no prazo assinado pelo art. 267do


RI/STJ. (STJ. EREsp nº 1.109.905/PR, Rel. Min. Mauro Campbell Marques,
DJ, 15 maio 2012)

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108 Júlia Schledorn de Camargo

Com efeito, deve-se observar que o primeiro recurso de embargos de


divergência foi admitido em 2010, mas, até o presente momento, não foi jul-
gado.
Ora, é direito de todo cidadão que o processo tenha duração razoável,
o que certamente não ocorre nessa hipótese, pois por se tratar o recurso de
embargos de divergência de instrumento para pacificação do entendimento
interno do Tribunal, o qual, frise-se, tem por finalidade, inclusive com previsão
constitucional, uniformizar o entendimento em todo o País, seria de se esperar
um julgamento mais célere, até para que houvesse o que Taruffo14 denominou
de uma política séria de precedente para uniformizar a jurisprudência.
Apesar de o direito brasileiro prever formas de uniformização de jurispru-
dência, como visto no caso em exame, apresenta entraves para sua utilização
que envolvem, entre outros aspectos, a inadmissão dos recursos interpostos e
a demora na decisão sobre a divergência.

5 Conclusão
Mais do que concluir este estudo, o que se verifica da análise realizada não
envolve apenas a já conhecida diferença entre os sistemas common law e civil law,
força vinculante dos precedentes e a persuasiva da jurisprudência, vimos também
a diferença existente quando nos deparamos com um problema de divergência
interna dos Tribunais.
Nesta situação, assim como se vê em relação à eficácia das decisões, os
sistemas também apresentam enfrentamentos e soluções distintas, pois o com­
mon law prefere a segurança em detrimento do desenvolvimento do direito,
tanto que sequer tem uma regra fixa para a solução da divergência intra muros,
e apresenta muita relutância em reconhecer a existência de decisões divergen-
tes, impondo a estagnação do direito, cujo desenvolvimento decorre da atuali-
zação da jurisprudência.
Em contraposição, temos no direito brasileiro vasto sistema para solu-
cionar a divergência dentro dos próprios Tribunais, que abarca a divergência
os Tribunais locais (incidente de uniformização de jurisprudência) e dentro
do Superior Tribunal de Justiça (embargos de divergência). No entanto, a uti-
lização desses instrumentos para pacificar as divergências existentes não é
frequente. Mais ainda, seu uso é dificultado devido, inclusive, a entraves for-
mais, sendo poucos os casos como o analisado em que o Superior Tribunal
de Justiça reconhece a existência da divergência e admite o recurso existente
para sua solução.

14
TARUFFO, op. cit.

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A divergência de interpretação dentro de um mesmo Tribunal – Análise comparativa do sistema... 109
Mesmo assim, muito ainda precisa ser feito para melhorar o sistema
brasileiro, pois a demora para a prestação jurisdicional e, no caso, para a paci­
ficação do entendimento do Superior Tribunal de Justiça, é notória e traz
imensos prejuízos à certeza, previsibilidade, economia e igualdade, sendo
imperativo a celeridade na solução dos conflitos que envolvem matéria que
ultrapassa o interesse das partes. Afinal, como bem exposto por Rupert Cross
“é inútil lamentar estas ocorrências, porque eles vão continuar enquanto
advo­gados, juízes e litigantes permanecerem humanos, mas há algo a ser dito
para um balanço da questão, e especialmente se ele permite que um tribunal
anule uma ou mais de suas decisões passadas por conflitarem com outras”.15
Assim, faz-se ainda mais impositivo que os instrumentos existentes, seja
no sistema do common law ou do civil law, para solucionar as divergências intra
muros dos Tribunais sejam céleres e eficazes, para que a segurança jurídica, tão
importante para os precedentes, se preserve.

Referências
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SANTOS, Evaristo Aragão. Em torno do conceito e da formação do precedente judicial. In: WAMBIER,
Teresa Arruda Alvim (Coord.). Direito jurisprudencial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.

No original: “it is useless to deplore these occurrences because they will continue as long
15

as barristers, judges, and litigants remain human, but there is something to be said for an
occasion stocktaking, and especially if it enables a court to overrule one or more of its past
decisions which conflict with others” (p. 133).

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 91-110, jul./set. 2012
110 Júlia Schledorn de Camargo

SHIMURA, Sergio Seiji. Embargos de divergência. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. (Coord.).
Aspectos polêmicos e atuais do recurso especial e do recurso extraordinário. São Paulo: Revista dos
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de


Normas Técnicas (ABNT):

CAMARGO, Júlia Schledorn de. A divergência de interpretação dentro de um mesmoTribunal: análise


comparativa do sistema do common law e da solução existente no direito brasileiro. Revista Brasileira
de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 91-110, jul./set. 2012.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 91-110, jul./set. 2012
A decisão de suspensão de recursos
repetitivos em razão de recurso
representativo de controvérsia –
Impugnabilidade e proteção em
face de risco de dano
Marco Antonio dos Santos Rodrigues
Doutorando em Direito Processual pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestre
em Direito Público pela Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Professor Assistente de Direito
Processual Civil da Faculdade de Direito da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professor
de cursos de pós-graduação em Direito. Procurador
do Estado do Rio de Janeiro. Advogado. Membro do
Instituto Brasileiro de Direito Processual.

Resumo: A decisão que determina a suspensão de recurso extraordinário


em virtude de recurso representativo de controvérsia pode ser objeto
de impugnação, se incorretamente proferida. É também possível propor
ação cautelar para buscar a sustação dos efeitos do acórdão recorrido
pelo recurso sobrestado, caso a sua tese tenha indícios de que pode ser
provida, e exista risco de dano irreparável na manutenção dos efeitos do
acórdão impugnado.

Palavras-chave: Recurso representativo. Suspensão. Ação cautelar. Efeito


suspensivo.

Sumário: 1 Introdução – A “crise” dos tribunais superiores – 2 O regime


de julgamento de recursos repetitivos – 3 A decisão de suspensão de
recursos de idêntica questão de direito – 4 Conclusões – Referências

1 Introdução – A “crise” dos tribunais superiores


Os recursos especial e extraordinário se incluem no grupo de recursos
classificados como extraordinários, pois visam à defesa de direito objetivo,
isto é, atacam uma suposta inadequada aplicação do ordenamento jurídico,1

Nesse sentido, Câmara (Lições de direito processual civil, p. 54-55), que também denomina
1

o gênero dos recursos extraordinários de excepcionais. Já José Carlos Barbosa Moreira

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112 Marco Antonio dos Santos Rodrigues

diferenciando-se da classe de recursos ordinários, na qual se incluem aqueles


que imediatamente visam tutelar direitos subjetivos.
A missão de julgar os aludidos recursos é, desde a Constituição de 1988,
do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, que, ao lado
de suas competências originárias e recursais ordinárias, possuem a atribuição
para apreciar tais recursos, em proteção às leis federais e à Constituição da
República, respectivamente.
Ocorre que, de longa data, esses tribunais vêm enfrentando problemas
no que se refere ao elevadíssimo número de recursos ofertados, para o qual o
número de ministros componentes desses órgãos não tem capacidade de res-
ponder de forma rápida, já que o Supremo Tribunal Federal é composto por 11
julgadores, enquanto o Superior Tribunal de Justiça, por 33 ministros, gerando
o que é chamado por alguns de “crise” dos Tribunais Superiores,2 uma vez que
não conseguem cumprir sua missão de maneira célere e eficaz.
Assim sendo, foram surgindo obstáculos para o conhecimento dos recur-
sos especiais e extraordinários, como óbices regimentais e entendimentos jurisdi-
cionais limitativos à admissão desses instrumentos impugnativos. Nesse sentido,
ao longo dos anos, a jurisprudência dos Tribunais Superiores construiu uma série
de restrições à admissibilidade de tais meios de impugnação, como, por exem-
plo, a impossibilidade de reexame de matéria fática3 e o prequestionamento, que
também podem ser vistos como mecanismos que fizeram reduzir o número de
recursos a serem objeto de julgamento de mérito. De igual maneira, pode-se men-
cionar a exigência de esgotamento das instâncias ordinárias, para acesso a esses
meios excepcionais,4 que também limitam a sua admissão.
Ademais, já na vigência da atual Lei Maior, a Emenda Constitucional
nº 45/2004 instituiu, no artigo 102, §3º, da Carta Pátria, o requisito da reper-
cussão geral ao recurso extraordinário, o qual passou a depender, pois, de

(Comentários ao Código de Processo Civil, p. 254-257) não vê relevância prática nessa


classificação dos recursos no âmbito do Direito brasileiro.
2
Nessa esteira, cuidando da “crise do Supremo”, analisando suas causas e consequências,
MANCUSO. Recurso extraordinário e recurso especial, p. 66-73; MEDINA. Prequestionamento e
repercussão geral: e outras questões relativas aos recursos especial e extraordinário, p. 45-50.
3
Ligada diretamente à impossibilidade de revisão de matéria fática está a vedação ao reexame
de provas, consagrado nas Súmulas nº 7, do Superior Tribunal de Justiça, e nº 279, do Supremo
Tribunal Federal.
4
Como exemplo, tem-se a Súmula nº 207, do Superior Tribunal de Justiça, que dispõe: “É inad-
missível recurso especial quando cabíveis embargos infringentes contra o acórdão proferido
no tribunal de origem”.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 111-126, jul./set. 2012
A decisão de suspensão de recursos repetitivos em razão de recurso representativo de controvérsia... 113
relevância e transcendência5 na questão constitucional envolvida, para que
venha a ser admitido. Trata-se de mecanismo que acabou por reduzir muito
os recursos levados ao Supremo Tribunal Federal, já que a ausência de reper-
cussão geral impedirá a admissão de todos os outros recursos sobre idêntica
matéria, como adiante se verá.
Além disso, as Leis nºs 11.418/2006 e 11.672/2008 estabeleceram a sis-
temática de julgamento de múltiplos recursos extraordinários e especiais que
tratem de mesma questão de direito, foco do interesse do presente estudo, e
que se passa a expor.

2 O regime de julgamento de recursos repetitivos


Uma das formas de se solucionar o excesso de recursos especiais e extra-
ordinários sob o ângulo de sua característica de repetitividade foi, como acima
mencionado, estabelecer o sistema de apreciação desses meios de impugnação.
Nessa esteira, o legislador estabeleceu, nos artigos 543-B e 543-C6 do Código
de Processo Civil, a sistemática de análise dos recursos por meio de seleção de
um ou mais recursos representativos de controvérsia, ficando os demais de igual
temática sobrestados, até o julgamento daquele(s) que for(em) selecionado(s)
como paradigma.
Note-se que esse sistema realça nos Tribunais Superiores sua missão
uniformizadora da interpretação de normas, isto é, de determinar a orientação
a ser adotada para casos que cuidem de idêntica matéria de direito.
Assim sendo, escolhido o recurso que representará a questão de direito
legal federal ou constitucional e ficando os demais sobrestados, passará o
Tribunal Superior correspondente ao processamento e julgamento do recurso
especial ou extraordinário que esteja em jogo.7

5
Na mesma linha, defendendo que a repercussão geral exige a relevância e a transcendência
da questão constitucional envolvida, cf. MARINONI; MITIDIERO. Repercussão geral no recurso
extraordinário, p. 33.
6
Cassio Scarpinella Bueno defende, por seu turno, que a sistemática do artigo 543-C ofende o
modelo constitucional do processo civil, por trazer efeito vinculante a decisões do Superior
Tribunal de Justiça, por modificar discretamente as hipóteses de cabimento do recurso
especial, e por alterar a competência para sua apreciação (BUENO. Curso sistematizado de
direito processual civil, v. 5, p. 276).
7
Realizando uma interpretação teleológica do sistema de julgamento de recursos excepcio-
nais repetitivos, e admitindo que, em nome da isonomia, outros processos, ainda que em 1º
ou 2º graus, que tenham por objeto a mesma controvérsia de direito do meio de impugna-
ção representativo de controvérsia, vale conferir o trabalho de Teresa Arruda Alvim Wambier
e Maria Lucia Lins Conceição de Medeiros (Recursos repetitivos: realização integral da finali-
dade do novo sistema impõe mais do que a paralisação dos recursos especiais que estão no
2º grau. Revista de Processo).

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 111-126, jul./set. 2012
114 Marco Antonio dos Santos Rodrigues

No caso do recurso extraordinário, o artigo 543-B, §§2º e 3º, do Código


de Processo Civil, criado pela Lei nº 11.418/06, estabelece que, negada a reper­
cussão geral, serão automaticamente inadmitidos os demais recursos sobres-
tados, enquanto que, caso se passe ao mérito, restam duas soluções após o
julgamento do recurso representativo. A primeira delas é aplicável quando a
decisão adotada pelo Supremo Tribunal Federal divergir do acórdão recorrido
pelo recurso que restou suspenso. Nesse caso, pode o Tribunal local se retra-
tar, adotando o entendimento definido por aquele Tribunal Superior em seu
julgado. Ficou estabelecido para o recurso extraordinário, portanto, o efeito
regressivo nesse caso, já que é possível ao próprio Tribunal prolator rever a
decisão impugnada.
Ademais, caso o julgado paradigma tenha sido no mesmo sentido do
acórdão atacado no recurso sobrestado, o Tribunal local pode julgar prejudi-
cado o extraordinário que esteja paralisado.
Na hipótese do recurso especial, sistemática semelhante foi instituída.
O artigo 543-C, §7º, do diploma processual civil, trazido pela Lei nº 11.672/08,
também definiu que, se o recurso especial sobrestado tiver atacado acórdão
contrário ao posicionamento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça, pode
o tribunal local se retratar de sua decisão. Já se o acórdão recorrido e a decisão
adotada no caso representativo estiverem dando o mesmo tratamento à apli-
cação da lei federal, deve ser negado seguimento àquele meio de impugnação.
Importante salientar, porém, que a aplicação pelos Tribunais locais dos
acórdãos proferidos pelos Tribunais Superiores no julgamento de recursos repre-
sentativos de controvérsia, na forma como instituída pelos artigos 543-B e 543-C,
não pode ser tida como impositiva.
Com efeito, admitir-se tal raciocínio seria instituir vinculação de órgãos
jurisdicionais a decisões de outros, sendo que a Constituição da República
consagra uma série de garantias aos membros do Judiciário, como forma de
proporcionar-lhes independência, exatamente procurando permitir que os
julgadores apreciem as causas de acordo com seu livre convencimento moti­
vado, e com isso conferindo legitimidade à atuação estatal na resolução de
conflitos. Ademais, nos casos em que tal garantia foi afastada, a Constituição
foi expressa, indicando quando isso ocorreria: pode-se verificar o estabeleci-
mento de vinculação do julgador quanto às decisões tomadas sobre o mérito
de ações diretas de inconstitucionalidade e declaratórias de constitucionalidade
(artigo 102, §2º) e quanto às súmulas vinculantes (artigo 103-A).
Assim sendo, podem os Tribunais locais, no âmbito de sua independência,
deixar de aplicar o posicionamento do Tribunal Superior no julgamento do recurso,

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A decisão de suspensão de recursos repetitivos em razão de recurso representativo de controvérsia... 115
dando regular processamento ao referido mecanismo de impugnação. Nesse
sentido, pode-se verificar que o próprio artigo 543-B, em seu §4º, prevê a pos-
sibilidade de que o órgão local não siga a orientação do Supremo Tribunal
Federal, o que permite ao relator do extraordinário cassar a decisão daquele
primeiro.
Verifica-se, portanto, que a decisão proferida em um caso pode acabar
gerando efeitos sobre terceiros que sejam partes de recursos que tratem de
idêntica questão de direito, já que o acórdão do Supremo Tribunal Federal ou
Superior Tribunal de Justiça pode ser adotado imediatamente pelos Tribunais
locais na apreciação dos recursos que ficaram suspensos.
Como forma de proteção aos interesses de outros jurisdicionados, os
artigos 543-A e 543-C, nos §§6º e 4º, respectivamente, estabeleceram a pos-
sibilidade de participação de terceiros no procedimento dos recursos repre-
sentativos, consagrando manifestação de contraditório participativo nesses
meios de impugnação, já que terceiros poderão ser admitidos a atuar, influen-
ciando na tomada de decisão.8
Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça já admitiu a figura do amicus
curiae no processamento de recurso especial repetitivo, conforme se pode ver
no julgado a seguir:

PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. PRETENSÃO DE


REEXAME DE MATÉRIA DE MÉRITO (RECURSO ESPECIAL REPRESENTA-
TIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C, DO CPC. ADMINISTRATIVO. SER-
VIÇO DE TELEFONIA. DEMANDA ENTRE CONCESSIONÁRIA E USUÁ­RIO.
PIS E COFINS. REPERCUSSÃO JURÍDICA DO ÔNUS FINANCEIRO AOS
USUÁRIOS. FATURAS TELEFÔNICAS. LEGALIDADE. DISPOSIÇÃO NA LEI
8.987/95. POLÍTICA TARIFÁRIA. LEI 9.472/97. TARIFAS DOS SERVIÇOS
DE TELECOMUNICAÇÕES. AUSÊNCIA DE OFENSA A NORMAS E PRIN-
CÍPIOS DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR). INOBSERVÂNCIA
DAS EXIGÊNCIAS DO ART. 535, E INCISOS, DO CPC. [...]

4. O acolhimento da manifestação apresentada pela Agência Nacional


e Telecomunicações (ANATEL), na sua função específica e intervindo
como amicus curiae, por vezes adotada como razões de decidir, quer
das razões das partes, não implica falta de motivação do julgamento
para fins de cabimento dos embargos de declaração.

Leonardo Greco (O princípio do contraditório. In: GRECO. Estudos de direito processual, p. 554)
8

defende que o contraditório impõe o direito de influência na formação da decisão da causa.

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116 Marco Antonio dos Santos Rodrigues

5. Ademais, a parte, ora embargante, a pretexto de suprir suposta


omissão, pretende, por via oblíqua, o reexame da questão relativa ao
repasse econômico do PIS e da COFINS, nos moldes realizados pelas
empresas concessionárias de serviços de telefonia, o qual, mercê
de exaustivamente analisado tanto no voto condutor do acórdão
embargado quanto nos votos-vista, revela-se inviável em sede de
embargos de declaração em face dos limites do art. 535 do CPC.

6. Embargos de Declaração rejeitados.9

Com efeito, parece correto admitir-se a intervenção nessa qualidade de


amigo da Corte,10 pois não se trata aqui de uma participação com o objetivo
direto de defesa de um direito subjetivo. Conforme mencionado no item ante-
rior, esses recursos buscam defender a adequada aplicação de lei federal ou da
Constituição da República, o que faz com que o objetivo imediato dessa inter-
venção seja permitir uma melhor análise da incidência do direito.11
Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça admite apenas que entida-
des com representatividade atuem nessa condição de amicus curiae, de modo
a evitar que não haja um desvirtuamento do instituto, com terceiro intervindo
para a defesa de interesses pessoais.
Ademais, vale salientar que os recursos especiais e extraordinários repeti-
tivos não sofrem plenamente a aplicação do artigo 501 do Código de Processo
Civil, que permite ao recorrente que desista de seu meio impugnativo, indepen-
dentemente de condição, de concordância do adversário ou de homologação
judicial para produzir efeitos.12 Dado o interesse público decorrente do papel
assumido pelo recurso selecionado para representação da controvérsia em
jogo, não pode ser homologada a desistência do meio de impugnação, sendo
necessário decidi-lo. Assim já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça:

9
EDcl no REsp nº 976836/RS, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Seção, julgado em 10.11.2010, DJe, 26
nov. 2010.
10
Também segue esse entendimento BUENO. Curso sistematizado de direito processual civil, v. 5,
p. 275.
11
Admitindo que a garantia do contraditório permite uma nova intervenção de terceiro, cha-
mada intervenção de sobrestado, a fim de que recorrentes ou recorridos que possuam teses
argumentativas distintas das presentes do procedimento do recurso selecionado como para-
digma, confira-se: SILVA. Intervenção de sobrestado no julgamento por amostragem. Revista
de Processo.
12
Também reconhecendo que a desistência não está sujeita a condição, concordância do recor-
rido ou homologação judicial, cf. DIDIER JUNIOR; CUNHA. Curso de direito processual civil, p. 36.

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A decisão de suspensão de recursos repetitivos em razão de recurso representativo de controvérsia... 117
PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. Recurso Especial representativo de
controvérsia (art. 543-C, §1º, do CPC). Pedido de desistência. Indefe-
rimento. Violação ao art. 535, do CPC. INOCORRÊNCIA. IPI. CRÉDITO-­
PRÊMIO. DECRETO-LEI 491/69 (ART. 1º). VIGÊNCIA. PRAZO. EXTINÇÃO.
PRESCRIÇÃO.

1. É inviável o acolhimento de pedido de desistência recursal formu-


lado quando já iniciado o procedimento de julgamento do Recurso
Especial representativo da controvérsia, na forma do art. 543-C do CPC
c/c Resolução nº 08/08 do STJ. Precedente: QO no REsp. n. 1.063.343-
RS, Corte Especial, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 17.12.2008. [...]

9. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, não pro-


vido. Acórdão submetido ao regime do art. 543-C, do CPC, e da Reso-
lução STJ n. 8/2008.13

2.1 Impugnabilidade da decisão do recurso sobrestado


aplicando o entendimento do recurso paradigma
Segundo o entendimento do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo
Tribunal Federal, o julgado do Tribunal local, aplicando o entendimento ado-
tado pelos primeiros no julgamento do recurso representativo, não pode ser
objeto de recurso àquelas Cortes. Isso porque a decisão dos Tribunais de ori-
gem sobre o recurso sobrestado representaria o próprio julgamento pelos altos
Tribunais do recurso que estava paralisado, e novo meio de impugnação sobre
esse ato representaria novo julgamento da questão, já apreciada em caráter
geral pelo Tribunal Superior.
Saliente-se, entretanto, que há uma hipótese em que tais Tribunais admi­
tem recurso da decisão local que aplicou o julgado representativo: trata-se do
caso em que houve a adoção equivocada da decisão representativa para
a demanda sobrestada, já que não foi devidamente utilizado o acórdão para-
digmático. Nessas situações, os Tribunais Superiores admitem não o agravo
de admissão para os próprios, com base no artigo 544 do Código de Processo
Civil — até a entrada em vigor da Lei nº 12.322/2010, tal recurso era agravo de
instrumento —, mas sim agravo da decisão do Presidente ou Vice-Presidente do
Tribunal de origem, visando que o colegiado reveja a decisão deste último, e só
após é que será possível provocar a jurisdição do Tribunal Superior, se mantida a
equivocada aplicação do entendimento paradigma. Confira-se:

STJ. REsp nº 1.111.148/SP, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, julgado em
13

24.02.2010, DJe, 08 mar. 2010.

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118 Marco Antonio dos Santos Rodrigues

RECLAMAÇÃO. SUPOSTA APLICAÇÃO INDEVIDA PELA PRESIDÊNCIA


DO TRIBUNAL DE ORIGEM DO INSTITUTO DA REPERCUSSÃO GERAL.
DECISÃO PROFERIDA PELO PLENÁRIO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDE-
RAL NO JULGAMENTO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 576.336-RG/
RO. ALEGAÇÃO DE USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRI-
BUNAL FEDERAL E DE AFRONTA À SÚMULA STF 727. INOCORRÊNCIA.

1. Se não houve juízo de admissibilidade do recurso extraordinário,


não é cabível a interposição do agravo de instrumento previsto no
art. 544 do Código de Processo Civil, razão pela qual não há que falar
em afronta à Súmula STF 727.

2. O Plenário desta Corte decidiu, no julgamento da Ação Cautelar


2.177-MC-QO/PE, que a jurisdição do Supremo Tribunal Federal somente
se inicia com a manutenção, pelo Tribunal de origem, de decisão contrá-
ria ao entendimento firmado no julgamento da repercussão geral, nos
termos do §4º do art. 543-B do Código de Processo Civil.

3. Fora dessa específica hipótese não há previsão legal de cabimento


de recurso ou de outro remédio processual para o Supremo Tribunal
Federal.

4. Inteligência dos arts. 543-B do Código de Processo Civil e 328-A do


Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.

5. Possibilidade de a parte que considerar equivocada a aplicação


da repercussão geral interpor agravo interno perante o Tribunal de
origem.

6. Oportunidade de correção, no próprio âmbito do Tribunal de ori-


gem, seja em juízo de retratação, seja por decisão colegiada, do even-
tual equívoco.

7. Não-conhecimento da presente reclamação e cassação da liminar


anteriormente deferida.

8. Determinação de envio dos autos ao Tribunal de origem para seu


processamento como agravo interno.

9. Autorização concedida à Secretaria desta Suprema Corte para pro-


ceder à baixa imediata desta Reclamação.14

STF. Rcl nº 7569, Rel. Min. Ellen Gracie, Tribunal Pleno, julgado em 19.11.2009, DJe-232 DIVULG
14

10.12.2009 PUBLIC 11.12.2009 EMENT VOL-02386-01 PP-00158. Note-se, por oportuno, que
o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do AI nº 760.358, entendeu pelo não conheci-
mento do agravo de instrumento então previsto no artigo 544 do Código de Processo Civil,
devolvendo-o ao Tribunal de origem, para julgamento como agravo regimental.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 111-126, jul./set. 2012
A decisão de suspensão de recursos repetitivos em razão de recurso representativo de controvérsia... 119
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL CONTRA DECISÃO QUE
JULGA PREJUDICADO AGRAVO DE INSTRUMENTO. CABIMENTO.

A decisão que, na forma do artigo 328-A, §1º, do RISTF, julga pre-


judicado o agravo de instrumento interposto contra a decisão que
nega seguimento a recurso extraordinário é proferida no exercício
de jurisdição delegada pelo Supremo Tribunal Federal, de modo que,
a princípio, só este poderia reformá-la. Entretanto, no julgamento das
Reclamações nº 7.547 SP, e nº 7.569, SP, aquele Tribunal decidiu pela
“possibilidade de a parte que considerar equivocada a aplicação da
repercussão geral interpor agravo interno perante o Tribunal de ori-
gem” (Relatora Ministra Ellen Gracie, DJ de 11.12.2009).

Agravo regimental conhecido e desprovido.15

A título exemplificativo, imagine-se que houve julgamento de recurso


representativo de controvérsia analisando suposta violação a dispositivo cons-
titucional no âmbito de ação que verse sobre relação jurídica repetitiva, como
a entre Estado e servidor. Caso seja aplicada a tese adotada no julgado para-
digma para um recurso extraordinário relativo a uma questão de direito dife-
rente, apesar de semelhante, por tratar do mesmo dispositivo constitucional,
houve a adoção do acórdão representativo para caso que não lhe dizia respeito.
Tal decisão aplicou equivocadamente o entendimento do Tribunal Superior
para caso ao qual não incidia diretamente. Dessa forma, a aludida decisão da
Presidência do Tribunal poderá ser objeto de agravo regimental, para levar a
questão ao colegiado do próprio Tribunal de origem.
Ademais, vale frisar que o Supremo Tribunal Federal já entendeu des-
cabida a utilização de reclamação constitucional fundada em usurpação de
competência, a fim de corrigir eventual equívoco na aplicação do julgado
para­digmático, tendo em vista que existe mecanismo próprio para provocar o
Tribunal de origem a rever sua decisão incorreta, o agravo regimental.16 Com
efeito, a Corte Suprema acabou por acertadamente assegurar o caráter sub-
sidiário da reclamação, evitando sua utilização excessiva, já que não deve ser
utilizado esse instrumento excepcional se houver meios próprios para ataque
ao ato jurisdicional.

15
STJ. AgRg no AgRE no RE nos EDcl no AgRg no Ag nº 679.745/MG, Rel. Min. Ari Pargendler,
Corte Especial, julgado em 16.12.2009, DJe, 18 fev. 2010.
16
É o que se pode verificar, inclusive, no julgado da Reclamação nº 7569, acima transcrito.

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120 Marco Antonio dos Santos Rodrigues

3 A decisão de suspensão de recursos de idêntica questão


de direito
3.1 Possibilidade de impugnação
As leis instituidoras da sistemática de julgamento de recursos representa-
tivos de controvérsia não cuidaram, contudo, dos problemas que podem advir
ao recorrente, caso haja a suspensão do seu recurso, em virtude da seleção de
outro meio de impugnação como o paradigma da questão.
O Superior Tribunal de Justiça, porém, já rejeitou a recorribilidade da deci-
são do Tribunal de origem que suspende o recurso em razão da existência de meio
impugnativo já selecionado, entendendo pela ausência de caráter decisório do ato
que determina o sobrestamento, como se pode ver:

PROCESSUAL CIVIL – AGRAVO DE INSTRUMENTO INTERPOSTO CON-


TRA DECISÃO QUE DETERMINOU O SOBRESTAMENTO DO RECURSO
ESPECIAL NO TRIBUNAL DE ORIGEM, NOS TERMOS DO ART. 543-C,
§1º, DO CPC – NÃO CABIMENTO.

1. A decisão do presidente do Tribunal a quo que determina o sobres-


tamento do recurso especial sob o rito do art. 543-C do CPC, não tem
cunho decisório.

2. Agravo de instrumento não é cabível ao caso, uma vez que o juízo


de admissibilidade do recurso especial sequer foi realizado.

Agravo regimental improvido.17

Ao contrário do entendimento da referida Corte, com a devida vênia,


não se cuida aqui de ausência de caráter decisório no ato judicial. O ato que
sobresta o recurso pode trazer consequências à esfera de direitos das partes,
não sendo um mero despacho, mas uma decisão. Com efeito, trata-se aqui não
de descabimento de recurso, pela ausência de ato decisório a atacar, o que
levaria à inadequação desse tipo de mecanismo de impugnação em face do
pronunciamento. Diferentemente, está-se diante de ausência de interesse em
recorrer, pois a manifestação jurisdicional de suspensão não tem aptidão, em
princípio, para causar prejuízos ao recorrente, tendo em vista que a pretensão
recursal está sendo apreciada pelo Tribunal Superior através de outro recurso.

STJ. AgRg no Ag nº 1223072/SP, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em
17

09.03.2010, DJe, 18 mar. 2010.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 111-126, jul./set. 2012
A decisão de suspensão de recursos repetitivos em razão de recurso representativo de controvérsia... 121
Assim sendo, verifica-se que, apesar de o recurso permanecer paralisado
junto ao Tribunal de origem, a pretensão recursal está tramitando regularmente
por meio de outro meio de impugnação, retirando o interesse de questionar a
suspensão ocorrida, pela ausência de prejuízo, essencial à configuração desse
requisito de admissibilidade do mecanismo de ataque ao ato.18
Em uma situação, contudo, parece ser caso de superação do entendi-
mento manifestado pelo Superior Tribunal de Justiça. À semelhança do que
foi visto no item anterior acerca da aplicação indevida de entendimento de
recurso representativo a especial ou extraordinário sobrestado, pode ser que
o meio de impugnação ofertado seja sobrestado equivocadamente com base
em recurso selecionado que não diz respeito à questão que está em jogo naquele
meio impugnativo suspenso.
Caso isso ocorra, surge interesse em recorrer àquele que teve seu recurso
paralisado, pois está sofrendo prejuízo imediato em razão da decisão de sus-
pensão, já que a questão infraconstitucional federal ou constitucional não está
sendo apreciada pelo Tribunal Superior enquanto o meio de impugnação ficou
paralisado na origem.
Do mesmo modo como exemplificado anteriormente, imagine-se que
um recurso extraordinário que cuidava da constitucionalidade da cobrança
de um tributo foi sobrestado, por já ter sido selecionado, com remessa ao
Supremo Tribunal Federal, outro extraordinário que cuidava da cobrança de
outro tributo, que possui fundamentos diversos. Nessa situação, a decisão de
sobrestamento do meio de impugnação equivocadamente o está suspen-
dendo, pois aquele designado como representativo não trata da mesma ques-
tão de direito. Assim sendo, vê-se que a hipótese é de prejuízo ao recorrente
pela paralisação de seu recurso, demonstrando a clara recorribilidade do ato
do Tribunal de origem sobrestando o meio impugnativo.
A impugnabilidade da referida decisão se configura verdadeira exigên-
cia do devido processo legal, que impõe seja propiciado aos jurisdicionados
um processo justo, pleno das garantias constitucionais.
Nessa hipótese, revela-se cabível, da mesma forma que no item anterior,
o agravo regimental, visando obter a manifestação do Colegiado do Tribunal
sobre o cabimento ou não da suspensão do recurso especial ou extraordinário.

Nesse sentido, exigindo o prejuízo para a configuração do interesse em recorrer: “De um


18

modo geral, o interesse em recorrer vem sempre ligado, de uma forma ou de outra, à questão
relacionada ao prejuízo que a parte teve com a prolação da decisão” (JORGE. Teoria geral dos
recursos cíveis, p. 100).

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 111-126, jul./set. 2012
122 Marco Antonio dos Santos Rodrigues

3.2 Cabimento de suspensão dos efeitos do acórdão


recorrido e que teve seu recurso suspenso
No entanto, caso não seja admissível recurso em face do pronunciamento
de sobrestamento, por não se enquadrar no caso anteriormente mencionado
e exemplificado, parece cabível ao menos a utilização de ação cautelar para as
demais hipóteses, visando à concessão de medida que suste os efeitos do acór-
dão recorrido enquanto pendente de julgamento o recurso representativo da
controvérsia.
Isso porque a tutela cautelar é instrumento que tem exatamente por fina-
lidade a proteção à efetividade de pretensão discutida em outro processo, e no
caso em tela será utilizada para evitar que o recorrente venha a sofrer prejuízos
em razão da paralisação de seu meio de impugnação.
Nesse sentido, para que obtenha, durante o procedimento de julga-
mento do recurso representativo de controvérsia, uma providência de sus-
pensão dos efeitos do acórdão atacado, terá o requerente de demonstrar os
requisitos da tutela cautelar, quais sejam, o fumus boni iuris e o periculum in
mora. Assim, será preciso ao requerente demonstrar que a tese de seu recurso
é plausível — isto é, que parece em princípio ter havido violação a alguma lei
federal ou à Constituição — a fim de preencher a fumaça de bom direito, bem
como trazer elementos de que a não concessão da providência poderá lhe
causar dano grave irreparável ou de difícil reparação.
Note-se que o próprio artigo 266 do Código de Processo Civil acaba por
permitir a concessão de medida cautelar em prol da sustação dos efeitos da
decisão recorrida, tendo em vista que, na forma do aludido dispositivo, a sus-
pensão do processo impede a prática de atos processuais, excetuadas as medi-
das urgentes. Diante disso, pode ser concedida providência de cunho cautelar
durante o sobrestamento do recurso extraordinário ou especial, uma vez que
coberta pela autorização legal.
No sentido do que ora se defende, o Superior Tribunal de Justiça já admi-
tiu a concessão de medida cautelar em face de acórdão que foi objeto de recurso
extraordinário paralisado, em razão da existência de meio de impugnação
representativo da controvérsia já selecionado para análise pelo Supremo
Tribunal Federal:

MEDIDA CAUTELAR. PIS. PRESCRIÇÃO. CINCO ANOS DO FATO GERA-


DOR MAIS CINCO ANOS DA HOMOLOGAÇÃO TÁCITA. ART. 4º DA LEI
COMPLEMENTAR N.118/2005. MATÉRIA DECIDIDA SOB O REGIME DO
ART. 543-C DO CPC E DA RESOLUÇÃO STJ 08/2008. DIREITO RECO-
NHECIDO NO RESP 895.469/SP. REQUISITOS PARA CONCESSÃO DO
EFEITO SUSPENSIVO CONFIGURADOS.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 111-126, jul./set. 2012
A decisão de suspensão de recursos repetitivos em razão de recurso representativo de controvérsia... 123
1. O direito defendido pela autora está sobrestado no Superior Tribunal
de Justiça aguardando julgamento do caso emblemático constante
do recurso extraordinário interposto contra o aresto exarado no REsp
932.459/SP, escolhido para gerar efeitos sobre todos os demais recursos
que tratam de matéria idêntica, nos termos do art. 543-B, §1º, do Código
de Processo Civil - motivo pelo qual o processo judicial não pode ser
encerrado, reconhecendo-se o direito postulado.

2. O fumus boni iuris está presente ante o provimento do recurso


especial 895.469/SP, interposto pela ora requerente. Segundo o
referido julgado, “na hipótese de tributo sujeito a lançamento por
homologação, o prazo para a propositura da ação de repetição de
indébito é de 10 (dez) anos a contar do fato gerador, se a homolo-
gação for tácita (tese dos ‘cinco mais cinco’), e, de 5 (cinco) anos a
contar da homologação, se esta for expressa”.

3. A tese reconhecida no recurso especial da Requerente foi reite-


rada pela Primeira Seção em 25.11.2009, por ocasião do julgamento
do Recurso Especial repetitivo 1.002.932/SP, oportunidade em que
a matéria foi decidida sob o regime do art. 543-c do CPC e da Reso-
lução STJ n. 8/2008. 4. O requisito do periculum in mora afigura-se
presente, pois a requerente vê-se na iminência de ter seu nome
incluído no CADIN e, ainda, sofrer as consequências de uma exe-
cução fiscal para responder por débitos que, aparentemente, não
existem, além de encontrar-se impossibilitada de obter certidões.
Medida cautelar procedente.19

Finalmente, importante delimitar a competência para a apreciação da


ação cautelar. Devem ser aplicadas à hipótese as Súmulas nºs 63420 e 63521 do
Supremo Tribunal Federal para ambos os recursos, as quais estabelecem que
a pretensão cautelar será examinada pelo Tribunal de origem, enquanto não
houver sido admitido o recurso extraordinário, e pelo Pretório Excelso, apenas
após realizado o juízo de admissão do meio impugnativo. Assim sendo, como
se trata de recursos que ainda não passaram por esse primeiro juízo e restaram

19
STJ. MC nº 15.142/SP, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 04.11.2010,
DJe, 17 nov. 2010.
20
“Não compete ao Supremo Tribunal Federal conceder medida cautelar para dar efeito suspen-
sivo a recurso extraordinário que ainda não foi objeto de juízo de admissibilidade na origem”.
21
“Cabe ao presidente do tribunal de origem decidir o pedido de medida cautelar em recurso
extraordinário ainda pendente do seu juízo de admissibilidade”.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 111-126, jul./set. 2012
124 Marco Antonio dos Santos Rodrigues

sobrestados, a competência será do Tribunal a quo para apreciar a providência


buscada. Nessa linha de pensamento, já se posicionou a Corte Suprema:

QUESTÃO DE ORDEM. AÇÃO CAUTELAR. RECURSO EXTRAORDINÁRIO.


PEDIDO DE CONCESSÃO DE EFEITO SUSPENSIVO E O SOBRESTAMENTO,
NA ORIGEM, EM FACE DO RECONHECIMENTO DE REPERCUSSÃO GERAL
PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ARTIGOS 543-B, §1º, DO CPC, E
328-A, DO RISTF. SÚMULAS STF 634 E 635. JURISDIÇÃO CAUTELAR QUE
DEVE SER PRESTADA PELOS TRIBUNAIS E TURMAS RECURSAIS A QUO,
INCLUSIVE QUANTO AOS RECURSOS ADMITIDOS, PORÉM SOBRESTA-
DOS NA ORIGEM.

1. Para a concessão do excepcional efeito suspensivo a recurso extraor-


dinário é necessário o juízo positivo de sua admissibilidade no tribunal
de origem, a sua viabilidade processual pela presença dos pressupos-
tos extrínsecos e intrínsecos, a plausibilidade jurídica da pretensão de
direito material nele deduzida e a comprovação da urgência da pre-
tensão cautelar. Precedentes.

2. Para os recursos anteriores à aplicação do regime da repercussão


geral ou para aqueles que tratem de matéria cuja repercussão geral
ainda não foi examinada, a jurisdição cautelar deste Supremo Tribunal
somente estará firmada com a admissão do recurso extraordinário ou,
em caso de juízo negativo de admissibilidade, com o provimento do
agravo de instrumento, não sendo suficiente a sua simples interposi-
ção. Precedentes.

3. Compete ao tribunal de origem apreciar ações cautelares, ainda


que o recurso extraordinário já tenha obtido o primeiro juízo positivo
de admissibilidade, quando o apelo extremo estiver sobrestado em
face do reconhecimento da existência de repercussão geral da maté-
ria constitucional nele tratada.

4. Questão de ordem resolvida com a declaração da incompetência


desta Suprema Corte para a apreciação da ação cautelar que busca a
concessão de efeito suspensivo a recurso extraordinário sobrestado
na origem, em face do reconhecimento da existência da repercussão
geral da questão constitucional nele discutida.22

AC nº 2177 MC-QO, Rel. Min. Ellen Gracie, Tribunal Pleno, julgado em 12.11.2008, DJe-035
22

DIVULG 19.02.2009 PUBLIC 20.02.2009 EMENT VOL-02349-05 PP-00945 RTJ VOL-00209-03 PP-
01021.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 111-126, jul./set. 2012
A decisão de suspensão de recursos repetitivos em razão de recurso representativo de controvérsia... 125
Vale notar, ainda, que a competência da ação cautelar no Tribunal de
origem possibilita que o acórdão adotado por essa Corte no julgamento final
dessa demanda, caso viole norma infraconstitucional federal ou constitucio-
nal, seja atacado por recurso especial ou extraordinário, na forma da hipótese
concreta, conferindo ao prejudicado uma instância excepcional revisora da
decisão da ação urgente em questão.

4 Conclusões
À luz das considerações precedentes, diante da sistemática de julgamento
de recursos especiais ou extraordinários repetitivos, nem sempre se pode admitir
que a decisão de um Tribunal de origem, ao sobrestar um recurso em virtude de
outro representativo de controvérsia que esteja no Tribunal Superior, não gere
interesse em recorrer. Ao contrário, pode-se estar diante de decisão de sobresta-
mento que equivocadamente realizou a suspensão, com base em demanda para­
digma que não se refira à mesma questão de direito.
Em tal situação, a decisão em tela pode ser objeto de agravo, a fim de pro-
vocar o Tribunal de origem a rever a decisão da Presidência ou Vice-Presidência
que suspendeu indevidamente o meio de impugnação, sem realizar seu juízo
de admissibilidade. Caso seja mantido o entendimento monocrático, é possível
também provocar a jurisdição do Superior Tribunal de Justiça, se sobrestado
recurso especial, ou do Supremo Tribunal Federal, se recurso extraordinário.
De outro lado, se o acórdão recorrido pelo recurso sobrestado estiver
gerando prejuízos ou for passível de causar danos ao recorrente, em razão da
falta de efeito suspensivo desses meios impugnativos, a ação cautelar é ins-
trumento cabível para a obtenção da sustação dos efeitos de acórdão impug-
nado, devendo ser demonstrados pelo requerente os requisitos à concessão
da medida de urgência.
Finalmente, cumpre salientar que a competência para apreciação do
pleito cautelar é do Tribunal de origem, tendo em vista que o recurso sobres-
tado ainda não passou por juízo de admissibilidade, permitindo, ainda, que do
acórdão do Tribunal acerca da pretensão de urgência sejam cabíveis recursos
aos Tribunais Superiores, se houver fundamento para tanto.

Resumen: La decisión que determina la suspensión del recurso extra-


ordinario como consecuencia de la interposición de un recurso sobre el
fondo de la controversia, puede ser impugnada en caso de que haya sido
incorrectamente adoptada. Asimismo, es posible la solicitud de medidas
cautelares en orden a obtener la suspensión de los efectos de la reso-
lución (colegiada) objeto del recurso suspendido, en caso de que exis-
tan indicios que demuestren la probabilidad de éxito de este medio de

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 111-126, jul./set. 2012
126 Marco Antonio dos Santos Rodrigues

impugnación y exista riesgo de provocación de daño irreparable por el


mantenimiento de los efectos de la resolución impugnada.

Palabras clave: Recurso representativo. Suspensión. Medida cautelar.


Efecto suspensivo.

Referências
BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 2008. v. 5.
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 17. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil. 4. ed.
Salvador: JusPodium, 2007. v. 3.
GRECO, Leonardo. O princípio do contraditório. In: GRECO, Leonardo. Estudos de direito processual.
Campos dos Goytacazes, RJ: Ed. Faculdade de Direito, 2005.
JORGE, Flávio Cheim. Teoria geral dos recursos cíveis. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Recurso extraordinário e recurso especial. 11. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2010.
MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Repercussão geral no recurso extraordinário. 2. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
MEDINA, José Miguel Garcia. Prequestionamento e repercussão geral: e outras questões relativas
aos recursos especial e extraordinário. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. 13. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2006. v. 5.
SILVA, Ticiano Alves e. Intervenção de sobrestado no julgamento por amostragem. Revista de
Processo, São Paulo, v. 35, n. 182, p. 234-257, abr. 2010.
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDEIROS, Maria Lucia Lins Conceição de. Recursos repetitivos:
realização integral da finalidade do novo sistema impõe mais do que a paralisação dos recursos
especiais que estão no 2º grau. Revista de Processo, São Paulo, v. 36, n. 191, p. 187-197, jan. 2011.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de


Normas Técnicas (ABNT):

RODRIGUES, Marco Antonio dos Santos. A decisão de suspensão de recursos repetitivos em razão
de recurso representativo de controvérsia: impugnabilidade e proteção em face de risco de dano.
RevistaBrasileiradeDireitoProcessual–RBDPro,BeloHorizonte,ano20,n.79,p.111-126,jul./set.2012.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 111-126, jul./set. 2012
Processo e direitos fundamentais –
Brevíssimos apontamentos
Carlos Alberto Molinaro
Professor no Programa de Mestrado e
Doutorado em Direito da PUCRS. Pesquisador
no NEDEF-PUCRS. Doutor em Direito.

Mariângela Guerreiro Milhoranza


Advogada. Especialista em Direito Processual Civil
pela PUCRS. Pesquisadora do Núcleo de Pesquisas
Novas Técnicas do Direito Processual da PUCRS.
Mestre em Direito. Doutoranda pela PUCRS.

Resumo: Este ensaio pretende alinhar algumas considerações relativas a uma


interdependência entre processo e direitos fundamentais, na perspectiva de
um bem identificado Estado de Direito.

Palavras-chave: Direitos fundamentais. Dignidade humana. Processo.

Sumário: Considerações preliminares – 1 Um breve percurso pelos direitos


fundamentais e o correspondente princípio da dignidade humana – 2 Do
acesso à justiça – 3 Do acesso à justiça e da efetividade da tutela jurisdicional
como direitos fundamentais – Considerações finais – Referências

Todos los textos son borradores. Los únicos textos definitivos


son sólo fruto de la religión o del cansancio.
(Las versiones homéricas. In: BORGES, Jorge L. Discusión.)

Considerações preliminares
O tempo, no direito, se estabelece a partir daquilo que determinam as
regras previstas em lei. Segundo François Ost, quando pronunciamos dar ou
tomar o tempo, na realidade se está construindo ou temporalizando o tempo,
portanto, temporalizar quer denotar a construção do tempo; motivo pelo qual,
para o autor, o conceito de temporalização serve para visibilizar o tempo, para
assinalar uma instituição social.1 Neste sentido, a afirmação de Ost, segun-
do a qual o tempo “é uma obra frágil e de todos os lados surge a ameaça da

OST. O tempo do direito, p. 13.


1

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 127-145, jul./set. 2012
128 Carlos Alberto Molinaro, Mariângela Guerreiro Milhoranza

destemporalização”,2 isto é, a figura da destemporalização representa um risco


considerável para a estabilidade das relações jurídicas.
O tempo do processo e o de seu curso “é o tempo separado do da vida
real”,3 ajustado e, pois, grafado pelas proposições normativas, ele é um tempo
ordenado, programado que obedece a uma definida sequência e a uma deter-
minada regularidade, como bem esclarece José Rogério Cruz e Tucci, ao afir-
mar: “O tempo do processo é um tempo inteiramente ordenado que permite à
sociedade regenerar a ordem social e jurídica”.4 Nesse passo, nada obstante a
tão conhecida e, por vezes, inevitável morosidade judicial, ainda assim, os atos
processuais obedecem a uma determinada ordem e regularidade.
Entretanto, não apenas o processo se vincula a uma bem definida regu­
laridade, também, os atos das partes observam uma proposta normativa preesta-
belecida, por curial, observe-se (no processo civil) os prazos assinados ao réu, é o
tempo de sua defesa, próprio e único;5 “pois o tempo está incorporado ao direito,
numa existência autêntica que conduz a uma antecipação, a uma prolepse:
vivemos no presente o futuro imaginando-o; e, por estar incorporado ao
direito, o tempo rege o ato: tempus regit actum”.6
O processo tem curso no tempo, nele progride e se expande, mas por
vezes se contrai, para novamente dilatar-se, são os seus ritmos. Os direitos,
deveres, pretensões, obrigações, ações e exceções (a clássica sena pontiana),
postos na ambiência processual, são exercidos ao longo do tempo; neste cená-
rio é da sua incidência as determinantes, v.g., da prescrição ou da decadência
(institutos sabidamente de direito material, mas que se realizam e se concre-
tizam dentro do processo). Nesse sentido, a temporalidade e o acesso ao pro-
cesso justo e célere induz a presente reflexão sobre as relações entre processo
e direitos fundamentais.

1 Um breve percurso pelos direitos fundamentais e o


correspondente princípio da dignidade humana
O adjetivo fundamental, quando empregado na expressão direito funda­
mental, vai significar “o que é necessário e primacial, como são os direitos”;7 e, como
produtos culturais que são os direitos humanos e os direitos fundamentais, acolhidos

2
Op. cit., p. 15.
3
Op. cit., loc. cit.
4
TUCCI. Tempo e processo, p. 26.
5
Op. cit., p. 28.
6
MOLINARO. Racionalidade ecológica e estado socioambiental e democrático de direito, f. 146.
7
MILHORANZA; MOLINARO. Alcance político da Jurisdição no âmbito do Direito à Saúde. In:
ASSIS. Aspectos polêmicos e atuais dos limites da jurisdição e do direito à saúde, p. 203.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 127-145, jul./set. 2012
Processo e direitos fundamentais – Brevíssimos apontamentos 129
os primeiros e inscritos os segundos, nas Constituições modernas, respondem a um
peculiar sintagma:8 “dignidade da pessoa humana e a pretensão de segurança,
ou garantia, atribuída ao ordenamento jurídico”.9 Não é por acaso que, há
muito, o emérito professor da Friedrich-Alexander Universität Erlangen-Nürnberg,
Reinhold Zippelius, afirma que “a função principal dos direitos fundamentais con-
siste em proteger um espaço de liberdade individual contra a ingerência do
poder do Estado e contra a sua expansão totalitária”,10 estamos aí frente a um espaço
de contenção do poder, garantido pela inviolabilidade das cláusulas de pereni-
dade que acolhe os direitos e garantias constitucionais,11 próprias de um Estado
Democrático, o que faz Sarlet afirmar que tanto a Constituição quanto os direitos
fundamentais “compõem condição de existência e medida da legitimidade de um
autêntico Estado Democrático e Social de Direito, tal qual como consagrado tam-
bém em nosso direito constitucional positivo e vigente”.12
Assim, é desde o princípio da dignidade humana que se pode discor-
rer sobre os direitos fundamentais e, mais, sobre os direitos humanos, núcleo
essen­cial de ambos, pois mais que personalidades individuais, os seres huma-
nos incorporam identidades coletivas em permanente mudança, em perma-
nentes contatos, contatos que se definem quotidianamente numa dinâmica de
acertos e contradições. A dignidade é qualidade que mira mais o valor de uso (a
capacidade de fazer) que o valor de troca (capacidade de acumular). A dignidade
é qualidade que objetiva o acesso equitativo dos bens e a luta contra a desigual
repartição que os processos de divisão capitalistas promoveram e promovem
até o presente. A dignidade é pantapórica, pois aposta pela dilatação de todos
os caminhos, pela ampliação do humano. A dignidade do humano é mais res-
trita que a noção de dignidade da pessoa humana. Tal é assim, pois mesmo a
pessoa (persona) que age ou labora de modo intencional no prejuízo do outro,
não perde sua dignidade íntima de pessoa, persona, por isso, por vezes, mais
é máscara, ou em outras, mais é face — também valores (não)humanos. Com
a dignidade do humano, as coisas são diferentes.13 A dignidade do humano

8
Utiliza-se a expressão sintagma no sentido grego tardio de σύνταγμα, do verbo συντάσσω,
isto é, coisa alinhada com outra, ou um conjunto de expressões linguísticas em que um
termo-representação funciona como unidade.
9
MOLINARO. Se educação é a resposta: qual era a pergunta?.
10
ZIPPELIUS. Teoria geral do Estado, p. 419.
11
MOLINARO; SARLET. Não existe o que panoramicamente vemos no céu: o “ponto cego” do
direito (políticas públicas sobre regulação em ciência e tecnologia). In: BAVARESCO. Justiça
democracia e política.
12
SARLET. A eficácia dos direitos fundamentais, 4. ed., p. 72.
13
MILHORANZA; MOLINARO. Da tutela da confiança e do cumprimento da decisão em matéria
de emissão de declaração de vontade e em matéria de pré-contrato. In: MILHORANZA;

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 127-145, jul./set. 2012
130 Carlos Alberto Molinaro, Mariângela Guerreiro Milhoranza

é deontológica, revela-se na capacidade de assumir deveres, comprometer-se


com o conveniente, portanto com outro. Está bem delineada no art. 29, 1 e 2, da
Declaração de 1948. Concretizar os deveres para a comunidade, para o outro,
é o que torna possível o desenvolvimento do ser humano. Afirme-se, pois, que
o ser humano não pode ser perspectivado tão só desde sua individualidade, e
que sua atuação na sociedade, no Estado, diga respeito tão somente a sua cons-
telação patrimonial e moral, sem levar em consideração as consequências de
sua atuação no espectro comunitário (dever jurídico para com a comunidade).
Ademais, a dignidade humana não é estranha aos mercados, de qualquer tipo
(inclusive do invisibilizado mercado jurídico), mercados que sempre estão em
torno das lutas para efetivar os direitos humanos e os direitos fundamentais.
Direitos humanos e direitos fundamentais, direitos do ser humano — são
expressões que se encontram amalgamadas na ideia de natureza humana,
num circuito de reação cultural permanente. Outra não é a perspectiva de Maria
Celina Bodin de Moraes, que anotou: “O respeito à dignidade da pessoa humana,
fundamento do imperativo categórico kantiano, de ordem moral, tornou-se um
comando jurídico no Brasil com o advento da Constituição Federal de 1988, do
mesmo modo que já havia ocorrido em outras partes [...] No Direito brasileiro,
após mais de duas décadas de ditadura sob o regime militar, a Constituição
democrática de 1988 explicitou, no artigo 1º, III, a dignidade da pessoa humana
como um dos ‘fundamentos da República’. A dignidade humana, então, não é
criação da ordem constitucional, embora seja por ela respeitada e protegida.
A Constituição consagrou o princípio e, considerando a sua eminência, procla-
mou-o entre os princípios fundamentais, atribuindo-lhe o valor supremo de
alicerce da ordem jurídica democrática. Com efeito, da mesma forma que Kant
estabelecera para a ordem moral, é na dignidade humana que a ordem jurídica
(democrática) se apoia e constitui-se”.14 Nessa linha argumentativa, porém afas-
tando-se o imperativo kantiano, é de insistir que há de se ter uma noção bem
delineada sobre direitos humanos e sobre direitos fundamentais; num primeiro
momento, afirma-se que os direitos humanos são os resultados de processos
culturais de emancipação do ser humano na luta constante pela dignidade do
humano; de outra parte, direitos fundamentais são os resultados de processos
culturais de regulação das conquistas alcançadas pelos processos emancipató-
rios. Portanto, os direitos fundamentais não são a tão só positivação dos direitos

PORTO; TESHEINER. Instrumentos de Coerção e outros temas de direito processual civil: estudos
em homenagem aos 25 anos de docência do Professor Dr. Araken de Assis.
14
MORAES. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo. In:
SARLET. Constituição, direitos fundamentais e direito privado, p. 116-117.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 127-145, jul./set. 2012
Processo e direitos fundamentais – Brevíssimos apontamentos 131
humanos, são mais; são garantias das conquistas que aqueles alcançaram,
pois os direitos humanos cabem dentro dos direitos fundamentais, mas deles
extravasam; são também processos regulatórios não necessariamente vincula-
dos aos direitos humanos, por vezes, revestem garantias derivadas de outros
direitos fundamentais, e até mesmo de direitos humanos ainda não albergados
pela fundamentalidade constitucional, ou albergados e inscritos em normas
de sobre ou superdireito. Imprescindível, pois, demarcar o conceito de direitos
fundamentais que não pode ser confundido com o conceito de direitos huma-
nos. Essa identidade de titular, durante muitos anos, provocou imprecisão con-
ceitual, mas atualmente não restam mais dúvidas de que se trata de noções
jurídicas distintas.15
Ingo Sarlet, ao tratar do assunto, distingue os elementos em tela conside-
rando que fundamentais são: “aqueles direitos do ser humano reconhecidos e
positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado
[...], ao passo que a expressão ‘direitos humanos’ guardaria relação com os docu­
mentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se
reco­nhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação
com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade uni-
versal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam inequívoco caráter
supranacional (internacional)”.16 O entendimento de Sarlet acompanha a dou-
trina internacional, especialmente germânica, mas também ibérica e platina,
conforme se pode constatar nas lições do emérito professor da Universidade
de Sevilla, Antonio Enrique Pérez Luño, e do emérito professor da Pontifícia
Universidade Católica Argentina, Jorge Rodríguez Mancini, apenas para citar dois
eminentes juristas. Pérez Luño assevera que “Los derechos fundamentales son
aquellos derechos humanos positivizados en las constituiciones estatales”,17
enquanto Jorge Mancini ensina que “Los derechos fundamentales serían aquellos
derechos humanos que los ordenamientos jurídicos nacionales e internacionales
han reconocido como indispensables y que necesariamente deben estar expre-
sados en los documentos básicos y superiores, sin que ello implique agotar la lista
de los que componen el conjunto de derechos esenciales a la persona humana”.18

15
MILHORANZA; MOLINARO. Alcance político da Jurisdição no âmbito do Direito à Saúde. In:
ASSIS. Aspectos polêmicos e atuais dos limites da jurisdição e do direito à saúde, p. 204-205.
16
SARLET. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed., p. 33-34.
17
“Los derechos fundamentales son aquellos derechos humanos positivizados en las constituiciones
estatales” (PÉREZ LUÑO. Derechos humanos, Estado de derecho y Constitución, p. 31).
18
MANCINI. Derechos fundamentales y relaciones laborales, p. 10.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 127-145, jul./set. 2012
132 Carlos Alberto Molinaro, Mariângela Guerreiro Milhoranza

Ademais, importa ter presente que identificados os conceitos, devemos


mencionar, ainda, que eles, os direitos humanos e os direitos fundamentais, os
primeiros na ordem internacional e os segundos nas ordens nacionais são, ao
mesmo tempo, na lição precisa de Gilmar Ferreira Mendes, “direitos subjetivos e
elementos fundamentais da ordem constitucional objetiva”;19 o que complementa
e alinha o articulado pelo jurista português José Carlos Vieira de Andrade: “os
preceitos relativos aos direitos fundamentais não podem ser pensados apenas
do ponto de vista dos indivíduos, enquanto posições jurídicas de que estes são
titulares perante o Estado, designadamente para dele se defenderem, antes
valem juridicamente também do ponto de vista da comunidade, como valores
ou fins que esta se propõe prosseguir, em grande medida através da acção esta-
dual. Por outro lado, no âmbito de cada um dos direitos fundamentais, em volta
deles ou nas relações entre eles, os preceitos constitucionais determinam espaços
normativos, preenchidos por valores ou interesses humanos afirmados como bases
objectivas de ordenação da vida social”.20 Se na origem os direitos fundamen-
tais tinham como precípua finalidade amenizar a interferência estatal na vida
privada,21 atualmente eles incidem nas relações entre indivíduos de igual hie-
rarquia, entre iguais, ou particulares (horizontalidade da disposição). Todavia,
durante muito tempo se entendeu que os direitos fundamentais seriam
somente oponíveis em face do próprio ente estatal (verticalidade da dispo-
sição), sendo esta, portanto, a razão maior pela qual existam, ainda, motivos
suficientes para tratar da incidência dos mesmos na seara do direito privado.
Nesse passo, Peter Häberle vai afirmar caber à ciência do direito constitucional
delinear inúmeras propostas teóricas para que se tenha a compreensão geral e
especial dos direitos fundamentais e de sua utilização.22
Observa-se que o rol dos direitos fundamentais inclui um fenômeno alo-
poiético, isto é, uma especial cláusula de abertura criativa, o que implica na
existência de direitos fundamentais tópicos e atópicos (aqueles direitos funda-
mentais que, mesmo não inseridos dentro da Carta Magna, afiguram-se como
detentores de fundamentalidade).23 A subdivisão da fundamentalidade (formal
e material) foi indicada por Alexy, relativamente à abertura do catá­logo cons-
titucional para direitos materialmente fundamentais e que ainda não tenham

19
MENDES. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direitos consti-
tucional, p. 2.
20
VIERA DE ANDRADE. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, p. 111.
21
Nesse particular, Reinnhold Zippelius ensina que a função principal dos direitos fundamentais
consiste em proteger um espaço de liberdade individual contra a ingerência do poder do Estado
e contra a sua expansão totalitária (Teoria geral do Estado, p. 419).
22
HÄBERLE. Die Wesengehaltsgarantie des Arts. 19 Abs 2 Grndgesetz, p. 83.
23
GOUVEIA. Os direitos fundamentais atípicos.

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Processo e direitos fundamentais – Brevíssimos apontamentos 133
sido positivados.24 Entre nós, percebe-se, da leitura do §2º do art. 5º da Carta
Magna,25 a possibilidade de previsão de inserção de outros direitos não con-
textualizados na Constituição brasileira; tendo o processualista paranaense
Luiz Guilherme Marinoni, relativamente ao §2º do art. 5º da CF/1988, afirmado
que “essa norma permite, por meio da aceitação da idéia de fundamentali-
dade material, que outros direitos, mesmo que não expressamente previstos
na CF e, por maior razão, não enumerados no seu título II, sejam considerados
direitos fundamentais. Isso quer dizer que o art. 5º, §2º, da CF institui um sistema
constitucional aberto a direitos fundamentais em sentido material”.26 Por
outro lado, no magistério de Luiz Edson Fachin e de Carlos Eduardo Pianovski
Ruzyk, a incidência dos direitos fundamentais sobre as relações privadas é um
processo ainda em franca construção. Frisa-se que um dos enfoques primor-
diais do constitucionalismo é a transformação de uma série de temas jurídicos
que eram da seara do direito civil em matéria constitucional.27 Sobre a cons-
titucionalização do direito privado, agudas são as observações do emérito
professor do Center for Advanced Studies der Ludwig-Maximilians-Universität
München Claus-Wilhem Canaris, ao afirmar: “podemos constatar uma tendên-
cia ao fortalecimento da influência da Constituição sobre o Direito Privado. [...]
Em quase todo e qualquer ordenamento jurídico moderno, de modo mais ou
menos cogente, coloca-se a questão da relação entre os direitos fundamentais
e o Direito Privado. Ela radica no fato de os direitos fundamentais, enquanto parte
da Constituição, terem um grau mais elevado na hierarquia das normas do que
o Direito Privado, podendo, por conseguinte, influenciá-lo. Por outro lado, a
Constituição, em princípio, não é o lugar correto nem habitual para regulamen-
tar as relações entre cidadãos individuais e entre pessoas jurídicas. Nisso consiste,
muito pelo contrário, a tarefa específica do Direito Privado, que desenvolveu
nesse empenho uma pronunciada autonomia com relação à Constituição; e
isso não vale apenas em perspectiva histórica, mas também no tocante ao
conteúdo, pois o Direito Privado, em regra, disponibiliza soluções muito mais
diferenciadas para conflitos entre seus sujeitos do que a Constituição pode-
ria fazer. Disso resulta uma relação de tensão entre o grau hierárquico mais
elevado da Constituição, por um lado, e a autonomia do Direito Privado, por

24
ALEXY. Teoria de los derechos fundamentales.
25
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade,
à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: §2º Os direitos e garantias
expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por
ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
26
MARINONI. Teoria geral do processo, p. 65.
27
FACHIN; RUZYK. Direitos fundamentais, dignidade da pessoa humana e o novo Código Civil:
uma análise crítica. In: SARLET. Constituição, direitos fundamentais e direito privado, p. 90.

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134 Carlos Alberto Molinaro, Mariângela Guerreiro Milhoranza

outro. O recurso aos direitos fundamentais propõe assim questões específicas


no Direito Privado, que, provavelmente, se assemelham na maioria dos orde-
namentos jurídicos no tocante à sua estrutura, mas também por razões siste-
máticas e de ordem lógico-jurídicas. Por outro lado, as soluções naturalmente
também têm o seu perfil definido pelas especificidades do respectivo direito
nacional, podendo, por conseguinte, ser muito distintas”.28 Veri­fica-se, por-
tanto, que atualmente a ordem constitucional vem a regrar tanto o poder público
como a sociedade civil, inexistindo, sob esse prisma, separação tan­gente entre
o direito constitucional e o direito privado. Logo, percebe-se que é impossível
concebê-los fundados em uma visão fragmentada, calcada em lógicas diferen-
tes, uma vez que o direito constitucional e o direito privado possuem campos
de incidência análogos. Contudo, nem sempre foi assim; de fato, os anteceden-
tes históricos29 da aplicabilidade dos direitos fundamentais nas relações entre
particulares, passam, indiscutivelmente, pela análise do julgamento do caso
Lüth, de 1958, por parte da Corte Constitucional Alemã.30 Concernentemente
aos deveres de proteção conferidos pelo julgamento do caso Lüth, é cabal ad-
mitir, ocorreu uma transformação da interpretação das obrigações do Estado
frente aos cidadãos. Em outras palavras: as incumbências do Estado foram
aperfeiçoadas; sendo que foi aumentado seu âmbito de incidência nas relações

28
CANARIS. Influência dos direitos fundamentais da sobre o direito privado na Alemanha. In:
SARLET. Constituição, direitos fundamentais e direito privado, p. 227-228.
29
PEREIRA. Apontamentos sobre a aplicação das normas de direito fundamental nas relações
jurídicas entre particulares. In: BARROSO. A nova interpretação constitucional: ponderação,
direitos fundamentais e relações privadas.
30
Canaris resume o caso paradigmático Lüth da seguinte forma: “Uma sentença do Tribunal
Constitucional Federal, que versou sobre uma colisão entre o direito delitivo (da responsa-
bilidade por atos ilícitos) e a liberdade de opinião, passou a ser fundamental importância
para o tratamento da relação entre direitos fundamentais e Direito Privado na Alemanha. No
caso em exame, um cidadão de nome Lüth apelara, em 1950, aos proprietários e freqüen-
tadores de salas de cinema ao boicote de um novo filme, argumentando que o diretor do
mesmo rodara um filme anti-semita durante o período nacional-socialista. Os tribunais cíveis
consideraram o apelo um ato ilícito, por ofensivo aos bons costumes no sentido do estabe-
lecido pelo §856 do BGB (Código Civil Alemão) condenando, por conseguinte, o Sr. Lüth a
não repeti-lo. Em resposta ao recurso constitucional impetrado pelo Sr. Lüth, o Tribunal Cons-
titucional Federal cassou a sentença do tribunal cível, pois este teria, na aplicação do §826
do BGB, violado o direito fundamental à liberdade de opinião do Sr. Lüth, assegurada pelo
artigo 5º, inciso I, da LF. Assim, o Tribunal Constitucional Federal utilizou-se, pela primeira vez,
da formulação entrementes célebre, de que a Lei fundamental ‘erigiu na seção referente aos
direitos fundamentais uma ordem objetiva de valores [...], que deve valer enquanto decisão
fundamental de âmbito constitucional para todas as áreas do Direito’” (In: SARLET. Constitui­
ção, direitos fundamentais e direito privado, p. 229-330); Ingo Wolfgang Sarlet, por seu turno,
também faz uma síntese do caso em tela no ensaio Direitos Fundamentais e direito privado:
algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais
(In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). A Constituição concretizada: construindo pontes com o
público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 124 et seq.).

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Processo e direitos fundamentais – Brevíssimos apontamentos 135
em geral. Hoje, se pode cogitar da agressão estatal aos direitos fundamentais
por ação (quando o ente público desrespeita qualquer direito fundamental do
cidadão) e também por omissão (quando o Estado é omisso ou ineficaz na sua
missão de defender os direitos fundamentais dos indivíduos no seu trato rela-
cional privado). Ressalta-se que o julgamento do caso Lüth repercutiu não ape-
nas na Alemanha, mas também em outros países da Europa Ocidental, como,
por exemplo, em Portugal. Nesse passo, a Carta Constitucional de Portugal afir-
mou no corpo do artigo 18º-1 que: “os preceitos constitucionais respeitantes
aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as
entidades públicas e privadas”. Entretanto, convém anotar que Canaris31 pro-
pôs uma nova interpretação do julgamento do caso Lüth. Segundo o jurista
tedesco, existem dois fatores a serem nova­mente observados: a) a neces-
sidade de uma separação estrita entre a eficácia de irradiação e a proble-
mática da super-revisão; e b) a substituição da tese da “eficácia de irradiação”
pelo recurso às funções dos direitos fundamentais de proibição de interven-
ção e de imperativo de tutela. Para modificar a natureza jurídico-institucional
do Corte Suprema, Canaris assevera que não se pode transformar o Tribunal
Constitucional em um órgão de super-revisão do que fora discutido nas varia-
das áreas de interesse entre os particulares. Para Canaris, existe falha material
no plano do direito constitucional ao se defender a ideia em destaque (eficá-
cia de irradiação), eis que ela não se revestiria de conceituação jurídica, sendo
mera formulação metafórica transportada da linguagem coloquial. Aduz, ainda,
que melhor solução seria a de se substituir o vago critério adotado pela Corte
Constitucional Alemã pelas funções usuais dos direitos fundamentais, mor-
mente a da proibição interventiva e a do imperativo de proteção.32
Seja como for, aqui se defende o ponto de vista de que o julgamento
Lüth, verdadeiro leading case sobre a exigibilidade de observância dos direitos
fundamentais nas relações privadas, é paradigmático e ponto de partida obri-
gatório para o estudo dos direitos fundamentais e de sua incidência no âmago
das relações entre particulares. Outro aspecto relevante a ser observado no
que tange à incidência dos direitos fundamentais no trato entre os particula-
res é da questão da dupla dimensão dos direitos fundamentais. Ingo Sarlet,33
por exemplo, de longa data reconhece a eficácia direta dos direitos fundamen-
tais na esfera privada relativamente ao direito brasileiro, sendo semelhante
o posi­cionamento defendido por Marinoni ao expressar: “ao menos no direito

31
CANARIS. Direitos fundamentais e direito privado.
32
Op. cit., p. 131-132.
33
SARLET. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed., p. 176 et seq.; p. 392 et seq.

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136 Carlos Alberto Molinaro, Mariângela Guerreiro Milhoranza

brasileiro, é importante aceitar a incidência direta do direito fundamental sobre


as relações privadas independentemente da atuação judicial. É inquestionável,
por exemplo, que os direitos fundamentais têm grande importância na regu-
lação das relações entre o empregador e o empregado, o que somente pode
significar uma eficácia imediata e direta dos direitos fundamentais sobre os
privados”.34 Já Gilmar Mendes,35 por seu turno, nutre maior simpatia pela tese
da eficácia indireta e mediata.
Nesta questão da dupla dimensão dos direitos fundamentais, há a neces-
sidade de ponderação, caso a caso, para a aplicabilidade dos direitos fundamen-
tais nas relações entre particulares, porquanto em algumas situações haverá a
referida aplicação de modo direto e em outras de modo indireto, e em outros
casos, talvez, nem haja tal aplicabilidade. Há que se analisar, portanto, o caso
concreto em questão. Para reforçar esta linha argumentativa, recordamos as
ideias do constitucionalista Gustavo Zagrebelsky, para quem o direito constitu-
cional há de ser flexível e dúctil, eis que — ante a variedade de situações fáticas
e de pluralismos de universos culturais, éticos, religiosos e políticos — não se
pode cogitar da existência de valores e princípios de caráter absoluto.36
Seja como for, feitas essas breves observações acerca de uma visão de
síntese dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana, passa-se
ao exame da garantia constitucional do acesso à justiça.

2 Do acesso à justiça
É de José Roberto dos Santos Bedaque a afirmação que o acesso à justiça
é, em verdade, acesso à ordem jurídica justa onde é proporcionado a todos,
sem qualquer discriminação ou restrição, o direito de pleitear a tutela jurisdi-
cional do Estado.37 Ademais, conforme acentua a magistrada Cíntia Teresinha
Burhalde Mua, “ontológica e finalisticamente, o acesso universal à justiça visa à
produção de resultados individual e socialmente justos”.38 Aí, importante ter-se

34
MARINONI. A jurisdição no Estado contemporâneo. In: MARINONI. Estudos de direito processual
civil: homenagem ao Professor Egas Dirceu Moniz de Aragão, p. 43.
35
MENDES. Direitos fundamentais: eficácia das garantias constitucionais nas relações privadas:
análise da jurisprudência da Corte Constitucional Alemã. In: MENDES. Direitos fundamentais e
controle de constitucionalidade.
36
ZAGREBELSKY. El derecho dúctil: ley, derechos, justicia, p. 14 et seq.
37
BEDAQUE. Garantia da amplitude de produção probatória. In: TUCCI. Garantias constitucionais
do processo civil, p. 158.
38
MUA. Acesso material à jurisdição: da legitimidade ministerial na defesa dos individuais homo-
gêneos, f. 12.

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Processo e direitos fundamentais – Brevíssimos apontamentos 137
presente a noção de jurisdição tão intimamente vinculada àquela de Poder
Judiciário e, a esse propósito, esclarece Araken de Assis: “ao proibir os cidadãos
de resolverem por si suas contendas, o Estado avocou o poder de resolver os
conflitos de interesses, inerentes à vida social, e, correlatamente, adquiriu o
dever de prestar certo serviço público, que é a jurisdição. Aos interessados
nessa atividade, o Estado reconhece o direito de provocá-la, preventiva ou
repres­sivamente (art. 5º, XXXV, da CF/88)”.39 Mas, qual o significado da jurisdi-
ção? O que é, em última análise, jurisdição?40
O brocado jurisdição vem do latim jurisdictio e revela a ação de admi-
nistrar justiça. Juiz é quem diz o direito, na condição de órgão do Estado. Ao
dizer o direito, o juiz não emite um parecer ou uma opinião, mas declara com
a qualidade de imperativo. A jurisdição apresenta-se, assim, como insepa-
rável do imperium.41 Trata-se, em apertada síntese, de um poder do Estado.
Adolf Schönke, que foi professor da Universidade de Freiburg, examinando o
tema pronunciava: “jurisdição é o direito e o dever ao exercício da função de
justiça, e jurisdição civil significa em consequência o direito e o dever de jul-
gar os assuntos cíveis”.42 De outro modo, mas alinhado, Araken de Assis vai
entender que o “poder do Estado destinado a eliminar o conflito se chama
jurisdição”.43 Independentemente das aproximações doutrinárias (acerca do
conceito de jurisdição), o importante é novamente ressaltar que é da garantia
de acesso à justiça prevista no inciso XXXV do art. 5º da Constituição Federal que
advém o direito fundamental à efetividade processual, pois segundo Cândido
Rangel Dinamarco tal provisão constitucional revela “princípio-síntese e obje-
tivo final”44 do acesso à justiça. O direito à prestação jurisdicional efetiva é
decor­rência da própria existência dos direitos e é garantia fundamental para a
própria efetividade dos direitos. O direito à prestação jurisdicional efetiva é o

39
ASSIS. Garantia de acesso à justiça: benefício da gratuidade. In: TUCCI. Garantias constitucionais
do processo civil, p. 9.
40
Por não ser o objeto do presente estudo, não exploraremos as teorias conceituais sobre jurisdi-
ção. Para tanto, remete-se o leitor a dois ensaios diferentes. No primeiro ensaio, “Comentários
aos artigos 1º e 2º do Código de Processo Civil”, explanaram-se todas as teorias conceituais de
jurisdição bem como o ponto de vista de seus principais esponsais (MILHORANZA. Comen-
tários aos artigos 1º e 2º do Código de Processo Civil. Disponível em: <www.tex.pro.br>). No
segundo ensaio, de igual forma, Carlos Alberto Molinaro e Mariângela Guerreiro Milhoranza
abordaram o tema com menor profundidade (MILHORANZA; MOLINARO. Alcance político da
Jurisdição no âmbito do Direito à Saúde. In: ASSIS. Aspectos polêmicos e atuais dos limites da
jurisdição e do direito à saúde, p. 215-218).
41
PONTES DE MIRANDA. Comentários ao Código de Processo Civil, t. I, p. 104.
42
SCHÖNKE. Derecho procesal civil, p. 49.
43
ASSIS. Cumulação de ações, p. 52.
44
DINAMARCO. Instituições de direito processual civil, v. 1, p. 134, 267.

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138 Carlos Alberto Molinaro, Mariângela Guerreiro Milhoranza

mais importante dos direitos, exatamente por constituir o direito a fazer valer
os próprios direitos.45

3 Do acesso à justiça e da efetividade da tutela jurisdicional


como direitos fundamentais
No pretérito, o direito era tido como uma manifestação das leis de Deus,
apenas conhecidas e reveladas pelos sacerdotes. Não cabia ao Estado a pro-
dução do direito; não cabia ao Estado editar normas gerais e impositivas
com caráter cogente, capazes de regular a conduta humana. Nesse estágio
da huma­nidade, a atividade desenvolvida pelos pontífices era meramente
organizacional e não jurisdicional. Logo, uma autêntica jurisdição apareceu,
somente, a partir do surgimento de um Estado mais independente, mais des-
vinculado dos valores de cunho religioso e, nitidamente, mais acentuado nas
regras de controle social. O Estado, ao vedar a chamada “justiça pelas próprias
mãos”, ou autotutela, assumiu o monopólio da jurisdição e, assim, obrigou-se
a solucionar os conflitos de interesses que inevitavelmente nascem da convi-
vência humana. Cabe ao Estado e, mais especificamente, ao Poder Judiciário,
o monopólio da jurisdição, afirmando Darci Ribeiro que “es el Estado quien
admi­nistra la justicia e detenta el monopolio de la jurisdicción, o como prefiere
denominar BORDIEU el ‘monopolio de la violencia simbólica legitima’, razón
por la cual los mandatos utilizados por él para dirimir los conflictos se realizan
a través de la jurisdicción. El monopolio de la jurisdicción es el resultado natu-
ral de la formación del Estado que trae consigo consecuencias tanto para los
individuos como para el propio Estado”.46 Portanto, nesta ambiência a garan-
tia constitucional de acesso à justiça insere-se no rol dos direitos fundamen-
tais do cidadão, servindo, inclusive, para proteção contra abusos do próprio
Estado. A garantia constitucional de acesso à justiça está consagrada no inciso
XXXV do art. 5º da Constituição Federal, que dispõe que “a lei não excluirá da
apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Nessa senda, asse-
vera com precisão José Roberto dos Santos Bedaque que “o direito de provocar
a atividade jurisdicional do Estado e retirá-lo da inércia está assegurado, em
sede constitucional, a todas as pessoas. Ao dispor que ‘a lei não excluirá da
apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito’ (CF, art. 5º, XXXV),

45
Nesse passo, afirma Marinoni que “o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva é dirigido
contra o Poder Público, mas repercute sobre a esfera jurídica das partes” (MARINONI. O direito à
tutela jurisdicional efetiva na perspectiva da teoria dos direitos fundamentais. Jus Navigandi).
46
RIBEIRO. La pretensión procesal y la tutela judicial efectiva: hacia una teoría procesal del derecho,
p. 75-76.

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Processo e direitos fundamentais – Brevíssimos apontamentos 139
o legislador garante, de forma ampla e genérica, acesso ao meio estatal de
solução de controvérsias, pelo qual é possível obter-se a tutela jurisdicional [...] a
garantia constitucional de ação representa para as pessoas, em última análise,
garantia ao devido processo constitucional, ao instrumento estatal de solução
de conflitos. Garantia implica proteção, ou seja, predisposição de meios para
assegurá-la em concreto”.47 Neste sentido, a busca da efetividade do processo
advém do direito constitucional, da garantia constitucional de acesso à ade-
quada tutela jurisdicional. A efetividade processual como direito fundamen-
tal passa, inevitavelmente, pela busca da tutela jurisdicional adequada, pois
como bem foi observado por Robert Alexy, “una comparación de los derechos
a procedimiento en sentido estricto con los derechos a competencias de dere-
cho privado muestra claramente los diferentes objetivos que se persiguen en
el ámbito de la organización y el procedimiento. Mientras que los derechos a
competencias de derecho privado aseguran, sobre todo, la posibilidad de que
puedan realizarse determinadas acciones iusfundamentalmente garantizadas,
los derechos a procedimiento en sentido estricto sirven en primer lugar, para
la protección de posiciones jurídicas existentes frente al Estado y frente a ter-
ceros. Por ello, es posible tratar a estos últimos también dentro del marco de
los derechos a protección”.48 Assim sendo, percebe-se que a efetivação almejada
pela parte decorre tanto do “direito constitucional de ação” como do “devido
processo legal”, cabendo ao Poder Judiciário efetivar o pedido de prestação
jurisdicional requerido pela parte de forma regular e concreta. Portanto, cabe à
parte dar roupagem técnica quando da feitura do pedido. Aliás, sobre o direito
de ação, consoante bem salienta Nelson Nery Junior: “o direito de ação é um
direito cívico e abstrato, vale dizer, é um direito subjetivo à sentença tout court,
seja essa de acolhimento ou de rejeição da pretensão, desde que preenchidas
as condições da ação”.49 Portanto, a efetividade do processo não é somente um
direito constitucional da parte que procura a efetiva prestação jurisdicional,
como também é um direito subjetivo da mesma na busca pela justiça.

Considerações finais
Jurisdição, no seu núcleo duro, é o poder do Estado de dizer o direito, o
direito objetivo, o direito que é, ademais de concretizar o ordenamento jurí­dico
objetivo. Todas as funções do Estado (executiva, legislativa e judicial) implicam
poderes jurisdicionais (em sentido lato), só a função judicial tem jurisdição

47
BEDAQUE. Garantia da amplitude de produção probatória. In: TUCCI. Garantias constitucionais
do processo civil, p. 151-152.
48
ALEXY. Teoria de los derechos fundamentales, p. 474.
49
NERY JUNIOR. Princípios do processo civil na Constituição Federal, p. 91.

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140 Carlos Alberto Molinaro, Mariângela Guerreiro Milhoranza

(sentido estrito). A jurisdição, nesse sentido, é exercida pelos juízes e tribunais,


segundo a formatação que a Constituição de 1988 estabelece (art. 2º, c/c
arts. 92-126), ao exercê-la prestam a tutela jurisdicional, tendo como instrumento
lógico-formal o processo.50 O processo (civil, penal ou de outro tipo) ademais de
direito formal é técnica jurídica para que se realize o direito material (iuria novit
curia).51 Realizar o direito material implica no reconhecimento de direitos, deve-
res, pretensões, obrigações, ações e exceções, pois, como advertia o maior dos
juristas brasileiros, Pontes de Miranda, o “processo não é mais do que o corretivo
da imperfeita realização automática do direito objetivo”.52 Podemos concebê-lo,
ainda, como fonte de direito, já que dele resulta decisão vinculante, pois o direito
está não só constituído pela lei (em sentido estrito), mas por toda uma com-
plexa rede juriferante (normativos revelados no curso de existência das relações
inter-humanas cronotopicamente identificadas — pluralismo jurídico), inclusive
pelas atividades dos juízes e tribunais.53 Ademais, a realização tópica do processo
se dá no percurso de uma relação jurídica. Uma relação jurídica processual com
especificados procedimentos. Uma relação angular que se estabelece entre um
autor (singular ou plural) e o Estado, completando-se entre o Estado e o réu (sin-
gular ou plural) mediante ato de comunicação processual pertinente. A relação
processual é relação jurídica de direito público, subjacente a uma relação jurídica
de direito material (res in iudicium deducta). Nela produzindo-se os atos proces-
suais cujo nexo lógico-jurídico é sempre unitário, imediatamente vinculado ao
cognoscere do julgador, por isso mesmo, não é indispensável à pretensão à
tutela jurídica54 a existência de atos lesivos ao direito das partes; ademais, frise-se

50
Certamente, através da jurisdição é que se solucionam os conflitos (desde a proibição da
autotutela), mas não só através dela, numa perspectiva pluralista do direito, contudo, data
venia, não concordamos com a afirmação do Prof. Luíz Guilherme Marinoni, quando afirma
que “o Estado contemporâneo, em uma perspectiva sociológica, não tem o monopólio
da distribuição da justiça” (cf. MARINONI. Novas linhas do processo civil, p. 76). O Estado,
especialmente numa perspectiva sociológica, tem o dever da distribuição da justiça, tem,
sim, o monopólio, pois ele, pela jurisdição, diz o direito que é. O direito que está invisível nos
textos normativos, que se visibiliza quando confrontado com uma pretensão resistida. As
demais formas de conciliação, inclusive as das máfias, são resultados de outros processos
de adaptação e corrigenda das relações inter-humanas cronotopicamente localizadas, sem,
no entanto, adquirirem compulsoriedade e incondicionalidade de incidência, caso único em
que se as adquirissem de tornar-se-iam jurídicas.
51
O Tribunal (curia) conhece as leis — ou os direitos — (iura é plural de ius).
52
PONTES DE MIRANDA. Comentários ao Código de Processo Civil, t. I, p. 100.
53
Importa dizer que, ainda que imediatamente a função dos juízes e dos tribunais é dizer o direito
objetivo, mediatamente se está concretizando as pretensões à tutela jurídica das partes, negan-
do-se ou atribuindo-se a uma delas, total ou parcialmente o direito.
54
A propósito levemos em consideração a distinção entre pretensões no âmbito do direito proces-
sual como, com precisão, anota Pontes de Miranda: (i) pretensão à tutela jurídica, que é conceito

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Processo e direitos fundamentais – Brevíssimos apontamentos 141
que não é intrínseca ao exercício da pretensão à tutela jurídica a pretensão à
sentença favorável.55
Seguindo a perspectiva sociológica de Pontes de Miranda, entendemos
o direito como um processo de adaptação e corrigenda social, cujos sistemas
jurídicos incorporam as normas do direito (costumes, narrações e textos havi­
dos no tráfico das relações inter-humanas num cronotopo social dado) cuja
incidência é independente da adesão dos sujeitos, pois é a incondicionalidade
da incidência a sua característica basilar; os normativos de outra ordem (reli­
gião, moral, economia, costumes, etc.) que obtêm essa incondicionalidade
se fazem jurídicos.56 Nesse processo de adaptação e corrigenda das relações
inter-­humanas, desenvolvido num espaço e tempo identificados, construí-
mos o conhe­cimento. Lefebvre já expressava que o conhecimento é fato: não
há como fugir de sua existência, ainda que possa ser questionado.57 O ato de
conhecer se desenvolve num espaço social, perdurando num tempo social.
Assim, toda a história do conhecimento é uma história de superação, é um
processo de desedificação. De desedificação e retificação de conceitos, de
metodologias, é o espaço da metamorfose do pensar e do fazer. O direito,
assim como o “conhecimento” é também fato, e aqui não estamos perfilando
o realismo escandinavo ou americano, mas afirmando, simplesmente, que o
direito é fato do cultural, e como fato do cultural é reflexo, estando projetado
na consciência humana que, como dizia Karel Kosik, é também reflexo e, ao
mesmo tempo, projeção, registra e constrói, toma anotações e planeja, reflete
e antecipa, é, ao mesmo tempo, receptiva e ativa.58 Como fato cultural, o direito
objetiva a justiça, por isso, é oportuno lembrar que Recaséns Siches afirmava
que o direito é sempre um ensaio de ser direito justo,59 pois a consciência (aí
informada pelo cultural) busca a justiça axiologicamente comprometida com
o social, já que o direito sempre se refere ao eu socializado, remanescendo o
eu individual como sujeito do mundo moral. Daí a utilidade da advertência de
Pontes de Miranda, que afirmava: “o problema jurídico é o problema humano
por excelência: do direito dependem todos; sem o direito, nenhum problema

pré-processual, pré-excluída pela falta de interesse de agir, eliminável pela desaparição desse
interesse; (ii) pretensão processual (= pretensão a que se entregue a prestação prometida); e (iii)
pretensão objeto do pedido (pretensão de direito material, merita causae, res in iudicium deducta)
(Ibidem, p. 58).
55
Cf. Ibidem, p. XXXIV et seq.
56
MOLINARO. Racionalidade ecológica e estado socioambiental e democrático de direito.
57
Cf. LEFEBVRE. Lógica formal: lógica dialética, p. 49.
58
Cf. KOSIK. Dialética do concreto, p. 26.
59
Citação que se colhe em MACHADO NETO. Introdução à ciência do direito, p. 82.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 127-145, jul./set. 2012
142 Carlos Alberto Molinaro, Mariângela Guerreiro Milhoranza

se resolve de modo duradouro e eficaz”.60 O aforismo latino ubi societas, ibi ius
bem revela o lugar do direito. É no espaço social que o direito tem lugar, como
fenômeno jurídico que é, só existe na tessitura do social, tramado na história
que se desenvolve neste campo, comprometido com o tempo social.
Todos os direitos, por óbvio, são fundamentais. Onde o adjetivo fun-
damental vai significar o que é necessário e primacial, como são os direitos.61
Mas, alguns direitos são mais fundamentais que outros? Ou, por outra, o uso
do adjetivo qualifica um tipo especial de direito ou direitos? Há, neste sentido,
toda uma história construída metodicamente entre emancipação e regulação
das relações inter-humanas desenvolvidas em um cronotopos social definido.
Uma história por vezes perversa, contudo, com alguns matizes sublimes, como
de resto toda a produção cultural humana.
Todo direito — concretamente considerado — é o resultado de um con-
junto de forças políticas que, em dado momento, se consolidou na conforma-
ção de uma disposição jurídica bem identificada numa ordem constitucional
qualquer, irradiando uma atribuição ou posição para um sujeito (singular ou
plural), de uma faculdade, poder ou permissão. Neste diapasão, alguns direi-
tos foram construídos através de processos de reação cultural havidos nas
lutas para a simetrização das relações sociais, e insertos na concertação ori-
ginal do Estado (contrato social). Entre eles encontramos os denominados
direitos naturais, que a seguir vão conformar razões para os direitos humanos,
estes, na realidade, exigências morais justificatórias de posições jurídicas dos
concertantes, assentadas na expressiva afirmação de dignidade emprestada
ao humano.
Todo o ordenamento jurídico brasileiro está iluminado pelo valor “digni-
dade” emprestada ao humano (art. 1º, III, da CF/1988). Os direitos fundamen-
tais, individuais e sociais alcançam proteção da política jurisdicional última

PONTES DE MIRANDA. Sistema de ciência positiva do direito, t. I, p. XXX.


60

Devemos afirmar que o valor jurídico atribuído à justiça não emerge, diretamente, da cons-
61

ciência, nem também do sentimento moral. Mas é constituído pela pretensão de “reconhe-
cer” e tornar efetiva a dignidade da pessoa no cenário social com o “acontecimento” (isto é,
também, estabelecimento) da lei (em sentido amplíssimo) em um sistema de titularidades
adequado a esse fim. É o perímetro da ação permissível e operável da liberdade de cada um
como afirmação da mencionada “dignidade”; a variável está em função da qual se distingue
uma ordem jurídica não despótica e genuína, de uma ordem jurídica despótica, não genuína,
por elaborado que esteja o aparato formal capaz de “encobrir” a “relação de dominação” que
possa caracterizar a esta última: econômica, informativa, violenta, ideológica, etc. Revela essa
proposição que todo direito é fundamental, pois “sua identidade não depende da existência
de garantias jurídicas” robustecidas, geralmente, naquilo que é formulado pelas normas bási-
cas, mas sim de sua vinculação com a “dignidade da pessoa humana” e suas “ações possíveis”
no cenário social.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 127-145, jul./set. 2012
Processo e direitos fundamentais – Brevíssimos apontamentos 143
através do Supremo Tribunal Federal, contudo, sem exclusividade, pois a
formatação vigente abriga casos em abstrato e casos em concreto, irradian-
do-se uma jurisdição constitucional, por vezes concentrada, por vezes difusa,
frente aos Tribunais e demais magistrados de primeiro grau. Ao postular-se por
uma efetiva política jurisdicional não se está postulando pela sobreposição de
poder-função, antes se proclama a supremacia da Constituição. Não estamos
propugnando a eliminação do princípio da legalidade, antes o ampliando, pois
uma práxis constitucional comprometida e adequada à concretização dos
direitos fundamentais sociais exige o cumprimento do direito objetivo vigente,
com a efetiva constitucionalidade de todos os atos estatais. De outro modo,
o juiz não é um “ciborg”, automatizado por princípios e regras no diapasão do
“tudo ou nada”, ele é um ser humano que responde à realidade de seu tempo
e é o único que ao interpretar a Constituição o faz com o poder de vincular
compulsoriamente, para isso todos contamos com o processo e mais com a
garantia constitucional do direito fundamental ao devido processo legal.

Abstract: This essay intends to align a few considerations concerning


the interdependence between process and fundamental rights, in the
context of a well identified Rule of Law.

Key words: Fundamental rights. Human dignity. Process.

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144 Carlos Alberto Molinaro, Mariângela Guerreiro Milhoranza

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Normas Técnicas (ABNT):

MOLINARO, Carlos Alberto; MILHORANZA, Mariângela Guerreiro. Processo e direitos fundamentais:


brevíssimos apontamentos. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 20,
n. 79, p. 127-145, jul./set. 2012.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 127-145, jul./set. 2012
O princípio do contraditório e a
cooperação no processo
Leonardo Carneiro da Cunha
Mestre em Direito pela UFPE. Doutor em Direito
pela PUC/SP. Pós-Doutorado pela Universidade de
Lisboa. Professor Adjunto da Faculdade de Direito
do Recife (UFPE), nos cursos de graduação, mestrado
e doutorado. Professor do curso de mestrado da
Universidade Católica de Pernambuco. Membro do
Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e do
Instituto Iberoamericano de Direito Processual – IIDP.
Procurador do Estado de Pernambuco e advogado.

Resumo: O presente texto trata do contraditório como diálogo entre partes


e juiz e como influência daquelas no convencimento deste, não somente
no que diz respeito aos fatos, mas também no que concerne à matéria de
direito. A ideia do contraditório como influência ganha relevo no âmbito
do processo cooperativo, tido como o mais adequado ao Estado Demo-
crático de Direito, sendo relevante acentuar a necessidade de observância
dos deveres da cooperação, tais como o de esclarecimento, de consulta, de
prevenção e de auxílio.

Palavras-chave: Princípio do contraditório. Estado Democrático de Direito.


Processo cooperativo. Juiz.

Nos termos do art. 5º, LIV, da Constituição Federal, “ninguém será privado
da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. É necessária, portanto,
obediência ao devido processo legal, daí se extraindo o princípio do contraditório,
previsto no inciso LV do art. 5º da Constituição Federal, segundo o qual ninguém
poderá ser atingido por uma decisão judicial sem ter a possibilidade de influir na
sua formação em igualdade de condições com a parte contrária.
Tais disposições constitucionais, em outras palavras, garantem que não
haverá perdimento de bens nem da liberdade sem que haja decisão judicial
proferida num procedimento adequado, com obediência às regras processuais;
enfim, somente haverá tais perdas se obedecido o devido processo legal e res-
peitados o contraditório e a ampla defesa.
O contraditório, em sua versão tradicional, era mais restritivo, pois se limi-
tava a impor a cientificação das partes acerca dos atos processuais e a obediên-
cia à bilateralidade de audiência.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 147-159, jul./set. 2012
148 Leonardo Carneiro da Cunha

Enfim, o princípio do contraditório deveria compreender: (a) o direito


de ser ouvido; (b) o direito de acompanhar os atos processuais; (c) o direito de
produzir provas; (d) o direito de ser informado regularmente dos atos pratica-
dos no processo; (e) o direito à motivação das decisões; (f ) o direito de impug-
nar as decisões. Para que tudo se realizasse, seria preciso a ciência das partes.
A noção inicial e mínima do contraditório relaciona-se, como se percebe,
com a tempestiva ciência das partes sobre os atos processuais. Segundo assi-
nala Federica Dotti, com apoio nas lições de Luigi Paolo Comoglio, a efetividade
do direito de defesa pressupõe a concreta e tempestiva ciência do tempo, da
forma e do modo que o ordenamento confere a determinados sujeitos de par-
ticiparem ativamente do processo. Quer isto dizer que as formas de comunica-
ção e notificação, previstas na legislação processual, devem constantemente
garantir as melhores condições de ciência dos atos a seus destinatários, não se
admitindo a pura e simples presunção de eventual cientificação.1
O contraditório, atualmente, tem uma dimensão maior, passando a osten-
tar uma noção mais ampla de contraditoriedade. Tal noção deve ser entendida
como garantia de efetiva participação das partes no desenvolvimento de todo
o litígio, mediante a possibilidade de influírem, em igualdade de condições, no
convencimento do magistrado, contribuindo na descrição dos fatos, na produ-
ção de provas e no debate das questões de direito.2
O contraditório não é necessário apenas para a prolação da sentença
de mérito. Ele deve ser observado ao longo de todo o procedimento, relati-
vamente a todas as questões, sejam de rito ou de mérito.3 Ao longo de todo o
procedimento há questões a serem enfrentadas. Para examinar e decidir sobre
cada uma delas, deve o juiz instaurar o contraditório prévio.

1
DOTTI, Federica. Diritti della difesa e contraddittorio: garanzia di un giusto processo?: spunti
per una riflessione comparata del processo canonico e statale. Roma: Pontificia Università
Gregoriana, 2005. p. 173.
2
Na fase mais recente da ciência processual, há uma diversa concepção nos confrontos entre o
princípio do contraditório e o processo. O processo não é outra coisa senão o juízo e a forma-
ção do juízo. Tornou-se interesse do jurista investigar os mecanismos de formação do juízo e,
antes de tudo, o contraditório e a colaboração das partes na busca da verdade. O contraditó-
rio, a partir daí, passou a ostentar importância central no estudo do processo, sendo erigido
à garantia constitucional. A defesa em juízo é, em primeiro lugar, garantia do contraditório e
a igualdade de armas assume o valor de condição de legitimidade constitucional da norma
processual. Com isso, não se postula a absoluta identidade entre os poderes das partes, mas
se objetiva evitar injustificáveis diferenças de tratamento (PICARDI, Nicola. Il principio del
contraddittorio. Rivista di Diritto Processuale, Padova, n. 3, p. 678, 1998).
3
FAZZALARI, Elio. La sentenza in rapporto alla struttura e all’oggetto del processo. Rivista
Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Milano, n. 2, p. 431, giugno 1986.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 147-159, jul./set. 2012
O princípio do contraditório e a cooperação no processo 149
Às partes deve-se conferir oportunidade de, em igualdade de condições,
participar do convencimento do juiz. O contraditório guarda estreita relação
com o princípio da isonomia, exatamente porque as partes devem dispor da
possibilidade de expor suas versões, apresentar suas defesas e participar,
enfim, do processo em idênticas oportunidades.4
Significa que a principal finalidade do contraditório deixou de ser a apre-
sentação de defesa pelo réu, para passar a ser a influência no desenvolvimento
e no resultado do processo,5 razão pela qual constitui direito não só do réu,
mas também do autor. O contraditório constitui expressão da participação:
todo poder, para ser legítimo, deve permitir a participação de quem poderá
ser atingido com seu exercício.
O juiz também é sujeito do contraditório. Este não concerne apenas às
partes, mas também ao juiz. O contraditório não se resume à defesa do réu,
alcançando todos os sujeitos do processo. O direito à ampla defesa do réu inte­
gra o contraditório em seu aspecto substancial. Em outras palavras, o direito
de defesa é conteúdo do contraditório, sendo apenas um de seus aspectos.6
Para que haja participação e exercício do direito de defesa é preciso que
se efetive a informação prévia e a possibilidade de reação.
Na verdade, o princípio do contraditório constitui uma necessidade ine-
rente ao procedimento, ostentando a natureza de direito inviolável em todos
os seus estágios e graus como condição de paridade entre as partes.7 Um pro-
cedimento em que não se assegure o contraditório não é um procedimento
jurisdicional; poderá ser uma sequência de atos, mas não um procedimento
jurisdicional, nem mesmo um processo.8 Com efeito, não seria um processo
civil aquele procedimento em que se conceda audiência a apenas uma das

4
LLOBREGAT, José Garberí. Constitución y derecho procesal: los fundamentos constitucionales
del derecho procesal. Navarra: Thomson Reuters Aranzadi, 2009. p. 307-309.
5
TROCKER, Nicolò. Processo civile e costituzione: problemi di diritto tedesco e italiano. Milano: A.
Giuffrè, 1974. p. 369-371.
6
“É possível dizer que o contraditório exterioriza a defesa, ou que a defesa é o fundamento do
contraditório. Porém, tais conceitos, ainda que corretos, são incompletos, uma vez que o direito
de ação também necessita do contraditório. A confusão certamente deriva da circunstância de
que a defesa, para ser exercida em sua fase inicial, isto é, diante da petição inicial apresentada
pelo autor, requer a efetivação do contraditório, que tecnicamente pressupõe informação e pos-
sibilidade de reação (na generalidade dos casos). Ou seja, relaciona-se defesa com contraditório
porque o réu necessita ser informado e ter a sua disposição os meios técnicos (prazo adequado,
advogado) capazes de lhe permitir a reação” (MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 313-314).
7
VERDE, Giovanni. Profili del processo civile. 6. ed. Napoli: Jovene, 2002. v. 1, p. 106.
8
NICOLETTI, Carlo Alberto. Profili istituzionali del processo civile. 2. ed. Milano: A. Giuffrè, 2003. p. 7.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 147-159, jul./set. 2012
150 Leonardo Carneiro da Cunha

partes, se bem que seja suficiente dar a todas elas a simples oportunidade do
contraditório, não sendo necessário que haja efetiva manifestação.9
A obediência ao princípio do contraditório constitui garantia da impar-
cialidade do juiz. O magistrado que não confere audiência a ambas as partes
e, de resto, não cumpre o primado do contraditório já terá, somente por isso,
cometido uma parcialidade por não haver investigado senão a metade do que
poderia verificar.10
Em virtude da atual dimensão conferida ao contraditório, o juiz deve sub-
meter a debate entre as partes as questões jurídicas, aí incluídas as matérias
que ele há de apreciar de ofício.11 Realmente, o exercício pleno do contraditório
não se limita à garantia de alegação oportuna e eficaz a respeito de fatos, impli-
cando a possibilidade de ser ouvido também em matéria jurídica.12
Assim, por exemplo, se ao juiz a parte aparenta ser ilegítima ou a norma
invocada parece-lhe inconstitucional, mas não houve qualquer discussão ou
debate sobre o assunto, cumpre-lhe, antes de se pronunciar a respeito, determi-
nar a intimação das partes para que se manifestem sobre tal matéria. Ainda que
lhe caiba examinar o assunto de ofício, impende conferir às partes a oportunidade de

9
SCHÖNKE, Adolfo. Derecho procesal civil. Barcelona: Bosch, 1950. §10, p. 46.
10
ALONSO, Pedro Aragoneses. Proceso y derecho procesal: introducción. 2. ed. Madrid: Editoriales
de Derecho Reunidas, 1997. p. 130.
11
Daí por que o n. 3 do art. 3º do CPC português assim estabelece: “O juiz deve observar e fazer
cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso
de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conheci-
mento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
Observa-se que o dispositivo dispensa o contraditório em casos de “manifesta desneces-
sidade”, sem esclarecer que casos seriam esses. Segundo António Santos Abrantes Geraldes,
são limitadas as situações em que se permite ao juiz decidir qualquer questão sem ouvir
as partes: a) para indeferir qualquer nulidade invocada por uma das partes; b) em matéria
de procedimentos cautelares, quando necessário prevenir a violação do direito ou garantir
o resul­tado útil da demanda, destacando-se, ainda, uma específica hipótese de decretação
de falência sem respeito ao contraditório prévio (Temas da reforma do processo civil. 2. ed.
Coimbra: Almedina, 2006. p. 82). Para José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, o con-
traditório prévio pode ser dispensado em procedimentos cautelares, na execução (em que a
penhora é, em certos casos, realizada sem audiência prévia do executado), não devendo ter
lugar o convite para discutir uma questão de direito, “quando as partes, embora não a tenham
invocado expressamente nem referido o preceito legal aplicável, implicitamente a tiveram em
conta sem sombra de dúvida, designadamente por ter sido apresentada uma versão fáctica
não contrariada que manifestamente não consentia outra qualificação” (Código de Processo
Civil anotado. 2. ed. Coimbra: Coimbra Ed., 2008. v. 1, n. 4, p. 7; n. 9, p. 10).
12
Conforme esclarece Armindo Ribeiro Mendes, o Tribunal Constitucional português, a propósito
do princípio do contraditório, impôs a prévia audição dos interessados em caso de eventuali-
dade de condenação de uma parte como litigante de má-fé, procedendo uma interpretação
conforme à constituição dos arts. 456º, nºs 1 e 2, e 458º do Código de Processo Civil (Constitui-
ção e processo civil. In: ESTUDOS em memória do Conselheiro Luís Nunes de Almeida. Coimbra:
Coimbra Ed., 2007. p. 553).

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 147-159, jul./set. 2012
O princípio do contraditório e a cooperação no processo 151
colaborar com a formação do seu convencimento, influenciando, desse modo,
na decisão a ser tomada.13
Essa participação confere maior legitimidade à decisão, evitando, inclu-
sive, a existência de surpresa: as partes não serão surpreendidas com decisão
que trate de matéria a respeito da qual não houve prévio debate, nem sobre a
qual deixaram dar sua contribuição.14
É preciso observar o contraditório, a fim de evitar um “julgamento sur-
presa”. E, para evitar “decisões surpresa”, toda questão submetida a julgamento
deve passar antes pelo contraditório. Quer isso dizer que o juiz tem o dever de pro-
vocar, preventivamente, o contraditório das partes, ainda que se trate de uma
questão que possa ser conhecida de ofício, ou de uma presunção simples. Se
a questão não for submetida ao contraditório prévio, as partes serão surpreen­
didas com decisão que terá fundamento numa questão que não foi objeto de
debate prévio, não lhes tendo sido dada oportunidade de participar do con-
vencimento do juiz. A decisão, nesse caso, não será válida, faltando-lhe legitimi-
dade, haja vista a ausência de participação dos litigantes na sua elaboração.
Daí se impor uma releitura à aplicação da máxima iura novit curia, segundo
a qual constituiria tarefa privativa do juiz a aplicação do direito independente-
mente da sua arguição pelas partes, cabendo a estas últimas apenas a alegação
dos fatos. Vale dizer que a máxima iura novit curia há de ser interpretada con-
forme o princípio constitucional do contraditório, concretizando a finalidade de
evitar surpresas de frustrar as expectativas legítimas causadas às partes.
De acordo com o Supremo Tribunal Federal brasileiro, “Assegurada pelo
constituinte nacional, a pretensão à tutela jurídica envolve não só o direito de
manifestação e o direito de informação sobre o objeto do processo, mas tam-
bém o direito de ver seus argumentos contemplados pelo órgão julgador”.15

13
Os antigos brocardos da mihi factum, dabo tibi ius e iura novit curia expressam, tradicionalmente,
que às partes cabe apenas apresentar ao juízo os fatos, cabendo a este examinar o direito
aplicável ao caso. Embora caiba ao juiz analisar e aplicar o direito à espécie, impõe-se-lhe
colher, sempre, a manifestação prévia das partes, a quem se deve permitir contribuir com a
formação do seu convencimento (TROCKER, op. cit., p. 640-647).
14
Segundo Luigi Montesano, a garantia constitucional do contraditório certamente não elimina
nem atenua o princípio fundamental iura novit curia, isto é, o poder-dever oficioso do juiz de
individuar a norma aplicável em causa, não ficando vinculado à impostação da causa “em
direito” por obra das partes. A garantia em debate incide, todavia, fortemente sobre o modo
e o tempo do exercício daquele poder-dever e deveria conduzir, espera-se, a jurisprudência a
mudar a linha de total liberdade de aplicação das normas jurídicas totalmente estranhas ao
debate entre as partes (La garantia costituzionale del contraddittorio e i giudizi civili di “terza
via”. Rivista di Diritto Processuale, Padova, n. 4, p. 931, 2000).
15
Acórdão unânime da 2ª Turma do STF. RMS nº 24.536/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 02.12.2003,
DJ, p. 33, 05 mar. 2004.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 147-159, jul./set. 2012
152 Leonardo Carneiro da Cunha

Além do mais, o princípio do contraditório tem um conteúdo mínimo,


sendo necessária a intimação para manifestação sobre questão jurídica apre-
sentada no curso do procedimento, desaguando na indispensável apreciação
de todas as razões de defesa, ainda que não haja lei em tal sentido.16
O processo, para ser efetivo, deve ser estruturado de forma dialética,
atendendo ao princípio do contraditório, em virtude do qual o processo há de
ser participativo. E nem poderia ser diferente, porquanto a participação, pró-
pria do contraditório, é inerente ao regime democrático. Na lição de Cândido
Rangel Dinamarco:

A participação é que legitima todo processo político e o exercício do


poder. Para a efetividade do processo, colocada em termos de valor
absoluto, poderia parecer ideal que o contraditório fosse invariavel-
mente efetivo: a dialética do processo, que é fonte de luz sobre a ver-
dade procurada, expressa-se na cooperação mais intensa entre o juiz
e os contendores, seja para a descoberta da verdade dos fatos que
não são do conhecimento do primeiro, seja para o bom entendimento
da causa e dos seus fatos, seja para a correta compreensão das nor-
mas de direito e apropriado enquadramento dos fatos nas categorias
jurídicas adequadas. O contraditório, em suas mais recentes formula-
ções, abrange o direito das partes ao diálogo como o juiz: não basta
que tenham aquelas a faculdade de ampla participação, é preciso que
também este participe intensamente, respondendo adequadamente
aos pedidos e requerimentos das partes, fundamentando decisões e
evitando surpreendê-las com decisões de-ofício inesperadas.17

A composição participativa é, como se vê, inerente a qualquer processo,


o que revela seu objetivo político. Para que se concretize o contraditório no
processo, é preciso que se possibilite a participação das partes litigantes na
atividade processual, na coleta de provas e no convencimento do juiz, a fim de
que se obtenha um resultado justo, fruto de ampla colaboração.
O princípio do contraditório não se resume, já se disse, na sua compre-
ensão como direito de informação e reação, ou como direito de influência. A
participação propiciada pelo contraditório serve não apenas para que cada

16
Sobre o conteúdo mínimo do princípio do contraditório, há vários precedentes do STF do Brasil,
sendo oportuno mencionar, a título exemplificativo, o RE nº 431.121/SP, Rel. Min. Sepúlveda
Pertence, DJ, p. 41, 28 out. 2004.
17
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 5. ed. São Paulo: Malheiros,
1996. n. 36.2, p. 285.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 147-159, jul./set. 2012
O princípio do contraditório e a cooperação no processo 153
litigante possa influenciar a decisão, mas também para viabilizar a colaboração
das partes com o exercício da atividade jurisdicional.
Significa que, em razão do contraditório, a atividade jurisdicional deve
pautar-se num esquema dialógico, de modo a exigir que o juiz exerça a jurisdi-
ção com o auxílio das partes, proferindo decisão legítima, aprimorada e justa.
A decisão judicial não deve ser fruto de um trabalho exclusivo do juiz, mas
resultado de uma atividade conjunta, em que há interações constantes entre
diversos sujeitos que atuam no processo.
A colaboração e a participação das partes não se configuram apenas como
direitos ou faculdades, mas também como ônus18 e deveres. Em outras palavras,
às partes confere-se oportunidade de participar da formação da decisão do juiz,
suportando as consequências desfavoráveis do próprio comportamento inerte
e negligente. O juiz não pode ser obrigado a inserir na fundamentação de sua
decisão considerações, informações ou detalhes que não foram apresentados
pelas partes.
Em razão do princípio da cooperação, o juiz deixa de ser o autor único e
solitário de suas decisões. A sentença e, de resto, as decisões judiciais passam
a ser fruto de uma atividade conjunta.
A aplicação do princípio da cooperação acarreta um redimensionamento
da máxima iura novit curia, porquanto ao juiz cabe pronunciar-se sobre a norma
jurídica a ser aplicada ao caso depois de realizar o necessário diálogo com as
partes.19 Ao juiz cabe — não restam dúvidas — aplicar o direito ao caso concreto,
mas se lhe impõe, antes de promover tal aplicação, consultar previamente as
partes, colhendo suas manifestações a respeito do assunto.
Na verdade, o princípio da cooperação restringe a passividade do juiz,
afastando-se da ideia liberal do processo como uma “luta” ou “guerra” entre as
partes, meramente arbitrada pelo juiz.20
No Brasil, não há previsão legal do princípio da cooperação, mas ele
tem base constitucional, sendo extraído da cláusula geral do devido processo
legal, bem como do princípio do contraditório. Se o contraditório exige parti-
cipação e, mais especificamente, uma soma de esforços para melhor solução
da disputa judicial, o processo realiza-se mediante uma atividade de sujeitos
em cooperação.

18
TROCKER, Nicolò. Processo civile e costituzione: problemi di diritto tedesco e italiano. Milano: A.
Giuffrè, 1974. p. 667.
19
TROCKER, op. cit., p. 683-684.
20
REGO, Carlos Francisco de Oliveira Lopes do. Comentários ao Código de Processo Civil. Coimbra:
Almedina, 2004. v. 1, p. 266.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 147-159, jul./set. 2012
154 Leonardo Carneiro da Cunha

Na legislação portuguesa, o princípio da cooperação está expressamente


previsto. Ao estabelecer as bases da reforma processual, a Lei nº 33/95, em seu
art. 6º, determinou que:

As alterações à lei processual deverão consagrar o dever de cooperação


para descoberta da verdade, a par da necessidade de uma adequada
ponderação, em termos de proporcionalidade, eticamente fundada,
entre o direito à reserva da intimidade da vida privada e a obtenção da
verdade material e os direitos e interesses da contraparte [...].

Consagrando a cooperação como princípio ordenador do processo civil,


o artigo 266º, n. 1, do CPC português assim dispõe: “Na condução e interven-
ção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias
partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia,
a justa composição do litígio”.
Em seu n. 2, o referido dispositivo estabelece que

O juiz pode, em qualquer altura do processo, ouvir as partes, seus


representantes ou mandatários judiciais, convidando-os a fornecer
os esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito que se afi-
gurem pertinentes e dando-se conhecimento à outra parte dos resul-
tados da diligência.

Por sua vez, o n. 3 do dispositivo dispõe que: “As pessoas referidas no


número anterior são obrigadas a comparecer sempre que para isso forem noti­
ficadas a prestar os esclarecimentos que lhes forem pedidos, sem prejuízo do
disposto no nº 3 do art. 519º”. E, finalmente, seu n. 4 assim determina:

Sempre que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria


em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de
faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual, deve o juiz,
sempre que possível, providenciar pela remoção ou obstáculo.

A cooperação, como se percebe, impõe deveres para todos os interve-


nientes processuais, a fim de que se produza, no âmbito do processo civil, uma
“eticização” semelhante à que já se obteve no direito material, com a consagra-
ção de cláusulas gerais como as da boa-fé e do abuso de direito.21

REGO, op. cit., p. 265.


21

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 147-159, jul./set. 2012
O princípio do contraditório e a cooperação no processo 155
O princípio da cooperação destina-se, enfim, a transformar o processo
civil numa “comunidade de trabalho”,22 potencializando o franco diálogo entre
todos os sujeitos processuais, a fim de se alcançar a solução mais adequada e
justa ao caso concreto.23 O processo, diante disso, deve ser entendido como
uma “comunidade de comunicação”, desenvolvendo-se por um diálogo pelo
qual se permite uma discussão a respeito de todos os aspectos de fato e de
direito considerados relevantes para a decisão da causa.24
Ao longo de todo o procedimento, deve haver um debate, voltando-se
também para o juiz e para todos os agentes estatais no processo.
Da cooperação, cujo fundamento é, em última análise, o princípio do
contraditório, extraem-se deveres a serem cumpridos pelo juiz e pelas partes,
sendo certo que os deveres processuais subtraem do direito de ação qualquer
natureza absoluta, constituindo uma limitação ao seu exercício.25
Há, na verdade, a cooperação das partes com o tribunal, bem como a
cooperação do tribunal com as partes.26
A cooperação das partes com o tribunal envolve:
a) a ampliação do dever de litigância de boa-fé;27
b) o reforço do dever de comparecimento e prestação de quaisquer
esclarecimentos que o juiz considere pertinentes e necessários para
a perfeita inteligibilidade do conteúdo de quaisquer peças proces-
suais apresentadas;
c) o reforço do dever de comparecimento pessoal em audiência,28 com a
colaboração para a descoberta da verdade;29 e,
d) o reforço do dever de colaboração com o tribunal, mesmo quando
este possa envolver quebra ou sacrifício de certos deveres de sigilo ou
confidencialidade (CPC português, arts. 519º e 519º-A).30
Por sua vez, a cooperação do tribunal com as partes comporta:31

22
SOUSA, Miguel Teixeira de. Estudos sobre o novo processo civil. 2. ed. Lisboa: Lex, 1997. p. 62.
23
GERALDES, António Santos Abrantes. Temas da reforma do processo civil. 2. ed. Coimbra: Almedina,
2006. v. 1, p. 88.
24
SILVA. Acto e processo, cit., p. 578-579.
25
SILVA, Paula Costa e. O processo e as situações jurídicas processuais. In: DIDIER JR., Fredie;
JORDÃO, Eduardo Ferreira (Coord.). Teoria do processo: panorama doutrinário mundial. Salvador:
JusPodivm, 2008. p. 790-791.
26
SOUSA, Miguel Teixeira de. Apreciação de alguns aspectos da “revisão do processo civil –
projecto”. Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, ano 55, p. 361, jul. 1995.
27
SOUSA, Miguel Teixeira de. Estudos sobre o novo processo civil, p. 62-63; REGO, op. cit., p. 266.
28
REGO, op. cit., p. 267.
29
SOUSA. Estudos sobre o novo processo civil, p. 64.
30
REGO, op. cit., p. 266-267.
31
REGO, op. cit., p. 267-269.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 147-159, jul./set. 2012
156 Leonardo Carneiro da Cunha

a) a consagração de um poder-dever de o juiz promover o suprimento


de insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de fato ale-
gada por qualquer das partes;
b) a consagração de um poder-dever de suprimir obstáculos procedi-
mentais à prolação da decisão de mérito;
c) a consagração do poder-dever de auxiliar qualquer das partes na remo-
ção de obstáculos que as impeçam de atuar com eficácia no processo; e,
d) a consagração, em combinação com o princípio do contraditório, da
obrigatória discussão prévia com as partes da solução do pleito, evi-
tando a prolação de “decisões-surpresa”, sem que as partes tenham
oportunidade de influenciar as decisões judiciais.
O tribunal tem, enfim, o dever de esclarecimento, o dever de prevenção, o
dever de consulta e o dever de auxílio. Realmente, o tribunal tem o dever de se
esclarecer junto das partes e estas têm o dever de o esclarecer.32 Significa que
o dever de esclarecimento é recíproco. Já o dever de prevenção não é recíproco,
consistindo no convite, feito pelo tribunal, ao aperfeiçoamento pelas partes de
suas petições ou alegações. Segundo leciona Miguel Teixeira de Sousa, o dever
de prevenção tem um âmbito mais amplo:

[...] ele vale genericamente para todas as situações em que o êxito


da acção a favor de qualquer das partes possa ser frustrado pelo uso
inadequado do processo. São quatro as áreas fundamentais em que a
chamada de atenção decorrente do dever de prevenção se justifica: a
explicitação de pedidos pouco claros, o carácter lacunar da exposição
dos factos relevantes, a necessidade de adequar o pedido formulado
à situação concreta e a sugestão de uma certa actuação. Assim, por
exemplo, o tribunal tem o dever de sugerir a especificação de um
pedido indeterminado, de solicitar a individualização das parcelas de
um montante que só é globalmente indicado, de referir as lacunas na
descrição de um facto, de se esclarecer sobre se a parte desistiu do
depoimento de uma testemunha indicada ou apenas se esqueceu
dela e de convidar a parte a provocar a intervenção de um terceiro.33

O dever de consulta, por sua vez, impõe ao tribunal dar às partes a opor-
tunidade de manifestação sobre qualquer questão de fato ou de direito. O juiz,
antes de se pronunciar sobre qualquer questão, ainda que seja de conhecimento

SOUSA. Estudos sobre o novo processo civil, p. 65.


32

Op. cit., p. 66.


33

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 147-159, jul./set. 2012
O princípio do contraditório e a cooperação no processo 157
oficioso, deve dar oportunidade à prévia discussão pelas partes, evitando, desse
modo, as chamadas “decisões surpresa”.34
Finalmente, o tribunal tem o dever de auxiliar as partes na eliminação ou
superação de obstáculos ou dificuldades que impeçam o exercício de direi-
tos ou faculdades ou, ainda, o cumprimento de ônus ou deveres processuais.
Deve, por exemplo, o juiz providenciar a remoção de obstáculo à obtenção de
um documento ou informação que seja indispensável para a prática de um ato
processual.35
Há, na verdade, um dever de cooperação. O dever de cooperação, nas lições
de José Lebre de Freitas, tem duplo sentido: um material e um formal. Em seu
sentido material, o dever de cooperação recai sobre as partes, incumbindo-lhes
a prestação de sua colaboração para a descoberta da verdade; ao juiz cumpre
requisitar das partes esclarecimentos sobre a matéria de fato ou sobre a matéria
de direito da causa. Em seu sentido formal, o dever de cooperação impõe ao juiz
providenciar o suprimento de obstáculos na obtenção de informação ou docu-
mento necessário ao exercício de uma faculdade, à observância de um ônus ou
ao cumprimento de um dever processual.36
O princípio do contraditório, tal como previsto no art. 5º, LV, da
Constituição Federal, tem aplicação a qualquer processo judicial. Vale dizer que
tal princípio aplica-se ao processo de conhecimento, ao processo de execução
e ao processo cautelar.
É óbvio que o princípio do contraditório não se aplica na execução com a
mesma intensidade que incide no processo de conhecimento, mas é induvidosa
sua aplicação na execução. Na execução, tanto o exequente como o executado têm
direito de ser cientificados dos atos processuais. As partes, na execução, podem
recorrer dos pronunciamentos judiciais. Em eventual questão a ser enfrentada
pelo juiz, devem as partes ser intimadas para manifestar-se, contribuindo com
o convencimento do magistrado, em atividade tipicamente cooperativa. O
contraditório no procedimento executivo, no aspecto do direito de defesa
assegurado à parte demandada, é eventual, porquanto depende da provoca-
ção do executado, que não é chamado a juízo para defender-se, mas sim para
cumprir a obrigação. O procedimento executivo adota a técnica monitória, que
consiste, basicamente, na inversão do ônus de provocar o contraditório: o réu,
em vez de citado para manifestar-se sobre a pretensão do autor, é convocado
para cumprir uma determinada obrigação. Não é correto dizer, então, que não

34
SOUSA, op. cit., p. 66-67.
35
SOUSA, op. cit., p. 67.
36
Introdução ao processo civil: conceito e princípios gerais. 2. ed. n. 8.2-8.3, p. 164-167.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 147-159, jul./set. 2012
158 Leonardo Carneiro da Cunha

há contraditório no procedimento executivo: ele é previsto, até mesmo como


consequência da garantia constitucional, mas é eventual na parte concernente
à defesa do executado. É inegável a existência de contraditório na execução.
O contraditório há de ser prévio. Antes de proferir qualquer decisão,
deve o julgador consultar previamente as partes, permitindo que estas contri-
buam com a formação de seu convencimento.
Ocorre, não raras vezes, que o caso submetido ao exame do juiz põe
a descoberto uma situação de extrema gravidade e urgência, não havendo
tempo para se instaurar o prévio contraditório, sob pena de suprimir do pro-
vimento jurisdicional a efetividade que dele possa resultar. Nesse caso, e para
garantir a efetividade do comando judicial postulado, poderá o juiz, imedia-
tamente, deferir o pedido formulado pela parte, dispensando o prévio con-
traditório, desde que se verifique a relevância do fundamento e a urgência da
medida pretendida.
Em hipóteses como essa, estará havendo uma ponderação de princípios.
De um lado, há o princípio do contraditório e, de outro lado, o da efetividade
dos provimentos judiciais. Tal ponderação há de ser feita mediante a aplicação
do postulado da proporcionalidade.
Ora, se, de um lado, há um dispositivo constitucional exigindo a obe-
diência ao princípio do contraditório (CF/88, art. 5º, LV), exsurge, por sua vez,
outro dispositivo constitucional que garante a efetividade da tutela jurisdicio-
nal, ao assegurar o livre acesso para evitar qualquer lesão ou ameaça a direito
(CF/88, art. 5º, XXXV).
Avulta, como se observa, um conflito entre a exigência constitucional
do contraditório e o princípio da efetividade da tutela jurisdicional. Com efeito,
tomando-se na devida conta o princípio do contraditório, deve-se conferir às
partes a oportunidade de tentar contribuir com o convencimento do magis-
trado, trazendo argumentos e elementos que demonstrem a correção de sua
tese e a necessidade de se rejeitar a pretensão da parte contrária. Por outro
lado, a obediência ao contraditório não poderia chegar ao ponto de subtrair
da prestação jurisdicional a efetividade garantida pelo mesmo texto constitu-
cional, fazendo com que pereça o direito da parte, que precisa de um provi-
mento de urgência destinado a conferir penhor e efetividade à sua postulação.
Segundo anota Daniel Sarmento, não há, no sistema brasileiro, hierarquia
de normas constitucionais, não sendo legítimo entender que uma norma consti-
tucional seja inconstitucional.37 Logo, não se poderia entender que a exigência do

A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. p. 37-38.
37

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 147-159, jul./set. 2012
O princípio do contraditório e a cooperação no processo 159
contraditório teria mais validade do que a garantia de efetividade dos provimentos
judiciais, nem que um seria inconstitucional frente ao outro. Enfim, esse não pode-
ria ser o critério para solucionar o conflito ora denunciado.
A solução, ao que parece, resulta da aplicação do postulado da propor­
cionalidade, cabendo ponderar os princípios em conflito para, no caso concreto,
veri­ficar o que recebe maiores influxos do direito material ou o que sofrerá maior
dano, caso venha a ter sua aplicação afastada.
Para que se aplique o postulado da proporcionalidade, é preciso que
haja (a) adequação; (b) necessidade; e (c) proporcionalidade em sentido estrito.
Assim, a apreciação de qualquer pedido depende, via de regra, do prévio con-
traditório. O afastamento da exigência do contraditório, com a apreciação ime-
diata do pedido formulado pela parte, deve ocorrer em hipóteses de urgência
na concessão da medida. Nesses casos em que se dispensa o prévio contraditó-
rio, a parte não fica impossibilitada de se manifestar. Na verdade, o contraditório
fica diferido para o momento posterior à apreciação do pedido formulado.
O princípio do contraditório decorre, enfim, do devido processo legal,
dele se extraindo (a) a necessidade de se dar ciência às partes dos atos a serem
realizados no processo e das decisões ali proferidas e (b) a necessidade de confe-
rir oportunidade à parte de contribuir com o convencimento do juiz ou tribunal.
Além da bilateralidade de audiência e de igualdade de oportunidades,
o contraditório deve instaurar um diálogo no processo entre o juiz e as partes,
garantindo uma atividade verdadeiramente dialética, com que se assegura a
prolação de uma decisão justa e, de resto, de um procedimento justo.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de


Normas Técnicas (ABNT):

CUNHA, Leonardo Carneiro da. O princípio do contraditório e a cooperação no processo. Revista


Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 147-159, jul./set. 2012.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 147-159, jul./set. 2012
Regime jurídico único, coisa
julgada e a competência residual
da Justiça do Trabalho: em defesa
da inconstitucionalidade da OJ nº 138
da SDI-I do TST
Cynara Monteiro Mariano
Doutora em Direito Constitucional pela
Universidade de Fortaleza. Mestre em Direito
Público (Ordem jurídico-constitucional) pela
Universidade Federal do Ceará. Professora
e Pesquisadora da Universidade de Fortaleza
nas áreas de Direito Constitucional, Processo
Constitucional e Direito Administrativo. Advogada.
Ex-Presidente da Fundação Escola Superior
de Advocacia do Ceará (FESAC) e da Comissão
de Estudos Constitucionais da OAB/CE.
E-mails: <cynaramariano@gmail.com>
e <cynaramariano@unifor.com>.

Resumo: O presente artigo aborda o tema da competência residual


da Justiça do Trabalho após a implantação do Regime Jurídico Único,
instituído pela Constituição Federal de 1988, bem como os reflexos
da ampliação da competência dessa Justiça Especializada após a edição
da Emenda Constitucional nº 45/2004. Apesar de o inciso I do art. 114 da
Cons­tituição, com a redação dada pela citada Emenda, que estendeu
a competência da Justiça laboral aos dissídios envolvendo os entes da
Admi­nistração Pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios, não ter trazido qualquer ressalva quanto à natu­
reza do regime jurídico, o Supremo Tribunal Federal, na ADI nº 3.395-6, ao
interpretar o alcance do mencionado dispositivo, excluiu dessa compe-
tência a apreciação de causas que sejam instauradas entre os servidores
e a Administração Pública, a esta vinculados por típica relação de ordem
estatutária. Entende-se, no entanto, que nem o advento do RJU nem a
alteração superveniente da competência da Justiça do Trabalho podem
atingir a validade da sentença transitada em julgado anteriormente pro-
ferida, não sendo legítima a limitação da execução ao período celetista,
como consta do teor da OJ nº 138 da SDI-I do TST, por ofender a garantia
da coisa julgada e o princípio da segurança jurídica.

Palavras-chave: Regime jurídico estatutário. Competência residual da


Justiça do Trabalho. Impossibilidade da limitação da execução.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 161-173, jul./set. 2012
162 Cynara Monteiro Mariano

Sumário: Introdução – Da inconstitucionalidade da limitação da execução


por ofensa à garantia da coisa julgada e ao princípio da segurança jurídica
– Conclusão – Referências

Introdução
Ainda tramitam na Justiça do Trabalho demandas tendo por objeto
direitos e vantagens decorrentes do vínculo de trabalho estabelecido entre
a Administração Pública e seus agentes, envolvendo verbas pertinentes a
períodos em que a relação se lastreava na Consolidação das Leis do Trabalho,
com reflexos no novo regime, criado com o advento do Regime Jurídico Único,
instituído com a Constituição Federal de 1988.
Em muitos dos casos, a reclamação foi julgada procedente e a sentença
transitou em julgado, condenando os entes da Administração Pública à implan-
tação salarial e ao pagamento das diferenças salariais, abrangendo períodos
celetista e estatutário. Isso porque, como a lesão ao direito dos reclamantes não
foi reparada na vigência do regime celetista, a sentença gerou reflexos no novo
regime.
Ocorre que, mesmo após o insucesso das ações rescisórias intentadas
pela Fazenda Pública, na fase de execução, e, muitas vezes, já depois da forma-
ção do respectivo precatório, não têm sido raras as situações em que os juízos
trabalhistas vêm limitando a execução (e, portanto, limitando o cumprimento
da coisa julgada) às diferenças salariais exclusivamente atinentes ao período
celetista, independentemente de essa matéria ter sido discutida ou não na
fase de conhecimento.
A respeito da competência atual da Justiça do Trabalho, a Emenda
Constitucional nº 45/2004, ao ampliar a competência material dessa Justiça
Especializada, estendeu-a aos dissídios envolvendo os entes da Administração
Pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios, sem estabelecer qualquer ressalva quanto ao período estatutá-
rio (art. 114, I da CF/88). Em verdade, o texto original da PEC nº 29/2000, que
originou a EC nº 45/2004, continha a ressalva de que não seriam submetidas à
Justiça do Trabalho as ações que envolvessem os servidores públicos, de regime
estatutário, e a Administração Pública. Todavia, a redação final publicada acabou
não abrangendo essa exceção, o que resultou no ajuizamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 3.395-6, movida pela Associação dos Juízes Federais do
Brasil (AJUFE), em face da redação final do inciso I do art. 114 da CF/88.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 161-173, jul./set. 2012
Regime jurídico único, coisa julgada e a competência residual da Justiça do Trabalho... 163
Como relator da referida ação direta, o ministro Nelson Jobim concedeu
liminar suspendendo toda e qualquer interpretação dada ao inciso I do art. 114
da CF/88, na redação dada pela EC nº 45/2004, que compreendesse na compe-
tência da Justiça do Trabalho a apreciação de causas que fossem instauradas
entre servidores e a Administração Pública, a esta vinculados por típica relação
de ordem estatutária. Esse posicionamento acabou sendo referendado pelo
Plenário do STF no dia 05.04.2006.
Assim, em face da interpretação do STF, a Justiça do Trabalho é incom-
petente para processar e julgar as ações que envolvem servidores públicos
esta­tutários, sendo competente a Justiça Comum. Outra, no entanto, é a situa­
ção envolvendo os empregados públicos. Se o servidor da Administração
Pública direta, autárquica ou fundacional for regido pela CLT,1 será a Justiça
laboral competente para apreciar e julgar os dissídios. Com relação às empre-
sas públicas e sociedades de economia mista, como mesmo após a CF/88, tais
entidades, desde que explorem atividade econômica, foram submetidas ao
mesmo regime das empresas privadas, no tocante aos direitos e obrigações
civis, comerciais, trabalhistas e tributários (art. 173, §1º, I), seus empregados
são regidos pela CLT, sendo a Justiça do Trabalho competente para julgar os
conflitos decorrentes dessa relação.
Esse entendimento, todavia, não é novidade, pois já era a orientação
seguida pelos juízos e tribunais trabalhistas após a criação do Regime Jurídico
Único. Nunca houve dúvidas de que, após a implantação do RJU, a Justiça
Especializada passou a ser incompetente para apreciar as demandas envol-
vendo servidores públicos estatutários, tendo por objeto direitos e vantagens
pertinentes exclusivamente ao regime jurídico de direito administrativo, sem
qualquer reflexo do período celetista. Nesse sentido, inclusive, a Súmula nº 137
do Superior Tribunal de Justiça menciona que compete à Justiça Comum esta­
dual processar e julgar ação de servidor público municipal, pleiteando direi-
tos relativos ao vínculo estatutário. Já a Súmula nº 218, também do STJ, fixa a
competência da Justiça dos Estados para processar e julgar ação de servidor

Registre-se que no dia 02 de agosto de 2007, o STF concedeu liminar na ADI nº 2.135/2000,
1

proposta pelo Partido dos Trabalhadores e outros, suspendendo a vigência do caput do art. 39
da CF/88, com a redação dada pela EC nº 19/98, em virtude da constatação de um vício formal
no processo de elaboração da norma. Antes dessa suspensão, como se sabe, vigorava a disci-
plina legal introduzida pela EC nº 19/98, que determinou o fim do RJU, facultando à Adminis-
tração direta, autárquica e fundacional contratar trabalhadores simultaneamente pelo regime
estatutário ou celetista. No entanto, a partir da decisão liminar do STF, voltou a vigorar, com
efeitos ex nunc, a redação do art. 39 da Constituição, anterior à EC nº 19/98, restabelecendo a
obrigatoriedade da adoção do RJU na Administração Pública direta, autárquica e fundacional.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 161-173, jul./set. 2012
164 Cynara Monteiro Mariano

estadual decorrente de direitos e vantagens estatutários no exercício do cargo


em comissão.
Esse é o tratamento dado quando a ação é ajuizada e a lesão aos direitos
dos interessados é reparada dentro de um único regime. Mas quando a ação
trata de direitos e/ou vantagens pertinentes ao antigo regime celetista, que aca-
bam por envolver prestações em ambos os regimes, celitário e estatutário, que
entendimento adotar? Será que a mudança de regime jurídico, por si só, pode
ter impactos, mesmo no caso de a sentença transitar em julgado reconhecendo
direitos e vantagens com reflexos no novo regime? Muitos juízos trabalhistas
vêm entendendo que sim, e isso com esteio na OJ nº 138, da SBDI-I, do TST, com
nova redação em decorrência da incorporação da Orientação Jurisprudencial
nº 249, da mesma SDI-I, publicada em 20.04.2005, que assim estabelece:

COMPETÊNCIA RESIDUAL. REGIME JURÍDICO ÚNICO. LIMITAÇÃO DA


EXECUÇÃO. Compete à Justiça do Trabalho julgar pedidos e vantagens
previstos na legislação trabalhista referente a período anterior à Lei
8.112/1990, mesmo que a ação tenha sido ajuizada após a edição da
referida lei. A superveniência de regime estatutário em substituição ao
celetista, mesmo após a sentença, limita a execução ao período celetista.

Ou seja, mesmo diante da formação da coisa julgada, a referida OJ parece


autorizar os juízos trabalhistas a limitar a execução ao período celitário, mesmo
que a demanda também tenha versado sobre reflexos desse período no regime
estatutário, o que, no nosso entender, atenta claramente contra o art. 5º, XXXVI
da Constituição.
A mudança de regime jurídico, ou até mesmo a alteração superveniente
da competência da Justiça do Trabalho, como ocorreu com o advento da EC
nº 45/2004, não atingem, porém, a validade da sentença anteriormente pro-
ferida, especialmente se essa sentença já se revestiu da autoridade da coisa
julgada, independentemente de ela conter reflexos no período estatutário. Do
contrário, é admitir que a coisa julgada possa ser cumprida apenas em parte,
sem que isso tenha sido decidido em eventual juízo rescisório, subtraindo dos
reclamantes a satisfação integral do direito reconhecido.

Da inconstitucionalidade da limitação da execução por ofensa à


garantia da coisa julgada e ao princípio da segurança jurídica
A Orientação Jurisprudencial nº 138 da SDI-I, do Tribunal Superior do
Trabalho, não pode ser aplicada para limitar a execução ao período celetista,

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 161-173, jul./set. 2012
Regime jurídico único, coisa julgada e a competência residual da Justiça do Trabalho... 165
quando a sentença expressamente tiver reconhecido direitos e vantagens desse
regime, com reflexos no novo regime, tendo em vista que esse enunciado não
pode ser aplicado retroativamente para prejudicar a coisa julgada, segundo dis-
ciplina o art. 5º, XXXVI da Constituição Federal de 1988. Isso implicaria admitir
que o juízo da execução pode, por via transversa, alterar os comandos judiciais
transitados em julgado, descurando, porém, que essa via é inadequada, dada a
impossibilidade de se emprestar efeitos rescisórios ao juízo da execução.
Logo, a citada Orientação Jurisprudencial do TST não pode servir de fun-
damento para conferir ao juízo da execução efeitos rescisórios que não lhe são
próprios, autorizando mais uma hipótese de relativização da coisa julgada, no
caso, no âmbito do processo trabalhista. A garantia da coisa julgada deve ser
sempre a regra. Sua relativização, a exceção. Essa deve ser a interpretação con-
ferida diante de toda e qualquer tentativa oblíqua de se introduzir na ordem
jurídica, ou na práxis processual, mais uma hipótese de relativização da coisa
julgada. Vale lembrar que os tribunais brasileiros já imprimem uma interpreta-
ção bastante ampla do conteúdo dos incisos do art. 485 do CPC, bastando citar
o afastamento da incidência da Súmula nº 343 do Supremo Tribunal Federal,
que imunizava a coisa julgada diante de mudanças posteriores de entendi-
mentos jurisprudenciais, quando a interpretação tida por controvertida seja a
respeito de matéria constitucional.2
Como se sabe, na fase de execução não há que se retomar a apreciação
de temas próprios da fase de conhecimento, pois todos os vícios supostamente
existentes nessa fase convalescem com o trânsito em julgado da sentença, o que
somente pode ser alterado pela via estreita da ação rescisória. Nesse sentido,
Alexandre Freitas Câmara (2009, p. 249), discorrendo sobre a invalidade dos atos
processuais, diz o seguinte:

As três espécies de invalidade processual referidas, nulidade abso-


luta, nulidade relativa e anulabilidade, são fenômenos intrínsecos
do processo e, por isso, encerrado este (ou, pelo menos, encerrado
o módulo processual em que se tenha manifestado o vício), o que se
dá com o trânsito em julgado da sentença, todos aqueles vícios con-
valescem. Por esta razão, é que a coisa julgada é chamada algumas
vezes de “sanatória geral”. Transitada em julgado a sentença, todos os
vícios, até mesmo aqueles inicialmente tidos por insanáveis, estarão
sanados. A coisa julgada, assim, faz desaparecer todos os vícios que
tenham se formado ao longo do processo.

Ver nesse sentido AgRg no Resp nº 709.458/RS, Rel. Min. Gilson Dipp, 5ª Turma do STJ, DJU, p. 409,
2

02 maio 2005.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 161-173, jul./set. 2012
166 Cynara Monteiro Mariano

Após o trânsito em julgado da sentença, e depois do insucesso ou do


exaurimento do prazo decadencial da ação rescisória, todos os vícios porven-
tura existentes, inclusive os que, em tese, seriam insanáveis, tornam-se sanados.
Ao transitar em julgado a sentença, as questões discutidas e decididas na fase
de conhecimento adquirem o status de coisa julgada (art. 5º, XXXVI), não mais
passível de alteração posterior, sanando, conseguintemente, todos os supostos
vícios, dentre eles questões alusivas à competência da Justiça do Trabalho.
Desse modo, após o trânsito em julgado da sentença, tornando a matéria
discutida nas fases processuais anteriores em coisa julgada, com efeito de sanea­
mento geral, apenas por meio de ação rescisória é que o comando judicial pode­
ria, em tese, ser alterado, como, a propósito, já decidiu o Tribunal Superior do
Trabalho, em julgado cuja ementa se reproduz a seguir:

AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. AÇÃO REVI-


SIONAL. ARTIGO 471 DO CPC. PEDIDO DE SUSTAÇÃO DEFINITIVA
DO PAGAMENTO DO PERCENTUAL DE 84,32%. PRETENSÃO PRÓPRIA
DE AÇÃO RESCISÓRIA. Não se processa Recurso de Revista quando
ausen­tes as hipóteses previstas no artigo 896 da CLT. Embora a juris-
prudência posterior tenha se consolidado de forma contrária ao que
restou deferido aos Reclamantes quanto ao reajuste de 84,32%, o fato
é que a decisão que lhes garantiu o direito transitou em julgado, exau-
rindo a questão de forma definitiva, sendo passível de modificação
apenas via Ação Rescisória. Nessa esteira, nem mesmo a instituição do
Regime Jurídico Único aos Reclamantes pode ser caracterizado como
fato novo capaz de atrair a incidência do artigo 471 do CPC, conside-
rando que a entrada em vigor ocorreu após o trânsito em julgado da
sentença. Enfim, para “revisar” a sentença, o Reclamado ajuíza a ação
revisional prevista no artigo 471 do CPC, sendo que o caso em apreço
não se adequa a nenhuma das hipóteses previstas no dispositivo legal
antes mencionado, porque o pressuposto fático no qual se baseou
o julgado para deferir, em definitivo, o percentual de 84,32% não foi
modificado, tendo ocorrido, apenas, alteração na interpretação da
matéria pelos Tribunais Superiores. Agravo de Instrumento a que se
nega provimento. (TST. AIRR - 1095/2004-008-07-40, 4ª Turma, Min.
Rel. Maria de Assis Calsing, DJ, 25 abr. 2008)

Como se observa pela ementa do acórdão acima transcrito, nem mesmo


o art. 471 do Código de Processo Civil pode ser invocado para desconstituir
a coisa julgada, o que só pode ocorrer por meio de ação rescisória. Por isso,

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 161-173, jul./set. 2012
Regime jurídico único, coisa julgada e a competência residual da Justiça do Trabalho... 167
tendo em vista ser esta a única via capaz de afastar a coisa julgada, após o seu
insucesso ou o exaurimento do respectivo prazo decadencial de dois anos, a
sentença adquire a qualidade de coisa soberanamente julgada, não mais pas-
sível, sob qualquer hipótese, de alteração.
Inclusive, a propósito da tese processualista que autoriza a desconstitui-
ção da coisa julgada com fundamento no citado art. 471 do CPC,3 que permite
ao embargante alegar a inexigibilidade do título judicial fundado em lei ou ato
normativo tido como inconstitucional pelo STF ou em que se adotou interpre-
tação de lei ou ato normativo não compatível com a Constituição Federal, já
tivemos oportunidade de discorrer sobre o assunto em obra de nossa autoria,
demonstrando que, além dos vícios de inconstitucionalidade de ordem for-
mal, o citado dispositivo também se reveste de induvidosa inconstitucionali-
dade material. Ele conferiu aos embargos à execução uma verdadeira “função
rescindente”, só que sem a necessidade de interposição de ação rescisória, ou
seja, sem a necessidade de se demonstrar o enquadramento legal em alguma
das situações taxativamente previstas pelo art. 485 do CPC, o que, além de
representar burla à legislação processual em si, afronta claramente o art. 5º,
XXXVI da Constituição.4
Nessa mesma esteira, sendo a coisa julgada uma garantia constitu-
cional, ela não pode ser afastada, ainda que parcialmente, pela Orientação
Jurisprudencial nº 138 da SDI-I do Tribunal Superior do Trabalho, que sequer
tem efeito de lei. Aliás, a própria SDI-I tem entendimento pacífico no sentido
contrário. Ela já entendeu que, em havendo discussão expressa na fase de
conhe­cimento relativa à incompetência da Justiça do Trabalho após o advento
do regime estatutário, com trânsito em julgado, “resulta inviável, em sede de
execução, a reforma da referida decisão para fixar novo limite à condenação,
mediante a alegação de incompetência da Justiça do Trabalho”. É o que se
depreende da leitura da ementa abaixo transcrita, in verbis:

EXECUÇÃO DE SENTENÇA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABA-


LHO. REGIME ESTATUTÁRIO. LIMITAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. VIOLAÇÃO
DO ARTIGO 896 DA CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS DO TRABALHO NÃO
CARACTERIZADA. Discutida expressamente na fase de conhecimento
a questão relativa à limitação da condenação ao advento do Regime
Jurídico Estadual, e transitada em julgado decisão no sentido da incor-
poração ao salário da reclamante da parcela “gratificação SUS”, resulta

Conferir WAMBIER; MEDINA. O dogma da coisa julgada: hipóteses de relativização, p. 43.


3

Ver MARIANO. Controle de constitucionalidade e ação rescisória em matéria tributária, p. 53-64.


4

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168 Cynara Monteiro Mariano

inviável, em sede de execução, a reforma da referida decisão para fixar


novo limite à condenação, mediante a alegação de incompetência da
Justiça do Trabalho. Hipótese em que manifesto o óbice da proteção
à coisa julgada, a impedir o conhecimento do recurso em sede extra­
ordinária. Nesse contexto, irretocável a decisão proferida pela Turma
no sentido de não conhecer da revista por violação do artigo 114
da Constituição da República. Recurso de embargos não conhecido.
(TST. E-RR - 158600-97.2002.5.21.0921, Rel. Min. Lelio Bentes Corrêa,
Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, DEJT, 30 mar. 2010)

Logo, com o trânsito em julgado da sentença, reconhecendo a percep-


ção das verbas reclamadas, independentemente de elas limitarem-se ao regime
celetista, ou se possuem reflexos no regime estatutário, o certo é que ocorre a
incorporação do direito reconhecido pela sentença ao patrimônio jurídico dos
reclamantes, emprestando-lhe a certeza e a segurança de sua definitividade. Por
isso é que a limitação posterior da execução ao cumprimento da coisa julgada
apenas em parte, isto é, limitada ao período celetista, afronta a coisa julgada e
atenta também contra o princípio da segurança jurídica.
Esse princípio não está expressamente positivado no texto da Cons­
tituição, mas dele deriva por interpretação do §2º do seu art. 5º, haja vista consis-
tir, nas palavras de Uadi Lammêgo Bulos (2007, p. 485), em um “desdobramento
do pórtico do Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput)”. A segurança jurídica
fundamenta-se na circunstância de certeza que deve acalentar o jurisdicionado/
cidadão, no sentido de que os efeitos decorrentes das situações consolidadas
sob a égide de uma lei anterior sejam imunes à superveniência de outra lei mais
nova. Essa certeza, que imuniza as situações anteriormente consolidadas contra
efeitos legais retroativos, também protege a coisa julgada.
Sobre o conteúdo do princípio da segurança jurídica, vale recordar as
lições de J.J. Gomes Canotilho (1992, p. 384):

Embora o princípio da segurança jurídica seja considerado um ele-


mento essencial do princípio do Estado de Direito, não é fácil sintetizar
o seu conteúdo básico. Além das imbricações que ele tem com o prin-
cípio de proteção da confiança, pode dizer-se que as idéias nucleares
da segurança jurídica se desenvolvem em torno de dois conceitos:

(1) estabilidade ou eficácia “ex post” da segurança jurídica: uma vez


adoptadas, na forma e procedimento legalmente exigidos, as decisões
estaduais não devem poder ser arbitrariamente modificadas, sendo

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Regime jurídico único, coisa julgada e a competência residual da Justiça do Trabalho... 169
apenas razoável que a sua alteração se verifique quando ocorram
pressupostos materiais particularmente relevantes.

(2) Previsibilidade ou eficácia “ex ante” do princípio da segurança jurí-


dica que, fundamentalmente, se reconduz à exigência de certeza e cal-
culabilidade, por parte dos cidadãos, em relação aos efeitos jurídicos
dos actos normativos.

Dessa forma, se, como dispõe o art. 468 do Código de Processo Civil, “a
sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limi­tes da
lide e das questões decididas”, considera-se afronta ao princípio da segurança
jurídica a decisão posterior que se sobrepõe a uma relação jurídica consolidada
sob o amparo de decisão anteriormente transitada em julgado, especialmente
para retirar ou tolher direitos dos jurisdicionados/cidadãos. Ou seja, se a incom-
petência da Justiça do Trabalho não foi declarada na fase de conhecimento ou
em eventual juízo rescisório, não é dado ao juízo da execução, e muito menos
ao juízo administrativo dos precatórios, impor limites à execução integral do
julgado com fundamento nessa temática, em respeito ao ditame constitucional
de que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa
julgada” (art. 5º, XXXVI).
Ainda segundo Uadi Lammêgo Bulos (2007, p. 484), em referência ao
inciso XXXVI do art. 5º da CF/88, “quando a norma em epígrafe usou o verbo
no futuro do presente simples, pretendeu deixar a salvo certas situações imper­
turbáveis, as quais não poderão ser molestadas por leis novas”. Por isso, a OJ
nº 138 da SDI-I do TST não pode obviamente prevalecer sobre as citadas garan-
tias constitucionais.
A retroatividade pretendida pela OJ nº 138 da SDI-I do TST afigura-se
ainda mais grave porque pretende limitar direitos trabalhistas de natureza ali-
mentar, devendo os juízos trabalhistas, por mais essa razão, afastá-la. Afinal, a
Justiça do Trabalho, nos dissídios individuais, tem por escopo principal realizar
o princípio da proteção. Esse princípio é o fundamento basilar de toda a legis-
lação que integra o Direito do Trabalho, deitando suas bases na contatação da
necessidade fática de erigir instrumentos hábeis à defesa da parte mais vulne-
rável na relação contratual: o trabalhador. Acerca do seu conteúdo e alcance,
disserta Maurício Godinho Delgado:

[...] que o Direito do Trabalho estrutura em seu interior, com suas regras,
institutos, princípios e presunções próprias, uma teia de proteção à

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 161-173, jul./set. 2012
170 Cynara Monteiro Mariano

parte hipossuficiente na relação empregatícia — o obreiro —,


visando retificar (ou atenuar), no plano jurídico, o desequilíbrio ine-
rente ao plano fático do contrato de trabalho. O princípio tutelar influi
em todos os segmentos do Direito Individual do Trabalho, influindo na
própria perspectiva desse ramo ao construir-se, desenvolver-se e atuar
como direito. Efetivamente, há ampla predominância nesse ramo
jurídico espe­cializado de regras essencialmente protetivas, tutelares
da vontade e interesse obreiros; seus princípios são fundamen-
talmente favoráveis ao trabalhador; suas presunções são elaboradas
em vista do alcance da mesma vantagem jurídica retificadora da dife-
renciação social prática. Na verdade, pode-se afirmar que sem a idéia
protetivo-retificadora, o Direito Individual do Trabalho não se justifica-
ria histórica e cientificamente. (DELGADO, 2008, p. 198)

Sobre a tutela e proteção do obreiro, encampada pelo citado princípio,


importa ressaltar que ele não se destina a resguardar o trabalhador somente
diante da força do capital privado. Com muito mais razão ainda, ele deve ser
observado e aplicado quando a tutela do trabalhador se faz necessária diante
da presença do Estado empregador. Aqui o desequilíbrio de forças é ainda mais
patente, pois o Estado possui todo um conjunto de prerrogativas processuais de
defesa. Por outro lado, é precisamente contra ele que se dirige a proteção dos
direitos e garantias fundamentais individuais, no caso, especialmente aquela
insculpida no art. 5º, XXXVI da Constituição.
Ainda no tocante à ideia de supremacia constitucional em face do Estado,
também nunca é demais ressaltar que a retroatividade, mesmo quando ela é
permitida e expressamente regulada em certos ramos do direito, como no penal
e no tributário, só é aplicada quando se revela benéfica para o cidadão, dado
que representa uma exceção ao princípio geral da irretroatividade das leis, que
salvaguarda os direitos dos administrados. A exceção, obviamente, não pode ser
aplicada contra o cidadão, pois é da própria essência do Constitucionalismo que
a supremacia constitucional seja entendida como uma garantia do cidadão,
segundo lembra Paulo Bonavides: “as Constituições existem para o homem e
não para o Estado; para a sociedade e não para o Poder” (BONAVIDES, p. 29).
De fato, em sua gênese, o constitucionalismo surgiu como uma teoria
que passou a enxergar a Constituição como a lei fundamental apta a limitar
o poder político em benefício da defesa dos direitos individuais. Surgiu, pois,
com a concepção de Constituição associada à ideia de Estado de Direito, pois
por ela o exercício do poder político é juridicizado, ou melhor, seu exercício
passa a encontrar limites no direito, que passa a proteger a liberdade e a pro-
priedade dos cidadãos.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 161-173, jul./set. 2012
Regime jurídico único, coisa julgada e a competência residual da Justiça do Trabalho... 171
Desse modo, as Constituições, desde as suas primeiras matizes liberalizantes,
foram criadas como instrumento para evitar que abusos perpetrados pelo
Estado pudessem atingir direitos e garantias dos cidadãos, sendo, pois, um
limite ao poder de editar leis e atos normativos. Por isso, mesmo hoje em
dia, por meio de uma interpretação mais atualizada, ou seja, em tempos de
Estado de Democrático de Direito, de quinta ou sexta dimensão de direitos
fundamentais, e, inclusive, de judicialização da política e da administração,
pode-se dizer que a Constituição é tanto limite para os atos estatais, como
igualmente limite a interpretações legais abusivas dos tribunais.
Portanto, no caso das demandas que tramitam na Justiça do Trabalho,
envolvendo o pagamento de diferenças salariais decorrentes do vínculo de tra-
balho estabelecido entre a Administração Pública e seus agentes, compreen­
dendo verbas pertinentes a períodos em que a relação se lastreava na CLT,
mas que produziu reflexos no regime estatutário, a execução deve respeitar o
conteúdo da sentença transitada em julgado e não rescindida, não podendo
sofrer limitação fundada na mudança posterior de entendimento a respeito da
competência da Justiça do Trabalho.
Na hipótese, é de se aplicar o mesmo raciocínio espelhado pelo Supremo
Tribunal Federal quanto à alteração da competência dessa Justiça Especializada
pela EC nº 45/2004, relativamente às indenizações por danos morais e/ou mate-
riais decorrentes de acidentes de trabalho. No CC nº 7.204.1-MG, relatado pelo
min. Carlos Ayres Britto (DJ, 09 dez. 2005), essa Corte suprema firmou entendi-
mento no sentido de que

[...] as ações que tramitam perante a Justiça comum dos Estados, com
sentença de mérito anterior à promulgação da EC 45/2004, lá conti-
nuam até o trânsito em julgado e correspondente execução. Quanto
àquelas cujo mérito ainda não foi apreciado, hão de ser remetidas à
Justiça do Trabalho, no estado em que se encontram, com total apro-
veitamento dos atos praticados até então.

Esse tratamento bem demonstra que a alteração superveniente de com­


petência da Justiça do Trabalho, ainda que determinada por regra constitucional,
não pode atingir a validade da sentença anteriormente proferida, especialmente
se essa sentença já transitou em julgado. Da mesma forma ocorre com a mudança,
em si, de regime jurídico. Em ambas as situações, afigura-se inconstitucional a
limi­tação posterior da execução ao período celetista, quando a sentença passada
em julgado não se limitou a reconhecer direitos e vantagens correspondentes

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 161-173, jul./set. 2012
172 Cynara Monteiro Mariano

exclusivamente a esse período, projetando reflexos no novo regime, como consta


do teor da OJ nº 138 da SDI-I do TST.

Conclusão
Dada a garantia da coisa julgada e o princípio da segurança jurídica,
que tornam imutáveis os efeitos da sentença de mérito, conclui-se que nem o
advento do Regime Jurídico Único nem a alteração superveniente da compe-
tência da Justiça do Trabalho, por obra da Emenda Constitucional nº 45/2004,
podem invalidar parte da sentença transitada em julgado, para dela excluir,
em fases processuais posteriores, direitos e vantagens com repercussão no
regime estatutário.
Como a única forma de desconstituir os efeitos da sentença passada em
julgado é, segundo a lei processual, a via da ação rescisória, esgotado o res-
pectivo prazo decadencial para a sua interposição, ou diante do insucesso de
mérito da ação, é defeso aos juízos trabalhistas aplicar a OJ nº 138 da SDI-I do
TST, ou qualquer outra fonte do direito, para limitar a execução da sentença ao
período celetista, empregando ao juízo da execução uma verdadeira eficácia
rescindente, em uma interpretação que vai de encontro à Constituição.
Além disso, nesse caso, militam também em favor da manutenção da
competência da Justiça do Trabalho o princípio da proteção, que se traduz na
verdadeira razão de ser dessa Justiça Especializada, e o entendimento de que
qualquer eficácia retroativa não pode ser aplicada em desfavor do cidadão, na
espécie, o trabalhador.

Fortaleza/CE, 05 de outubro de 2011.

Single Legal Regime, Claim Preclusion and the Residual Competence


of the Labor Court: in Defense of the Unconstitutionality of the
Jurisprudential Guideline 138 of the Specialized Subsection-I of
Individual Dissensions Under the Superior Labor Court

Abstract: This article approaches the residual competence theme of


the Labor Court after the implementation of the Single Legal Regime,
established by the Federal Constitution of 1988 as well as the implications
of expanding the competence of that Specialized Justice after the
enactment of Constitutional Amendment 45/2004. Although item I of
Art. 114 of the Constitution, with the wording given by such Amendment,
which extended the competence of the Labor Court to the dissensions
involving entities from the direct and indirect Public Administration of
the Union, States, Federal District and Municipalities, has not brought any
exception as to the nature of the legal system, the Federal Supreme Court,

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 161-173, jul./set. 2012
Regime jurídico único, coisa julgada e a competência residual da Justiça do Trabalho... 173
in the Direct Action of Unconstitutionality No. 3.395-6, when interpreting
the extent of the aforementioned rule, excluded from that competence
the appraisal of cases established between the public servants and the
Public Administration, who are bound to it through a typical relationship
of statutory order. It is understood, however, that neither the advent of
the Single Legal Regime nor the subsequent change of the Labor Court
competence can reach the validity of the final sentence previously
issued, not being legitimate the enforcement limitation to the labor law
consolidation period, as it is stated in the Jurisprudential Guideline 138 of
the Specialized Subsection-I of Individual Dissensions under the Superior
Labor Court, for offending the guarantee of the claim preclusion and the
principle of legal certainty.

Key words: Statutory legal regime. Residual competence of the Labor


Court. Impossibility of enforcement limitation.

Referências
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BULOS, Uadi Lammêgo Bulos. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007.
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de


Normas Técnicas (ABNT):

MARIANO, Cynara Monteiro. Regime jurídico único, coisa julgada e a competência residual da
Justiça do Trabalho: em defesa da inconstitucionalidade da OJ nº 138 da SDI-I do TST. Revista
Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 161-173, jul./set. 2012.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 161-173, jul./set. 2012
Crítica à tradicional opção
pela teoria da correspondência
como critério para a obtenção da
verdade no processo penal
Felipe Martins Pinto
Professor Adjunto de Direito Processual Penal da
UFMG. Diretor-Geral da Divisão de Assistência
Judiciária da UFMG. Diretor-Primeiro-Secretário do
Instituto dos Advogados de Minas Gerais.
E-mail: <felipempinto@hotmail.com>.

Resumo: O presente artigo objetiva demonstrar a inconveniência da


teo­ria filosófica da correspondência para nortear a obtenção da verdade
no processo penal no panorama de um Estado Democrático de Direito.
O processo penal, na condição de processo de conhecimento, tão somente
pode almejar uma verdade relativa, submetida a condicionantes que,
além de restrições de linguagem e outras inerentes à natureza humana,
impõe limites próprios do modelo jurídico adotado pelo ordenamento:
regras, institutos, normas, princípios, presunções, conceitos e noções.
Para o alcance do objetivo proposto para o trabalho, após breve apre-
sentação de características da teoria da correspondência, sustentou-se
a inconveniência de sua aplicação no processo penal sob a perspectiva
teórica, ideológica e prática.

Palavras-chave: Processo penal. Verdade. Estado Democrático de Direito.

Sumário: 1 Apontamentos sobre a teoria da correspondência – 2 A


impos­sibilidade ideológica, teórica e prática de se alcançar – A verdade
no processo penal a partir da teoria da correspondência – 3 Conclusão
– Referências

1 Apontamentos sobre a teoria da correspondência


Historicamente, diversos adjetivos foram empregados e ainda o são
em conjunto com a palavra verdade para estabelecer o objetivo do processo
penal: verdade objetiva, verdade real, verdade processual, verdade histórica
etc. E todas as expressões, de maneira indistinta, designam um mesmo conceito
que enceta a ideia da possibilidade de obter o conhecimento absoluto sobre a

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verdade no processo penal, uma perfeita correspondência do enunciado com


a realidade
No processo penal pátrio e em diversos ordenamentos alienígenas, arras-
ta-se, ainda com bastante fôlego e com poucos questionamentos, o legado da
Inquisição da Igreja Cristã da verdade processual segundo a teoria da correspon-
dência, seja por cômoda ignorância ou por uma ingenuidade funcional.

A justiça moderna obedece ainda ao idealismo metafísico das antigas


escolas; serve ainda para aplicar um artigo do Código Penal a uma
pessoa viva, doloroso manequim, do qual o juiz não conhece, na reali-
dade ou por ficção legal, nem as condições pessoais, nem a vida física,
intelectual e moral, e do qual ele não sabe mais nada, após havê-lo
marcado com o selo da lei.1

A verdade foi objeto de estudos de Aristóteles em diversos escritos e,


para ilustrar a apresentação sobre a teoria da correspondência, merece desta-
que o trecho do texto Categorias, capítulo 12:

Se, com efeito, o homem existe, a proposição pela qual nós dizemos
que o homem existe é verdadeira; e, reciprocamente, se a proposição
pela qual nós dizemos que o homem existe é verdadeira, o homem
existe. Contudo, a proposição verdadeira não é de modo algum causa
da existência da coisa; ao contrário, é a coisa que parece ser, de algum
modo, a causa da verdade da proposição, pois é da existência da coisa
ou da sua não existência que dependem a verdade ou a falsidade da
proposição (14b16-23).2

A verdade no processo penal ainda está atrelada a um juízo sobre a relação


de conhecimento entre o sujeito que conhece e o fato por conhecer. Haverá êxito
se existir adequação, identidade ou conformidade entre a representação do fato
pelo sujeito que busca conhecê-lo e o próprio fato, como realidade ontológica.
Os ensinamentos de Aristóteles são o gérmen da teoria da correspon-
dência, a qual teve um grande incremento no século XX, especialmente através
das teorias de Russell, Wittgenstein e, posteriormente, Austin.
A teoria da correspondência concebe verdadeira a proposição capaz de
reproduzir o acontecimento, projetar a ocorrência concreta ou refletir o fato e

FERRI. Os criminosos na arte e na literatura, p. 24.


1

ARISTÓTELES. Categorias, p. 123.


2

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Crítica à tradicional opção pela teoria da correspondência como critério para a obtenção da verdade... 177
se escorou na ideia de que a realidade pode ser perfeitamente refletida através
de enunciados, ou seja, entende possível a existência de uma verdade absoluta
como imagem do mundo real.
Essa corrente filosófica considera que a verdade de uma sentença ou
enunciado consiste em sua coincidência com a realidade, operação esta na
qual se estriba o tradicional e ultrapassado objetivo do processo penal: a ave-
riguação objetiva da verdade histórica.

O fato mostrado como possível deve converter-se em realidade afir-


mativa ou negativa em todos os seus antecedentes e consequências
juridicamente relevantes. A premissa menor do silogismo judicial
deve integrar-se completamente, através de operações práticas e
críticas dirigidas a obter a verdade do acontecimento julgável. Deve
reviver-se o passado em sua reconstrução e reprodução através das
manifestações atuais.3

Wittgenstein4 defendeu que a significação detinha uma essência invariável,


uma dimensão metafísica.5 A correspondência consistiria em um isomorfismo
estrutural entre a estrutura de uma proposição e aquela do fato. Assim, através de
“[...] uma linguagem perfeitamente clara, o arranjo das palavras em uma proposi-
ção atômica verdadeira refletiria o arranjo das coisas simples no mundo”,6 esta é,
em linhas gerais, a ideia da filosofia do atomismo lógico.7
Russell acrescenta à versão de Wittgenstein (metafísica atomista) a neces­
sidade de uma linguagem ideal e desenvolve uma teoria epistemológica que não
altera fundamentalmente a essência da explicação da verdade, a partir da qual
as coisas logicamente simples, desprezadas por Wittgenstein, passaram a ser
concebidas como dados dos sentidos, cujo conhecimento era apreendido de

3
No original: “El hecho mostrado como posible debe convertirse en realidad afirmativa o
negativa en todas sus antecedentes y consecuencias jurídicamente relevantes. La premisa
menor del silogismo judicial debe integrarse completamente, a través de operaciones
prácticas y críticas dirigidas a obtener la verdad del acontecimiento juzgable. Debe revivirse
el pasado en su reconstrucción y reproducción a través de las actuales manifestaciones”
(OLMEDO. Derecho procesal penal, t. I, p. 225 et seq., tradução livre).
4
Wittgenstein, originalmente correspondista, posteriormente, adere à corrente pragmatista,
segundo a qual o significado de um conceito deve ser dado pela referência às consequências
práticas ou experimentais de sua aplicação.
5
CONDÉ. As teias da razão: Wittgenstein e a crise da racionalidade moderna, p. 51.
6
HAACK. Filosofia das lógicas, p. 133-134.
7
O atomismo lógico foi criado por Wittgenstein, mas Russell foi quem divulgou primeiro a filo-
sofia atomista, em suas conferências de 1918, já que a obra de Wittgenstein sobre a matéria,
o Tratactus foi publicada somente em 1922.

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178 Felipe Martins Pinto

maneira direta por familiaridade.8 Dentro desse contexto, a capacidade de


correspondência de uma proposição estaria condicionada à sua composição
por nomes de objetos de conhecimento por familiaridade.
Por fim, Austin introduz uma visão centrada em relações convencionais
entre as palavras e o mundo e rompe a ideia do isomorfismo estrutural entre
proposição e fato.
A correspondência é explicada mediante dois tipos de “correlação”:

(i) “convenções descritivas”, correlacionando palavras com tipos de


situação e (ii) “convenções demonstrativas”, correlacionando palavras
com situações específicas.

A ideia é que no caso de um enunciado tal como “Estou com pressa”,


proferido por s em t, as convenções descritivas correlacionam as palavras com
as situações nas quais alguém está com pressa, e as convenções demonstra-
tivas correlacionam as palavras com o estado de s em t, e que o enunciado é
verdadeiro se a situação específica relacionada com as palavras por (ii) é do
tipo correlacionado com as palavras por (i).9

2 A impossibilidade ideológica, teórica e prática de se


alcançar – A verdade no processo penal a partir da
teoria da correspondência10
Dentre as inúmeras discussões que versam sobre a verdade e que se
aplicam, especificamente à verdade processual, cumpre mencionar três argu-
mentos que repelem a possibilidade de obter a verdade no processo sob a ótica
da teoria da correspondência: impossibilidade ideológica, teórica e prática.

[...] a tradicional ênfase a respeito da obtenção da “verdade real” tem


sido questionada, tanto de um ponto de vista teórico e epistemoló-
gico como prático; mas bem parece agora mais aceitável falar de uma
“verdade judicial”, é dizer, um grau de conhecimento aceito para o
cumprimento de determinadas regras legais, de experiência e psico-
lógicas e até por certos elementos consensuais11 [...]

8
HAACK, op. cit., p. 134.
9
Ibidem, p. 135-136.
10
GUZMÁN. La verdad en el proceso penal: una contribuición a la epstemología jurídica.
11
No original: “...el tradicional énfasis respecto de la obtención de la ‘verdad real’ ha sido
cuestionado, tanto desde un punto de vista teórico y epistemológico como práctico; más

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Crítica à tradicional opção pela teoria da correspondência como critério para a obtenção da verdade... 179
Dessa forma, para reforçar o descabimento e o risco para a segurança
jurídica que representa a escolha da teoria da correspondência como critério
de correção da sentença na esfera penal, a análise será cindida a partir de três
óticas com o intuito de reforçar a ideia e tornar mais clara a crítica que se pre-
tende desenvolver.

2.1 Impossibilidade ideológica


A inoportunidade ideológica está relacionada ao vínculo entre verdade
como correspondência e método inquisitivo. O emparelhamento da verdade
com a investigação inquisitiva medieval e moderna, em que o argumento da
apuração da verdade absoluta e de descoberta dos fatos se sobrepunha a limi-
tes e regras estabelecidas, aos direitos e garantias da pessoa e aos interesses
da própria sociedade subverteu os valores do sistema punitivo e potencializou
uma estrutura estatal segregadora e opressora.
O nexo entre verdade real e modelo inquisitivo, remanescente, ainda
hoje, em prescrições normativas e na concepção de inúmeros profissionais do
Direito, revela o prejudicial engajamento à teoria da correspondência, como
critério para a adequação da decisão jurisdicional, fato este desabonador e
deslegitimador do exercício jurisdicional, na medida em que compromete a
estrutura de garantias da pessoa e os limites ao jus puniendi.
A justiça da decisão pressupõe a justiça no procedimento, ou seja, ainda
que o provimento reflita o fato ocorrido, se o resultado frutificou a partir de
violações a direitos fundamentais, restrições a garantias da pessoa humana e
descumprimentos a limites normativos, o ato de poder jurisdicional ao invés
de meio de tutela se torna instrumento de risco para a coletividade.

2.2 Impossibilidade teórica


No tocante à impossibilidade teórica de obter a verdade a partir de parâ­
metros racionais, os seus partidários baseiam-se na ideia de que a verdade não
surge avulsa, como simples fenômeno do mundo real e “não pode existir inde­
pendentemente da mente humana”,12 bem como no abandono da ideia de lin-
guagem como simples representação.

bien parece ahora más aceptable hablar de una ‘verdad judicial’, es decir, un grado de
conocimiento aceptado por El cumplimiento de determinadas reglas legales, de experiencia
y psicológicas y hasta por ciertos elementos consensuales...” (OLMEDO, op. cit., t. I, p. 225-226,
tradução livre).
12
No original: “[...] cannot exist independently of the human mind [...]” (RORTY. Contingency,
Irony, and Solidarity, p. 5, tradução livre).

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O mundo não nos provém com nenhum critério de escolha entre


metáforas alternativas, que nós somente podemos comparar lin-
guagem ou metáforas com outra, não com alguma coisa além da
linguagem chamada “fato”.13

A expressão da verdade, na condição de produção mental, está vincu-


lada a inúmeras contingências de linguagem, próprias da pluralidade de cul-
turas, da variedade de vocabulários e de significações e, portanto, a verdade
estaria reduzida a uma simples criação humana, cuja validade estaria previa-
mente condicionada por eventuais limites de comunicação.
A relatividade da verdade processual guarda sintonia com a epistemolo-
gia contemporânea a qual demonstra que a relatividade é essencial ao conheci-
mento nas mais diversas searas, fruto da marca indelével da falibilidade inerente
ao ser humano e inexoravelmente comum às suas produções.
Portanto, uma premissa argumentativa é que o processo judicial e, espe-
cificamente para os fins do presente estudo o processo penal, na condição de
processo de conhecimento, tão somente pode almejar uma verdade relativa,
submetida a condicionantes que, além de restrições de linguagem, impõem
limites próprios do modelo jurídico adotado pelo ordenamento: regras, insti-
tutos, normas, princípios, presunções, conceitos e noções.

O mais alto grau de racionalidade atingido pelos ordenamentos


jurí­dicos contemporâneos, que se seguiu à conquista das garantias
constitucionais, importa na superação do critério de aplicação da jus-
tiça do tipo salomônico, inspirada apenas na sabedoria, no equilíbrio
e nas qualidades individuais do julgador, ou na sensibilidade extre-
mada do juiz, simbolizada pelo “Fenômeno Magnaud”. Esse critério é
substituído por uma técnica de aplicação do direito que se vincula a
elementos não-subjetivos, a uma estrutura normativa que possibilita
aos membros da sociedade, que vão a Juízo, contarem com a mesma
segurança, no processo, quer estejam perante um juiz dotado de inte­
ligência, cultura e sensibilidade invulgares, quer estejam diante de
um juiz que não tenha sido agraciado com os mesmos predicados.14

13
“[...] the world does not provide us with any criterion of choice between alternative metaphors,
that we can only compare languages or metaphors with one another, not with something
beyond language called ‘fact’” (Ibidem, p. 20, tradução livre).
14
GONÇALVES. Técnica processual e teoria geral do processo, p. 45-46.

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Crítica à tradicional opção pela teoria da correspondência como critério para a obtenção da verdade... 181
No caso, o Estado brasileiro, como decorrência da sua estrutura democrática,
impõe o respeito a direitos individuais, especialmente à liberdade ambulatorial e à
dignidade da pessoa, seja através de limites probatórios ou critérios de decisão, v.g.,
vedação da utilização de provas ilícitas, presunção de inocência e o consequente
princípio in dubio pro reo, a coisa julgada, o ne bis in idem.

2.3 Impossibilidade prática


Se já não fossem suficientes as restrições formais para inviabilizar as pre-
tensões de alcance de uma verdade categórica no processo, a presença do
ser humano como agente interventor no processo, carrega para o âmago do
exercício jurisdicional as fragilidades inerentes à essência humana.

Pois uma lei não se pode aplicar, manejar ou executar a si mesma; ela
não se pode interpretar nem definir ou sancionar a si mesma; ela tam-
bém não pode — sem deixar de ser uma norma — indicar ou nomear,
ela mesma, as pessoas concretas que devem interpretá-la e manejá-la.15

Com respeito à impossibilidade prática, a cogitação de um modelo de


apuração que ao sabor do vento, motivado pela vontade livre e desvinculada
de preconceitos possa guiar a realização dos atos de poder da Jurisdição é uma
hipótese cujo descabimento traz contornos de uma obviedade patente, mas
que diante de uma prática que guarda distorções resistentes à superação do
modelo processual de caráter inquisitorial, são necessárias algumas reflexões.
Em sua tarefa hermenêutica, o juiz se insere dentro da própria interpre-
tação, com seus conceitos e “pré-conceitos”, seus valores, seus sentimentos e,
inclusive, com a sua imaginação que indistingue o verdadeiro do falso e motiva
o seu detentor a persuadir as pessoas, menosprezar regras, atropelar formas e
desprezar evidências. “A formulação na linguagem é tão inerente à opinião do
intérprete, que em nenhum caso se torna objetiva para ele”.16

Não diríeis que esse magistrado, cuja velhice venerável impõe respeito
a todo um povo, se governa por uma razão pura e sublime e que julga
as coisas na sua natureza, sem se deter nessas vãs circunstâncias
que só ferem a imaginação dos fracos. Vêde-o entrar, para assistir
ao sermão com um zelo todo devoto reforçando a solidez da razão
pelo ardor da caridade. Ei-lo pronto ao vir com respeito exemplar.

SCHMITT. Sobre os três tipos do pensamento jurídico, p. 171.


15

GADAMER. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 521.


16

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Que o pregador apareça: se a natureza lhe deu uma voz rouquenha e


uma fisionomia esquisita, se o barbeiro o barbeou mal, se, por acaso,
ainda por cima, o lambuzou, por maiores que sejam as verdades que
anuncia aposto na perda da gravidade no nosso senador. [...]

Os nossos magistrados conheceram bem esse mistério. As suas togas


vermelhas, os arminhos com que se enfaixam como gatos peludos, os
palácios em que julgam, as flores de liz, todo esse aparato augusto era
muito necessário: e, se os médicos não tivessem sotainas e galochas,
e os doutores não usassem borla e capelo e túnicas, muito amplas
de quatro partes, nunca teriam enganado o mundo, que não pôde
resistir a essa vitrina tão autêntica. Se possuíssem a verdadeira justiça
e se os médicos fossem senhores da verdadeira arte de curar, não
teriam o que fazer da borla e do capelo; a majestade destas ciências
seria bastante venerável por si própria. Como, porém, possuem
apenas ciências imaginárias, precisam tomar esses instrumentos
vãos que impressionam as imaginações com que lidam; e destarte,
com efeito, atraem o respeito.17

A própria acepção da palavra sentença deriva do verbo sentir, do italiano


sentire, do latim sentio, e reforça a ideia de transposição das concepções pessoais
do aplicador da norma para a sua decisão.

[...] é somente em aparência que o juiz se encontra eqüidistante de


ambos aqueles grupos, na fronteira que separa o bom do mau. Invarial-
mente, ele se inclui entre os bons; a legitimação de seu cargo repousa
em grande parte no fato de ele pertencer indubitavelmente ao reino do
bom, como se nele houvesse nascido.18

A exposição não mira desmoralizar a função judicante e muito menos os


seus membros, mas, pelo contrário, ao desvelar a existência de um ser humano
que precede o juiz, retira deste a carga sobre-humana que insistem alguns em
dispor sobre seus ombros: exaltar os humildes, defender os fracos, perseguir
os escroques, descobrir mentiras, reproduzir o fato ocorrido.

A tentação populista se caracteriza, antes de mais nada, por sua


pretensão a um acesso direto à verdade. [...] O populismo, com efeito,

PASCAL. Pensamentos, p. 59-60.


17

CANETTI. Massa e poder, p. 297.


18

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Crítica à tradicional opção pela teoria da correspondência como critério para a obtenção da verdade... 183
é uma política que pretende, por instinto e experiência, encarnar o
sentimento profundo e real do povo. Esse contato direto do juiz com
a opinião é proveniente, além disso, do aumento de descrédito do
político. O juiz mantém o mito de uma verdade que se basta, que não
precisa mais de mediação processual.19

Mas o juiz, enquanto membro da Jurisdição é inerte e depende de pro-


vocações, informações e comprovações que lhe conduzam para a prolação do
provimento, ele não mantém contato direto com os fatos como tais, mas ape-
nas com proposições relativas a fatos, com “representações cognoscitivas”.20
Por essa razão, são inúmeras e imprevisíveis as interferências que con-
tribuem para forjar a verdade no processo, desde a instrução pré-processual,
através da redação dos boletins de ocorrência, dos depoimentos e do relatório
do inquérito policial, passando pelas manifestações do acusado e da eventual
vítima, pelas alegações do membro do Ministério Público e do advogado e
incluindo a fala de testemunhas e o laudo de peritos, eventuais interesses pes-
soais dos potenciais afetados pela decisão e a empatia que guarde o agente
que contribui ativamente no fornecimento de argumentos ou na produção de
provas, ainda que no subconsciente, com a vítima ou com o acusado, os seus
valores, as suas experiências de vida, as angústias e expectativas pessoais, terão
repercussão concreta na formação da decisão jurisdicional, a partir de repre-
sentações individuais em relação ao mesmo fato, objeto da apuração.

E estas diversas representações, que podemos denominá-las ima-


gens da verdade, diferem em geral, com frequência de forma não
intranscendente, de sorte que todos os intervenientes são o cego da
fábula, que tenta distintas partes do corpo da espécie por eles desco-
nhecida do elefante.21

A testemunha, ao presenciar o cometimento de um crime, especialmente


em casos com imagens fortes, marcantes e traumatizantes, experimentará a

19
GARAPON. O juiz e a democracia: o guardião das promessas, p. 66.
20
No original, representaciones cognoscitivas (IBÁÑEZ. Acerca de la motivación de los hechos en
la sentencia penal. Doxa, p. 257-299, tradução livre).
21
No original: “Y estas distintas representaciones, que podemos denominarlas imágenes de
la verdad, difieren por lo general, con frecuencia de forma no intrascendente, de suerte que
todos los intervinientes son el ciego de la fábula, que tienta distintas partes del cuerpo de la
especie para ellos desconocida del elefante” (GÖSSEL. En búsqueda de la verdad y la justicia:
fundamentos del procedimiento penal estatal con especial referencia a aspectos jurídico-
constitucionales y político-criminales, p. 61, tradução livre).

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confluência de duas forças psíquicas. “Uma dessas forças baseia-se na importância


da experiência como motivo para procurar lembrá-la, enquanto a outra força — a
resistência — tenta impedir que tal preferência seja mostrada”.22 A convivência
dessas duas forças implicará em uma conciliação em que o produto que rema-
nesce registrado como imagem não é o acontecimento relevante e nesse aspecto
sobrepõe a resistência, mas “outro elemento psíquico intimamente associado ao
elemento desagradável”23 e agora percebe-se a marca da primeira força que per-
mite a fixação de impressões importantes e reprodutíveis.
Como exemplo da imprevisão do produto aferido pela confluência das
forças psíquicas, bastante ilustrativo é o caso de “[...] um professor de filologia,
cuja lembrança mais antiga, situada entre os três e quatro anos, mostrava-lhe
uma mesa posta para refeição e, sobre ela, uma bacia com gelo. Na mesma época
ocorreu a morte de sua avó, o que, de acordo com seus pais, foi um rude golpe
para o garoto. Mas o atualmente professor de filologia não tem nenhuma recor-
dação dessa perda; tudo de que ele se lembra daqueles dias é a bacia de gelo”.24
O próprio modelo de colheita dos depoimentos, tanto na fase pré-proces-
sual quanto na fase judicial, em que se fala de vítimas, acusados e testemunhas
têm as suas falas intermediadas por um terceiro, no caso, o delegado no inquérito
e o juiz na instrução processual, que a reduzirão a escrito. Nesse método, o terceiro
interventor que elaborará o relatório a partir das declarações, por maior capaci-
dade que detenha para apreender os sentidos, as acepções e os sentimentos, ele
construirá um texto orientado pela própria compreensão sobre o que foi dito.

Na declaração se oculta com precisão metodológica o horizonte de


sentido do que verdadeiramente se deve dizer. O que resta é o sen-
tido “puro” do que foi declarado. Isso é o que passa ao relatório. Mas
enquanto reduzido assim à declaração, ele representa sempre um
sentido já desfocado.

Isso implica que quem relata o que foi dito e quem faz o relatório das
declarações pode não desvirtuar conscientemente o que foi dito e,
no entanto, o seu sentido é alterado. Mesmo quando se realiza a mais
cotidiana das falas, se faz presente um traço essencial da reflexão
especulativa, a saber, o caráter inconcebível do que é a reprodução
mais pura do sentido.25

22
FREUD. Lembranças encobridoras, v. 3, p. 337.
23
Ibidem, p. 337.
24
Ibidem, p. 336.
25
GADAMER. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 605-606.

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Crítica à tradicional opção pela teoria da correspondência como critério para a obtenção da verdade... 185
Além disso, os juízes, quando tentam alcançar os episódios pretéritos através
do depoimento de testemunhas, se tornam eles próprios testemunhas da oitiva
das testemunhas, devendo delinear os fatos a partir do que ouvem e veem.

Agora, como testemunhas silenciosas das testemunhas, os juízes e


jurados sofrem da mesma fraqueza humana que as outras testemu-
nhas. Eles, também, não são placas fotográficas ou discos pornográ-
ficos. Se a testemunha depoente comete erros de observação, está
sujeita a lapsos de memória, ou erros inventados, reconstrução ima-
ginativa dos eventos que observou, no mesmo sentido as recorda-
ções dos juízes e jurados sobre o que a testemunha falou e como se
comportou estão sujeitas a defeito.26

Adicione-se, ademais, que a instrução processual recepciona de forma


ampla as desigualdades concretas e externas ao processo, desde fatores socio-
econômicos e financeiros que permitem a contratação de um advogado mais
experiente e especializado, mas que não necessariamente será o melhor, pas-
sando pela possibilidade de arrolamento de testemunhas que pertençam ao
mesmo grupo social da parte (vítima ou acusado) e que, possivelmente terá
maior desenvoltura para apresentar a sua versão e contratação de assistente
técnico para a perícia.
São inúmeras as interferências externas que agem na formação do provi-
mento e não se faz aqui uma referência a ilicitudes ou faltas éticas, pois as intro-
missões, não necessariamente vinculadas à educação, cultura e ao patrimônio
que a pessoa detenha, emergem por meios mais diversos, v.g., a desenvoltura
para falar, a aparência pessoal, a firmeza no olhar, a capacidade para mentir, a
condição psíquica ou física da parte no dia da audiência para a sua oitiva.
A presença do contraditório implica na construção da instrução proces-
sual pelas partes “em condições de igualdade e de simetria”27 potenciais, uma
vez que a igualdade é concebida como igualdade de possibilidades.

26
No original: “Now, as silent witnesses of the witnesses, the trial judges and juries suffer from
the same human weaknesses as other witnesses. They, too, are not photographic plates or
phonographic discs. If the testifying witnesses make errors of observation, are subject to
lapses of memory, or contrive mistaken, imaginative reconstruction of events they observed,
in the same way trial judges or juries are subject to defects in their recollection of what the
witnesses said and how they behaved” (FRANK. Courts on Trial: Myth and Realism in American
Justice, p. 22, tradução livre).
27
No original: “condizione de ugguaglianza ed simetria” (FAZZALARI. Istituzioni di diritto
processuale, p. 51, tradução livre).

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186 Felipe Martins Pinto

Não há qualquer pretensão em compensar, através da estrutura processual,


as desigualdades entre as partes geradas a partir de fatores individuais e externos
ao processo, inclusive motivacionais, mas, por outro lado, a igualdade de oportu-
nidades processuais não consiste, tão somente, em uma potencialidade abstrata,
recorrente em algumas estruturas processuais, pelo contrário, trata-se de impe-
riosa necessidade de oferecimento de condições reais, no âmbito processual,
para a realização do contraditório.
A obsessiva tentativa de alcançar na sentença a correspondência do fato
ocorrido, obnubila a visão de seus iludidos e dedicados adeptos que, facilmente
se agarram a todo meio que se apresente apto a investigar ou reproduzir o fato
pretérito, especialmente àqueles revestidos de estofo científico, como sucede
com as perícias em geral, mas em especial com o exame de DNA, sobre o qual
paira uma venerada “quase perfeição”.
A chancela da ciência proporciona uma confiabilidade e um grau de
certeza tão intensos no imaginário popular que justificou a morte de tantas
pessoas que, na contramão do pensamento científico da época, defenderam
que a Terra era redonda, que o horizonte não era um precipício e que o Sol não
girava em torno da Terra.

É muito sedutor cultivar um campo ao qual a grande massa não tem


acesso, aonde o brilho da erudição adquire sua máxima luminosidade
e onde há segurança de que inclusive os resultados mais absurdos
não podem ser postos em evidência pelo sentido comum.28

O terreno para a sedimentação do excepcional prestígio dos exames


periciais recebe especial fomento em razão da vaidade do homem que, diante
de números, fórmulas e gráficos, muitos de difícil entendimento, prefere
admirá-los, ainda que incompreensíveis, e se integrar ao seleto grupo de
sábios cientistas a reconhecer a sua ignorância.
Os métodos utilizados para análise do composto orgânico ácido desoxir-
ribonucleico (DNA) têm percentual de exatidão de 99,999%, sendo, em geral,
aceito pela comunidade científica.
Entretanto, a quase infalibilidade revelada pelo impressionante percen-
tual é apenas do método, abstrato e idealizado, pois a percentagem de êxito do

No original: “Es demasiado seductor cultivar un campo al que la gran masa no tiene acceso,
28

donde el brillo de la erudición adquiere su máxima luminosidad y donde hay seguridad de que
inclusive los resultados más absurdos no pueden ser puestos en evidencia por el sentido común”
(KIRCHMANN. El character a-científico de la llamada ciencia del derecho, p. 260, tradução livre).

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Crítica à tradicional opção pela teoria da correspondência como critério para a obtenção da verdade... 187
exame concreto é, diante das imprevisíveis interferências que comprometem o
sucesso do referido teste laboratorial, muito mais complexa do que a singela,
mas possível, fraude ou falta de lisura: troca de tubos, aparelhos contaminados
com sangues de outras pessoas, erros na coleta, no armazenamento e no proces-
samento das amostras de DNA, como sangues expostos ao sol, ao calor e à água,
número deficiente de sondas, uso de dados estatísticos de países estrangeiros,
desconexos com a realidade da miscigenação racial brasileira, dentre outros.
O “entorpecedor” percentual que de tão elevado acaba arredondado
para 100% por muitos profissionais do Direito que simplesmente descartam
quaisquer evidências contrárias ao exame de DNA, mesmo quando este rema-
nesce isolado na instrução, dentre os prejuízos, padece da inexorável partici-
pação de um ser humano na promoção do exame.
Assim, o responsável pela realização do teste de DNA é um ser, corajoso,
negligente, leniente, misericordioso, vingativo, preguiçoso, virtuoso, corruptí-
vel, covarde, de mesma natureza daquele que presta o depoimento na condi-
ção de testemunha, não obstante alguns insensatos entusiastas considerarem
que o perito, enquanto pessoa, detenha uma credibilidade maior, como se a
sua ocupação profissional contaminasse a sua essência humana.
Mas não somente de ingênuos sobrevive o exame de DNA, pois o lucra-
tivo filão é forte motivação para dedicados profissionais que se debruçam para
defender a eficácia da prova pericial em análise e assegurar, dessa maneira,
uma inesgotável e crescente reserva de mercado na seara jurisdicional.

Calcula-se que, a cada ano, cerca de 350.000 pessoas façam algum


tipo de exame genético nos Estados Unidos — a maioria delas, cerca
de 300.000, testes de paternidade. A estimativa é que até o fim de
2009 esse segmento do mercado de exames laboratoriais movimente
12,5 bilhões de dólares.29

Sublinhe-se que conferir valor e abstrato diferenciado a um meio de


prova que pesa contra o polo passivo do processo penal, ao argumento do
mesmo gozar de amparo científico, além de subversão do arcabouço normati-
vo-constitucional do Estado, potencializa o risco de uma prova viciada prospe-
rar na instrução processual.

Parece então acertado sustentar a impossibilidade de que exista uma


relação de identidade entre um determinado fenômeno probatório e

TEICH; COSTA. Os negócios da vida.


29

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188 Felipe Martins Pinto

o estandar de conhecimento requerido para a decisão final: em outras


palavras, não há “provas” que sejam tais em si e outras que represen-
tem somente “indícios”: há, simplesmente, “elementos de prova” aos
quais é reconhecida, ou negada, a capacidade de convalidar (ou
refutar) uma hipótese, sobre a base de um critério racional ofere-
cido ao consenso.30

Dentre os três critérios de valoração de prova: sistema de provas legais ou


tarifadas; íntima convicção ou convicção moral; e livre convencimento motivado;
o último e contemporaneamente adotado no ordenamento pátrio, confere um
maior grau de segurança para a decisão, na medida em que o juiz analisa o
conjunto probatório de maneira livre, permitindo-se, dessa forma, que o risco de
eventual comprometimento individual de meio de prova se dilua no conjunto de
elementos amealhados na instrução. A escolha do juiz é livre, mas carece de fun-
damentação para não padecer de insuperável nulidade, característica que diferen-
cia o sistema do livre convencimento motivado da íntima convicção e que reforça
a segurança jurídica do provimento jurisdicional.

3 Conclusão
Desde a Inquisição Católica até a contemporaneidade, inúmeras foram
as propostas de mudanças, muitas das quais implementadas na estruturação
político-jurídica do Estado. Tantas leis foram publicadas, tantas teorias foram
desenvolvidas, tanta energia foi empregada para empreender alterações que,
por mais radicais e efetivas que transpareçam, não ultrapassam a condição
de cenário de uma mesma peça, pois o jus puniendi continua a perseguição
impla­cável a pretexto de alcançar objetivos nobres e elevados como a verdade
real e igualmente os espetáculos de massa, v.g., prisões, condenações, opera-
ções, arrebanham a servil massa de seguidores.
A verdade como correspondência do fato ocorrido é elencada, quase
unissonamente pela doutrina, como o fundamento da sentença, como um dos
princípios do processo penal, ou até mesmo como seu principal objetivo e,
apesar de alterarem o adjetivo que lhe sucede, alguns a chamam de verdade

No original: “Parece entonces acertado sostener la imposibilidad de que exista una relación
30

de identidad entre un determinado fenómeno probatorio y el estándar de conocimiento


requerido para la decisión final: en otras palabras, no hay ‘pruebas’ que sean tales en sí y otras
que representen solamente ‘indicios’: hay, simplemente, ‘elementos de prueba’ a los cuales es
reconocida, o negada, la capacidad de convalidar (o refutar) una hipótesis, sobre la base de
un criterio racional ofrecido al consenso” (GUZMÁN, op. cit., p. 14, tradução livre).

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Crítica à tradicional opção pela teoria da correspondência como critério para a obtenção da verdade... 189
real,31 outros de verdade histórica,32 verdade material, verdade substancial33
ou verdade judicial,34 e ainda que haja a tentativa de enfraquecer o absolutismo
da verdade real, a doutrina, majoritariamente, não enfrenta o problema da
verdade no processo penal e, via de regra, mantém o mesmo conteúdo tradi-
cionalmente atribuído à verdade real, ou, no máximo, distinguem diferentes
níveis de aproximação da verdade real, através da singela alteração de ordem
gramatical no nomem juris do princípio.
A palavra verdade, como outras palavras de nossa linguagem cotidiana,
certamente não está isenta de ambiguidade e, diante da multiplicidade semân-
tica, permite inúmeras representações concretas de suas significações, inclusive
vinculadas a concepções subjetivas, já que todo leitor, de maneira mais ou menos
intensa, possui uma noção intuitiva do conceito de verdade.
A crítica à teoria da correspondência como embasamento para a criação
de um método de aferição da verdade no processo penal consistiu no cerne
dos óbices apresentados sob os aspectos: teórico, ideológico e prático.

Riassunto: Questo articolo mira a dimostrare l’inconveniente di teoria


filosofica per guidare l’incontro di arrivare alla verità in un processo
penale nel panorama di uno stato democratico.Il processo penale, a
condizione che il processo di conoscenza, così non può che aspirare ad
una verità relativa, a determinate condizioni che, oltre al linguaggio e
altri vincoli insiti nella natura umana, impone i propri limiti sul modello
adottato dall’ordinamento giuridico, regole, istituzioni, norme, principi,
ipotesi, concetti e nozioni.Per raggiungere l’obiettivo proposto per il
lavoro, dopo una breve presentazione delle caratteristiche della teoria
della corrispondenza, che si tiene il disagio della sua applicazione in un
procedimento penale dal punto di vista teorico, ideologico e pratico.

Parole chiave: Procedura penale. Verità. Stato Democratico di Diritto.

Referências
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31
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FILHO. Manual de processo penal, p. 17; NETTO. Instituições de processo penal, p. 144-145;
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32
TORNAGHI. Instituições de processo penal, t. I, p. 198-199.
33
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34
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de


Normas Técnicas (ABNT):

PINTO, Felipe Martins. Crítica à tradicional opção pela teoria da correspondência como critério
para a obtenção da verdade no processo penal. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro,
Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 175-191, jul./set. 2012.

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DOUTRINA
Parecer
Morte da parte. Renúncia ao direito
afirmado. Impossibilidade. Ausência
de representação. Ato praticado por
advogado sem poderes. Decisão
homologatória. Ação rescisória
Fredie Didier Jr.
Livre-Docente pela USP. Pós-Doutorado na
Universidade de Lisboa. Doutor pela PUC-SP. Mestre
pela UFBA. Coordenador do curso de Graduação
da Faculdade Baiana de Direito. Professor Adjunto da
Faculdade de Direito da UFBA. Membro da IAPL, do
Instituto Iberoamericano de Direito Processual e
do Instituto Brasileiro de Direito Processual.
Presidente da Associação Norte e Nordeste de
Professores de Processo. Advogado. Consultor
jurídico. E-mail: <www.frediedidier.com.br>.

Daniela Bomfim
Mestre pela UFBA. Professora da Faculdade
Baiana de Direito. Advogada. Consultora jurídica.

Sumário: 1 Síntese da causa – 2 Os vícios da decisão homologatória –


3 O meio de impugnação da decisão homologatória – Ação rescisória
– 4 Conclusão

1 Síntese da causa
Relatam os consulentes que, em XX/XX/XXXX, foi ajuizada, em nome do
Sr. W., a ação anulatória de débito fiscal nº XXXXXXXXX, visando à anulação
do auto de infração FM nº XXXXXX, que documentava débito de imposto de
renda de pessoa física. Afirmou-se, na ação anulatória, que (i) o eventual ganho
de capital originário do débito estava abarcado pela isenção então prevista pelo
Decreto-Lei nº 1.510/76; e (ii) que o Fisco está cobrando IRPF sobre parcela não
recebida pelo autor.
Relatam, ainda, que, na mencionada demanda, o Sr. W. estava sendo
repre­sentado pelo seu filho, W. Jr., em decorrência da sentença proferida nos
autos da ação de interdição nº XXXXXXX. Sucede que, com o falecimento do

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 195-219, jul./set. 2012
196 Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim

Sr. W., ocorrido em XXXXXX, o processo de interdição foi extinto em razão da


perda do seu objeto. Tal sentença foi proferida em 19.12.2007 e publicada em
08.01.2008.
Em 15.02.2008, foi proferida sentença julgando improcedente o pedido for-
mulado pelo autor nos autos da Ação Anulatória nº XXXXXXXXXX. Em 10.03.2008,
foi interposto recurso de apelação, em nome do Sr. W., em face da sentença de
improcedência.
Ocorre que, em 23.02.2010, foi protocolada petição em nome do Sr. W.
renunciando ao direito em que se fundava a ação, sob a alegação de que
o débito havia sido incluído na anistia instituída pela Lei nº 11.941/2009.
Destacam que o advogado que subscreveu a referida petição tinha conheci-
mento do falecimento do Sr. W., inclusive porque atuara também nos autos
da ação de interdição, extinta pela perda superveniente de seu objeto.
Em 28.04.2010, foi proferida decisão pela Desembargadora Relatora,
Dra. R.C., homologando a renúncia e extinguindo o processo com resolução
do mérito, restando prejudicado o julgamento do apelo. Em 13.10.2010, foi
certificado o trânsito em julgado da decisão homologatória.
Diante do cenário fático exposto, consultam-me acerca dos vícios da deci-
são que homologou a renúncia ao direito afirmado.
É o que se passa a analisar.

2 Os vícios da decisão homologatória


2.1 A renúncia como negócio jurídico unilateral
O mundo jurídico é formado pelos fatos jurídicos, que são os fatos da
vida qualificados (como jurídicos), por força da incidência da norma jurídica. O
fenômeno de juridicização ocorre quando se verifica a suficiência do suporte
fático concreto, vale dizer, quando os fatos da vida são correspondentes (para
que se possa fazer jus à concepção de “sistema móvel”, prefiro, aqui, utilizar a
expressão “correspondentes”, e não “coincidentes”) aos pressupostos previstos
abstratamente na hipótese normativa (suporte fático abstrato da norma).
Sobre o fenômeno da juridicização, é célebre a metáfora utilizada por
Pontes de Miranda: “para que os fatos da vida sejam jurídicos, é preciso que
regras jurídicas — isto é, normas abstratas — incidam sobre eles, desçam e
encontrem os fatos, colorindo-os, fazendo-os ‘jurídicos’”.1 E mais adiante: “ocor-
ridos certos fatos-conteúdo, ou suportes fácticos, que têm de ser regrados, a

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. 4. ed. São Paulo:
1

Revista dos Tribunais, 1983. t. I, p. 6.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 195-219, jul./set. 2012
Morte da parte. Renúncia ao direito afirmado. Impossibilidade. Ausência de representação... 197
regra jurídica incide. A sua incidência é como a da plancha da máquina de
impressão, deixando a sua imagem colorida em cada folha”.2
Os fatos jurídicos (em sentido lato) podem ser classificados em razão
do elemento cerne (nuclear) do suporte fático, assim entendido como aquele
“que determina a configuração final do suporte fático e fixa, no tempo, a sua
concreção”.3
Os atos jurídicos em sentido lato são aqueles cujo suporte fático tenha
como elemento nuclear a exteriorização consciente da vontade humana, que
tenha por objeto a “obtenção de um resultado juridicamente protegido ou não
proibido e possível”.4 Aqui, “o ato humano entra no mundo jurídico como ato”,5
e não como fato do homem. A vontade exteriorizada é cerne do suporte fático.
Dessa forma, o ato jurídico em sentido amplo seria caracterizado por
três elementos: (i) um ato humano volitivo, vale dizer, uma conduta que repre-
sente a exteriorização de uma vontade, juridicamente relevante, razão por que
figura como cerne do suporte fático de dada norma jurídica (suporte fático
abstrato); (ii) a consciência da exteriorização da vontade (vale dizer: o intuito
de realizar a conduta); (iii) que o ato se dirija à obtenção de um resultado (o ato
jurídico há de ser, ao menos, potencialmente eficaz).6 Ressalte-se que apenas
os atos jurídicos em sentido lato são submetidos ao plano da validade (não o
são os fatos jurídicos em sentido estrito, os ato-fatos jurídicos e os atos ilícitos).
O ato jurídico em sentido lato é gênero do qual são espécies o ato jurídico
em sentido estrito e o negócio jurídico.
Em se tratando de ato jurídico em sentido estrito, a vontade humana é
elemento do suporte fático, mas ela não opera quanto aos efeitos decorrentes
do ato jurídico. Cuida-se de efeitos preestabelecidos pela norma, efeitos neces-
sários. Em se tratando de negócios jurídicos, a vontade é elemento relevante
quanto à existência e à eficácia do ato jurídico.

[...] o direito não recebe a vontade manifestada somente como ele-


mento nuclear do suporte fático da categoria que for escolhida pelas
pessoas, mas lhe reconhece, dentro de certos parâmetros o poder de
regular a amplitude, o surgimento, a permanência e a intensidade

2
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, t. I, p. 11.
3
MELLO, Marcos Bernardes. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 12. ed. São Paulo:
Saraiva, 2003. p. 49.
4
MELLO. Teoria do fato jurídico: plano da existência, p. 138.
5
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi,
1970. t. II, p. 395.
6
MELLO. Teoria do fato jurídico: plano da existência, p. 139 et seq.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 195-219, jul./set. 2012
198 Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim

dos efeitos que constituam a conteúdo eficacial das relações jurídicas


que nascem do ato jurídico.7

Os negócios jurídicos (espécie de atos jurídicos em sentido lato) são fatos


jurídicos cujo elemento cerne do suporte fático é a vontade humana exteriorizada
(o que pressupõe, certamente, a sua consciência). Sem exteriorização de vontade
humana, não há negócio jurídico e nem tampouco irradiação de seus efeitos.
Para que componha o suporte fático de qualquer negócio jurídico, deve-se
verificar a consciência da exteriorização da vontade, quanto: (i) à vontade em si
mesma, ou seja, o conteúdo da vontade exteriorizada; e (ii) à vontade de exte­
riorizar/declarar, expressa ou tacitamente.8 Se inexiste consciência, inexiste
vontade exteriorizada, não se verifica a suficiência do suporte fático do ato jurí-
dico. A consciência é essência do próprio elemento nuclear fático, quer se trate de
declaração expressa, quer se trate de declaração tácita de vontade.
A inconsciência da vontade exteriorizada não se confunde com eventual
vício nela verificado. A inconsciência significa inexistência de exteriorização da
vontade e, consequentemente, não verificação da suficiência do suporte fático
do fato jurídico. Estamos, pois, em seu plano de existência. O vício na vontade
exteriorizada, como o erro e o dolo, conduz à deficiência do suporte fático (sufi­
cientemente configurado). Estamos, agora, no plano de validade: o ato existe,
mas é defeituoso, podendo ser decretada a sua invalidade.
Ressalte-se, ainda, que, quando se exige a consciência da vontade, não
se exige que a parte tenha ciência e a intenção de praticar determinado ato
jurídico. Por exemplo, quando alguém entra em um ônibus, certamente não
pensa tratar-se de um ato negocial (contrato de transporte), mas há a consciên­
cia de entrar no ônibus para ser transportado.9
A renúncia é negócio jurídico. Trata-se de negócio jurídico unilateral por
meio do qual se extingue uma situação jurídica ativa titularizada pelo renun-
ciante. Como negócio jurídico, a vontade exteriorizada não apenas compõe o
suporte fático, mas é relevante ao menos para a escolha da categoria jurídica.
Como unilateral, não provoca a correspectividade de efeitos jurídicos.
É consequência jurídica da renúncia a extinção de situação jurídica pré-
via, e não uma obrigação de renunciar. Pode-se, inclusive, dizer que a vontade

7
MELLO. Teoria do fato jurídico: plano da existência, p. 148-149.
8
Nesse sentido, Marcos Bernardes de Mello: “para compor o suporte fático suficiente de ato
jurídico a exteriorização da vontade há de ser consciente, de modo que aquele que a declara
ou manifesta deve saber que a está declarando ou manifestando com aquele sentido próprio”
(Teoria do fato jurídico: plano da existência, p. 141).
9
MELLO. Teoria do fato jurídico: plano da existência, p. 143.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 195-219, jul./set. 2012
Morte da parte. Renúncia ao direito afirmado. Impossibilidade. Ausência de representação... 199
exteriorizada é, nesse sentido, performativa. Se houve vontade exteriorizada
de renunciar, incidiu a norma jurídica, irradiou-se o seu respectivo efeito: a
extinção da situação jurídica.
A renúncia ao direito afirmado é negócio jurídico praticado pela parte
demandante em um processo. Tem como pressuposto fático a exteriorização de
vontade — expressa ou tácita — daquele que afirmou a existência de uma deter­
minada situação jurídica ativa. Tal renúncia tem como fim a extinção de situa-
ção jurídica material que foi inserida no processo por meio da causa de pedir da
demanda para compor o seu objeto litigioso.

2.2 Problemas da renúncia ao direito afirmado no caso concreto


No caso presente, percebem-se três graves problemas no que concerne
à renúncia ao direito afirmado praticada em nome do Sr. W. pelo seu advo-
gado: (i) o Sr. W. já tinha falecido, de forma que a pessoa que supostamente
praticou a renúncia não mais existia; (ii) logo, a situação jurídica renunciada
não mais lhe pertencia; já havia sido transferida por sucessão mortis causa e,
então, era titularizada pelo seu espólio ou por seus herdeiros; (iii) o advogado
que a realizou em nome do Sr. W. não tinha poderes para representar o espólio
nem seus herdeiros.
Primeiro. Quando a renúncia foi supostamente praticada, a pessoa do Sr. W.
não mais existia. Não se pode considerar existente exteriorização de vontade de
pessoa não existente. O elemento nuclear do suporte fático da renúncia não se
configurou no mundo dos fatos, de forma que não houve incidência normativa,
nem formação do fato jurídico. Não se pode juridicizar elemento fático inexistente.
E nem se pode dizer que houve exteriorização de vontade do espólio ou
dos herdeiros. O ato não foi praticado em nome do espólio ou dos herdeiros
do Sr. W., que sequer estavam habilitados nos autos. O advogado que assinou
a petição de renúncia, nada obstante conhecesse o fato da morte do Sr. W., não
o noticiou ao Juízo e praticou o ato na qualidade de representante do Sr. W.,
como se ainda vivo ele fosse.
Inexistente, pois, o elemento objetivo nuclear do suporte fático da
renún­cia. Inexistente também o seu elemento subjetivo. Consoante Marcos
Bernardes de Mello, “os fatos jurídicos pressupõem uma necessária referibili-
dade a sujeitos de direito, porque sua eficácia (jurídica) se liga, essencialmente,
a alguém ou a algum ente, inclusive a conjunto patrimonial, a que o ordena-
mento jurídico outorga capacidade de direito”.10

Teoria do fato jurídico: plano da existência, p. 47.


10

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 195-219, jul./set. 2012
200 Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim

São efeitos jurídicos situações jurídicas em sentido lato, gênero do qual


são espécies as relações jurídicas eficaciais, estruturadas pela correspectividade
de situações jurídicas ativas (direitos) e situações passivas (deveres, estados de
sujeição). Dos fatos jurídicos — e apenas deles —, decorrem os efeitos jurídicos.
A eficácia do fato jurídico está relacionada a sujeitos que podem ser titulares de
situações jurídicas (chamados de sujeitos de direito). A referibilidade a sujeitos
de direito é elemento fático subjetivo de todo fato jurídico.
Tal elemento é ainda mais evidente quando se trata de negócios jurí-
dicos, formados pela juridicização de exteriorização de vontade. A vontade
exteriorizada é a vontade de um (ou mais) sujeito de direito. Sem sujeito de
direito, não há vontade exteriorizada consciente, não há negócio jurídico. Não
se pode, assim, cogitar a existência de negócio jurídico celebrado por sujeito
de direito inexistente, por pessoa que não mais existia.
Com a morte da pessoa física, extingue-se a sua personalidade jurídica;
o sujeito de direito antes existente não mais existe. O espólio é novo sujeito
de direito, diverso daquele que era o de cujus. É o mesmo que ocorre com a
sociedade empresária cuja falência se decreta e a massa falida. São sujeitos de
direito distintos.
No caso em comento, não mais havia o sujeito Sr. W., razão por que não
se pode considerar existente qualquer exteriorização de vontade dele, idônea
a ser elemento fático de negócio jurídico. Não houve, assim, a sua renúncia ao
direito afirmado.
Segundo. Com a morte do Sr. W., operou-se a sucessão, no plano material,
da situação jurídica ativa afirmada na demanda anulatória. O direito de anular o
auto de infração deixou de ser do Sr. W., que não mais era sujeito de direitos, e
passou a ser do seu espólio, novo e distinto sujeito de direito.
A sucessão da situação jurídica material ocorreu desde o momento do
falecimento do Sr. W. Quando foi praticada a renúncia, o espólio já era titular
da situação material renunciada, nada obstante não tivesse ocorrido ainda a
sucessão processual.
Ainda que se considerasse existente a renúncia, no caso, ela não pode
ser oposta ao espólio do Sr. W., nem aos seus herdeiros. Estar-se-ia tratando de
renúncia a situação jurídica titularizada por outrem, que sequer teve a oportu-
nidade de se manifestar sobre a prática do ato.
Poder-se-ia, aqui, fazer uma comparação com a compra e venda de coisa
alheia. A venda por quem não é dono é ineficaz com relação ao proprietário.
A renúncia a situação jurídica titularizada por outrem é, em princípio, ineficaz
com relação ao titular do direito. Veja-se que, no caso, sequer o renunciante

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 195-219, jul./set. 2012
Morte da parte. Renúncia ao direito afirmado. Impossibilidade. Ausência de representação... 201
poderá adquirir a situação jurídica material, pela manifesta razão de que ele já
não existe mais.
Terceiro. O negócio jurídico da representação celebrado pelo Sr. W., por
meio do qual se outorgaram os poderes ao seu advogado, foi extinto com a
morte do outorgante. Nova representação deveria ter sido realizada para que
o advogado tivesse poderes para representar o espólio em Juízo.
Representação é negócio jurídico unilateral por meio do qual um sujeito
de direito outorga poderes a alguém para a prática de atos jurídicos em seu
nome. O ato praticado pelo representante será imputado diretamente ao repre-
sentado, e não ao seu executor material.
Segundo José de Oliveira de Ascenção, o agir como representante de
outrem exige o vínculo de representação, que permite ao representante agir
sobre a esfera jurídica do representado. O vínculo de representação é, assim,
estruturado pelo poder de praticar atos jurídicos que produzem efeitos sobre
esfera jurídica alheia.11
Do negócio jurídico da representação, instrumentalizado pela procuração,
decorre a relação jurídica da representação, estruturada, de um lado, (i) pelos
poderes do outorgado de praticar atos jurídicos em nome do outorgante, que
atingirão a esfera jurídica deste e, do outro, (ii) pela sujeição do outorgante aos
efeitos decorrentes dos atos jurídicos para os quais se outorgaram os poderes.
No caso em análise, o Sr. W., por meio do seu curador, havia outorgado
poderes para que o seu advogado praticasse atos jurídicos em seu nome, idô-
neos a atingir a esfera jurídica do outorgante. O vínculo de representação era
existente entre o Sr. W. e o advogado. O advogado tinha poderes de represen-
tação do Sr. W.
Note-se que a representação foi celebrada pelo Sr. W., por meio do seu
filho, que também atuou como representante. Há, no caso, duas representa-
ções: o curador como representante do Sr. W. executou (materialmente) o ato
jurídico da representação em nome deste, para que se outorgassem os pode-
res ao advogado para a prática de atos jurídicos relacionados à demanda anu-
latória. Que se tenha claro: a representação foi praticada pelo Sr. W., por meio
do seu curador; o outorgante era o Sr. W., e não o seu filho.
Com o seu falecimento, extinguiram-se o negócio e o vínculo de repre-
sentação. O advogado não mais tinha poderes de representar o Sr. W., nem de
praticar atos jurídicos que pudessem atingir a sua órbita jurídica, já que não se
pode representar sujeito que deixou de existir.

ASCENÇÃO, José de Oliveira. Direito civil: teoria geral. 2. ed. Coimbra: Coimbra Ed., 2003. v. 2,
11

p. 250-252.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 195-219, jul./set. 2012
202 Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim

O espólio do Sr. W. é sujeito de direito que passa a existir com a sua morte
e que, com ele, não se confunde. Veja-se, inclusive, que se trata de ente desper-
sonalizado. Eventual vínculo de representação entre o espólio e o advogado
só poderia ser decorrente de negócio jurídico de representação praticado pelo
espólio, o que, no caso, não ocorreu. Não se pode pretender que o vínculo de
representação seja decorrente da morte do Sr. W. Não o é. A morte não é fato
jurídico do qual decorre o vínculo de representação entre o espólio e seus even-
tuais advogados.
O espólio era novo sujeito de direito que, para ser representado, pre-
cisaria outorgar poderes para que o advogado pudesse, em seu nome, prati-
car atos jurídicos. Destaque-se, inclusive, que o poder de renunciar ao direito
afirmado é poder especial, nos termos do art. 38 do CPC, que exige outorga
expressa e específica na procuração.
Os herdeiros do Sr. W. também são sujeitos distintos do de cujus, que,
para serem representados pelo advogado, se fosse o caso, precisariam praticar
outro negócio de representação. O vínculo de representação anterior — e não
mais existente — não lhes aproveita, nem mesmo com relação ao antigo cura-
dor do falecido. Isso porque, como já se destacou, a primeira representação foi
celebrada pelo Sr. W., por meio do seu curador. O curador não atuou em nome
próprio, mas como representante. O ato não atingiu a esfera jurídica do cura-
dor, mas do seu representado: o vínculo de representação era existente entre
o falecido e o advogado.
Em síntese, no caso, o advogado praticou o ato de renúncia como repre-
sentante processual. São duas as opções.
Ou ele praticou o ato de renúncia na qualidade de representante do Sr. W.,
o que não seria possível, considerando que o Sr. W. já era, há muito, falecido.
Destaque-se que não se tratava da hipótese excepcional prevista no art. 265, §1º,
“a”, do CPC, na qual, se a morte da parte ocorrer quando já iniciada a audiência de
instrução e julgamento, o advogado do falecido atua como substituto processual
até o fim da audiência. Quando o advogado atua como substituto, atua em nome
próprio, e não como representante. Este não era o caso dos autos.
Ou o advogado praticou o ato como representante do espólio ou dos
seus herdeiros. Todavia ele não tinha poderes para tanto. A renúncia praticada
pelo advogado sem poderes não pode ser oposta ao espólio ou aos herdeiros,
que não ratificaram o ato.

2.3 A decisão que homologou a renúncia


Como ensina Pontes de Miranda, “homologar é tornar o ato, que se exa-
mina, semelhante, adequado, ao ato que deveria ser”. “Ser homólogo é ter a

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 195-219, jul./set. 2012
Morte da parte. Renúncia ao direito afirmado. Impossibilidade. Ausência de representação... 203
mesma razão de ser, o que é mais do que ser análogo, e menos do que ser o
mesmo”.12 A homologação é julgamento sobre estarem satisfeitos os pressu-
postos de forma e/ou os pressupostos de fundo quanto a determinado ato
praticado por sujeito diverso do órgão jurisdicional que homologa. Homologar
é julgar “sobre o que até então se passou”.13
O ato de homologação é pronunciamento de que o que se produziu
está homólogo àquele considerado em um modelo abstrato, para que, assim,
possam ser irradiados os efeitos previstos a este último.14 Na homologação da
sentença estrangeira, por exemplo, o modelo comparado é a sentença profe-
rida pela Justiça brasileira.15
Na homologação de espécies de conciliação (reconhecimento da pro-
cedência do pedido, renúncia ao direito afirmado e transação), o modelo é
o julgamento dos pedidos formulados pelo demandante para que se tenha
certificação de existência ou inexistência do direito idônea a ser revestida pelo
manto da imutabilidade. Ao se homologar, assim, a renúncia ao direito afirmado,
está-se a dizer que o ato praticado pela parte é homólogo à decisão que julga
improcedente o pedido, para que se tenha por certificada a inexistência do
direito afirmado, formando-se a coisa julgada material. Raciocínio semelhante
pode ser feito no que concerne ao reconhecimento da procedência do pedido
e à transação.
No caso em análise, a decisão que homologou a renúncia disse que o ato
da parte era homólogo ao modelo de decisão de improcedência do pedido, para
se ter como certificada a inexistência do direito potestativo afirmado na demanda
anulatória. A inexistência do mencionado direito encontra-se sob o manto da imu-
tabilidade da coisa julgada material por força da decisão homologatória.
A renúncia ao direito afirmado está eivada de problemas e, aqui, carece
de utilidade discutir quais são os planos do mundo jurídico (existência, validade
e eficácia) relacionados aos problemas da renúncia. A decisão homologatória
existe e, enquanto não for desconstituída, é eficaz. Dela decorreu a certificação
da inexistência de um direito, idônea à formação da coisa julgada material pre-
judicial à parte, que não praticou a renúncia e não outorgou poderes para que
o advogado praticasse em seu nome. Dessa forma, a decisão homologatória

12
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado da ação rescisória. Campinas: Bookseller,
1998. p. 410.
13
PONTES DE MIRANDA. Tratado da ação rescisória, p. 410.
14
PONTES DE MIRANDA. Tratado da ação rescisória, p. 410-411.
15
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. 15. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2009. p. 63.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 195-219, jul./set. 2012
204 Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim

precisa ser desconstituída, já que a renúncia não poderia ser tida como homóloga
à decisão de improcedência, em razão da série de problemas destacados.

3 O meio de impugnação da decisão homologatória –


Ação rescisória
3.1 Introdução – A rescindibilidade da decisão
Cabe ação rescisória para desconstituir decisão de mérito transitada em jul-
gado. De logo, ressalte-se que a expressão “sentença” contida no art. 485, caput, do
CPC deve ser compreendida para que a ação seja cabível contra decisão (gênero)
de mérito, e não apenas contra sentença de mérito. É o que impõem a teleologia e
os valores subjacentes à disposição normativa, em consonância, inclusive, com as
demais disposições do sistema processual civil, como, v.g., o art. 269 do CPC.
O cabimento da ação rescisória pressupõe a coisa julgada material, fato
jurídico cujo suporte fático é composto por (i) decisão jurisdicional; (ii) que
verse sobre o mérito; (iii) analisado em cognição exauriente; (iv) tenha ocorrido
a coisa julgada formal (preclusão máxima naquela relação jurídica processual).
Dessa forma, se há resolução de mérito — seja por meio de sentença,
decisão interlocutória ou acórdão —, juntamente com os demais pressupostos
da coisa julgada material — será cabível a ação rescisória. Não se pode afirmar,
abstratamente, que dada espécie de provimento jurisdicional não é suscetível
de ser impugnada por meio da referida ação rescisória. Deve-se analisar, no
caso concreto, a verificação dos pressupostos fáticos da coisa julgada material.
Em se tratando de decisão homologatória que seja elemento de coisa julgada
material, caberá ação rescisória se afirmada causa de rescindibilidade prevista
no art. 485 do CPC.
Veja-se, inclusive, que, nos termos do art. 485, VIII, do CPC cabe demanda
rescisória se afirmado “fundamento para invalidar confissão, desistência ou tran-
sação, em que se baseou a sentença”. O termo “desistência” deve ser compreen-
dido como renúncia ao direito afirmado, já que desistência da demanda é causa
de extinção do processo sem análise de mérito, não se formando coisa julgada
material, impugnável por meio da rescisória. Demais disso, não há razão para que
se exclua o reconhecimento da procedência do pedido, espécie de ato disposi-
tivo da parte (do gênero “conciliação”), tal como o são a renúncia e a transação.
A decisão homologatória pode também ser impugnada por meio da
ação rescisória em razão da configuração de outra hipótese de rescindibilidade,
como, por exemplo, se verificada incompetência absoluta do Juízo que a profe-
riu ou violação a literal dispositivo de lei.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 195-219, jul./set. 2012
Morte da parte. Renúncia ao direito afirmado. Impossibilidade. Ausência de representação... 205
Nesse sentido, afirma Pontes de Miranda:

A sentença que homologou pode ser rescindida, com base em qual-


quer dos pressupostos do art. 485, porque sentença é. [...] A referên-
cia, no art. 486, à sentença homologatória de modo algum afasta, a
respeito de tal sentença, a invocabilidade do art. 485, porque sentença
homologatória sentença é.16

No caso dos autos, a decisão transitada em julgado estabeleceu que o ato


de renúncia era homólogo àquele por meio do qual se certificaria a inexistência
do direito afirmado, pronunciamento que ficou acobertado pela coisa julgada
material. Trata-se de decisão de mérito, nos termos, inclusive, do art. 269, V, do
CPC. Houve, portanto, coisa julgada formal acerca da decisão homologatória de
mérito; formou-se a coisa julgada material, passível de ser impugnada por meio
da ação rescisória, desde que se afirme incidência de norma decorrente de, ao
menos, um dos incisos do art. 485 do CPC.

3.2 Hipóteses de rescindibilidade


3.2.1 Introdução
Como se sabe, ultrapassado o seu juízo de admissibilidade, a demanda
rescisória desencadeia o exercício de mais dois juízos, quais sejam, (i) o rescin-
dente e (ii) o rescisório, em que se analisam os conteúdos dos pedidos formu-
lados na peça inicial. Vale dizer: além do pedido de desconstituição da coisa
julgada (de natureza, pois, desconstitutiva), deve o autor formular, se for o caso,
pedido de novo julgamento da causa, sob pena de não poder o órgão julgador
rejulgá-la.
No juízo rescindente, aprecia-se o pedido de desconstituição da coisa
julgada material, à luz da causa de pedir que lhe é correspondente. Verifica-se,
pois, se, naquele caso, (i) houve ou não a incidência de algumas das hipóteses
previstas no art. 485 do CPC (desde que esta incidência tenha sido afirmada na
peça inicial, em razão do regra da congruência objetiva); e (ii) se, considerando
o fato jurídico formado, irradiou-se ou não o direito potestativo afirmado.
Distingue-se a demanda rescisória por se tratar de ação de fundamentos
(causas de pedir) vinculados. Diga-se: os únicos fatos jurídicos dos quais decor-
rem o direito de desconstituição da coisa julgada são aqueles decorrentes da

PONTES DE MIRANDA. Tratado da ação rescisória, p. 408.


16

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 195-219, jul./set. 2012
206 Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim

incidência das hipóteses constantes no art. 485 do CPC, razão por que tem o
autor de, na peça inicial, afirmá-los.
A situação ora analisada é tão absurda que várias são as hipóteses de
rescindibilidade previstas no art. 485 do CPC configuradas no caso concreto:
(i) a decisão homologatória está fundada em prova falsa (art. 485, VI, do CPC) e
(ii) incidiu em erro de fato (art. 485, IX, do CPC); (iii) há documento novo idôneo
a, por si, alterar o conteúdo da decisão rescindenda (art. 485, VII, do CPC); (iv)
houve violação a normas jurídicas de direito material e processual, inclusive à
regra da congruência subjetiva, já que a decisão regulou situação de sujeito
que não era parte no processo (art. 485, V, do CPC); (v) trata-se de decisão fun-
dada em renúncia que não poderia ter sido homologada, em razão dos sérios
problemas que a maculam (art. 485, VIII, do CPC).
Vejamos.

3.2.2 Ação rescisória em razão de a decisão rescindenda


fundar-se em prova falsa (art. 485, VI, CPC)
3.2.2.1 Generalidades
O art. 485, VI, CPC, prevê a possibilidade de rescisão da decisão de mérito
transitada em julgado que se tenha baseado em prova falsa (“se fundar em prova,
cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou seja provada na pró-
pria ação rescisória”).
Algumas observações sobre esse inciso são importantíssimas para a res-
posta à pergunta formulada nesta consulta:
a) é preciso notar que somente cabe a rescisão se a decisão fundar-se na
prova falsa. Se a decisão rescindenda funda-se em outra prova, além
daquela que se reputa falsa, não há o direito à rescisão, pois, afinal, a
decisão pode manter-se “de pé” com base em outro lastro probatório.
Somente cabe a rescisão em razão da prova falsa, se ela for a “base”
que sustenta a decisão rescindenda. “O que importa é averiguar se a
conclusão a que chegou o órgão judicial, ao sentenciar, se sustentaria
ou não sem a base que lhe ministrara a prova falsa. A sentença não será
rescindível se havia outro fundamento bastante para a conclusão”;17
b) em segundo lugar, cabe realçar o trecho do texto normativo que per-
mite que a falsidade da prova seja apurada no bojo do procedimento

MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. 13. ed. Rio de Janeiro:
17

Forense, 2006. v. 5, p. 134. Neste sentido, também: PONTES DE MIRANDA. Tratado da ação
rescisória, p. 323; YARSHELL, Flávio Luiz. Ação rescisória: juízos rescindente e rescisório. São
Paulo: Malheiros, 2005. p. 325.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 195-219, jul./set. 2012
Morte da parte. Renúncia ao direito afirmado. Impossibilidade. Ausência de representação... 207
da ação rescisória. Ou seja, não há necessidade de a falsidade da prova
ter sido objeto de um processo autônomo, civil ou penal;
c) a falsa prova tanto pode ser a documental quanto a prova oral;18
d) finalmente, como esclarece Evaristo Aragão Ferreira dos Santos, “para
que esteja configurada a falsidade suficiente para fundamentar a
rescisória, basta que o fato atestado pela prova não corresponda à
verdade. Pouco importa que essa alteração da verdade tenha ocorrido
consciente ou inconscientemente. É suficiente, para caracterizar a fal-
sidade, a mera desconformidade entre o efetivamente ocorrido e o
fato atestado pela prova”.19

3.2.2.2 O caso
No caso concreto, a decisão de mérito extinguiu o processo em razão da
homologação da renúncia apresentada.
A renúncia é o ato jurídico que, uma vez considerado existente, serviu
de fundamento para a decisão judicial.
A renúncia é ato jurídico que se comprova por um documento — no caso,
a petição de comunicação da renúncia. A petição é, no caso, o instrumento —
documento, pois — da renúncia.
Pode-se afirmar, então, que a decisão rescindenda se baseia em uma única
prova: a prova documental da renúncia.
Sucede que, conforme já amplamente demonstrado ao longo deste pare­
cer, não houve renúncia. A renúncia não existiu pelo simples fato de o suposto
renunciante ser uma pessoa falecida muito antes de a suposta renúncia ter sido
apresentada. A prova da falsidade da petição de renúncia pode ser feita no pro-
cesso da ação rescisória — e é muito simples: a juntada da certidão de óbito
revela claramente a falsidade do documento que serviu de fundamento da
decisão rescindenda.
A petição, que serviu de base para a decisão rescindenda, serviu como
prova de fato inexistente. A petição, portanto, veicula alegação de fato que
não é verídica: o fato documentado (renúncia) não existia.
Este documento é, assim, uma prova falsa.

18
PONTES DE MIRANDA. Tratado da ação rescisória, p. 312; YARSHELL. Ação rescisória: juízos
rescindente e rescisório, p. 326.
19
A ação rescisória fundada em prova falsa e a sentença civil declaratória de falsidade. In: NERY
JR., Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos
cíveis e de outras formas de impugnação às decisões judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2001. p. 340.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 195-219, jul./set. 2012
208 Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim

Preenchidos estão todos os pressupostos para rescisão da sentença com


base no inc. VI do art. 485: a) decisão lastreada em única prova falsa; b) fal-
sidade de prova documental; c) falsidade pode ser comprovada no bojo do
processo da ação rescisória.

3.2.3 Ação rescisória em razão da obtenção de documento


novo (art. 485, VII, CPC)
3.2.3.1 Generalidades
O inc. VII do art. 485 do CPC permite a ação rescisória quando o autor
obtiver “documento novo, cuja existência ignorava, ou de que não pôde fazer
uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável”.
Algumas observações são importantes para a correta compreensão deste
inciso:
a) a doutrina costuma explicar a locução “documento novo” como aquele
obtido posteriormente ao trânsito em julgado da decisão, mas que já
existia à época da prolação do julgado rescindendo. Documento novo
não seria aquele constituído posteriormente, mas, sim, aquele obtido
posteriormente, tendo em vista que a sua existência era ignorada ou
de que a parte não pôde fazer uso. Trata-se de lição tradicional, que
carece, inclusive, de outras referências;
b) no conceito de documento novo incluem-se todas as modalidades de
documento, cabendo, em qualquer dessas hipóteses, a ação rescisória;
c) a ação rescisória, fundada em documento novo, somente deve ser
admitida se o autor da rescisória, quando parte na demanda originá-
ria, ignorava a existência do documento ou não pôde fazer uso dele
durante o trâmite do processo originário. Vale dizer que o documento
somente terá aptidão para permitir a rescisória se houver a compro-
vação da existência de circunstâncias que impediram a sua utilização
no processo originário. Enfim, a parte, para valer-se da ação rescisória
fundada em documento novo, deve demonstrar que não conhecia tal
documento durante o processo originário ou, se o conhecia, a ele não
teve acesso;
d) o documento novo, que irá render ensejo à propositura da ação resci-
sória, há de ser suficiente para modificar a conclusão a que se chegou
na decisão rescindenda. De fato, é preciso que o documento novo,
necessariamente e sozinho, gere um pronunciamento favorável ao
autor da ação rescisória. O pronunciamento a ser obtido, com o docu-
mento, deve ser favorável, ainda que parcial.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 195-219, jul./set. 2012
Morte da parte. Renúncia ao direito afirmado. Impossibilidade. Ausência de representação... 209
3.2.3.2 O caso
A certidão de óbito do Sr. W. é documento novo apto a, por si, descons-
tituir a decisão rescindenda.
Trata-se de documento que já existia ao tempo da decisão que homo-
logou a renúncia — isso porque o próprio inventário do falecido já se havia
iniciado.
Esse documento não pôde ser utilizado no processo originário. O espólio
do Sr. W. não o sucedeu no processo, que continuou tramitando como se ele
ainda estivesse vivo. Exatamente porque não fez parte do processo, o espó­lio
não pôde juntar a certidão de óbito. Pode-se afirmar, inclusive, que, se tivesse
feito parte do processo, sucedendo, como de direito, o Sr. W., jamais teria havido
uma decisão que homologou a renúncia de uma pessoa já falecida.
A certidão de óbito é, ainda, documento que, por si só, altera o conteúdo
da decisão rescindenda: a demonstração de que o “renunciante” já estava morto
ao tempo da apresentação da renúncia basta para que se perceba a impossibili-
dade de homologá-la.
Como se vê, estão preenchidos todos os pressupostos para aplicação do
inc. VII do art. 485 do CPC.
Também por esse motivo a decisão tem de ser rescindida.

3.2.4 Ação rescisória em razão de erro de fato


(art. 485, IX, CPC)
3.2.4.1 Generalidades
O inc. IX do art. 485 do CPC permite ação rescisória por erro de fato na
decisão rescindenda.
Há erro de fato quando a decisão considera existente fato que não exis-
tiu, ou considera inexistente fato que ocorreu (art. 485, §1º, CPC).
Mas não basta o erro de fato para que a decisão seja rescindida. Outros
pressupostos hão de ser observados. A doutrina e a jurisprudência identificam
três pressupostos para que ocorra a rescisão.
Eis os pressupostos:20 (i) que a decisão tenha se fundado nesse erro, ou
seja, que a conclusão do juiz não seria aquela se não houvesse incidido em
erro; (ii) que sobre o fato não tenha havido controvérsia (art. 485, §2º, CPC); e

“Segundo a doutrina, ao interpretar as disposições legais, são requisitos para que o julgamento
20

de mérito seja rescindido por erro de fato os seguintes: a) que este seja determinante para
a conclusão contida no julgamento do mérito; b) que não tenha havido controvérsia sob o
ponto de fato; c) que não tenha havido pronunciamento judicial sobre o aludido ponto de
fato” (YARSHELL. Ação rescisória: juízos rescindente e rescisório, p. 339).

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 195-219, jul./set. 2012
210 Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim

(iii) que sobre ele tampouco tenha havido pronunciamento judicial (art. 485,
§2º, CPC).
No presente caso, todos os pressupostos foram preenchidos.

3.2.4.2 O caso
A decisão rescindenda baseia-se no fato jurídico “renúncia ao direito sobre
o que se funda a ação”. A decisão limitou-se a homologar a renúncia, sem decidir
a respeito da sua existência: o órgão jurisdicional restringiu-se a homologar o ato
e extinguir o processo sem exame do mérito.
Trata-se de fato que não foi controvertido — a parte adversária não impug-
nou a renúncia apresentada em nome do Sr. W.
Sucede que não houve renúncia do Sr. W. Este fato jamais existiu. Afinal,
conforme já aludido, o Sr. W. já era falecido ao tempo em que a suposta renún-
cia foi apresentada.
Disso tudo se nota o preenchimento de todos os pressupostos para a
rescisão da sentença por erro de fato: a) a decisão se baseou exclusivamente
no fato renúncia; b) a renúncia foi fato incontroverso no processo (art. 485, §2º,
CPC); c) esse fato não existiu, embora tenha sido tomado como existente pelo
órgão jurisdicional (art. 485, §1º, CPC); d) não houve pronunciamento judicial
a respeito do fato, que se limitou a homologar a renúncia afirmada, com o pro-
pósito de extinguir o processo com resolução do mérito.
Assim, também por essa razão, cabe a rescisão da decisão que extinguiu
o processo, com resolução de mérito, homologando renúncia inexistente.

3.2.5 Ação rescisória em razão de violação a preceitos


normativos (art. 485, V, do CPC)
3.2.5.1 Generalidades
O art. 485, V, do CPC traz como hipótese de rescindibilidade violação a
“literal disposição de lei”. O significante “lei” deve ser entendido como norma
jurídica, gênero do qual são espécies regras e princípios.21 As normas violadas
podem ser de direito material ou de direito processual. Pode ser afirmada, por
exemplo, como causa de pedir da rescisória, violação à regra da congruência,22
como no caso em análise.
A norma jurídica não se confunde com o texto normativo. Norma é o resul­
tado da interpretação; o texto, o seu objeto. Nesse sentido, Riccardo Guastini

21
Cf.: ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos.
10. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. Passim.
22
No mesmo sentido: MOREIRA. Comentários ao Código de Processo Civil, p. 131.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 195-219, jul./set. 2012
Morte da parte. Renúncia ao direito afirmado. Impossibilidade. Ausência de representação... 211
define a interpretação jurídica como “a atribuição de sentido (ou significado) a
um texto normativo”.23 O discurso do intérprete seria construído na forma do
enunciado “T significa S”, em que T equivale ao texto normativo e S equivale ao
sentido que lhe é atribuído.24 Uma norma pode ser decorrente da interpretação
de vários dispositivos, assim como há norma sem texto (o princípio da segurança
jurídica, por exemplo),25 como texto sem norma (o preâmbulo da Constituição).26
Seguindo a sua linha, Humberto Ávila também afirma: “Normas não são
textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpre-
tação sistemática de textos normativos”.27 Na verdade, como bem observa o
autor, trata-se de uma reconstrução de sentido, do sentido semântico inicial
inerente ao texto, já que “há traços de significado mínimos incorporados ao
uso ordinário ou técnico da linguagem”.28 A norma seria, assim, uma constru-
ção a partir de algo; logo, seria uma reconstrução.29
É a violação à norma jurídica (e não ao seu dispositivo) que deve ser afir-
mada como causa de pedir na demanda rescisória. A exigência de indicação da
norma violada não significa que seja exigida a indicação do texto normativo
(número de artigo, parágrafo etc.). O que precisa estar claramente afirmado é
o conteúdo da norma supostamente violada.30
Cada afirmação de violação a uma norma jurídica distinta constitui uma
causa petendi da demanda rescisória. Nesta hipótese, se houver afirmação de vio-
lação a mais de uma norma, haverá mais de um fundamento fático da demanda
(mais de um elemento fático apreendido pela norma para irradiar o direito potes-
tativo), de forma que estarão sendo cumuladas várias ações rescisórias.31

3.2.5.2 O caso
No caso dos autos, a decisão rescindenda homologou renúncia a direito
afirmado eivada de sérios problemas, notadamente: (i) ausência de exteriori-
zação de vontade do Sr. W., então já falecido; (ii) ausência de titularidade da
situação jurídica renunciada, que já era de titularidade do espólio quando a

23
Das fontes às normas. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 23-24.
24
GUASTINI. Das fontes às normas, p. 24.
25
ÁVILA. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 30.
26
ÁVILA. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 30.
27
ÁVILA. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 30.
28
ÁVILA. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 32.
29
ÁVILA. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 33.
30
Nas palavras de José Carlos Barbosa Moreira: “O autor precisa indicar, na inicial, a norma a seu ver
infringida, embora se deva prescindir, desde que claramente identificável o conteúdo, da referência
a número de artigo ou de parágrafo […]” (Comentários ao Código de Processo Civil, p. 132).
31
No mesmo sentido: MOREIRA. Comentários ao Código de Processo Civil, p. 132.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 195-219, jul./set. 2012
212 Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim

renúncia teria sido, supostamente, praticada; e (iii) ausência de poderes do


advogado para a prática do ato, no caso de se entender que a renúncia teria
sido realizada pelo representante em nome do espólio.
A decisão que homologou a renúncia deve ser desconstituída também
porque violou normas do nosso sistema jurídico.
a) É pressuposto fático do negócio jurídico da renúncia, como visto, a exte­
riorização de vontade do renunciante. Os negócios jurídicos — como
atos jurídicos em sentido amplo — têm como elemento nuclear de seu
suporte fático a exteriorização da vontade. Se não há exteriorização da
vontade apreendida pelo direito objetivo, não há negócio jurídico.
No caso em análise, não se pode considerar existente a exteriorização
de vontade do Sr. W., então já falecido. Dessa forma, não existiu a renúncia do
Sr. W. ao direito afirmado. O seu advogado não mais poderia estar atuando em
seu nome, porque o Sr. W. não mais era parte no processo e porque o negócio
jurídico de representação já estava extinto desde o seu falecimento. A decisão
homologatória extinguiu o processo com resolução do mérito porque consi-
derou existente renúncia inexistente.
Violou, assim, a norma decorrente do art. 269, V, do CPC. Porque era ine-
xistente a renúncia, não se verificou a configuração do suporte fático da norma
e, assim, não ocorreu a sua incidência. Não era cabível, portanto, a resolução
do mérito com base neste motivo.
b) Além disso, a situação jurídica renunciada não era mais de titularidade do
Sr. W., pela óbvia razão de ele já ser falecido. Já se havia transferido a sua
titularidade ao espólio, que ainda não era parte no processo. Renúncia de
situação jurídica alheia é ineficaz com relação ao real titular da situação
jurídica. A decisão homologatória não considerou que a situação renun-
ciada não mais pertencia ao Sr. W. e que tal ato não poderia ser oposto ao
espólio, que já deveria ter sido habilitado no processo.
Violou-se a norma segundo a qual a renúncia de situação jurídica de outrem
é ineficaz com relação ao seu real titular. Cuida-se de norma que decorre da inter-
pretação sistemática e teleológica de diversos dispositivos do nosso ordenamento,
como o art. 1.268 do Código Civil, segundo o qual a tradição por quem não seja
dono não transfere a propriedade da coisa.
c) Na hipótese de se considerar que o advogado atuou como represen-
tante do espólio, ele não tinha poderes para tanto. O negócio jurídico
de representação anteriormente celebrado com o Sr. W. extinguiu-se
com a sua morte. Era necessária a celebração de novo negócio jurídico
de representação por meio do qual o espólio outorgasse os poderes

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 195-219, jul./set. 2012
Morte da parte. Renúncia ao direito afirmado. Impossibilidade. Ausência de representação... 213
ao advogado para a defesa de seus interesses. O ato de renunciar,
inclusive, exige poder especial, que deve ser expressamente outorgado.
A decisão que homologou a renúncia violou a norma decorrente do
art. 37 do CPC, segundo a qual, sem instrumento de representação, o advo-
gado não pode representar a parte em juízo, e a norma decorrente do art. 38
do CPC, que exige poder especial do advogado para, em nome do represen-
tado, renunciar ao direito afirmado na demanda.
Ato praticado por advogados sem poderes é ato ineficaz com relação
ao representado, que pode, entretanto, ser ratificado. É o que se depreende
do art. 662 do Código Civil. Não houve ratificação no caso em análise e, nada
obstante, a renúncia foi homologada. A renúncia é ineficaz com relação ao
espó­lio. A decisão que a homologou, por sua vez, existe e está produzindo os
seus efeitos até que seja desconstituída. A demanda rescisória é meio idôneo
para tanto, considerando, inclusive, que a decisão rescindenda violou a norma
decorrente do art. 662 do Código Civil.
d) A decisão homologatória violou a regra da congruência, porque regu-
lou a situação de quem não era (ainda) parte no processo, o espólio.
É requisito de validade de toda e qualquer decisão judicial a sua con-
formação aos limites objetivos e subjetivos da demanda. Isso porque, além de
revestir-se, internamente, dos atributos da certeza, liquidez e exigibilidade, a
decisão precisa ser congruente com os elementos da demanda (sujeitos, causa
de pedir e pedido).
Vale dizer, o pronunciamento decisório não apenas se deve mostrar con-
gruente em si mesmo, como deve estar correlacionado aos limites da demanda
proposta, delineados, objetivamente, pela causa petendi e pelo pedido e, sub-
jetivamente, pelos sujeitos envolvidos no processo. Esta é a chamada regra da
congruência.
A necessidade de que o ato decisório fique adstrito aos limites objetivos
e subjetivos da demanda tem fundamento no princípio de que o exercício da
jurisdição é condicionado, em regra, à provocação do legitimado para defen-
der direito próprio ou alheio (art. 2º, CPC), razão pela qual a prestação jurisdi-
cional deve ser correlata ao conteúdo da demanda. Ademais, essa exigência
tem raízes nas garantias do devido processo legal, do contraditório e da ampla
defesa (art. 5º, LIV e LV, da CF), já que, não raro, a decisão incongruente termina
por afastar-se da exigência de diálogo processual.
Amparado nessas premissas, o legislador pátrio, dando substância à regra da
congruência, estabeleceu expressamente os contornos da atividade a ser desem-
penhada pelo juiz, que não pode julgar fora, além ou aquém do que foi submetido

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 195-219, jul./set. 2012
214 Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim

à sua apreciação, sob pena de sua decisão ser extra petita, ultra petita ou citra petita,
respectivamente. É o que se depreende dos arts. 128 e 460 do CPC.
Esses dispositivos delimitam objetivamente a atividade do magistrado,
que (i) deve pronunciar-se sobre todos os pleitos realizados no processo, não
podendo ir além deles; e (ii) deve pautar-se, em regra, nos fundamentos sus-
citados pelo demandante (causa de pedir remota — fato jurídico — e causa
de pedir próxima — relação jurídica dele decorrente) e nos fundamentos de
defesa. Tem-se aí a faceta objetiva da regra da congruência.
Mas não é só. A decisão precisa ser também subjetivamente congruente:
deve estar correlacionada com os sujeitos parciais da relação jurídica processual,
somente produzindo, em regra, efeitos com relação a estes, nos termos, inclusive,
do art. 472 do CPC. Em outras palavras, a decisão será subjetivamente incon-
gruente se dispõe sobre situação jurídica de sujeito que não participou do pro-
cesso, já que ninguém pode ser atingido em sua esfera jurídica sem um devido
processo legal, no qual sejam garantidos o contraditório e a ampla defesa.
De um modo geral, vige no nosso sistema a ideia de que é extra petita a
decisão judicial que, alternativamente: (i) aprecia pedido diverso daquele for-
mulado na demanda; (ii) aprecia fundamentos diversos daqueles invocados
pelas partes; (iii) disciplina situação jurídica apenas de sujeito que não é parte
no processo.
No caso em análise, a decisão homologatória é extra petita, pois atingiu
a esfera jurídica — e apenas esta — de sujeito estranho ao processo. Isso por-
que, com a morte do Sr. W., deveria ter sido o espólio habilitado nos autos para
que se operasse a sucessão processual. A sucessão processual não ocorreu. De
outra parte, desde o momento da morte do Sr. W., operou-se a transmissão das
situações jurídicas materiais por ele titularizadas. A sucessão do direito mate-
rial afirmado na demanda ocorreu logo quando da morte do Sr. W.
Ao homologar a renúncia de situação jurídica titularizada pelo espólio,
que não era ainda parte no processo, a decisão extrapolou os limites subjetivos
aos quais o órgão jurisdicional estava adstrito. Violou, assim, a regra da con-
gruência subjetiva, requisito de validade de toda e qualquer decisão judicial,
inclusive da decisão que homologa renúncia de situação jurídica de outrem. A
decisão é extra petita porque (i) não regulou a situação dos sujeitos parciais que
antes figuravam na relação processual (pela óbvia razão de que não poderia a
decisão atingir esfera jurídica de pessoa já falecida); e (ii) atingiu apenas a órbita
jurídica de terceiro, o espólio.
Há, como se vê, violação a diversas normas jurídicas.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 195-219, jul./set. 2012
Morte da parte. Renúncia ao direito afirmado. Impossibilidade. Ausência de representação... 215
3.2.6 Ação rescisória fundada em fundamento para
“invalidação” da renúncia ao direito afirmado
(art. 485, VIII, do CPC)
Nos termos do inc. VIII do art. 485 do CPC, há rescindibilidade “quando
houver fundamento para invalidar confissão, desistência ou transação, em que
se baseou a sentença”.
A expressão “desistência” deve ser compreendida como “renúncia ao direito
afirmado”. É pressuposto do direito de rescindir a decisão judicial a coisa julgada
material. A desistência, em nosso direito positivo, é causa de extinção do processo
sem exame do mérito; não se forma, assim, a coisa julgada material. Onde se lê
“desistência”, deve-se ler “renúncia”.32
De outra parte, o significante “invalidação” não pode ser compreendido
restritivamente.
Como explica José Carlos Barbosa Moreira, tal disposição foi decorrente
da transposição que fizemos de regra existente no Código Português de 1939;
a sua interpretação, portanto, deve levar em contar as suas razões históricas.
Segundo o art. 771, 4º, do Código Português, era cabível a “revisão” da sentença
transitada em julgado quando houvesse fundamento para “revogar”, confissão,
desistência ou transação em que se baseara a sentença. Tais atos eram “revo-
gáveis” por “erro de fato, por dolo, coação ou simulação” (art. 306). Nos termos
do art. 771, 5º, do Código Português, admitia-se também a “revisão” em “sendo
nulo qualquer desses atos ‘por irregularidade de mandato ou insuficiência de
poderes do mandatário’”.33
Dessa forma, por suas próprias razões históricas, o significante “invali-
dação” em nosso dispositivo deve compreender também a hipótese de o ato
de disposição ter sido praticado por representante sem poderes (que, tecni-
camente, é questão atinente ao plano da eficácia do ato, e não da validade). É
justamente o caso da decisão rescindenda, que homologou renúncia praticada
por representante sem poderes para atuar em nome do espólio, titular da situa­
ção jurídica renunciada.
Mas não só. A interpretação do texto deve atender à finalidade que lhe é
subjacente. No caso, em se tratando de renúncia ao direito afirmado, permite-se
a desconstituição da decisão que a considerou homóloga ao julgamento de

32
No mesmo sentido: MOREIRA. Comentários ao Código de Processo Civil, p. 143. Em sentido um
tanto diverso, mas ainda assim aplicável ao caso, Pontes de Miranda posiciona-se no sentindo
de que a expressão deve compreender tanto a desistência quanto a renúncia (Tratado da
ação rescisória, p. 337-338).
33
No mesmo sentido: MOREIRA. Comentários ao Código de Processo Civil, p. 141-142.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 195-219, jul./set. 2012
216 Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim

improcedência do pedido, em razão dos graves problemas que lhe são inerentes,
ainda que se refiram ao plano da existência ou da eficácia.
Como visto, a decisão de homologação é pronunciamento judicial por
meio do qual se considera determinado ato como homólogo de um modelo
abstrato tido em conta, para lhe atribuir os seus efeitos. É o que ocorre com a
decisão homologatória de renúncia ao direito afirmado, para que se deixe sob
o manto da coisa julgada a certificação de inexistência de direito.
A homologação é meio de processualizar ato jurídico material, que ocorre
em dois momentos: o momento de sua inserção no processo seguido do
momento da homologação. A decisão de homologação é ato jurídico processual,
que reveste o ato material da transparência da processualidade.34 É continente,
que tem como conteúdo o ato homologado. É a decisão homologatória (conti-
nente) que é rescindida.
No caso em análise, o ato material conteúdo foi a renúncia ao direito
afirmado; o ato processual continente, a decisão homologatória. A renúncia,
como visto, está eivada de problemas, já que (i) não poderia ser praticada pelo
Sr. W., que já era falecido e não mais era titular do direito renunciado e (ii) o
advogado que a assinou não tinha poderes para atuar em nome do espólio ou
de qualquer dos herdeiros.
Não interessa saber se a renúncia (o negócio jurídico material isolada-
mente considerado) foi existente/inexistente, válida/defeituosa, eficaz/ineficaz.
Isso porque ela foi tida como existente, válida e eficaz pela decisão homologa-
tória, seu elemento transparente de processualidade, para que restasse certi-
ficada a inexistência do direito renunciado. A decisão homologatória existe e
está produzindo efeitos, até que se proceda à sua desconstituição.
A processualização da renúncia (por meio da sua homologação) — pelos
problemas a ela inerentes — está eivada de vícios. O ato jurídico global é defei­
tuoso e, por isso, pode ser desconstituído em sua integralidade por meio de
demanda rescisória tendo como fundamento a incidência do art. 485, VIII, do
CPC. Nesse caso, a desconstituição do ato da parte será decorrente da des-
constituição da decisão rescindenda; mediata, pois. Nas palavras de José
Carlos Barbosa Moreira:

Seria incorreto supor que, rescindida a decisão, subsistisse o ato em


que ela se baseara. Consente a lei que o ataque vise diretamente a
sentença, dispensando a parte de promover, antes, a invalidação do

PONTES DE MIRANDA. Tratado da ação rescisória, p. 411-412.


34

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Morte da parte. Renúncia ao direito afirmado. Impossibilidade. Ausência de representação... 217
ato que lhe servira de suporte; mas deve entender-se que, vingando
a rescisória, caem ambos, o ato-base (confissão, renúncia, reconheci-
mento do pedido, transação) junto com a decisão. Ocorre aí, substan-
cialmente, verdadeira cumulação implícita de pedidos: o de invalidação
do ato-base e o de rescisão da sentença.35

A renúncia não poderia ter sido considerada homóloga ao modelo


abstrato de improcedência por conta da série de problemas que a maculam.
Porque há problemas no conteúdo, o continente não pode subsistir. No caso
concreto, a expressão “quando houver fundamento para invalidar” deve ser
inter­pretada para abranger todos os graves problemas que maculam a renún-
cia homologada, ainda que não se trate, tecnicamente, de problemas concer-
nentes ao plano da validade do ato material.
Também por esse fundamento deve a decisão ser rescindida.

3.3 Competência
A competência para o julgamento desta ação rescisória é do Tribunal
Regional Federal.
Aplica-se, no caso, a regra do art. 108, I, “b”, da Constituição Federal, que
expressamente comina ao TRF a competência para julgar a ação rescisória de
seus julgados.
A decisão homologatória da renúncia, proferida pela Desembargadora
relatora, é decisão do TRF — e, nesta qualidade, atrai para o Tribunal a compe-
tência para o processo em que se pretenda a sua rescisão.

3.4 Sobre o rejulgamento – Iudicium rescissorium


Rescindida a decisão que extinguiu o processo com resolução de mérito,
em razão da suposta renúncia do autor, cumpre ao tribunal rejulgar a causa.
O que terá de ser rejulgado é a apelação interposta contra a sentença.
Para que se possa compreender o tema, algumas considerações se impõem.
A sentença foi proferida contra parte que já estava morta, sem que tenha
havido prévia sucessão pelo espólio. Assim, foi proferida, rigorosamente, contra
alguém (espólio), que não fazia parte do processo.
Esta sentença é nula — porque proferida contra alguém que não era parte.
Mas houve apelação, interposta em nome do falecido, mas que, em ver-
dade, favorecia o espólio. A apelação foi, portanto, ato processual praticado

MOREIRA. Comentários ao Código de Processo Civil, p. 146.


35

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 195-219, jul./set. 2012
218 Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim

em favor do espólio, por alguém que se afirmava representante, sem, porém,


apresentar a procuração — não há procuração outorgada pelo espólio para o
então advogado do Sr. W.
O caso, então, se subsome à hipótese prevista no art. 662 do Código
Civil: trata-se de ato ineficaz para o suposto representado — o espólio.36 “A falta
de poderes não determina nulidade, nem existência”.37 Trata-se de ato cuja eficá-
cia em relação ao suposto representado submete-se a uma condição legal sus-
pensiva: a ratificação.
É regra que se extrai de expresso texto de lei: “Os atos praticados por
quem não tenha mandato, ou o tenha sem poderes suficientes, são ineficazes
em relação àquele em cujo nome foram praticados, salvo se este os ratificar”.
Como se vê, trata-se de ato ineficaz, mas que pode ser ratificado.
A propositura desta ação rescisória, com a formulação do pedido de rejul-
gamento, é a ratificação, pelo espólio, da apelação interposta — que passa, então,
a produzir efeitos em relação a ele, espólio. A ratificação da apelação — conduta
permitida pela norma do art. 662 do Código Civil, já exposta —, sana o defeito da
sentença, que fora proferida contra pessoa morta.
Rescindida a decisão, enfim, renasce a apelação, pendente ao tempo
da homologação, que, por ter sido ratificada, tem de ser rejulgada por este
Tribunal, no iudicium rescissorium desta ação rescisória.

4 Conclusão
Por tudo quanto foi exposto, conclui-se que:
(i) a renúncia ao direito afirmado está eivada de problemas, já que (i)
não poderia ser praticada pelo Sr. W., que já era falecido e não mais
era titular do direito renunciado e (ii) o advogado que a assinou não

36
Corretamente identificando a questão como atinente ao plano da eficácia: DEMARCHI,
Juliana. Ato processual juridicamente inexistente: mecanismos predispostos pelo sistema
para a declaração da inexistência jurídica. Revista Dialética de Direito Processual, São Paulo, n. 13,
p. 52, 2004; TESHEINER, José Maria. Pressupostos processuais e nulidades no processo civil.
São Paulo: Saraiva, 2000. p. 284; ASSIS, Araken de. Suprimento da incapacidade processual
e da incapacidade postulatória. In: ASSIS, Araken de Doutrina e prática do processo civil
contemporâneo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 144; CAHALI, Yussef Said. Honorários
advocatícios. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 220; GOUVEIA FILHO, Roberto P.
Campos. As capacidades processuais sob a égide da capacidade jurídica e como “pressupostos
processuais”. Monografia (Curso de Direito) – Universidade Católica de Pernambuco, Recife,
2006. f. 121-126; MITIDIERO, Daniel. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo:
Memória Jurídica, 2004. t. I, p. 241-242.
37
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. 3. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1983. t. IV, p. 27.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 195-219, jul./set. 2012
Morte da parte. Renúncia ao direito afirmado. Impossibilidade. Ausência de representação... 219
tinha poderes para atuar em nome do espólio ou de qualquer dos
herdeiros;
(ii) a decisão homologatória da renúncia existe e, enquanto não for des-
constituída, é eficaz. Dela decorreu a certificação da inexistência de um
direito, idônea à formação da coisa julgada material prejudicial à parte;
(iii) houve coisa julgada formal acerca da decisão homologatória de
mérito; formou-se a coisa julgada material, passível de ser impugnada
por meio da ação rescisória, desde que se afirme incidência de norma
decorrente de, ao menos, um dos incisos constantes no art. 485 do CPC;
(iv) a situação sob consulta é tão absurda que várias são as hipóteses de
rescindibilidade configuradas no caso concreto: (a) a decisão homo­
logatória está fundada em prova falsa (art. 485, VI, do CPC) e (b) inci­
diu em erro de fato (art. 485, IX, do CPC); (c) há documento novo
idôneo a, por si, alterar o conteúdo da decisão rescindenda (art. 485,
VII, do CPC); (d) houve violação a normas jurídicas de direito material
e processual, inclusive da regra da congruência subjetiva, já que a
decisão regulou situação de sujeito que não era parte no processo
(art. 485, V, do CPC); (e) trata-se de decisão fundada em renúncia macu-
lada por sérios problemas (art. 485, VIII, do CPC);
(v) a competência para o julgamento desta ação rescisória é do Tribunal
Regional Federal da 3ª Região;
(vi) rescindida a decisão, enfim, renasce a apelação, pendente ao tempo
da homologação, que, por ter sido ratificada, tem de ser rejulgada
por este Tribunal, no iudicium rescissorium desta ação rescisória.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de


Normas Técnicas (ABNT):

DIDIER JR., Fredie; BOMFIM, Daniela. Morte da parte. Renúncia ao direito afirmado. Impossibilidade.
Ausência de representação. Ato praticado por advogado sem poderes. Decisão homologatória.
Ação rescisória. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 20, n. 79,
p. 195-219, jul./set. 2012. Parecer.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 195-219, jul./set. 2012
NOTAS E COMENTÁRIOS
Comentários sobre o parecer
“Os poderes do Ministério Público
na Ação Civil Pública” proferido por
José Manoel de Arruda Alvim Netto1
Gisele Mazzoni Welsch
Advogada. Doutoranda em Direito (Teoria Geral
da Jurisdição e Processo) pela PUCRS. Mestre em
Direito (Teoria Geral da Jurisdição e Processo)
pela PUCRS. Especialista em Direito Público pela
PUCRS. Professora dos cursos de graduação e pós-
graduação lato sensu da Universidade FEEVALE.
Professora dos Cursos de Especialização em Direito
Processual Civil da PUCRS e do IMED-CETRA.

Palavras-chave: Desistência da Ação Civil Pública. Ministério Público do


Estado do Rio de Janeiro. Poder Judiciário. Substituto processual.

Sumário: 1 Breve resumo do parecer – 2 Fundamentos jurídicos do


parecer – 3 Breves comentários à fundamentação do parecer – Referências

1 Breve resumo do parecer


O parecer analisa a possibilidade de o Ministério Público desistir da Ação
Civil Pública e, paralelamente, sustenta a possibilidade de controle da desis-
tência pelo Poder Judiciário.
Trata-se de parecer exarado em defesa da possibilidade do Ministério
Público do Estado do Rio de Janeiro desistir de Ação Civil Pública ajuizada com
o objetivo de obstar a execução de obras das empresas BT Imobiliária S.A. e CH
S.A. Engenharia e Construções, sob o fundamento de que tais obras, se exe-
cutadas, comprometeriam complexo ecológico, dele fazendo parte lagoas e
monumento natural, este último tombado pelo Patrimônio Estadual (INEPAC).
Ocorre que as referidas empresas requereram e obtiveram da
Administração Pública a autorização para construir edifícios de 18 pavimen-
tos, permissão essa que foi posteriormente anulada por governo sucessor. Em
razão disso, as empresas ingressaram na via judicial por meio de mandado de

Soluções Práticas – Arruda Alvim, v. 1, p. 525, ago. 2011. DTR\2012\173.


1

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 223-230, jul./set. 2012
224 Gisele Mazzoni Welsch

segurança contra ofensa a direito líquido e certo e Ação Ordinária de Anulação


de Ato Administrativo, com o objetivo de restabelecer a decisão anterior con-
cessiva das autorizações para construir. Tais ações foram julgadas procedentes,
confirmadas em grau de recursos, havendo, ambas as sentenças, transitado
em julgado.
A despeito desse contexto, o Ministério Público do Estado do Rio de
Janeiro ajuizou Ação Civil Pública e o objeto do parecer consiste na análise da
possibilidade de desistência da ação pelo órgão ministerial e a quem caberia o
controle dessa atividade.

2 Fundamentos jurídicos do parecer


Em um primeiro momento se trata dos poderes e atuação do Ministério
Público na Ação Civil Pública e, assim, se traz à baila a discussão sobre a legi­
timação ativa do órgão do parquet, especialmente no que tange à função de
substituição processual. O parecerista esboça entendimento no sentido de
classificar o Ministério Público como substituto processual com legitimação
extraordinária ativa e, nessa condição, gozando dos mesmos direitos e pode-
res das partes privadas, em todos os graus de jurisdição, com o único limite da
impossibilidade de praticar atos de disposição do direito (juramento, confis-
são, etc.). Porém, no que tange aos atos de disposição de direito processual,
como a desistência da ação, o Ministério Público estaria investido de poderes
para agir livremente.
Nessa perspectiva, prossegue o parecer no sentido de consentir com a
possibilidade de desistência da Ação Civil Pública ainda com a argumentação
de que os princípios que regem a Ação Penal Pública não podem ser aplica-
dos à Ação Civil Pública, em função da distinção de tratamento entre uma e
outra, especialmente pela existência de norma expressa (art. 42 do Código de
Processo Penal) vedando a desistência da Ação Penal Pública.2 Por outro lado,
a legislação na esfera cível silencia nesse sentido. Assim, a hermenêutica possí-
vel seria a de que, por não ser vedada em lei, a desistência da Ação Civil Pública
estaria permitida.
Outro argumento apresentado, em defesa da desistência da Ação Civil
Pública, refere-se à ausência de risco de concentração de poder do Ministério
Público, uma vez que há vários legitimados concorrentes, de acordo com o art. 5º
da Lei nº 7.347/1985, o que não ocorre com a Ação Penal Pública, monopólio

2
No sentido de entender pela impossibilidade de desistência infundada pelo Ministério Público,
por analogia com a ação penal pública: ABELHA. Ação Civil Pública e meio ambiente, p. 80.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 223-230, jul./set. 2012
Comentários sobre o parecer “Os poderes do Ministério Público na Ação Civil Pública”... 225
conferido ao órgão ministerial. Dessa forma, estaria o interesse público protegido
das hipóteses de conluio ou má gestão processual.
Ademais, a possibilidade de desistência da Ação Civil Pública estaria
implí­cita no sistema da Lei nº 7.347/1985 quando, em seu art. 5º, §3º,3 determina
que o Ministério Público deve assumir a titularidade quando a associação
autora desistir da ação. Em que pese a legislação preveja apenas a desistência
da associação, a interpretação mais coerente apontaria para a possibilidade de
desistência por qualquer dos colegitimados, inclusive pelo Ministério Público.4
Por fim, é aduzida fundamentação no sentido de necessidade de pon-
deração de princípios e interesses, pois, no caso em concreto, a desistência
da ação significaria favorecimento do interesse público, no sentido de conferir
ao processo efetividade e economia processual, já que a existência de direito
adqui­rido e coisa julgada tornariam a ação prejudicada e eivada de vícios.

3
Art. 5º Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar: (Redação dada pela
Lei nº 11.448, de 2007)
I - o Ministério Público; (Redação dada pela Lei nº 11.448, de 2007)
II - a Defensoria Pública; (Redação dada pela Lei nº 11.448, de 2007)
III - a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; (Incluído pela Lei nº 11.448, de 2007).
IV - a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista; (Incluído pela
Lei nº 11.448, de 2007)
V - a associação que, concomitantemente: (Incluído pela Lei nº 11.448, de 2007)
a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil; (Incluído pela Lei nº 11.448,
de 2007)
b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor,
à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turís-
tico e paisagístico. (Incluído pela Lei nº 11.448, de 2007)
§1º O Ministério Público, se não intervier no processo como parte, atuará obrigatoriamente
como fiscal da lei.
§2º Fica facultado ao Poder Público e a outras associações legitimadas nos termos deste artigo
habilitar-se como litisconsortes de qualquer das partes.
§3º Em caso de desistência infundada ou abandono da ação por associação legitimada, o Ministério
Público ou outro legitimado assumirá a titularidade ativa. (Redação dada pela Lei nº 8.078, de 1990)
§4º O requisito da pré-constituição poderá ser dispensado pelo juiz, quando haja manifesto
interesse social evidenciado pela dimensão ou característica do dano, ou pela relevância do
bem jurídico a ser protegido. (Incluído pela Lei nº 8.078, de 11.09.1990)
§5º Admitir-se-á o litisconsórcio facultativo entre os Ministérios Públicos da União, do Distrito
Federal e dos Estados na defesa dos interesses e direitos de que cuida esta lei. (Incluído pela
Lei nº 8.078, de 11.09.1990) (Vide Mensagem de veto) (Vide REsp 222582/MG - STJ)
§6º Os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajusta-
mento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título
executivo extrajudicial. (Incluído pela Lei nº 8.078, de 11.09.1990) (Vide Mensagem de veto)
(Vide REsp 222582/MG - STJ).
4
Sobre tal questão: “A leitura que deve ser feita é a de que ‘se qualquer co-legitimado ativo
(e não apenas a associação civil) desistir do pedido ou abandonar a ação civil pública ou
coletiva’” (MAZZILLI. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor,
patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses, p. 325).

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 223-230, jul./set. 2012
226 Gisele Mazzoni Welsch

Na hipótese da viabilidade da Ação Civil Pública, defende-se a necessidade


de fundamentação pela disposição da atividade processual e controle pelo Poder
Judiciário, já que o controle administrativo (art. 9º da Lei nº 7.347/1985) já estaria
ultrapassado e oportunizaria eventual remessa dos autos ao Procurador-Geral de
Justiça para a manutenção da desistência ou designação de outro membro do
parquet para prosseguir com a demanda.
Resumidamente, o parecer entende pela possibilidade da desistência da
Ação Civil Pública pelo Ministério Público ou outro colegitimado, de forma fun-
damentada e mediante controle judicial, pela impossibilidade de controle na via
administrativa. Tal desistência estaria fundamentada pela existência de direito
adquirido e coisa julgada, previsões constitucionais, em favor das empre­sas rés
e consequente necessidade de observação e proteção do inte­resse público no
que concerne à efetividade e economia processual, bem como ao respeito à
boa-fé processual, que não recomendam o ajuizamento de demanda prejudi-
cada por vícios.

3 Breves comentários à fundamentação do parecer


3.1 Legitimação ativa do Ministério Público
Muitas são as controvérsias que envolvem a questão da legitimidade ativa
do Ministério Público. Parte da doutrina afirma existir substituição processual e,
assim, legitimação extraordinária.5 Para outros, há legitimação autônoma,6 ordi­
nária e de exercício de função pública.7 Há, ainda, entendimento de legitima-
ção anômala ou de tipo misto, onde os legitimados ativos defendem interesses
individuais de cada um e de todos os integrantes do grupo lesado, bem como
interesse próprio à reintegração do direito violado.8
Outra questão refere-se à extensão dos poderes da legitimação extraor-
dinária, pois a vedação da disposição do conteúdo material do direito do subs-
tituído poderia ser afetada pela disposição processual de desistência da ação,
já que o direito material restaria prejudicado por não estar sendo perseguido
e tutelado em juízo.

5
“Há legitimação extraordinária autônoma quando o legitimado extraordinário está autorizado
a conduzir o processo independentemente da participação do titular do direito litigioso”
(MOREIRA. Apontamentos para um estudo sistemático da legitimação extraordinária. Revista
dos Tribunais, p. 10).
6
NERY JÚNIOR; NERY. Código de Processo Civil comentado e legislação processual civil extrava­
gante em vigor, p. 1339.
7
TESHEINER. O Ministério Público não é nunca um substituto processual.
8
MAZZILLI. Aspectos polêmicos da Ação Civil Pública. Revista Magister, p. 89.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 223-230, jul./set. 2012
Comentários sobre o parecer “Os poderes do Ministério Público na Ação Civil Pública”... 227
Pode-se dizer que o Brasil possui uma legitimação plúrima e mista; plúrima
por serem vários os entes legitimados, mista por serem legitimados entes da socie-
dade civil e do Estado.9 Além disso, ao contrário do que ocorre no sistema norte-­
americano, os legitimados são indicados na lei, não cabendo ao juiz, pelo menos
em princípio, a verificação do “representante adequado”.10
Interessante critério de classificação da legitimidade do Ministério
Público é desenvolvido por José Maria Tesheiner, o qual afirma que o órgão
ministerial não é um substituto processual, mesmo nas ações relativas a direi-
tos individuais, pois sua função institucional é a de concretização do Direito
objetivo, desempenhando verdadeira função pública, sem implicar tutela direta
de direitos subjetivos.11

3.2 Inviabilidade da desistência da ação


Arruda Alvim, atrelando-se ao caso concreto apresentado, exarou parecer
no sentido da possibilidade da desistência da Ação Civil Pública, sob a alegação
da não aplicação dos princípios da Ação Penal Pública e ausência de vedação
expressa de desistência em sede de Ação Civil Pública. Contudo, Teori Zavascki se
posicionou firmemente no sentido de que, “relativamente ao Ministério Público,
não é aceitável o argumento de que, não sendo a desistência vedada, estaria
permitida. Se a regra vale para o particular, o mesmo não se dá em relação ao
órgão ministerial que, como órgão do estado que é, obedece à regra básica do
direito público: os agentes do Estado somente podem praticar atos para os quais
estejam autorizados por normal legal válida”.12
Ainda é importante referir que Arruda Alvim já defendera a indisponibi-
lidade do Ministério Público na Ação Civil Pública:

Diante do princípio da indisponibilidade que informa a ação civil pública,


o Ministério Público não se encontra apenas frente a um dever indecliná-
vel de propor a ação, mas também do imperativo de prossegui-la, postu-
lando pelo prevalecimento da pretensão que deduziu [...].13

Contudo, a regra da não admissão da desistência da Ação Civil Pública não


pode ser absoluta, uma vez que, na hipótese da desistência tutelar de forma mais

9
DIDIER JR.; ZANETI JR. Curso de direito processual civil, v. 4, p. 207.
10
MATTE. Ação Civil Pública: tutela de interesses ou direitos difusos e coletivos stricto sensu. In:
TESHEINER. Processos coletivos, p. 119.
11
TESHEINER. O Ministério Público não é nunca um substituto processual.
12
ZAVASCKI. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos, p. 151.
13
ALVIM. Código de Processo Civil comentado, v. 3, p. 382-383.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 223-230, jul./set. 2012
228 Gisele Mazzoni Welsch

adequada interesses públicos, por exemplo, ou em casos em que a continuidade


da ação acarrete a configuração de vícios formais e lesão a direitos (hipótese pre-
sente no caso concreto pela lesão ao direito adquirido e à coisa julgada, vícios que
comprometem a regularidade do processo), a desistência configuraria a melhor
alternativa.
É nesse sentido o entendimento de Teori Zavascki:

Se o que se visa, com o impedimento da desistência, é resguardar os


interesses tutelados, pode, excepcionalmente, ocorrer situação em
que tais interesses estarão melhor atendidos exatamente pela provi-
dência oposta, ou seja, pela desistência. Isso será plausível, por exem-
plo, em hipóteses em que a ação contenha evidentes vícios formais.
Em casos tais, a desistência ensejará a propositura de nova demanda,
sem os defeitos da anterior. Esse caminho, nas circunstâncias, será
mais adequado do que levar o processo adiante, até a sua inevitável
extinção sem julgamento de mérito.14

Nesses casos, a desistência será fundamentada e seguindo a regra da


proporcionalidade por meio da ponderação de interesses, na busca da preser-
vação de direitos e regularidade da ordem jurídica.
Sobre a função do princípio da proporcionalidade como critério para
solução de conflitos de direitos fundamentais, através de juízos comparativos
de ponderação dos interesses envolvidos no caso concreto, discorre Paulo
Bonavides:

Uma das aplicações mais proveitosas contidas potencialmente no prin-


cípio da proporcionalidade é aquela que o faz instrumento de interpre-
tação toda vez que ocorre antagonismo entre direitos fundamentais e
se busca daí solução conciliatória, para a qual o princípio é indubitavel-
mente apropriado. As cortes constitucionais europeias, nomeadamente
o Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia, já fizeram uso frequente
do princípio para diminuir ou eliminar a colisão de tais direitos.15

Entretanto, tal possibilidade deve ser vista de forma excepcional e em


hipóteses em que, notadamente, o interesse público é mais amplamente tute-
lado com a desistência, considerando o conflito entre direito adquirido e coisa

14
ZAVASCKI. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos, p. 151.
15
BONAVIDES. Curso de direito constitucional, p. 386.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 223-230, jul./set. 2012
Comentários sobre o parecer “Os poderes do Ministério Público na Ação Civil Pública”... 229
julgada (representantes do direito fundamental à segurança jurídica — art. 5º,
XXXVI da CF/1988) e tutela do meio ambiente e patrimônio público (direitos
fundamentais igualmente tutelados pela Constituição Federal). Nessa medida
se faz necessário o controle judicial, evitando a concentração de poder no órgão
ministerial e aplicando a cláusula do devido processo legal à tutela jurisdicional
coletiva.16

Legislação e dispositivos legais utilizados


Constituição Federal de 1988: art. 5º, XXXV, XXXVI; 103, I a IX; 129, I; 267, VIII
– Constituição de 1969: art. 153, §3º – Código de Processo Civil (LGL\1973\5):
arts. 6º; 16 et seq.; 81; 82, III – Código de Processo Penal (LGL\1941\8): arts. 28;
42; 576 – Decreto-Lei nº 42/1969 – Decreto nº 1.318/1977 – Lei nº 7.347/1985:
arts. 5º; 9º, §1º; 19 – Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal: art. 169, §1º,
com a redação dada pela Emenda Regimental nº 2/1985.

Referências
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ALVIM, Arruda. Código de Processo Civil comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976. v. 3.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 9. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2000.
DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de direito processual civil. 7. ed. rev. ampl. e atual.
Salvador: JusPodivm, 2012. v. 4, Processo coletivo.
GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo et al. (Coord.).
Direito processual coletivo e o Anteprojeto de Código brasileiro de processos coletivos. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2007.
MATTE, Mauricio. Ação Civil Pública: tutela de interesses ou direitos difusos e coletivos stricto
sensu. In: TESHEINER, José Maria (Org.). Processos coletivos. Porto Alegre: HS, 2012.
MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor,
patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. 16. ed. rev. ampl. e atual. São Paulo:
Saraiva, 2003.
MAZZILLI, Hugo Nigro. Aspectos polêmicos da Ação Civil Pública. Revista Magister, v. 1, n. 4,
p. 89-99, fev./mar. 2006.
MAZZILLI, Hugo Nigro. Tutela dos interesses difusos e coletivos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Apontamentos para um estudo sistemático da legitimação
extraordinária. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 404.
NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado e legislação
processual civil extravagante em vigor. 6. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

16
DIDIER JR.; ZANETI JR. Curso de direito processual civil, v. 4, p. 214.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 223-230, jul./set. 2012
230 Gisele Mazzoni Welsch

TESHEINER, José Maria Rosa. Ações coletivas no Brasil: atualidades e tendência. In: TESHEINER,
José Maria Rosa; MILHORANZA, Mariângela Guerreiro. Temas de direito e processos coletivos. Porto
Alegre: HS, 2010.
TESHEINER, José Maria. O Ministério Público não é nunca um substituto processual. Disponível
em: <http://www.tex.pro.br/tex/listagem-de-artigos/353-artigos-abr-2012/8468-o-ministerio-
publico-nao-e-nunca-um-substituto-processual-uma-licao-heterodoxa>. Acesso em: 26 abr. 2012.
VARGAS, Abraham Luis. La legitimación activa en los processos colectivos. In: OTEIZA, Eduardo
(Coord.). Procesos colectivos. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni Editores, 2006.
ZAVASCKI, Teori Albino. Ação Civil Pública: competência para a causa e repartição de atribuições
entre os órgãos do Ministério Público. In: ASSIS, Araken de et al. (Org.). Processo coletivo e outros
temas de direito processual: homenagem 50 anos de docência do Professor José Maria Rosa
Tesheiner, 30 anos de docência do Professor Sérgio Gilberto Porto. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2012.
ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de


Normas Técnicas (ABNT):

WELSCH, Gisele Mazzoni. Comentários sobre o parecer “Os poderes do Ministério Público na
Ação Civil Pública” proferido por José Manoel de Arruda Alvim Netto. Revista Brasileira de Direito
Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 223-230, jul./set. 2012.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 223-230, jul./set. 2012
Por que a prova de ofício contraria o
devido processo legal? Reflexões na
perspectiva do garantismo processual
Sérgio Luiz de Almeida Ribeiro
Mestrando em Direito Processual Civil
na PUC-SP. Mestrando Direito Processual
na Universidad Nacional de Rosario
(UNR – Argentina). Advogado em São Paulo.

Palavras-chave: Constituição. Devido processo legal. Participação dialética.


Prova de ofício. Processo civil. Imparcialidade do juiz. Incompatibilidade.

Sumário: 1 Garantismo processual e devido processo legal – 2 Iniciativa


probatória das partes – 3 Da imparcialidade comprometida com a prova de
ofício – 4 Conclusão

1 Garantismo processual e devido processo legal


O garantismo é uma visão ideológica do processo, que prestigia a impar-
cialidade do juiz e o sistema acusatório, em detrimento do sistema inquisitivo,
tendo como fundamento a Constituição Federal, assegurando às partes, por
meio do devido processo legal, ampla participação na atividade jurisdicional
para defesa de seus interesses, e mitigando ao máximo os poderes dos juízes.
Para Adolfo Alvarado Velloso “el garantismo postula, una vez más, el
irrestricto acatamiento de la Constitución y la aplicación efectiva de lo que
es su máxima garantía: el proceso.”1
Nas lições de Glauco Gumerato Ramos, “o garantismo processual defende
uma maior valorização da categoria fundamental processo, e consequentemente
da cláusula constitucional do due process, de modo a valorizar a ampla defesa, o
contraditório e a imparcialidade do juiz, como os pilares de legitimação da deci-
são jurisdicional a ser decretada. (...) Para o garantismo, o processo é método no
qual o resultado dependerá do efetivo debate entre as partes e de sua diligência
em melhor manejar a respectiva atividade”.2

1
El garantismo procesal. Rosario: Juris, 2010. p. 98.
2
Repensando a prova de ofício. Revista de Processo – RePro, v. 35, n. 190, p. 315. Ressalta-se que
também é de Glauco Gumerato Ramos o texto que — o que tudo indica — pela primeira vez no Brasil

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 231-238, jul./set. 2012
232 Sérgio Luiz de Almeida Ribeiro

No garantismo, o campo das discussões relativo ao direito controvertido


se restringe tão somente às partes, ou seja, no plano horizontal. Assim, as partes
têm maior liberdade para exporem e demonstrarem seus argumentos, assu-
mindo os riscos inerentes a sua atuação.
Ao juiz compete atuar como um espectador, um terceiro imparcial, não
podendo criar ou modificar as regras do processo, tampouco produzir provas
como investigador dos fatos, sob pena de promover um desequilíbrio na sua
imparcialidade em relação ao objeto da demanda, conforme se verá adiante.
O que dá legitimidade à atividade jurisdicional e assegura a ampla par-
ticipação das partes é o princípio do devido processo legal, princípio este que
impõe ao Estado um dever de observar todas as garantias constitucionais e
infraconstitucionais dos litigantes que estão à mercê de sua atuação.
É pelo devido processo legal que se derivam garantias processuais tais
como: isonomia, imparcialidade, impartialidade, juiz natural, duração razoável
do processo, contraditório e ampla defesa.

Assim, a isonomia, o contraditório, a ampla defesa, a imparcialidade


do juiz, o juiz natural, o direito de acesso à prova etc., nada mais são
do que desdobramentos do devido processo legal, que quando
exercitados no processo, culminam no que se chama de processo
justo ou tutela jurisdicional justa.3

O devido processo legal, portanto, é gênero, tendo como espécies as


garantias constitucionais retromencionadas.
O valor intrínseco contido na cláusula do due process of law reside em
garantir que o acesso à justiça pelo cidadão para pleitear proteção a um direito
material se desenvolva de acordo com as normas previamente estabelecidas
em nosso ordenamento jurídico.
Em todas as questões que envolvem o desenvolvimento jurisdicional do
Estado-juiz, exige-se a irrestrita observância do devido processo legal, pois é por
ele que se impede o uso abusivo do aparato judicial e se confere legitimidade à
atuação do Estado para que a vontade clara da lei seja efetivada no caso concreto.

chamou a atenção da comunidade de processualistas para a existência, atualidade e intensidade do


debate havido no plano internacional sobre ativismo judicial e o garantismo processual, bem como
seus principais expoentes (cf. Ativismo e garantismo no processo civil: apresentação do debate.
Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, ano 18, n. 70, p. 83, abr./jun. 2010).
3
RODRIGUES, Marcelo Abelha. O devido processo legal e a execução civil. In: SANTOS, Ernani
Fidélis et al. (Coord.). Execução civil: estudos em homenagem ao Professor Humberto Theodoro
Júnior. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 112.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 231-238, jul./set. 2012
Por que a prova de ofício contraria o devido processo legal? Reflexões na perspectiva do garantismo processual 233
Além disso, o devido processo legal, por meio de seus subprincípios, permite
que a tutela jurisdicional seja formada mediante um debate ético entre as partes
que compõe o processo, conforme nos ensina Celso Ribeiro Bastos:

A participação dos sujeitos no processo não possibilita apenas a cada qual


aumentar as possibilidades de obter uma decisão favorável, mas significa
cooperação no exercício da jurisdição. Para cima e para além das intenções
egoísticas das partes, a estrutura dialética do processo existe para reverter
em benefício da boa qualidade da prestação jurisdicional e da perfeita
aderência da sentença à situação de direito material subjacente.4

Enfim, o princípio do devido processo legal qualifica a atividade jurisdi-


cional do Estado por estabelecer um modo padronizado de atuação, no qual
predomina um método de discussão dialético entre as partes.
Na questão probatória, em tempos modernos, ao contrário do que parte
considerável da doutrina defende, a atuação do juiz deve ser discreta, presti-
giando a maior participação das partes.
A produção de provas ex officio adotada no artigo 130 do CPC de Buzaid
converge com o sistema inquisitivo. Logo, numa visão garantista, este sistema seria
inadmissível dentro de um Estado Democrático de Direito, onde deve prevalecer
um sistema no qual a iniciativa probatória deve ser das partes (sistema acusatório),
ou seja, um contraponto que limita o exercício de poder por uma única pessoa.
Manter o sistema inquisitivo, para que o juiz seja um investigador, é
mitigar o princípio dispositivo — que é reflexo infraconstitucional do devido
processo legal —, sem dizer que a imparcialidade do juiz ficará comprometida,
conforme se verá adiante.

2 Iniciativa probatória das partes


A discrição do magistrado na seara probatória tem uma razão de ser, pois,
uma vez rompida a inércia jurisdicional do Estado, é tolerável que a intimidade
das partes seja invadida, mas esta invasão não pode causar danos maiores do
que o próprio dano ao direito material objeto do litígio.
A iniciativa probatória exclusiva das partes impõe limites à atuação do
juiz, vedando eventuais arbítrios. Fica preservada a liberdade individual das
partes, para que fiquem à vontade para trazer ao processo os fatos que real-
mente lhes interessam para a solução do conflito, bem como evitar a incidên-
cia de danos a outros direitos fundamentais, como a intimidade, por exemplo.

4
BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários à Constituição do Brasil.
São Paulo: Saraiva, 1988-1989. p. 264.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 231-238, jul./set. 2012
234 Sérgio Luiz de Almeida Ribeiro

Outorgar poderes ao juiz para produzir provas de ofício é caminhar contra


o espírito democrático, onde predomina maior participação das partes na for-
mação da tutela jurisdicional, inclusive no âmbito probatório, no qual a iniciativa
deve sempre partir das partes e não do juiz. Esta restrição de poder do juiz é o
ônus que o Estado suporta dentro de uma democracia. O contrário é incorrer em
arbitrariedade e retroagir ao ambiente típico de um Estado totalitário.
Na contramão do Estado Democrático, o denominado ativismo judicial,
no campo da instrução probatória, defende o pensamento de que somente
com a ampliação dos poderes do juiz será possível tutelar direitos do indivíduo
e se alcançar a “justiça” no caso concreto, raciocínio que leva à admissão da
produção ex officio de prova.
Ora, partindo dessa linha de pensamento, a pergunta que se faz é, por
que é vedado ao juiz mitigar o princípio dispositivo e deferir de ofício a tutela
antecipada, com base no artigo 273, §6º do Código de Processo Civil, quando,
após a apresentação da defesa e antes do início da fase instrutória, verificar
que um dos pedidos é incontroverso?
Neste caso, na linha ativista, não estaria o juiz prestando a tutela juris-
dicional em tempo razoável, como preceitua o artigo 5º, inciso LXXVIII da
Constituição Federal?
Num primeiro momento, para responder a tais indagações, sob a ótica
do ativismo judicial, poder-se-ia pensar que a natureza constitucional da tutela
antecipada, em conjunto com outros princípios contidos na magna carta, auto-
rizaria o deferimento ex officio nos moldes acima delineados.
No entanto, na situação acima descrita — deferimento da antecipação
de tutela ex officio —, o entendimento uníssono da doutrina e jurisprudência,
independente do viés — ainda que intuitivo — ativista ou garantista, é de que
prevalece a vedação de poderes ex officio do juiz. Essa proibição, embora não
expressa na lei, tem razão de ser: o devido processo legal expresso no princípio
dispositivo e no princípio da adstrição.
Ou seja, a garantia do devido processo legal, uma vez projetado na legis-
lação infraconstitucional, outorga ao titular do direito conflituoso a decisão de
quando e como se pleitear a tutela jurisdicional.
Da mesma forma, a prova de ofício deve ser vedada por ser incompatível
com o princípio dispositivo e, consequentemente, incompatível com a garan-
tia do devido processo legal, pois, se a parte é soberana para movimentar a
jurisdição estatal para que esta tutele seu direito, tem ela a mesma soberania
para dispor da prova que pretende produzir e demonstrar os fatos que cons-
tituem seu direito, ou então, os fatos modificativos, extintivos ou impeditivos.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 231-238, jul./set. 2012
Por que a prova de ofício contraria o devido processo legal? Reflexões na perspectiva do garantismo processual 235
Como se defende aqui, a produção da prova integra o direito de ação/
defesa do indivíduo e, se a parte tem a prerrogativa de pleitear a prestação
jurisdicional em momento que entender oportuno, ela deve ter também asse­
gurada a decisão de produzir prova de acordo com sua vontade, sob pena de
se constituir numa medida autoritária em relação ao exercício do direito de
ação e defesa da parte.
Não há coerência lógica entre a vedação de o juiz em agir de ofício em
sede de tutela antecipada, justamente sob o argumento de ferir a liberdade
indi­vidual da parte em pleitear quando e como a tutela jurisdicional de urgên-
cia lhe é necessária, com a admissão de poderes instrutórios oficiosos para o
juiz buscar a “verdade real” para entregar a tutela jurisdicional.
A explicação, que não parece lógica para esta discrepância, é de que a
tutela antecipada se relaciona diretamente com o direito material — logo, não
pode o juiz interferir na vontade das partes —, ao passo que o direito à prova
se aproxima do direito processual, cuja atividade do juiz não pode ser limitada
pela vontade das partes, pois tem o magistrado intenção de julgar bem, com
base em uma — supostamente legítima — busca da “verdade real”.
Esquece-se, porém, que a “verdade real” é aquela que resultou no conflito
de interesse entre as partes, pois cada uma das partes tem um entendimento
próprio sobre o que seja a sua “verdade real”, e somente elas serão capazes de
reconstruir os fatos como eles realmente aconteceram.
Ademais, o garantismo processual entende que não é escopo do processo
buscar a verdade real. Vejamos o que diz de Adolfo Alvarado Veloso:

Es de toda obviedad que el Derecho no privilegia a la Verdad como un


valor jurídico de máxima importancia ya que, con mirar detenidamente
a la Ley, se advierte que los valores trascendentes son la paz social,
con el consiguiente respeto a las reglas de convivencia, y la certeza
de las relaciones individuales lograda con el simple acatamiento de la
normativa vigente en un lugar y tiempo dados. Si la Verdad fuere un
auténtico valor y el tiempo importante para el Derecho, cual ló sostiene
el activismo judicial, todas las instituciones legales tendrían que
ordenarse lógicamente con ella para mantener un sistema coherente
y comprensible. Y la simple revista de la ley procesal muestra sin más
que no es así, ya que no hay compatibilidad lógica alguna entre la
denodada búsqueda de la verdad real y la absolución por la duda [...].5

5
El garantismo procesal. Rosário: Juris, 2010. p. 33-34, nota 47.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 231-238, jul./set. 2012
236 Sérgio Luiz de Almeida Ribeiro

A certeza absoluta não é algo do alcance do conhecimento. Destarte, a assim


considerada “verdade real” também não seria viável de ser alcançada no processo.
O poder instrutório oficioso, embora em nossa legislação seja permitido,
não está legitimado na perspectiva da garantia constitucional do devido processo
legal, por impor à parte uma providência jurisdicional não requerida, ferindo-lhe a
liberdade individual de participação no processo e a sua faculdade de disposição,
assumindo o ônus da sua escolha, de parcela de seu direito derivado da ação ou
defesa (produção de prova).
Além de ferir a liberdade individual das partes e também poder causar
danos à intimidade, a prova de iniciativa do juiz faz com que ele decline da sua
imparcialidade — não em relação às partes, afinal o magistrado não sabe qual
delas será favorecida com o resultado daquela prova. Mas, em relação ao objeto
da lide, certamente, o pronunciamento jurisdicional emitido pelo juiz, incons-
cientemente (no plano psicológico) estará viciado pela ausência de imparciali-
dade, haja vista que haverá predominância maior das convicções sentimentais
e/ou ideológicas do juiz em relação aos interesses e argumentos das partes.

3 Da imparcialidade comprometida com a prova de ofício


Como escreveu Maria Elizabeth de Castro Lopes, “ao transformar-se em
pesquisador ou investigador, o juiz envolve-se psicologicamente na disputa e
tem comprometida sua imparcialidade”.6
Evidentemente, no aspecto psicológico, esse alargamento investigató-
rio do juiz compromete sua capacidade de apreciar a causa com a verdadeira
isenção, motivo pelo qual a prova de ofício faz com que o juiz se aparte da
imparcialidade que se lhe exige.
É bem verdade que o juiz, quando recebe um caso, já tem uma ideia de
como irá resolvê-lo e essas ideias são, de certo modo, frutos de suas paixões,
formação ideológica e etc. Enfim, dos aspectos idiossincráticos próprios de sua
condição humana.
A iniciativa na produção da prova pelo juiz fomenta, no seu inconsciente, a
situação de que ele já sabe onde quer chegar em relação ao fato a ser investigado,
e este destino nem sempre converge com a vontade concreta da lei, tampouco,
com a vontade das partes e, muito menos, com a legitimidade constitucional que
se espera daqueles que exercem o poder jurisdicional. O juiz passa a buscar outra
“verdade” que não aquela aportada pela iniciativa das partes para sustentar as
respectivas pretensões, seja na ação ou na defesa.

6
LOPES, Maria Elizabeth de Castro. O juiz e o princípio dispositivo. São Paulo: Revista dos Tribu-
nais, 2006. p. 74.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 231-238, jul./set. 2012
Por que a prova de ofício contraria o devido processo legal? Reflexões na perspectiva do garantismo processual 237
Ao aproximarmos a evidência do sujeito e do sentido, imposta pela
ideologia, como sugere Pêcheux (1988), podemos compreender a difi-
culdade existente no jogo de efeitos ideológicos do discurso do Direito.
Quando dissimulamos a “intersubjetividade do falante” do sujeito do
direito (sujeito-juiz) pude­mos observar outro valor em sua enunciação,
e não o ditado pela lei: foi possível observar a história se inscrevendo no
discurso desse sujeito constituindo o sujeito jurídico em sua enunciação
durante uma audiência. Levanto em conta o que Elia (2004) ensina
sobre o inconsciente psicanalítico, como algo que não é articulável,
mas que pode já estar articulado ao nível do inconsciente e do sujeito
a esse inconsciente que se articula sem seu arbítrio, pudemos observar
a produção de atos falhos e lapsos discordantes das características que
deveriam estar presentes no sujeito do direito, sujeito do enunciado do
termo de audiência ou da sentença.7

Significa que a prova de ofício faz do juiz um investigador do fato, mas não
aquele relacionado com o processo, mas sobre o fato surgido do seu inconsciente,
fazendo com que ele acabe por substituir os argumentos das partes por suas con-
vicções pessoais sobre o objeto da demanda.
Quando o juiz passa a investigar os fatos, ele deixa de dar crédito às ale-
gações das partes, uma vez que em seu âmago já definiu uma situação fática
preestabelecida no seu inconsciente (psique), utilizando-se de alguns elemen-
tos contidos no processo e buscando outros para justificar na sentença aquela
situação imaginária iniciada com sua investigação pessoal. Ou seja, afasta-se das
regras jurídico-processuais preestabelecidas, para trabalhar com elementos
metajurídicos (= justiça, verdade, ética, ponderação) que se amoldem ao pró-
prio sentimento subjetivo sobre o que é certo ou não, justo ou não, ético ou não.

A instância ideológica, enquanto processo histórico e linguístico


responsável pela naturalização dos sentidos, se faz presente na
produção discursiva do sujeito tanto quanto as marcas do modo
como tomou forma a sua estrutura neurótica.8

Quer dizer, psicologicamente, o magistrado acaba definindo uma situação


que pode não ter relação com aquela “verdade real” acerca dos fatos que deram

7
MONTE-SERRAT, Dionéia Motta; TFOUNI, Leda Verdiani. A dimensão política do sujeito na cadeia
discursiva. Disponível em: <http://www.red.unb.br/index.php/les/article/viewFile/2829/2441>.
Acesso em: 16 jul. 2012.
8
MARIANI, Bethania. Subjetividade e imaginário linguístico. Disponível em: <http://www3.unisul.
br/paginas/ensino/pos/linguagem/0303/6%20art%204%20P.pdf>. Acesso em: 16 jul. 2012.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 231-238, jul./set. 2012
238 Sérgio Luiz de Almeida Ribeiro

ensejo à disputa dos litigantes pelo direito e, por meio da iniciativa probatória ofi-
ciosa, o juiz se sente livre e acaba por buscar aquele fato imaginário idealizado por
ele e que converge com a sua expectativa formada previamente ao início de sua
investigação, lamentavelmente fomentada por fatores arbitrários e inquisitivos.
Neste instante, o juiz perde sua imparcialidade investigando ele próprio
os fatos. Há atribuição inconsciente de um valor particular, que se distancia
daquele valor preconizado na lei e buscado pelas partes.
Portanto, ao contrário do que se tem sustentado em defesa da prova ofi-
ciosa, o aspecto psicológico que permeia a teoria da decisão jurisdicional — seja
quanto ao proceder, seja quanto ao propriamente decidir — mostra que, com a
ampliação de poderes instrutórios do juiz, não há uma adequação melhor dos fatos
apresentados no processo à respectiva norma jurídica de incidência. O que ocorre,
é que os fatos investigados pelo juiz são aqueles criados no seu inconsciente e nas
suas convicções ideológicas acerca do assunto que ele terá que decidir.

4 Conclusão
Por tudo isso, temos que a prova de ofício contraria o devido processo
legal, uma vez que fica o processo privado de uma participação mais abran-
gente das partes, que é a essência do garantismo processual que, não tenho
dúvida, é projetado desde a Constituição, e por isso mesmo deveria ser traba-
lhado e concretizado no dia a dia pragmático da praxe judiciária, civil ou penal.
A sentença proferida pelo juiz tem que ser formada pelos argumentos fáti-
cos e jurídicos trazidos pelas partes, que o auxiliam na formação da sua convicção,
permitindo que a lei seja aplicada corretamente ao caso concreto e se obtenha
um pronunciamento decorrente da dinâmica dialética que legitima o processo.
A iniciativa probatória feita pelo juiz o afasta da imparcialidade, já que
como investigador dos fatos, psicologicamente, o magistrado vai atrás das
suas convicções ideológicas e, inconscientemente, busca sua “verdade” — a
sua verdade! — no processo, privando as partes de participarem amplamente
na formação do provimento jurisdicional.
E por esses motivos — dentre tantos outros fundados na perspectiva
dogmática que orienta o garantismo processual — que a denominada prova
de ofício é incompatível com o devido processo legal.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de


Normas Técnicas (ABNT):

RIBEIRO, Sérgio Luiz de Almeida. Por que a prova de ofício contraria o devido processo legal?:
reflexões na perspectiva do garantismo processual. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro,
Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 231-238, jul./set. 2012.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 231-238, jul./set. 2012
RESENHAS
DIDIER JR., Fredie. Sobre a Teoria Geral do Processo,
essa desconhecida. Salvador: JusPodivm, 2012.
Em outra primorosa iniciativa, a Editora JusPodivm traz a lume a obra
Sobre a teoria geral do processo, essa desconhecida, versão comercial da original
tese que Fredie Didier Jr. defendeu, em fevereiro de 2012, para conquistar o
merecidíssimo título de Livre-Docente pela Universidade de São Paulo (USP).
Aviso preliminar que se impõe: a utilização da palavra “sobre”, e não
“de”, no título, é proposital para destacar o objeto da tese. Não se trata “de”
uma investigação sobre TGP (simples explicação dos conceitos tradicionais
de juris­dição, ação, processo e dos temas correlatos), mas de um estudo
“sobre” a Teoria Geral do Processo. Aprofundam-se, assim, o significado, os
pressupostos e as consequências da Teoria Geral do Processo, realmente uma
desconhecida quando se investiga a rarefeita quantidade e profundidade de
estudos sobre ela.
Fredie parte da análise epistemológica e filosófica da Teoria Geral do
Direito, para explicar conceitos fundamentais e aspectos comuns ao objeto
em estudo. Em seguida, Fredie diferencia expressões comumente utilizadas
pelos processualistas, como “processo”, “Ciência do Direito Processual”, “Direito
Processual”, “Parte Geral” e, finalmente, “Teoria Geral do Processo”. Aspectos
que também tocam o tema são investigados, tais como a relação do pro-
cesso penal com a chamada “TGP” e a polêmica sobre se há, efetivamente,
uma Teoria Geral do Processo que seja comum também à seara criminal.
Logo após, o autor alcança outra etapa importante de seu estudo: a
utilidade da Teoria Geral do Processo. Aqui, são aprofundados diversos aspec­
tos, que, de tão densos e relevantes, são de impossível resumo em breve rese-
nha. Porém, tentando desempenhar satisfatoriamente a missão desta notícia,
destacamos a “função bloqueadora” da “TGP”, que contribui também para o
controle da fundamentação das decisões (impede a diversidade descompro-
missada de interpretações ao exigir que toda interpretação resulte de argu-
mentação coerente com padrões dogmáticos); a necessidade do bom uso de
conceitos lógico-jurídicos processuais para a correta interpretação da juris-
prudência; a construção, pela Ciência Dogmática do Processo, dos conceitos
processuais jurídico-positivos; e, finalmente, a possibilidade de, pela ade-
quada dimensão da “TGP”, diminuir-se a equivocidade terminológica, “terrível
moléstia de que a ciência em geral pode ser vítima”, como alerta o autor em
trecho da referida tese.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 241-243, jul./set. 2012
242 Bruno Garcia Redondo

Verifica-se, ainda, que a Teoria Geral do Processo pode servir tanto ao


aperfeiçoamento profissional daqueles que estudam a ciência processual e
atuam na prática forense, quanto à elaboração de leis mais técnicas e coe-
rentes.
Caminhando para a conclusão da tese, Fredie propõe a reconstrução da
Teoria Geral do Processo e analisa a influência que a mesma sofre pelo atual
neopositivismo, que se reflete também na teoria das fontes do Direito, em razão
do surgimento de novos conceitos jurídicos fundamentais e da necessária
reconstrução de conceitos jurídicos processuais fundamentais.
No último capítulo, Fredie analisa o ensino da Teoria Geral do Processo
no Brasil, trazendo dados extraídos das grades curriculares de Universidades
de praticamente todos os Estados brasileiros e apontando o conteúdo de uma
adequada “disciplina introdutória ao Direito Processual”, que, em sua visão,
deve­ria ter a Teoria Geral do Processo como eixo central (apresentação dos
mais relevantes conceitos lógico-jurídicos processuais), mas sem a ela se resu-
mir. Na referida disciplina propedêutica, seria igualmente importante o estudo
de outros temas, como o Direito Processual Constitucional e abordagens não
jurídicas do processo (História do Direito Processual e da Ciência Dogmática
do Processo, Sociologia e Antropologia do Processo, bem como Análise
Econômica do Processo).
O leitor verificará que a tese é muito densa e de inviável síntese. Talvez
por isso Humberto Ávila tenha assinalado, no primeiro Prefácio da obra, que
a mesma “cumpre integralmente o seu objetivo declarado de provocar uma
grande discussão sobre um tema que precisa ser pensado e repensado em
profundidade por todos que se dedicam, com seriedade e rigor, a analisar os
grandes temas do Direito”.
Como o próprio Fredie revela na Nota do Autor, “a escolha deste tema
assombrou alguns amigos, que (...) perguntavam a razão de ter optado por
um assunto sobre o qual nada se escreveu há quase três décadas, que jamais
foi objeto de uma Tese e cujas linhas básicas já eram consideradas dogmas
da doutrina processual latino-americana. Esses fatos, que poderiam tornar a
‘Teoria Geral do Processo’ um não-tema, foram, curiosamente, os principais
motivos para o início desta empresa acadêmica”. Com a precisão habitual,
Fredie conclui: “O jogo da ciência não tem fim — quem não está disposto a
rever seus pensamentos está fora desse jogo, já o disse Popper”.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 241-243, jul./set. 2012
Resenha 243

Sem delongas desnecessárias, com entusiasmo recomendo esta bela


reflexão proposta por Fredie Didier Jr. aos estudantes e aos profissionais do
Direito.

Bruno Garcia Redondo


Mestrando em Direito Processual Civil pela PUC-SP.
Especialista em Direito Processual Civil pela
PUC-Rio. Pós-Graduado em Direito Público e em
Direito Privado pela EMERJ (TJRJ/UNESA) e em
Advocacia Pública pela ESAP (PGERJ/UERJ-CEPED).
Professor de Direito Processual Civil na Graduação
da PUC-Rio, nos cursos de pós-graduação da
PUC-Rio, UFF, UERJ, EMERJ, FESUDEPERJ, AMPERJ,
ESA (OAB/RJ), CEDJ, CEPAD, ABADI e EPD. Membro
do IBDP, da ABDPC e do IIDP. Secretário-Geral da
Comissão de Estudos em Processo Civil da OAB-RJ.
Procurador da OAB-RJ. Advogado. Currículo lattes:
<http://lattes.cnpq.br/1463177354473407>.
E-mail: <bruno@garcia-redondo.com>.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de


Normas Técnicas (ABNT):

DIDIER JR., Fredie. Sobre a Teoria Geral do Processo, essa desconhecida. Salvador: JusPodivm, 2012.
Resenha de: REDONDO, Bruno Garcia.Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte,
ano 20, n. 79, p. 241-243, jul./set. 2012.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 241-243, jul./set. 2012
ATAÍDE JÚNIOR, Jaldemiro Rodrigues de.
Precedentes vinculantes e irretroatividade do
direito no sistema processual brasileiro: os
precedentes dos tribunais superiores e sua
eficácia temporal. Curitiba: Juruá, 2012.

A obra, lançada em 2012, é a versão comercial da dissertação de mestrado


defendida junto à Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), e possui
como ponto central a análise dos precedentes vinculantes no sistema proces-
sual brasileiro.
O trabalho é dividido em quatro capítulos, todos escritos com lingua-
gem adequada, argumentação correta e algumas ilustrações. No primeiro, o
autor enfrenta os modelos processuais de Civil Law e Common Law, com aná-
lise histórica e apresentação de algumas causas de aproximação entre os refe-
ridos modelos.
Em seguida, Jaldemiro analisa as formas de utilização do precedente judi-
cial nos casos concretos, indicando as técnicas de identificação (ratio decidendi
e obter dictum), e as formas de superação em um caso concreto (distinguishing
e overruling). Ainda neste capítulo, apresenta a classificação dos precedentes
judiciais quanto à autoridade, agrupados em obrigatórios ou vinculantes, rela-
tivamente obrigatórios e persuasivos.
Em momento posterior, passa a enfrentar as justificativas para a existên-
cia de precedentes vinculantes no sistema processual brasileiro, os riscos daí
decorrentes, como a falta de amadurecimento interpretativo e a possibilidade
de enges­samento da jurisprudência, além das vantagens decorrentes de sua
utilização.
Já no quarto capítulo, passa a enfrentar a eficácia temporal dos pre-
cedentes, a sua aplicação retroativa e as peculiaridades inerentes ao tema.
Registro, com elogio, a abordagem referente à distinção entre coisa julgada,
eficácia erga omnes e efeito vinculante dos precedentes e a noção de termo
inicial do efeito vinculante.
Na parte final, o autor apresenta proposta de sistematização dos efeitos
temporais específicos a cada um dos tipos de precedentes do STF e STJ.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 245-246, jul./set. 2012
246 José Henrique Mouta Araújo

Com certeza trata-se de obra de fôlego que ganha status de essencial


para aqueles que se dedicam ao estudo dos precedentes vinculantes no Brasil.
A leitura, portanto, é imprescindível e absolutamente recomendável.

José Henrique Mouta Araújo


Doutor e Mestre em direito (UFPA). Pós-Doutor
(Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa).
Professor titular da Universidade da Amazônia
(UNAMA). Membro do IBDP. Advogado e Procurador do
Estado do Pará. Site: <www.henriquemouta.com.br>.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de


Normas Técnicas (ABNT):

ATAÍDE JÚNIOR, Jaldemiro Rodrigues de. Precedentes vinculantes e irretroatividade do direito no


sistema processual brasileiro: os precedentes dos tribunais superiores e sua eficácia temporal.
Curitiba: Juruá, 2012. Resenha de: ARAÚJO, José Henrique Mouta. Revista Brasileira de Direito
Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 245-246, jul./set. 2012.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 245-246, jul./set. 2012
BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Processo
constitucional e Estado Democrático de Direito.
2. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2012.

Com o objetivo de “demonstrar a importância marcante do processo


constitucional na sempre inacabada construção do Estado Democrático de
Direito” (p. xv), o autor estruturou a obra em cinco capítulos bem trabalhados,
concatenando as ideias germinadas, inicialmente, em sua tese de doutora-
mento em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais e,
logo após, nas aulas ministradas no Programa de Pós-Graduação stricto sensu
da PUC Minas, bem como nos vários artigos, ensaios e textos alinhados à linha
de pesquisa “O processo na construção do Estado Democrático de Direito”.
Para Ronaldo Brêtas, o termo processo constitucional deve ser compreen­
dido na perspectiva doutrinária de José Alfredo de Oliveira Baracho, que entende
não se tratar de um ramo autônomo do Direito Processual e, sim, “uma colocação
científica, de um ponto de vista metodológico e sistemático, do qual se pode exa-
minar o processo em suas relações com a Constituição” (p. 3). E, conforme denota
o autor, o principal alicerce do processo constitucional é o devido processo legal,
que deve ser compreendido como

um bloco aglutinante e compacto de vários direitos e garantias fun-


damentais inafastáveis ostentados pelas pessoas nas suas relações
com o Estado, quais sejam: a)- direito de amplo acesso à jurisdição,
prestada pelo Estado dentro de um tempo útil ou lapso temporal
razoá­vel; b)- garantia do juízo natural; c)- garantia do contraditório;
d)- garantia de plenitude da defesa, com todos os meios e recursos a
ela (defesa) inerentes, aí incluído, também, o direito da parte à pro-
dução da prova e à presença do advogado ou do defensor público;
e)- garantia da fundamentação racional das decisões jurisdicionais,
com base no ordenamento jurídico vigente (reserva legal); f)- garantia
de um processo sem dilações indevidas. (p. 73)

A partir da opção constitucional do povo pelo Estado Democrático de


Direito, na Carta de 1988 (art. 1º, caput), tal expressão tem sido por muitos
difundida sem critério de cientificidade ou de aprofundamento de seu sig-
nificado. Para alguns, Estado Democrático de Direito, para outros Estado de
Direito Democrático (nítida influência da Constituição Portuguesa e da Lei

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 247-251, jul./set. 2012
248 Fernanda Gomes e Souza Borges, Lúcio Delfino

Fundamental de Bonn). Certo é que, apesar das variações semânticas, não se


pode questionar de sua imprescindibilidade, a despeito de já se haver consi-
derado a frase Estado Democrático de Direito como “pleonástica e redun-
dante”, conforme apontado pelo autor (p. 60, nota 113). Não obstante, de
maneira rara na doutrina brasileira, Ronaldo Brêtas disseca os fundamentos
do Estado Democrático de Direito, culminando na demarcação de sua dimen-
são e estrutura constitucional, resultante da articulação dos princípios do
Estado Democrático e do Estado de Direito, “cujo entrelaçamento técnico e
harmonioso se dá pelas normas constitucionais” (p. 58).
Como ponto de partida de suas reflexões, o autor analisa o exercício do
poder pelo Estado, preocupação advinda de trabalho anteriormente publicado
sobre Direito Político,1 confessadamente influenciado por José Alfredo de Oliveira
Baracho. Colacionando extensa pesquisa de publicistas nacionais e estrangeiros,
demonstra a inquestionável indivisibilidade do poder do Estado e que a célebre
teoria da separação ou tripartição dos poderes estatais — Poder Executivo, Poder
Legislativo e Poder Judiciário —, atribuída a Montesquieu, já está “esclerosada e
deturpada”, provocando a substituição da expressão separação dos poderes do
Estado para separação das funções do Estado (p. 14). Para se chegar a tais conclu-
sões, não satisfeito com sua vasta pesquisa em textos especializados, Ronaldo
Brêtas se debruçou sobre a obra original de Montesquieu (De l’esprit des lois), na
biblioteca geral da Université de Paris I – Panthéon-Sorbonne, arrematando seu
pensamento crítico:

Em face dessas idéias, também acatamos a doutrina da existência de


um poder único do Estado, que se espraia sobre os indivíduos pelo
exercício das suas três fundamentais funções jurídicas, a executiva, a
legislativa e a jurisdicional. O Estado deve ser concebido como orde-
nação de várias funções atribuídas a órgãos diferenciados, segundo a
previsão das normas constitucionais que o organizam juridicamente.
O que deve ser considerada repartida ou separada é a atividade e
não o poder do Estado, do que resulta uma diferenciação de funções
exercidas pelo Estado por intermédio de órgãos criados na estrutu-
ração da ordem jurídica constitucional, nunca a existência de vários
poderes do mesmo Estado. (p. 18)

O autor prossegue examinando as funções estatais, com o detalhamento


que lhe é peculiar, culminando na concepção fundamental de que a jurisdição

BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Uma introdução ao estudo do direito político. Revista do
1

Instituto dos Advogados de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 8, p. 197-122, 2002.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 247-251, jul./set. 2012
Resenha 249

(função jurisdicional), “na concepção estruturante do Estado Democrático de


Direito” (p. 32) deve ser exercida mediante a garantia do devido processo cons-
titucional, já que no “Estado Democrático de Direito, que visualizamos como
princípio, a função jurisdicional somente se concretiza dentro da moderna e
inafastável estrutura constitucionalizada do processo” (p. 37).
Ainda na análise do princípio fundamental do Estado Democrático de
Direito, Ronaldo Brêtas imprime lúcido esclarecimento à ampla utilização do
termo paradigma no contexto do Estado de Direito e do Estado Democrático
de Direito, sob influência do físico Thomas Kuhn. O autor alerta que o emprego
de paradigma no sentido de modelo ou padrão “poderia conduzir ao entendi-
mento inadequado de que Estado de Direito e Estado Democrático de Direito
fossem meros modelos ou padrões estanques de diferentes espécies ou for-
mas de Estado, como alguns textos parecem sugerir” (p. 55). O que demonstra-
ria contradição ao pensamento exposto pelo autor que o Estado Democrático
de Direito está em permanente construção, já que “espécie de projeto consti-
tucional principiológico in fieri” (p. 2).
Certamente partindo de sua incessante militância na advocacia, Ronaldo
Brêtas demonstra a fundamental distinção entre pretensão e ação, narrando a
célebre polêmica travada entre Windscheid e Muther na Alemanha e, depois
retomada na Itália por Carnelutti. Para o autor, a frequente confusão entre
pretensão e ação é causa de “tumulto, balbúrdia, atecnias e deturpações nos
processos” (p. 75), atrasando as soluções decisórias. E, a fim de combater os
males desse “praxismo forense, de caráter infeccioso” (p. 75), o autor apresenta
diferenciação técnica, lastreada em considerável pesquisa doutrinária, termi-
nando por exemplificá-la de maneira absolutamente didática (p. 83-84).
Após exame das teorias da ação, o autor analisa as principais teorias do
processo e, em perspectiva crítica e fundamentada, aponta algumas objeções
em relação à teoria do processo como relação jurídica, apoiando-se na obra de
Aroldo Plínio Gonçalves (Técnica processual e teoria do processo), que divulgou a
teoria do italiano Fazzalari no Brasil, denominada por Ronaldo Brêtas de “teoria
estruturalista do processo” (p. 90).
Ponto da obra que deve ser destacado é o estudo feito por Ronaldo
Brêtas acerca do princípio do contraditório. De acordo com o autor, a partir da
vigência do Código de Processo Civil de 1973 teve início no Brasil uma certa
“processomania”, na qual o contraditório teve seu alcance reduzido e passou
a ser qualificado apenas como “ciência bilateral dos atos e termos do pro-
cesso e possibilidade das partes de os contrariar [...]” (p. 98), entretanto, o autor
demons­tra que hoje o contraditório teve sua dimensão e alcance ampliados

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 247-251, jul./set. 2012
250 Fernanda Gomes e Souza Borges, Lúcio Delfino

por estudos avançados do processo constitucional democrático. Alerta para


casos práticos de ocorrência da supressão da garantia constitucional do con-
traditório, como a chamada “decisão-surpresa”, a admissão do uso de embar-
gos de declaração com efeito infringente do julgado. Para o autor, deve haver
correlação entre o princípio do contraditório e o princípio da fundamentação
das decisões jurisdicionais pois:

no Estado Democrático de Direito, é esta forma de estruturação proce-


dimental que legitima o conteúdo das decisões jurisdicionais proferidas
ao seu final, fruto da comparticipação dos sujeitos do processo (juiz e
partes contraditoras), gerando a implementação técnica de direitos e
garantias fundamentais ostentados pelas partes. (p. 104)

Outro ponto que distingue o caráter técnico-científico da obra é a noção


esboçada pelo autor acerca dos princípios como normas jurídicas, passando
pelas doutrinas de Boulanger, Esser, Alexy e Larenz, examinando as funções
por eles desempenhadas e situando-os como “proposições que configuram a
revelação, a interpretação, a aplicação e a fundamentação do direito” (p. 107).
Faz, ainda, catalogação dos princípios expressos na Constituição de 1988, além
de focalizar os princípios diretivos da função jurisdicional.
No Estado Democrático de Direito, diante da garantia do devido processo
legal, o autor demonstra que o direito à jurisdição não basta, o povo (comu-
nidade política do Estado, integrada por governantes e governados) tem o
direito que esta “atividade-dever do Estado lhe seja prestada dentro de um
prazo razoável, mediante processo sem dilações indevidas” (p. 177). Analisa a
criação do CNJ no que tange à garantia da razoável duração do processo e,
ainda, expõe a origem e o significado da expressão razoável duração do processo,
desde a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa
Rica) até a Emenda Constitucional nº 45 de 2004, ressalvando que:

[...] a questão da morosidade da atividade jurisdicional e da demora


da solução decisória pretendida nos processos não pode ser resolvida
sob a concepção esdrúxula de uma cogitada jurisdição instantânea ou
de uma jurisdição-relâmpago, o que é impossível existir em qualquer
lugar do planeta, pois alguma demora na solução decisória sempre
haverá nos processos, sobretudo naqueles de maior complexidade. É
preciso que haja um tempo procedimental adequado, a fim de que
possam ser efetivados os devidos acertamentos das relações de direito
e de fato controvertidas ou conflituosas entre os envolvidos, sob a

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 247-251, jul./set. 2012
Resenha 251
reconstrução cognitiva do caso concreto, por meio da moderna e
inafastável estrutura normativa (devido processo legal) e dialética
(em contraditório) do processo, não havendo outro modo substi-
tutivo racional e democrático de fazê-lo.

Sempre ao início de suas notáveis e inesquecíveis aulas de processo civil


na Faculdade Mineira de Direito (PUC Minas), Ronaldo Brêtas adverte seus alunos,
acerca do Direito Processual, que muitos verão Canaã, mas poucos chegarão lá,
em alusão à advertência de Deus a Moisés ao abrir os mares: “Verás Canaã, mas
nela não entrarás” (Moisés realmente faleceu antes de o povo hebraico alcançar
a Terra Prometida). Contudo, a leitura da obra Processo constitucional e Estado
Democrático de Direito é caminho seguro para se alcançar Canaã, ou melhor,
conhecer a face democrática do processo.
Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias é Advogado militante há mais de trinta
anos. É Mestre em Direito Civil e Doutor em Direito Constitucional, ambos pela
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É Professor dos cursos de gradua­
ção, especialização lato sensu, mestrado e doutorado em Direito da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais e um dos precursores da consolidação
da linha de pesquisa “O processo na construção do Estado Democrático de
Direito”. É Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Itaúna. É autor
de várias obras jurídicas.

Fernanda Gomes e Souza Borges


Mestre em Direito Processual pela Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).
Advogada. Professora Universitária.

Lúcio Delfino
Doutor em Direito das Relações Sociais
(Direito Processual Civil) pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP). Membro do Instituto
Brasileiro de Direito Processual. Membro do Instituto
Ibero-Americano de Direito Processual.
Membro do Instituto Pan-Americano de Direito
Processual. Diretor da Revista Brasileira de
Direito Processual. Advogado.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de


Normas Técnicas (ABNT):

BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Processo constitucional e Estado Democrático de Direito.


2. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2012. Resenha de: BORGES, Fernanda Gomes e
Souza; DELFINO, Lúcio. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 20,
n. 79, p. 247-251, jul./set. 2012.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 247-251, jul./set. 2012
Índice
página página

Autor GOMES, Magno Federici


- Artigo: Da análise da desistência do recurso
ARAÚJO, José Henrique Mouta excepcional a partir da objetivação do
- Resenha: ATAÍDE JÚNIOR, Jaldemiro Rodrigues processo constitucional subjetivo..................... 59
de. Precedentes vinculantes e irretroatividade
do direito no sistema processual brasileiro: os LEITE, Carlos Henrique Bezerra
precedentes dos tribunais superiores e sua - Artigo: Tipologia dos direitos humanos de
eficácia temporal. Curitiba: Juruá, 2012.........245 terceira dimensão e acesso à justiça................. 39

BOMFIM, Daniela MARIANO, Cynara Monteiro


- Parecer: Morte da parte. Renúncia ao direito - Artigo: Regime jurídico único, coisa julgada e a
afirmado. Impossibilidade. Ausência de competência residual da Justiça do Trabalho:
representação. Ato praticado por advogado em defesa da inconstitucionalidade da OJ
sem poderes. Decisão homologatória. Ação nº 138 da SDI-I do TST...........................................161
rescisória...................................................................195
MILHORANZA, Mariângela Guerreiro
BORGES, Fernanda Gomes e Souza - Artigo: Processo e direitos fundamentais –
- Resenha: BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Brevíssimos apontamentos................................127
Processo constitucional e Estado Democrático
de Direito. 2. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: MOLINARO, Carlos Alberto
Del Rey, 2012...........................................................247 - Artigo: Processo e direitos fundamentais –
Brevíssimos apontamentos................................127
CAMARGO, Júlia Schledorn de
- Artigo: A divergência de interpretação dentro PINTO, Felipe Martins
de um mesmo Tribunal – Análise comparativa - Artigo: Crítica à tradicional opção pela teoria
do sistema do common law e da solução exis- da correspondência como critério para a
tente no direito brasileiro...................................... 91 obtenção da verdade no processo penal......175

CUNHA, Eduardo Maia Tenório da REDONDO, Bruno Garcia


- Artigo: Tipologia dos direitos humanos de - Resenha: DIDIER JR., Fredie. Sobre a Teoria
terceira dimensão e acesso à justiça................. 39 Geral do Processo, essa desconhecida.
Salvador: JusPodivm, 2012.................................241
CUNHA, Leonardo Carneiro da
- Artigo: O princípio do contraditório e a RIBEIRO, Sérgio Luiz de Almeida
cooperação no processo.....................................147 - Notas e comentários: Por que a prova de ofício
contraria o devido processo legal? Reflexões
DELFINO, Lúcio na perspectiva do garantismo processual......231
- Resenha: BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias.
Processo constitucional e Estado Democrático RODRIGUES, Marco Antonio dos Santos
de Direito. 2. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: - Artigo: A decisão de suspensão de recursos
Del Rey, 2012...........................................................247 repetitivos em razão de recurso representativo
de controvérsia – Impugnabilidade e proteção
DIDIER JR., Fredie em face de risco de dano....................................111
- Parecer: Morte da parte. Renúncia ao direito
afirmado. Impossibilidade. Ausência de SANTOS, Daniel Lin
representação. Ato praticado por advogado - Artigo: Da análise da desistência do recurso
sem poderes. Decisão homologatória. Ação excepcional a partir da objetivação do
rescisória...................................................................195 processo constitucional subjetivo..................... 59

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 253-257, jul./set. 2012
254 Índice

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VELLOSO, Adolfo Alvarado GARANTISMO processual, O


- Artigo: O garantismo processual........................... 13 - Artigo de: Adolfo Alvarado Velloso...................... 13

WELSCH, Gisele Mazzoni MORTE da parte. Renúncia ao direito afirmado.


- Notas e comentários: Comentários sobre o Impossibilidade. Ausência de representação.
parecer “Os poderes do Ministério Público
Ato praticado por advogado sem poderes.
na Ação Civil Pública” proferido por José
Manoel de Arruda Alvim Netto.........................223 Decisão homologatória. Ação rescisória
- Parecer de: Fredie Didier Jr., Daniela
Título Bomfim......................................................................195

ANÁLISE da desistência do recurso excepcional PRINCÍPIO do contraditório e a cooperação


a partir da objetivação do processo constitucio- no processo, O
nal subjetivo, Da - Artigo de: Leonardo Carneiro da Cunha..........147
- Artigo de: Magno Federici Gomes, Daniel
Lin Santos.................................................................... 59 PROCESSO e direitos fundamentais –
Brevíssimos apontamentos
ATAÍDE JÚNIOR, Jaldemiro Rodrigues de.
Precedentes vinculantes e irretroatividade do - Artigo de: Carlos Alberto Molinaro,
direito no sistema processual brasileiro: os Mariângela Guerreiro Milhoranza....................127
precedentes dos tribunais superiores e sua
eficácia temporal. Curitiba: Juruá, 2012. PROVA de ofício contraria o devido processo
- Resenha de: José Henrique Mouta Araújo......245 legal? Reflexões na perspectiva do garantismo
processual, Por que a
BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Processo - Notas e Comentários de: Sérgio Luiz de
constitucional e Estado Democrático de Direito. Almeida Ribeiro......................................................231
2. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2012.
- Resenha de: Fernanda Gomes e Souza Borges, REGIME jurídico único, coisa julgada e a com-
Lúcio Delfino............................................................247
petência residual da Justiça do Trabalho: em
COMENTÁRIOS sobre o parecer “Os poderes do defesa da inconstitucionalidade da OJ nº 138
Ministério Público na Ação Civil Pública” proferido da SDI-I do TST
por José Manoel de Arruda Alvim Netto - Artigo de: Cynara Monteiro Mariano................161
- Notas e Comentários de: Gisele Mazzoni
Welsch........................................................................223 TIPOLOGIA dos direitos humanos de
terceira dimensão e acesso à justiça
CRÍTICA à tradicional opção pela teoria da - Artigo de: Eduardo Maia Tenório da Cunha,
correspondência como critério para a Carlos Henrique Bezerra Leite............................. 39
obtenção da verdade no processo penal
- Artigo de: Felipe Martins Pinto............................175
Assunto
DECISÃO de suspensão de recursos repetitivos
em razão de recurso representativo de contro- A
vérsia – Impugnabilidade e proteção em face AÇÃO CAUTELAR
de risco de dano, A - Ver: A decisão de suspensão de recursos
- Artigo de: Marco Antonio dos Santos repetitivos em razão de recurso representativo
Rodrigues..................................................................111 de controvérsia – Impugnabilidade e proteção
em face de risco de dano. Artigo de: Marco
DIDIER JR., Fredie. Sobre a Teoria Geral do Antonio dos Santos Rodrigues..........................111
Processo, essa desconhecida. Salvador:
JusPodivm, 2012. AÇÃO RESCISÓRIA
- Resenha de: Bruno Garcia Redondo..................241
- Ver: Morte da parte. Renúncia ao direito
DIVERGÊNCIA de interpretação dentro de afirmado. Impossibilidade. Ausência de
um mesmo Tribunal – Análise comparativa do representação. Ato praticado por advogado
sistema do common law e da solução existente sem poderes. Decisão homologatória. Ação
no direito brasileiro, A rescisória. Parecer de: Fredie Didier Jr.,
- Artigo de: Júlia Schledorn de Camargo............. 91 Daniela Bomfim......................................................195

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 79, p. 253-257, jul./set. 2012
Índice 255
página página

ACESSO À JUSTIÇA DESISTÊNCIA RECURSAL


- Ver: Tipologia dos direitos humanos de terceira - Ver: Da análise da desistência do recurso
dimensão e acesso à justiça. Artigo de: Eduardo excepcional a partir da objetivação do
Maia Tenório da Cunha, Carlos Henrique processo constitucional subjetivo. Artigo de:
Bezerra Leite............................................................... 39 Magno Federici Gomes, Daniel Lin Santos..... 59

C DEVIDO PROCESSO LEGAL


CIVIL LAW - Ver: O garantismo processual. Artigo de:
- Ver: A divergência de interpretação dentro de Adolfo Alvarado Velloso......................................... 13
um mesmo Tribunal – Análise comparativa do - Ver: Por que a prova de ofício contraria o devido
sistema do common law e da solução existente processo legal? Reflexões na perspectiva do
no direito brasileiro. Artigo de: Júlia Schledorn garantismo processual. Notas e Comentários
de Camargo................................................................ 91 de: Sérgio Luiz de Almeida Ribeiro...................231

COMMON LAW DIGNIDADE HUMANA


- Ver: A divergência de interpretação dentro de - Ver: Processo e direitos fundamentais –
um mesmo Tribunal – Análise comparativa do Brevíssimos apontamentos. Artigo de:
sistema do common law e da solução existente Carlos Alberto Molinaro, Mariângela
no direito brasileiro. Artigo de: Júlia Schledorn Guerreiro Milhoranza............................................127
de Camargo................................................................ 91
DIREITOS COLETIVOS
COMPETÊNCIA RESIDUAL DA JUSTIÇA - Ver: Tipologia dos direitos humanos de
DO TRABALHO terceira dimensão e acesso à justiça. Artigo
- Ver: Regime jurídico único, coisa julgada e a de: Eduardo Maia Tenório da Cunha, Carlos
competência residual da Justiça do Trabalho: Henrique Bezerra Leite........................................... 39
em defesa da inconstitucionalidade da OJ
nº 138 da SDI-I do TST. Artigo de: Cynara DIREITOS FUNDAMENTAIS
Monteiro Mariano..................................................161 - Ver: Processo e direitos fundamentais –
Brevíssimos apontamentos. Artigo de:
CONSTITUIÇÃO Carlos Alberto Molinaro, Mariângela
- Ver: O garantismo processual. Artigo de: Guerreiro Milhoranza............................................127
Adolfo Alvarado Velloso......................................... 13
- Ver: Por que a prova de ofício contraria o devido DIREITOS HUMANOS
processo legal? Reflexões na perspectiva do - Ver: Tipologia dos direitos humanos de
garantismo processual. Notas e Comentários terceira dimensão e acesso à justiça. Artigo
de: Sérgio Luiz de Almeida Ribeiro...................231 de: Eduardo Maia Tenório da Cunha, Carlos
Henrique Bezerra Leite........................................... 39
D
DECISÃO HOMOLOGATÓRIA DIVERGÊNCIAS INTERNAS
- Ver: Morte da parte. Renúncia ao direito - Ver: A divergência de interpretação dentro de
afirmado. Impossibilidade. Ausência de um mesmo Tribunal – Análise comparativa do
representação. Ato praticado por advogado sistema do common law e da solução existente
sem poderes. Decisão homologatória. Ação no direito brasileiro. Artigo de: Júlia Schledorn
rescisória. Parecer de: Fredie Didier Jr., de Camargo................................................................ 91
Daniela Bomfim......................................................195
E
DESISTÊNCIA DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA EFEITO SUSPENSIVO
- Ver: Comentários sobre o parecer “Os poderes - Ver: A decisão de suspensão de recursos
do Ministério Público na Ação Civil Pública” repetitivos em razão de recurso representativo
proferido por José Manoel de Arruda Alvim de controvérsia – Impugnabilidade e proteção
Netto. Notas e Comentários de: Gisele em face de risco de dano. Artigo de: Marco
Mazzoni Welsch......................................................223 Antonio dos Santos Rodrigues..........................111

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ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO M


- Ver: Crítica à tradicional opção pela teoria MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO
da correspondência como critério para a DO RIO DE JANEIRO
obtenção da verdade no processo penal. - Ver: Comentários sobre o parecer “Os poderes
Artigo de: Felipe Martins Pinto...........................175 do Ministério Público na Ação Civil Pública”
- Ver: O princípio do contraditório e a coopera- proferido por José Manoel de Arruda Alvim
ção no processo. Artigo de: Leonardo Carneiro Netto. Notas e Comentários de: Gisele Mazzoni
da Cunha...................................................................147 Welsch........................................................................223

G MODELO ACUSATÓRIO
GARANTISMO PROCESSUAL - Ver: O garantismo processual. Artigo de:
- Ver: O garantismo processual. Artigo de: Adolfo Alvarado Velloso......................................... 13
Adolfo Alvarado Velloso......................................... 13
P
I PARTICIPAÇÃO DIALÉTICA
IMPARCIALIDADE DO JUIZ - Ver: Por que a prova de ofício contraria o devido
- Ver: Por que a prova de ofício contraria o devido processo legal? Reflexões na perspectiva do
processo legal? Reflexões na perspectiva do garantismo processual. Notas e Comentários
garantismo processual. Notas e Comentários de: Sérgio Luiz de Almeida Ribeiro....................231
de: Sérgio Luiz de Almeida Ribeiro....................231
PODER JUDICIÁRIO
IMPOSSIBILIDADE DA LIMITAÇÃO DA EXECUÇÃO - Ver: Comentários sobre o parecer “Os poderes
- Ver: Regime jurídico único, coisa julgada e a do Ministério Público na Ação Civil Pública”
competência residual da Justiça do Trabalho: proferido por José Manoel de Arruda Alvim
em defesa da inconstitucionalidade da OJ Netto. Notas e Comentários de: Gisele Mazzoni
nº 138 da SDI-I do TST. Artigo de: Cynara Welsch........................................................................223
Monteiro Mariano..................................................161
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
INCOMPATIBILIDADE
- Ver: O princípio do contraditório e a coopera-
- Ver: Por que a prova de ofício contraria o devido
ção no processo. Artigo de: Leonardo Carneiro
processo legal? Reflexões na perspectiva do
da Cunha...................................................................147
garantismo processual. Notas e Comentários
de: Sérgio Luiz de Almeida Ribeiro....................231
PRINCÍPIOS DA ISONOMIA E DA RAZOÁVEL
INTERESSE PÚBLICO E PRIVADO EXISTENTES DURAÇÃO DO PROCESSO
NO INTERIOR DO PROCESSO - Ver: Da análise da desistência do recurso
- Ver: Da análise da desistência do recurso excepcional a partir da objetivação do
excepcional a partir da objetivação do processo constitucional subjetivo. Artigo de:
processo constitucional subjetivo. Artigo de: Magno Federici Gomes, Daniel Lin Santos..... 59
Magno Federici Gomes, Daniel Lin Santos..... 59
PROCEDIMENTO RECURSAL PRINCIPAL
J E INCIDENTAL
JUIZ - Ver: Da análise da desistência do recurso
- Ver: O princípio do contraditório e a coopera- excepcional a partir da objetivação do
ção no processo. Artigo de: Leonardo Carneiro processo constitucional subjetivo. Artigo de:
da Cunha...................................................................147 Magno Federici Gomes, Daniel Lin Santos..... 59

L PROCESSO
LIMITES DEMOCRÁTICOS NO EXERCÍCIO - Ver: Processo e direitos fundamentais –
DO PODER Brevíssimos apontamentos. Artigo de:
- Ver: O garantismo processual. Artigo de: Carlos Alberto Molinaro, Mariângela
Adolfo Alvarado Velloso......................................... 13 Guerreiro Milhoranza............................................127

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Índice 257
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PROCESSO CIVIL REGIME JURÍDICO ESTATUTÁRIO


- Ver: O garantismo processual. Artigo de: - Ver: Regime jurídico único, coisa julgada e a
Adolfo Alvarado Velloso......................................... 13 competência residual da Justiça do Trabalho:
- Ver: Por que a prova de ofício contraria o devido em defesa da inconstitucionalidade da OJ
processo legal? Reflexões na perspectiva do nº 138 da SDI-I do TST. Artigo de: Cynara
garantismo processual. Notas e Comentários Monteiro Mariano..................................................161
de: Sérgio Luiz de Almeida Ribeiro....................231
RENÚNCIA AO DIREITO
- Ver: Morte da parte. Renúncia ao direito
PROCESSO COOPERATIVO
afirmado. Impossibilidade. Ausência de
- Ver: O princípio do contraditório e a coopera-
representação. Ato praticado por advogado
ção no processo. Artigo de: Leonardo Carneiro
sem poderes. Decisão homologatória. Ação
da Cunha...................................................................147
rescisória. Parecer de: Fredie Didier Jr.,
Daniela Bomfim......................................................195
PROCESSO JURISDICIONAL
- Ver: O garantismo processual. Artigo de:
S
Adolfo Alvarado Velloso......................................... 13
SUBSTITUTO PROCESSUAL
- Ver: Comentários sobre o parecer “Os poderes
PROCESSO PENAL
do Ministério Público na Ação Civil Pública”
- Ver: Crítica à tradicional opção pela teoria da
proferido por José Manoel de Arruda Alvim
correspondência como critério para a obten-
Netto. Notas e Comentários de: Gisele
ção da verdade no processo penal. Artigo Mazzoni Welsch......................................................223
de: Felipe Martins Pinto........................................175
- Ver: O garantismo processual. Artigo de: SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Adolfo Alvarado Velloso......................................... 13 - Ver: A divergência de interpretação dentro
de um mesmo Tribunal – Análise comparativa
PROVA DE OFÍCIO do sistema do common law e da solução exis-
- Ver: Por que a prova de ofício contraria o devido tente no direito brasileiro. Artigo de:
processo legal? Reflexões na perspectiva do Júlia Schledorn de Camargo................................ 91
garantismo processual. Notas e Comentários
de: Sérgio Luiz de Almeida Ribeiro.....................231 SUSPENSÃO
- Ver: A decisão de suspensão de recursos
R repetitivos em razão de recurso representativo
RECURSO REPRESENTATIVO de controvérsia – Impugnabilidade e proteção
- Ver: A decisão de suspensão de recursos em face de risco de dano. Artigo de:
repetitivos em razão de recurso representativo Marco Antonio dos Santos Rodrigues............111
de controvérsia – Impugnabilidade e proteção
em face de risco de dano. Artigo de: Marco V
Antonio dos Santos Rodrigues..........................111 VERDADE
- Ver: Crítica à tradicional opção pela teoria da
RECURSOS ESPECIAIS REPETITIVOS correspondência como critério para a obten-
- Ver: Da análise da desistência do recurso ção da verdade no processo penal. Artigo
excepcional a partir da objetivação do de: Felipe Martins Pinto........................................175
processo constitucional subjetivo. Artigo de:
Magno Federici Gomes, Daniel Lin Santos..... 59 VÍCIOS DA DECISÃO
- Ver: Morte da parte. Renúncia ao direito
RECURSOS ESPECIAIS REPRESENTATIVOS afirmado. Impossibilidade. Ausência de
- Ver: Da análise da desistência do recurso representação. Ato praticado por advogado
excepcional a partir da objetivação do sem poderes. Decisão homologatória. Ação
{processo constitucional subjetivo. Artigo de: rescisória. Parecer de: Fredie Didier Jr.,
Magno Federici Gomes, Daniel Lin Santos..... 59 Daniela Bomfim......................................................195

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trimestral, de­verão ser encaminhados, no formato eletrônico, para o seguinte
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dos seguintes dados: nome do autor, sua qualificação acadêmica e profissional,
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Portuguesa, a partir de 1º de janeiro de 2009. As citações de textos anteriores
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contendo: título do artigo (na língua do texto e em inglês), nome do autor,
filia­­ção institucional, qualificação (mestrado, doutorado, cargos etc.), resumo
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sumário do artigo, epí­grafe (se houver), texto do artigo, referências. O autor
deverá fazer constar, no final do artigo, a data e o local em que foi escrito o
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com o uso de itálico e não por meio do negrito e do sublinhado. As citações
(palavras, expressões, períodos) deverão ser cuidadosamente conferidas
pelos autores e/ou tra­­dutores; as citações textuais longas (mais de três linhas)

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260 Instruções para os autores

devem constituir um pará­grafo independente, com recuo esquerdo de 2cm


(alinhamento justificado), utilizando-se espaçamento entrelinhas simples e
tamanho da fonte 10; as citações textuais curtas (de até três linhas) devem
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corpo 11 e impressa em papel Offset 75g
(miolo) e Supremo 250g (capa) pela Gráfica e
Editora O Lutador. Belo Horizonte/MG, setembro
de 2012.

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