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OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL

EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

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PÁGINA EM BRANCO

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MARCOS EHRHARDT JR.
Coordenador

Luiz Edson Fachin


Prefácio

OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL


EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Belo Horizonte

2012

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© 2012 Editora Fórum Ltda.

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A613 Os 10 anos do Código Civil : evolução e perspectivas / Coordenador Marcos Ehrhardt Jr. ; prefácio
Luiz Edson Fachin. – Belo Horizonte : Fórum, 2012.

538 p.
ISBN 978-85-7700-616-8

1. Direito civil. 2. Direito patrimonial (contratos e propriedade). I. Ehrhardt Jr., Marcos.


II. Fachin, Luiz Edson.

CDD: 341.02
CDU: 342.72

Informação bibliográfica deste livro, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas
(ABNT):

EHRHARDT JR., Marcos (Coord.). Os 10 anos do Código Civil: evolução e perspectivas. Belo Horizonte: Fórum,
2012. 538 p. ISBN 978-85-7700-616-8.

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SUMÁRIO

PREFÁCIO
Luiz Edson Fachin...................................................................................................13

APRESENTAÇÃO....................................................................................................17

PARTE I
TEORIA GERAL DO DIREITO

A PARTE GERAL DO DIREITO CIVIL BRASILEIRO –


REFLEXÕES CRÍTICAS SOBRE A SUA ATUALIDADE E A SUA
PRESTABILIDADE NO PRIMEIRO DECÊNIO DO CÓDIGO CIVIL
Rodrigo Xavier Leonardo.......................................................................................23
1 Introdução....................................................................................................23
2 A parte geral na tradição do Direito Civil brasileiro.............................24
3 As críticas à parte geral ao Código Civil e os ecos em território
nacional........................................................................................................25
4 A parte geral do Código Civil brasileiro de 2002: a tradição
e a traição.....................................................................................................27
5 Considerações finais...................................................................................32
Referências...................................................................................................32

CAPACIDADE CIVIL – FIXAÇÃO DE NOVOS PARADIGMAS


PARA A CONSTRUÇÃO DE UM REGIME JURÍDICO VOLTADO À
TUTELA DA DIGNIDADE HUMANA
Carolina Valença Ferraz, Glauber Salomão Leite.............................................35
1 Aspectos gerais da capacidade civil.........................................................35
2 Limitações à capacidade civil dos menores de idade............................37
3 Limitações à capacidade civil dos maiores de idade.............................39
3.1 A curatela da pessoa com deficiência mental ou intelectual ...............39
3.2 Reflexões a partir da Constituição Federal: a promoção da
dignidade humana.....................................................................................41
3.3 A capacidade civil na Convenção da ONU sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência.............................................................................47
Conclusões...................................................................................................51
Referências...................................................................................................52

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FIM DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA PESSOA NATURAL –
BREVE ESTUDO A PARTIR DO DIREITO POSITIVO BRASILEIRO
Venceslau Tavares Costa Filho.............................................................................55
1 Considerações sobre a morte como fato jurídico...................................55
2 Tipologia: morte real, morte presumida e morte civil..........................56
3 Presunções sobre a morte..........................................................................58
3.1 Morte presumida com declaração de ausência......................................58
3.2 Premoriência e comoriência......................................................................59
3.3 Morte presumida sem declaração de ausência.......................................60
4 A morte está sob uma jurisdição “médica”?...........................................61
Referências...................................................................................................65

DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE – TESTAMENTO


VITAL, MANDATO DURADOURO E SUA ADMISSIBILIDADE NO
ORDENAMENTO BRASILEIRO
Adriano Marteleto Godinho.................................................................................67
1 Considerações iniciais................................................................................67
2 A autonomia privada nas relações médico-paciente:
o consentimento informado......................................................................69
3 O sentido do art. 15 do Código Civil.......................................................73
4 As diretivas antecipadas de vontade: aspectos fundamentais.............74
4.1 O testamento vital ......................................................................................75
4.2 O mandato duradouro...............................................................................83
5 Os efeitos das diretivas antecipadas .......................................................85
6 Conclusões...................................................................................................88
Referências...................................................................................................89

A CONSTRUÇÃO DO ABUSO DE DIREITO NOS DEZ ANOS DO


CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 2002
Flávio Tartuce...........................................................................................................91

EMPRESÁRIO INDIVIDUAL COM RESPONSABILIDADE


LIMITADA – APROXIMANDO O DIREITO EMPRESARIAL DA
TEORIA CIVILISTA DA PERSONALIDADE
José Barros Correia Junior...................................................................................111
1 Da fraude no meio empresarial e a criação de “sociedades
fantasmas”.................................................................................................111
2 Da teoria dos sujeitos de direito e da personalidade como relação
numerus clausus..........................................................................................114
3 Da inexistência e desnecessidade das sociedades unipessoais..........119
4 Da necessidade da limitação de responsabilidade para os
empresários individuais e de sua possível regulamentação..............128
Referências.................................................................................................144

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PARTE II
DIREITO CONTRATUAL

DUZENTOS ANOS DE HISTORICIDADE NA RESSIGNIFICAÇÃO


DA IDEIA DE CONTRATO
Suzana Rahde Gerchmann, Marcos Catalan....................................................149
Introdução..................................................................................................149
1 O Estado Liberal e a legitimação dos pactos fáusticos........................150
2 O Estado Social: entre incluídos e esquecidos......................................154
3 O Estado Democrático de Direito: existe alguém além de mim........158
Referências.................................................................................................163

A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DOS CONTRATOS


NO CONTEXTO DAS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO E DO
ESTADO
Ana Carolina Trindade Soares............................................................................167
Considerações iniciais..............................................................................167
1 A necessidade de salvaguarda da liberdade como garantia
dos direitos individuais contra o Estado...............................................169
2 O perfil do direito no Estado liberal: a interpretação e a
aplicação como operações meramente formais....................................172
3 A insuficiência do modelo liberal diante da desigualdade
material entre os indivíduos. A necessidade de intervenção
do Estado na economia e nas relações sociais......................................175
4 O direito contratual no Estado liberal. O Código Civil como
locus normativo dos contratos privados e o dogma da
completude................................................................................................179
5 Inserção da teoria dos contratos no Estado social.
A repersonalização do direito civil e sua influência na teoria dos
contratos. A mudança de paradigma da legislação contratual..........184
6 A constitucionalização do direito dos contratos: sua relevância
no conjunto normativo diante da primazia constitucional.................190
Referências.................................................................................................199

A RELATIVIZAÇÃO DA PROTEÇÃO AO ATO JURÍDICO


PERFEITO E AO DIREITO ADQUIRIDO NO ÂMBITO DOS
CONTRATOS PRIVADOS – SEGURANÇA JURÍDICA E
INTERPRETAÇÃO CIVIL-CONSTITUCIONAL
Ermiro Neto............................................................................................................203
1 Apresentação do tema..............................................................................203
2 Direito intertemporal no Brasil: ato jurídico perfeito e direito
adquirido....................................................................................................207

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3 Ato jurídico perfeito e direito adquirido como direitos
fundamentais.............................................................................................211
3.1 Direito fundamental à segurança jurídica nas relações privadas
e o conflito com outros direitos fundamentais.....................................212
4 A impossibilidade de relativização do ato jurídico perfeito e
do direito adquirido no âmbito dos contratos privados.....................215
5 Conclusão...................................................................................................219
Referências.................................................................................................220

A RESOLUÇÃO DO CONTRATO POR ONEROSIDADE


EXCESSIVA NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 2002 E SUA
APLICAÇÃO NO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Larissa Maria de Moraes Leal, Roberto Paulino de
Albuquerque Júnior.............................................................................................223
Introdução..................................................................................................223
1 Da soberania clássica do contrato à teoria da base objetiva do
contrato.......................................................................................................224
2 A onerosidade excessiva e seus efeitos no ambiente contratual........227
2.1 A onerosidade excessiva..........................................................................227
2.2 A eficácia modificativa ou revisional da alteração de
circunstâncias............................................................................................229
2.3 A eficácia resolutiva da alteração das circunstâncias..........................230
3 A onerosidade excessiva no Código Civil brasileiro de 2002
e sua aplicação no Superior Tribunal de Justiça...................................231
4 Revisão por onerosidade excessiva após o Código Civil de 2002...... 237
Referências.................................................................................................239

A RESOLUÇÃO EXTRAJUDICIAL DO CONTRATO EM


VIRTUDE DO DESCUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES NOS
ORDENAMENTOS JURÍDICOS BRASILEIRO E PORTUGUÊS
Lavínia Cavalcanti Lima Cunha.........................................................................241
1 Introdução..................................................................................................241
2 Conceituação.............................................................................................243
3 Situação jurídica comparada...................................................................245
4 Fundamento..............................................................................................247
4.1 Teoria da condição implícita...................................................................248
4.2 Teoria da causa..........................................................................................251
4.3 Teoria da sanção........................................................................................252
4.4 Teoria da equidade...................................................................................253
4.5 Teoria legal ................................................................................................255
5 Forma..........................................................................................................257
5.1 Resolução legal..........................................................................................259
5.2 Resolução convencional...........................................................................262
6 Conclusão...................................................................................................266
Referências.................................................................................................268

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NOTAS SOBRE O CONTRATO DE SEGURO NO CÓDIGO
CIVIL DE 2002
Fernanda Paes Leme Peyneau Rito....................................................................271
1 Introdução..................................................................................................271
2 Conceito e elementos essenciais do contrato de seguro......................273
2.1 O interesse legítimo..................................................................................275
2.2 A predeterminação dos riscos cobertos pelo contrato de seguro......278
2.3 A empresarialidade..................................................................................281
3 A funcionalização do contrato de seguro .............................................283
3.1 Prêmio e risco: técnica securitária e natureza comutativa
do seguro....................................................................................................286
3.2 O seguro de responsabilidade civil........................................................289
4 Considerações finais.................................................................................296
Referências ................................................................................................296

DISCIPLINA JURÍDICA DO JOGO E APOSTA NO SISTEMA


BRASILEIRO
Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho...........................................299
1 Introdução..................................................................................................299
2 Conceito.....................................................................................................299
3 Natureza jurídica......................................................................................302
4 Espécies de jogo........................................................................................303
5 Características...........................................................................................312
6 Contratos diferenciais..............................................................................314
7 Utilização do sorteio.................................................................................316
8 Exigibilidade de dívida de jogo contraída no exterior........................317
9 O reembolso de empréstimo para jogo ou aposta...............................320
10 Extinção do contrato.................................................................................321
Referências.................................................................................................321

PARTE III
RESPONSABILIDADE CIVIL

EM BUSCA DE UMA TEORIA GERAL DA


RESPONSABILIDADE CIVIL
Marcos Ehrhardt Jr. ..............................................................................................325
1 Fundamento e funções da responsabilidade civil ...............................325
2 Questões terminológicas: ainda faz sentido manter a
denominação responsabilidade extracontratual?......................................333
3 Os âmbitos da responsabilidade civil: da diversidade à unidade....... 335
Referências.................................................................................................355

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CODIFICAÇÃO OU INTERPRETAÇÃO? OS EFEITOS POSSÍVEIS
DOS ILÍCITOS CIVIS
Felipe Peixoto Braga Netto..................................................................................357
1 O ambiente metodológico das codificações e a ilicitude civil............357
2 Heterogeneidade valorativa e complexidade social............................363
3 A dimensão interpretativa do Direito Civil..........................................366
4 A unidade lógica dos ilícitos civis..........................................................374
4.1 Ilícito indenizante.....................................................................................381
4.2 Ilícito caducificante...................................................................................382
4.3 Ilícito autorizante......................................................................................383
4.4 Ilícito invalidante......................................................................................384
5 Construindo paradigmas diferenciados de proteção..........................386
Referências.................................................................................................388

OS LIMITES IMPOSTOS PELO ORDENAMENTO JURÍDICO


BRASILEIRO AO EXERCÍCIO JURÍDICO DOS PROCEDIMENTOS
DE INSCRIÇÃO DO NOME DO CONSUMIDOR EM CADASTROS
DE INADIMPLENTES DO COMÉRCIO E DE CORTE NO
FORNECIMENTO DE SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS – A
QUESTÃO DOS DANOS RESULTANTES DA CONCRETIZAÇÃO
DESSES PROCEDIMENTOS POR DÍVIDAS DE VALOR IRRISÓRIO
E AS BALIZAS RESULTANTES DA APLICAÇÃO DO ART. 187 DO
CÓDIGO CIVIL
Marcelo Marques Cabral.....................................................................................391
1 Introdução..................................................................................................391
2 Inscrição do nome do devedor em cadastros de proteção ao
crédito e óbice no fornecimento de serviços públicos essenciais
como forma de atuação das empresas no exercício regular
de Direito...................................................................................................393
3 Casos de exercício jurídico inadmissível e a delimitação
determinada pelo art. 187 do Código Civil brasileiro.........................395
3.1 Elementos delineadores da figura do abuso de Direito......................397
3.1.1 Fins econômicos e sociais do Direito.....................................................398
3.1.2 Bons costumes...........................................................................................399
3.1.3 A boa-fé objetiva.......................................................................................400
3.2 A ilicitude decorrente do abuso de Direito...........................................404
3.3 Os limites impostos ao exercício jurídico de negativação do nome
do consumidor nos cadastros de proteção ao crédito e de corte no
fornecimento de serviços públicos essenciais.......................................406
4 A responsabilidade civil decorrente do exercício jurídico
inadmissível...............................................................................................408
5 Conclusão...................................................................................................411
Referências.................................................................................................412

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PARTE IV
DIREITO DAS COISAS

OS DIREITOS REAIS CODIFICADOS NO CURSO DA


CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL
Ricardo Aronne......................................................................................................417
1 Ecos de um passado recente do Direito Privado..................................417
2 Raízes modernas da propriedade codificada.......................................418
3 Um breve dissecar dos direitos reais.....................................................423
4 Sistematizando as relações dominiais para além do Código.............431
5 A Teoria dos princípios e os direitos reais............................................435
Referências.................................................................................................440

A FUNCIONALIZAÇÃO DOS INSTITUTOS DO DIREITO DE


VIZINHANÇA NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
Paula Moura F. de Lemos Pereira.......................................................................447
1 Introdução..................................................................................................447
2 O Código Civil e a funcionalização do Direito de Vizinhança..........448
3 As espécies de Direitos de Vizinhança..................................................456
3.1 Árvores limítrofes.....................................................................................457
3.2 Direito de Passagem.................................................................................461
3.3 Da passagem de cabos e tubulações......................................................465
3.4 Direito de Tapagem e de Demarcação...................................................467
3.5 Direito de Construir.................................................................................469
3.6 Direito de Penetração...............................................................................474
4 Conclusão...................................................................................................475
Referências.................................................................................................476

O CALVÁRIO DO §2º DO ART. 1.276 DO CÓDIGO CIVIL – VIDA


E MORTE DE UM MALFADADO DISPOSITIVO LEGAL A PARTIR
DE UMA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
Cristiano Chaves de Farias..................................................................................479
1 Colocação do problema...........................................................................479
2 A necessidade de uma interpretação sistêmica da Constituição
e a inexistência de direitos fundamentais absolutos...........................480
3 A compreensão dos institutos e dispositivos do Código Civil
conforme a norma constitucional...........................................................482
4 Noções gerais sobre a perda da propriedade pelo abandono............485
5 A presunção de abandono no Código Civil pela falta de pagamento
de tributos e a sua conexão com o largo alcance da função social
da propriedade..........................................................................................487
6 A(s) inconstitucionalidade(s) do §2º do art. 1.276 do
Código Civil...............................................................................................491
6.1 Violação do devido processo legal.........................................................491

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6.2 Violação da regra de que somente a Constituição pode determinar
a perda da propriedade sem indenização.............................................494
6.3 Violação à regra do não confisco............................................................494
6.4 Violação ao princípio da razoabilidade.................................................497
7 Notas conclusivas – A impossibilidade de salvação do §2º
do art. 1.276 do Código Civil, impondo-se o reconhecimento de
sua inconstitucionalidade para preservação dos valores
constitucionais...........................................................................................499
Referências.................................................................................................501

A TUTELA DO BEM DIFUSO NAS RELAÇÕES JURÍDICAS DE


DIREITO CIVIL
Everilda Brandão Guilhermino..........................................................................505
1 Considerações iniciais..............................................................................505
2 O bem difuso nas relações privadas......................................................506
3 Para um novo Direito, novos parâmetros.............................................508
4 Seria o bem difuso um sujeito de direito?.............................................511
5 Um Código Civil tradicional para um Direito de vanguarda............512
Referências.................................................................................................516

DIREITO DE SUPERFÍCIE NO CC/02 – AVANÇOS E


CONTROVÉRSIAS
Pedro Pontes de Azevêdo....................................................................................519
1 Introdução..................................................................................................519
2 Direito real de superfície – Breve análise do seu conceito e das
suas características....................................................................................521
3 Regulamentação legal no Código Civil de 2002...................................522
4 Avanços e controvérsias acerca do direito de superfície.....................524
4.1 Convivência entre as normas do CC/02 e do Estatuto da
Cidade (Lei nº 10.257/01) no regramento do direito de
superfície....................................................................................................524
4.2 Possibilidade e legalidade da sobrelevação (ou direito de laje)
e da superfície por cisão..........................................................................525
4.3 Direito de superfície como instrumento de funcionalização
da propriedade..........................................................................................529
5 Conclusões.................................................................................................531
Referências.................................................................................................532

SOBRE OS AUTORES............................................................................................535

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PREFÁCIO

O FLUIR DO TEMPO DE UM CÓDIGO


EM MOVIMENTO

Um código não nasce, faz-se. Em janeiro deste ano a vigência


comportou o primeiro decênio alcançado pelo Código Civil brasileiro.
No entreato do ontem ao hoje muito se debateu, perquiriu e — certamente
mais importante — construiu a partir das inúmeras reflexões trazidas
à baila com a inauguração, no passado recente, de uma pressuposta
nova codificação.
Tais reflexões vieram impulsionadas, com caravaggescos traços
de luz e sombra, pela necessidade mesma de se engendrar, após a pri-
mavera constitucional de 1988, um diploma material que servisse ao
beneplácito da travessia entre a codificação e a constituição do Direito Civil
brasileiro. E de pronto se sabia que esse diploma não emergiria, assim,
acabado previamente, como eram os dogmas que esteavam o estatuto
que o precedeu; quiçá, pelo oposto: já na sua gênese apontou-se que se
tratava, em verdade, de um Código nascido no pretérito do imperfeito.
Acabou por ratificar o Código Civil de 2002, portanto, aquela
clara ideia de que uma lei não nasce lei, antes se faz lei em sua construção
e lapidação cotidiana. Imperava, já naquele momento de gênese que
representou o dia 10 de janeiro de 2002, uma certeza embaralhada em
um carteado de questionamentos: a de que o porvir demandava uma
importante tarefa a concretizar, tarefa essa da qual apenas o tempo daria
conta de expressar a ocorrência ou não de êxito.
Eis que o tempo, aquela superfície oblíqua e ondulante1 como quis
Saramago, mostrou-se um elemento essencial para a contemplação do

1
SARAMAGO, José. O Evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
p. 289.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
14 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Código Civil e das mudanças havidas no tablado jurídico do Direito


Privado, operadas no trânsito da faticidade do real para o conteúdo
normativo ali inserido. E justamente superado um decênio de vigência
é que se pode entrever no presente, ao matiz da luminosidade daquilo
que já passou, o cotejo da evolução e perspectivas vindouras do Código
Civil. Assoma, nesse quadrante específico de ideias e ponderações, o
desiderato da obra que ora se apresenta. Uma contribuição relevante,
ao mesmo tempo crítica e construtiva, se coloca ao dispor de estudantes
e estudiosos.
Inegável que, no interregno já mencionado, passou o Código Civil
por uma evolução, notadamente adjetivada pela permeabilidade de suas
disposições à ordem constitucional vigente, evolução essa talhada na
realidade pelas reflexões doutrinárias e pela comprometida atividade
e realização da jurisprudência.
Eis o exemplo da “constitucionalização do direito dos contratos
no contexto das transformações do direito do Estado”, retratado nas
páginas seguintes, bem como os “direitos reais codificados no curso da
constitucionalização do direito civil” e a concretizada “funcionalização
dos institutos do direito de vizinhança” na nova codificação, reflexões
essas presentes nas relevantes ponderações lapidadas pelos autores
que balizam a presente publicação.
Ao lado do reconhecimento dessa evolução está, por igual, a
contemplação de algumas perspectivas inerentes ao longo caminho que
ainda resta ser trilhado pela codificação civil brasileira, ao horizonte
da otimização gradual de suas disposições, apontamento esse erigido
sob o pálio da assertiva antes posta, de que ao tempo estava abrigada a
tarefa de se fazer do Código Civil, de fato, um Código condizente com
o horizonte constitucional e em movimento com a plural dinamicidade
social que o esteia.
Bem por isso é que algumas desinências jurídicas específicas ca-
recem ainda de comprometida observação, análise e reflexão, exemplo
esse coligido no fértil terreno da responsabilidade civil contemporânea,
campo no qual “está-se em busca de uma teoria” que não seja uma
generalidade de abstrações e que, então, auxilie a imprimir um possí-
vel sentido sistemático (sem olvidar, no entanto, os questionamentos
que ao instituto se direcionam, sob o direito de danos) às concepções
divergentes sobre esse mesmo tema. São os desafios da atual feição da
sociedade, notadamente voltada ao consumo e, assim, ensejadora de
mais riscos e danos.
Se em tópicos específicos a codificação já se mostra aberta ao
diálogo constitucional, comporta, ao mesmo passo, compartimentos

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LUIZ EDSON FACHIN
PREFÁCIO
15

ainda confinados à incomunicabilidade, como se verifica, dentre tantos


outros exemplos, no §2º do art. 1.276, dispositivo que demanda uma
“leitura constitucional” sob pena de restar encarcerado em incongruente
exercício hermenêutico atinente à perda da propriedade.
Enfim, eis em tela a oportunidade de se confrontar um itinerário
de reflexões essenciais ao cotejo do que passou e do que está adiante
do Código Civil brasileiro. Persiste, por certo, um novo leque de reptos
que nos arrostam cotidianamente, desafio esse que não se pode olvidar.
Oscar Wilde, durante período de cárcere, escreveu em epístola2 que
“o passado não é irrevogável”; e assim se sucedeu, é possível atestar,
com o Direito Civil brasileiro e a própria codificação, colocada que foi
em movimento na tentativa da apreensão de suas disposições em lente
constitucional em nítido sinal de superação justamente daquilo que já
passou.
Escrever é uma forma de ver. Mais importante, então, do que
cotejar o pretérito é fitar o futuro, pois, como bem assinalou Machado
de Assis, “não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que
vem”.3 E, com esse novo minuto, novamente sob a égide de um peculiar
fluir do tempo, o olhar dos textos que se apresentam capta novas trilhas
a seguir, na contínua construção do Direito Civil de nosso tempo.

Curitiba, julho de 2012.

Luiz Edson Fachin


Professor Titular de Direito Civil da Universidade Federal
do Paraná.

2
Trata-se de De Profundis, título dado, quando publicada por Robert Ross pela primeira
vez, em 1905, à carta que Oscar Wilde endereçou a Lord Alfred Douglas, amigo de Wilde
desde 1892. A referência que aqui se faz é da edição brasileira de 1998 (WILDE, Oscar. De
Profundis. Porto Alegre: L&PM, 1998).
3
É o que Machado de Assis professa por intermédio das letras de Brás Cubas, ao capítulo
7 (Delírio), de suas memórias póstumas (ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás
Cubas. São Paulo: Martin Claret, 2010. p. 189).

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APRESENTAÇÃO

Depois de mais de uma década de tramitação no Congresso


Nacional, a Lei nº 10.406/02, o Código Civil atualmente em vigor, foi
publicado sob fortes críticas. Discutia-se a conveniência e a oportunida-
de da edição de uma lei, cujo projeto original envelhecera ao longo dos
anos, deixando de tratar de temas importantes e bastante controversos
já presentes no cotidiano da sociedade naquela época.
Justificou-se o período de um ano de vacatio legis para permitir
que ajustes pudessem ser implementados antes do início da vigência,
afinal não se pretendia esquecer um esforço de tantos e por tanto tempo
para a edição de uma nova codificação civil para o homem comum.
É fato que qualquer alteração no Código Civil causa grande
impacto na rotina social. É nesse diploma que estão contidas as formas
que regem nossas vidas diárias: como contratar, como constituir uma
entidade familiar, o que fazer em casos de inadimplemento de obri-
gações, como proteger meus bens e o que acontece em caso de morte?
Todas são indagações facilmente respondidas a partir da simples leitura
do que num período de nossa história já se denominou “constituição
do homem comum”, expressão que bem destaca sua importância.
Independentemente dos problemas e impropriedades técnicas
que existem no texto do Código Civil, sua publicação provocou uma
revitalização nos estudos nesta área. Surgiram novos manuais, livros
discutindo as alterações, vários eventos foram organizados... E o tempo
mais uma vez foi passando. No dia 10 de janeiro de 2012, completou-se
o aniversário de uma década deste Código, surgindo a ideia de registrar
este marco com a organização da presente obra.
Vivemos um momento no qual as discussões iniciais sobre no-
vos institutos e como interpretar os dispositivos vigentes começam a
se assentar. Os tribunais superiores já se manifestaram sobre diversas
questões que até então se encontravam em ebulição no campo doutri-
nário. Ao estudarmos a evolução da interpretação do CC/02, podemos
vislumbrar novas perspectivas, numa fase importante, na qual se en-
contra em debate no Congresso Nacional a proposta de atualização do

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
18 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Código de Defesa do Consumidor, a proposta de um novo Código Co-


mercial e de um estatuto específico para tratar do Direito das Famílias.
Anote-se caro leitor que as referências que apresentamos em
relação a novos projetos de lei em curso referem-se apenas ao campo
do direito privado. Espera-se ansiosamente pela aprovação de um novo
Código de Processo Civil, com reflexos consideráveis na sistemática de
alguns institutos de Direito Material.
Enquanto os novos diplomas legais não se tornam realidade
(quem sabe junto com algum deles também não seja concluída a tra-
mitação dos diversos projetos de lei de modernização e atualização do
CC/02, que há mais de dez anos aguardam apreciação no Congresso
Nacional) a doutrina cumpre o seu papel, registrando o caminho trilha-
do até aqui, com o resgate do que ocorreu nos últimos anos para que
possamos olhar o futuro com a exata referência de onde estamos em
termos de interpretação de institutos-chave em nossa codificação civil.
A presente obra foi dividida em quatro partes, tratando, respecti­
vamente, da Teoria Geral do Direito Civil, do Direito Contratual, da
Responsabilidade Civil e do Direito das Coisas. A ausência de uma parte
específica para abordar o Direito de Família se justifica pelo fato de ter-
mos organizado outra coletânea específica desse tema, considerando o
grande número de alterações que se verificaram nos últimos anos. Essa
decisão, inclusive, está em consonância com as propostas de alteração
legislativa em tramitação no Congresso Nacional, pois o projeto de lei
que busca instituir o estatuto das famílias propõe a revogação do livro
de família do CC/02.
Na primeira parte, iniciamos com as reflexões críticas de Rodrigo
Xavier Leonardo sobre a Parte Geral do Direito Civil e, após essa visão
geral do tema, apresentamos contribuições que tratam de questões mais
específicas. Coube a Carolina Valença Ferraz e Glauber Salomão Leite
discutirem a necessidade da fixação de novos paradigmas para a defi-
nição da capacidade civil, sob a ótica da tutela da dignidade humana.
Já Venceslau Tavares Costa Filho optou por abordar o fim da
personalidade jurídica da pessoa natural, tema que acaba complemen-
tado pela interessante reflexão apresentada por Adriano Marteleto
Godinho sobre as diretivas antecipadas de vontade, tema que passou
a ser conhecido em terras brasileiras sob a denominação “testamento
vital”. O texto também analisa o instituto do mandato duradouro e sua
admissibilidade no ordenamento brasileiro, questões que cada vez mais
surgem no cotidiano forense.
Ainda sobre a Parte Geral do Código Civil, merece destaque a
contribuição de Flávio Tartuce, que tem como tema a construção do

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APRESENTAÇÃO 19

abuso de direito na última década e o texto de José Barros Correia


Junior, que procura estabelecer um diálogo entre o Direito Civil clássico
e o Direito Empresarial através da análise da categoria do Empresário
Individual com Responsabilidade Limitada.
A segunda parte do livro, que trata especificamente do Direito
Contratual, inicia com o texto elaborado por Suzana Rahde Gerchmann
e Marcos Catalan sobre a ressignificação da ideia de contrato, que serve
como ponto de partida para a leitura da contribuição de Ana Carolina
Trindade Soares, que aborda a constitucionalização deste ramo do
Direito. Ainda no campo do que se poderia denominar teoria geral
dos contratos, vale a referência ao artigo de Ermiro Neto, que trata da
importante questão da relativização da proteção ao ato jurídico perfeito
e ao direito adquirido no âmbito dos contratos privados. Ponto comum
aos três artigos aqui destacados é o viés de interpretação a partir da
metodologia do Direito Civil-Constitucional.
Tema recorrente nos tribunais é a questão do inadimplemento
e da extinção do contrato. Nesta obra a análise do assunto ficou sob a
responsabilidade de Larissa Maria de Moraes Leal e Roberto Paulino
Albuquerque Junior, juntamente com Lavínia Cavalcanti Lima Cunha.
Os primeiros trataram da resolução do contrato por onerosidade ex-
cessiva no CC/02 tendo como paradigma sua aplicação no Superior
Tribunal de Justiça. Já a professora Lavínia nos brinda com um estudo
de Direito Comparado, discorrendo sobre a resolução extrajudicial do
contrato na experiência pátria e no regime português.
Para finalizar a segunda parte desta coletânea, temos a análise
de alguns contratos em espécie. Fernanda Paes Leme Peyneau Rito
aborda aspectos importantes do contrato de seguro, enquanto Pablo
Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho discorrem sobre a disciplina
jurídica do jogo e aposta no sistema brasileiro, tema negligenciado por
boa parte da doutrina.
No campo da Responsabilidade Civil, Felipe Peixoto Braga Netto
discute os efeitos possíveis dos ilícitos civis, enquanto apresentamos um
texto reflexivo buscando demonstrar a necessidade de conformação de
uma teoria geral da responsabilidade civil. Já Marcelo Marques Cabral
discute os limites impostos pelo ordenamento jurídico brasileiro ao exer-
cício jurídico dos procedimentos de inscrição do nome do consumidor
em cadastros de inadimplentes do comércio e de corte no fornecimento
de serviços públicos essenciais.
Na última parte desta obra, Ricardo Aronne aborda os direitos
reais codificados no curso da constitucionalização do Direito Civil,
num estudo que pode ser complementado pela contribuição de Paula

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20 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Moura F. de Lemos Pereira, que discorre especificamente sobre a fun-


cionalização dos institutos do Direito de Vizinhança no CC/02, e pela
contribuição de Pedro Pontesde Azevêdo sobre os avanços e contro-
vérsias do Direito de Superfície.
Continuando com a crítica aos institutos no Código vigente,
Cristiano Chaves de Farias apresenta suas conclusões sobre o §2º, do
art. 1.276, do CC/02, a partir de uma interpretação constitucional, en-
quanto Everilda Brandão Guilhermino analisa a tutela do bem difuso
nas relações jurídicas de Direito Civil.
Abuso de direito, superfície, resolução contratual, responsabili-
dade e ilícitos civis, seguro, direitos de vizinhança, capacidade jurídica,
Empresário Individual com Responsabilidade Limitada, direito adqui-
rido, interpretação dos contratos... O objetivo de reunir tantos temas
controversos, sob perspectiva de autores de diversas orientações acadê-
micas e distintas ocupações profissionais foi o de propiciar ao leitor um
cenário bem atual do rico e controvertido Direito Civil contemporâneo.
Resta desejar que a leitura seja tão proveitosa a você, caro leitor,
como o desafio de organizar essa obra.

Maceió/AL, 17 de julho de 2012.

Marcos Ehrhardt Jr.

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PARTE I

TEORIA GERAL DO DIREITO

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A PARTE GERAL DO DIREITO
CIVIL BRASILEIRO
REFLEXÕES CRÍTICAS SOBRE A SUA ATUALIDADE
E A SUA PRESTABILIDADE NO PRIMEIRO DECÊNIO
DO CÓDIGO CIVIL

RODRIGO XAVIER LEONARDO

1 Introdução1
Não há sombra de dúvidas de que o Direito Civil foi e ainda
é um pórtico da tradição jurídica ocidental. É nessa disciplina que se
verificam a elaboração teórica mais antiga e a expressão mais sofisti-
cada da cultura jurídica. Por isso, e apesar disso, seguindo os passos
das transformações sociais, o Direito Civil por diversas vezes retratou
traições às tradições.
Da tradição à traição escravocrata, pela construção da noção de
pessoa e de sujeito de direito, universal aos seres humanos.

1
Texto elaborado a partir de conferência em homenagem ao Prof. Dr. Francisco Amaral, inti-
tulada “A tradição e a traição na parte geral do Código Civil Brasileiro”, proferida pelo au-
tor na Universidade Federal do Paraná, no ano de 2010, em evento organizado pelo Centro
Acadêmico Hugo Simas, intitulado “A atualidade da teoria da relação jurídica”.

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24 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Da tradição à traição patrimonialista, pela absorção dos mais


altos desígnios de direitos humanos na elaboração dos direitos da
personalidade.
Da tradição à traição patriarcal, pelo estatuto de igualdade entre
cônjuges, pela igualdade entre filhos, pelo reconhecimento de famílias
não fundadas no casamento... Enfim. Os exemplos poderiam ocupar
centenas de páginas.
Nesta oportunidade, em obra organizada para refletir sobre o
primeiro decênio do Código Civil, escolhe-se lançar algumas linhas
a respeito da tradição e da traição no Direito Civil referente um tema
basilar: a parte geral do Direito Civil e a teoria da relação jurídica nela
inserta.

2 A parte geral na tradição do Direito Civil brasileiro


A existência de uma parte geral no Código Civil, proveniente do
exaustivo labor de se perceber aquilo que é comum às relações jurídicas
em direito privado para, mediante exercícios de abstração, encontrar os
elementos primeiros dessa relação para grafá-los em texto normativo,
é uma tradição do Direito Civil brasileiro.
No Brasil, o desafio de se conceber uma parte geral ao Direito
Civil remonta aos meados do século XIX, quando Teixeira de Freitas
se propôs a consolidar a legislação dispersa que grassava o país, para
além do mar e do tempo de suas origens lusitanas.
A consolidação das leis civis se deu à luz de uma concepção de
sistema, pela qual se dividia e se diferenciava uma parte geral e uma
parte especial, sob forte influência da pandectista alemã e, particular-
mente, do pensamento de Savigny, projetando-se, posteriormente, no
esboço ao Código Civil.
Pelo fato de o esboço preceder em muitos anos o BGB, chegou-se
a sustentar a ideia de que a elaboração de uma parte geral precedente às
disciplinas específicas de Direito Civil, tal como delineado por Teixeira
de Freitas, teria influenciado a redação do Código Civil alemão.
Exageros à parte, não se pode deixar de observar o peso que esta
concepção carrega na tradição do direito nacional.
Da passagem do século XIX ao século XX, a imperiosa necessida-
de de o Brasil transpor a arcaica legislação imperial para alcançar o seu
próprio estatuto jurídico de Direito Civil fez com que se concentrassem
esforços na redação de um Código Civil. Primeiro, com o esboço de
Código Civil de Teixeira de Freitas e, na sequência, com os projetos de

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RODRIGO XAVIER LEONARDO
A PARTE GERAL DO DIREITO CIVIL BRASILEIRO – REFLEXÕES CRÍTICAS SOBRE A SUA ATUALIDADE ...
25

Nabuco de Araújo, continuados por Felício dos Santos e pelo projeto


de Coelho Rodrigues.
Inúmeros empecilhos, das mais variadas espécies, impediriam
a aprovação destes projetos. A tarefa foi exitosa, apenas e tão somente,
com o projeto de Código Civil de Clóvis Beviláqua, iniciado em 1889
e tornado lei em vigor no país no ano de 1917.
A essa época, já se faziam presentes modelos de codificação
postos e paradigmáticos, em especial o francês e o alemão, razão pela
qual o autor do anteprojeto, Clóvis Beviláqua, pôde fazer uma escolha,
ciente e consciente, para estruturar o primeiro Código Civil brasileiro.
Ao assim proceder, Clóvis Beviláqua disse sim à tradição jurídica
nacional e desenhou o Código Civil mediante uma separação entre
parte geral e parte especial.
Na parte geral do Código Civil de 1916, sob a lente da teoria do
direito, pode-se novamente perceber a influência da obra de Savigny
e, particularmente, da noção de relação jurídica como um modelo para
se apreender e tratar o Direito Civil a partir de seu caráter relacional.
Nela, verificam-se os elementos da relação jurídica que, dentre as
demais relações sociais, seria dotada duma garantia adicional conferida
pelo direito, bem exposta no art. 75 do Código Civil de 1916: “A todo
o direito competiria uma ação para lhe assegurar”.

3 As críticas à parte geral ao Código Civil e os ecos em


território nacional
Mal havia iniciado o século XX e a escolha de se adotar uma parte
geral ao Código Civil já rendia veementes críticas, até mesmo em solo
alemão, menos de 20 anos após a entrada em vigor do BGB.
Um retrato fiel destas críticas foi desenhado por Claus-Wilhelm
Canaris e por António Pinto Monteiro, em Congresso destinado a co-
memorar os 35 anos do Código Civil português.2
Naquela especial oportunidade, Canaris — um dos grandes
privatistas da nação que, no século XIX, projetou definitivamente a
concepção de uma “parte geral” do Código Civil para todo mundo — e
António Pinto Monteiro — um dos grandes privatistas da nação que, já

2
CANARIS. Funções da parte geral de um Código Civil e limites da sua prestabilidade. In:
UNIVERSIDADE DE COIMBRA. Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Re-
forma de 1977; MONTEIRO. A parte geral do Código, a teoria geral do direito civil e o direito
privado europeu. In: UNIVERSIDADE DE COIMBRA. Comemorações dos 35 anos do Código
Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
26 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

na segunda metade do século XX, decidiu elaborar um novo Código Civil


dotado de uma parte geral — percorreram as principais críticas à adoção
de uma parte geral para, após descrevê-las, opinar se este monumento
oitocentista ainda mereceria sobreviver no alvorecer do século XXI.
Segundo Canaris, a primeira e a principal crítica à parte geral
do BGB vem à tona com Zitelmann que, em 1906, sustentou que os três
grandes propósitos que uma parte geral pode desempenhar — para
a sistemática científica do Direito Civil, para a transmissão do ensino
do Direito Civil e para a elaboração das leis civis —, se vistos bem de
perto, ostentavam razões suficientes para a sua eliminação.
A sistematicidade da parte geral seria obstruída pela falta de
um critério unitário que pudesse percorrer toda a parte especial, par-
ticularmente pela duplicidade de critérios para o tratamento do grupo
concernente ao direito das obrigações e ao direito das coisas quando
comparado ao grupo pertinente ao direito de família e ao direito de
sucessões.
A diversidade de matérias integrantes da parte geral, segundo
esse autor, por vezes sem relação entre si, impediria que o objetivo de
servir de base à elaboração das leis civis na totalidade fosse alcançado.
Por fim, as dificuldades de se ensinar o direito civil a partir de
conceitos tão abstratos para neófitos nos primeiros bancos escolares da
faculdade de direito demonstrariam uma imprestabilidade didática.
Canaris aponta que as críticas à parte geral foram reforçadas
durante o nacional socialismo, quando se tentou dar à Alemanha um
novo Código Civil, por autores do calibre de Nipperdey e Larenz, que
viam no conteúdo excessivamente abstrato da parte geral um distan-
ciamento insuportável da realidade.
Após a Segunda Guerra Mundial, a oposição crítica à parte ge-
ral recebeu o reforço de Franz Wiacker que — talvez em homenagem
às dificuldades enfrentadas pelos alunos em aprender e aos docentes
em ensinar a parte geral —, adjetivou-a de “calvário pedagógico do
primeiro ano”.
António Pinto Monteiro também retratou as críticas do pensa-
mento jurídico lusitano à adoção de uma parte geral, não obstante a
escolha feita pelo Código Civil português de 1966, tomando por base
o pensamento dalguns dos principais civilistas daquela nação, como
Vaz Serra, Guilherme Moreira e Manuel de Andrade.
Dentre todas essas críticas, talvez a mais veemente seja prove-
niente de Orlando de Carvalho, que defendeu a necessidade de uma

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RODRIGO XAVIER LEONARDO
A PARTE GERAL DO DIREITO CIVIL BRASILEIRO – REFLEXÕES CRÍTICAS SOBRE A SUA ATUALIDADE ...
27

repersonalização do Direito Civil, a partir de uma crítica à teoria da relação


jurídica.
Para Orlando de Carvalho, a noção de relação jurídica plasmada
na parte geral do Código Civil reduziria a pessoa a um mero elemento
de um composto abstrato de fatores que, em última análise, colocaria
sob a mesma posição os objetos, os fatos jurídicos e a pessoa humana.3
Do Direito Civil português, ainda, colhe-se a crítica de uma
limitação da parte geral ao direito das obrigações. Em outros livros da
parte especial, como exemplo no direito das coisas, a teoria da relação
jurídica não se mostraria adequada.4
Referidas críticas receberam a atenção, a aprovação e o desenvol-
vimento por juristas brasileiros, com especial atenção para Luiz Edson
Fachin, em diversos artigos, conferências e, sobretudo, em sua teoria
crítica ao Direito Civil, imbuída do propósito de elevar o princípio da
dignidade da pessoa humana ao status maior do ordenamento jurídico
e, particularmente, do Direito Civil.5

4 A parte geral do Código Civil brasileiro de 2002: a


tradição e a traição
Como é de amplo conhecimento, nos primeiros anos do século
XXI o Brasil viu entrar em vigor um novo Código Civil que, entre
trair ou se apegar à tradição da adoção de uma parte geral, preferiu a
segunda solução.
Não foram poucas nem frágeis as tentativas de transcender o
modelo codificatório da parte geral, no Brasil, durante o século XX. O
anteprojeto de Código Civil de Orlando Gomes e os anteprojetos de
um código das obrigações, primeiro de Orozimbo Nonato, Filadelfo
Azevedo e Hahnemann Guimarães e, depois, de Caio Mario da Silva
Pereira, bem dão conta disto.
É fato, no entanto, que a tradição pesou mais forte. Talvez pelo
trabalho incessante do pensamento jurídico nacional que pôde contri-
buir de maneira decisiva contra as severas críticas formuladas.

3
CARVALHO. A teoria geral da relação jurídica: seu sentido e limites.
4
A crítica, desenvolvida por ASCENSÃO. As relações jurídicas reais, recentemente foi acolhida
por VASCONCELOS. Teoria geral do direito civil, p. 632. No Brasil, este enfoque é adotado
por PENTEADO. Direito das coisas.
5
A respeito do assunto, cf. FACHIN. Teoria crítica do direito civil.

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28 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Cite-se, nesse sentido, a monumental obra de Pontes de Miranda


e, nela, em especial, a sua teoria do fato jurídico projetada nos planos
da existência, validade e eficácia.6
A teoria do fato jurídico, tal como proposta por Pontes de Miranda,
responde com segurança às críticas quanto à artificialidade da parte geral
do Direito Civil e de sua importância como base para toda a legislação
de direito privado.
O desenvolvimento da teoria da tripartição dos planos de Pontes
Miranda, levada a cabo por Marcos Bernardes de Mello,7 e sua aplicação
na parte especial do Direito Civil por autores como Alcides Tomasetti
Jr.,8 Antonio Junqueira de Azevedo,9 Judith Martins-Costa,10 Luciano
Penteado,11 Marcos Ehrhardt Jr.,12 Paulo Lôbo,13 citados aqui apenas
como exemplos dentre tantos outros, respondem à crítica de uma
suposta falsa sistematicidade e da pouca aplicabilidade no desenvol-
vimento do direito privado.
A crítica de uma aplicação da parte geral do Direito Civil e da
teoria da relação jurídica apenas ao direito das obrigações também não
procede. Não se pode negar, é verdade, uma maior aderência da teoria
da relação jurídica ao direito das obrigações e ao direito dos contratos.
Isso, no entanto, não inviabiliza essa lente teórica para a leitura
dos demais livros da parte especial. Cite-se, por exemplo, o esforço
doutrinário de uma releitura dos direitos reais a partir da teoria da
relação jurídica.14
Adotar a teoria da relação jurídica para o estudo do direito
de propriedade, por exemplo, não significa render homenagens à
compreensão de que ao direito do proprietário corresponde, pura e
simplesmente, um dever de abstenção de todos os demais.
Conforme explicou Alcides Tomasetti Jr., em investigação mi-
nuciosa a respeito do tema: “A relação jurídica em que se fundava o

6
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado.
7
Mencionam-se, aqui, os três livros fundamentais do autor: MELLO. Teoria do fato jurídico:
plano da existência; MELLO. Teoria do fato jurídico: plano da validade; MELLO. Teoria do
fato jurídico: plano da eficácia.
8
TOMASETTI JR. et al. Comentários à Lei de Locações de Imóveis Urbanos.
9
AZEVEDO. Estudos e pareceres de direito privado.
10
MARTINS-COSTA. Comentários ao novo Código Civil.
11
PENTEADO. Doação com encargo e causa contratual.
12
EHRHARDT JR. Revisão contratual.
13
Dentre tantas obras do autor, cite-se o recente Curso de direito civil de sua autoria e, em
especial LÔBO. Contratos.
14
Neste sentido, cf. LOUREIRO. A propriedade como relação jurídica complexa, p. 165 et seq.

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RODRIGO XAVIER LEONARDO
A PARTE GERAL DO DIREITO CIVIL BRASILEIRO – REFLEXÕES CRÍTICAS SOBRE A SUA ATUALIDADE ...
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provecto direito subjetivo patrimonia real já não se concebe, outrossim,


como relação de exclusão, obrigação e sujeição dos terceiros aos inte-
resses do ‘proprietário’ ou do sujeito ativo relacional”.15
E conclui o autor, em contribuição inovadora ao tema:

A relação, assim, passa a ser reconfigurada, ainda sob o prisma estrutural.


É pensada como nexo que se afirma entre a posição jurídica subjetiva
de que é titular o “proprietário” e as posições jurídicas subjetivas outras
— em conflito inerradicável, atual ou potencial, das quais são titulares
sujeitos individuais e coletivos de interesses opostos — cuja existência
supõe, naturalmente, a posição jurídica do “proprietário”, por isso que
redunda, esta, na irradiação de deveres jurídicos de comportamento
positivo ou negativo, e, muitas vezes, também de deveres de cooperação
e de colaboração por parte dos outros sujeitos.
O aspecto funcional entra de predominar, na “propriedade” entendida
enquanto relação, ou, melhor, enquanto feixe de relações. Entre o “pro-
prietário” e os terceiros; entre o “proprietário” e seus vizinhos; entre o
“proprietário” e os poderes estatais; entre o “proprietário” e os grupos
mais ou menos organizados, a relação deve ser de colaboração (= laborar
ou trabalhar com) e de cooperação (=operar com). O valor “solidariedade”
se torna prevalecente sobre o “individualismo proprietário”.16

A mesma reconfiguração da relação jurídica se aplica ao direito


de família, na passagem de uma concepção de família patriarcal em
direção à concepção eudemonista, que não abdica a aplicação da teoria
da relação jurídica,17 mormente em face dos poderes-função familiares.
O mesmo ocorre com o direito de sucessões, marcado pela am-
pliação dos sujeitos que potencialmente participam das relações jurí-
dicas sucessórias, o que é reflexo do crescente pluralismo reconhecido
na sociedade brasileira, albergado pela Constituição Federal.
Defender a manutenção da parte geral do Direito Civil e da
teoria da relação jurídica, portanto, não significa, nem tampouco pode

15
TOMASETTI JR. Comentário ao acórdão, de relatoria do Des. José Osório, proveniente do
julgamento da apelação cível n. 212.726-1/8-SP. Revista dos Tribunais, p. 204-223.
16
TOMASETTI JR. Comentário ao acórdão, de relatoria do Des. José Osório, proveniente do
julgamento da apelação cível n. 212.726-1/8-SP. Revista dos Tribunais, p. 219. O referido co-
mentário ao julgado serve de fundamento para Flavio Tartuce e José Fernando Simão desen-
volverem explicação sobre a função social da propriedade. Cf. TARTUCE; SIMÃO. Direito
civil, v. 4, p. 121 et seq.
17
O modelo é aplicado, por exemplo, por Lamartine Corrêa de Oliveira e Francisco Muniz,
que ao longo de toda obra refletem o direito de família à luz da parte geral do direito civil.
Cf. OLIVEIRA; MUNIZ. Direito de família, especialmente, p. 209, 225, 291, entre outras
passagens.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
30 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

significar, um imobilismo da tradição e das formas contra as transfor-


mações sociais.
Registre-se, nesse sentido, que a parte geral do Código Civil de
2002 não é uma mera cópia do Código Civil de 1916. O direito privado
que dele emerge se sustenta numa renovada tradição, conforme apon-
tou Véra Fradera, que se mostra mais alinhada à experiência italiana
e portuguesa, para além dos tributos até então prestados à tradição
franco-germânica, que inspirou o Código Civil de 1916.18
Há muito de traição às tradições ao privatismo doméstico do Códi-
go Civil de 1916,19 ainda que, para muitos, essas traições sejam peque-
nas ante a necessidade de transcendência que o direito contemporâneo
demanda e vivencia.
E é justamente na elaboração de novas lentes, de novos suportes
teóricos, que se verifica o rejuvenescer da parte geral do Direito Civil e
da teoria da relação jurídica, na exata medida, entre as doses de tradição
e transcendência.
Ninguém menos que Karl Larenz, que antes defendeu a extinção
da parte geral do Direito Civil, numa de suas últimas obras, propõe que
o princípio da dignidade da pessoa humana seja interpretado e aplicado
à luz da teoria da relação jurídica, pela chamada relação jurídica de base,
sobreposta a todas as relações jurídicas concretas, ostentando como
conteúdo eficacial o direito e o respectivo dever que surge quando dois
seres dotados de dignidade se encontram em relação.20
Inexiste, portanto, uma contradição entre o personalismo ético e
a teoria da relação jurídica ou, ainda, entre o princípio da dignidade da
pessoa humana e a parte geral do Direito Civil. Muito pelo contrário.
A teoria da relação jurídica elege um enfoque para a avaliação de
conflitos em relação e, nesse particular, como ferramenta teórica, agrega
potencialidades em relações às teorias atomísticas do direito subjetivo
ou da situação jurídica.
Frise-se bem. Não se verifica, do mesmo modo, contradição
ou incompatibilidade entre a noção de direito subjetivo, de situação
jurídica e de relação jurídica. Todas elas integram o plano da eficácia.21
As situações jurídicas podem ser estudadas em relação às respectivas
outras situações jurídicas.

18
FRADERA. La traduction française du Code Civil Brésilien. Revue Internacionale de Droit
Comparé, p. 775.
19
GOMES. Raízes históricas e sociológicas do Código Civil brasileiro, p. 15 et seq.
20
LARENZ. Derecho justo: fundamentos de ética jurídica.
21
Conforme explica MELLO. Teoria do fato jurídico: plano da eficácia.

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RODRIGO XAVIER LEONARDO
A PARTE GERAL DO DIREITO CIVIL BRASILEIRO – REFLEXÕES CRÍTICAS SOBRE A SUA ATUALIDADE ...
31

A perspectiva da teoria da relação jurídica ostenta a virtualidade


de tratar das situações jurídicas, atribuídas a cada polo ou parte em
relação ao outro ou aos outros, determinando-se, com o dinamismo
necessário, os interesses subordinantes e os interesses subordinados,
conforme as circunstâncias do caso concreto.22
A defesa da parte geral do Direito Civil, no entanto, não significa
dizer que o texto legislativo do Código Civil de 2002 é um marco norma-
tivo perfeito e acabado para o enfrentamento dos problemas cotidianos.
A própria técnica legislativa das cláusulas gerais, evidentemen-
te adotada em diversos e importantes setores da parte geral, reserva
ao aplicador um espaço relevante para a construção de soluções aos
casos concretos. Cite-se, apenas à guisa de exemplo, a boa-fé objetiva
na interpretação dos negócios jurídicos (art. 113) e a vedação ao abuso
de direito (art. 187).
Mesmo as noções mais tradicionais, como aquelas referentes
aos elementos da relação jurídica, ou seja, que versam a respeito da
pessoa, do sujeito de direito, da pessoa jurídica, do objeto, do fato jurídico e
da garantia são objeto de constante revisão. Inexiste imobilidade.
E, se resta alguma dúvida a respeito da prestabilidade de uma
parte geral no Direito Civil contemporâneo pelas dificuldades didáti-
cas que ela enseja, no Brasil, o “calvário pedagógico do primeiro ano”,
outrora denunciado por Wiacker, é avaliado pelo esforço didático de
diversas obras.23
A própria teoria do fato jurídico de Pontes de Miranda, que re-
presenta a construção mais sofisticada do pensamento jurídico nacional
a respeito da parte geral do Direito Civil, é desenvolvida, com êxito,
em manuais destinados aos alunos que iniciam o curso de direito, ao
lado das obras monográficas específicas.24
Os livros de Flávio Tartuce,25 Marcos Ehrhardt Jr.26 e Paulo Lôbo,27
para citar alguns exemplos de manuais de Direito Civil, são expressivos
exemplos de que a solidez da teoria do fato jurídico e da tripartição
de planos, que é alicerce fundamental da parte geral do Direito Civil,

22
LUMIA. A relação jurídica. Tradução, com adaptações e modificações de Alcides Tomasetti Jr.
23
AMARAL NETO. Direito civil: introdução.
24
Pede-se permissão ao leitor para, mais uma vez, referenciar os três livros da teoria do fato
jurídico de autoria de Marcos Bernardes de Mello — planos da existência, validade e eficá-
cia —, cuja referência já foi feita na nota de rodapé 7 deste capítulo.
25
TARTUCE. Direito civil, v. 1.
26
EHRHARDT JR. Direito civil: LINDB e parte geral.
27
LÔBO, Paulo. Direito civil: parte geral.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
32 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

não é incompatível com a exposição didática. Todos os livros didáticos


antes citados adotam a tripartição de planos.
Por todo o exposto, justifica-se a manutenção da parte geral do
Direito Civil e da teoria da relação jurídica. Tal como outras construções
teóricas, ambas se encontram submetidas às transformações do direito
privado contemporâneo. Mantém-se, no entanto, como importante ferra-
menta teórica para o estudo, para a reflexão e para a aplicação do direito.

5 Considerações finais
O Direito Civil é guardião de tradições e palco privilegiado de
traições.
A tradição e a traição, no entanto, longe de se apresentarem como
experiências reciprocamente excludentes, caminham juntas no percurso
da história da modernidade, pois, conforme escreveu Nilton Bonder:
“Da mesma forma que a tradição precisa da traição, que a preservação
precisa da evolução, que o acerto de hoje dependeu do erro de ontem, o
contrário também é verdadeiro. Porque a evolução só é possível quando
existe uma manifestação para ser contestada, aviltada”.28

Referências
AMARAL NETO, Francisco dos Santos. Direito civil: introdução. 7. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2008.
ASCENSÃO, José de Oliveira. As relações jurídicas reais. Lisboa: Morais, 1962.
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Estudos e pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva,
2004.
BONDER, Nilton. A alma imoral: traição e tradição através dos tempos. Rio de Janeiro:
Rocco, 1998.
CANARIS, Claus-Wilhelm. Funções da parte geral de um Código Civil e limites da sua
prestabilidade. In: UNIVERSIDADE DE COIMBRA. Faculdade de Direito. Comemorações
dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977. Coimbra: Coimbra Ed., 2006. v. 2.
CARVALHO, Orlando de. A teoria geral da relação jurídica: seu sentido e limites. 2. ed.
Coimbra: Centelha, 1981. (Para uma teoria da relação jurídica civil, 1).
EHRHARDT JR., Marcos. Direito civil: LINDB e parte geral. 2. ed. Salvador: JusPodivm,
2011. v. 1.

28
BONDER. A alma imoral: traição e tradição através dos tempos, p. 19.

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RODRIGO XAVIER LEONARDO
A PARTE GERAL DO DIREITO CIVIL BRASILEIRO – REFLEXÕES CRÍTICAS SOBRE A SUA ATUALIDADE ...
33

EHRHARDT JR., Marcos. Revisão contratual. Salvador: JusPodivm, 2008.


FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
FRADERA, Véra. La traduction française du Code Civil Brésilien. Revue Internacionale de
Droit Comparé, n. 3, juil./sept. 2010.
GOMES, Orlando. Raízes históricas e sociológicas do Código Civil brasileiro. São Paulo:
Martins Fontes, 2006.
LARENZ, Karl. Derecho justo: fundamentos de ética jurídica. Traduccion Luiz Díez-Picazo.
Madrid: Civitas, 1985.
LÔBO, Paulo. Contratos. São Paulo: Saraiva, 2011.
LÔBO, Paulo. Direito civil: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2009.
LOUREIRO, Francisco Eduardo. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de
Janeiro: Renovar, 2003.
LUMIA, Giuseppe. A relação jurídica. Tradução, com adaptações e modificações de Alcides
Tomasetti Jr. 3. ed. Milano: Giuffrè, 1981. Mimeografado. Obra original: Lineamenti di
teoria e ideologia del diritto.
MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da eficácia. 7. ed. São Paulo:
Saraiva, 2011.
MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 17. ed. São
Paulo: Saraiva, 2011.
MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da validade. 8. ed. São Paulo:
Saraiva, 2008.
MONTEIRO, António Pinto. A parte geral do Código, a teoria geral do direito civil e
o direito privado europeu. In: UNIVERSIDADE DE COIMBRA. Faculdade de Direito.
Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977. Coimbra: Coimbra
Ed., 2006. v. 2.
OLIVEIRA, José Lamartine Correa de; MUNIZ, Francisco José Ferreira. Direito de família.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1990.
PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das coisas. 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2012.
PENTEADO, Luciano de Camargo. Doação com encargo e causa contratual. Campinas:
Millennium, 2004.
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970. t. I.
TARTUCE, Flávio. Direito civil. 8. ed. São Paulo: Método, 2012. v. 1. Lei de introdução
e parte geral.
TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito civil. 4. ed. São Paulo: Método, 2012.
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TOMASETTI JR., Alcides et al. Comentários à Lei de Locações de Imóveis Urbanos. São Paulo:
Saraiva, 1991.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
34 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

TOMASETTI JR., Alcides. Comentário ao acórdão, de relatoria do Des. José Osório,


proveniente do julgamento da apelação cível n. 212.726-1/8-SP. Revista dos Tribunais, São
Paulo, ano 85, v. 723, p. 204-223, jan. 1996. Jurisprudência comentada.
VASCONCELOS, Pedro Pais de. Teoria geral do direito civil. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2005.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

LEONARDO, Rodrigo Xavier. A parte geral do direito civil brasileiro: reflexões


críticas sobre a sua atualidade e a sua prestabilidade no primeiro decênio
do Código Civil. In: EHRHARDT JR., Marcos (Coord.). Os 10 anos do Código
Civil: evolução e perspectivas. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 23-34. ISBN
978-85-7700-616-8.

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CAPACIDADE CIVIL
FIXAÇÃO DE NOVOS PARADIGMAS PARA A
CONSTRUÇÃO DE UM REGIME JURÍDICO VOLTADO
À TUTELA DA DIGNIDADE HUMANA

CAROLINA VALENÇA FERRAZ


GLAUBER SALOMÃO LEITE

1 Aspectos gerais da capacidade civil


Presume-se que toda pessoa tenha condições de zelar ela própria
por seus interesses, econômicos ou existenciais. Todavia, quando, por
algum motivo, tal presunção não se confirma, faz-se necessário que
terceiro passe a administrar a vida e o patrimônio de quem não consegue
fazê-lo pessoalmente.
A caracterização da incapacidade, portanto, é o pressuposto para
que outrem passe a representar ou assistir na esfera jurídica aquele que
não está apto a gerenciar os seus interesses diretamente.
Se esse incapaz for menor de idade, a assistência ou representação
será realizada pelos pais e, na ausência de ambos, por um tutor. Porém,
se o incapaz for maior de idade, a sua vida será regida por um curador.1

1
Necessário apenas destacar que essa regra não é absoluta, comportando exceções. A juris-
prudência vem reconhecendo a pertinência da nomeação de curador para menor de ida-
de entre dezesseis e dezoito anos, que apresente transtorno mental. É que, nesse caso, os

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
36 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Conforme é possível observar da análise conjunta dos arts. 3º


e 4º do Código Civil, as hipóteses de incapacidade, essencialmente,
estão pautadas na idade, em algum transtorno mental, em fato que
impossibilite a manifestação da própria vontade, no vício em álcool
ou em drogas e na prodigalidade.
Discernimento e vontade, portanto, são os elementos centrais
da incapacidade. Supõe-se que, caracterizada alguma das hipóteses
elencadas nos artigos citados, a pessoa sofrerá redução ou supressão no
discernimento necessário para reger a própria vida. Ou, ainda, não terá
condições para agir pessoalmente na esfera civil, por estar impedida
de exteriorizar a vontade.
Por isso mesmo, a incapacidade apresenta gradações, de modo
que, se for o caso de ausência de discernimento, está-se diante de in-
capacidade absoluta, consoante o disposto no art. 3º do Código Civil.
Entretanto, se houver apenas redução no discernimento, será caracte­
rizada apenas incapacidade relativa a certos atos, de acordo com o
preconizado no art. 4º da mesma norma.
Independentemente de qualquer aferição judicial, presume-se
que os menores de idade não tenham condições de se posicionar satis-
fatoriamente diante dos fatos da vida, fruto da imaturidade, que leva
à falta ou redução no discernimento.
Necessário destacar que o reconhecimento da incapacidade dos
maiores de idade deverá ser feito obrigatoriamente em juízo, no âmbito
do chamado processo de interdição. Pronunciada a interdição, o juiz
nomeará curador ao incapaz, de acordo com a previsão do art. 1.183,
parágrafo único, do Código de Processo Civil.
Prevê o art. 1.767, do Código Civil, que estão sujeitos à curatela:
os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o neces-
sário discernimento para os atos da vida civil; aqueles que, por causa
duradoura, não puderem exprimir a vontade; os deficientes mentais,
ébrios habituais e os viciados em tóxicos; os excepcionais sem desen-
volvimento mental completo e os pródigos.
O rol descrito no art. 1.767 do Código Civil, portanto, coincide,
quase que totalmente, com as hipóteses de incapacidade civil absoluta
e relativa previstas nos arts. 3º e 4º do mesmo diploma legal.

poderes do curador superam os dos pais, caso o menor esteja sujeito ao poder familiar. Nesse
sentido, decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo: “É perfeitamente admissível o pedido de
interdição de menor, contando com 16 anos de idade, portador de síndrome de Down, pois
a curatela de incapazes é admitida em qualquer idade, devendo nortear o seu cabimento um
critério de utilidade” (TJSP – Ap nº 14.581-4/2, 4ª Câmara, Rel. Barbosa Pereira, j. 14.11.1996).

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CAROLINA VALENÇA FERRAZ, GLAUBER SALOMÃO LEITE
CAPACIDADE CIVIL – FIXAÇÃO DE NOVOS PARADIGMAS PARA A CONSTRUÇÃO DE UM REGIME JURÍDICO ...
37

Se a interdição for baseada em incapacidade absoluta, a curatela


será total, de modo que o incapaz deverá ser representado em todos
os atos da vida civil, sob pena de nulidade do ato que eventualmente
venha a praticar pessoalmente, em descumprimento ao estabelecido
na interdição.
Por outro lado, se a incapacidade for relativa, a curatela será
mais branda, de caráter parcial, pelo fato de que o incapaz será apenas
assistido, e não representado. E, mesmo assim, a assistência será restrita
a certos atos, que são aqueles definidos na sentença que proclamar a
interdição, de acordo com o disposto no art. 1.772 do Código Civil. As-
sim, os atos que não forem expressamente mencionados na interdição
poderão ser praticados diretamente pelo interdito. Enquanto os demais,
consignados pelo juiz na sentença, caso sejam praticados pessoalmente
pelo incapaz, serão eivados de anulabilidade.
Quanto aos menores de 18 anos, a limitação à capacidade civil
é automática, decorrente apenas da menoridade, não dependendo,
portanto, de pronunciamento judicial.
Se a pessoa tiver menos de 16 anos de idade, é considerada
absolutamente incapaz, de acordo com o disposto no art. 3º, I, do
Código Civil. Ao passo que, se tiver mais de 16 e menos de 18 anos, é
enquadrada como relativamente incapaz para certos atos, consoante o
art. 4º, I, do mesmo diploma legal.
Ainda que as limitações à capacidade civil tenham, em princípio,
natureza protetiva, é necessário destacar que tais restrições importam
em redução à autonomia da pessoa, afetando diretamente a prevalência
da sua vontade, resultando, assim, em violação a direitos fundamentais.
Por essa razão, tais limitações devem ser adotadas apenas nas
hipóteses expressamente consignadas na legislação vigente e, também,
de modo proporcional, compatíveis com o grau de incapacidade da
pessoa, sob pena de violação da dignidade humana.

2 Limitações à capacidade civil dos menores de idade


Conforme salientado, o regime jurídico da incapacidade civil
dos menores de 18 anos é menos invasivo do que o previsto para os
incapazes maiores de idade, por preservar, até certo ponto, a autono-
mia dos menores de idade, ao levar em consideração a sua vontade,
especialmente para questões de natureza existencial. Na prática, isso
se traduz em uma tutela mais eficaz dos direitos fundamentais e, por
conseguinte, da dignidade humana.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
38 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Com essa dicção, merece destaque o art. 227, caput, da Constitui-


ção Federal, que determina ser um dever da família, da sociedade e do
Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, prioritariamente,
o direito à liberdade.
Nessa esteira, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu
art. 16, II, reconhece o direito à liberdade de opinião e expressão a
crianças e adolescentes.
O art. 17 do mesmo diploma legal, ao tutelar o direito ao respeito,
define o seu conteúdo, dentre outros aspectos, como a preservação da
identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços
e objetos pessoais.
Na mesma linha, o art. 28, §1º, do Estatuto, determina que a co-
locação em família substituta — por meio de guarda, tutela ou adoção
—, sempre que possível, dependerá de prévia oitiva da criança ou do
adolescente, por equipe interprofissional, devendo a sua opinião ser
considerada.
O §2º, do mesmo artigo, prescreve que, em se tratando de maior
de 12 anos de idade, é indispensável o consentimento expresso, colhido
em audiência, para a colocação em família substitua.
Apontando a necessidade de adequação de toda a legislação
ordinária aos valores constitucionais, pautados, especialmente, na pro-
moção da dignidade humana, Gustavo Tepedino destaca a necessidade,
com base no art. 227, §6º, da Carta Magna, de que o filho seja inserido
na estrutura familiar como protagonista do processo educacional, de-
vendo inclusive discutir os critérios da própria avaliação educacional e
pedagógica. Podendo influir também na fixação do domicílio da família,
nas viagens familiares, alteração de escola etc.2
Em sentido contrário a essa tendência de maior valorização da
vontade dos incapazes menores de idade, merece destaque recente de-
cisão liminar proferida em agravo de instrumento, pelo Desembargador
Luiz Fernando de Carvalho, da Terceira Câmara Cível do Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro,3 determinando a busca e apreensão de uma
menor de 15 anos de idade, que passou a morar com homem mais
velho, de 30 anos. O pedido foi formulado pela mãe da menor, que era
contra o relacionamento da filha. Segundo o magistrado, a mãe, no
exercício do poder familiar, tinha o direito de exigir que a adolescente

2
Cf. TEPEDINO. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro.
In: TEPEDINO. Temas de direito civil, p. 17.
3
TJRJ – AgIn nº 0013619-75.2012.8.19.0000, 3ª Câmara Cível, Rel. Luiz Fernando de Carvalho.

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CAROLINA VALENÇA FERRAZ, GLAUBER SALOMÃO LEITE
CAPACIDADE CIVIL – FIXAÇÃO DE NOVOS PARADIGMAS PARA A CONSTRUÇÃO DE UM REGIME JURÍDICO ...
39

permanecesse em sua guarda e companhia, especialmente contra quem


a detivesse ilegalmente.4

3 Limitações à capacidade civil dos maiores de idade


Todas as hipóteses de incapacidade civil, previstas nos arts. 3º
e 4º do Código Civil, excetuando o primeiro inciso dos dois artigos,
referem-se aos maiores de idade.
Nessa seara, houve uma clara mudança terminológica do Código
Civil vigente em relação ao revogado Código de 1916. Com isso, as hipó-
teses de incapacidade passaram a ser identificadas por expressões mais
modernas, ficando para trás expressões ultrapassadas e estigmatizantes.
Todavia, conforme se verá a seguir, o regime jurídico da capaci-
dade civil passou, a rigor, por alteração puramente cosmética, uma vez
que, no Código Civil atual, a matéria continua assentada em valores
anacrônicos e de cunho patrimonial, inadequados para a necessária
tutela dos direitos dos incapazes.

3.1 A curatela da pessoa com deficiência mental ou


intelectual
Ainda que não fique cingida a essa hipótese, é certo que a interdi-
ção civil fundamenta-se, na maioria esmagadora dos casos, na questão
relacionada à saúde mental do interditando.
O Código Civil identifica, dentre outros, como absolutamente
incapaz, no art. 3º, a pessoa com enfermidade ou deficiência mental,
sem o necessário discernimento para praticar os atos da vida civil.
Já o art. 4º, do mesmo diploma legal, refere-se à pessoa com defi-
ciência mental, que tenha o discernimento reduzido, e ao excepcional,
sem desenvolvimento mental completo, como sendo relativamente
incapazes.
Com isso, podem ser submetidos à interdição civil, e, por conse-
quência, ao regime de curatela, aqueles que apresentarem transtornos
mentais em conformidade com a normativa citada.
Importante consignar que não há uniformidade terminológica en-
tre a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência

4
Notícia disponível em: <http://www.marcosehrhardt.adv.br/index.php/noticia/2012/03/21/
adolescente-que-foi-morar-com-homem-mais-velho-tera-que-voltar-para-casa>.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
40 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

(CDPD)5 e o Código Civil. A primeira norma emprega expressões mais


abrangentes, “deficiência mental” (que sugere as patologias mentais)
e “deficiência intelectual” (limitação cognitiva), enquanto a segunda
norma é mais minuciosa, embora não chegue ao casuísmo de nominar
os transtornos mentais que acarretam incapacidade.
Essa disparidade terminológica fica ainda mais patente quando
observamos que o CID-10, da Organização Mundial de Saúde, e o Ma-
nual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV-TR), da
Associação Psiquiátrica Americana, empregam a expressão “transtorno
mental” para designar todos os casos de doenças mentais, de transtornos
da personalidade e de deficiência intelectual.6
O Código Civil, entretanto, embora mais minucioso, não chega ao
exagero de definir, casuisticamente, quais são exatamente os transtornos
mentais que poderão caracterizar a incapacidade civil.
A partir dos seus efeitos limitadores, se o transtorno mental im-
plicar perda total de discernimento, será caso de incapacidade absoluta,
que importará, assim, na fixação de curatela total, voltada à represen-
tação do incapaz em todos os atos e negócios jurídicos. Por outro lado,
se a saúde mental for comprometida apenas em parte, ocasionando
redução no discernimento, a incapacidade será relativa apenas a certos
atos, resultando em curatela parcial.
O certo é que não é possível definir, de maneira apriorística, que
determinado transtorno mental irá necessariamente acarretar incapa-
cidade absoluta ou relativa, pois esses transtornos apresentam graus
variados e, além disso, é provável que pessoas diferentes apresentem
características distintas em face de um mesmo transtorno mental.
Na verdade, é importante ressaltar, a simples identificação de
que a pessoa apresenta transtorno mental não é suficiente para, por si
só, fundamentar a interdição, uma vez que tal medida só se justifica
se ficar cabalmente demonstrado que, em razão da saúde mental, a
pessoa não tem condições de cuidar da própria e vida do patrimônio,
pela falta ou redução em seu discernimento.7

5
Tratado internacional que versa sobre a proteção jurídica conferida às pessoas com defici-
ência, do qual o Brasil é signatário e que foi incorporado ao direito nacional com status de
emenda constitucional.
6
Cf. ABREU. Curatela e interdição civil, p. 121.
7
Nesse sentido, merece registro decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul, que reconheceu a inadmissibilidade da interdição de mulher diagnosticada com
transtorno afetivo bipolar, que, apesar do transtorno mental, não apresentava “prejuízo
de quaisquer funções da vida civil” (TJRS – ApCiv nº 70032057432, 8ª Câmara Cível, Rel.
Claudir Fidélis Faccenda, j. 1.10.2009).

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CAROLINA VALENÇA FERRAZ, GLAUBER SALOMÃO LEITE
CAPACIDADE CIVIL – FIXAÇÃO DE NOVOS PARADIGMAS PARA A CONSTRUÇÃO DE UM REGIME JURÍDICO ...
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3.2 Reflexões a partir da Constituição Federal: a


promoção da dignidade humana
A Constituição Federal de 1988 contém verdadeira cláusula geral
de tutela da personalidade, ao reconhecer a dignidade da pessoa hu-
mana, no art. 1º, III, como um dos fundamentos da República.
Com base no macroprincípio da dignidade humana, a Lei Maior
é bastante clara ao definir como prioritária a proteção das situações
existenciais em face das situações de cunho econômico, patrimoniais.
Trata-se do que se convencionou chamar de personalização do
direito, em que todos os institutos jurídicos são concebidos em uma
perspectiva funcionalizada, de modo que a tutela do ordenamento se
justifica apenas na medida em que atenderem certos fins, voltados à
máxima promoção da dignidade humana.
Em vista da hierarquia superior da Constituição Federal e da
eficácia direta das normas que versam sobre direitos fundamentais,
essa especial proteção da dignidade humana se dá não apenas em face
do Estado, mas também nas relações travadas apenas por particulares.
O certo é que a tutela da dignidade humana foi alçada ao centro do
ordenamento jurídico, especialmente através da promoção dos direitos
fundamentais, no âmbito constitucional, e da sua materialização nas
relações privadas, mediante o reconhecimento dos chamados direitos
da personalidade. Em que pesem as diferentes terminologias, o pleno
desenvolvimento da personalidade humana é, indubitavelmente, a base
axiológica do ordenamento jurídico nacional em nossos dias.
No tocante à capacidade civil e, por conseguinte, à curatela, a
mesma tábua de valores se aplica. De modo que tais institutos devem
estar voltados ao pleno reconhecimento da personalidade humana, em
conformidade com a normativa constitucional.
Todavia, parece-nos, por uma série de diferentes motivos, que
tais institutos estão muito distantes de concretizar os valores constitu-
cionais mencionados, como veremos a seguir.
O Código Civil, ao estabelecer o regime jurídico da capacidade,
nos arts. 3º e 4º, toma por base conceito meramente formal e mecanicista
de “pessoa” como sendo o sujeito que participa de relações jurídicas,
mediante a realização de negócios de cunho patrimonial. Tem-se, assim,
um conceito distante da realidade, que não coincide com a noção de
pessoa humana.8

8
Cf. MEIRELLES. O ser e o ter na codificação civil brasileira: do sujeito virtual à clausura
patrimonial. In: FACHIN (Coord.). Repensando fundamentos do direito civil brasileiro contem-
porâneo, p. 92-93.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
42 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Decorre dessa premissa o fato de o Código Civil definir o regime


jurídico da incapacidade civil por um viés econômico, na medida em
que é considerado incapaz aquele sem condições de cuidar do próprio
patrimônio.
Nesse diapasão, a limitação ao exercício da capacidade decorre,
essencialmente, da inaptidão para realizar pessoalmente negócios
jurídicos de cunho econômico. Assim, a interdição se apresenta, basi-
camente, como meio de assegurar ao incapaz o direito de não ser ali-
jado da esfera negocial, de modo a garantir que ele continue a praticar
negócios jurídicos, através ou com o auxílio de um terceiro, o curador.
A interdição, portanto, surge como medida que visa resguardar
os bens dos incapazes, pois, através da nomeação de um curador,
evita-­se que o patrimônio do incapaz seja colocado em risco, em razão
da falta de discernimento para a prática de atos jurídicos negociais.
Ocorre que, proclamada a interdição, além do impedimento
para o exercício de direitos patrimoniais, a rigor o incapaz fica também
impossibilitado de exercer direitos existenciais.
É que o alcance da interdição é ditado pela hipótese de incapa-
cidade civil. Se qualificado o interdito como absolutamente incapaz,
a curatela será total, retirando-lhe o exercício dos atos patrimoniais e,
também, dos existenciais. Por outro lado, caracterizado como relativa-
mente incapaz, a curatela será apenas parcial, para os atos descritos
na sentença.
Portanto, a nomeação de curador somente para determinados
atos, limitando apenas parcialmente o exercício da capacidade pelo
interdito, será possível apenas para os relativamente incapazes, con-
forme preceitua o art. 1.772 do Código Civil.
Ocorre que, conforme estudo feito por Patrícia Ruy Vieira, citado
por Célia Barbosa Abreu em obra primorosa sobre curatela, a existência
de algum transtorno mental leva à interdição total em 99% dos casos,
de acordo com pesquisa realizada perante a Justiça do Estado de São
Paulo. Com isso, apenas em 1% dos casos a interdição é proclamada
parcialmente.9
A prática forense ratifica os dados do estudo citado, uma vez
que são raríssimas as hipóteses de interdição parcial no Brasil. Com
isso, a interdição, nos moldes praticados atualmente, acaba por repre-
sentar medida extremamente limitadora dos direitos civis, por afetar
o exercício de todos os direitos pelo incapaz, os de cunho patrimonial
e, também, os de natureza puramente existencial.

9
Cf. ABREU. Curatela e interdição civil, p. 143.

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CAPACIDADE CIVIL – FIXAÇÃO DE NOVOS PARADIGMAS PARA A CONSTRUÇÃO DE UM REGIME JURÍDICO ...
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Além de impedido de praticar atos jurídicos de fundo econômi-


co, o incapaz também perde a possibilidade de decidir acerca de sua
saúde, educação, integridade física, imagem, estado civil, nome, enfim,
de sua liberdade.
A interdição, com essa dinâmica, está em desconformidade com a
tábua axiológica da Lei Maior, pois, conforme destacado anteriormente,
a primazia constitucional é a promoção dos direitos existenciais. Ocorre
que, constatada a inadequação para a prática de atos patrimoniais, a
interdição do incapaz o impede de, também, exercer os direitos oriundos
da personalidade, de natureza puramente existencial.
Tem-se, assim, verdadeira distorção da normativa constitucio-
nal, pois, em nome de interesses patrimoniais, limitam-se, na mesma
medida, os direitos da personalidade. Quando, é sabido, a Carta
Magna estabelece que esses direitos existenciais têm primazia dentro
do ordenamento jurídico, fruto da tutela promocional e prioritária da
dignidade humana.
Ou seja, em nome da proteção ao patrimônio do incapaz, são
perpetradas limitações à sua dignidade, em flagrante inversão dos
valores constitucionais.
A falta ou redução no discernimento, portanto, tem sido empre-
gada como critério exclusivo para se restringir indistintamente o exer-
cício de direitos patrimoniais e de direitos existenciais. A esse respeito,
procede a crítica formulada por Pietro Perlingieri, no sentido de que
não se justifica a fixação de obstáculos dessa natureza ao exercício, pelo
incapaz, de direitos não patrimoniais, na medida em que esses direitos
são qualificados como fundamentais, sendo, portanto, intransferíveis
a terceiros, devendo o seu exercício, por isso mesmo, ser assegurado
ao incapaz mesmo que venha a ocorrer a interdição.10
Ainda que a interdição civil formalmente se revele como medida
que visa a proteção dos interesses do incapaz, é indubitável que um
de seus principais efeitos é exatamente o inverso, por representar sen-
sível limitação a direitos fundamentais, como liberdade, intimidade e
privacidade, dentre outros. Por isso mesmo, necessário destacar mais
uma vez o quão desproporcional é o fato de, a título de proteção a
interesses econômicos, a interdição afetar situações existenciais, uma
vez que eventuais limitações à personalidade devem necessariamente
estar pautadas na proteção da dignidade humana, e não em interesses
econômicos.

10
Cf. PERLINGIERI. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional, p. 260.

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44 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Talvez esse seja o traço mais representativo da interdição ho-


dierna, e, por conseguinte, da curatela, a sua desproporcionalidade.
O fato de, na quase totalidade dos casos, a curatela ser geral,
definida para todos os atos da vida civil, revela certa tendência me-
canicista, automatizada, de proclamar a interdição do incapaz. É que,
identificado por meio da perícia médica algum transtorno mental, em
muitos casos não se adota, a partir daí, uma análise cuidadosa de como
esse transtorno afeta a vida do interditando, voltada a uma definição
precisa de para quais situações ele necessita realmente ser auxiliado.11
Conforme a pesquisa realizada no âmbito da Justiça de São Paulo e men-
cionada anteriormente, reconhecida a existência de transtorno mental,
proclama-se, em quase todos os casos, a incapacidade absoluta. E, nessa
hipótese, fundada em interpretação a contrario sensu do art. 1772, do
Código Civil, é estabelecida curatela total, ampla, que impede o incapaz
de, sozinho, exercer direitos patrimoniais e direitos não patrimoniais.
Imperativo que a curatela passe a ser personalizada, oriunda de
uma avaliação profunda do caso concreto, de modo que o interditando
sofra apenas a limitação necessária em sua capacidade, condizente com
a sua saúde mental. Reitere-se que a curatela exagerada, invariavelmen-
te, fere a dignidade humana, por se tratar de limitação à personalidade
sem justificativa coerente. Ademais, a curatela padronizada e despro-
porcional significa verdadeira morte civil do incapaz, que é colocado
em um limbo, sem acesso à cidadania. Excluído socialmente, o incapaz
tem desprezada a sua vontade e perde o controle sobre a própria vida.
Em que pese essa mecanização da curatela ser fruto, em boa
medida, do papel que a jurisprudência vem cumprindo nessa seara,
pelo fato de a interdição ser decretada através de decisões judiciais
muitas vezes apressadas e distantes da realidade, é certo que o regime
jurídico da incapacidade de exercício, prevista no Código Civil vigente,
igualmente favorece esse quadro.
Com efeito, a incapacidade civil está calcada em tipos legais
apriorísticos, concebidos previamente, em razão do disposto nos arts.
3º e 4º do Código Civil. Assim, conforme já foi fartamente destacado,
se a pessoa for enquadrada em alguma das hipóteses estabelecidas no

11
Ilustra com perfeição esse quadro decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, cuja
ementa oficial reproduzimos: “Por ser o pressuposto fático da curatela a incapacidade do
adulto que, por motivo de doença ou deficiência mental, fica sem condições de dirigir a pró-
pria pessoa e administrar seus bens, uma vez constatada pericialmente sua existência (dele,
pressuposto básico), tem-se por atendida a exigência legal conducente à decretação do ato
interditório. É a amentalidade que gera a incapacidade da pessoa para o exercício dos atos
da vida civil (CC, art. 5º, II), razão pela qual viável se torna o decreto de interdição de quem
esteja acometido por qualquer neuropatia” (TJMG – Ap nº 000.270.517-6/00, 4ª Câmara, Rel.
Hyparco Immesi, j. 6.2.2003).

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CAPACIDADE CIVIL – FIXAÇÃO DE NOVOS PARADIGMAS PARA A CONSTRUÇÃO DE UM REGIME JURÍDICO ...
45

art. 3º (que supõem falta completa de discernimento), será considerado


absolutamente incapaz, ao passo que, caracterizada qualquer hipótese
descrita no referido art. 4º (que expressa apenas redução do discerni-
mento), o enquadramento legal será como relativamente incapaz.
Esse modelo jurídico propicia uma interdição esquemática e, por
consequência, a fixação dos limites da curatela é divorciada das reais
necessidades do incapaz e das suas potencialidades.
Ainda que a tipologia adotada nos artigos citados não seja ca-
suística, acaba impondo uma padronização à interdição do incapaz,
ao estabelecer parâmetros muito rígidos para determinar a extensão
da curatela.
Ora, para que a dignidade humana seja tutelada adequadamente,
a definição da incapacidade civil deve ser sempre a posteriori, jamais
a priori!
Pela sua alta abstração, a caracterização de determinado tipo legal
(pautado no grau de discernimento da pessoa) como critério prévio para
estabelecer o alcance da intervenção na capacidade civil não satisfaz.
É da investigação do caso concreto, a partir das limitações en-
frentadas por cada pessoa em razão do transtorno mental, atrelada à
identificação das situações para as quais a pessoa com deficiência mental
ou intelectual necessita ser auxiliada, que se poderá chegar a uma cura-
tela proporcional e, assim, adequada às reais necessidades do incapaz.
A partir de uma análise conjunta dos obstáculos enfrentados
pela pessoa com deficiência mental ou intelectual, levando em conta
também suas qualidades, atributos, potencialidades, projetos de vida,
e, principalmente, sua vontade, é que se deverá chegar a uma definição
de quais atos ela estará impossibilitada de praticar sozinha.
Na interdição, portanto, devem ganhar relevo, invariavelmente,
os atos da vida civil para os quais o incapaz necessitará de auxílio para
colocar em prática, independentemente de a falta de discernimento ser
total ou apenas parcial. Identificadas as necessidades reais do interditan-
do, se torna possível estabelecer um regime de curatela personalizado
e realmente promocional dos direitos fundamentais.
Em suma, a adoção de uma curatela que efetivamente coloque
em primeiro plano o incapaz, priorizando a tutela da personalidade,
depende do abandono do esquematismo hodierno, que atrela o regime
da incapacidade civil a tipos legais previamente estabelecidos, que de-
terminam de antemão o que o incapaz pode e o que não pode fazer.12

12
Ilustra com perfeição o caráter multifacetado e heterogêneo das pessoas com deficiência
mental ou intelectual notícia veiculada recentemente na imprensa nacional, que relatava a

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46 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Como bem alerta Pietro Perlingieri, o uso dessa fórmula geral e abstrata
pode reduzir o regime da incapacidade civil a mera ficção, já que, no
mais das vezes, a falta de aptidão do incapaz não é permanente e ab-
soluta, mas ligada a setores, atreladas a certas esferas de interesses.13
Pelo exposto, não resta dúvida de que o regime jurídico em vigor,
com ênfase na proteção de direitos patrimoniais, que promove uma
curatela mecanizada e distante da realidade, não está em conformidade
com a tábua axiológica da Constituição Federal.
É também reflexo do caráter patrimonialista da curatela o fato
de que tal medida não tem se revelado instrumento hábil à reabilitação
do incapaz, especialmente se for pessoa com algum transtorno mental.
Tem-se, aqui, verdadeira contradição. Embora a interdição retire do
incapaz, de acordo com o modelo aplicado atualmente, a possibilidade
de exercer direitos patrimoniais e também existenciais, na prática o
curador atua, essencialmente, somente na administração patrimonial.
A atenção à saúde mental da pessoa com deficiência mental ou
intelectual não tem sido o elemento propulsor da interdição civil, de
modo que a sua decretação não se traduz em melhoria na qualidade
de vida do incapaz.
Vigora, portanto, modelo de curatela que não privilegia, no to-
cante ao incapaz, o bem-estar, a saúde, a busca pela felicidade, enfim,
o pleno desenvolvimento da pessoa.
Outro aspecto que merece uma reflexão cuidadosa é o fato de
que o Código Civil prescreve um regime de curatela que, ao invés de
prestigiar o incapaz, por meio da valorização de sua vontade, acaba
concretizando exatamente o inverso.
A curatela, com o perfil atual, baseia-se na substituição da von-
tade do incapaz pela do curador. Decretada a interdição, o incapaz
perde o poder de decisão sobre os rumos da própria vida, uma vez
que não será ouvido acerca de questões de seu interesse. O curador
recebe poderes para administrar a pessoa e o patrimônio do incapaz.
Com isso, a interdição, medida que poderia contribuir para a so-
cialização do incapaz, importa em medida de exclusão, estigmatizante,

aprovação do jovem Kallil Assis, de 21 anos, no vestibular da Universidade Federal de Goiás,


para o curso de Geografia. É que, a despeito de ter síndrome de Down (que, conforme a dou-
trina civilista clássica, importaria necessariamente na qualificação do rapaz como relativa-
mente incapaz, de acordo com o disposto no art. 4º, III, do Código Civil) o jovem obteve êxito
no concurso da instituição mais concorrida do Estado, independentemente de preparação
especial ou de correção diferenciada da prova. Disponível em: <http://g1.globo.com/goias/
noticia/2012/02/estudante-com-sindrome-de-down-e-aprovado-no-vestibular-da-ufg.html>.
13
Cf. PERLINGIERI. O direito civil na legalidade constitucional, p. 779 et seq.

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CAPACIDADE CIVIL – FIXAÇÃO DE NOVOS PARADIGMAS PARA A CONSTRUÇÃO DE UM REGIME JURÍDICO ...
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impedindo o acesso à cidadania. É que, em linhas gerais, parte-se da


ideia padronizada de que a pessoa com deficiência mental ou intelec-
tual não está apta a “entender” ou a “querer”, não sendo respeitada,
assim, a sua vontade.
Ao levarmos em conta que, na quase totalidade dos casos, con-
forme já mencionamos anteriormente, a interdição será total, para todos
os atos da vida civil, que importa na nomeação de curador para repre-
sentar o interdito de maneira completa, percebe-se com mais clareza
que a medida em apreço reveste-se de profundo caráter excludente,
pois, a partir daí, a vontade do incapaz deixa de apresentar qualquer
valor jurídico.
Nesse diapasão, reitere-se para afastar qualquer dúvida, a cura-
tela, que poderia ser instrumento salutar voltado à inclusão da pessoa
com transtorno mental, fulcrada em medidas de auxílio ao incapaz,
acaba, na verdade, por anulá-lo, uma vez que de cooperação tais me-
didas nada tem, posto que a sistemática é de substituição da pessoa
pelo seu representante legal.
Esse quadro normativo tem nítido viés paternalista, pois se ba-
seia na falsa premissa de que toda pessoa com deficiência mental ou
intelectual não tem condições de levar uma vida produtiva e autônoma.

3.3 A capacidade civil na Convenção da ONU sobre os


Direitos das Pessoas com Deficiência
No ano de 2006, foi aprovada em Nova Iorque a Convenção da
ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), tendo sido
assinada pelo Brasil, juntamente com seu Protocolo Facultativo, em
março de 2007. O referido tratado internacional está em conformidade
com a política da Organização das Nações Unidas de conferir proteção
especial a determinados grupos de pessoas em situação de vulnerabili-
dade, advinda normalmente de elementos históricos e culturais.
Pouco tempo depois, em 2008, a Convenção foi internalizada no
Brasil, por meio do Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho. O Con-
gresso Nacional, com fulcro no §3º, do art. 5º, da Constituição Federal,
aprovou a incorporação do tratado internacional ao direito brasileiro,
com status de emenda constitucional.
Portanto, vigora há algum tempo no Brasil norma verdadeira-
mente revolucionária a respeito da tutela jurídica da pessoa com defi-
ciência, cuja hierarquia é superior, dada a sua natureza constitucional,
mas, infelizmente, este fato ainda é desconhecido por boa parte da

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
48 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

população brasileira e até mesmo por um contingente alto de opera-


dores do direito.
A CDPD tem como alguns de seus princípios essenciais, con-
forme disposto no art. 3: o reconhecimento da dignidade inerente, da
autonomia individual, da liberdade de fazer as próprias escolhas e da
independência, a não discriminação, a plena e efetiva participação e
inclusão na sociedade, o direito à diferença, igualdade de oportunida-
des, acessibilidade.
A Convenção traz um conceito inovador de pessoa com deficiên­
cia, longe das definições paternalistas ou estigmatizantes de outrora.
De acordo com a CDPD, “pessoas com deficiência são aquelas que
têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual
ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem
obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade
de condições com as demais pessoas”.
Trata-se de um conceito aberto e mutável, que identifica a defi-
ciência no meio, no ambiente, e não na pessoa. A pessoa, na verdade,
apresenta certas características físicas, sensoriais, mentais ou intelec-
tuais, que são reconhecidas como parte da diversidade humana. É da
interação desses atributos peculiares com o meio social que resulta a
deficiência.14
A título de ilustração: o cego tem uma característica sensorial
peculiar, que é a sua limitação visual. Esta, por si só, não caracteriza
deficiência, por ser mero atributo da pessoa, como a cor da pele, o sexo,
a orientação sexual etc. Porém, se a pessoa cega não consegue emprego
no mercado de trabalho, em razão desta característica sensorial, aí reside
a deficiência, da interação desse atributo da pessoa com o meio social.
Como bem ressaltado por Ricardo Tadeu Marques da Fonseca,
o conceito de pessoa com deficiência tem natureza social e está intima-
mente ligado com o propósito político da Convenção, que é a emanci-
pação da pessoa com deficiência, mediante a supressão das barreiras
que impedem ou dificultam o exercício de seus direitos, superando,
assim, o caráter meramente assistencialista das legislações vigentes
nessa seara até então.15
Importante destacar que, com a CDPD, a tutela dos direitos da
pessoa com deficiência ganha o posicionamento correto, que é o da
promoção dos direitos fundamentais de um grupo populacional que,

14
Cf. FONSECA. O novo conceito constitucional de pessoa com deficiência: um ato de cora-
gem. In: FERRAZ; LEITE (Coord.). Manual dos direitos da pessoa com deficiência, p. 27.
15
Cf. FONSECA, op. cit., p. 23.

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CAPACIDADE CIVIL – FIXAÇÃO DE NOVOS PARADIGMAS PARA A CONSTRUÇÃO DE UM REGIME JURÍDICO ...
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em razão da existência dos obstáculos sociais mencionados tem, a rigor,


negado o acesso aos direitos mais elementares, resultando em evidente
morte civil, impedindo-se, assim, o legítimo exercício da cidadania.
E, na medida em que a CDPD tem como um dos seus referenciais
a promoção da igualdade material, estabelece uma ampla sistemática
para que as barreiras (culturais, físicas, econômicas, tecnológicas etc.)
de acesso aos direitos humanos, pela pessoa com deficiência, sejam
superadas. E, como tais barreiras são de cunho social, trata-se de um
dever de toda a sociedade agir para suplantar esse quadro.
Ao tratar da capacidade civil da pessoa com deficiência, a CDPD
está em consonância com os valores e princípios elencados na Consti-
tuição Federal, por sobrepor a tutela jurídica da dignidade humana e
das situações existenciais às situações patrimoniais.16
Conforme já referido, a CDPD, em seu Preâmbulo “n”, dispõe
que os Estados-Partes da Convenção reconhecem: “(...) a importância,
para as pessoas com deficiência, de sua autonomia e independência
individuais, inclusive da liberdade para fazer as próprias escolhas”.
De acordo com a base principiológica da Convenção, reconhece-­
se em favor da pessoa com deficiência o direito à liberdade como um
dos seus pilares, que naturalmente se traduz no respeito às escolhas
individuais de cada um, fruto do exercício da vontade.
Quanto à capacidade civil propriamente, a Convenção trata da
matéria em seu art. 12, estabelecendo alguns paradigmas que assim
podemos resumir:
a) as pessoas com deficiência gozam de capacidade civil em
igualdade de condições com as outras pessoas.
b) as pessoas com deficiência devem receber o apoio necessário
para que possam exercer a sua capacidade.
c) eventuais limitações à capacidade da pessoa com deficiência
devem ser pautadas no respeito à sua vontade e às suas esco-
lhas, e também ser proporcionais e condizentes com as parti-
cularidades de cada um, devendo ser aplicadas pelo período
mais curto possível.
A CDPD está fulcrada na máxima proteção da capacidade da
pessoa com deficiência, como forma de resguardar devidamente a sua
personalidade. Por isso, eventuais limitações à capacidade de exercício

16
Importante destacar que apenas as hipóteses de deficiência mental ou intelectual podem, a
depender do caso concreto, caracterizar a incapacidade civil, na medida em que a deficiência
física e a deficiência sensorial, por si mesmas, não acarretam qualquer limitação à capacida-
de de exercício.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
50 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

estão condicionadas à promoção da dignidade humana, sendo legítimas


apenas na medida em que forem instrumentos voltados ao desenvol-
vimento da pessoa com deficiência, à sua necessária inclusão social.
Trata-se, portanto, de eventual limitação que não prioriza a tutela
de situações patrimoniais, devendo ser adotada apenas excepcional-
mente e visando o bem-estar psicossocial da pessoa com deficiência.
Vigora hoje no Brasil, portanto, novo regime constitucional de
proteção da pessoa com deficiência, voltado para a promoção de direitos
fundamentais, a partir do reconhecimento do direito à diferença. Com
isso, em razão da prevalência hierárquica da CDPD, toda a legislação
ordinária que trata do tema deve ser interpretada em conformidade
com esses novos ditames e, em caso de conflito normativo, haverá a
revogação da legislação infraconstitucional, exceto na hipótese de a lei
ordinária conferir proteção mais ampla que a própria Convenção, de
acordo com o disposto no seu art. 4, item 4.17
Com razão, alerta Luiz Alberto David Araújo que mesmo as
normas da Convenção que estabelecem comandos programáticos, cuja
concretização está voltada para o futuro, resultam também em vetores
normativos na atualidade, como a impossibilidade de o Estado, antes
de cumprir com as metas e diretrizes elencadas na Convenção, vir a
editar legislação que a contrarie, o que importaria em nulidade da
norma infraconvencional.18
Em suma, a legislação nacional, com a internalização da CDPD,
está submetida a uma nova ordem jurídica de proteção da pessoa com
deficiência e, com isso, é imperativo que o hermeneuta atue no sentido
de compatibilizar toda a malha da legislação ordinária às novas diretri-
zes da Convenção, que, não custa lembrar, tem natureza constitucional.
Considerando que a CDPD tem como norte a supressão dos
obstáculos que impedem ou dificultam o acesso da pessoa com deficiên­
cia aos direitos fundamentais, é inconteste que o regime da curatela
baseado na normativa do Código Civil (paternalista, patrimonialista e
baseado na substituição da vontade do incapaz pela do curador), está

17
“Nenhum dispositivo da presente Convenção afetará quaisquer disposições mais propícias
à realização dos direitos das pessoas com deficiência, as quais possam estar contidas na le-
gislação do Estado Parte ou no direito internacional em vigor para esse Estado. Não haverá
nenhuma restrição ou derrogação de qualquer dos direitos humanos e liberdades fundamen-
tais reconhecidos ou vigentes em qualquer Estado Parte da presente Convenção, em confor-
midade com leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob a alegação de que a presente
Convenção não reconhece tais direitos e liberdades ou que os reconhece em menor grau.”
18
Cf. ARAÚJO. A convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência e seus reflexos na
ordem jurídica interna no Brasil. In: FERRAZ; LEITE (Coord.). Manual dos direitos da pessoa
com deficiência, p. 58-59.

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CAROLINA VALENÇA FERRAZ, GLAUBER SALOMÃO LEITE
CAPACIDADE CIVIL – FIXAÇÃO DE NOVOS PARADIGMAS PARA A CONSTRUÇÃO DE UM REGIME JURÍDICO ...
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em descompasso com o disposto no tratado, que, conforme já referido,


tem status de norma constitucional no Brasil.
Enquanto a Convenção estabelece mecanismos para a eman-
cipação da pessoa com deficiência, para a obtenção de autonomia, o
Código Civil permanece preso a um regime puramente assistencialista,
anacrônico e inadequado ao exercício da cidadania, que contribui para
a exclusão social e para a disseminação do preconceito.

Conclusões
A sistemática patrimonialista da incapacidade civil, prevista
no Código Civil em vigor, está em claro descompasso com os valores
constitucionais, por se revelar incompatível com a promoção da digni­
dade humana.
Por essa razão, não tutela adequadamente os interesses dos
incapazes, especialmente os incapazes maiores de idade.
Além disso, os incapazes maiores de idade estão submetidos a
regime de curatela mecanizado e distante da realidade, insuficiente,
portanto, para concretizar os valores constitucionais.
De igual modo, tal regime jurídico não se coaduna com a CDPD,
já que esta norma tem como paradigma o acesso da pessoa com defi-
ciência aos direitos fundamentais, como forma de proteção da perso-
nalidade humana.
Assim, o Código Civil está em desacordo, no que tange à inter-
dição e à curatela, com duas normas que tem hierarquia superior, no
caso, a Constituição Federal e a Convenção da ONU sobre os Direitos
das Pessoas com Deficiência.
Portanto, faz-se necessária profunda reforma legislativa para ade-
quar a norma codificada aos ditames da Constituição e da Convenção,
que refletem uma nova ordem jurídica.
Enquanto essa reforma legislativa não for implementada, é
indispensável desenvolver interpretação do Código Civil em confor-
midade com a Constituição e com a Convenção da ONU, com base nos
seguintes preceitos:
a) adoção da curatela parcial como regra, que, baseada em uma
interpretação em conformidade com os valores constitucionais,
não está adstrita à literalidade das hipóteses mencionadas no
art. 1.772 do Código Civil.
b) nesse diapasão, deve ser superada a dicotomia incapacidade
absoluta/incapacidade relativa, para que a interdição seja ba-
seada nas necessidades reais do interditando, de modo que,

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
52 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

mediante análise do caso concreto, a sentença judicial expres-


samente defina quais atos o incapaz estará impossibilitado de
praticar pessoalmente. Por exclusão, os atos não mencionados
na referida sentença poderão ser praticados livremente.
c) devem ser adotados critérios distintos para a limitação ao exer-
cício de direitos patrimoniais e de direitos não patrimoniais.
d) a curatela tem de ser dimensionada como instrumento de
emancipação do incapaz, através da concreção de medidas
voltadas à autonomia e ao seu bem estar, figurando apenas em
segundo plano as providências para a realização de negócios
jurídicos.

Referências
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AMARAL NETO, Francisco dos Santos. Direito civil: introdução. 7. ed. Rio de Janeiro:
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e seus reflexos na ordem jurídica interna no Brasil. In: FERRAZ, Carolina Valença;
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Saraiva, 2012.
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
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EHRHARDT JR, Marcos. Adolescente que foi morar com homem mais velho terá que
voltar para casa. 21 mar. 2012. Notícias. Disponível em: <http://www.marcosehrhardt.
adv.br/index.php/noticia/2012/03/21/adolescente-que-foi-morar-com-homem-mais-velho-
tera-que-voltar-para-casa>.
FONSECA, Ricardo Tadeu Marques da. O novo conceito constitucional de pessoa com
deficiência: um ato de coragem. In: FERRAZ, Carolina Valença; LEITE, Glauber Salomão
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CAROLINA VALENÇA FERRAZ, GLAUBER SALOMÃO LEITE
CAPACIDADE CIVIL – FIXAÇÃO DE NOVOS PARADIGMAS PARA A CONSTRUÇÃO DE UM REGIME JURÍDICO ...
53

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

FERRAZ, Carolina Valença; LEITE, Glauber Salomão. Capacidade civil: fixação


de novos paradigmas para a construção de um regime jurídico voltado à tutela
da dignidade humana. In: EHRHARDT JR., Marcos (Coord.). Os 10 anos do
Código Civil: evolução e perspectivas. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 35-53.
ISBN 978-85-7700-916-8.

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FIM DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA
PESSOA NATURAL
BREVE ESTUDO A PARTIR DO DIREITO
POSITIVO BRASILEIRO

VENCESLAU TAVARES COSTA FILHO

1 Considerações sobre a morte como fato jurídico


A morte é apontada pelo legislador como o fato que indica o
termo final das capacidades jurídicas da pessoa natural (art. 6º do
Código Civil brasileiro vigente). Em verdade, a morte interessará ao
jurista especialmente como elemento da causa de certos efeitos, tais
como a extinção da personalidade jurídica e determinados efeitos
sucessórios.1 Apesar de a morte suscitar repercussões morais, religiosas,
antropológicas, econômicas etc.; só interessará ao jurista os efeitos
jurídicos relacionados com a morte.
Apesar de alguns doutrinadores aludirem a certos fenômenos
como hipóteses de “morte” das pessoas jurídicas, Pontes de Miranda
restringe o uso do termo para as pessoas naturais, alegando que para
as pessoas jurídicas há que se falar em extinção.2

1
TELLES. Direito das sucessões: noções fundamentais, p. 4.
2
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, p. 9.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
56 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

A morte marca o início de uma crise que se abate sobre as relações


jurídicas das quais fazia parte a pessoa falecida (de cujus) e que devem
sobreviver a ela; desligando-se do primitivo sujeito (ativo ou passivo),
em razão do óbito, e vinculando-se a novo(s) sujeito(s) pelo recurso a
certos expedientes jurídicos próprios do direito das sucessões.3 Assim,
o conjunto de expedientes jurídicos, sejam atos ou fatos, que dizem
respeito a este processo de transição, ou seja, de atribuição das posições
jurídicas do de cujus a outro(s) sujeito(s) é o que tradicionalmente se
chama de fenômeno sucessório ou fenômeno da sucessão por morte,
que se constituiria no objeto do direito das sucessões.4
Assim, um dos efeitos da morte é a cessação da personalidade
jurídica da pessoa natural: “que, em virtude disso, deixa de ser titular
de direito e deveres”.5 Entretanto, a morte não redunda necessariamente
em extinção de tais direitos e deveres antes atribuídos ao que deixou
o mundo dos vivos. Isto porque admitimos a transmissão de certos
direitos e deveres que já pertenceram ao acervo jurídico do de cujus
aos seus sucessores.
Todavia, a partir de Windscheid e Savigny, pode-se rejeitar a ideia
de sucessão, pela vinculação da noção de direito subjetivo a determina-
do sujeito, à medida que o concebem como poder da vontade. Ora, se
a existência de qualquer direito subjetivo supõe a de certo sujeito, com
a mudança do sujeito (que se apresenta como elemento essencial do
direito) ocorre a extinção do direito. O que se transmitiria “para o novo
titular não seria pois o direito, mas apenas o seu objecto. O direito do
novo titular seria sempre um direito novo, embora de conteúdo igual
ao do direito que se extinguiu”.6 Tal raciocínio perde força à medida
que — ultrapassada a fase ultraliberal do direito civil — não se concebe
mais atribuir tamanho poder à vontade, reconhecendo-se ao Estado o
poder de atribuir tais direitos aos sucessores de alguém.

2 Tipologia: morte real, morte presumida e morte civil


A partir do nosso direito positivo, admitem-se somente dois tipos
de morte: a morte real e a morte presumida. Sendo que esta última
pode ocorrer sem a “decretação” de ausência ou em dado momento da

3
COELHO. Direito das sucessões: lições ao curso de 1973-1974, p. 3.
4
COELHO. Direito das sucessões: lições ao curso de 1973-1974, p. 3-4.
5
BAPTISTA. Ensaios de direito civil, p. 349.
6
COELHO. Direito das sucessões: lições ao curso de 1973-1974, p. 11.

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VENCESLAU TAVARES COSTA FILHO
FIM DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA PESSOA NATURAL – BREVE ESTUDO A PARTIR DO DIREITO POSITIVO BRASILEIRO
57

ausência.7 Apesar de o fenômeno da sucessão à causa de morte pres-


supor a verificação da morte de uma pessoa física, em se tratando de
morte presumida há uma “substituição” da morte como evento natu-
ral pela sentença que a declara.8 Parece-nos mais adequado, todavia,
considerar que a substituição se dá não em relação ao evento, mas em
relação à prova da ocorrência dele.
Neste caso, pode-se admitir um atestado médico que prove a
morte mediante o exame direto do corpo do de cujus, ou, ainda, que se
chegue à conclusão por meio de um exame “indireto”, entre o qual se
incluem as presunções. Nos termos do art. 212, incisos IV e V do Código
Civil vigente, “salvo o negócio jurídico a que se impõe forma especial, o
fato jurídico pode ser provado mediante: (...); IV – presunção; V – perí-
cia”. A questão reside, portanto, no fato de que a admissão da presunção
como prova da morte depende de declaração judicial, enquanto a perícia
médica como meio de prova não depende de “confirmação” judicial.
Os dispositivos legais que versam sobre a morte presumida sem
declaração de ausência são três, quais sejam: (a) o art. 7º do CC; (b) o
art. 88 da Lei nº 6.015/73 (LRP); e (c) a Lei nº 9.140/95: para os de­sa­pa­
recidos que desenvolveram ou foram acusados de desenvolver militância
política no período entre 2.9.1961 a 5.10.1988.
Critério para a identificação do momento da morte real entre nós
passou a ser o da morte encefálica, conforme prescreve o art. 3º da Lei
nº 9.434/97. Deixando para trás o critério da parada cardiorrespiratória,
optou o legislador por se pautar pela constatação da morte de todas as
terminações nervosas. A morte encefálica, assim, é mais do que a morte
cerebral, porquanto esta última represente a “morte” deste órgão, sendo
possível a continuação da atividade nervosa por outros elementos do
sistema nervoso (como o bulbo, por exemplo).9
Ao lado da morte real e da morte presumida, admitia-se também
a morte civil. Em tais casos, apesar de sabidamente vivas, tais pessoas
eram declaradas juridicamente mortas. Isto ocorria em situações como a
dos condenados à prisão perpétua, bem como em relação aos religiosos
professos. Persistem ecos desta tradição jurídica entre nós “em algumas
situações como a das pessoas excluídas da sucessão por indignidade,
cujos descendentes herdam como se o excluído morto fosse”.10 Tal insti-
tuto encontrava por fundamento a vinculação da capacidade de direito

7
BAPTISTA. Ensaios de direito civil, p. 350.
8
BURDESE. Successioni e donazioni: estratto dal Manuale di Diritto Privato italiano, p. 751.
9
COSTA FILHO. Pessoa, capacidade(s) e personalidade: revisitando algumas idéias tradi-
cionais. Revista Idéia Nova, p. 338.
10
BAPTISTA. Ensaios de direito civil, p. 350.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
58 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

à integração social do homem. De modo que a supressão da qualidade


de membro de certa comunidade ou de outra particularidade poderia
resultar na cessação da capacidade de direito, como ocorria no caso da
proscrição entre os alemães.11

3 Presunções sobre a morte


3.1 Morte presumida com declaração de ausência
Outra situação é a da morte presumida com declaração de
ausência, ou sem declaração de ausência. Neste caso, observados os
pressupostos legais, é possível obter uma declaração judicial quanto à
morte de alguém. Contudo, tal decisão judicial não acarreta a extinção
da personalidade jurídica do declarado morto. Isto porque a capacidade
de direito só encontra seu fim na morte, devido à “sua proveniência
do ser-homem. Consequentemente, só há este único caso de extinção
da capacidade de direito”.12
Pode-se dizer que a ausência, a priori, dá-se nas situações de in-
certeza sobre a vida ou morte de alguém,13 nas quais se faça necessária
a nomeação de um curador ou a atuação do representante constituído
voluntariamente por aquele a quem se deseja declarar ausente, para que
possa administrar o patrimônio dele. A ausência não interfere sobre a
capacidade de fato ou de direito do declarado ausente; permite apenas
que eventualmente se viabilize a declaração judicial de morte presumi-
da. O ausente, portanto, “seria um indivíduo que se encontra em local
incerto e não sabido, que deixou para trás parte do seu patrimônio,
sobre o qual recaem direitos e deveres que precisam ser cuidados por
alguém, uma vez que não se conhece o paradeiro do titular”.14
Assim, enquanto o absolutamente incapaz depende do curador
na representação dos seus interesses, o múnus do curador do ausente
se restringe à administração do seu patrimônio. Até mesmo porque,
como bem pondera o ilustre civilista alagoano, “onde quer que esteja
o ausente, provavelmente estará se relacionando, contraindo direitos e
deveres na ordem civil, uma vez que ausência, como visto, não implica
incapacidade”.15

11
WESTERMANN. Código civil alemão: parte geral, p. 24.
12
WESTERMANN. Código civil alemão: parte geral, p. 23-24.
13
WESTERMANN. Código civil alemão: parte geral, p. 23.
14
EHRHARDT JR. Direito civil: LICC e parte geral, p. 158.
15
EHRHARDT JR. Direito civil: LICC e parte geral, p. 159.

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VENCESLAU TAVARES COSTA FILHO
FIM DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA PESSOA NATURAL – BREVE ESTUDO A PARTIR DO DIREITO POSITIVO BRASILEIRO
59

Contudo, tal declaração de ausência só poderá ocorrer após longo


processo judicial no qual se apela para que o ausente — podendo — re-
tome a administração de seus bens, e no qual este e outros interessados
podem se manifestar. A declaração de óbito conseguida mediante tal
expediente estabelece uma presunção de que o declarado morto faleceu
na data indicada na decisão.16

3.2 Premoriência e comoriência


Ainda no campo das presunções de morte, fala-se na premo-
riência e na comoriência. Quanto à premoriência, ordinariamente
diz respeito à morte do herdeiro antes do falecimento do “autor” da
herança.17 É o caso, por exemplo, do filho que falece antes de seu pai, e
que por isto não poderá ser herdeiro dele. Equipara-se ao pré-morto o
que foi excluído da sucessão por deserdação ou indignidade. O deser-
dado é tido como morto, ou seja, como se nunca houvesse ocorrido a
transmissão dos bens do patrimônio do autor da herança para o patri-
mônio dele, pois é “como se” houvesse morrido antes do de cujus.18 Já
o indigno, tendo em vista o caráter personalíssimo da pena, transmite
o seu quinhão na herança “como se morto fosse” aos seus herdeiros.
Neste caso, a presunção opera no sentido de admitir que o indigno
sobreviveu ao de cujus, mas que teria falecido depois.19
Mas, aqui, é melhor falar em equiparação e não em presunção
de morte, já que não há que se estender os efeitos desta presunção para
quaisquer outros aspectos existenciais ou patrimoniais do excluído da
sucessão causa mortis. Outra situação é a da comoriência, que não é uma
presunção de morte, mas sim uma presunção sobre o momento da mor-
te. Isto porque, neste caso, diante da impossibilidade de se certificar com
exatidão qual óbito antecedeu o outro que ocorreu aproximadamente no
mesmo instante, declara-se que os óbitos ocorreram simultaneamente.
Não é necessário que as mortes aconteçam no mesmo local. Importa
verificar se há a proximidade temporal, e não a geográfica. De modo
que uma das mortes pode ter se efetivado em solo japonês, e a outra, em
solo brasileiro. Some-se a isto o fato de que o recurso a tal expediente
só se justifica enquanto um dos falecidos for herdeiro ou beneficiário

16
WESTERMANN. Código civil alemão: parte geral, p. 23.
17
DIAS. Manual das sucessões, p. 284.
18
DINIZ. Curso de direito civil brasileiro, p. 194.
19
“o indigno, (...), devido ao caráter personalíssimo da pena, transmite sua parte na herança,
como se morto fosse, a seus descendentes” (DINIZ. Curso de direito civil brasileiro, p. 61).

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
60 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

do outro. Pois, não sendo assim, “inexiste qualquer interesse jurídico


nessa pesquisa. O principal efeito da presunção de morte simultânea
é que, não tendo havido tempo ou oportunidade para a transferência
de bens entre os comorientes, um não herda do outro”.20

3.3 Morte presumida sem declaração de ausência


Quanto à morte presumida sem declaração de ausência, há que se
ponderar sobre as hipóteses aludidas nos dispositivos a seguir:
a) art. 7º do CC;21
b) art. 88 da Lei nº 6.015/73 (LRP);22
c) Lei nº 9.140/95: para os desaparecidos que desenvolveram ou
foram acusados de desenvolver militância política no período
entre 2.9.1961 a 15.8.1979.23
Não há incompatibilidade entre a redação do aludido dispositivo
do Código Civil e o que já determinava a Lei de Registros Públicos.
Pode-se dizer, simplesmente, que o novel código veio complementar a
Lei de Registros Públicos quanto ao período a partir do qual será feita
a declaração de morte presumida sem declaração de ausência. A partir
do diploma civil de 2002, enquadram-se as hipóteses de “naufrágio,
inundação, incêndio, terremoto ou qualquer outra catástrofe”, referidas
na Lei de Registros Públicos, na hipótese geral do caput do art. 7º, da Lei
nº 10.406/2002, ou seja, em qualquer situação em que seja extremamente
provável a morte de quem estava em perigo de vida. Também o parágrafo
único do art. 88 da LRP tratava da situação dos que desapareceram

20
GONÇALVES. Direito civil brasileiro: direito das sucessões, p. 18.
21
Art. 7º Pode ser declarada a morte presumida, sem decretação de ausência:
I – se for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida;
II – se alguém, desaparecido em campanha ou feito prisioneiro, não for encontrado até
dois anos após o término da guerra.
Parágrafo único. A declaração da morte presumida, nesses casos, somente poderá ser re-
querida depois de esgotadas as buscas e averiguações, devendo a sentença fixar a data
provável do falecimento.
22
Art. 88. Poderão os juízes togados admitir justificação para o assento de óbito de pessoas
desaparecidas em naufrágio, inundação, incêndio, terremoto ou qualquer outra catástrofe,
quando estiver provada a sua presença no local do desastre e não for possível encontrar-se
o cadáver para exame.
Parágrafo único. Será também admitida a justificação no caso de desaparecimento em
campanha, provados a impossibilidade de ter sido feito o registro nos termos do art. 85 e
os fatos que convençam da ocorrência do óbito.
23
Art. 1º São reconhecidos como mortas, para todos os efeitos legais, as pessoas que tenham
participado, ou tenham sido acusadas de participação, em atividades políticas, no período
de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988, e que, por este motivo, tenham sido
detidas por agentes públicos, achando-se, deste então, desaparecidas, sem que delas haja
notícias. (NR) (Artigo alterado pela Lei nº 10.536, de 14.8.2002).

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VENCESLAU TAVARES COSTA FILHO
FIM DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA PESSOA NATURAL – BREVE ESTUDO A PARTIR DO DIREITO POSITIVO BRASILEIRO
61

em campanha, não conflitando com a regra do inciso II, do art. 7º, do


Código Reale. A novidade, aqui, é que se esclarece a partir de quando
poderá ocorrer a declaração de morte presumida. Na hipótese geral
do inciso I do art. 7º — ou seja, quando for extremamente provável a
morte de quem estava em perigo de vida —, declara-se a morte presu-
mida a partir do momento em que se encerram as buscas. Neste caso,
não existe um prazo certo para as buscas. Tal prazo é determinado,
normalmente, a partir das experiências e das decisões tomadas caso a
caso por equipes de buscas da defesa civil, corpo de bombeiros, polícia
militar etc. O desaparecimento de alguém devido ao naufrágio de um
barco em alto-mar talvez demande mais tempo para as buscas do que
o desaparecimento daquele que estava em edifício que foi implodido.
Fato diverso ocorre para o que desapareceu em campanha. Isso por-
que, neste caso, o legislador estabelece o prazo de até dois anos após o
término da guerra.24

4 A morte está sob uma jurisdição “médica”?


A adoção da morte encefálica como critério para a constatação
da morte natural suscitou interessante debate sobre a problemática
da anencefalia, porquanto se questione se a chamada “antecipação
terapêutica do parto” seria fato diverso do tipo penal do aborto, que é
qualificado como crime contra a vida.
Ora, em sendo a continuidade da atividade encefálica um dado
determinante, haveria que se levar em consideração a ausência de cé-
rebro (como ocorre em relação aos anencéfalos) para fins de verificação
do início da personalidade. Sob esta perspectiva, equiparar a ausência
de cérebro à inexistência de vida encefálica resulta na equiparação
do nascimento do anencéfalo à do natimorto. Ou seja, haveria que se
falar em um fato impeditivo da aquisição da personalidade. Contudo,
não se pode afirmar que exista “consenso na ciência médica sobre a
aplicação do critério da morte cerebral às hipóteses de anencefalia ou
de insuficiência cerebral irreversível”.25
A legislação brasileira em relação à problemática da anencefalia
é de um silêncio de “morte”. A despeito da ausência de norma explí-
cita, o Conselho Federal de Medicina decidiu — tendo em vista a Lei
nº 9.434/1997 (Lei de Transplantes) — obstar a retirada de órgãos de um

24
COSTA FILHO. Pessoa, capacidade(s) e personalidade: revisitando algumas idéias tradi-
cionais. Revista Idéia Nova, p. 342.
25
LÔBO. Direito civil: parte geral, p. 114.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
62 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

anencéfalo para fins de transplante, desde que presente a atividade dos


órgãos cardiorrespiratórios, mesmo que artificialmente estimulados,
porquanto tais elementos demonstrassem a ocorrência do nascimento
com vida. Tal argumentação foi acolhida pelo Ministério da Saúde do
Brasil. Assim, como se admite o nascimento com vida do anencéfalo,
“então, para os fins do direito brasileiro, haveria aquisição de persona-
lidade que persistiria nos breves instantes extra-uterinos”.26
É bem verdade que, em virtude da redação da Resolução
nº 1.752/2004, o Conselho Federal de Medicina concedeu uma “auto-
rização ética do uso de órgãos e tecidos de anencéfalos para fins de
transplante”. Ao argumento da “inviabilidade vital” dos anencéfalos,
e que eles normalmente sofrem parada cardiorrespiratória após o nas-
cimento (o que poderia inviabilizar o transplante devido à hipoxemia
de vários órgãos e tecidos); considerou que bastava a autorização pré-
via dos pais, manifestada formalmente 15 dias antes do nascimento,
para que a retirada dos órgãos e tecidos do anencéfalo logo após o seu
nascimento tivesse o respaldo ético. Contudo, devido à dificuldade de
uma afirmação apriorística sobre a atividade cardiorrespiratória do
anencéfalo, que pode subsistir por um bom tempo após o nascimento,
procedeu o Conselho Federal de Medicina com a edição de uma nova
resolução (qual seja a Resolução nº 1949/2010), que revogou expressa-
mente a Resolução nº 1.752/2004.
As dificuldades práticas quanto à obtenção de um diagnóstico
pré-natal com um certo grau de certeza e segurança, “levaram a Corte
Européia de Direitos Humanos a decidir em 08 de julho de 2004 que no
atual panorama não é desejável, ou muito menos possível, ‘responder
em abstrato à questão que procura saber se o nascituro é uma ‘pessoa’,
no sentido do art. 2º da Convenção Européia de Direitos Humanos’”.27
Observe-se, pois, que foi por um ato do Conselho Federal de Me-
dicina que se fixou a possibilidade do nascimento com vida do nascituro,
com efeitos jurídicos. Isto porque a Lei de Transplantes condiciona a
retirada dos órgãos para tais fins à constatação da morte encefálica. O
posicionamento do Conselho Federal de Medicina (e referendado pelo
Ministério da Saúde brasileiro), portanto, gerou um óbice ao exercício
da faculdade jurídica prevista no citado dispositivo legal. Tal situação,
sem dúvida, suscita a necessidade de se debater o problema da chamada
“jurisdição médica”.

26
LÔBO. Direito civil: parte geral, p. 114.
27
COSTA FILHO. Pessoa, capacidade(s) e personalidade: revisitando algumas idéias tradi-
cionais. Revista Idéia Nova, p. 330.

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VENCESLAU TAVARES COSTA FILHO
FIM DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA PESSOA NATURAL – BREVE ESTUDO A PARTIR DO DIREITO POSITIVO BRASILEIRO
63

A questão encontra um dos seus principais pressupostos no jul-


gamento do case Quinland, julgado pelo Tribunal Superior do Estado
de New Jersey (EUA) em meados da década de 1970. Trata-se do caso
de uma jovem de vinte e um anos, que se encontrava em coma há cerca
de sete meses, sobrevivendo apenas devido ao auxílio de um aparelho
que artificialmente mantinha a sua atividade respiratória. Os médicos
consultados, apesar de não acreditarem ser possível a recuperação da
jovem, insistiam em manter aquela situação artificial. Os pais adotivos
da jovem, diante das expectativas negativas geradas pelo parecer profis-
sional, pediram uma autorização ao poder judiciário para desconectar
o aparelho que mantinha a atividade respiratória.28
A decisão judicial, contudo, não acolheu o pedido dos familiares
da jovem paciente. Segundo o juiz, “a questão de prolongar a vida da
jovem era uma decisão que invadia a competência ou jurisdição médi-
ca”, pelo que rechaçou a tentativa de desligar o respirador e concordou
com a opinião dos médicos que acompanhavam o quadro de saúde da
paciente. Além de reconhecer a “jurisdição médica”, também funda-
mentou a sua decisão nas leis vigentes no Estado de New Jersey, que
prescrevem taxativamente que “a simples intenção de pôr fim à vida
de outra pessoa, quaisquer que sejam os motivos, é causa suficiente
para o ajuizamento de uma ação criminal”.29
Talvez cause espanto para muitos, tanto no exemplo brasileiro
como no precedente norte-americano, o poder conferido a uma classe
profissional como a dos médicos de decidir sobre a aplicação de normas
jurídicas e, especialmente, sobre “a vida ou a não-vida”.30 Nestes casos,
aparentemente, os órgãos supostamente investidos de competência para
decidir sobre esta questão (o poder legislativo, o judiciário etc.) abdica-
ram deste mister, transferindo esta responsabilidade para os técni­cos
(ou seja, os médicos), o que torna ainda mais dramática a questão.
Observe-se, pois, que o magistrado norte-americano fundamen-
tou a sua decisão na regra que afirma que a simples intenção de dar
cabo à vida de alguém é razão suficiente para a propositura de ação
penal. Porém, matar (ou pôr fim à vida) pode ser tomado como um ato
que interrompe o curso normal da natureza. Mas, no case Quinland e

28
DIÉZ-PICAZO. Derecho y masificación social: tecnología y derecho privado (dos esbozos),
p. 105.
29
DIÉZ-PICAZO. Derecho y masificación social: tecnología y derecho privado (dos esbozos),
p. 106.
30
DIÉZ-PICAZO. Derecho y masificación social: tecnología y derecho privado (dos esbozos),
p. 106-107.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
64 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

em outros assemelhados, o que se pretende, aparentemente, é deixar


a natureza seguir o seu rumo.31
Parece-nos, entretanto, que esta “jurisdição médica” — tendo
em vista muitas vezes a premência na tomada de decisões (sob pena
de tornar irreversível o dano à saúde dos pacientes) — não é dotada
da mesma dialeticidade da seara jurídica. Enquanto no judiciário
impõe-se o contraditório e a ampla defesa, com ampla possibilidade de
interposição de recursos perante os diversos tribunais, a decisão médica
parece produzir uma coisa julgada “imediata”, restando prejudicada a
possibilidade de rediscussão.
O médico (assim como o cientista), na qualidade de profissional
especializado, realiza julgamentos políticos e jurídicos questionáveis.
Não é que se possa colocar em dúvida o “caráter” dos médicos, ou
que se possa acusá-los de ingênuos; “mas precisamente o fato de que
habitam um mundo no qual as palavras perderam o seu poder. E tudo
o que os homens fazem, sabem ou experimentam só tem sentido na
medida em que pode ser discutido”.32
O cerne da problemática, portanto, reside no fato de que a ética
médica é incapaz de dar respostas adequadas aos problemas que sur-
giram com os avanços da biotecnologia, “implicando a necessidade
de uma abordagem mais abrangente, envolvendo também os aspectos
políticos, filosóficos, psíquicos e jurídicos na problemática. É dentro
desse quadro que se verifica a construção de um estudo necessariamente
interdisciplinar dos temas bioéticos”.33
Contudo, reconhece-se aqui também a impotência da ordem
jurídica diante das novas descobertas biotecnológicas,34 o que suscita
a necessidade de um diálogo permanente entre a medicina, o direito
e outros ramos do conhecimento; para que se leve em consideração os
valores fundamentais da sociedade, especialmente aqueles assegurados
pela ordem jurídica dos direitos fundamentais.

31
DIÉZ-PICAZO. Derecho y masificación social: tecnología y derecho privado (dos esbozos),
p. 107-108.
32
ARENDT. A condição humana, p. 12.
33
CATÃO. Bioética, biodireito e direitos fundamentais: um contexto de discussões para os
problemas decorrentes da biotecnologia. Revista Idéia Nova, p. 216.
34
CATÃO. Bioética, biodireito e direitos fundamentais: um contexto de discussões para os
problemas decorrentes da biotecnologia. Revista Idéia Nova, p. 217.

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VENCESLAU TAVARES COSTA FILHO
FIM DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA PESSOA NATURAL – BREVE ESTUDO A PARTIR DO DIREITO POSITIVO BRASILEIRO
65

Referências
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COELHO, Francisco Manuel Pereira. Direito das sucessões: lições ao curso de 1973-1974.
Coimbra: João Abrantes, 1974. Parte I.
COSTA FILHO, Venceslau Tavares. Pessoa, capacidade(s) e personalidade: revisitando
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DIAS, Maria Berenice. Manual das sucessões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
DIÉZ-PICAZO, Luis. Derecho y masificación social: tecnología y derecho privado (dos
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EHRHARDT JR., Marcos. Direito civil: LICC e parte geral. Salvador: JusPodivm, 2009. v. 1
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TELLES, Inocêncio Galvão. Direito das sucessões: noções fundamentais. 5. ed. Coimbra:
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WESTERMANN, Harry. Código Civil alemão: parte geral. Tradução de Luiz Dória Furquim.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

COSTA FILHO, Venceslau Tavares. Fim da personalidade jurídica da pessoa


natural: breve estudo a partir do direito positivo brasileiro. In: EHRHARDT
JR., Marcos (Coord.). Os 10 anos do Código Civil: evolução e perspectivas. Belo
Horizonte: Fórum, 2012. p. 55-65. ISBN 978-85-7700-616-8.

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PÁGINA EM BRANCO

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DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE
TESTAMENTO VITAL, MANDATO DURADOURO
E SUA ADMISSIBILIDADE NO ORDENAMENTO
BRASILEIRO

ADRIANO MARTELETO GODINHO

1 Considerações iniciais
As questões que gravitam em torno da vida e da morte sempre
provocaram acalorados debates e cuidadosas análises por parte da so-
ciedade e de especialistas nos mais variados ramos do conhecimento.
Juristas, médicos, biólogos, filósofos e inúmeros outros profissionais
buscam respostas às questões que versam sobre o início e o fim da vida,
cada qual à sua maneira e com fundamento na metodologia que orienta
a ciência a cujo estudo se dedicam.
No âmbito do Direito, são incontáveis os problemas que as re-
flexões sobre a vida e a morte suscitam. O início da personalidade das
pessoas naturais, a condição jurídica do nascituro (e os reflexos que a
tomada de posição neste domínio fazem incidir em searas como a do
aborto e a das pesquisas científicas realizadas sobre células-tronco em-
brionárias, entre outras) e a determinação do preciso momento da morte,
aspecto crucial para permitir a realização de transplantes de órgãos post
mortem, são algumas das questões que ainda inquietam a mente dos
doutrinadores e passam longe da unanimidade em sede jurisprudencial.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
68 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Neste domínio, uma das controvérsias mais perturbadoras diz


respeito ao consentimento para aceitar ou rejeitar tratamentos médicos,
sobretudo nos casos em que a escolha firmada por uma pessoa possa
colocar em risco sua própria vida. Colocam-se diversas questões, para as
quais não há pronta resposta: há limites para a autonomia dos pacientes
quanto à aceitação ou refutação dos atos médicos, mesmo aqueles que,
em tese, somente lhes poderiam acarretar benefícios? Poderia uma
pessoa declarar, válida e antecipadamente, a quais intervenções médicas
pretende se submeter, caso futuramente se encontre em situação que
a impossibilite de prestar seu consentimento? Se esta declaração for
admitida, quais são seus requisitos e limites? Diante da perspectiva de
impossibilidade vindoura de manifestação, seria cabível, ainda, que o
interessado pudesse eleger um mandatário, a quem caberia o ônus de
manifestar-se, em nome do mandante, em relação ao tratamento da
saúde do paciente?
Apesar de no Brasil inexistir regramento sobre a matéria, e
de serem relativamente tímidos os estudos sobre ela realizados, tem
se tornado cada vez mais frequente a admissão, noutros países, das
diretivas antecipadas de vontade, que se manifestam ora pelo testamento
vital, expressão oriunda da tradução literal da terminologia vigorante
nos Estados Unidos (living will), ora do mandato duradouro, cuja origem
repousa também na ordem jurídica norte-americana (durable power
attorney for health care). Por meio dessas medidas, um indivíduo pode
manifestar, por escrito (no caso do testamento vital) ou por intermédio
de um representante (na hipótese do mandato duradouro) a quais in-
tervenções médicas admite ser submetido no futuro,1 na eventualidade
de, no momento em que se fizer necessária ou aconselhável a prática de
tais intervenções, se encontrar incapacitado para prestar validamente
seu consentimento.
O propósito destas linhas consiste em averiguar se tais declarações
encontram guarida em princípios e normas do ordenamento brasileiro,
malgrado a ausência de regulamentação específica. Antes, contudo, é
imprescindível tecer breves comentários acerca do consentimento para a

1
Normalmente, quando se pensa nas diretivas antecipadas de vontade, pressupõe-se que seu
propósito consiste exclusivamente em apontar quais tratamentos o paciente recusa. João
Carlos Loureiro, contudo, cuida de desmentir este postulado. Segundo o autor, “normal-
mente, pensa-se nas directivas antecipadas como um instrumento adequado para indicar o
tipo de tratamentos que não devem ser iniciados ou devem cessar. No entanto, o seu objecto
compreende também a indicação de cuidados que o paciente pretende que lhe sejam presta-
dos. (...) As directivas antecipadas são via para determinar não apenas o tipo, mas também
a intensidade do tratamento médico” (LOUREIRO. Saúde no fim da vida: entre o amor, o
saber e o direito. Revista Portuguesa de Bioética, p. 70-71).

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ADRIANO MARTELETO GODINHO
DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE – TESTAMENTO VITAL, MANDATO DURADOURO E SUA ADMISSIBILIDADE ...
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prática dos atos médicos e da regulamentação da matéria, em particular,


no Código Civil de 2002. Cumpridas estas etapas, estará sedimentada
a base para o estudo das diretivas antecipadas e de suas duas espécies:
o testamento vital e o mandato duradouro.

2 A autonomia privada nas relações médico-paciente: o


consentimento informado
No âmbito das relações estabelecidas entre médicos e pacientes,
o consentimento informado — expressão que se cunhou para identificar
que a declaração de vontade do paciente é externada de modo livre e
devidamente esclarecido — é a expressão da autonomia que se lhes
confere para aceitar ou recusar determinados tratamentos ou inter-
venções, com base nas informações prestadas acerca dos riscos e dos
procedimentos que serão seguidos.
A conquista da autonomia dos pacientes, neste domínio, foi
gradual. A viragem do modelo estritamente paternalista para o do
reconhecimento desta autonomia pode ser comprovada por diplomas
e diretivas internacionais que confirmam que os médicos deixaram de
ser senhores de todas as decisões que respeitam a vida e a saúde dos
pacientes.
Nos Estados Unidos, em 1847, editou-se um código das “obri-
gações dos pacientes para com seus médicos”, a impor àqueles um
verdadeiro dever de obediência às imposições destes. Segundo constava
do documento,

a obediência do paciente às indicações de seu médico deve ser rápida e


implícita. O paciente não deve nunca permitir que sua própria opinião
vulgar sobre seu estado de saúde possa influir na atenção do médico.
Um erro sobre um aspecto particular pode fazer com que tratamentos
que em outras circunstâncias seriam adequados se tornem perigosos
e inclusive fatais.2

Tempos depois, seriam diversas as premissas — ainda que o ad-


vento de novas perspectivas custasse o passar de mais de um século. A di-
retiva intitulada “elementos fundamentais da relação médico-­paciente”,
formulada pela American Medical Association em 1990, consagrava a

2
Conforme ANDORNO. “Liberdade” e “dignidade” da pessoa: dois paradigmas opostos
ou complementares na bioética?. In: MARTINS-COSTA; MÖLLER (Org.). Bioética e respon-
sabilidade, p. 76.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
70 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

noção de que “uma intervenção biomédica só pode ser levada a cabo


depois que o paciente tenha sido informado de seu propósito, natureza,
riscos e consequências, e tenha consentido livremente”. Por sua vez,
agora num prisma internacional, a Declaração dos Direitos do Paciente
da Associação Médica Mundial, de 1981, determinou que “o paciente tem
o direito de autodeterminação para tomar livremente as decisões que lhe
concernem. O médico informará ao paciente acerca das consequências
de suas decisões”.3
Abandonou-se, portanto, o antigo e rigoroso modelo de busca
pela beneficência, segundo o qual o médico poderia e deveria ministrar
os tratamentos que, a seu juízo, fossem capazes de conduzir à cura de
seus pacientes. Precisamente para evitar que a “opinião vulgar” do
paciente viesse a representar a “desobediência” aos mandamentos
do médico, conforme constava no antigo diploma norte-americano
das “obrigações dos pacientes para com seus médicos”, engendrou-se
um sistema dialético, em que o médico age não somente pelo mero
impulso das suas convicções, mas também em respeito aos interesses
do paciente, segundo as intervenções que também a este pareçam mais
adequadas. Daí emerge, então, o sentido do consentimento informado,
expressão maior da autonomia para aceitar ou recusar determinados
procedimentos, com base nos esclarecimentos, prestados pelo médico,
sobre a natureza da intervenção, os riscos, as contraindicações e as
vantagens esperadas, além de outros elementos que possam relevar
para a formação da livre convicção do paciente.
Atualmente, prevalece a noção de que a declaração do paciente
no sentido de consentir com o ato médico é obrigatória, qualquer que
seja a magnitude da intervenção e os procedimentos e riscos que ela
implica. Nas relações médico-paciente, a liberdade para tomar decisões
acerca dos tratamentos aos quais o paciente deseja ou não se submeter
contribui, afinal, para nele reconhecer o status de pessoa, e não de mero
objeto da atividade médica, superando-se uma concepção manifesta-
mente paternalista da medicina tradicional, “segundo a qual o médico
estava habilitado para decidir de forma unilateral o tratamento a seguir,
sem ter em conta os desejos, temores e interesses do paciente”.4
Apesar de não haver no ordenamento jurídico brasileiro qualquer
alusão expressa ao termo “consentimento informado”, é certa a consa-
gração da noção de que o paciente é livre para optar pela realização ou
pela recusa a quaisquer tipos de tratamentos ou intervenções médicas.

3
ANDORNO, op. cit., p. 76-77.
4
ANDORNO, op. cit., p. 76.

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DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE – TESTAMENTO VITAL, MANDATO DURADOURO E SUA ADMISSIBILIDADE ...
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Há, a propósito, precedentes legislativos e estatutários que confirmam


esta assertiva:
a) cabe referir, inicialmente, aos termos do art. 15 do Código
Civil (a ser abordado adiante), que estabelecem que ninguém
pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a
tratamento médico ou a intervenção cirúrgica;
b) também o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990)5
exige a prestação de esclarecimentos ao consumidor, em
diversas disposições, destacando-se o art. 14, que impõe ao
fornecedor de serviços a responsabilidade por prestar in­
formações insuficientes e inadequadas;6
c) finalmente, o consentimento informado encontra raízes em
resoluções do Conselho Federal de Medicina (nºs 1.081/82,
1.890/09 e 1.957/2010),7 do Conselho Nacional de Saúde
(nº 196/96)8 e também no Código de Ética Médica em vigor.9

5
Muito se discute sobre a (in)aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor às re-
lações médico-paciente. Uma análise extensa sobre o assunto escapa do propósito desta
investigação, mas é possível afirmar que aquele diploma foi editado de maneira tão ampla
que acaba por abarcar, à partida, até mesmo as tais relações. Analisando-se o teor dos arts.
2º e 3º da lei, conclui-se que os conceitos de fornecedor e consumidor são por demais am-
plos, o que ensejaria o enquadramento do médico como fornecedor de serviços (posto que
serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração,
nos termos do §2º do art. 3º) e o paciente como consumidor (uma vez que utiliza o serviço
como destinatário final, como exige o art. 2º).
Ainda que não se entenda, todavia, que o Código de Defesa do Consumidor seja aplicável
às relações médico-paciente, não se nega que a lei reforça as noções de autonomia privada
e consentimento informado.
6
Eis a íntegra do dispositivo: “Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente
da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos
relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas
sobre sua fruição e riscos”.
7
Todas estas resoluções foram extraídas da página: <http://www.portal.cfm.org.br/>. Aces-
so em: 15 jan. 2012. Seguem as disposições mais relevantes de cada uma delas:
Resolução CFM nº 1.081/82 (consentimento ou autorização dado pelo paciente ou respon-
sável ao médico para necrópsia, provas necessárias ao diagnóstico e tratamento), art. 1º:
“o Médico deve solicitar a seu paciente o consentimento para as provas necessárias ao
diagnóstico e terapêutica a que este será submetido”.
Resolução CFM nº 1890/2009 (define e normatiza a telerradiologia), art. 3º, parágrafo úni-
co: “o paciente deverá autorizar a transmissão eletrônica das imagens e seus dados por
meio de consentimento informado, livre e esclarecido”.
Resolução CFM nº 1.957/2010 (adota normas éticas para utilização das técnicas de repro-
dução assistida), I/III: “O consentimento informado será obrigatório a todos os pacientes
submetidos às técnicas de reprodução assistida, inclusive aos doadores. Os aspectos mé-
dicos envolvendo as circunstâncias da aplicação de uma técnica de RA serão detalhada-
mente expostos, assim como os resultados obtidos naquela unidade de tratamento com
a técnica proposta. As informações devem também atingir dados de caráter biológico,
jurídico, ético e econômico. O documento de consentimento informado será expresso em
formulário especial e estará completo com a concordância, por escrito, das pessoas subme-
tidas às técnicas de reprodução assistida”.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
72 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Parte-se da premissa de que o paciente é a parte frágil na rela-


ção estabelecida com o médico, precisamente por ignorar os aspectos
técnicos da medicina. Sendo o consentimento informado a expressão
da vontade do paciente, exige-se que ele tenha plena consciência
da natureza dos procedimentos propostos e dos riscos que lhes são
inerentes, quando poderá, se for o caso, emitir a autorização para a
prática do ato médico. Tal autorização se dá por meio da assinatura do
Termo de Consentimento Informado, documento que deve especificar,
em linguagem acessível ao paciente, as informações indispensáveis à
formação da sua livre convicção. Ao lançar sua assinatura no referido
termo, o paciente declara estar ciente do seu inteiro teor, assumindo
livremente os riscos indicados.8 9
Interessa atentar para o conteúdo das informações prestadas
ao paciente, que deve ter ciência de todos os riscos que o tratamento
ou cirurgia normalmente representam. Ao paciente (ou a quem possa
por ele responder, caso o próprio esteja impossibilitado de fazê-lo) é
apresentado um termo circunstanciado, contendo todas as informa-
ções relevantes para o caso. Evidentemente, a obtenção da autorização
do paciente pode ser dispensada em casos de urgência (como, v.g., a
chegada de um paciente desacordado e em estado grave ao hospital),
quando o profissional tem o dever de agir, sob pena de responder no
âmbito civil, penal e administrativo por sua omissão.
Num primeiro ensaio, em formulação proposta por André
Gonçalo Dias Pereira,10 pode-se afirmar que a validade do consentimento
prestado pelo paciente parte dos seguintes elementos mínimos:
a) que o paciente tenha capacidade para consentir;

8
Que tem por objeto “aprovar (...) diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas en-
volvendo seres humanos”, cujo conceito de consentimento livre e esclarecido (II/11) é o que
se segue: “anuência do sujeito da pesquisa e/ou de seu representante legal, livre de vícios
(simulação, fraude ou erro), dependência, subordinação ou intimidação, após explicação
completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa, seus objetivos, métodos, benefícios
previstos, potenciais riscos e o incômodo que esta possa acarretar, formulada em um termo
de consentimento, autorizando sua participação voluntária na pesquisa”. Extraída do portal:
<http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/1996/Reso196.doc>. Acesso em: 15 jan. 2012.
9
Entre as disposições do Código de Ética Médica sobre o tema, destacam-se os arts. 22 e 31,
que vedam ao médico “deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante
legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminen-
te de morte” e “desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir
livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de
iminente risco de morte”. (Extraído do documento eletrônico: <http://www.portal.cfm.org.
br/>. Acesso em: 15 jan. 2012).
10
PEREIRA. O consentimento informado na relação médico-paciente: estudo de direito civil,
p. 129-130.

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ADRIANO MARTELETO GODINHO
DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE – TESTAMENTO VITAL, MANDATO DURADOURO E SUA ADMISSIBILIDADE ...
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b) que o paciente tenha recebido informação suficiente sobre o


tratamento proposto, considerando-se que a relação médico-­
paciente é fundada na ideia de que uma das partes é perita e
a outra leiga;
c) finalmente, que o paciente tenha liberdade de manifestar sua
vontade, livre de quaisquer vícios que a maculem.
Superada a ideia de que o paciente nada tem a dizer sobre os tra­
tamentos médicos que lhe são propostos, passa-se a admitir que cada
indivíduo se torne senhor das decisões a tomar sobre si mesmo. É este o
ponto de partida para aceitar que se possa planear para o futuro o con-
sentimento, cabendo ao médico respeitar os termos da de­claração prévia
de vontade emitida por seu paciente. Apesar disso, cabe apontar, de pla-
no, uma distinção entre o consentimento informado para a realização de
um procedimento médico e as diretivas antecipadas: enquanto naquele
ato há a aceitação ou rejeição a determinado tratamento proposto para
a cura de um mal presente, nestas ocorre uma projeção que se reporta a
casos futuros. A lógica que orienta um ou outro caso, contudo, assenta
no mesmo fundamento: o respeito à autonomia pessoal do paciente.

3 O sentido do art. 15 do Código Civil


O art. 15 do Código Civil em vigor exerce função primordial para
a resolução das questões respeitantes ao consentimento dos pacientes,
ao estipular que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com
risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”.
Num primeiro momento, a disposição parece nada enunciar além
do óbvio: não se pode impor a alguém a prática de um ato que encerre
grave risco contra a sua própria vida. Sendo esta o bem originário, do
qual decorre todos os outros, caberá à pessoa — aqui, na condição de
paciente — decidir, livre de erro ou coação, se pretende submeter-se
ou não a determinado tratamento ou cirurgia.
A aparente singeleza do dispositivo, contudo, disfarça alguns
aspectos cruciais acerca do consentimento para a prática de atos de
disposição do próprio corpo.
O indicativo que dimana da letra da lei sugere que, para os atos
médicos de tal sorte graves que coloquem o paciente em risco de vida,
torna-se imprescindível atender aos seus interesses. Ao paciente compe-
tirá manifestar seu consentimento, desde que devidamente esclarecido.
Seria possível, por outro lado, extrair argumento a contrario sensu deste

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
74 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

preceito e afirmar que, não havendo risco considerável de vida, caberá


a submissão forçada do paciente ao ato médico que lhe for proposto?
A resposta não pode ser afirmativa. Ainda que a recusa à sub-
missão a um simples procedimento que não traga riscos consideráveis
à saúde ou à vida do paciente, aí sim, é que venha a colocá-lo em imi-
nente risco de vida, há que ter em conta a liberdade e os valores que
alicerçam a dignidade de cada pessoa. A todo e qualquer indivíduo se
defere a prerrogativa de eleger, com base em suas convicções, crenças
e valores, quais tratamentos ou intervenções lhe parecem adequadas.
Resta afastar, portanto, toda interpretação restritiva que porven-
tura se possa obter do preceito em apreço. A ninguém é dada a prer-
rogativa de agir, com supedâneo num suposto interesse de preservar
a vida e a saúde de um paciente, em sentido contrário à sua vontade,
quando livre e conscientemente declarada.
Esta análise reforça a noção de autonomia do paciente: seja qual
forem as circunstâncias e quaisquer que sejam as alternativas de tra-
tamento, somente caberá agir segundo os limites da autorização por
ele declarada. Sendo o paciente, afinal, o titular dos bens da personali-
dade cuja preservação se coloca em pauta, será ele o melhor juiz para
decidir sobre os cuidados com sua saúde, uma vez que esteja de posse
das informações técnicas acerca das alternativas de tratamento e das
possíveis consequências que a aceitação ou rejeição podem acarretar.

4 As diretivas antecipadas de vontade: aspectos


fundamentais
As linhas até aqui traçadas tiveram o propósito de demonstrar
que o paciente é livre, em qualquer circunstância, para decidir sobre os
cuidados com a preservação da sua saúde. Desde os mais inofensivos
tratamentos até as cirurgias intensamente arriscadas e invasivas, não
pode o médico agir sem antes colher o consentimento do paciente, cuja
manifestação estará alicerçada nas informações primordiais sobre os
procedimentos aplicáveis.
Resta averiguar se as manifestações do paciente serão válidas
mesmo nos casos em que elas forem prestadas, por cautela, antes que
se possa vislumbrar uma circunstância concreta em que será necessário
colher o seu consentimento para a prática de atos médicos. Noutros
termos, eis a questão que se coloca: poderia uma pessoa declarar, por
escrito próprio ou mediante representação, a qual tipo de tratamento
pretende ou não se submeter, caso futuramente se encontre em estado

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ADRIANO MARTELETO GODINHO
DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE – TESTAMENTO VITAL, MANDATO DURADOURO E SUA ADMISSIBILIDADE ...
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de saúde de tal maneira grave que o impeça de consentir livremente,


em virtude de ter seu discernimento gravamente afetado?
Insere-se em pauta, enfim, a discussão sobre a existência, validade
e eficácia jurídica das chamadas diretivas antecipadas de vontade, que
admitem duas hipóteses: o testamento vital e o mandato duradouro.
Importa, pois, analisar estas figuras em apartado.

4.1 O testamento vital


O testamento vital (também chamado “testamento biológico”,
“testamento de vida” ou “testamento do paciente”) consiste num do-
cumento, devidamente assinado, em que o interessado juridicamente
capaz declara quais tipos de tratamentos médicos aceita ou rejeita, o que
deve ser obedecido nos casos futuros em que se encontre em situação
que o impossibilite de manifestar sua vontade, como exemplo, o coma.
Cumpre, antes de avançar, apontar uma imprecisão terminoló-
gica no emprego do termo “testamento vital”. Não se trata exatamente
de um testamento, porque este ato jurídico se destina a produzir efeitos
post mortem; ao revés, o testamento vital tem eficácia inter vivos. Ademais,
há outra significativa distinção entre as figuras: o testamento vital tem
por objeto firmar antecipadamente a vontade do paciente quanto aos
atos médicos a que pretende se submeter, subsistindo as instruções
contidas no documento nos casos em que seu subscritor estiver impos-
sibilitado de manifestar-se; o testamento propriamente dito, por seu
turno, implica, normalmente, uma divisão do patrimônio pertencente
ao testador, não obstante a lei permita que o ato seja celebrado para
fins não patrimoniais, como o reconhecimento de paternidade, por
exemplo. Seria inócua, por óbvio, a inclusão de instruções acerca dos
cuidados médicos a ter em conta num testamento, porque este ato, como
já se afirmou, tem sua eficácia jurídica suspensa até que se verifique a
morte do testador. Entretanto, por ter se consagrado o uso da expressão
“testamento vital”, será esta a terminologia empregada doravante.
No Brasil, não há norma jurídica que regulamente o testamento
vital, embora não exista razão que impeça a discussão de sua validade
e eficácia. Por não vigorar, quanto aos atos jurídicos, o princípio da
tipicidade, os particulares têm ampla liberdade para instituir catego-
rias não contempladas em lei, contanto que tal conduta não venha a
representar qualquer afronta ao ordenamento.
Ressalte-se que o instituto, embora inexistente no ordenamento
positivo brasileiro, há muito foi regulamentado em outros países. Nos

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Estados Unidos, a primeira lei sobre o testamento vital foi editada


na Califórnia, em 1976, e rapidamente serviu como referência para
o surgimento de diplomas semelhantes naquele país. Até 1986, mais
de 30 estados americanos já haviam legislado sobre o assunto.11 Já em
1990, emergiu, como norma federal, a Lei de Autodeterminação do
Paciente (Patient Self-Determination Act), com o propósito de estimular
a elaboração, pelos pacientes, de diretivas antecipadas, segundo as
leis estatais que versem sobre o tema.12 O diploma determina que os
pacientes admitidos em entidades como hospitais e agências de saúde
devem receber, de imediato, informações a respeito do sentido e dos
possíveis benefícios das diretivas antecipadas.
Por um lado, a edição de uma lei federal norte-americana sobre
as diretivas antecipadas culminou com uma proliferação ainda maior
de normas estatais que as regulamentam. Por outro lado, contudo, a
independência legislativa dos estados norte-americanos terminou por
provocar uma variedade tamanha de condições para a realização das
diretivas antecipadas que se torna praticamente impossível atestar a
existência de um padrão específico para a sua elaboração naquele país.
Os procedimentos são diversificados inclusive no tocante aos seus
elementos mais essenciais, como a capacidade para firmar diretivas
antecipadas.13 No Brasil, a promulgação de uma lei que expressamente

11
GLICK; HAYS. Innovation and reinvention in state policymaking: theory and the evolution
of living will laws. The Journal of Politics, p. 839.
12
Conforme salienta Kelly Mulholland, “the central purpose of the patient self-determination
act’s mandate of information is to enable individuals more easily to formulate advance
directives under state law” (MULHOLLAND. Protecting the right to die: the patient self-
determination act of 1990. Harvard Journal on Legislation, p. 618).
13
Henry Glick e Scott Hays, a propósito, demonstram que a legislação em vigor em Montana
é sensivelmente mais branda que aquela editada na Califórnia: “An illustration of the
important substantive difference between state scores is found in the contrast of California’s
more restrictive law and Montana’s more recent facilitative legislation. In California, a valid
living will can be executed by a patient no sooner than two weeks after he or she has been
diagnosed as terminally ill. In Montana, a living will can be created any time. Fifty percent
or more California patients are not diagnosed as terminal until after they have become
permanently comatose, making it impossible for them ever to execute a valid living will.
Therefore, this one provision has drastic consequences on the usefulness of this law to
California residents (The California Natural Death Act 1979). In California, a living will cannot
be created on behalf of a patient who is unable to sign for him or herself; Montana has such
a provision. California living wills are valid for no longer than five years whereas Montana
has no time limit. California imposes complicated and restrictive witnessing requirements,
while Montana does not. A California living will is invalid if the patient is pregnant while in
Montana it is invalid only if the fetus will develop if life-sustaining treatment is given to the
patient. California doctors who refuse to comply with a living will face no penalties while
a Montana doctor is subject to criminal prosecution. Overall, Montana’s recent law makes it
much easier for patients or their families to control final medical treatment and enforcement
provisions are likely to compel doctors to comply with their wishes” (GLICK; HAYS, op. cit.,
p. 842).

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ADRIANO MARTELETO GODINHO
DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE – TESTAMENTO VITAL, MANDATO DURADOURO E SUA ADMISSIBILIDADE ...
77

contemplasse e regulamentasse as diretivas antecipadas não encontraria


semelhante empecilho, haja vista se tratar de matéria que necessaria-
mente seria regida de maneira unitária por todo o território nacional,
por meio de lei federal.
Na Espanha, a primeira norma de caráter nacional sobre o tema
sobreveio com a Lei nº 14, de 14.11.2002, cujo art. 11, ao regulamentar
as “instruções prévias” — nomenclatura que, naquele país, substituiu
as “diretivas antecipadas” —, estabelece os pressupostos essenciais para
a validade do ato, entre eles a plena capacidade do agente.14 A norma
tem o mérito, ainda, de fazer referência não apenas ao testamento
vital (embora este termo não tenha sido expressamente contemplado
na lei), mas também à possibilidade de se nomear um representante
para servir como interlocutor entre o representado e a equipe médica
e assegurar o estrito cumprimento das instruções prévias (tema que
será objeto de análise no tópico a seguir). Por fim, consagrou-se tam-
bém a necessidade de as diretivas constarem de documento escrito,
que poderá ser livremente revogado a qualquer tempo e pelo mesmo
modo da sua celebração. À referida norma, especialmente em virtude
do que dispõe seu art. 11.5, seguiu-se a publicação do Real Decreto
nº 124, de 2.2.2007, que criou um registro nacional de instruções prévias,

Segue a íntegra do dispositivo:


14

“Artículo 11. Instrucciones previas.


1. Por el documento de instrucciones previas, una persona mayor de edad, capaz y libre,
manifiesta anticipadamente su voluntad, con objeto de que ésta se cumpla en el momento en
que llegue a situaciones en cuyas circunstancias no sea capaz de expresarlos personalmente,
sobre los cuidados y el tratamiento de su salud o, una vez llegado el fallecimiento, sobre
el destino de su cuerpo o de los órganos del mismo. El otorgante del documento puede
designar, además, un representante para que, llegado el caso, sirva como interlocutor suyo
con el médico o el equipo sanitario para procurar el cumplimiento de las instrucciones
previas.
2. Cada servicio de salud regulará el procedimiento adecuado para que, llegado el caso, se
garantice el cumplimiento de las instrucciones previas de cada persona, que deberán constar
siempre por escrito.
3. No serán aplicadas las instrucciones previas contrarias al ordenamiento jurídico, a
la «lex artis», ni las que no se correspondan con el supuesto de hecho que el interesado
haya previsto en el momento de manifestarlas. En la historia clínica del paciente quedará
constancia razonada de las anotaciones relacionadas con estas previsiones.
4. Las instrucciones previas podrán revocarse libremente en cualquier momento dejando
constancia por escrito.
5. Con el fin de asegurar la eficacia en todo el territorio nacional de las instrucciones previas
manifestadas por los pacientes y formalizadas de acuerdo con lo dispuesto en la legislación
de las respectivas Comunidades Autónomas, se creará en el Ministerio de Sanidad y
Consumo el Registro nacional de instrucciones previas que se regirá por las normas que
reglamentariamente se determinen, previo acuerdo del Consejo Interterritorial del Sistema
Nacional de Salud” (Disponível em: <http://civil.udg.es/normacivil/estatal/persona/pf/L41-
02.htm>. Acesso em: 07 mar. 2012).

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78 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

com o intuito de conferir eficácia aos testamentos vitais firmados por


cidadãos espanhóis.15
No Reino Unido, vigora desde 2005 a norma denominada Mental
Capacity Act, cujos arts. 9 e 24, em especial, contemplam as figuras das
diretivas antecipadas, permitindo-se a uma pessoa capaz a faculdade de
conferir a outrem autoridade para decidir sobre seus cuidados médicos
futuros ou decidir, desde já e por conduta própria, sobre a execução ou
manutenção de tratamentos que digam respeito à sua saúde.16
Outros modelos mais recentes — e geograficamente mais próxi-
mos — podem servir de inspiração ao legislador brasileiro. Em 2009, no
Uruguai, foi aprovada a Lei nº 18.473,17 que instituiu o testamento vital
no ordenamento local. A lei contém onze dispositivos, estabelecendo o
primeiro deles que toda pessoa maior de idade e psiquicamente apta, de
maneira voluntária, consciente e livre, pode expressar antecipadamente
sua vontade no sentido de opor-se à futura aplicação de tratamentos e
procedimentos médicos que prolonguem a vida em detrimento da sua
qualidade, se encontrar-se enferma de uma patologia terminal, incu-
rável e irreversível. Isso permite que a pessoa possa antecipadamente
declarar que recusa terapias médicas que apenas prolongariam sua
existência, em detrimento da sua qualidade de vida.
O testamento vital, enfim, permite que seja o próprio indivíduo
a decidir sobre sua vida e saúde, e não seus familiares, aos quais, em
tese, recairia o encargo de consentir quanto aos tratamentos médicos,
sempre que o próprio interessado não tiver o necessário discernimento
para fazê-lo. A admissibilidade do testamento vital e o reconhecimento
da sua validade e eficácia apresentam a conveniência de eliminar even-
tuais conflitos entre os parentes e mesmo entre o consentimento destes

15
Íntegra do Real Decreto disponível em: <http://www.boe.es/boe/dias/2007/02/15/pdfs/
A06591-06593.pdf>. Acesso em: 07 mar. 2012.
16
Segue a transcrição dos dispositivos:
“9. A lasting power of attorney is a power of attorney under which the donor (‘P’) confers
on the donee (or donees) authority to make decisions about all or any of the following
(a) P’s personal welfare or specified matters concerning P’s personal welfare, and
(b) P’s property and affairs or specified matters concerning P’s property and affairs, and
which includes authority to make such decisions in circumstances where P no longer has
capacity”.
“24. ‘Advance decision’ means a decision made by a person (‘P’), after he has reached 18
and when he has capacity to do so, that if
(a) at a later time and in such circumstances as he may specify, a specified treatment is
proposed to be carried out or continued by a person providing health care for him, and
(b) at that time he lacks capacity to consent to the carrying out or continuation of the
treatment” (Disponível em: <http://www.legislation.gov.uk/ukpga/2005/9/contents>.
Acesso em: 16 mar. 2012).
17
Íntegra da lei disponível em: <http://200.40.229.134/leyes/AccesoTextoLey.asp?Ley=18473
&Anchor=>. Acesso em: 07 fev. 2012.

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DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE – TESTAMENTO VITAL, MANDATO DURADOURO E SUA ADMISSIBILIDADE ...
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e a verdadeira intenção do paciente. Com efeito, o aspecto de maior


relevo consiste em evitar ambiguidades, pois o próprio paciente terá
explicitamente antecipado seu consentimento ou dissentimento quanto
a determinadas práticas médicas; mais do que isso, o instrumento é redi-
gido num momento em que o indivíduo não apenas goza da plenitude
de suas faculdades mentais, mas também não se vê na iminência de
ter de aceitar ou rejeitar de plano determinados cuidados médicos, o
que lhe permitirá refletir com mais cautela sobre sua vida e sua saúde.
O fato de inexistir previsão legal sobre o testamento vital no país
não significa que se possa proclamar uma suposta incompatibilidade:
em consonância com os princípios e normas que imperam ordena-
mento brasileiro, nada impede que se reconheça a validade daquele
instrumento, que nada mais representa que uma relevante expressão
da autonomia dos pacientes, com a particularidade, neste caso, de se
tratar de um instrumento previamente elaborado, com o intuito de es-
tabelecer diretrizes sobre intervenções médicas supervenientes. Sendo
descabida a alegação de que o testamento vital não pode subsistir, pelo
simples fato de não haver regulamentação específica em lei — embora a
elaboração de uma norma especialmente cunhada para reger o instituto
seja conveniente, para pôr termo às dúvidas que persistem sobre o tema
—, torna-se imprescindível estabelecer determinadas condições para o
reconhecimento da sua validade.
No Brasil, o testamento vital, supondo-se ser possível aceitar
sua validade, deveria ser realizado pelo interessado plenamente capaz
(rompendo-se com a regra aplicável aos testamentos contemplados
pelo Código Civil, que podem ser realizados pelos maiores de 16 anos,
consoante estipula o seu art. 1.860, parágrafo único), sendo também
fundamental averiguar se o consentimento é prestado de maneira livre
e espontânea, isto é, isento de erro, dolo ou coação. Por analogia com as
regras civis concernentes aos testamentos — embora os institutos não se
confundam, como já se viu, nada impede que as regras concernentes a
um sejam estendidas ao outro —, a capacidade do agente deve ser ave-
riguada no momento da realização do ato, uma vez que “a incapacidade
superveniente do testador não invalida o testamento, nem o testamento
do incapaz se valida com a superveniência da capacidade” (art. 1.861 do
Código Civil). Para além disso, compete reconhecer a revogabilidade
do ato a qualquer tempo, também por analogia ao art. 1.858 do Código
Civil, que determina que “o testamento é ato personalíssimo, podendo
ser mudado a qualquer tempo”. Caminha neste sentido, a propósito, a
previsão contida no art. 4º da aludida lei uruguaia.

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80 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Uma vez que o instituto não encontra previsão legal no país, não
há como afirmar categoricamente quais seriam seus requisitos formais,
o que não é despiciendo: a qualquer ato jurídico a que faltem pressu-
postos de ordem formal é cominada a sanção da nulidade, nos termos
dos arts. 104, III e 166, IV do Código Civil. Por outro lado, constata-se
que os atos jurídicos, em geral, independem de forma, a não ser quando
a lei expressamente eleja alguma, conforme dispõe o art. 107, também
do Código Civil. Em tese, pois, poder-se-ia alegar que, como a lei não
contempla qualquer solenidade para a prática do ato em questão, a
forma seria livre.
Entretanto, para evitar o risco de ser proclamada a invalidade
do testamento vital, pode-se, em novo recurso à analogia, entender
que, no mínimo, o documento deve cumprir os requisitos de validade
da mais “informal” das modalidades ordinárias de testamento — o
particular —, que exige que o texto seja escrito de próprio punho ou
por processo mecânico, sem rasuras, na presença de pelo menos três
testemunhas, que também devem subscrevê-lo, conforme determina o
art. 1.876 do Código Civil. O ideal, contudo, é que o documento venha
a ser firmado na presença de um tabelião, assegurando-se-lhe fé públi-
ca.18 De todo modo, a possível edição de lei específica sobre o assunto
no Brasil reclamaria a indicação dos pressupostos formais relativos ao
testamento vital. Enquanto persiste a lacuna legislativa, torna-se im-
prescindível demonstrar, de maneira segura, a autenticidade do ato e
a higidez mental do interessado, razão pela qual releva a presença de
testemunhas que possam confirmar tais circunstâncias.
Ultrapassada a análise dos requisitos de validade, subsistirá a dis-
cussão quanto ao conteúdo do documento. Afinal, não estão assentadas
as discussões a respeito da possibilidade de recusa a tratamento médico
necessário para preservar a vida do paciente, ou quanto à legitimidade
da supressão da vida humana pela eutanásia, nem mesmo nos casos de
ortotanásia, em que ocorre a interrupção de tratamento vital, deixando-­
se de ministrar a medicação adequada ao paciente em estado terminal e
irreversível e de prolongar fútil e inutilmente a sua vida. Por isso, ainda
que se reconheça a possibilidade da elaboração de um testamento vital,

18
A propósito, a legislação uruguaia cuidou de estabelecer os pressupostos formais de vali-
dade do instrumento, que deve conter a assinatura do interessado e de duas testemunhas,
não podendo testemunhar o médico responsável pelo tratamento, seus empregados e os
funcionários da instituição de saúde responsável pelo paciente. Ademais, a feitura do do-
cumento por meio de instrumento público é mera faculdade, sendo reconhecida a valida-
de do ato mesmo quando realizado por instrumento particular.

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DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE – TESTAMENTO VITAL, MANDATO DURADOURO E SUA ADMISSIBILIDADE ...
81

embora sem previsão legal, poderia surgir outro empecilho à validade


do ato: como os arts. 104, II e 166, II, do Código Civil, exigem que todo
ato jurídico dependa da licitude do objeto, poderá ser questionada a
subsistência do testamento vital, sobretudo por aqueles que entendem
que a vida, bem maior de todos, deve sempre ser preservada a qualquer
custo, ainda que contra a vontade do próprio paciente.
Aqui, no entanto, cumpre repisar ser direito do paciente optar
pela submissão ou não a qualquer tipo de intervenção médica. Além
disso, importa partir em defesa das noções de morte digna e da possibi-
lidade de haver a interrupção de tratamentos que apenas prolonguem
indevidamente a vida do paciente que já se encontre em estágio irre-
versível e incurável.
Compete estabelecer as balizas do entendimento aqui esposado:
de plano, proclama-se que a vida, além de não ser disponível, prevalece
sobre todos os demais direitos, por ser aquela o alicerce destes. Por
isso, em situações em que se coloca em causa o direito à vida, numa
eventual colisão com outros bens ou valores, pode-se defender que, em
princípio, a primazia recai sobre o primeiro.
Porém, em situações extremas, é válido mitigar este posiciona-
mento. Veja-se, num primeiro passo, que a vida humana é, desde logo,
um direito irrenunciável e inviolável, havendo casos, nada obstante, em
que o próprio ordenamento admite validamente a sua supressão — é o
que se passa com a legítima defesa ou o aborto, nos excepcionais casos
em que este é autorizado. O que se questiona é se a vida humana há
de ser preservada a qualquer custo ou se, por outro lado, não se pode
atestar que morrer dignamente não seria simples decorrência do preceito
da dignidade da pessoa humana, constitucionalmente assegurado.
Nestas linhas, não se pretende aprofundar discussões no domínio
da eutanásia, o que nos levaria a desenvolvimentos que ultrapassam o
propósito de analisar com brevidade as diretivas antecipadas. Mas não
se pode deixar de consignar que, nos casos em que se puder verificar
que a continuidade do tratamento vital apenas causará mais sofrimento
que esperança, ou seja, quando se constatar que o tratamento não pro-
longa a vida minimamente digna, mas apenas retarda indefinidamente
a morte, será adequado concluir que deixar um paciente morrer, se de
fato a morte é consequência natural e inevitável, é o único meio de se
preservar a dignidade da pessoa em causa.19 Com efeito, há manifesta

19
É também este o entendimento de Vera Lúcia Raposo: “nestas condições, a recusa de tra-
tamentos de suporte vital não pode ser vista como uma tentativa de suicídio ou como
eutanásia, pois uma tal decisão apenas permitirá que a doença siga o seu curso natural.

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diferença entre matar e deixar morrer — neste caso, insista-se, quando


a morte for de fato inevitável.20
Reforçando este entendimento, encontra-se, no capítulo I do novo
Código de Ética Médica, que elenca os seus princípios fundamentais
desde diploma, o item XXII, nos seguintes termos: “nas situações clí-
nicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de proce-
dimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos
pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados”.
Assim, desde que se comprove o estágio terminal e irreversível do
paciente, a interrupção do tratamento que o mantém vivo não pode
configurar ato ilícito, por não haver sentido em prolongar a vida de
uma pessoa nestas condições, impingindo-lhe um dever de viver, quais-
quer que sejam as condições. O novo Código de Ética Médica, nesse
particular, afastou-se da distanásia, que representa o ato tendente ao
prolongamento artificial da vida, já que não deve o médico empreender
condutas inúteis ou obstinadas, que apenas prolongariam o sofrimento
de uma pessoa, ao adiar desnecessariamente a sua morte.
Não é de se afastar, portanto, a possibilidade de uma pessoa
firmar, em vida, a intenção de não ter seu processo de morte inutil-
mente prorrogado, como também não se pode impedir que escolha,
antecipando-se às eventualidades, quais tratamentos médicos pretende
seguir. Se esta prerrogativa de aceitar ou refutar atos médicos é, como se
viu, deferida a qualquer indivíduo que tenha discernimento suficiente
para compreender o estado em que se encontra e os possíveis benefícios
e riscos que os tratamentos podem lhe propiciar, não se pode rejeitar a
validade de uma declaração antecipada nesse mesmo domínio, desde
que reflita a opinião lúcida daquele que a manifestou.

Se a morte eventualmente ocorrer será o resultado de uma doença e não de lesões auto
ou hetero-infligidas. A intenção não é fomentar a eutanásia activa, mas somente deixar
ao paciente a decisão do momento no qual os esforços terapêuticos devem ser interrom-
pidos” (RAPOSO. Directivas antecipadas de vontade: em busca da lei perdida. Revista do
Ministério Público, p. 174-175).
20
Kelly Mulholland sintetiza a situação dos pacientes que, impossibilitados de expressar
seu consentimento quanto aos cuidados com sua saúde, ficam sujeitos a tratamentos
suficientemente avançados a ponto de prorrogar indevidamente o processo da morte: “the
advance of life-sustaining technology has problematized the strong legal tradition of protecting
the patient’s right to choose. Technological improvements in medical care increasingly blur
the distinction between life and death. The dying process is now extended ‘through the use of
artificial, extraordinary, extreme, or radical medical or surgical procedures’. Physicians most
often perform these extreme and radical procedures upon patients who have been rendered
incompetent by their medical condition. An artificial respirator may enable a brain-dead
patient to survive. A patient in an irreversible coma may be given nutrition and hydration
through a feeding tube. These patients are unable to express whether they wish to receive
such ‘extraordinary’ procedures” (MULHOLLAND, op. cit., p. 611).

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DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE – TESTAMENTO VITAL, MANDATO DURADOURO E SUA ADMISSIBILIDADE ...
83

O testamento vital, enfim, pode servir como um importante ins-


trumento para firmar o consentimento do paciente acerca dos cuidados
e tratamentos que pretende adotar quanto à sua saúde. Mais do que
isso, poderá vir em reforço à necessidade de se abandonar uma noção
ultrapassada da medicina, em que a atuação do médico não se pauta
pela arte de curar, mas pela obstinada tentativa de preservar a vida dos
pacientes a todo custo, ainda que contra seus interesses declarados ou
presumidos.21

4.2 O mandato duradouro


Ainda em sede de diretivas antecipadas, admite-se em ordena-
mentos estrangeiros, como já se afirmou, a figura do mandato dura-
douro, que pode ser conceituado como

um documento no qual o paciente nomeia um ou mais “procuradores”


que deverão ser consultados pelos médicos, em caso de incapacidade do
paciente — terminal ou não, quando estes tiverem que tomar alguma
decisão sobre tratamento ou não tratamento. O procurador de saúde
decidirá tendo como base a vontade do paciente.22

O instituto do mandato duradouro pressupõe a constituição de


um mandatário, aí designado “procurador de cuidados de saúde”, que
recebe poderes expressos para, ao agir em nome do paciente e segundo
instruções por ele transmitidas, decidir acerca dos tratamentos e cuida-
dos com a saúde que o próprio representado admite ou rejeita para si.
O referido procurador, portanto, atuará como um interlocutor entre o
paciente, cujas instruções deverá fielmente seguir, e a equipe médica.
A exemplo do que ocorre com o testamento vital, inexiste pre-
visão legal sobre o mandato duradouro no Direito brasileiro, circuns-
tância que, se não impede a sua constituição — afinal, nada há na lei
que proíba a prática, nem mesmo nos dispositivos do Código Civil
que regem a representação (arts. 115 a 120) e o mandato (arts. 653 a

21
Nesse sentido, destacam Henry Glick e Scott Hays que o testamento vital desempenha
o relevante papel de evitar a obstinação terapêutica desnecessária: “living wills permit
individuals various control over the use of heroic, life-sustaining medical treatment in the
event of a terminal illness. Demand for living will laws is a product of increased social
concern with the ability and tendency of modern medicine to keep elderly, terminally ill,
and permanently comatose patients alive beyond the natural course of death from age or
infirmity” (GLICK; HAYS, op. cit., p. 838).
22
PENALVA. Declaração prévia de vontade do paciente terminal, p. 55-56.

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84 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

692) —, somente contribui para gerar perplexidade, seja no ambiente


acadêmico seja diante de uma eventual discussão judicial acerca da
validade jurídica deste instrumento.
O mesmo fundamento que embasou a lógica da validade jurídica
no testamento vital, no entanto, serve para justificar a admissibilidade
do mandato duradouro perante a ordem jurídica brasileira. Se o paciente
é livre para expressar seu consentimento quanto aos atos médicos que
lhe pareçam adequados, não se pode recusar a validade de um instru-
mento que, lavrado pelo próprio interessado, nomeia um terceiro para
manifestar-se sobre os cuidados futuros com a sua saúde.
Entretanto, é imprescindível estabelecer algumas balizas. Ainda
que se reconheça a possibilidade de o mandato duradouro produzir
efeitos jurídicos no país, surgirá a mesma dificuldade regimental
verificada a propósito do estudo do testamento vital: quais seriam os
requisitos e limites para atestar a sua validade?
Se é possível traçar um paralelo entre o mandato duradouro e
algum instituto previsto no ordenamento brasileiro, este seria o man-
dato (arts. 653 a 692 do Código Civil). Mais uma vez, deve-se exigir que
o representado, autor do mandato duradouro, seja plenamente capaz
e que seu consentimento seja manifestado livre e espontaneamente.
Já no tocante à forma, não obstante subsistam os mesmos fun-
damentos apontados a respeito do testamento vital — isto é, caberá à
lei brasileira, uma vez incorporando a figura, estabelecer os requisitos
formais —, seria possível partir das regras contidas nos arts. 654 a 657
do Código Civil. Sendo o propósito do mandatário nomear um pro-
curador para representá-lo em atos que impliquem cuidados médicos
futuros, torna-se imprescindível que o instrumento seja firmado por
escrito, pois, afinal, o termo de consentimento informado a ser assinado
pelo mandatário em nome do paciente também será reduzido a escrito.
Por cautela, contudo, seria mais fiável a lavratura do documento por
instrumento público, que, por gozar de fé pública, carrearia consigo
uma presunção de veracidade dos seus termos.
O mandato duradouro, em confronto com o testamento vital,
apresenta algumas vantagens, em virtude de sua maior flexibilidade.
Segundo Kelly Mulholland,23 para além de permitir que o mandatário
atue em conformidade com as circunstâncias que circundam o estado
de saúde e as condições da medicina no momento mesmo em que o
paciente necessitar de cuidados médicos — ao contrário do testamento

23
MULHOLLAND, op. cit., p. 618-619.

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DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE – TESTAMENTO VITAL, MANDATO DURADOURO E SUA ADMISSIBILIDADE ...
85

vital, em que a declaração se projeta para um futuro possivelmente


bastante distante e incerto —, o mandato duradouro assegura que a
vontade do paciente será realmente respeitada, segurança que não se
verifica no testamento vital, posto que, neste caso, não haverá uma pes-
soa escolhida pelo interessado para acompanhar se os procedimentos
médicos efetivamente caminham no mesmo rumo das decisões por ele
declaradas. Outra vantagem do mandato duradouro consiste no fato
de que o procurador, diante de uma situação inesperada e imprevista
pelo próprio paciente, pode adequar a vontade deste às vicissitudes do
caso concreto, liberalidade que, à partida, não se verifica no testamento
vital.24 Por outro lado, o testamento vital, desde que bem redigido,
poderá garantir com maior fidelidade o cumprimento a vontade do
celebrante, pois evitará que outra pessoa (o procurador, no caso do
mandato duradouro) porventura venha a distorcer de algum modo o
sentido dos interesses do paciente.

5 Os efeitos das diretivas antecipadas


Partindo-se da ideia de que as diretivas antecipadas, em qual-
quer das suas modalidades, não encontram barreiras para medrar na
ordem jurídica brasileira, posto que nada mais representam que um
adiantamento do consentimento a ser prestado acerca da aceitação ou
rejeição a atos médicos, cabe admitir que, apesar da omissão legislati-
va, não deve o médico, ao tomar conhecimento da elaboração de uma
diretiva por seu paciente, ignorá-la e agir em desconformidade com as
instruções nela contidas.
As diretivas antecipadas facultam ao interessado decidir por si e
sobre si mesmo, por meio de documento escrito pelo próprio ou de um
procurador especificamente constituído para tais fins. Delas emerge,
como uma das mais relevantes finalidades, a prerrogativa que se defere
ao paciente de optar pela abdicação da obstinação terapêutica, isto é,
de deixar consignada sua pretensão de não ser mantido vivo quando se
puder constatar que as alternativas de tratamento remanescentes não
apenas são insuficientes para obter a cura, como podem provocar dor
e sofrimento. Assim, os tratamentos extraordinários,25 que intentam

24
RAPOSO, op. cit., p. 177.
25
Conforme salienta Vera Lúcia Raposo, “do leque de actos de futilidade terapêutica po-
dem caber manobras de reanimação cardiopulmonar em doentes em fim de vida, medidas
de suporte avançado de vida em doentes em estado vegetativo persistente, utilização de
intervenções agressivas e invasivas como a hemodiálise, a quimioterapia e a cirurgia em
doentes com doença incurável e sem condições razoáveis de recuperação. Mas mesmo

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
86 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

prolongar a vida sem que se altere a sua terminalidade, podem ser


interrompidos,26 pela suspensão de esforço terapêutico (SET),27 objeti-
vando-se, com isto, ter em vista não apenas o propósito de preservar
de todo modo a vida, mas atentar igualmente para a qualidade de vida.
Na realidade, bem medidas estas questões, a obstinação pela cura
é hoje considerada como má prática médica e deveria, em princípio,
ser afastada independentemente de manifestação explícita do paciente
nesse sentido. Não apenas o médico não deve buscar a preservação
da vida quando esta medida trouxer mais riscos e sofrimentos do que
benefícios, como tem, na realidade, a obrigação de abdicar de tratamen-
tos supérfluos, devendo limitar-se à prestação de cuidados paliativos
ao paciente, quando a sua cura e tratamento não se afiguram mais
possíveis.28 Isto não obstante, a prerrogativa de o paciente explicitar
seu desejo de não ser mantido vivo inutilmente não deixa de ser um
possível efeito benéfico das diretivas antecipadas de vontade.
Importa verificar que a eficácia das diretivas antecipadas de-
penderá, necessariamente, da comprovação de dois fatores, por parte
da equipe médica: que o paciente não é mais capaz de tomar decisões
sobre os cuidados com sua saúde e que não há, segundo as circuns-
tâncias e após cuidadosas análises, perspectiva de que ele recobre o
discernimento para tomá-las.29
Outra controvérsia, comum tanto ao testamento vital quanto
ao mandato duradouro, diz respeito à exigência, porventura contida
em textos de lei, de que tais diretivas sejam recentes — normalmente,
determinadas normas fixam prazos para determinar até que momento

procedimentos menos invasivos (tais como a utilização de antibióticos e hidratação via


intravascular em doentes em estado agónico) assim poderão ser referenciados” (RAPOSO,
op. cit., p. 184).
26
Entre as possíveis instruções do paciente nesse âmbito, estão as ordens de não reanimar, assim
definidas por Rui Nunes: “as Ordens de Não-Reanimar (DNR-Order – Do-No-Resuscitate
Order, ou mais correctamente DNAR-Order – Do Not Attempt Resuscitation Order) são a
expressão mais visível da evolução recente da ética médica. De facto, não é hoje considerado
má prática médica este tipo de instrução, ainda que o decurso natural da doença conduza
inevitavelmente à morte da pessoa. Noutras palavras as Ordens de Não-Reanimar são hoje
o standard da boa prática médica tendo sido plenamente incorporadas nas leges artis da
profissão médica” (NUNES. Estudo n. E/17/APB/10: testamento vital, p. 12).
27
PENALVA, op. cit., p. 60.
28
MELO; NUNES. Parecer n. P/05/APB/06: sobre directivas antecipadas de vontade, p. 6.
29
Segundo Richard Casey, esta exigência é expressa na lei que rege a matéria em Ohio,
nos Estados Unidos: “the attending physician must also determine that the patient is no
longer able to make informed decisions regarding the administration of the treatment and
that there is no reasonable possibility the patient will regain the capacity to make those
decisions” (CASEY. Ohio’s new living will statute: will it survive?. University of Dayton Law
Review, p. 1104).

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ADRIANO MARTELETO GODINHO
DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE – TESTAMENTO VITAL, MANDATO DURADOURO E SUA ADMISSIBILIDADE ...
87

as diretivas têm sua validade assegurada. Há, neste âmbito, uma dupla
preocupação: por um lado, fazer com que o teor da diretiva realmente
reflita o ânimo passado e contemporâneo do declarante, em virtude
do receio de que o passar do tempo venha a modificar seus interesses
e valores, tornando a declaração anterior incompatível com a vontade
atual do paciente; e, por outro lado, evitar que avanços na medicina,
porventura desconhecidos à época da celebração da diretiva, tornem
duvidoso o fato de que o paciente manteria a declaração nos mesmos
moldes em que foi lavrada, caso estivesse a par das novas alternativas
de tratamentos médicos entrementes surgidas.
Embora caiba a uma eventual lei editada no Brasil sobre o tema
determinar se haverá ou não um prazo de validade para as diretivas
antecipadas, a exigência da sua atualidade parece ser fruto de zelo
excessivo. Se o autor da diretiva jamais optou por sua revogação,
presumir-se-á que sempre quis mantê-la em seus moldes originais.
Por isso, incidirá uma presunção de que a vontade manifestada na
diretiva antecipada corresponde à vontade atual.30 Esta presunção, no
entanto, é relativa, recaindo sobre a equipe médica, ou eventualmente
a qualquer outro interessado, o ônus de provar o contrário, isto é, de
demonstrar cabalmente que, por alguma razão, as instruções contidas
na diretiva não devem prevalecer tal como foram firmadas.31 32 Assim,
a não ser que o autor da diretiva a tenha revogado, caberá admitir que
a vontade declarada no documento continua a vigorar, precisamente
do mesmo modo como se passa, a propósito, com os testamentos: estes
negócios jurídicos subsistem até que o testador os reforme, e produzi-
rão regulares efeitos caso não tenha havido sua revogação, ainda que
entre a sua celebração e a morte do testador tenha se passado largo
período de tempo.
Outra providência para assegurar a eficácia das diretivas an-
tecipadas seria a criação de um cadastro nacional (a exemplo do que
se passou na Espanha a partir da edição do Real Decreto nº 124, de
2.2.2007), ao qual se deve conferir amplo acesso por médicos e hospi-
tais, para assegurar que eles tenham ciência da sua existência. Noutros

30
Também assim para Vera Lúcia Raposo: “(...) É que o consentimento não pode ser visto como
um fugaz momento, isto é, um instantâneo. Ele mantém-se enquanto não for revogado e,
nesta medida, é sempre actual” (RAPOSO, op. cit., p. 181).
31
OLIVEIRA; PEREIRA. Consentimento informado, p. 103.
32
É também a opinião de João Carlos Loureiro: “se houver indícios de que, superveniente-
mente, se verificou uma alteração da vontade, não deve ser aplicada a directiva, da mesma
forma que terão de se tomar em consideração as questões decorrentes da evolução da
medicina, sempre que pertinentes” (LOUREIRO, op. cit., p. 71).

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
88 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

termos, deve-se diligenciar no sentido de permitir fácil acesso às di-


retivas pelos prestadores de cuidados de saúde, a fim de evitar que a
revelação da existência de uma diretiva fique dependente da vontade
dos acompanhantes do doente.33
Por fim, estabeleça-se uma ressalva: há que ter cuidado quanto à
interpretação e aplicação das instruções apontadas nas diretivas. Apesar
de se permitir que o paciente possa determinar a quais tratamentos será
submetido, isso não significa que possa atuar de modo a limitar a técnica
médica, nem tampouco que poderá o paciente solicitar que lhe sejam
aplicados tratamentos que, de algum modo, afrontem o ordenamento
jurídico. Aliás, este seria o caso de o próprio médico manifestar sua
objeção de consciência e recusar cumprimento aos termos da diretiva,
por entender que a determinação do paciente é estranha aos princípios
e normas jurídicas e às leges artis.34

6 Conclusões
As diretivas antecipadas de vontade, sejam realizadas por tes-
tamentos vitais, sejam por mandatos duradouros, são importantes
instrumentos, postos à disposição dos cidadãos, de afirmação da sua
autonomia nas relações médico-paciente. Por meio delas, faculta-se
a qualquer pessoa antecipar seu consentimento quanto aos cuidados
médicos que deverão ser aplicados caso, futuramente, o declarante se
encontre impossibilitado de manifestar sua vontade.
A ausência de norma que regulamente as diretivas antecipadas
no Brasil não serve como impedimento para o reconhecimento da sua
validade, porquanto os testamentos vitais e os mandatos duradouros
consistem apenas em antecipações das posições que seu autor adota
quanto aos tratamentos médicos que, segundo seu juízo, são adequa-
dos. A edição de uma lei neste domínio, contudo, teria o duplo mérito
de levar ao conhecimento da população a existência daquelas figuras,

33
Conforme RAPOSO, op. cit., p. 183.
34
É o que esclarece Vera Lúcia Raposo: “o testamento vital pode apresentar um de dois conte-
údos distintos: ou o testador recusa um tratamento (por exemplo, recusa de uma cesariana,
de quimioterapia, de transfusões de sangue), ou o testador solicita a aplicação de determi-
nado tratamento, sendo certo que, nesta última hipótese, se o tratamento não se revelar
adequado para aquele paciente de acordo com o estado actual do conhecimento científico
o médico não está obrigado a aplicá-lo. O desejo de tratamentos extraordinários, que em
nada adiantarão para o bem-estar do doente ou para a sua longevidade, não vincula o mé-
dico” (RAPOSO, op. cit., p. 176).

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ADRIANO MARTELETO GODINHO
DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE – TESTAMENTO VITAL, MANDATO DURADOURO E SUA ADMISSIBILIDADE ...
89

fomentando a sua celebração, e de eliminar diversas das controvérsias


que ainda pendem sobre o tema.
Entre os mais relevantes préstimos das diretivas antecipadas,
situam-se a possibilidade de um indivíduo explicitar sua rejeição a
determinados tipos de tratamentos — como se dá no caso das testemu-
nhas de Jeová, que não aceitam transfusões de sangue — e de refutar
cuidados médicos infrutíferos, que servem apenas para manter inutil-
mente vivo o organismo humano, à custa do sofrimento impingido ao
paciente. Não haverá, nesta hipótese, o acolhimento de um pretenso
interesse de morrer, mesmo porque os atos de suicídio e eutanásia não
são admitidos, mas apenas o respeito à dignidade de uma pessoa cujo
processo de morte é inevitável.
Diante das bases expostas, resta concluir que as diretivas an-
tecipadas não somente devem encontrar imediato reconhecimento
no ordenamento brasileiro, como urge sua regulamentação por lei,
medida que contribuirá para consagrar, em definitivo, o direito à au-
todeterminação da pessoa quanto aos meios de tratamento médico a
que pretenda ou não se submeter.

Referências
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Association, v. 55, n. 4, p. 665-717, 1976-1977. Disponível em: <http://heinonline.org/>.
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MULHOLLAND, Kelly C. Protecting the right to die: the patient self-determination
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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
90 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

NUNES, Rui. Estudo n. E/17/APB/10: testamento vital. Porto: Associação Portuguesa


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RAPOSO, Vera Lúcia. Directivas antecipadas de vontade: em busca da lei perdida.
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rmp.smmp.pt/wp-content/uploads/2011/05/Revista_MP_N125_EstudosReflex_5.pdf>.
Acesso em: 20 mar. 2012.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

GODINHO, Adriano Marteleto. Diretivas antecipadas de vontade: testamento


vital, mandato duradouro e sua admissibilidade no ordenamento brasileiro.
In: EHRHARDT JR., Marcos (Coord.). Os 10 anos do Código Civil: evolução e
perspectivas. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 67-90. ISBN 978-85-7700-616-8.

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A CONSTRUÇÃO DO ABUSO DE DIREITO
NOS DEZ ANOS DO CÓDIGO CIVIL
BRASILEIRO DE 2002

FLÁVIO TARTUCE

1 A responsabilidade civil sofreu contundentes alterações com a


emergência do Código Civil de 2002, na esteira da grande evolução pela
qual passou a disciplina jurídica nos últimos séculos. Como se extrai de
clássico artigo de Josserand, ao tempo em que o jurista era estudante, a
matéria era tratada pelos professores em uma única lição, como se fosse
um assunto totalmente secundário; apesar da já crescente necessidade
de, no mínimo, dez ou doze lições.1 Ainda de acordo com o citado
estudo, a responsabilidade civil passava a ser, à época, um assunto do
primeiro plano da atualidade judiciária e doutrinária, tornando-se a
grande sentinela do Direito Civil mundial, a primeira entre todas.2
2 Esse papel de sentinela é evidente na contemporaneidade, o que
pode ser percebido pela numerosa quantidade de demandas judiciais
e de estudos doutrinários a respeito da responsabilidade civil. Os pró-
prios manuais relativos à disciplina ganharam corpo substancial, seja na
quantidade, seja na complexidade dos estudos. Grandes são os desafios
relativos à matéria de indenizações e também à imputação do dever de

1
JOSSERAND. Evolução da responsabilidade civil. Revista Forense, p. 51-52.
2
JOSSERAND. Evolução da responsabilidade civil. Revista Forense, p. 52.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
92 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

reparar os prejuízos. Trata-se de um campo do Direito Civil que traz a


falsa sensação de facilidade, pois é permeado por questões profundas e
por uma imensa variedade de teorias e problemas casuísticos.
3 O presente trabalho científico pretende demonstrar a evolução
sentida a respeito de um dos conceitos estruturais da responsabilidade
civil: o abuso de direito. Como é notório, o Código Civil de 1916 am-
parava a ilicitude ou antijuridicidade em apenas uma categoria: o ato
ilícito, tratado no art. 159.3 O Código Civil de 2002, por sua vez, traz duas
modalidades de ilicitude: o ato ilícito puro ou padrão, tratado no art. 186; e
o abuso de direito, ilícito equiparado previsto no art. 187.4 O que se almeja
é demonstrar como se têm construído a estrutura e a função do instituto
nesses últimos dez anos na realidade jurídica brasileira.5
4 Esclareça-se que o presente estudo funciona como um singelo
contraponto doutrinário ao brilhante artigo de José de Oliveira Ascensão,
intitulado A desconstrução do abuso do direito, publicado nos anos iniciais
de vigência da atual codificação brasileira.6 Como uma das suas princi-
pais conclusões, deduz o mestre de Lisboa que: “Eis porque se justifica
afirmar que o abuso do direito não é, apesar das aparências, um instituto
da lei brasileira. Não é o conteúdo do art. 187 do novo Código Civil, que
nem sequer usa a expressão do abuso do direito”.7 O tempo e a prática
nacional já demonstraram que se trata, sim, do remoto conceito de abuso
de direito, o qual sofreu um redimensionamento para a nossa tradição e
cultura político-jurídico-social.
5 O art. 187 do atual Código Civil Brasileiro dispõe que “Tam-
bém comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede
manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social,
pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Apesar da falta de menção expres-
sa, trata-se da consagração legal do abuso de direito ou abuso do direito,

3
CC/1916. “Art. 159. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudên-
cia, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano. (Vide Decreto
do Poder Legislativo n. 3.725, de 1919). A verificação da culpa e a avaliação da responsabi-
lidade regulam-se pelo disposto neste Código, arts. 1.521 a 1.532 e 1.542 a 1.553.”
4
É a redação do art. 186 do atual Código Civil: “Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão
voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que
exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
5
Pode-se dizer que o presente artigo constituiu um ato continuado de outro trabalho, escrito
em 2003 e publicado no ano seguinte: TARTUCE, Flávio. Considerações sobre o abuso do
direito ou ato emulativo civil. In: DELGADO; ALVES (Coord.). Questões controvertidas no
novo Código Civil, p. 89-110. Esse foi o segundo artigo científico elaborado por este autor.
6
ASCENSÃO. A desconstrução do abuso do direito. In: DELGADO; ALVES (Coord.). Ques-
tões controvertidas no novo Código Civil, p. 33-54.
7
ASCENSÃO. A desconstrução do abuso do direito. In: DELGADO; ALVES (Coord.). Ques-
tões controvertidas no novo Código Civil, p. 54.

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FLÁVIO TARTUCE
A CONSTRUÇÃO DO ABUSO DE DIREITO NOS DEZ ANOS DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 2002
93

dispositivo que sofreu claras influências do art. 334º do Código Civil


de Portugal.8 Apesar das semelhanças, pode ser percebida uma nítida
diferença entre os comandos legais comparados, uma vez que o Código
Civil brasileiro acabou por equalizar o abuso de direito ao ato ilícito puro
do art. 186 pelo uso da expressão “também comete”, ao contrário do
dispositivo lusitano, que menciona a existência de um ato ilegítimo.9
6 Na opinião deste autor, é irrelevante o uso diferenciado das
terminologias abuso de direito ou abuso do direito, sendo até preferível
a primeira pela aplicação no Brasil sob os pontos de vista didático,
metodológico e gramatical. Em outras palavras, acreditamos que a
expressão abuso de direito não traz a falsa impressão de que se trata de
um abuso permitido pelo Direito, ou que integra o Direito.10 Ao contrário do
que se aventa, a última expressão denota que o caso é de abuso de um
direito reconhecido pelo ordenamento jurídico. No Direito português, por
sua notável tradição, pode até ser preferível o termo abuso do direito,
para melhor explicar a categoria. Porém, entre os brasileiros, a citada
confusão não tem o costume de ocorrer, até porque é do nosso costume
jurídico o uso de termos em duplo sentido para explicar as categorias.
7 Relativamente ao conceito de abuso de direito, é precisa a cons-
trução de Rubens Limongi França, seguida desde os nossos primeiros
estudos, no sentido de que o abuso de direito constitui uma categoria
de conteúdo próprio, entre o ato lícito e o ilícito, ou seja, o abuso de
direito é lícito pelo conteúdo e ilícito pelas consequências.11 Em outras pa-
lavras, a ilicitude do ato, no abuso, está na forma de sua execução, ou
seja, na sua prática; o que o diferencia do ilícito puro do art. 186, que é
antijurídico no todo (no conteúdo e pelas consequências). Anote-se que
o próprio Limongi França utiliza o termo abuso de direito, afastando a
citada confusão em relação às expressões.

8
Código Civil Português. “Art. 334º (Abuso do direito). É ilegítimo o exercício de um direito,
quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costu-
mes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
9
A respeito do tema, no direito português, ver: CUNHA DE SÁ. Abuso do direito. No direito
brasileiro: LUNA. Abuso de direito; MARTINS. O abuso do direito e o ato ilícito; CARVALHO
NETO. Abuso do direito; BOULOS. Abuso do direito no novo Código Civil; MIRAGEM. O abuso
do direito; RODOVALHO. Abuso de direito e direitos subjetivos.
10
Como quer, por todos: DANTAS JÚNIOR. Teoria dos atos próprios no princípio da boa-fé,
p. 254-255.
11
“O ato ilícito (Manual, v. 1, p. 211) é toda manifestação da vontade que tenha por fim criar,
modificar ou extinguir uma relação de direito. O ato ilícito é uma ação ou omissão voluntária,
ou que implique negligência ou imprudência, cujo resultado acarrete violação de direito ou
que ocasione prejuízo a outrem. Finalmente, o abuso de direito consiste em um ato jurídico
de objeto lícito, mas cujo exercício, levado a efeito sem a devida regularidade, acarreta um
resultado que se considera ilícito” (FRANÇA. Enciclopédia Saraiva de direito, v. 2, p. 45).

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
94 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

8 Também é interessante definir o abuso de direito como um


exercício irregular ou não regular de um direito, como fazem Nelson
Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery: “Abuso do direito. Conceito.
Distinção do ato ilícito. Ocorre quando o ato é resultado do exercício
não regular do direito (CC art. 188, I, in fine, a contrario sensu). No ato
abusivo há violação da finalidade do direito, de seu espírito, violação
essa aferível objetivamente, independentemente de dolo ou culpa”.12
Como se vê, a construção serve para distinguir o abuso do exercício
regular de um direito concebido pelo sistema como um ato lícito, que
não gera o dever de reparar.13
9 Nesse ínterim, quando o agente desrespeita os parâmetros
previstos no art. 187 do Código Civil no exercício de algo legítimo, es-
tará presente o ilícito equiparado. O exemplo típico de enquadramento
envolve o cadastro de inadimplentes ou cadastro negativo. Como é
cediço, o próprio Código de Defesa do Consumidor (CDC) reconhece
a possibilidade de inscrição, no seu art. 43.14 Trata-se, em regra, de um
exercício regular de direito. Porém, a inscrição indevida, sem justa causa ou
quando a dívida não existe, constitui um exercício irregular de direito
ou abuso de direito. Cite-se a hipótese em que não há a comunicação
prévia do devedor a respeito da inscrição, o que constitui um desres-
peito ao dever anexo de informação, decorrente da boa-fé objetiva, a
gerar o dever de reparar.15
10 A tão mencionada equiparação dos ilícitos, para os fins da
responsabilidade civil, igualmente consta do art. 927, caput, do atual

12
NERY JÚNIOR; NERY. Código Civil anotado e legislação extravagante: atualizado até 2 de
maio de 2003, p. 255.
13
CC/2002. “Art. 188. Não constituem atos ilícitos: I – os praticados em legítima defesa ou no
exercício regular de um direito reconhecido...”
14
CDC. “Art. 43. O consumidor, sem prejuízo do disposto no art. 86, terá acesso às informações
existentes em cadastros, fichas, registros e dados pessoais e de consumo arquivados sobre
ele, bem como sobre as suas respectivas fontes. §1º Os cadastros e dados de consumidores
devem ser objetivos, claros, verdadeiros e em linguagem de fácil compreensão, não podendo
conter informações negativas referentes a período superior a cinco anos. §2º A abertura de
cadastro, ficha, registro e dados pessoais e de consumo deverá ser comunicada por escrito
ao consumidor, quando não solicitada por ele. §3º O consumidor, sempre que encontrar
inexatidão nos seus dados e cadastros, poderá exigir sua imediata correção, devendo o ar-
quivista, no prazo de cinco dias úteis, comunicar a alteração aos eventuais destinatários das
informações incorretas. §4º Os bancos de dados e cadastros relativos a consumidores, os
serviços de proteção ao crédito e congêneres são considerados entidades de caráter público.
§5º Consumada a prescrição relativa à cobrança de débitos do consumidor, não serão forne-
cidas, pelos respectivos Sistemas de Proteção ao Crédito, quaisquer informações que possam
impedir ou dificultar novo acesso ao crédito junto aos fornecedores.”
15
Nos termos da Súmula nº 359, do Superior Tribunal de Justiça, “Cabe ao órgão mantenedor
do cadastro de proteção ao crédito a notificação do devedor antes de proceder à inscrição”.

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FLÁVIO TARTUCE
A CONSTRUÇÃO DO ABUSO DE DIREITO NOS DEZ ANOS DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 2002
95

Código brasileiro, que assim enuncia: “Aquele que, por ato ilícito (arts.
186 e 187) causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. Como se
pode perceber, quando o dispositivo menciona o ato ilícito, traz entre
parênteses o ato ilícito propriamente dito (ilícito puro ou ilícito padrão)
e o ilícito equiparado, decorrente do exercício irregular de um direito.
Em ambos os casos, surge o dever de reparação, conforme prevê a parte
final da norma nacional.
11 Como se depreende da leitura do art. 187, o abuso de direito
está amparado em cláusulas gerais, conceitos abertos e indeterminados
que devem ser preenchidos pelo aplicador caso a caso. Segue-se, assim,
a linha filosófica realeana, segundo a qual o Direito deve estar estribado
na tríade fato, valor e norma, marca da festejada teoria tridimensional
do Direito de Miguel Reale e do culturalismo jurídico que inspiram a
codificação brasileira de 2002. Pode-se afirmar que tais limites consti-
tuem parâmetros sociais para as condutas perante a coletividade.
12 O primeiro conceito aberto previsto é o fim social e econômico,
que tem o sentido de função coletiva dos institutos correlatos, como
consta do art. 421 do próprio Código Civil ao prescrever a função social
do contrato como limitadora do conteúdo das avenças.16 De imediato,
já se percebe que o abuso de direito não só pode como também deve
ser aplicado à esfera contratual, ao campo da autonomia privada.17 Em
um país em que prevalecem os contratos impostos, abusivos e violadores
da dignidade humana, o art. 187 do Código Civil tem certa finalidade de
controle indeclinável, como se tem percebido nesses dez anos iniciais
da codificação geral privada.
13 Tornou-se corriqueira, entre nós, a incidência do conceito aos
negócios jurídicos patrimoniais, aventando-se a nulidade das cláusulas,
por ilicitude do objeto, que violam a função social do contrato. Nessa
linha, o pertinente Enunciado nº 431, da V Jornada de Direito Civil, evento
promovido pelo Conselho da Justiça Federal e pelo Superior Tribunal
de Justiça em novembro de 2011, trata que “A violação do art. 421 con-
duz à invalidade ou à ineficácia do contrato”. Não tem sido diferente
a conclusão da jurisprudência de escol.18 Como transmitido há mais

16
CC/2002. “Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da
função social do contrato.” Apesar da expressão liberdade de contratar, a limitação deve ser
entendida em relação ao conteúdo dos negócios (liberdade contratual).
17
Ao contrário do que entende Oliveira Ascensão (A desconstrução do abuso do direito. In:
DELGADO; ALVES (Coord.). Questões controvertidas no novo Código Civil, p. 39).
18
A ilustrar, três ementas, sem prejuízo de numerosos julgados que aplicam a ideia de abuso
de direito para o contrato: “RECURSO DE APELAÇÃO. AÇÃO DE COBRANÇA. Contra-
to para desconto de títulos garantido por fiança. Nulidade da assinatura do cônjuge do fia-
dor, reconhecida pela instituição financeira credora, que não invalida a fiança, tampouco o

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
96 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

de uma década por Álvaro Villaça Azevedo, não se pode admitir um


contrato que gere o massacre de uma parte sobre a outra, o que repre-
senta muito bem a ideia de função social do contrato, construída até a
atualidade pela civilística brasileira.
14 Em suma, os dez anos iniciais do Código Civil de 2002
demonstram que o abuso de direito não se situa apenas na órbita
extracontratual. Ainda para demonstrar tal premissa, a jurisprudência
superior tem entendido que a recusa injustificada ao cumprimento do
contrato pode caracterizar o abuso de direito ensejador do dever de
reparar. Cite-se a célebre situação de contratos que envolvem direitos
fundamentais, caso a respeito de plano de saúde.19 Consigne-se

contrato por ela garantido, observados os postulados da boa-fé objetiva e da função social
dos contratos. Quebra dos deveres anexos e abuso de direito que autorizam, força na função
interpretativa da boa-fé objetiva, a manutenção da validade da fiança prestada. Responsabi-
lidade da fiadora que também decorre da condição de coobrigada. Salvaguarda da meação
do cônjuge do fiador em futura execução, observada a regra contida no art. 655-b do CPC.
Apelo não provido. Unânime” (TJRS, Apelação Cível nº 426207-78.2011.8.21.7000, Estrela,
Décima Sétima Câmara Cível, Rel. Des. Bernadete Coutinho Friedrich, j. 15.12.2011, DJe, RS,
18 jan. 2012) “SEGURO DE VIDA EM GRUPO. PRESCRIÇÃO. NÃO CARACTERIZAÇÃO.
REPARAÇÃO CIVIL FUNDADA EM SUPOSTO ATO ILÍCITO. INCIDÊNCIA DO PRAZO
DE TRÊS ANOS PREVISTO NO ART. 206, §3º, DO CÓDIGO CIVIL DE 2002, A CONTAR DA
CIÊNCIA DOS AUTORES, ACERCA DA NÃO RENOVAÇÃO DA APÓLICE, POR INICIA-
TIVA DA SEGURADORA. Presente ilegalidade e abuso diante da não renovação do contrato
de seguro mantido por mais de trinta anos, frustração de justa expectativa à manutenção do
ajuste ofensa aos princípios da boa-fé objetiva e função social do contrato incidência do Códi-
go de Defesa do Consumidor. Danos materiais inocorrência seguradora, durante a vigência
do contrato, suportou os riscos a ele inerentes. Razoável a fixação de indenização por dano
moral recurso parcialmente provido” (TJSP, Apelação nº 9105398-02.2008.8.26.0000, Acór-
dão nº 5484046, Itapeva, Trigésima Primeira Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Francisco
Casconi, j. 18.10.2011, DJ, SP, 25 out. 2011). “APELAÇÃO CÍVEL PLANO DE SAÚDE. CON-
TRATO COLETIVO/EMPRESARIAL AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE CLÁU-
SULA CONTRATUAL JULGADA PROCEDENTE SEGURADORA QUE MANIFESTOU
SEU DESINTERESSE NA RENOVAÇÃO ANUAL DO CONTRATO, COM APOIO EM
CLÁUSULA CONTRATUAL EXPRESSA QUE LHE PERMITE O CANCELAMENTO DO
CONTRATO SE HOUVER ALTERAÇÕES NO GRUPO SEGURADO QUE O TORNEM IN-
VIÁVEL INADMISSIBILIDADE CONTRATO DE TRATO SUCESSIVO INCIDÊNCIA DA
LEI Nº 9.656/98, SEM PREJUÍZO DAS NORMAS COGENTES DO CÓDIGO DE DEFESA
DO CONSUMIDOR. Abusividade e consequente nulidade de cláusula contratual que prevê
a possibilidade de resilição unilateral do contrato por parte da operadora de saúde, median-
te denúncia imotivada Abuso do direito de resilir. Afronta aos princípios da função social
do contrato e da boa-fé objetiva. Contrato que vigora há anos, gerando justa expectativa de
renovação. Resolução do contrato que deve ser motivada e precedida de comunicação aos
consumidores, com prazo razoável de antecedência, não se admitindo como motivo a sim-
ples inviabilidade do contrato para a Seguradora. Sentença mantida. Negado provimento ao
recurso” (TJSP, Apelação nº 9064519-89.2004.8.26.0000, Acórdão nº 5034299, São Bernardo do
Campo, Nona Câmara de Direito Privado, Rel. Dês. Viviani Nicolau, j. 29.3.2011, DJe, SP, 25
maio 2011).
19
Colaciona-se uma das decisões do STJ nesse sentido: “PROCESSO CIVIL. AGRAVO
REGIMENTAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. PLANO DE SAÚDE. RECUSA INJUS­
TI­FICADA DE COBERTURA DE TRATAMENTO MÉDICO. DESCUMPRIMENTO DE
NORMA CONTRATUAL A GERAR DANO MORAL INDENIZÁVEL. AUSÊNCIA DE
COM­ PROVAÇÃO ACERCA DA NÃO APROVAÇÃO DO MEDICAMENTO PELA

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FLÁVIO TARTUCE
A CONSTRUÇÃO DO ABUSO DE DIREITO NOS DEZ ANOS DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 2002
97

a aprovação de enunciado doutrinário na V Jornada de Direito Civil,


conforme proposição deste autor, prevendo que “O descumprimento
de contrato pode gerar dano moral quando envolver valor fundamental
protegido pela Constituição Federal de 1988” (Enunciado nº 411 CJF/STJ).
15 Além da função social, utiliza-se como parâmetro a boa-fé, aqui
entendida como a boa-fé objetiva, aquela que existe no plano da conduta
de lealdade dos participantes negociais. Nos termos do Enunciado
nº 26, da I Jornada de Direito Civil, evento do ano de 2004, a cláusula
geral da boa-fé objetiva “impõe ao juiz interpretar e, quando necessário,
suprir e corrigir o contrato segundo a boa-fé objetiva, entendida como
a exigência de comportamento leal dos contratantes”.20 A exemplo do
que ocorre com a função social do contrato, a boa-fé objetiva tem notória
função de coibir condutas movidas pela má-fé, pelo enriquecimento
sem causa e por interesses egoísticos e antifuncionais (função de controle,
retirada justamente do art. 187). Ao lado da função social do contrato,
a boa-fé objetiva tem sido utilizada para mitigar a força obrigatória da
convenção, afastando notórios abusos e desequilíbrios.21 Embora se

ANVISA. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. 1. A recusa injustificada de Plano


de Saúde para cobertura de procedimento médico a associado configura abuso de direito
e descumprimento de norma contratual, capazes de gerar dano moral indenizável.
Precedentes. 2. As cláusulas restritivas ao direito do consumidor devem ser interpretadas da
forma mais benéfica a este, não sendo razoável a seguradora se recusar a prestar a cobertura
solicitada. 3. Agravo regimental não provido” (STJ, AgRg no REsp nº 1253696/SP, Rel. Min.
Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, j. 18.8.2011, DJe, 24 ago. 2011).
20
Mencionado o citado enunciado doutrinário, Pablo Malheiros Cunha Frota alude que “A
boa-fé é dever contratual geral que moraliza o contrato, já que devem as partes agir com
honestidade, com lealdade (Enunciado CJF 26), com lisura, com probidade nas fases contra-
tuais, sem que um das partes obtenha com o pacto vantagens desmedidas, respeitando-se
a legítima expectativa dos contratantes, mesmo que não haja previsão legal ou contratual”
(FROTA. Os deveres contratuais gerais nas relações civis e de consumo, p. 209).
21
Conforme recente decisão do Superior Tribunal de Justiça, “A novação, conquanto moda-
lidade de extinção de obrigação em virtude da constituição de nova obrigação substitutiva
da originária, não tem o condão de impedir a revisão dos negócios jurídicos antecedentes,
máxime diante da relativização do princípio do pacta sunt servanda, engendrada pela nova
concepção do Direito Civil, que impõe o diálogo entre a autonomia privada, a boa-fé e a
função social do contrato. Inteligência da Súmula 286 do STJ” (STJ, REsp nº 866.343/MT,
Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, j. 2.6.2011, DJe, 14 jun. 2011). Ou, de outra
notória ementa, relacionada aos contratos de gaveta: “O Código Civil de 1916, de feição indi-
vidualista, privilegiava a autonomia da vontade e o princípio da força obrigatória dos vín-
culos. Por seu turno, o Código Civil de 2002 inverteu os valores e sobrepõe o social em face
do individual. Dessa sorte, por força do Código de 1916, prevalecia o elemento subjetivo, o
que obrigava o juiz a identificar a intenção das partes para interpretar o contrato. Hodier-
namente, prevalece na interpretação o elemento objetivo, vale dizer, o contrato deve ser
interpretado segundo os padrões socialmente reconhecíveis para aquela modalidade de ne-
gócio” (STJ, AgRg no REsp nº 838.127/DF, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, j. 17.2.2009,
DJe, 30 mar. 2009).

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
98 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

sustente que tais regramentos são meros artifícios de retórica, pois de


uma boa argumentação também se constrói o bom direito.
16 Por fim, o art. 187 do CC/2002 estabelece os bons costumes
como parâmetros para a configuração do abuso de direito, conceito que
deve ser analisado de acordo com fatores sociais, espaciais e temporais,
premissa já defendida quando do nosso primeiro texto a respeito da
matéria.22 Partilhando dessa forma de pensar, enunciado doutriná-
rio aprovado na V Jornada de Direito Civil, de autoria de Otávio Luiz
Rodrigues Jr.: “Os bons costumes previstos no art. 187 do CC possuem
natureza subjetiva, destinada ao controle da moralidade social de
determinada época, e objetiva, para permitir a sindicância da violação
dos negócios jurídicos em questões não abrangidas pela função social
e pela boa-fé objetiva” (Enunciado nº 413 do Conselho da Justiça Fe-
deral e do Superior Tribunal de Justiça). Tal enunciado é interessante
por trabalhar com dois conceitos que permeiam as ciências sociais: o
subjetivo — associado à razoabilidade — e o objetivo — relacionado
à proporcionalidade. Ilustrando, no que concerne a maus costumes, a
jurisprudência superior acabou por proibir atos coletivos de crueldade
contra animais, como a farra do boi e a rinha de galos.23 Quem sabe — o

22
TARTUCE. Considerações sobre o abuso do direito ou ato emulativo civil. In: DELGADO;
ALVES (Coord.). Questões controvertidas no novo Código Civil, p. 89-110.
23
“COSTUME. MANIFESTAÇÃO CULTURAL. ESTÍMULO. RAZOABILIDADE. PRESER-
VAÇÃO DA FAUNA E DA FLORA. ANIMAIS. CRUELDADE. A obrigação de o Estado
garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão
das manifestações, não prescinde da observância da norma do inciso VII do artigo 225 da
Constituição Federal, no que veda prática que acabe por submeter os animais à cruelda-
de. Procedimento discrepante da norma constitucional denominado ‘farra do boi’”. (STF,
RE nº 153531/SC, Segunda Turma, Rel. Desig. Min. Marco Aurélio, j. 3.6.1997, DJ, p. 13, 13
mar. 1998). “AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. BRIGA DE GALOS (LEI
FLUMINENSE Nº 2.895/98). LEGISLAÇÃO ESTADUAL QUE, PERTINENTE A EXPOSI-
ÇÕES E A COMPETIÇÕES ENTRE AVES DAS RAÇAS COMBATENTES, FAVORECE ESSA
PRÁTICA CRIMINOSA. DIPLOMA LEGISLATIVO QUE ESTIMULA O COMETIMENTO
DE ATOS DE CRUELDADE CONTRA GALOS DE BRIGA. CRIME AMBIENTAL (LEI
Nº 9.605/98, ART. 32). MEIO AMBIENTE. DIREITO À PRESERVAÇÃO DE SUA INTE-
GRIDADE (CF, ART. 225). PRERROGATIVA QUALIFICADA POR SEU CARÁTER DE
METAINDIVIDUALIDADE. DIREITO DE TERCEIRA GERAÇÃO (OU DE NOVÍSSIMA
DIMENSÃO) QUE CONSAGRA O POSTULADO DA SOLIDARIEDADE. PROTEÇÃO
CONSTITUCIONAL DA FAUNA (CF, ART. 225, §1º, VII). DESCARACTERIZAÇÃO DA
BRIGA DE GALO COMO MANIFESTAÇÃO CULTURAL. RECONHECIMENTO DA IN-
CONSTITUIONALIDADE DA LEI ESTADUAL IMPUGNADA. AÇÃO DIRETA PROCE-
DENTE. LEGISLAÇÃO ESTADUAL QUE AUTORIZA A REALIZAÇÃO DE EXPOSIÇÕES
E COMPETIÇÕES ENTRE AVES DAS RAÇAS COMBATENTES. NORMA QUE INSTITU-
CIONALIZA A PRÁTICA DE CRUELDADE CONTRA A FAUNA. INCONSTITUCIONA-
LIDADE. A promoção de briga de galos, além de caracterizar prática criminosa tipificada na
legislação ambiental, configura conduta atentatória à Constituição da República, que veda
a submissão de animais a atos de crueldade, cuja natureza perversa, à semelhança da ‘farra

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FLÁVIO TARTUCE
A CONSTRUÇÃO DO ABUSO DE DIREITO NOS DEZ ANOS DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 2002
99

que demonstra como os costumes mudaram — o próximo alvo de dis-


cussão sejam os rodeios, tão comuns no interior do Brasil.
17 Acabou por consolidar-se nos últimos dez anos o entendimen-
to segundo o qual a responsabilidade decorrente do abuso de direito é
objetiva, independente de culpa. Eis aqui outra diferença importante
em relação ao art. 186 do CC/2002, que trata do ilícito puro ou padrão,
eis que o último comando adotou o modelo culposo de responsabili-
zação, pela menção à ação ou omissão voluntária, à imprudência e à
negligência. A propósito da correta conclusão a respeito do abuso de
direito, vejamos o Enunciado nº 37, da I Jornada de Direito Civil, de 2004:
“a responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de
culpa, e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico”. Não
tem sido diferente a conclusão da melhor doutrina.24 Como é notório, foi
a partir da teoria do risco que a responsabilidade civil independente de
culpa emergiu nos sistemas jurídicos, visando facilitar a tutela da vítima.
18 De acordo com as lições extraídas do clássico estudo de
Josserand, a culpa provada, como pressuposto da responsabilidade
civil, trazia ao autor da ação um fardo muito pesado, constituindo um
“considerável handcap para aquele sôbre cujos ombros caía”.25 Nesse
contexto, impor à vítima ou a seus sucessores a demonstração inequívo-
ca da culpa equivaleria a recusar-lhes a tutela reparatória, uma vez que
a teoria tradicional relativa ao tema — fundada no conceito subjetivo
de culpa — já se tornava insuficiente e perempta, sendo necessário, à

do boi’ (RE 153.531/SC), não permite sejam eles qualificados como inocente manifestação
cultural, de caráter meramente folclórico. Precedentes. A proteção jurídico-constitucional
dispensada à fauna abrange tanto os animais silvestres quanto os domésticos ou domesti-
cados, nesta classe incluídos os galos utilizados em rinhas, pois o texto da Lei Fundamental
vedou, em cláusula genérica, qualquer forma de submissão de animais a atos de crueldade.
— Essa especial tutela, que tem por fundamento legitimador a autoridade da Constituição
da República, é motivada pela necessidade de impedir a ocorrência de situações de risco que
ameacem ou que façam periclitar todas as formas de vida, não só a do gênero humano, mas,
também, a própria vida animal, cuja integridade restaria comprometida, não fora a vedação
constitucional, por práticas aviltantes, perversas e violentas contra os seres irracionais, como
os galos de briga (gallus-gallus). Magistério da doutrina. (...) (STF, ADI nº 1.856/RJ, Tribunal
Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, j. 26.5.2011, DJe, p. 16, 16 nov. 2011).
24
Nesse sentido, por todos: NORONHA. Direito das obrigações, p. 371-372; DINIZ. Código
Civil anotado, p. 219; DUARTE. Arts. 1º a 232 parte geral. In: PELUSO (Coord.). Código Civil
comentado: doutrina e jurisprudência, p. 124; GAGLIANO; PAMPLONA FILHO. Novo curso
de direito civil, p. 448; FARIAS; ROSENVALD. Direito civil: teoria geral, p. 479; CAVALIERI
FILHO. Programa de responsabilidade civil, p. 143; BOULOS. Abuso do direito no novo Código
Civil, p. 135-143; JORDÃO. Repensando a teoria do abuso de direito, p. 125; RODOVALHO.
Abuso de direito e direitos subjetivos, p. 170. Anote-se que outrora nos filiamos a esta corrente:
TARTUCE. Considerações sobre o abuso do direito ou ato emulativo civil. In: DELGADO;
ALVES (Coord.). Questões controvertidas no novo Código Civil, p. 92.
25
JOSSERAND. Evolução da responsabilidade civil. Revista Forense, p. 55.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
100 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

época, alargar os fundamentos em que se repousavam o antigo edifício


de antanho, que não correspondia mais às necessidades sociais.26 Além
da preocupação com a vítima, no abuso de direito a responsabilidade
objetiva acaba funcionando como uma punição ao abusador, que des-
respeita os padrões sociais de conduta ditados pelo art. 187 do CC/2002.
19 Não se olvide que o abuso de direito constitui um instituto com
ampla aplicação, tendente a repercussões em todos os ramos do Direito,
até porque é possível fundamentar constitucionalmente a categoria.
Nessa esteira, o Enunciado nº 414, da V Jornada de Direito Civil (2011),
preconiza com precisão: “A cláusula geral do art. 187 do Código Civil
tem fundamento constitucional nos princípios da solidariedade, devido
processo legal e proteção da confiança e aplica-se a todos os ramos do
direito”. Em suma, o abuso de direito é multifacetário, com amplitude
pluricultural e interdisciplinar. Cumpre destacar, nesse contexto, que a
aplicação da categoria chegou até o Direito de Família, seja nas relações
de conjugalidade, seja na de parentalidade.27 Na opinião do presente
autor, o exemplo típico de abuso de direito nessa seara envolve o engano
quanto à prole, tão comum na prática jurisdicional.28
20 Desde os primórdios do Direito romano e passando pelo
Direito medieval, o exemplo típico de abuso de direito está relaciona-
do com os abusos decorrentes do exercício do direito de propriedade
(atos emulativos ou aemulatio), principalmente aqueles que envolvem
os direitos de vizinhança. Pode-se afirmar que um dos conceitos que
mais evoluiu no Direito Privado é o de propriedade, ganhando uma
nova roupagem com a promulgação do Código Civil de 2002. As atri-
buições da propriedade estão previstas no caput do art. 1.228 do CC em
vigor, que repete parcialmente o que estava no art. 524 do CC/1916. O

26
JOSSERAND. Evolução da responsabilidade civil. Revista Forense, p. 55-56.
27
Sobre tal incidência, por todos: GURGEL. Direito de família e princípio da boa-fé objetiva;
SCHREIBER. O princípio da boa-fé objetiva no direito de família. In: PEREIRA (Coord.).
Anais do V Congresso de Direito de Família do Instituto Brasileiro de Direito de Família, p. 125-143;
ALVES. Abuso de direito no direito de família. In: PEREIRA (Coord.). Anais do V Congresso
Brasileiro de Direito de Família, p. 481-505; CARVALHO NETO. Abuso do direito, p. 225-233;
FARIAS. A tutela jurídica da confiança aplicada ao direito de família. In: PEREIRA (Coord.).
Anais do V Congresso Brasileiro de Direito de Família, p. 241-271.
28
A esse propósito, julgado do Superior Tribunal de Justiça, com imputação de responsabilidade
civil à mulher: “RESPONSABILIDADE CIVIL – DANO MORAL – MARIDO ENGANADO
– ALIMENTOS. RESTITUIÇÃO. A mulher não está obrigada a restituir ao marido os
alimentos por ele pagos em favor da criança que, depois se soube, era filha de outro homem.
– A intervenção do Tribunal para rever o valor da indenização pelo dano moral somente
ocorre quando evidente o equívoco, o que não acontece no caso dos autos. Recurso não
conhecido” (STJ, REsp nº 412.684/SP, Quarta Turma, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, data
da publicação 25 nov. 2002).

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FLÁVIO TARTUCE
A CONSTRUÇÃO DO ABUSO DE DIREITO NOS DEZ ANOS DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 2002
101

direito de propriedade é aquele que atribui ao seu titular as prerroga-


tivas de usar, gozar, buscar ou reaver a coisa, sendo oponível contra
todos (erga omnes). A reunião dessas quatro prerrogativas ou atributos
caracteriza a propriedade plena, sendo necessário observar que esses
elementos encontram limitações na própria norma civil codificada, eis
que deve a propriedade ser limitada pelos direitos sociais e coletivos.
Se na teoria clássica isso já era observado, é de se imaginar que agora,
após as revoluções populares históricas, a concepção de propriedade
ficou ainda mais restrita.29 O Código Civil atual — a exemplo do que
fazia a codificação anterior — consagra limitações para a utilização
da propriedade, principalmente a imóvel, assim como a previsão de
normas relativas ao direito de vizinhança, que traz regras relacionadas
com o uso indevido da propriedade, com as árvores limítrofes, com a
passagem forçada, com as águas e com os limites entre prédios.30
21 Nesse âmbito, o art. 1.277 do CC/2002 consagra modalidade
de abuso de direito, ao vedar o uso anormal da propriedade: “O proprie-
tário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as
interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o
habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha. Parágrafo
único. Proíbem-se as interferências considerando-se a natureza da uti-
lização, a localização do prédio, atendidas as normas que distribuem
as edificações em zonas, e os limites ordinários de tolerância dos mo-
radores da vizinhança”. São comuns os conflitos nas relações vicinais,
notadamente nas grandes cidades. Podem ser citados, por exemplo, os
litígios que envolvem animais, geralmente resolvidos pelo conceito de
abuso de direito.31 Nos termos do Enunciado nº 319, aprovado na IV

29
É interessante a ideia de hipoteca social que recai sobre a propriedade, conforme entendi-
mento do Supremo Tribunal Federal: “O direito de propriedade não se reveste de caráter
absoluto, eis que, sobre ele, pesa grave hipoteca social, a significar que, descumprida a fun-
ção social que lhe é inerente (CF, art. 5º, XXIII), legitimar-se-á a intervenção estatal na esfera
dominial privada, observados, contudo, para esse efeito, os limites, as formas e os procedi-
mentos fixados na própria Constituição da República. O acesso à terra, a solução dos confli-
tos sociais, o aproveitamento racional e adequado do imóvel rural, a utilização apropriada
dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente constituem elementos
de realização da função social da propriedade” (STF, ADIn nº 2.213-MC, Rel. Min. Celso de
Mello, DJ, 23 abr. 2004).
30
Francisco Amaral assim elucida: “são exemplos práticos de abuso de direito os que se
verificam nas relações de vizinhança” (AMARAL NETO. Os atos ilícitos. In: FRANCIULLI
NETO; MENDES, MARTINS FILHO (Coord.). O novo Código Civil: estudos em homenagem
ao professor Miguel Reale, p. 162).
31
A ilustrar, três ementas, bem recentes: “Direito de vizinhança, ação de obrigação de fazer
e não fazer c/c pedido cominatório e indenização por danos materiais e morais uso noci-
vo da propriedade. Alegação de barulho excessivo e maus odores causados por criação de
animais, alegações comprovadas por certidão do oficial de justiça. Sentença de procedência
mantida. Art. 252 do regimento interno do TJSP. Recurso improvido” (TJSP, Apelação

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
102 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Jornada de Direito Civil (2006), a solução dessas causas que envolvem os


conflitos de vizinhança deve guardar estreita sintonia com os princípios
constitucionais da intimidade, da inviolabilidade da vida privada e da
proteção ao meio ambiente.
22 Ainda no que diz respeito ao abuso no exercício da proprie-
dade, o Direito Ambiental, particularmente pelo seu fundamento
constitucional relacionado à função social da propriedade, também
trouxe outras importantíssimas limitações, sendo razão relevante
para a restrição dos direitos advindos da propriedade.32 Seguindo
essa lógica, merece destaque o que está previsto no §1º do art. 1.228
da atual codificação, cujo teor de redação é o seguinte: “o direito de
propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades
econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformi-
dade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas
naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico, artístico, bem
como evitada a poluição do ar e das águas”. Assim, a norma jurídica,
ao fixar os contornos do conceito de propriedade, determina algumas
limitações no interesse da coletividade. Na defesa do interesse público,

nº 9185370-21.2008.8.26.0000, Acórdão nº 5552471, Campinas, Trigésima Primeira Câmara


de Direito Privado, Rel. Des. Francisco Casconi, j. 22.11.2011, DJe, SP, 29 nov. 2011). “APE-
LAÇÃO CÍVEL. DIREITO DE VIZINHANÇA. AÇÃO DE DANO INFECTO. MAU USO DE
PROPRIEDADE. Guarda de grande número de animais (cães e gatos). Geração de excessi-
vo mau cheiro e incômodos desproporcionais aos vizinhos. Fato constitutivo do direito da
parte autora devidamente comprovado. Restrições aos direitos à propriedade e à liberdade
cabíveis na espécie, visando harmonizá-los com iguais direitos dos proprietários vizinhos.
Exegese do art. 187 do Código Civil. Limitada a posse de animais em propriedade vizinha.
Pretensão dos autores de impor à ré a proibição de posse de todo e qualquer animal na
propriedade. Indeferimento. Ausência de amparo legal. Utilização, como norte da solução
do litígio, dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Negado provimento a
ambos os recursos. Unânime” (TJRS, Apelação cível nº 517572-19.2011.8.21.7000, Tapejara,
Décima Oitava Câmara Cível, Rel. Des. Pedro Celso Dal Pra, j. 10.11.2011, DJe, RS, 18 nov.
2011). “AGRAVO DE INSTRUMENTO – CONDOMÍNIO. AÇÃO DE CUMPRIMENTO DE
OBRIGAÇÃO DE FAZER COM PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA. PRETENSÃO DE
RETIRADA DE ANIMAIS (CÃES) DO LOCAL. Liminar deferida em primeiro grau para
redução do número de animais de (15) quinze para (03) três, no prazo de 10 (dez) dias, sob
pena de multa diária de R$ 200,00 (duzentos reais). Aquele que possui cachorros possui o
dever legal de conservá-los impedindo que causem qualquer espécie de constrangimento ou
perturbação. Os documentos trazidos aos autos convergem na versão dos agravados em in-
dicar que existe manifesta perturbação aos vizinhos. Direito de vizinhança. Uso anormal da
propriedade. Decisão monocrática mantida. Recurso improvido” (TJSP, Agravo de instru-
mento nº 0334465-16.2010.8.26.0000, Acórdão nº 4916790, Valinhos, Vigésima Oitava Câmara
de Direito Privado, Rel. Des. Mello Pinto, j. 20.1.2011, DJe, SP, 18 fev. 2011).
32
O amparo constitucional do Direito Ambiental está na proteção do Bem Ambiental, retira-
da principalmente do art. 225, caput, da Constituição da República: “Todos têm direito ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e
preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. A preocupação com as futuras gerações
consagra o que é denominado direitos transgeracionais ou intergeracionais.

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FLÁVIO TARTUCE
A CONSTRUÇÃO DO ABUSO DE DIREITO NOS DEZ ANOS DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 2002
103

há restrições relacionadas com a segurança e a defesa nacional, com a


economia, com a higiene e a saúde pública, com o interesse urbanísti-
co, com a cultura nacional e o patrimônio cultural e artístico. Existem
também outras restrições, em defesa do interesse particular, previstas
no Código Civil. Tudo isso estribado no que prescreve o Texto Maior,
em seu art. 5º, XXIII, ao consagrar a função social da propriedade. Por
tudo isso, e pela concepção de um direito de propriedade relativizado,
constitui abuso de direito a situação em que o proprietário se excede
no exercício de qualquer um dos atributos decorrentes do domínio, de
modo a causar prejuízo a outrem, como ocorre, por exemplo, no caso
de danos ambientais e ecológicos.
23 O ato emulativo no exercício do direito de propriedade está
vedado expressamente no §2º, do art. 1.228, do CC, pelo qual: “são
defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade,
ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem”.
Fica a ressalva de que igualmente pode estar configurado o ato emula-
tivo se o proprietário tiver vantagens com o prejuízo alheio. A previsão
codificada é meramente exemplificativa, e não taxativa. De qualquer
forma, surge aqui uma polêmica, relacionada a uma aparente contra-
dição entre o art. 187 do CC e o último dispositivo citado. Isso porque
o art. 1.228, §2º, do CC, faz referência ao dolo, ao mencionar a intenção
de prejudicar outrem. Assim, o dispositivo estaria a exigir tal elemento
para a caracterização do ato emulativo no exercício da propriedade, o
que conduziria à responsabilidade subjetiva. Por outra via, como aqui
demonstrado, o art. 187 do CC/2002 consolida a responsabilidade ob-
jetiva (sem culpa), no caso de abuso de direito.
24 Tal contradição foi muito bem observada por Rodrigo Reis
Mazzei, que assim conclui: “A melhor solução para o problema é a
reforma legislativa, com a retirada do disposto no §2º do art. 1.228 do
Código Civil, pois se eliminará a norma conflituosa, sendo o art. 187
do mesmo diploma suficiente para regular o abuso de direito, em
qual­quer relação ou figura privada, abrangendo os atos decorrentes
do exercício dos poderes inerentes à propriedade. Até que se faça a
(re­clamada) reforma legislativa, o intérprete e o aplicador do Código
Civil devem implementar interpretação restritiva ao §2º do art. 1.228,
afastando do dispositivo a intenção (ou qualquer elemento da culpa)
para a aferição do abuso de direito por aquele que exerce os poderes
inerentes à propriedade”.33 Tem razão o doutrinador, sendo certo que

33
MAZZEI. Abuso de direito: contradição entre o §2.º do art. 1.228 e o art. 187 do Código
Civil. In: BARROSO (Org.). Introdução crítica ao Código Civil, p. 356.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
104 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

esse é o raciocínio que consta do Enunciado nº 49 CJF/STJ, aprovado


na I Jornada de Direito Civil: “a regra do art. 1.228, §2º, do novo Código
Civil interpreta-se restritivamente, em harmonia com o princípio da
função social da propriedade e com o disposto no art. 187”. Em sín-
tese, deve prevalecer a responsabilidade objetiva retirada do art. 187
do CC/2002, que serve como leme orientador obrigatório para os efeitos
jurídicos do ato emulativo.
25 Sem prejuízo de sua incidência no campo dos direitos reais,
no plano jurisprudencial os últimos dez anos trouxeram interessantes
aplicações do abuso de direito para os casos que envolvem a veiculação
de notícias jornalísticas. De fato, com a declaração de inconstitucionali-
dade — por não recepção —, da Lei de Imprensa pelo Supremo Tribunal
Federal (ver: Informativo nº 544 daquela Corte), as questões relativas ao
tema devem ser resolvidas com a incidência da Constituição Federal e
do Código Civil de 2002. Como primeira decisão do Superior Tribunal
de Justiça, cumpre destacar acórdão que condenou jornal mineiro pela
veiculação de notícia utilizando apelido com menção à opção sexual do
retratado (“bicha”). A correta conclusão foi pela presença do abuso de
direito jornalístico e também da lesão à opção sexual, direito que deve
ser reconhecido como componente da personalidade.34
26 Igualmente lidando com a liberdade de imprensa, outra emen-
ta do Superior Tribunal de Justiça acabou por concluir pelo exercício
regular do direito de informar, diante da veracidade dos fatos e pelos
interesses coletivos que permeavam as notícias de que um funcionário
público estaria embriagado.35 Como se extrai do acórdão — e de outros

34
“Direito civil. Indenização por danos morais. Publicação em jornal. Reprodução de cogno-
me relatado em boletim de ocorrências. Liberdade de imprensa. Violação do direito ao se-
gredo da vida privada. Abuso de direito. – A simples reprodução, por empresa jornalística,
de informações constantes na denúncia feita pelo Ministério Público ou no boletim policial
de ocorrência consiste em exercício do direito de informar. – Na espécie, contudo, a empre-
sa jornalística, ao reproduzir na manchete do jornal o cognome – ‘apelido’ – do autor, com
manifesto proveito econômico, feriu o direito dele ao segredo da vida privada, e atuou com
abuso de direito, motivo pelo qual deve reparar os consequentes danos morais. Recurso
especial provido” (STJ, REsp nº 613.374/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, j.
17.5.2005, DJ, p. 321, 12 set. 2005).
35
“RESPONSABILIDADE CIVIL. NOTÍCIA JORNALÍSTICA QUE IRROGA A MOTORISTA
DE CÂMARA MUNICIPAL O PREDICADO DE ‘BÊBADO’. INFORMAÇÃO DE INTE-
RESSE PÚBLICO QUE, ADEMAIS, NÃO SE DISTANCIA DA REALIDADE DOS FATOS.
NÃO COMPROVAÇÃO, EM SINDICÂNCIA ADMINISTRATIVA, DO ESTADO DE EM-
BRIAGUEZ. IRRELEVÂNCIA. LIBERDADE DE IMPRENSA. AUSÊNCIA DE ABUSO DE
DIREITO. 1. É fato incontroverso que o autor, motorista de Câmara Municipal, ingeriu bebida
alcoólica em festa na qual se encontravam membros do Poder Legislativo local e que, em se-
guida, conduziu o veículo oficial para sua residência. Segundo noticiado, dormiu no interior
do automóvel e acordou com o abalroamento no muro ou no portão de sua casa. Constam

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FLÁVIO TARTUCE
A CONSTRUÇÃO DO ABUSO DE DIREITO NOS DEZ ANOS DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 2002
105

daquela Corte Superior —, deve-se fazer a correta e precisa pondera-


ção de valores e de direitos para a resolução dos problemas relativos à
imprensa em nosso país, para daí se retirar o dever ou não de reparar
os prejuízos de acordo com as circunstâncias do caso concreto. Tal
ponderação envolve — na maioria das situações concretas — o direito
à informação (art. 5º, incs. IV, IX e XIV, da CF/1988) e o direito à imagem
e à intimidade (art. 5º, incs. V e X, da CF/1988).36
27 Dessa forma, “a responsabilidade civil decorrente de abusos
perpetrados por meio da imprensa abrange a colisão de dois direitos
fundamentais: a liberdade de informação e a tutela dos direitos da
personalidade (honra, imagem e vida privada). A atividade jornalística
deve ser livre para informar a sociedade acerca de fatos cotidianos de
interesse público, em observância ao princípio constitucional do Estado
Democrático de Direito; contudo, o direito de informação não é abso-
luto, vedando-se a divulgação de notícias falaciosas, que exponham

da notícia relatos da vizinhança, no sentido de que o motorista da Câmara ostentava nítido


estado de embriaguez. 2. Se, por um lado, não se permite a leviandade por parte da impren-
sa e a publicação de informações absolutamente inverídicas que possam atingir a honra da
pessoa, não é menos certo, por outro lado, que da atividade jornalística não são exigidas ver-
dades absolutas, provadas previamente em sede de investigações no âmbito administrativo,
policial ou judicial. 3. O dever de veracidade ao qual estão vinculados os órgãos de impren-
sa não deve consubstanciar-se dogma absoluto, ou condição peremptoriamente necessária
à liberdade de imprensa, mas um compromisso ético com a informação verossímil, o que
pode, eventualmente, abarcar informações não totalmente precisas. 4. Não se exige a prova
inequívoca da má-fé da publicação (‘actual malice’), para ensejar a indenização. 5. Contudo,
dos fatos incontroversos, conclui-se que, ao irrogar ao autor o predicado de ‘bêbado’, o jornal
agiu segundo essa margem tolerável de inexatidão, orientado, ademais, por legítimo juízo
de aparência acerca dos fatos e por interesse público extreme de dúvidas, respeitando, por
outro lado, o dever de diligência mínima que lhe é imposto. 6. A pedra de toque para aferir-se
legitimidade na crítica jornalística é o interesse público, observada a razoabilidade dos meios
e formas de divulgação da notícia. 7. A não comprovação do estado de embriaguez, no âmbito
de processo disciplinar, apenas socorre o autor na esfera administrativa, não condiciona a
atividade da imprensa, tampouco suaviza o desvalor da conduta do agente público, a qual,
quando evidentemente desviante da moralidade administrativa, pode e deve estar sob as
vistas dos órgãos de controle social, notadamente, os órgãos de imprensa. 8. Com efeito, na
reportagem objeto do dissenso entre as partes, vislumbra-se simples e regular exercício de
direito, consubstanciado em crítica jornalística própria de estados democráticos, razão pela
qual o autor deve, como preço módico a ser pago pelas benesses da democracia, conformar-se
com os dissabores eventualmente experimentados. 9. Recurso especial provido” (STJ, REsp nº
680.794/PR, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, j. 17.6.2010, DJe, 29 jun. 2010).
36
No âmbito doutrinário, a ponderação de valores é reconhecida pelo Enunciado nº 279, da
IV Jornada de Direito, que traz alguns critérios à solução: “A proteção à imagem deve ser
ponderada com outros interesses constitucionalmente tutelados, especialmente em face do
direito de amplo acesso à informação e da liberdade de imprensa. Em caso de colisão, levar-
se-á em conta a notoriedade do retratado e dos fatos abordados, bem como a veracidade
destes e, ainda, as características de sua utilização (comercial, informativa, biográfica),
privilegiando-se medidas que não restrinjam a divulgação de informações”.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
106 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

indevidamente a intimidade ou acarretem danos à honra e à imagem


dos indivíduos, em ofensa ao princípio constitucional da dignidade da
pessoa humana (...)”.37
28 Outro aresto do Tribunal da Cidadania aplicou a construção
em estudo à concessionária de serviço público, que interrompeu o seu
fornecimento diante de uma dívida de valor menor a um real (R$0,85).
Lamenta-se apenas a fixação da indenização por danos morais em mó-
dicos R$1.000,00 (mil reais), o que está totalmente distante do caráter
pedagógico ou educativo que deve ser dado à indenização, mormente
quando o agente causador do dano age em abuso de direito, desrespei-
tando os parâmetros sociológicos que constam do art. 187 do CC/2002.38
29 Por derradeiro quanto às suas concretizações, o abuso de
direito tem ampla incidência no âmbito processual, surgindo a ideia
de abuso no processo. Cumpre destacar que, também nessa órbita, a
doutrina especializada processual entende pela responsabilização ob-
jetiva daquele que comete o ilícito. Nessa esteira, as palavras de Helena
Abdo, no sentido de que “Acredita-se que a posição mais coerente a ser
adotada relativamente ao abuso do processo seja, realmente, aquele que
se harmoniza com a clara precisão contida no art. 187 do CC. Assim,
uma vez que se chegou à conclusão de que o ordenamento jurídico
optou pelo critério objetivo-finalístico no âmbito do abuso do direito,

37
STJ, REsp nº 719.592/AL, Rel. Min. Jorge Scartezzini, Quarta Turma, j. 12.12.2005, DJ,
p. 567, 1º fev. 2006.
38
“PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE IN­
DE­ NIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO.
DISSÍDIO PRETORIANO NÃO DEMONSTRADO. FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉ­
TRICA. SUSPENSÃO. ALEGADA VIOLAÇÃO DOS ARTS. 186 E 188, I, DO CC. NÃO
OCORRÊNCIA. ABUSO DE DIREITO. CONFIGURAÇÃO DE ATO ILÍCITO (CC, ART. 187).
RESSARCIMENTO DEVIDO. DOUTRINA. RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO
E, NESSA PARTE, DESPROVIDO. 1. A divergência jurisprudencial deve ser devidamente
demonstrada, conforme as exigências do parágrafo único do art. 541 do CPC, c/c o art. 255 e
seus parágrafos, do RISTJ, não bastando, para tanto, a simples transcrição de ementas. 2. A
questão controvertida neste recurso especial não se restringe à possibilidade/impossibilidade
do corte no fornecimento de energia elétrica em face de inadimplemento do usuário. O que
se discute é a existência ou não de ato ilícito praticado pela concessionária de serviço público,
cujo reconhecimento implica a responsabilidade civil de indenizar os transtornos sofridos
pela consumidora. 3. Comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede
manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos
costumes (art. 187 do Código Civil). 4. A recorrente, ao suspender o fornecimento de energia
elétrica em razão de um débito de R$ 0,85, não agiu no exercício regular de direito, e sim com
flagrante abuso de direito. Aplicação dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade. 5.
A indenização por danos morais foi fixada em valor razoável pelo Tribunal a quo (R$ 1.000,00),
e atendeu sua finalidade sem implicar enriquecimento ilícito à indenizada. 6. Recurso
especial parcialmente conhecido e, nessa parte, desprovido” (STJ, REsp nº 811.690/RR, Rel.
Min. Denise Arruda, Primeira Turma, j. 18.5.2006, DJ, p. 123, 19 jun. 2006).

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FLÁVIO TARTUCE
A CONSTRUÇÃO DO ABUSO DE DIREITO NOS DEZ ANOS DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 2002
107

o mesmo critério deverá ser adotado para o abuso cometido no âmbito


de uma relação jurídica processual”.39 A título de exemplo, nos termos
de relevante decisão do Superior Tribunal de Justiça, “Por ser abusivo,
deve ser reprimido o comportamento do credor que esgrime contra
terceiro o instituto do bem de família, sabedor que contra ele próprio
não será possível articular a mesma objeção, vendo-se livre, portanto,
para excutir o mesmo imóvel que deveria estar a salvo, servindo de
proteção ao direito de moradia constitucionalmente garantido. ‘O pro-
cesso não é um jogo de esperteza, mas instrumento ético da jurisdição
para efetivação dos direitos de cidadania’”.40 E ainda: “Dispondo de
outros meios para a satisfação de seu crédito, tal como a habilitação
na execução alheia, comete abuso processual o credor que impede que
terceiro execute imóvel, sob a alegação de constituir-se bem de família,
para depois, em futura execução, frustrar, ele próprio, a finalidade do
instituto, excutindo o mesmo bem pretensamente defendido”.41
30 Como se percebe deste breve estudo, no que diz respeito ao
abuso de direito, a civilística nacional já construiu fortes alicerces e um
piso na realidade jurídica nacional. Mais do que isso, alguns tijolos já
foram alçados para a efetiva modificação social que se espera do Direito
Privado. Espera-se que, nos próximos dez anos, a categoria receba peças
ainda mais importantes e que, quem sabe, haja o devido acabamento
que uma obra finalizada deve receber, efetivamente construída para
ser usufruída por todos.

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2003.

39
ABDO. O abuso do processo, p. 120.
40
STJ, ARg no REsp nº 709.372/RJ, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, j.
24.5.2011, DJe, 03 jun. 2011.
41
STJ, ARg no REsp nº 709.372/RJ, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, j.
24.5.2011, DJe, 03 jun. 2011.

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108 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

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FLÁVIO TARTUCE
A CONSTRUÇÃO DO ABUSO DE DIREITO NOS DEZ ANOS DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 2002
109

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

TARTUCE, Flávio. A construção do abuso de direito nos dez anos do Código


Civil brasileiro de 2002. In: EHRHARDT JR., Marcos (Coord.). Os 10 anos do
Código Civil: evolução e perspectivas. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 91-109.
ISBN 978-85-770-616-8.

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PÁGINA EM BRANCO

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EMPRESÁRIO INDIVIDUAL COM
RESPONSABILIDADE LIMITADA
APROXIMANDO O DIREITO EMPRESARIAL DA
TEORIA CIVILISTA DA PERSONALIDADE

JOSÉ BARROS CORREIA JUNIOR

1 Da fraude no meio empresarial e a criação de


“sociedades fantasmas”
Em tempos de relativa estabilidade econômica, comparado às
agruras da década de 1980, um dos maiores problemas da atualidade é
a fraude no meio empresarial, em especial com a criação de “sociedades
fantasmas” e de sócios inexistentes de fato, meramente decorativos, os
conhecidos “laranjas”.
No Brasil, conforme dados fornecidos pelo Departamento Nacio-
nal de Registro do Comércio (DNRC),1 entre 1985 e 2005, as sociedades
limitadas representariam 48,23% dos empresários registrados no Brasil
e 98,93% das sociedades brasileiras.2 Os empresários individuais, por
outro lado, representariam 51,25% dos empresários registrados no

1
BRASIL. Departamento Nacional de Registro do Comércio – DNRC. Disponível em:
<http://www.dnrc.gov.br>. Acesso em: 30 maio 2009.
2
Os empresários registrados no Brasil entre 1985 e 2005 representam um total de 8.915.890,
sendo 4.569.288 empresários individuais, 4.300.257 sociedades limitadas e 46.345 socieda-
des de outras espécies (companhias, cooperativas etc.).

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
112 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Brasil. Com isso, observa-se clara a predileção brasileira pelas socieda-


des limitadas, por motivos claramente óbvios, uma vez que nela todos
os sócios, sem distinção, responderiam de maneira limitada à sua parte
do capital social. Não custa destacar que segundo nosso ordenamento
jurídico, os empresários individuais até pouco tempo respondiam de
modo ilimitado com todo o seu patrimônio, inclusive pessoal.
Inúmeras pessoas com a intenção de investir seus recursos em
atividades empresárias, todavia sem a garantia da limitação do risco
empresarial para as pessoas naturais, deixaram de constituírem-se como
empresários individuais, procurando outras pessoas para constituir
uma sociedade limitada, sem que estes participassem efetivamente do
capital social ou contribuíssem com alguma indústria para a sociedade.
Assim, o sujeito com recursos com a intenção de investi-los em certa
atividade empresarial, no intuito de limitar a sua responsabilidade no
exercício da empresa, procura pessoa que assinará com ele contrato
social dentro do capital investido unicamente pelo primeiro. Este “falso”
sócio nada contribui: nem com recursos, nem com indústria. Apenas
com a sua assinatura no contrato social que será registrado para que
se efetive a limitação da responsabilidade do primeiro junto aos seus
pretensos credores.
O que verdadeiramente se observa in casu é que nunca houve a
intenção de constituir a sociedade, mas de apenas de limitar a respon-
sabilidade do verdadeiro investidor à fração que lhe é correspondente
no contrato social. Como é sabido,3 as sociedades se constituem como
conjunto de pessoas voltado ao exercício de atividades econômicas, mais
do que isto, é elemento do contrato social, além da pluralidade originá-
ria dos sócios, o affectio societatis. É fato que as sociedades decorrem do
próprio conceito de associação que, a despeito das especificidades no
que é pertinente aos efeitos jurídicos ao analisá-las de maneira restrita,4
exige a participação de vários sujeitos para a sua formação.

Supõe assim um elemento pessoal, representado por uma pluralidade


de pessoas. Pelo que há que perguntar se a sociedade é também uma
associação. (...) Supomos que este entendimento é correcto. Não encon-
tramos nada na figura da sociedade que a afaste na integração daquele
muito amplo de associação.5

3
Antes por conhecimento pacífico e hoje ainda por conhecimento dominante como se verá
no decorrer do texto.
4
Analisadas de modo restrito, sociedade e associação distinguem-se pela economicidade
teleológica da primeira e a ausência deste fator na segunda, todavia, ambas formadas por
vários sujeitos com objetivos comuns.
5
ASCENSÃO. Direito civil e teoria geral, p. 303-304.

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113

Destarte, a constituição de sociedade com “sócio laranja” confi-


gura clara fraude à norma jurídica por meio da qual o investidor, para
alcançar a limitação de responsabilidade, firma contrato social com
pessoa estranha ao negócio. O real sócio integraliza todo o capital social
com seu patrimônio, destinando fração desta ao outro sócio (laranja),
ambos assumindo responsabilidade por estes quinhões. Em suma: para
se alcançar o fim ilícito (responsabilidade limitada de um único investi-
dor ou empresário individual) se utiliza de um meio aparentemente lícito
(constituição de sociedade limitada).
Necessário destacar que tal conduta, embora amplamente disse-
minada e bastante tolerada pela doutrina e jurisprudência, encontra-se
vedada pelo disposto no inciso VI do art. 166 do CC/02,6 que define os
contornos da invalidação do negócio jurídico por nulidade.
Afinal, se combinarmos o referido dispositivo com o previsto no
art. 167 do mesmo diploma legal,7 estamos diante de negócio jurídico
simulado por conter declaração não verdadeira que aparentemente
confere direitos à pessoa diversa daquela à qual realmente se objetiva
conferir, sendo flagrante sua nulidade. Pelo exposto acima, fica evidente
que o cerne na questão repousa na possibilidade de limitação da respon-
sabilidade daquele que desejaria atuar sozinho no campo empresarial.
Tal hipótese não é completamente estranha ao nosso sistema jurídico,
uma vez que possível para disciplinamento das sociedades anônimas.
Nada obstante, a complexidade e o alto custo administrativo in-
viabilizam a utilização de tal caminho para a grande maioria dos empre-
sários brasileiros, motivo pelo qual vem crescendo no Brasil o número
de partidários das sociedades unipessoais originárias, animados pela
experiência europeia, em especial da França (Lei nº 185-697/1985), da
Alemanha (GmbH-Novelle de 1980) e mais recentemente de Portugal.
Na realidade a limitação de responsabilidade tem uma função
jurídico-social muito importante, que é o fomento ao investimento
empresarial. Se não fosse essa limitação da responsabilidade, a maioria
dos investidores, pelo risco inerente à atividade empresarial, reduziria
ou até mesmo não realizaria seus investimentos.

6
BRASIL. Código Civil. “Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando: (...) VI – tiver por
objetivo fraudar lei imperativa”.
7
BRASIL. Código Civil. “Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que
se dissimulou, se válido for na substância e na forma. §1º Haverá simulação nos negócios
jurídicos quando: I – aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daque-
las às quais realmente se conferem, ou transmitem; II – contiverem declaração, confissão,
condição ou cláusula não verdadeira”.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
114 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

A limitação de responsabilidade tem como efeito o crescimento


da atividade econômica e o consequente crescimento do nível de em-
prego e da arrecadação tributária, entre outros benefícios sentidos pela
comunidade que se relaciona com aquele empresário ou dele dependa.8
Essa é a função social da limitação da responsabilidade ao investimento
assumido, todavia a limitação é dada pelo legislador para os sujeitos
empresariais que ele entenda devido e a utilização de “sociedades
fantasmas” acaba por fraudar os objetivos normativos.

2 Da teoria dos sujeitos de direito e da personalidade


como relação numerus clausus
Independentemente da revolução por que vem passando o
conceito de sujeito de direito nas últimas décadas, existiria uma íntima
relação entre sujeito de direito e pessoa, conforme defende a doutrina
tradicionalista. Alguns autores chegam a tratar sujeito de direito como
verdadeiro sinônimo de pessoa (natural ou jurídica).
De uma forma geral, sujeito do direito é quem detém o poder de
agir, o titular de um direito subjetivo. Para o jusfilósofo Garcia Máynez
“sujeito de direito (ou pessoa) é todo ente capaz de intervir, como titular
de faculdades ou passível de obrigações, em uma relação jurídica”.9
Contudo, a despeito de esta definição ser nas últimas décadas uma
constante na maior parte da doutrina, ela é equivocada.
Decerto toda pessoa é sujeito de direito. Contudo, como ressalta
Fabio Konder Comparato,10 o inverso não será uma constante, pois nem
todos os sujeitos de direito terão personalidade jurídica em sentido
lato, tais como a massa falida, o espólio e as sociedades em comum,
que não têm personalidade jurídica, mas apenas legitimidade proces-
sual. A relação passa a ser então de gênero (sujeito de direito) e espécie
(pessoa). Assim, denomina-se sujeito de direito o titular de interesses
juridicamente protegidos, qualificado como tal por uma norma jurídica
que lhe imputa direitos e deveres com a finalidade de disciplinar rela-
ções econômicas e sociais. A complexidade e a grande variedade de tais
relações humanas faz com que a titularidade dos interesses protegidos
pelo direito também possa ser conferida a entes ideais, ou seja, conceitos

8
Teoria há muito absorvida pela Administração de Empresas, mas ainda insubsistente no
Direito, denominada teoria dos stakeholders de Eduard Freedman.
9
GARCIA MÁYNEZ. Filosofia del derecho, p. 138.
10
COMPARATO. O poder de controle na sociedade anônima, p. 279.

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115

abstratos que servem de instrumento para melhor regular a vida em


sociedade. Deste modo, para o Direito, não apenas homens e mulheres,
mas também alguns seres ideais de natureza incorpórea (inorgânica), são
titulares de direitos e deveres na ordem civil.11
É, portanto, no interesse da disciplina das relações humanas,
já que em última medida todos os potenciais conflitos de interesses
ocorrem sempre entre humanos, que a norma jurídica imputa direitos
e deveres tanto a pessoas naturais como a seres incorpóreos previstos
no ordenamento, a exemplo de pessoas jurídicas, condomínio edilício,
espólio, dentre outros, que serão objeto de estudo mais adiante. Nada
obstante, vale frisar, mesmo os sujeitos sem personificação são titulares
de direitos e deveres, uma vez que o atributo da personalização não é
condição essencial para figurar numa relação jurídica. A questão aqui
repousa nos limites de atuação de cada uma dessas categorias.
A personalidade jurídica significa uma autorização prévia e
genérica do ordenamento jurídico para a prática de qualquer ato jurídico
que não seja proibido pelo Direito. Assim, sujeitos de direito desperso-
nificados só podem praticar atos quando expressamente autorizados
por lei e desde que tais atos sejam inerentes à sua finalidade, enquanto
os sujeitos de direito que são pessoas podem fazer tudo a que não es-
tejam proibidos no campo das relações privadas, conforme assegura a
Constituição Federal, art. 5º, inciso II.12
Fica então evidente a necessidade de distinguir as categorias
sujeito de direito (gênero) e pessoa (espécie); além disso, deve-se ter em
vista que a personalidade, na acepção aqui empregada, é um atributo
jurídico e não uma característica imanente ao ser humano, pois ao lado
de homens e mulheres que nasceram com vida (pessoas naturais), o
Direito confere titularidade de direitos e deveres a pessoas jurídicas,
entes não humanos, incorpóreos, mas dotados de aptidão para a prática
de atos jurídicos em geral.
Em síntese, “nem todo sujeito de direito é pessoa e nem todas as
pessoas, para o direito, são seres humanos”.13 Torna-se difícil em nosso
sistema jurídico estabelecer a distinção acima, pois a personalidade
jurídica é atribuída pelo próprio sistema, e de acordo com a legislação
vigente (art. 2º, CC/02), a pessoa já nasce com o direito a ser sujeito de

11
COELHO. Curso de direito comercial: direito de empresa, p. 138.
12
BRASIL. Constituição Federal. “Art. 5º [...] II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de
fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
13
COELHO. Curso de direito comercial: direito de empresa, p. 138.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
116 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

direitos.14 Apesar da distinção apresentada, deve-se relembrar que a


doutrina tradicional não concebe tal distinção, referindo-se à pessoa
como sinônimo de sujeito de direito, o que causa dissensos terminoló-
gicos, em especial quando do estudo da capacidade jurídica, consoante
abordaremos no próximo tópico. Neste particular, importante destacar
observação de Gustavo Tepedino, Heloísa Barbosa e Maria Celina Bodin
de Moraes sobre o tema:

A rigor, há dois sentidos técnicos para o conceito de personalidade.


O primeiro associa-se à qualidade para ser sujeito de direito, conceito
aplicável tanto às pessoas físicas quanto às jurídicas. O segundo traduz
o conjunto de características e atributos da pessoa humana, considerada
objeto de proteção privilegiada por parte do ordenamento, bem jurídico
representado pela afirmação da dignidade humana, sendo peculiar,
portanto, à pessoa natural. (...) Provavelmente por encerrar uma polis-
semia, a noção de personalidade acaba sendo utilizada a um só tempo
como valor e como aptidão para ser sujeito de direito. Resultam daí
dois equívocos graves. Em primeiro lugar, a atribuição do valor jurídico
representado pela personalidade indistintamente a pessoas naturais
e jurídicas. Em segundo lugar, a atribuição de personalidade a todos
os entes a quem o ordenamento confere a qualidade de ser sujeito de
direito. Tais conclusões não colhem. (...) a qualidade para ser sujeito de
direito o ordenamento confere indistintamente a todas as pessoas e,
segundo opções de política legislativa, pode fazê-lo em favor de entes
despersonalizados.15

Tome-se como exemplo a proteção que a lei confere ao ser huma-


no em gestação no útero materno. Quando o Código Civil estabelece,
em seu art. 2º, que a personalidade civil só começa do nascimento com
vida, mas que desde a concepção devem ser resguardados os direitos
daquele que está por vir, deixa claro que o nascituro já é sujeito de
direito, embora ainda não possa ser considerado pessoa, o que justifi-
ca que a proteção concedida aos seus interesses fique condicionada ao
seu nascimento com vida, conforme demonstraremos mais adiante.
Com isso, o sujeito de direito se classificaria em personificado e não

14
Em sua Teoria Pura do Direito, Hans Kelsen sustenta que pessoa não é um indivíduo, mas
uma “unidade personificada de normas jurídicas” que lhe impõe deveres e lhe confere direi-
tos. Logo, para o citado autor, existiriam apenas pessoas jurídicas, pois “o conceito jurídico
de pessoa não se traduz através do homem (...) senão como uma construção jurídico-nor-
mativa” (KELSEN. Teoria pura do direito, p. 320 et seq.). Tal concepção não será adotada neste
trabalho, pois acaba por afastar a noção entre direito subjetivo e direito objetivo, conforme
adverte Maria Helena Diniz (Curso de direito civil brasileiro, p. 114).
15
TEPEDINO et al. Código Civil interpretado: conforme a Constituição da República, p. 4-5.

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117

personificado. Os sujeitos de direito não personificados seriam aqueles


a quem se atribua direitos e/ou deveres, sem, contudo, ter atribuído
personalidade pelo Direito. Mas o que seria personalidade?
Como relata Fábio Konder Comparato,16 para alguns autores
gregos “a igualdade essencial do homem foi expressa mediante a opo-
sição entre individualidade própria de cada homem e as funções ou
atividades por ele exercidas na vida social”, função esta denominada
por eles prósopon e pelos romanos persona, ou seja, a máscara utilizada
para individualizar o personagem teatral, para o Direito, o papel de
cada sujeito no meio social.
Por meio da analogia, a palavra passou a integrar a figura do ser
humano no desempenho do seu papel na vida jurídica e em relação às
demais pessoas. No entanto, este vocábulo somente viria a ser aplicado
juridicamente nos termos atuais na idade média, uma vez que o Direito
romano não conheceu o termo pessoa, utilizando o vocábulo caput,
relacionando-o mais ao chefe da família.
O que se verifica é que o termo pessoa com o tempo passou a
identificar aqueles sujeitos aos quais o Direito atribuiu uma amplitude
muito maior de direitos e deveres. Como mencionado, a personalidade
seria, então, um atributo do Direito para os sujeitos considerados de
maior importância.
Sendo a personalidade um atributo do Direito, não estaria de
todo equivocada a tese de Hans Kelsen ao afirmar que toda persona-
lidade seria jurídica. Equivoca-se, entretanto, ao confundir as ideias
de personalidade (atributo) e pessoa (sujeito), negando a existência de
outra pessoa que não seja a jurídica. Toda personalidade é dada pelo
Direito e, portanto, jurídica, mas as pessoas poderão ser naturais ou
jurídicas. É por isso que Pontes de Miranda destaca que a personalida-
de jurídica seria um fato jurídico.17 O fato jurídico seria o resultado da
incidência da norma jurídica sobre o suporte fático, em outras palavras
a concretização da hipótese (suporte fático) previsto na norma jurídi-
ca. O fato jurídico está inserto na categoria maior dos fatos e apenas
aqueles que resultem da incidência da norma jurídica sobre o suporte
fático receberiam tal classificação e estariam aptos a surtir seus efeitos
jurídicos. Com isso, nem todo fato seria jurídico, mas apenas aqueles
que fossem coloridos18 pela incidência da norma jurídica. Desta forma,

16
COMPARATO. A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 15.
17
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, passim.
18
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, passim.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
118 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

a personalidade seria o resultado da incidência de uma norma jurídica


específica, como ressalta Pietro Perlingieri:

O fato jurídico pode ser definido como qualquer evento que seja
idôneo, segundo o ordenamento, a ter relevância jurídica. (...) O fato, no
momento do seu acontecimento, atua como abstratamente hipotizado
na previsão da lei: o ordenamento lhe atribui uma qualificação e uma
disciplina. O fato concreto quando se realiza constitui o ponto de
confluência entre a norma e o seu tornar-se realidade: é o modo no qual
o ordenamento se atua.19

Observe-se o art. 2º do CCB aqui já mencionado. O ser humano,


pela teoria natalista adotada pela legislação em vigor no Brasil, surge
como pessoa quando nasce com vida, sendo, entre a concepção e o
nascimento, mero sujeito de direito não personificado. O mesmo ocor-
rerá com o art. 45 do Código Civil que determina que o surgimento
da personalidade de entes ideais de direito privado ocorreria a partir
da inscrição dos seus atos constitutivos no respectivo registro. As
sociedades sem registro, e.g., se enquadrariam no rol dos sujeitos de
direito não personificados. Com isso, para que exista o fato jurídico,
o ordenamento jurídico deve prever a hipótese de certo fato. Com a
concretização deste fato e a incidência da norma jurídica, o fato se
tornará jurídico. Assim sendo, sem a previsão normativa, não há como
declarar o fato como jurídico.
Como destaca José de Oliveira Ascensão, a criação de pessoas
jurídicas não é arbitrária, mas de discricionariedade relativa,20 porque
não dizer, de vinculabilidade relativa. Defende com toda razão o reno-
mado autor lusitano que as pessoas jurídicas estariam relacionadas a
uma tipicidade. “A realidade da pessoa coletiva, e bem assim o direito
de associação, não implicam que se possa criar todos os tipos de pes-
soas coletivas que se entenderem”.21 Constituir-se-ia, portanto, o rol
das pessoas jurídicas como um rol numerus clausus.
Destarte, os tipos de pessoa jurídica serão criados a partir de
prévia disposição legal que a regulamente ou não existirão como pessoa
jurídica, mas como outra categoria de sujeito de direito. Destaque-se
que dizer ser o rol das pessoas jurídicas numerus clausus não importa
asseverar que não se dê espaço para interpretação desta listagem.

19
PERLINGIERI. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional, p. 89-90.
20
ASCENSÃO. Direito civil e teoria geral, p. 216.
21
Op. cit., p. 223.

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JOSÉ BARROS CORREIA JUNIOR
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É o caso típico das associações. As associações constituem um tipo


jurídico que comporta inúmeras interpretações. O CCB, em seu texto
original (art. 44), arrolava como pessoas jurídicas de direito privado as
fundações, associações e sociedades, mas depois teria ainda incluído
as instituições religiosas e partidos políticos desnecessariamente, pois
constituem verdadeiras associações, tal qual as organizações sindicais
que, a despeito de não previstas pelo Código são pessoas jurídicas de
direito privado na forma de associação.
Ademais, dentre as várias características e efeitos das pessoas
jurídicas destaca-se a autonomia da pessoa jurídica com os sujeitos que
a integram. A relação entre a pessoa jurídica para com seus membros
é de autonomia completa, inclusive patrimonial, conforme dispunha o
art. 20 do Código Civil de 1916,22 mas tacitamente previsto pelo atual
conforme bem destacado pela doutrina atual.
Francisco Amaral destaca que “a autonomia patrimonial da pes-
soa jurídica é completa em face dos seus membros, implicando no fato
de que o patrimônio da pessoa jurídica é totalmente independente do
patrimônio das pessoas que a constituem”.23 Portanto, a existência da
pessoa jurídica independe da existência dos seus integrantes, havendo
uma clara distinção. Com isso, tendo as pessoas jurídicas existência
distinta da dos seus membros, como regra estes não responderão pelas
obrigações assumidas em nome daquela. No mesmo sentido, a pessoa
jurídica não responderá pelas obrigações dos seus membros.

3 Da inexistência e desnecessidade das sociedades


unipessoais
Observa-se então que as pessoas jurídicas devem existir a partir
de uma previsão normativa, sendo a personalidade um atributo do
Direito, sendo a personalidade sempre jurídica. As pessoas jurídicas no
Brasil se classificam em pessoas de direito público e de direito privado
(art. 40 do CCB). Nem mesmo as sociedades de economia mista e as
empresas públicas teriam natureza pública, uma vez que, com fulcro
no preceito do art. 173, §1º, inciso II da CF/88, serão aplicadas a estes
sujeitos de direito as mesmas regras das demais pessoas jurídicas de
direito privado.

22
BRASIL. Lei nº 3.071, de 1º.1.1916. “Art. 20. As pessoas jurídicas têm existência distinta da
dos seus membros”.
23
AMARAL. Direito civil: introdução, p. 285.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
120 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Como este texto se refere ao exercício da empresa, nos restrin-


giremos a tratar das pessoas jurídicas de direito privado, quais sejam,
fundações, associações e sociedades. As duas últimas seriam resultado
da união de pessoas, enquanto a primeira surgiria a partir da destinação
teleológica dada a um patrimônio.
As fundações seriam, portanto, o conjunto de bens afetados para
o exercício de atividade não econômica, mais especificamente, para fins
religiosos, morais, culturais ou de assistência (art. 62, caput e parágra-
fo único do CCB). As associações, por sua vez, se caracterizam “pela
união de pessoas que se organizem para fins não econômicos” (art. 53
do CCB). O que se verifica é que em nenhum dos casos se configurará
empresa, pois ela teria fins necessariamente econômicos, o que não se
coaduna com associações em sentido restrito e fundações. Finalmente,
o art. 981 refere-se às sociedades pelo contrato celebrado entre pessoas
que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para
o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados,
fazendo clara menção à natureza contratual e à pluripessoalidade.
Por força da Lei nº 10.825/2003, desnecessariamente se acrescen-
tou como pessoas jurídicas de direito privado as instituições religiosas
e os partidos políticos que já se constituíam como associações antes
mesmo da reforma do Código Civil. Assim, para uma regulamentação
mais específica, criaram-se novas formas de pessoa jurídica que se en-
quadravam plenamente em casos já existentes, quando bastaria apenas
que se criassem regras especiais para estas entidades, diferenciando-as
das regras gerais da pessoa jurídica gênero. Portanto, desnecessária
seria a criação de novas pessoas jurídicas que se enquadrem em outras
já existentes. É o que ocorre com os partidos políticos e as instituições
religiosas que seriam conjunto de pessoas destinadas ao exercício de
atividades não econômicas, logo, associações. Como visto, o rol das
pessoas jurídicas constitui verdadeiro numerus clausus, não se admitindo
novas espécies sem a devida previsão normativa.
Ademais, Francisco Amaral destaca que as pessoas jurídicas
dependem de certos elementos constitutivos de ordem material e de
ordem formal. Seriam elementos materiais para a formação das pessoas
jurídicas de direito privado a pluralidade pessoal ou um conjunto de
bens além de uma finalidade específica. Por outro lado, seriam ele-
mentos de ordem formal a elaboração ou execução do ato constitutivo
(contrato social, ata de assembleia de constituição ou escritura pública)
e o respectivo registro. Sem isto, não se configuraria a pessoa jurídica.

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Para constituir-se a pessoa jurídica são necessárias, em tese, duas ou


mais pessoas ligadas por uma intenção comum (affectio societatis), salvo
as exceções legais, como a empresa pública e a sociedade subsidiária
integral (Lei das S.A., art. 251); um patrimônio próprio que se constitui
na garantia do cumprimento de suas obrigações, e um objetivo próprio
e específico, que deve ser lícito e possível.24

José de Oliveira Ascensão destaca que duas são as razões para a


criação das pessoas jurídicas: “1) Só a pessoa coletiva permite agrupar
e prosseguir interesses humanos que não encontram suporte suficiente
na pessoa física. (...) 2) Só a personalização permite a continuação do
novo centro de interesses”.25 O mesmo entende Luís Cabral de Moncada,
que apenas acrescenta “a existência dum último elemento que se chama
<reconhecimento> da pessoa coletiva por parte do Estado”.26
Disto se verifica a completa inexistência e desnecessidade da
criação de sociedades unipessoais originárias. Mas o que seria a sociedade
unipessoal? As sociedades unipessoais seriam aquelas formadas não
pela união de duas ou mais pessoas27 para o exercício de atividade
teleologicamente econômica como convencionado até aqui, mas por
apenas uma pessoa que exerça tal atividade.
Existem dois tipos de sociedade unipessoal: as originárias e as
supervenientes. As sociedades unipessoais originárias seriam aque-
las já constituídas por uma única pessoa e as supervenientes seriam
aquelas formadas por mais de uma pessoa, mas que no decorrer de sua
existência passe a ter apenas um sócio. Como destaca José de Oliveira
Ascensão,28 as sociedades são ontológicas e sociologicamente formadas
por um grupo, mas o Direito europeu tem se afastado do fenômeno
pluripessoal originário para a unipessoalidade originária baseada em
fundamentos equivocados, como se verá adiante.
O primeiro Estado europeu a instituir a sociedade unipessoal foi
o Principado de Liechtenstein, em 1926, que passou a ser considerado
por este motivo um paraíso econômico-fiscal. Talvez por conta disto
é que seria seguido somente décadas depois por Dinamarca (1973),
Alemanha (1980), França (1985) e Bélgica (1986) entre outros países.
Destaque merece a história da sociedade unipessoal em Portugal, vale
lembrar, país de extrema influência legislativa empresarial para o Brasil.

24
AMARAL. Direito civil: introdução, p. 295.
25
ASCENSÃO. Direito civil e teoria geral, p. 217.
26
MONCADA. Lições de direito civil, p. 347.
27
SILVA. O conceito de empresa no direito brasileiro, p. 101.
28
ASCENSÃO. Direito civil e teoria geral, p. 316.

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122 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Em agosto de 198629 Portugal instituiu a figura do Estabelecimento


Individual de Responsabilidade Limitada (EIRL) 30 no intuito de
possibilitar a empresários individuais a limitação de responsabilidade
pela fixação de um patrimônio afetado.

Art. 1º
(Disposições preliminares)
1 – Qualquer pessoa singular que exerça ou pretenda exercer uma
actividade comercial pode constituir para o efeito um estabelecimento
individual de responsabilidade limitada.
2 – O interessado afectará ao estabelecimento individual de responsa-
bilidade limitada uma parte do seu património, cujo valor representará
o capital inicial do estabelecimento.

A opção pelo Estabelecimento Individual de Responsabilidade


Limitada (EIRL) em Portugal se deu por motivos plausíveis, apesar
de alguns equívocos. Uma das razões da escolha deste instituto foi o
fato de que o Direito português entende a sociedade como eminente-
mente contratual e, não existindo a figura do contrato consigo mesmo,
era impossível a adoção da sociedade unipessoal. Sendo contratual a
sociedade e não existindo o contrato consigo mesmo, como formar
a sociedade unipessoal? Outro motivo claro para opção do EIRL em
Portugal é a própria natureza da sociedade como conjunto de pessoas.
Uma das principais críticas a este instituto seria a divisão do
patrimônio do empresário individual que, se de um lado respeita a
própria natureza das sociedades ao não aceitar a sociedade unipessoal
como regra, acaba por ofender a indivisibilidade do patrimônio pessoal
ao determinar a sua separação em patrimônio pessoal e patrimônio em-
presarial. Outra forte crítica seria o fato de Portugal não ter alcançado
os objetivos propostos pelo EIRL.
Assim, com o crescimento da Comunidade Econômica Europeia
(CEE) e a criação de uma legislação comum, de um Direito Comunitá-
rio, em 1996, Portugal não resistiu à influência doutrinária e legal dos
demais países europeus e acabou por criar o instituto da sociedade
unipessoal concomitantemente com o EIRL,31 e em 2007,32 incentivar a
sua transformação por registro gratuito. Era a última fronteira europeia

29
PORTUGAL. Decreto-Lei nº 248, de 25.8.1986.
30
Bem próximo do objeto de estudo deste texto, até mesmo na nomenclatura.
31
PORTUGAL. Decreto-Lei nº 257, de 31.12.1996.
32
PORTUGAL. Decreto-Lei nº 8, de 17.1.2007.

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para as sociedades unipessoais, uma vez que a CEE por meio da 12ª
Diretiva recomendou que os países do bloco adotassem por meio da
sociedade unipessoal a limitação de responsabilidade.
A doutrina majoritária brasileira que segue a mesma linha de
raciocínio jurídico português também se recusa a admitir a figura das
sociedades unipessoais, todavia entende-se que realmente seria ne-
cessária a criação da limitação de responsabilidade para o empresário
individual.
No Brasil existem dois projetos de lei sobre a limitação de res-
ponsabilidade do sujeito unipessoal. O Projeto de Lei nº 3.667/2004,
de redação de Luiz Carlos Hauly, trata da criação das sociedades uni-
pessoais originárias no Brasil, regulamentada por apenas um artigo.

Art. 13. A sociedade limitada pode ser constituída e existir regularmente


por um único sócio, que seja pessoa física residente no País.
Parágrafo único. Este dispositivo aplica-se às sociedades simples
(arts. 997 a 1.038 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, Código
Civil) e de advogados (arts. 15 a 17 da Lei nº 8.906, de 4 de julho de
1994, Estatuto da Advocacia).

Além da crítica de regular em apenas um dispositivo instituto até


aqui inexistente no Direito brasileiro, o projeto pecou especialmente ao
querer instituir uma sociedade unipessoal quando as pessoas naturais
que exerçam as atividades relacionadas já existiriam e teriam ativida-
de regularmente constituída pelo art. 966 do CCB como empresários
individuais, apenas necessitando da possibilidade de limitação de
responsabilidade. Como já destacado anteriormente, a pessoa jurídica
deve ser criada apenas quando a pessoa natural não bastar para o exer-
cício da função, o que não ocorre aqui. Como se não bastasse, nenhuma
menção faz ao ato constitutivo (se haveria ou não um contrato ou até
mesmo outra forma de ato constitutivo), além da ofensa à natureza
pluripessoal (art. 981 do CCB).
Ademais, faz menção à sociedade de advogado que, por força de
seu Estatuto responde obrigatoriamente de maneira ilimitada.33 Seria a
criação da limitação de responsabilidade de advogados individuais, mas
sem a mesma garantia às sociedades pluripessoais? Difícil crer nisto.
O projeto é completamente equivocado e demonstra verdadeira falta

33
BRASIL. Lei nº 8.906/94. “Art. 17. Além da sociedade, o sócio responde subsidiária e ilimi-
tadamente pelos danos causados aos clientes por ação ou omissão no exercício da advoca-
cia, sem prejuízo da responsabilidade disciplinar em que possa incorrer”.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
124 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

de zelo diante da extrema importância e debate na doutrina brasileira,


mais do que isto, possibilita a criação de sociedades unipessoais (que
já é absurdo) por meio de qualquer pessoa jurídica como sócia, dando
azo a verdadeiras fraudes no meio econômico. O projeto foi rechaçado
pela Comissão de Desenvolvimento Econômico pelos problemas já
aqui apresentados. O outro Projeto de Lei (nº 5.805/2005), de lavra de
Antônio Carlos Mendes Thame, cria a figura do empresário individual
de responsabilidade limitada.

Art. 3º Fica criada a figura do empresário individual de responsabilidade


limitada, enquadrado na forma do inciso II do art. 2º da Lei nº 9.841, de
5 de outubro de 1999, com responsabilidade patrimonial limitada ao
montante do capital social, o que deverá ser anotado em sua inscrição
no Registro Público de Empresas Mercantis.
§1º O empresário individual de responsabilidade limitada poderá ser
constituído pela concentração de todas as quotas da sociedade empre-
sária sob titularidade de apenas um sócio, por meio de procedimento
de conversão, perante o Registro Público de Empresas Mercantis.

Acertadamente o projeto de lei institui a figura do empresário


individual de responsabilidade limitada, contudo, o faz de modo equi-
vocado ao basear todos os argumentos como se sociedade fosse. Se não
há sociedade unipessoal, mas empresário individual, não se pode falar
em capital social que é elemento do contrato social. Da mesma forma,
não há de se falar em quotas sociais, muito menos de sócio. O projeto
de lei institui a figura do empresário individual de responsabilidade
limitada, mas equivocadamente regula a sociedade unipessoal de res-
ponsabilidade limitada.
No Brasil, um dos motivos que impulsionam a ilusória aceitação
das sociedades unipessoais está no fato do senso comum já admitir como
pessoas jurídicas empresários individuais. Contudo, tal personalidade
é ficção gerada pelo Direito Tributário para os seus exclusivos fins, não
sendo acatada pelos demais ramos do Direito, mas apenas pelo senso
comum e vulgar.

AÇÃO DE INDENIZAÇÃO – LEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM


– COMERCIANTE – PESSOA FÍSICA E FIRMA INDIVIDUAL – AUSÊN-
CIA DE DISTINÇÃO ENTRE AMBAS – PERSONALIDADE JURÍDICA
INEXISTENTE – A firma individual é a expressão da personalidade
do comerciante, mas nem por isso dele se distingue, uma vez que o
comerciante individual não constitui pessoa jurídica, não havendo,
portanto, separação entre o patrimônio pessoal do titular e o patrimônio

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JOSÉ BARROS CORREIA JUNIOR
EMPRESÁRIO INDIVIDUAL COM RESPONSABILIDADE LIMITADA – APROXIMANDO O DIREITO ...
125

da empresa. Apenas para efeitos tributários tem-se empregado a denominação


pessoa jurídica, por mera ficção, o que é impróprio, visto que não há distinção
entre a pessoa física ou natural do empresário e a sua firma individual. Como
a empresa individual não tem personalidade jurídica própria e indepen-
dente da pessoa de seu titular, eventual irregularidade na representação
processual de uma delas deve ensejar as providências previstas no
art. 13 do CPC, não sendo o caso de extinção do processo por ilegitimi-
dade ativa ad causam, porque se trata, na verdade, de uma única pessoa.34

No intuito único de esquematizar a cobrança de tributos, o Direito


Tributário criou a ficção da personalidade jurídica para figuras jurídicas
que em inúmeras vezes sequer seriam sujeitos de direito, quiçá pessoas
jurídicas. É o caso dos empresários individuais que seriam pessoas
naturais (físicas) e de órgãos públicos (que sequer seriam entidades au-
tônomas ou sujeitos de direito, mas sim integrantes de pessoas jurídicas
como a União). A instituição da inscrição no CNPJ destes sujeitos, bem
como de outros que sequer seriam entes autônomos, teria mero efeito
de fiscalização e acompanhamento tributários, de receita e despesas.

Art. 39. O pedido de inscrição será formalizado por meio da FCPJ,


acompanhada:
(...)
§3º O Quadro de Sócios e Administradores – QSA – não será apresentado
nos casos de pedido de inscrição de:
I – firma mercantil individual;
II – pessoa física equiparada à pessoa jurídica;
III – órgãos públicos;
IV – autarquias;
V – fundações públicas;
VI – serviços notariais e registrais (cartórios);
VII – embaixadas, missões, delegações permanentes, consulados-gerais,
consulados, vice-consulados, consulados honorários e das unidades
específicas do Governo Brasileiro no exterior;
VIII – representações diplomáticas e consulares, no Brasil, de governos
estrangeiros;
IX – associações.35

34
MINAS GERAIS. Tribunal de Alçada. Ap. nº 0281763-4 – (29226). 4ª C. Cív., Rel. Juíza
Maria Elza, j. 8.9.1999.
35
BRASIL. Secretaria da Receita Federal. Instrução Normativa nº 2/2001.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
126 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

É por este motivo que o empresário individual tem sua inscri-


ção no CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas) bem como, por
exemplo, órgãos públicos que não seriam pessoas jurídicas, muito
menos sujeitos de direito. Observe-se que o próprio direito tributário
impõe uma fictícia personalidade jurídica ao empresário individual,
mas trata tais sujeitos como pessoas físicas em processos de execução
fiscal, responsabilizando seu patrimônio como um todo, contrariando
a autonomia patrimonial e existencial da pessoa jurídica com seus
integrantes. O empresário individual não é pessoa jurídica.
Não sendo pessoa jurídica o empresário individual, mas sim
natural ou física, verifica-se que a sua personalidade basta para o exer-
cício da atividade empresarial. Bastando para o exercício da empresa
a personalidade do empresário individual é desnecessária a criação
de sociedades unipessoais. O que em verdade se verifica é a completa
desnecessidade da criação de sociedades unipessoais, por várias razões.
A primeira delas está na já existência de um centro de direitos e deve-
res com personalidade — a pessoa natural do empresário individual.
Como mencionado, os sujeitos de direito serão personificados e não
personificados.
Neste caso, os personificados seriam os empresários individuais,
pessoas naturais que exerçam a empresa sem colaboração de capital ou
de indústria por outro sujeito. São os sujeitos regulados pelo art. 966
do CCB.36 Seriam também personificados os empresários coletivos com
registro na Junta Comercial de sua respectiva sede, ou seja, a união de
duas ou mais pessoas com a mútua colaboração de capital e/ou indústria
para o exercício da empresa (sociedade em nome coletivo, em comandita
simples, em comandita por ações, limitada e anônima). Finalmente, os
empresários coletivos sem registro também entrariam nesta classifica-
ção, porém como sujeitos de direito não personificados, como ocorre
com as sociedades em conta de participação e sociedades em comum,
dada a inexistência de um fato jurídico que lhe atribua personalidade.
Todavia, não existe no rol de empresários, sejam eles individuais,
sejam coletivos, personificados ou não, a figura da sociedade unipessoal
diante de todos os motivos aqui traçados. Para existir personalidade
jurídica, deve haver previsão normativa, o que não existe para as so-
ciedades unipessoais dada a exigibilidade da pluripessoalidade como
elementos da própria sociedade e de seu ato constitutivo. É antinômico

36
Destaque-se que o CCB usa o termo empresário para a figura individual, enquanto a cole-
tiva guardaria o termo sociedade empresária.

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JOSÉ BARROS CORREIA JUNIOR
EMPRESÁRIO INDIVIDUAL COM RESPONSABILIDADE LIMITADA – APROXIMANDO O DIREITO ...
127

dizer que existe uma sociedade unipessoal. Qual seria o seu ato consti-
tutivo, um contrato social? Impossível dada à inexistência dos contratos
consigo mesmo. Quem(Quais) seria(m) seu(s) integrante(s)? Um sócio?
Sócio de quem? Haveria uma reunião ou assembleia com apenas uma
pessoa? Pensar em sociedade unipessoal é tão forçoso quanto se falar
de família unipessoal apenas para garantir a proteção do bem de família
ao single, quando sua dignidade basta para tal proteção.
Em Portugal o Dec.-Lei nº 257/1996 nada fala sobre a forma de
constituição, apenas que a sociedade unipessoal será integrada por
pessoa singular (natural) ou coletiva (jurídica). Além disso, diz que o
sócio da sociedade unipessoal só pode integrar uma única sociedade.
Por que tal proibição se a pessoa jurídica é autônoma de seu integrante?
O pior de tudo diz respeito às decisões do sócio que “devem ser
registradas em acta por ele assinada” (art. 270º-E). A ata é documento
típico de assembleia ou reunião (órgãos claramente colegiados) e não
é admitida racionalmente em atividades individuais. A sociedade
unipessoal originária como regra constitui-se de características ver-
dadeiramente psicopatológicas, especialmente no Brasil. As únicas
possibilidades de sociedade unipessoal originária no Direito brasileiro
seriam a Empresa Pública (sociedade em que figura apenas um sócio,
pessoa jurídica de direito público interno) e a Sociedade Anônima Sub-
sidiária Integral (que teria como único sócio uma sociedade brasileira
que teria como objeto a administração de outra pessoa jurídica), ambas
situações excepcionais.
Os demais casos de unipessoalidade do Direito brasileiro seriam
supervenientes e temporários, como ocorre com a sociedade anônima
que deve reconstituir a sua pluripessoalidade até a próxima Assem-
bleia Geral Ordinária (art. 206, inciso I, alínea “d”, da Lei nº 6.404/76)
e das demais sociedades que devem fazê-lo em 180 dias (art. 1.033 do
CCB). Em ambos os casos a unipessoalidade é temporária, sob pena
de dissolução de pleno direito da sociedade.
A unipessoalidade é, então, uma exceção diante do número infin-
dável de outras possibilidades sempre pluripessoais. A desnecessidade
da sociedade unipessoal se verifica pelo argumento já trazido por José
de Oliveira Ascensão. A pessoa jurídica, que os portugueses acertada-
mente chamam de pessoas coletivas (ao menos no que diz respeito às
pessoas jurídicas de direito privado) só deve ser criada quando não
bastar a pessoa natural para a execução do ato ou atividade objetivada.
Como já existe a figura do empresário individual (pessoa natural
ou física) que com capacidade civil plena e ausência de impedimento
legal está apto a exercer profissionalmente atividade econômica

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128 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

organizada de produção e/ou circulação de bens e/ou serviços, é des­


necessária a criação da sociedade unipessoal.
A única justificativa que recairia sobre a sua criação seria a limi-
tação de responsabilidade e a possível ausência de um capital social
como parâmetro de limitação da responsabilidade. Contudo, sem aten-
tar contra técnicas e conceitos jurídicos seculares, é possível impor-se
uma limitação de responsabilidade ao empresário individual com fun-
damentos jurídicos plausíveis frente ao Direito hodiernamente posto.
Este entendimento, apesar de dominante na doutrina empre-
sarial, não foi forte o suficiente para influenciar a formação de regras
lógicas e racionais, a partir do desenvolvimento de conceitos histori-
camente construídos pelo Direito, criando-se no Brasil por força da Lei
nº 12.441/2011 a nova pessoa jurídica da Empresa Individual de Respon-
sabilidade Limitada ou EIRELI, que passará a ser analisada com rigor
no próximo item a partir de proposições que julgamos mais corretas.

4 Da necessidade da limitação de responsabilidade


para os empresários individuais37 e de sua possível
regulamentação
Como visto, o Direito português instituiu anos atrás a figura do
Estabelecimento Individual com Responsabilidade Limitada (EIRL) como
contraponto ao equívoco generalizado na Europa: as sociedades unipes-
soais. A opção foi menos equivocada que a do restante da Europa, pois
não se vinculou à claudicante ideia da sociedade unipessoal, porém,
não seria a responsabilidade limitada do estabelecimento, mas do em-
presário, uma vez que quem responderá será o sujeito, nunca o objeto.
Ocorre que até 2002 nem mesmo existia uma definição de es­
ta­belecimento no Direito positivo brasileiro, apenas na doutrina e
ju­ris­prudência. Isto induziu aqueles despreparados na matéria a
inúmeros equívocos, em especial o legislador e, consequentemente os
intérpretes também despreparados tecnicamente. O estabelecimento
é encarado em diversos dispositivos equivocadamente como o local
onde o empresário exerce as suas atividades. Outras vezes é visto
como a filial de uma atividade empresarial. Isto ocorre até mesmo em
normas recentemente emitidas, incluindo o próprio CCB que o define
em momento apropriado.

37
CAMPINHO. O direito de empresa à luz do Código Civil, p. 140.

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EMPRESÁRIO INDIVIDUAL COM RESPONSABILIDADE LIMITADA – APROXIMANDO O DIREITO ...
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Estas atecnia e imprecisão conceitual acabam por trazer às


relações verdadeira insegurança jurídica, além da adoção de teorias
equivocadas frente nossas regras, como a teoria dos perfis da empresa
de Alberto Asquini. Sem precisão terminológica, uma mera disposição
normativa, ao invés de soluções pode trazer muito mais dúvidas e gerar
novas demandas, carecendo sempre de interpretação, mesmo nas regras
mais claras.38 Teoricamente, Alberto Asquini, renomado autor italiano,
defende que a empresa se dividiria basicamente em quatro perfis: sub-
jetivo, objetivo-patrimonial, corporativo e objetivo-funcional.39
Pelo perfil subjetivo a empresa seria o sujeito das relações empre-
sariais, portanto, nesta acepção a palavra empresa poderia participar
de quaisquer relações jurídicas, sendo encarada como produtor, inter-
mediário, fornecedor, empregador etc. Esta é a visão mais vulgarizada
da empresa, influindo até mesmo na legislação vigente. A CLT, por
exemplo, em seu art. 2º define empregador como “a empresa, individual
ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite,
assalaria e dirige a prestação pessoal de serviços”. Por uma infelicidade,
a nova Lei de Falência (Lei nº 11.101/2005) incorre em várias oportu-
nidades no mesmo erro, confundindo função com sujeito e vice-versa,
mesmo após o Código Civil ter trazido aparente paz ao tema.
Neste sentido, a empresa seria realmente um sujeito. Entretanto,
isto acaba por ir de encontro à evolução conceitual do Direito empresa-
rial. Disto surge um questionamento: se a empresa é o sujeito da relação
empresarial, o que ou quem seria o empresário? Na verdade, para que
se tenha uma precisão terminológica melhor e alcance o Direito o pan-
teão científico, a empresa não pode ser sinônimo de empresário. Como
se verá adiante, o sujeito único da relação empresarial é o empresário,
individual ou coletivo, e não a empresa. Também será visto que não
se pode confundir empresário com a figura do sócio, mero investidor.
Sob o prisma legal, o Código Civil, em seu art. 966, assim dispõe:
“considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade
econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de
serviços”. Observe-se que o empresário será o sujeito de direito que,
por meio do estabelecimento, exercerá a empresa. Para um melhor en-
tendimento do conceito, é necessário lembrar-se do conceito de sujeito
de direito, ou seja, todo ente personificado ou não capaz de ter direito e
deveres. Poderia, então, o empresário ser individual, ou pessoa natural

38
Cf. PERLINGIERI, Pietro. Direito civil contemporâneo.
39
ASQUINI. Perfis da empresa. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro,
p. 109-126.

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130 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

que faça da empresa profissão habitual; além do empresário coletivo que


seria pessoa jurídica, quando registrado (sociedade em nome coletivo,
sociedade em comandita simples, sociedade em comandita por ações,
sociedade limitada e sociedade anônima), ou sujeito não personificado
quando sem registro de atos constitutivos (sociedade em comum e
sociedade em conta de participação).
Do conceito legal retira-se parte dos requisitos para a qualifica-
ção do empresário individual (pessoa natural). Para a caracterização
do empresário individual destacam-se duas formas de requisitos: os
de qualificação e os de regularidade. Seriam requisitos de qualificação
aqueles que teriam o condão de caracterizar cumulativamente o em­
presário individual. Por sua vez, requisito de regularidade não define
o empresário, mas, como a expressão indica, define se o exercício da
empresa está ocorrendo em conformidade ou não com a norma jurídica.
Portanto, são requisitos para a qualificação do empresário indi-
vidual: o exercício de atividade econômica organizada, o profissiona-
lismo e a produção e/ou a circulação de bens e/ou serviços (art. 966 do
CCB). Acresça-se a tais requisitos de qualificação para o empresário
individual a capacidade civil plena (art. 972 do CCB). Por outro lado,
os de regularidade seriam o registro em uma das Juntas Comerciais e
a ausência de impedimentos legais (art. 967 e 972 do CCB).
A empresa também não pode ser confundida com o estabele-
cimento, ou seja, com o perfil objetivo-patrimonial. Para Asquini, a
empresa seria também o conjunto de bens usado pelo empresário para
o exercício de sua função. Isto, da mesma forma que no perfil subjetivo,
acarreta insegurança jurídica e imprecisão terminológica.
Hodiernamente, então, o perfil patrimonial da empresa seria na
verdade o estabelecimento e não ela própria. Como define o próprio
Código Civil, em seu art. 1.142, estabelecimento seria “todo complexo
de bens organizados, para exercício da empresa, para empresário, ou
por sociedade empresária”, ou seja, o patrimônio usado pelo empre-
sário para exercício da empresa. Assim, da mesma forma que se exige
precisão terminológica para a definição do empresário, não se pode
confundir empresa com estabelecimento. Reserve-se, por ora, o tema
estabelecimento para destaque futuro.
Pelo perfil corporativo ou institucional, a empresa seria uma
instituição no sentido de cooperação entre todos os seus atores, em
especial, empregados e empregadores. No Brasil, este perfil não é facil-
mente reconhecido, como ocorre nas empresas europeias, em especial
italianas, havendo uma colaboração muito mais presente, especialmente
a partir da segunda grande guerra.

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EMPRESÁRIO INDIVIDUAL COM RESPONSABILIDADE LIMITADA – APROXIMANDO O DIREITO ...
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Não sendo sujeito, patrimônio ou mesmo corporação, o que


seria a empresa então? O perfil que realmente reflete a empresa é o
funcional. Como já discutido, o direito não teve êxito em definir o que
seria a relação comercial, muito menos a empresa, quem o fez de modo
correto foi a ciência econômica. Para as ciências econômicas, empresa é
a organização dos fatores de produção de bens ou de serviços, ou, no
dizer do Código Civil, atividade econômica organizada de produção
e circulação de bens ou de serviços.
Infere-se, portanto, que a empresa consiste no exercício da ativi-
dade economicamente organizada pelos empresários, sem, no entanto,
confundir-se com o empresário individual, com a sociedade empresária
ou mesmo com o estabelecimento. A relação entre eles deve ser simbi-
ótica, pois não existe empresário sem empresa ou mesmo sem estabe-
lecimento, e vice-versa. O conceito de um depende da caracterização
do outro, contudo, não são nem devem ser passíveis de confusão. Em
respeito e defesa a Alberto Asquini, apesar das críticas aqui tecidas, o
seu trabalho faz uma constatação conforme a localização temporal e
geográfica vivida por ele, servindo hoje de contributo para a evolução
daqueles conceitos, não querendo este texto desmerecê-lo, muito pelo
contrário, tendo grande função didática.
O que se observa é que a precisão terminológica deveria vir do
legislador para que a doutrina e a jurisprudência melhor interpretassem
a regra, dirimindo demandas e gerando segurança jurídica que são fins
primordiais do Direito. O Código Civil, mais especificamente o livro do
Direito Empresarial, procurou pôr fim a tais dúvidas, porém, o legisla-
dor nem sempre tem por base as suas próprias criações, gerando novas
normas com equívocos do passado, especialmente pelas expressões
vulgarmente empregadas. Ao contrário de clareza e precisão técnica, a
qualidade do nosso Legislativo tem sido questionada diariamente pelos
juristas, não só pela falta de boa técnica legislativa, como também no
conteúdo antinômico e antijurídico de nossas regras.
Em verdade, o estabelecimento empresarial é a reunião de bens e
serviços necessários ao exercício da atividade empresarial. Observe-se
que estabelecimento, ao contrário do que ocorre com o entendimento
vulgar e do próprio CCB em seu art. 75, §1º, não é o local onde o em-
presário exerce a empresa, mas sim um patrimônio afetado, ou seja, um
complexo de bens destinados ao exercício de uma atividade específica,
qual seja, a empresa.
Da mesma forma não se pode afirmar de modo peremptório
que o estabelecimento seria meramente o “patrimônio do empresá-
rio”. Quando se refere a empresários coletivos, isto pode ser encarado

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132 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

como uma verdade, pois o patrimônio social40 é todo o complexo de


bens usado pela sociedade para exercício da empresa — ou seja, todos
os seus bens. Por outro lado, em visão clássica, o patrimônio do em-
presário individual não se restringe apenas ao estabelecimento, mas
a todos os seus bens, uma vez que é pessoa natural e seu patrimônio
certamente se dividirá entre bens de uso civil e de uso empresarial, in
casu, o estabelecimento. Com isso, a residência do empresário compõe
o seu patrimônio sem, entretanto, constituir o estabelecimento. Hoje,
porém, tem surgido nova visão que substituiria a ideia de patrimônio
pela de titularidade, possibilitando que um mesmo sujeito, em face da
várias titularidades, tivesse um fracionamento patrimonial. Todavia,
em ambas as situações se resolveria o problema pela ideia de estabe-
lecimento como um complexo de bens afetados, ou seja, destinados
ao exercício de uma atividade específica. Eros Roberto Grau defende
existir inúmeras formas de propriedade, entre elas duas se destacam a
propriedade estática e a propriedade dinâmica.41
A primeira é a mais conhecida, bastando para a sua constatação
a análise do bem sem inseri-lo em um contexto ativo, a dinâmica seria
o contrário, somente seria visível com o exercício de uma atividade,
como ocorre com os bens de produção, consequentemente, com o
estabelecimento. Analisa-se o bem e sua propriedade em si, pelo que
são e a quem se relacionam. Esta propriedade tem como base a análise
dos bens e sua relação ao seu proprietário independentemente do uso
que lhe seja dado.
Assim, um veículo analisado estaticamente não seria configurado
como estabelecimento senão após a análise da escrituração do empre-
sário ou pelo registro do automóvel. Por sua vez, o mesmo veículo,
ao realizar as frequentes atividades da produção ou circulação de um
determinado empresário, indubitavelmente seria considerado parte
integrante de um estabelecimento, mesmo sem constar da escrituração
empresarial. A propriedade dinâmica, assim, se refere ao domínio dos
bens visto em dinamicidade. Os bens que compõem o estabelecimen-
to, por exemplo, só podem ser assim vislumbrados quando vistos em
dinamicidade.

Art. 1.142. Considera-se estabelecimento todo complexo de bens


organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade
empresária.

40
Não confundir com o capital social que é virtual, quando o patrimônio social é real.
41
GRAU. A ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica, p. 257 et seq.

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EMPRESÁRIO INDIVIDUAL COM RESPONSABILIDADE LIMITADA – APROXIMANDO O DIREITO ...
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O estabelecimento empresarial é uma unidade de bens que serve


ao empresário no exercício de sua atividade empresarial. Não pode, en-
tretanto, impor-se uma limitação de responsabilidade a ele, pois, sendo
ele objeto, a responsabilidade (ilimitada ou limitada) será atribuída ao
sujeito de direito. Como visto, o sujeito de direito da atividade empre-
sarial é o empresário, não a empresa, muito menos o estabelecimento,
cabendo a limitação de responsabilidade ao empresário ou ainda aos
sócios também como sujeitos.
Com isso, ao contrário do adotado originariamente pelo Direito
português, não se pode impor uma limitação de responsabilidade a
um patrimônio. Duas razões se destacam contra isto, a primeira é o
fato de o sujeito empresarial ser o empresário, não o estabelecimento,
portanto, quem deve responder ou não de maneira limitada seria o
empresário; a outra razão seria o entendimento clássico da indivisibi-
lidade patrimonial.42
Pela teoria clássica patrimonial, não existiria, assim, um esta-
belecimento individual de responsabilidade limitada e, pela moderna
teoria da titularidade e dos sujeitos de direito, quem responderia se-
riam estes e não aquela. Na verdade o principal problema é a quem se
atribui a responsabilidade, ou seja, a sujeito, nunca a objeto. Seria um
equívoco de técnica jurídica quase tão grande quanto a criação de uma
sociedade unipessoal. Quem responde — limitada ou ilimitadamente
— é o sujeito, nunca o objeto. Estes serviriam à responsabilização, não
seriam responsabilizados. Vale lembrar que o empresário é o sujeito de
direito que assume responsabilidade direta pelos riscos da atividade
empresarial.43
Destarte, dada a existência do empresário individual como
pessoa natural que basta para o exercício da empresa, verifica-se a
completa desnecessidade de uma sociedade unipessoal ou mesmo da
criação de “novas” entidades, como ocorreu com partidos políticos,
instituições religiosas e hoje a EIRELI. Mas como impor uma limitação
de responsabilidade ao empresário individual sem que ele tenha um
capital social sobre o qual se imporia a limitação?

42
Hoje já discutido pela substituição da ideia de patrimônio por titularidade com a possibi-
lidade da divisibilidade patrimonial, como se viu pela ideia de patrimônio afetado e não
afetado. Cf. OLIVA. Patrimônio separado.
43
Vale também lembrar que a responsabilidade dos sócios, que apesar de sujeitos não são
empresários, mas investidores, será sempre subsidiária e indireta, salvo quando aplicada
a teoria da desconsideração da personalidade jurídica à sociedade que integre.

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O equívoco do Direito português foi impor ao estabelecimento


características subjetivas típicas do empresário, mas nada obsta sobre
o fato de o empresário responder limitadamente ao estabelecimento,
sem a necessidade da sociedade unipessoal, muito menos ofender a
indivisibilidade patrimonial, como se verá adiante. Sendo o estabele-
cimento a fração patrimonial de características dinâmicas, ou mesmo
o patrimônio de afetação ou mera titularidade diferenciada daquela de
uso civil, a todos os bens que se desse uso empresarial configurariam
estabelecimento e sobre eles responderia o empresário individual que
adotasse responsabilidade limitada. Ao contrário do que hoje se aplica à
maioria dos empresários individuais, o empresário que assim quisesse
não mais responderia com todo o seu patrimônio, mas apenas com a
fração dinâmica, afetada, de uso empresarial.
Em face dos conceitos adotados pela Lei nº 10.406/2002 (Código
Civil brasileiro), muito mais fácil será a adoção de um empresário
individual com responsabilidade limitada ao estabelecimento empre-
sarial do que a de uma sociedade unipessoal ou da EIRELI como nova
entidade jurídica. Infelizmente, parte dos juristas levados pelo Direito
comparado acabam tendo ideias que não se amoldam com a nossa
cultura jurídica, a não ser a fórceps.
É o que ocorreu na Alemanha com a adoção das sociedades
unipessoais. Lá seria muito mais complexa a criação de um empresá-
rio individual com responsabilidade limitada do que das sociedades
unipessoais limitadas (Einmann Gesellsschaft mit bescharankter Haftung).
Da mesma forma ocorreu com a França e a loi relative à l’entreprise
unipersonnelle à responsabilité limitée.
No Brasil a doutrina e a jurisprudência dominantes têm repe-
lido na medida do possível tal entendimento, restringindo a ideia de
sociedade aos sujeitos associativos. Esta foi a conclusão da V Jornada
de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal que, no Enunciado
nº 468, ao interpretar os arts. 44 e 980-A do CCB, asseverou que “a em-
presa individual de responsabilidade limitada (EIRELI) não é sociedade, mas
novo ente jurídico personificado”. Discordamos apenas da necessidade
de entender a EIRELI como novo ente jurídico personificado, quando se
encaixa perfeitamente na ideia de pessoa natural, apenas atribuindo-lhe
responsabilidade limitada ao estabelecimento empresarial.
Como visto, aqui seria mais complexa a criação das sociedades
unipessoais originárias e permanentes do que a imposição da limitação
de responsabilidade ao estabelecimento (instituto já existente no nosso
Direito) para o empresário individual (também já existente). Soma-se a
isto a necessidade da criação desta limitação de responsabilidade para

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o empresário individual, especialmente para os pequenos empresários


que representam, segundo dados do IBGE, 57,2% dos empregos criados
no Brasil, além de representarem 20% do PIB brasileiro e 99,2% dos
empreendimentos registrados no país. A necessidade da limitação de
responsabilidade se encontra na necessidade do fomento da Adminis-
tração Pública para atividades empresariais que não só gerem riquezas
para os seus executores (empresários), mas que também gerem efetiva-
mente tributos, postos de trabalho e benefício à sociedade.

O fomento económico consiste numa actividade administrativa de satis-


fação de necessidades de caráter público, protegendo ou promovendo
actividades de sujeitos privados ou outros que directa ou indirectamente
as satisfaçam. A actividade de fomento situa-se no terreno das relações
entre a Administração e os particulares (...). O objecto do fomento
económico consiste pois no apoio prestado pela Administração sob
diversas formas às empresas, nomeadamente às empresas privadas,
sujeito económico principal.44
No plano económico e na medida em que varia de país para país o grau
de concentração empresarial, a proteção às P. M. Es. (pequenas e médias
empresas) é o garante do volume da oferta global (...). Do mesmo modo
e no plano social é de grande relevo o seu papel na efectivação do pleno
emprego e na regionalização da oferta de trabalho.45

É por este motivo que a Constituição Federal vigente (art. 170) e


o Código Civil de 2002 (art. 970) privilegiam a constituição de pequenas
empresas, especialmente por investidores hoje desmotivados pelos
riscos inerentes à atividade econômica.
Existindo a regulamentação do empresário, é mais prático que
à criação de um instituto novo, como ocorreria com as sociedades
unipessoais e a EIRELI como novo sujeito, bastaria a fixação do direi-
to à limitação de responsabilidade a ser devidamente registrado pelo
empresário antes do início de suas atividades (art. 967 do CCB) ou pela
transformação do registro já existente nas Juntas Comerciais.
A limitação de responsabilidade recairia não sobre um capital
social, mas sobre o estabelecimento. Seria, portanto, a mera limita-
ção de acesso dos credores daquele empresário no exercício da sua
atividade empresarial aos bens afetados como estabelecimento. Tal
condição não seria uma novidade em nosso Direito nem mesmo para

44
MONCADA. Direito econômico, p. 493.
45
Idem, p. 513.

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136 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

os defensores da clássica teoria da unidade patrimonial, pois nossa


legislação já prevê proteção à fração patrimonial quando institui o
bem de família como patrimônio mínimo existencial. O mesmo ocor-
reria com a limitação de responsabilidade sobre o estabelecimento
do empresário individual (pessoa natural) com o acesso dos credores
apenas aos bens empresarialmente afetados, protegendo aqueles de
uso não empresarial, diferindo apenas dos bens de família por estes
terem caráter eminentemente existencial, enquanto o estabelecimento
teria uso eminentemente econômico.
Com isso, afastar-se-ia toda a utilização de “sociedades fantas-
mas” e “sócios laranjas” com o objetivo de limitar a responsabilidade
do sócio efetivamente investidor, pois este constituiria empresa sem
a necessidade de sócios que poderiam até mesmo lhe trazer prejuízos
futuros, como a penhora de quotas por dívidas pessoais (como normal-
mente ocorre), entre outros inconvenientes. Daí a grande importância
para a criação de limites à responsabilidade das obrigações dos empre-
sários individuais (pessoa natural) ao estabelecimento.
Infelizmente o Brasil perdeu uma grande oportunidade de re-
gular corretamente, ao menos para as pequenas empresas, a limitação
da responsabilidade do empresário individual. O projeto de lei com-
plementar que resultou na Lei Complementar nº 123/2006 continha em
seu art. 69 o germe para um intento que o mundo inteiro está bem ou
mal alcançando, mas que nosso país vetou.

Do Empreendedor Individual de Responsabilidade Limitada


Art. 69. Relativamente ao empresário enquadrado como microempresa
ou empresa de pequeno porte nos termos desta Lei Complementar,
aquele somente responderá pelas dívidas empresariais com os bens e
direitos vinculados à atividade empresarial, exceto nos casos de desvio
de finalidade, de confusão patrimonial e obrigações trabalhistas, em que
a responsabilidade será integral.

Os motivos do veto se basearam única e exclusivamente na


impossibilidade do Estado em arrecadar efetivamente seus tributos,
sem a preocupação com o fomento de investimento no país que, con-
sequentemente, geraria novos tributos, mais empregos e riquezas para
as próximas décadas.

Na relação tributária, que é o que interessa para o presente estudo,


verifica-se, logo em uma primeira análise, a ocorrência de afronta
ao texto constitucional. Com efeito, dispõe o art. 146, II, a, in fine, da
Constituição Federal de 1988 que cabe à Lei Complementar “estabelecer

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normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre


(...) contribuintes”. Ora, o Código Tributário Nacional, que regulou toda
a matéria relativa à responsabilidade tributária (arts. 128 a 138), restou
recepcionado com eficácia passiva de Lei Complementar, atendendo
pois, ao comando acima transcrito. Não se pode, agora, por meio de
norma que sequer tem como objeto principal dispor acerca de normas
gerais em matéria tributária, alterar a disciplina já instituída pelo CTN.
Tal pretensão afigura-se de todo inoportuna, podendo ser até coimada
de inconstitucional.

Esdrúxulos foram os argumentos do veto que se baseou em


arrecadação tributária imediata sem ter em mente uma política econô-
mica a médio e longo prazo, prejudicando efetivamente o crescimento
econômico da nação. Observa-se que o veto padece de ausência de
fundamentos jurídicos, pois se preocupa pelo fato de a responsabilidade
do empresário individual não estar clara, em especial aos seus débitos
trabalhistas, consumeristas, previdenciários e tributários.

Entretanto, restou especial preocupação em relação à interação do


dispositivo proposto no Projeto de Lei em análise com as normas
relacionadas à responsabilidade do empresário, em especial aquelas
atinentes às responsabilidades tributárias, trabalhistas, previdenciá-
rias e frente ao consumidor, dentre outras, as quais deverão merecer
análise mais profunda. De fato, os contornos dados à responsabilização
do empresário restaram dúbios, em vista das expressões “desvio de
finalidade, de confusão patrimonial e obrigações trabalhistas, em que
a responsabilidade será integral”.

É até correta a preocupação com a não excepcionalidade de


relações de consumo, pois, tal qual o trabalhador, o consumidor é via
de regra parte vulnerável na relação jurídica e carece de uma proteção
maior, como determina o art. 170 do texto constitucional vigente, mas
não passa disto a verdade da preocupação. Não se justifica o veto pela
ausência de regulamentação de débitos trabalhistas que foram expressa-
mente enfrentados pelo projeto de lei. Da mesma forma não se justifica
o veto por dubiedade das expressões “desvio de finalidade”, “confusão
patrimonial” e “responsabilidade integral”, pois são expressões já ado-
tadas pelo Direito brasileiro no art. 50, do CCB, sem maiores críticas.
O veto se fundamenta pela preocupação da União com a queda
imediata na arrecadação, sem, contudo, preocupar-se com o futuro
da economia, dos trabalhadores e da própria arrecadação de tributos.
Verifica-se pelo veto do art. 69 do projeto de lei complementar (hoje
LC nº 123/2006) a completa inexistência de uma política de Estado,

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138 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

mas política de governo, o que se configura como extremamente no-


civa ao futuro do país. A limitação de responsabilidade, vale repetir,
é instrumento habilíssimo para o crescimento econômico-empresarial
do país, especialmente para os pequenos investidores que vivem hoje
no informalismo ou que fraudam a norma jurídica com a constituição
de “sociedades fantasmas”, com “sócios laranjas”.
A despeito de todas as tentativas de se atribuir a responsabilida-
de limitada aos empresários individuais, especialmente aos pequenos,
somente com a Lei nº 12.441/2011, que altera o CCB/2002 a partir de
8.1.2012, é que finalmente esse objetivo foi alcançado. Primeiramente ela
institui a figura da “empresa individual de responsabilidade limitada”
na lista das pessoas jurídicas, entrando em grave conflito com o conceito
de empresa adotado pela doutrina majoritária e do próprio CCB pela
interpretação sistemática dos seus arts. 966 e 1.142, que definem em-
presa como função, não como sujeito. Havendo a figura do empresário
como sujeito, seria desnecessário outro sujeito sob as vestes de uma
empresa — especialmente pelo conceito desta adotado pelas ciências
econômicas e jurídicas. Assim, a adição de mais uma forma no rol das
pessoas jurídicas é um equívoco proveniente do uso vulgar da expressão
empresa, e mais ainda de pessoa jurídica (inciso VI do art. 44 do CCB).
É comum se tratar pessoas naturais e até mesmo órgãos como pessoas
jurídicas, tudo para atender a interesses tributários pragmáticos.
Além disso, a lei procura regular este novo “sujeito” com um
novo título (I-A) para o Livro do Direito de Empresa e, apesar da
postura correta de colocar fora do título II que cuida dos empresários
coletivos, ou seja, as sociedades, faz inúmeras referências a termos de
uso exclusivamente social, gerando mais confusão do que clareza ao
intérprete. É o caso do caput do art. 980-A, que relaciona a existência de
um “capital social” e que este esteja “integralizado”. Se não é sociedade
e está fora do seu título, outros termos deveriam ser empregados que
não capital social e integralização.

Art. 980-A. A empresa individual de responsabilidade limitada será


constituída por uma única pessoa titular da totalidade do capital social,
devidamente integralizado, que não será inferior a 100 (cem) vezes o
maior salário-mínimo vigente no País.

O mesmo se dá com seus parágrafos, ao informarem que a empre-


sa individual de responsabilidade limitada teria firma ou denominação
social, no lugar da firma individual caracterizada pelo nome civil do
empresário individual, que apenas seria seguida da expressão EIRELI

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como indicativo da limitação de responsabilidade (§1º), tal qual ocorre


com os Microempreendedores Individuais (MEI), os Microempresários
(ME) e os Empresários de Pequeno Porte (EPP). Observe-se que nestes
casos não há hoje mais dúvida que tais empresários sejam pessoas
naturais com o uso de firma individual.
Para piorar a situação, a Presidência da República no uso de seu
poder de veto acabou vetando o §4º que ficaria incluso no art. 980-A.
O dispositivo vetado dispunha que “somente o patrimônio social da
empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de respon-
sabilidade limitada, não se confundindo em qualquer situação com o
patrimônio da pessoa natural que a constitui, conforme descrito em sua
declaração anual de bens entregue ao órgão competente”.
A justificativa do veto seria que “não obstante o mérito da
proposta, o dispositivo traz a expressão ‘em qualquer situação’, que
pode gerar divergências quanto à aplicação das hipóteses gerais de
desconsideração da personalidade jurídica, previstas no art. 50 do
Código Civil. Assim, e por força do §6º do projeto de lei, aplicar-se-á à
EIRELI as regras da sociedade limitada, inclusive quanto à separação do
patrimônio”.46 Tão sofrível quanto o texto de lei é a justificativa de veto
que passa a criar a desconsideração da personalidade natural, além de
deixar que a EIRELI tenha um limite de responsabilidade, sem, todavia,
atribuir quais seriam estes limites. Mesmo sendo o texto equivocado
pelo uso de termos sociais, vetar o dispositivo foi o mesmo que limitar
a responsabilidade ao nada, forçando ainda mais o uso de técnicas e
métodos hermenêuticos pelos juristas.
Não sendo a EIRELI pessoa jurídica, mas tão somente o empre-
sário individual (pessoa natural) com responsabilidade limitada, não
seria possível falar em desconsideração da personalidade jurídica, mas
no máximo na criação de teoria análoga. O objetivo da teoria da descon-
sideração é de fato afastar os efeitos da personalidade jurídica, dentre
eles a autonomia patrimonial e existencial, assim, caberia a criação de
teoria análoga como a desconsideração da limitação de responsabili-
dade, alcançando-se os mesmo objetivos. É óbvio que nem a doutrina,
nem a jurisprudência admitiriam que a limitação de responsabilidade
do empresário individual se sobrepusesse à licitude, à boa-fé e à função
social negocial.
Apesar de também sofrível pela clara indicação de um patri-
mônio social inexistente, este parágrafo trazia no seu texto a base de

46
BRASIL. Presidência da República. Mensagem de veto nº 259, de 11.7.2011.

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incidência da responsabilidade limitada, passando o texto de lei após o


veto da Presidência a criar a responsabilidade limitada, sem, contudo,
informar quais seriam os parâmetros destes limites. O veto deveria
ser na verdade sobre o todo da Lei nº 12.441/2011, encaminhando-se
outro projeto (substitutivo, correto agora) para nova tramitação. Como
já mencionado, acertadamente (ao menos em parte) a V Jornada de
Direito Civil do CJF emitiu dois enunciados que determinavam que a
EIRELI seria não uma nova sociedade (unipessoal) como também que
seria integrada apenas por pessoas naturais.

Enunciado CJF nº 467. Art. 980-A. A empresa individual de responsabi-


lidade limitada só poderá ser constituída por pessoa natural.
Enunciado nº 468. Arts. 44 e 980-A. A empresa individual de responsabilidade
limitada (EIRELI) não é sociedade, mas novo ente jurídico personificado.

Da mesma forma, o CJF entendeu pelo Enunciado nº 471 que


“é inadequada a utilização da expressão ‘social’ para as empresas
individuais de responsabilidade limitada”. Por este motivo o Departa-
mento Nacional de Registro do Comércio (DNRC) emitiu a Instrução
Normativa nº 117/2011, para regular a figura da EIRELI para fins de
registro perante as Juntas Comerciais em cada estado e atribuindo a
legitimidade para seu registro apenas às pessoas naturais.
Infelizmente, por interesse de uma consultoria americana que
pretendia desconstituir sociedade limitada já existente no Brasil para
constituir EIRELI, que teria como integrante a sociedade existente
nos EUA, moveu um mandado de segurança com pedido de liminar
contra o Presidente da Junta Comercial do Rio de Janeiro por conta da
IN nº 117/2011 do DNRC, aproveitando-se das falhas do legislador.
Para a Juíza Gisele Guida de Faria, da 9ª Vara da Fazenda Pública, que
concedeu a liminar, a IN nº 117/2011 trouxe restrição não prevista na
Lei nº 12.441/2011, concluindo que “decorrendo, pois, do princípio
constitucional da legalidade a máxima de que ‘ninguém é obrigado a
fazer, ou deixar de fazer algo, senão em virtude de lei’, não cabia ao
DNRC normatizar a matéria inserindo proibição não prevista na lei”.47
Quatro críticas surgem contra esta decisão. A primeira delas
está na capacidade normativa que tem o DNRC em função da Lei
nº 8.934/94 e do Decreto nº 1.800/96, que atribuem ao órgão poder de
criar normas procedimentais, incluindo aí a legitimidade do sujeito

47
RIO DE JANEIRO. 9ª Vara da Fazenda Pública Estadual. Processo nº 0054566-71.2012.8.19.0001.

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que requeira administrativamente o registro de uma EIRELI, in casu, as


pessoas naturais. A decisão acima mencionada deixou de levar em conta
que texto de lei federal atribui ao DNRC competência para normatizar
questões relacionadas ao registro empresarial e, portanto, poderia de
fato regulamentar o novo instituto, coisa não feita pelo legislador que
criou mais dúvidas que soluções no caso concreto. O próprio judiciário
tem, em inúmeras oportunidades, restringido por necessidade o texto
de lei pelas mazelas do nosso legislativo.

Art. 4º O Departamento Nacional de Registro do Comércio (DNRC),


criado pelos arts. 17, II, e 20 da Lei nº 4.048, de 29 de dezembro de 1961,
órgão integrante do Ministério da Indústria, do Comércio e do Turismo,
tem por finalidade: (...)
VI – estabelecer normas procedimentais de arquivamento de atos de firmas
mercantis individuais e sociedades mercantis de qualquer natureza;

A segunda crítica à decisão está no uso da EIRELI para objetivos


vedados pela legislação brasileira. A Lei nº 6.404/76, no seu art. 251,
regula a existência da sociedade subsidiária integral impondo que esta
forma de “companhia pode ser constituída, mediante escritura pública,
tendo como único acionista sociedade brasileira”. Destarte, admitir
que sociedade estrangeira pudesse criar novo negócio individual no
Brasil seria o mesmo que fraudar os interesses do legislador que veda
a existência no Brasil de pessoas jurídicas controladas unicamente por
outra pessoa jurídica estrangeira.
É fato que a formação de sociedade subsidiária integral apenas
por sociedade brasileira perdeu sua importância como o passar das
últimas décadas, podendo muito bem ser deixada de lado. Com isso,
em vez de possibilitar a criação de uma EIRELI por pessoa jurídica,
melhor seria a reforma da Lei nº 6.404/76 para permitir sociedade
subsidiária integral por pessoas jurídicas nacionais ou estrangeiras.
Constituir a EIRELI por pessoa jurídica é esvaziar o principal objetivo
da Lei nº 12.441/2011, qual seja, trazer responsabilidade limitada aos
empresários individuais (pessoas naturais) que não tinham esta garan-
tia e eram forçados a criar “sociedades laranjas” para atender a este
objetivo. Outras opções existem às pessoas jurídicas.
A terceira crítica vem das próprias regras da EIRELI, que in-
cluem o §2º do art. 980-A, fazendo clara referência ao uso deste novo
instituto do nosso Direito por pessoas físicas ao afirmar textualmente
que “a pessoa natural que constituir empresa individual de responsabi-
lidade limitada somente poderá figurar em uma única empresa dessa

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modalidade”. Neste ponto, a abertura que se daria seria pelo §3º e a


dissolução da sociedade por ausência de pluripessoalidade, ficando o
sócio remanescente como empresário individual, mesmo quando fosse
pessoa jurídica. Todavia, atentar-se-ia aos objetivos da Lei nº 12.441,
que seria a proteção dos empresários individuais e a não criação de
sociedades unipessoais como de fato ocorreria.48
Por fim, a quarta crítica está no fato de que não pode órgão res-
tringir o texto de lei (mesmo quando tiver competência originada de
lei para tanto). A norma jurídica não é unicamente proveniente de leis
vindas de um congresso que a cada dia tem se mostrado mais inepto
e mais passível de críticas morais. A norma jurídica tem várias facetas
e mesmo nas mais insignificantes tem força imperativa, tal qual tem
ocorrido com a Portaria do Ministério do Trabalho nº 373/2011 que in-
troduziu mudanças em relação à regulamentação do ponto eletrônico
e tem afligido vários empregadores com o dever de mudança em seus
pontos. O mesmo se aplica às Instruções Normativas do DNRC, que
não podem ter função unicamente explicativa, sob pena de esvaziar a
sua função normativa já aqui analisada.
Outro problema da regra da EIRELI está na limitação a 100 vezes
o maior salário mínimo vigente no país. Primeiramente é sofrível ad-
mitir tal limitação em um país em que mais da metade dos empregos
e a quase totalidade dos negócios se restringem a pequenas atividades
empresariais, esvaziando mais uma vez os objetivos da lei que preten-
dem evitar a fraude. Se este é o objetivo legal, então seria admissíveis
as fraudes até 100 vezes o salário mínimo. Ademais, a expressão “não
será inferior a 100 (cem) vezes o maior salário-mínimo vigente no País”
se referiria a qual dos “salários mínimos” do país? Se a Constituição
vigente prevê que a existência de “salário mínimo, fixado em lei, na-
cionalmente unificado” vedando “sua vinculação para qualquer fim”,
seria impossível se falar em maior salário mínimo, exceto em caso de
menção aos pisos dos Estados que o tenham constituído. Não existe o
maior salário mínimo do país, mas o único salário mínimo do país. Além
disso, a própria regra da EIRELI usa o salário mínimo para indexação
constitucionalmente vedada.
De correto a Lei nº 12.441/2011 tem apenas a criação da limitação
de responsabilidade para um grupo de pessoas que até hoje estavam
fadadas a exercer sua atividade sem que houvesse um risco calculado
ou que tivessem que optar por atos nulos para que alcançassem este
efeito: as pessoas naturais na condição de empresários individuais.

48
CAMPINHO. O direito de empresa à luz do Código Civil, p. 285-286.

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Enquanto no Brasil se desvirtuam por completo séculos de evolu-


ção do Direito, o equívoco do Direito português foi bem menor ao impor
ao estabelecimento características subjetivas típicas do empresário, mas
teleologicamente reconhecendo que a limitação de responsabilidade dos
empresários individuais estaria relacionada ao estabelecimento e não
a um capital social ou mesmo com a criação de verdadeiras monstruo­
sidades jurídicas. Portanto, nada obsta que o empresário individual
responda limitadamente, em especial ao estabelecimento, mas que se
faça sem a necessidade da sociedade unipessoal originária e perma-
nente, muito menos de tornar a empresa um novo sujeito.
Sendo o estabelecimento a fração patrimonial de características
dinâmicas, ou mesmo o patrimônio afetado, sendo em qualquer caso
os bens que se desse uso empresarial, sobre eles responderia o empre-
sário individual que adotasse responsabilidade limitada. Ao contrário
do que hoje se aplica, o empresário não mais responderia com todo o
seu patrimônio empresarial, mas apenas com a fração dinâmica, de
uso empresarial.
Em face dos conceitos adotados pela Lei nº 10.406/2002 (Código
Civil brasileiro), muito mais fácil será a adoção de um Empresário
Individual com Responsabilidade Limitada ao Estabelecimento Em-
presarial do que a de uma sociedade unipessoal ou de uma empresa
como sujeito individual, tornando inócuos conceitos como empresa,
empresário e sociedade. Todos estes conceitos são de extrema impor-
tância para o entendimento para a lógica e cientificidade do Direito,
neste caso específico do Empresarial. A inconsistência conceitual leva a
dúvidas e ao surgimento de demandas inoportunas e que teriam fácil
deslinde pela adoção de uma postura diversa, dado o fato de que, para
a maioria dos aplicadores do Direito, a precisão terminológica ainda é
de extrema importância.
A Lei nº 12.441/2011 deveria ter instituído o empresário indivi-
dual de responsabilidade limitada que, usando de sua firma individual
seguida da expressão EIRELI, atenderia à função social da empresa e
responderia, nesta condição, de maneira limitada à parcela de patrimô-
nio reservada como estabelecimento empresarial, desde que atendesse
aos seus fins, sob pena de ver afastado este efeito. Ela resultaria da
assunção da responsabilidade limitada pelos empresários individuais
já registrados por alteração de seu registro, pela extinção de sociedades
e continuação do negócio pelo sócio remanescente ou ainda originaria-
mente pelo registro de novos empresários, sendo desnecessária a criação
de nova pessoa jurídica ou da confusão de conceitos já sedimentados
como sociedade, pessoa jurídica e empresa.

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144 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Palavras como empresa, empresário, sociedade e até mesmo


pessoa jurídica perdem sua força conceitual, não gerando mais uma
relação de causalidade ou logicidade para com seus efeitos jurídicos.
Agir de modo contrário é fazer com que os fins do pragmatismo jus-
tifiquem os meios ilógicos e irracionais adotados muitas vezes não de
maneira jurídica intencional, mas por verdadeiras falhas de uma política
legislativa efetivada por legisladores completamente despreparados
para a função e pessimamente assessorados.
Infelizmente a forma adotada pela Lei nº 12.441/2011 gerará o
ocaso dos empresários individuais caso se interprete que a EIRELI seria uma
nova pessoa jurídica ou mesmo uma sociedade unipessoal, aplicando-se
ao Direito soluções atécnicas quando as técnicas poderiam alcançar os
mesmos fins, forçando o intérprete a um trabalho dobrado. A EIRELI
como está hoje é uma completa distorção de tudo que se construiu nos
últimos séculos no Direito civil e empresarial apenas para atender às
expectativas e exigências do mercado em clara análise econômica do
Direito, quando a versão correta seria a análise jurídica da economia,
adequando as necessidades do mercado às regras jurídicas, nunca o
contrário, especialmente quando os fins a serem alcançados serão os
mesmos.
Decerto que o Direito não pode se desvincular da realidade,
separando a teoria da prática, todavia, o ideal seria a adoção de modos
de reduzir a distância ainda abissal entre o ser e o dever ser, entre a
práxis e os conceitos seculares construídos pelo Direito, sem se atentar
contra um ou outro lado desta frágil relação. Ser possível o uso dos
conceitos formados pelo Direito sem contradizê-los e fazer com que
os fins desejados pela sociedade e pelos aplicadores do Direito sejam
atendidos seria o ideal. É certo que os conceitos devem evoluir, como
de fato evoluíram, porém a evolução pressupõe uma construção lógica
e contínua dos conceitos e não uma evolução diametralmente contra-
ditória, como se tem feito no Direito empresarial.

Referências
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JOSÉ BARROS CORREIA JUNIOR
EMPRESÁRIO INDIVIDUAL COM RESPONSABILIDADE LIMITADA – APROXIMANDO O DIREITO ...
145

COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de direito comercial: direito de empresa. São Paulo: Saraiva,
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


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PARTE II

DIREITO CONTRATUAL

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DUZENTOS ANOS DE HISTORICIDADE NA
RESSIGNIFICAÇÃO DA IDEIA DE CONTRATO

SUZANA RAHDE GERCHMANN


MARCOS CATALAN

Introdução
Compositor de destinos,
Tambor de todos os ritmos,
Tempo, tempo, tempo, tempo.1

Todo artista parece ter a habilidade de captar e — para além de


simplesmente explicar — compreender2 o mundo no qual está inserto,3
revelando-o por meio de sua arte. É nessa senda que Caetano sorve
e traduz, sob a forma de poesia, um importante papel do tempo na
compreensão dos problemas havidos no cotidiano: o tempo, no mesmo
instante em que estimula a memória reproduzindo ritmos que podem
ser traduzidos pelos ouvidos humanos — atuando, assim, como um

1
“Oração ao tempo”, Caetano Veloso.
2
MORIN. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento, p. 93.
3
Prova disso é que, no “século XIX, enquanto o individual, o singular, o concreto e o histó-
rico eram ignorados pela ciência, a literatura e, particularmente, o romance — de Balzac
a Dostoievski e a Proust — restituíram e revelaram a complexidade humana”. MORIN. A
cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento, p. 91.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
150 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

mecanismo importante na sustentação da vida em sociedade —, rever-


bera em cada existir, impedindo o advento de um tempo de estagnação
que fatalmente levaria a humanidade a um trágico fim.
Tal percepção motiva as reflexões alinhavadas ao longo deste
estudo. Elas têm por premissa que, enquanto o labor do tempo flui
inexoravelmente em busca das incógnitas contidas no futuro, ao se
tornar presente, faz com que o contrato4 — figura aqui pensada como
uma ferramenta despida de qualquer essência — tenha seu significado
continuamente reconstruído,5 embora esse fenômeno nem sempre seja
percebido, pois há relógios cujos ponteiros se movimentam em distintos
ritmos,6 e há olhos que se contentam com a vida nas sombras e que não
conseguem ver que toda interpretação7 há de ser contextualizada no
tempo e no espaço.
Ancorado nessas premissas e tendo por hipótese a transformação
da ideia de contrato havida nos últimos dois séculos8 — apesar de o
senso comum imaginário nem sempre percebê-la —, este estudo tem
por escopo comprovar a assertiva formulada — mediante a adoção de
postura metodológica crítica, alinhada às correntes pós-positivistas do
Direito — por meio da exploração das mutações provocadas por ocasião
da transição do Estado Liberal para o Estado Social e, pouco tempo mais
tarde, diante da substituição desse pelo Estado Democrático de Direito.

1 O Estado Liberal e a legitimação dos pactos fáusticos


Fosse possível retratar e aprisionar as imagens de um tempo
passado há não muito tempo — um tempo, para muitos, ainda presente
—, identificar-se-ia, provavelmente, que a propagação do individualismo
— pilar sobre o qual a Modernidade foi erigida — causou a atomização
do ser.9

4
E, por óbvio, não apenas ele.
5
MARTINS-COSTA. Contratos: conceito e evolução. In: LOTUFO; NANNI (Coord.). Teoria
geral dos contratos, p. 26.
6
OST. O tempo do direito, p. 379-380.
7
GROSSI. Mitología jurídica de la modernidade, p. 59.
8
Com isso, não se afirma que, em momento anterior, o labor do tempo não tenha provocado
alterações na compreensão do tema. Ele o fez, certamente. Ocorre que, por razões como o
espaço — para transladar as ideias da mente para o papel —, o tempo — para as reflexões, redação e
correções do texto —, a eleição e leitura das fontes que informam as linhas aqui traçadas, optou-­
se por fixar, como marco temporal desta pesquisa, a ideia de contrato na Modernidade.
9
AMARAL. Individualismo e universalismo no direito civil brasileiro: permanência ou su-
peração de paradigmas romanos?. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial,
p. 73.

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SUZANA RAHDE GERCHMANN, MARCOS CATALAN
DUZENTOS ANOS DE HISTORICIDADE NA RESSIGNIFICAÇÃO DA IDEIA DE CONTRATO
151

Vislumbrar-se-ia, ademais, pelo menos a quem se permite en-


xergar, que o racionalismo — outra coluna de sustentação daquela —,
entoou, e o fez com voz de sereia, ser inaceitável que um ser humano
— racional por excelência — se vinculasse, voluntariamente, a uma
prestação que lhe pudesse ser prejudicial. Isso salvo, é claro, aquelas
indesejadas ocasiões marcadas pela mais pura inocência, pela imatu-
ridade ou demência, por momentos nos quais o pensamento transfor-
mado em vínculo jurídico foi conduzido pela maldade alheia ou, quiçá,
por demônios pessoais.
Ademais, entre outras incontáveis possibilidades, essa fotografia
registraria que a igualdade formal — mais uma das vigas de sustenta-
ção da Era das Codificações —, ao propagar a inexistência de diferenças
entre os homens,10 obnubilou a compreensão de incontáveis realidades
jurídicas.11
A luz que incide nessa imagem captada no passado revelaria,
ainda, a quem lhe dirigisse os olhos, que essa era a atmosfera na qual
o Code Napoleón foi gestado: uma codificação que se autoproclamou o
centro de um sistema jurídico que, além de proteger os interesses pro-
prietários, facultou a quem ocupasse essa situação jurídica o poder de
contratar apenas se o quisesse e, nesses casos, com quem desejasse e
quando pretendesse, atribuindo-lhe a faculdade de eleger — desde que
respeitados os limites estruturais e dogmáticos impostos pela ordem
pública, pela moral e pelos costumes vigentes à época — cláusulas
contratuais com qualquer conteúdo,12 ignorando que muitos só tinham
o próprio corpo como moeda de troca.
É relevante identificar, também, que o incomensurável prestígio
conferido ao contrato — que, a essa altura, havia transposto as fron-
teiras francesas —, nesse momento do tempo, pode ser compreendido
(a) por ter outorgado à burguesia a possibilidade de adquirir os bens

10
CAFFERA. Autonomía privada: los cambios y las tensiones del presente. In: LÓPEZ
FERNÁNDEZ; CAUMONT; CAFFERA (Coord.). Estudios de derecho civil en homenaje al
profesor Jorge Gamarra, p. 88-89.
11
FACHIN; RUZYK. Direitos fundamentais, dignidade da pessoa humana e o novo Código
Civil: uma análise crítica. In: SARLET (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito priva-
do, p. 97. “O sujeito, assim, só tem relevância como elemento da relação jurídica. Trata-se de
hábil instrumento ideológico que atende à manutenção de uma dimensão patrimonialista do
Direito Civil: se o sujeito, ainda que abstrato, é o elemento unificador do sistema, mais cedo
ou mais tarde, a sua abstração implicaria uma crise de legitimação de um direito que embora
discursivamente centrado do sujeito afasta-se da realidade concreta, sem ter olhos para as
desigualdades concretas e para a exclusão daqueles que não se inserem no modelo jurídico
de proprietários.”
12
GOMES. Novos temas de direito civil, p. 6.

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152 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

de uma aristocracia decadente e (b) por atribuir àquele nicho social em


ascensão o poder de comercializá-los com um nível de liberdade quase
absoluto, o que disparou um processo de acumulação de riqueza em
proporções outrora inimagináveis,13 mas também e, paradoxalmente, (c)
por tranquilizar os aristocratas, pois, ao emanar da livre manifestação
de vontade de quem pretendia se autovincular, garantia que os bens que
compunham o acervo patrimonial de quem quer que fosse não seriam
expropriados,14 pouco importando a funcionalidade a eles atribuída.
Assim, o fato de o princípio outrora intitulado autonomia da
vontade ter alicerce frágil15 não impediu que o senso comum imagi-
nário de liberdade existente no século XIX projetasse em cada relação
contratual a impressão da mais lídima justiça, a ponto de tratar como
justo todo contrato16 existente e válido, tão só pelo fato de ele decorrer
de um acordo de vontades, pouco importando — desde que satisfeitas
tais premissas — seu conteúdo e suas projeções sociais.
O discurso difundido na Modernidade impediu a percepção de
que a liberdade de contratar se esgotava — em incontáveis ocasiões
— na emissão das declarações de vontade conformadoras do negócio
jurídico. E isso porque, consoante o Code, as “convenções legalmente
formadas têm força de lei entre aqueles que as fizerem”,17 regra aí
aparentemente inserida por conta de influxos filosóficos cultivados
pela metafísica canônica: ao pecador está reservado o fogo do inferno.18
Aliás, essa parece ser uma das grandes responsáveis por tornar
intangível qualquer contrato oriundo da conjunção de duas (ou mais)
declarações livremente exaradas, simplesmente porque foram assim
emitidas. Ao acorrentar cada parte ao contrato — visto, aqui, como
estrutura conformadora de uma relação jurídica —, a segurança de
que as promessas seriam cumpridas foi maximizada,19 o que pode
ser cogitado, mormente, quando se identifica, hoje, que aquele direito
desprezava aspectos como os acontecimentos havidos entre a formação

13
HOBSBAWM. A era do capital: 1848-1875, p. 59-85.
14
ROPPO. O contrato, p. 45-46.
15
CORTIANO JUNIOR. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do
ensino do direito de propriedade, p. 53.
16
GOMES, Orlando. Novos temas de direito civil, p. 6.
17
NALIN. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva
civil-constitucional, p. 112.
18
DUPICHOT. Derecho de las obligaciones, p. 16; ANDRADE. Aspectos da evolução da teoria dos
contratos, p. 93-100.
19
BARLETTA. A revisão contratual por excessiva onerosidade superveniente à contratação
positivada no Código do Consumidor, sob a perspectiva civil constitucional. In: TEPEDINO
(Coord.). Problemas de direito civil-constitucional, p. 286.

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SUZANA RAHDE GERCHMANN, MARCOS CATALAN
DUZENTOS ANOS DE HISTORICIDADE NA RESSIGNIFICAÇÃO DA IDEIA DE CONTRATO
153

do pacto e o adimplemento das prestações nele gestadas, as funções


que um contrato deveria cumprir e seu retumbar social.
O contrato, na versão clássica, é um pacto fáustico.20
Os sons que ecoam do passado demonstram que aquela mesma
liberdade, tão benquista entre os revolucionários franceses, se subli-
mava no mesmíssimo instante em que o oblato concordava com o
conteúdo da oferta,21 permitindo delinear, em muitos quadros, não o
esboço de um Sujeito, mas de alguém sujeitado aos termos do contrato
e que, assim como Fausto, personagem mitológica retratada — dentre
outros — por Johann Wolfgang von Göethe, deverá cumprir o pacto
com o Diabo, pouco importando o(s) custo(s) e a(s) consequência(s)
daí decorrente(s).22
Um pouco mais tarde, esses mesmos ventos cruzaram o Atlânti-
co, influenciando a redação do Código Beviláqua, diploma legislativo
estruturado com o escopo de satisfazer os interesses dos fazendeiros,
que desejavam a manutenção da propriedade e a conservação — tal
qual fora ajustado — dos contratos pactuados com aqueles que traba-
lhavam nelas.23
Tal código serviu — e por longas décadas — quase que exclusi-
vamente aos interesses de um minúsculo contingente de brasileiros.24
Aqui, tal como havido na França, a preocupação com interesses patri-
moniais foi o fio condutor da codificação que vigeu entre 1917 e 2003,

20
OST. Tiempo y contrato: crítica del pacto fáustico. Doxa – Cuadernos de Filosofía del Derecho,
p. 597-626.
21
As diferenças (entre oferta e proposta) traçadas pela dogmática não serão exploradas neste
estudo.
22
Exemplo que reflete, de maneira bastante clara, o apego da sociedade liberal a esse “dogma”
é o caso do Canal de Craponne, julgado em 6.3.1876, pela Corte de Cassação francesa. O fato,
em linhas gerais, se deu da seguinte forma: no ano de 1567, o engenheiro Adam de Craponne
comprometeu-se a construir e a conservar um canal destinado a irrigar as terras da popula-
ção da região de Pélissanne, na França. O valor, os prazos e as condições dos pagamentos, a
serem realizados em prestações, foram preestabelecidos. Cerca de 300 anos após a formação
do vínculo contratual, o Marquês de Galliffet, proprietário do canal na época, entendeu que
o custo pactuado era insuficiente para a manutenção da construção, de modo a exigir um
acréscimo na quantia a ser paga. Apesar de o Tribunal d’Aix e da Corte de Apelação terem
reconhecido o pedido de Marquês de Gallifet, na Corte de Cassação, os usuários do Canal de
Craponne garantiram a reforma da decisão com base no art. 1.334 do code Napoléon, ou seja,
o princípio da força obrigatória dos contratos. O entendimento dos julgadores foi no sentido
de que, qualquer que fosse a decisão, ela não poderia substituir uma convenção livremente
pactuada, pois ela refletia o que as partes entenderam por equilibrado. Por conta disso, em
vez de postular a revisão do contrato, os contratantes deveriam ter previsto a passagem do
tempo quando da formalização do acordo. Para mais detalhes: RODRIGUES JUNIOR. Revi-
são judicial dos contratos: autonomia da vontade e teoria da imprevisão, p. 25.
23
GOMES. Raízes históricas e sociológicas do Código Civil brasileiro, p. 24-31.
24
MAGALHÃES. Da recodificação do direito civil brasileiro, p. 72.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
154 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

costurando uma estrutura pensada para assegurar a manutenção da


riqueza daqueles que já eram afortunados25 e que ignorava os anseios
da maior parte dos brasileiros. Fruto de um fenômeno conhecido
hodiernamente como recepção tardia,26 nem mesmo o fato de ter sido
promulgado em um momento em que a Europa era banhada em sangue
impediu que o primeiro código civil brasileiro fosse construído sobre os
mesmos princípios liberais27 que, em alguma proporção, provocaram
essa trágica passagem na História da humanidade.
Talvez, por isso, por exemplo, a “cláusula” rebus sic stantibus não
tenha sido mencionada nas codificações civis do século XIX e do início
do século XX e nas construções doutrinárias — tanto as exegéticas, como
as pandectísticas — versando sobre elas,28 mesmo porque permitir a
modificação do contrato implicava autorizar a ingerência do Estado
em um território a ele proibido: o das relações privadas. O(s) código(s)
— estrutura(s) sistemicamente coerente(s) e completa(s) — não poderia(m)
abrigar uma regra contrária a valores tão caros ao liberalismo. Talvez,
por essa em razão, é importante repisar, ainda hoje, que o contrato é
pensado como o resultado da fusão de duas — ou mais — vontades.
A crise do Estado Liberal demonstrou, entretanto, que os códigos,
como os contratos, não eram intangíveis.29 As estátuas do liberalismo
foram abaixo, arrastadas, em grande parte, pelo sangue derramado
pela I Guerra Mundial e pela Revolução Russa, embora muitos ainda
neguem tal constatação. Tudo isso faz repensar o contrato.

2 O Estado Social: entre incluídos e esquecidos


A ruína do modelo Liberal de Estado exigiu que, sobre seus
escombros, fosse erigida uma estrutura que — ao menos enquanto

25
BARROSO. A realização do direito civil, p. 14.
26
MEDINA. Teoría impura del derecho: la transformación de la cultura jurídica latino-
americana, p. 22-69.
27
CUNHA. Revisão judicial dos contratos: do Código de Defesa do Consumidor ao Código
Civil de 2002, p. 27-28.
28
AGUIAR JUNIOR. Os contratos nos Códigos Civis francês e brasileiro. Revista CEJ, p. 6.
29
É importante resgatar que, no Estado Liberal, os códigos — tal como sonhou Napoleão
Bonaparte — eram vistos como imutáveis e eternos. Deveriam ser completos, trazendo to-
das as regras de direito, aptos a resolver todas as situações imagináveis, mediante a subsun-
ção, a aplicação direta da lei ao caso concreto. Aponte-se que Napoleão queria ser lembrado
por seu código, e não pelas batalhas que vencera. Sobre o horror das guerras napoleônicas,
o code e sua relação com o direito: TEPEDINO; FACHIN. Mais Goya, menos Napoleão:
contribuições para o pensamento crítico do direito civil. In: TEPEDINO; FACHIN (Org.).
Pensamento crítico do direito civil brasileiro, p. 9.

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SUZANA RAHDE GERCHMANN, MARCOS CATALAN
DUZENTOS ANOS DE HISTORICIDADE NA RESSIGNIFICAÇÃO DA IDEIA DE CONTRATO
155

promessa — o tornaria cada vez mais presente: o Estado — agora Social


ou Intervencionista — deveria buscar promover a salvaguarda de alguns
nichos vulneráveis da sociedade,30 e, não mais, como seu antecessor, se
limitar a manter distância das relações jurídicas interprivadas.
E essa não é a única transformação provocada pelo advento
desse modelo de Estado. O direito público sobrepôs-se ao privado,31
impondo a submissão do individual ao social ao disparar um processo
de transformações permeado pela restrição dos poderes contidos nas ti-
tularidades e na liberdade de contratar,32 e isso por mais que fenômenos,
como (a) a compreensão do código civil como a constituição dos privados,
(b) a ausência de percepção da força normativa dos princípios, (c) a
compreensão dos textos constitucionais como diretrizes políticas e (d)
o culto à autonomia da vontade, tenham atrapalhado essa metamorfose.
O dirigismo contratual33 conduz à aprovação de leis com regras
de conduta (a) limitando a escolha do outro contratante, (b) criando
molduras específicas para alguns negócios, (c) elegendo o conteúdo
de certos contratos — a partir de regras cogentes,34 é evidente — e, em
algumas circunstâncias, até mesmo (d) impondo o dever de contratar.
Pautas constantes no dia a dia do Estado Social, as intervenções no
querer daquele que contrata permitem entender parte do fenômeno
apontado: a autonomia da vontade transformou-se em autonomia
privada,35 provando o equívoco de uma das teses de Immanuel Kant.36
Destarte, enquanto a industrialização e o êxodo rural ampliam
as necessidades dos economicamente mais fracos — que precisam de
moradia, de alimento e da saúde perdida desde que abdicaram da vida
no campo em busca de um futuro melhor —, o Estado busca promover
a proteção de alguns desses nichos sociais com a edição de estatutos

30
FARIA. Globalização econômica e reforma constitucional. Revista dos Tribunais, p. 13.
31
FACCHINI NETO. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito
privado. In: SARLET (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado, p. 21-22.
32
GOMES, Orlando. Ensaios de direito civil e de direito do trabalho, p. 15.
33
CUNHA. Revisão judicial dos contratos: do Código de Defesa do Consumidor ao Código Civil
de 2002, p. 48-49.
34
LÔBO. Contrato e mudança social. Revista dos Tribunais, p. 43. Em sentido semelhante:
GIORGIANNI. O direito privado e suas atuais fronteiras. Revista dos Tribunais, p. 49.
35
RODRIGUES JUNIOR. Revisão judicial dos contratos: autonomia da vontade e teoria da im-
previsão, p. 27-28.
36
KANT, Immanuel. In: BLACKBURN. Dicionário Oxford de filosofia, p. 31-32. A autonomia da
vontade é uma das bases da teoria de Immanuel Kant, a qual é compreendida como “(...) a
capacidade de saber o que a moralidade exige de nós, e não funciona como a liberdade de
tentar alcançar nossos fins, mas como o poder de um agente para agir segundo regras de
conduta universalmente válidas e objetivas, avalizadas apenas pela razão”.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
156 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

que, como apontado, prenhes de comandos de ordem pública, se afas-


tavam, ao menos teoricamente, dos ideais individualistas e retiravam
do código civil a exclusividade de tratamento de determinados temas
da vida privada.37
Modificou-se a percepção do contrato38 e de suas funções. O Esta-
do Social, assim, além de (a) destruir a fantasia39 contida na significação
da autonomia da vontade e (b) de reduzir as cercanias — outrora quase
invisíveis — que delineavam a liberdade de contratar, (c) presenciou
algo inimaginável até então: o cenário socioeconômico não tinha mais
forças para assegurar a força obrigatória dos contratos.40 Observa-se
o despertar de uma regra que hibernava havia mais de um século:
contractus qui haben tractum successium et dependentiam de futuro, rebus
sic stantibus intellinguntur.41

37
IRTI. L’età della decodificazione. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial,
p. 15-33.
38
GROSSI. El novecientos jurídico: un siglo pós-moderno, p. 39. “De sua parte, o negócio jurí-
dico [e, como espécie dele, o contrato], cujo fundamento radicava para a doutrina civilista
moderna no princípio da soberania do indivíduo, na década de trinta [do Século XX] co-
meçou a reconstruir-se como autorregulação de interesses socialmente relevantes. O que se
faz diante do apelo à solidariedade social e tendo em conta que os atos que decorrem da
autonomia privada não se esgotam na conduta gestada pela psique humana (...).”
39
BARRETO. O dirigismo na vida dos contratos. Revista dos Tribunais, p. 460.
40
MARTINS-COSTA. Comentários ao novo Código Civil: do direito das obrigações: do adim-
plemento e da extinção das obrigações, p. 287. Veja, ainda, CUNHA. Revisão judicial dos
contratos: do Código de Defesa do Consumidor ao Código Civil de 2002, p. 49. Importante
apontar que os efeitos provocados por duas Guerras Mundiais, de 1914 a 1918 e de 1939 a
1945, não foram bem suportados. Se, no século XIX, havia uma relativa estabilidade econô-
mica, essa já não era a verdade no século XX. Os combates bélicos não só levaram a morte
e o horror para milhares de pessoas, como acarretaram problemas diretamente relaciona-
dos aos contratos, como a desvalorização monetária e a dificuldade de abastecimento de
mercadorias. Nesse ponto, qualquer escudo forjado pela sociedade, para se proteger das
atuações do Poder Público, se mostrou deveras inútil, eis que tais adversidades interferi-
ram não só nos pactos firmados pelo Estado (contratos administrativos), mas também nos
acordos havidos entre particulares. A responsabilidade pelas mudanças econômicas que
levaram à relativização da regra das pacta sunt servanda não deve, contudo, ser atribuída
apenas às guerras. Não se pode olvidar que o século XX foi palco de um enorme processo
de industrialização que resultou, entre outras tantas transformações na sociedade, na mas-
sificação das relações contratuais. Com o crescimento do número de pessoas envolvidas
nos pactos, evidenciaram-se as diferenças econômicas entre elas existentes. O Estado, com
o seu dirigismo, precisou agir a fim de reduzir tal desigualdade. Os instrumentos utiliza-
dos foram, em um primeiro momento, a lei — eis um dos porquês da descodificação — e,
posteriormente, os juízes, cuja função era a de analisar a possibilidade da correção material
do conteúdo dos contratos desequilibrados.
41
DONNINI. A revisão dos contratos no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor,
p. 20-21. “No Século XIX vivia-se num mundo de segurança econômica, com moedas está-
veis, monarquias milenares e legislações [sic] que enalteciam os princípios da autonomia
da vontade humana e da irretratabilidade das convenções. Houve desinteresse na aplicação
da cláusula rebus sic stantibus, que passou a ser esquecida não só pelos legisladores, como

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E, assim, ao se identificar que (a), por mais perfeito que um


contrato possa ser, esse nunca poderá aprisionar o tempo42 — as in-
certezas são indestrutíveis —,43 que (b) um contrato — ao contrário
do que foi disseminado até então — não decorre de um ato consciente
nascido da vontade e que (c) a intangibilidade — em vez de promover
cada ser humano —, em muitas ocasiões, dissemina a injustiça social,
é possível repensar a ideia de contrato e dos princípios que orientam
sua compreensão concreta.
Na tentativa de iluminar o cenário apontado, vale lembrar que,
enquanto o caso do Canal de Craponne demonstra quão intangíveis
eram os pactos no Estado Liberal, o litígio envolvendo a Compagnie
Générale d’Éclairage de Bordeaux e a cidade francesa de Bordeaux evi-
dencia a mudança de posicionamento no ecoar das primeiras décadas
do século XX;44 ainda que o processo, a decisão que o solucionou e os

também pelos doutrinadores e julgadores. Todavia, com as guerras do final desse sécu-
lo (napoleônicas de 1870) e a Primeira Grande Guerra Mundial (1914-1918), agravou-se a
vinculação contratual, em face das grandes alterações do valor da moeda e dos próprios
fenômenos bélicos. Dentro desse quadro é que ressurgiu a antiga cláusula, que parecia ter
sido abandonada e ser lembrada apenas no âmbito histórico.”
42
OST. Tiempo y contrato: crítica del pacto fáustico. Doxa – Cuadernos de Filosofía del Derecho,
p. 606.
43
MORIN. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento, p. 55.
44
BORGES. A teoria da imprevisão no direito civil e no processo civil, p. 115-117. Os fatos que ca-
racterizaram o conflito começaram em 1904, quando o município de Bordeaux celebrou,
com a Companhia Geral de Iluminação, um contrato de concessão, que previa a distribuição
de gás e energia elétrica para toda a região bordalesa, durante 30 anos. Entre as cláusulas
pactuadas, foi estabelecida uma tarifa móvel, que variava de acordo com os preços do carvão
(essencial para obtenção de energia elétrica naquela época), mas, ainda assim, era balizada
por rígidos limites. As tarifas previstas foram suficientes para manter o contrato até o final
de 1914. No entanto, a Primeira Guerra Mundial levou os preços do carvão a um aumen-
to correspondente a 100% se comparados com os valores de 1913. Em meio aos motivos
para tal elevação, podem ser destacados a tomada pelos alemães dos centros produtores
da matéria-prima, que ficavam no Norte da França e na Bélgica, a escassa mão de obra e
o aumento do consumo pelas indústrias bélicas, que tinham prioridade na utilização do
carvão. Apesar de o governo ter adotado medidas para conter os preços, essas foram inefi-
cazes, restando às concessionárias, dentre as quais a Compagnie Générale d’Éclairage, buscar a
revisão dos contratos para evitar a sua quebra. O pedido, contudo, foi negado pelo Conselho
da Prefeitura de Bordeaux e, em instância superior, pelo Conselho da Prefeitura de Gironda.
Inconformada, a Companhia de Iluminação de Bordeaux recorreu ao Conselho de Estado
que, em 30.3.1916, decidiu a seu favor. A fundamentação foi no sentido de que a economia
do contrato fora perturbada, eis que a alta dos preços do carvão superara os limites dos au-
mentos que poderiam ser suportados pelas partes. Além disso, o Conselho considerou que
a Compagnie não poderia se desvincular do contrato e tampouco atribuir às eventualidades
à Prefeitura concedente, mas tinha direito de ser indenizada, pois a elevação não poderia ter
sido prevista. Oportuno apontar, ainda, com FRANTZ. Bases dogmáticas para interpretação dos
artigos 317 e 478 do novo Código Civil brasileiro, p. 31-32, que o litígio envolvendo a Companhia
de Iluminação de Bordeaux se deu na esfera administrativa, que é pautada pelo princípio de
manutenção do serviço público. No caso analisado, foi justamente esse foco que fez com que
o contrato de concessão pudesse ser revisado, uma vez que, se não o fosse, o fornecimento

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efeitos projetados por ambos possam ser qualificados, contemporane-


amente, como excessivamente conservadores.45
Aliás, essa postura não era uma idiossincrasia da sociedade
francesa. No Brasil, é ilustrativa a situação na qual sentença proferida
em 1930, para resolver um contrato de execução futura, tendo por pre-
missa fundante a rebus sic stantibus, foi reformada, pouco tempo mais
tarde, pela Corte do Distrito Federal, que considerou que o emprego
da cláusula violaria a força obrigatória dos contratos e que a lei civil
não contemplava expressamente tal possibilidade.46
Assim, apesar dos méritos contidos na política intervencionista
e no processo de descodificação do direito civil, a abstração e a pureza
científica — entre outros problemas47 — que marcavam o Código fo-
ram mantidas. Ademais, mesmo diante da evidente agonia vivida pelo
código civil — disparada pelo desaparecimento de seus fundamentos
e pela perda de espaço e sentido de um conjunto de regras que surgiu
tendo por premissa a coerência sistêmica e a aptidão para a solução
de quaisquer problemas —, não houve uma mudança fundamental
para o êxito do Estado Social: a modificação do senso comum vigente
entre os juristas.

3 O Estado Democrático de Direito: existe alguém além


de mim
As crises do petróleo ocorridas em 1973 e 1979 alteram o custo
da energia, desestruturando o modelo econômico existente, levando à

de energia seria descontinuado. Não obstante estar em um ramo diferente, a jurisprudência


administrativa provocou a doutrina civil quanto à indispensabilidade da tutela da alteração
das circunstâncias, abrindo espaço para afastar teses que defendiam a intangibilidade dos
contratos.
45
RENNER. Novo direto contratual: a tutela do equilíbrio contratual no Código Civil, p. 254-255.
Na França, onde seu deu a decisão do Conselho de Estado em favor da Companhia de Ilu-
minação de Bordeaux, foram editadas leis que permitiam a modificação dos pactos em razão
da alteração das circunstâncias. A mais famosa talvez seja a lei faillot, de 21.1.1918, que facul-
tava a resolução de contratos que houvessem sido onerados pela Primeira Guerra Mundial.
Mas ela não foi a única, podendo ser citadas, como exemplos, (a) a lei que versava sobre a
revisão do preço dos aluguéis, de 9.3.1918; (b) a legislação, de 6.7.1925, sobre o arrendamen-
to; e (c) a lei de 13.7.1930, acerca dos contratos de seguro. Tais leis, no entanto, aplicavam-se
apenas a casos excepcionais e, salvante essas possibilidades, os tribunais mantinham-se fiéis
ao princípio da intangibilidade dos contratos.
46
FONSECA. Caso fortuito e teoria da imprevisão, p. 298-300.
47
GROSSI. El novecientos jurídico: un siglo pós-moderno, p. 53. Dentre eles, a elefantíase
normativa, a deformação da realidade provocada pela compreensão microssistêmica do
Direito e a sedimentação não orgânica da legislação especial.

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DUZENTOS ANOS DE HISTORICIDADE NA RESSIGNIFICAÇÃO DA IDEIA DE CONTRATO
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recessão os países desenvolvidos e instabilizando o comércio interna-


cional.48 Paralelamente, ampliam-se as demandas sociais, as quais, antes
mesmo do advento de outras crises econômicas, eram cumpridas com
bastante precariedade pelos Estados. A preocupação setorizada dirigida
às camadas mais necessitadas da população já não era suficiente,49 se
é que um dia o foi.
O Estado Social falhou, deixando sem solução problemas que
deveria — no mínimo — minimizar. Foi substituído pelo Estado Demo-
crático de Direito, um modelo fundado (a) na cidadania, (b) na promoção
da dignidade da pessoa humana, (c) nos valores sociais do trabalho e da
livre iniciativa.50 Ele, além de ter por dever promover a inclusão e a eman-
cipação do cidadão,51 assume uma série de outras tarefas. Encontrados,
em sua maioria, no art. 3º da Constituição Federal52, tais compromissos
incluem: (a) a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, (b) a
garantia do desenvolvimento nacional, (c) a erradicação da pobreza e da
marginalização, além da redução das desigualdades sociais e regionais
e (d) a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Ao institucionalizar direitos fundamentais não apenas de duas,
como se vislumbrava no Estado Social, mas de cinco dimensões,53 a
Constituição Federal de 1988 torna-se o eixo hermenêutico de todo o
sistema jurídico, o que ocorre também por conta do reconhecimento
de que os direitos fundamentais devem balizar não só as questões

48
FARIA. Globalização econômica e reforma constitucional. Revista dos Tribunais, p. 13-14.
49
LÔBO. Prefácio. In: CUNHA. Revisão judicial dos contratos: do Código de Defesa do Consu-
midor ao Código Civil de 2002, p. 10.
50
Previstos nos incisos II, III e IV, do art. 1º, da Constituição Federal. Os incisos I e V dizem
respeito à soberania e ao pluralismo jurídico, respectivamente.
51
SOARES; BARROSO. A dimensão dialética do novo Código Civil em uma perspectiva
principiológica. In: BARROSO (Org.). Introdução crítica ao Código Civil, p. 1.
52
Consoante Roxana Cardoso Brasileiro Borges, “outros condicionantes” do Estado Demo-
crático de Direito podem ser encontrados ao longo do texto constitucional. BORGES. Con-
trato: do clássico ao contemporâneo: a reconstrução do conceito. Revista do Programa de
Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia, p. 34.
53
A primeira e a segunda dimensão de direitos fundamentais englobam, respectivamente, os
direitos liberais e os sociais. Consoante Paulo Bonavides, os direitos de terceira dimensão,
também chamados de direitos da fraternidade ou da solidariedade, não se direcionam a
grupos específicos, mas ao gênero humano, tido como valor supremo. Entre eles, desta-
cam-se a proteção ao meio ambiente, à comunicação, à paz e ao patrimônio comum da
humanidade (BONAVIDES. Curso de direito constitucional, p. 569-570). De acordo com José
Alcebíades de Oliveira Junior, a quarta dimensão relaciona-se aos limites impostos à mani-
pulação genética, à bioengenharia e à biotecnologia. Por fim, a quinta dimensão é atinente
aos direitos que nascem do desenvolvimento da cibernética, rompendo os limites físicos
existentes entre os países (OLIVEIRA JUNIOR. Teoria jurídica e novos direitos, p. 100).

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160 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

que envolvem o ente estatal, mas também — e de modo direto —54 as


relações interprivadas: a Constituição não é apenas uma carta política,
é elemento integrador de todo o sistema jurídico.55
O direito civil foi constitucionalizado.56 Com isso, os princípios e
valores constitucionais nortearão o processo de construção das respostas
que precisam ser dadas para cada problema surgido na multifacetada
existência humana interprivada. Mais que isso: os institutos jurídicos
civis — ultrapassando os muros erigidos pela dogmática clássica
— servirão como pontes de acesso às promessas constitucionais e à
cidadania material.
Nesse palco, não há espaço para as ideias liberais conforma-
doras de codificações, nas quais o indivíduo se realizava por meio do
patrimônio.57 Nele, o proprietário é substituído pela pessoa humana,58
pensada, agora, não mais como uma abstração com potencial liberdade
para contratar, mas por sua existência59 concreta. Aliás, no âmbito dos
contratos, as implicações da constitucionalização do direito civil são
bastante significativas, impondo aos contratantes o dever de conside-
rar — a todo tempo e o tempo todo — os interesses do(s) outro(s),60 e
não apenas os seus.
Despido de tais premissas, não há contrato que mereça proteção
do Direito: o contrato deve servir à pessoa, e não o contrário. E cada
pessoa deve preocupar-se com o outro, pois é nele que se reconhece
como humano. É por isso que, apesar de pensado por muitos ainda
hoje, é imperioso que o leitor atento perceba que, como um símbolo da

54
Embora haja controvérsias, que não serão exploradas por ultrapassarem o corte metodoló-
gico formulado para fins de investigação.
55
FACHIN. Los derechos fundamentales en la construcción del derecho privado contem-
poráneo brasileño a partir del derecho civil-constitucional. Revista de Derecho Comparado,
p. 263.
56
No que tange à constitucionalização do direito civil, é preciso assinalar que ela não se confun-
de com a publicização. Segundo Paulo Luiz Netto Lôbo, “a publicização deve ser en­tendida
como o processo de intervenção legislativa infraconstitucional, ao passo que a constituciona-
lização tem por fito submeter o direito positivo aos fundamentos de validade constitucional-
mente estabelecidos. Enquanto o primeiro fenômeno é de discutível pertinência, o segundo é
imprescindível para a compreensão do moderno direito civil”. LÔBO. Constitucionalização
do direito civil. Revista de Informação Legislativa, p. 101.
57
XAVIER; FROTA. A repersonalização das relações contratuais civis e de consumo a partir
da obra de Paulo Luiz Netto Lôbo. In: TEPEDINO; FACHIN (Org.). Pensamento crítico do
direito civil brasileiro, p. 106-107.
58
LÔBO. Constitucionalização do direito civil. Revista de Informação Legislativa, p. 108.
59
MARTINS-COSTA. Os direitos fundamentais e a opção culturalista do novo Código Civil.
In: SARLET (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado, p. 72.
60
NALIN. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva
civil-constitucional, p. 82.

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DUZENTOS ANOS DE HISTORICIDADE NA RESSIGNIFICAÇÃO DA IDEIA DE CONTRATO
161

mais lídima liberdade, o contrato na Modernidade era, em verdade, um


poderoso instrumento de opressão.61
Noutra vertente, parece ser possível defender que a igualdade
formal — transformada, hodiernamente, em substancial — também não
tem mais lugar em um contexto social marcado por imensas desigual-
dades. É preciso observar, aliás, que, mesmo no auge no liberalismo, a
ideia que igualava todos não passava de discurso ideológico utilizado
para mascarar uma realidade na qual a classe econômica dominante
determinava os parâmetros das relações contratuais e, paralelamente,
na qual, sem força para negociar, enorme parcela da população acei-
tava — e a elas se sujeitava — as condições gerais de contratação uni­
lateralmente construídas, ou não poderia satisfazer cada uma de suas
necessidades de ordem existencial.
Longe de continuar entoando notas tão irritantes e cruéis a ouvi-
dos sensíveis à(s) necessidade(s) do(s) outro(s), contemporaneamente,
os influxos que emanam do princípio da igualdade substancial impõem
que, em cada situação apresentada ao Direito, esse (a) investigue quem
são as pessoas envoltas na situação jurídica concretamente estabelecida
e (b) que promova a aproximação de situações notadamente seme-
lhantes, por exemplo, tratando como contrato a relação contratual de
fato, sancionando um e outro apenas quando realmente for necessário
proibir para proteger.
A relatividade dos efeitos do contrato é outro vetor a adquirir
novo sentido no Estado Democrático de Direito. A noção segundo a
qual os contratos vinculam e produzem efeitos apenas entre as partes
— alcançando, é verdade, seus sucessores ou cessionários — deixa de
ser a única realidade em uma sociedade marcada pela contratação em
massa e pelo entrelaçamento desses contratos,62 bem como pela inspi-
ração buscada no vetor constitucional da solidariedade social. Agora,
os efeitos do pacto interessam — e, por vezes, atingem — a outras
pessoas e a outros contratos, disparando a necessidade de reflexões

61
BORGES. Reconstrução do conceito de contrato: do clássico ao atual. In: HIRONAKA;
TARTUCE (Coord.). Direito contratual: temas atuais, p. 29.
62
Consoante Luis Renato Ferreira da Silva, “em uma sociedade economicamente massificada,
o entrelaçamento dos contratos mantidos entre os vários elos da cadeia de circulação de
riqueza faz com que cada contrato individual exerça uma influência e tenha importância
em todos os demais contratos que possam estar relacionados. Assim, a inadimplência de
um grupo de consumidores (...) acarretará a inadimplência do lojista com seu fornecedor
que, por sua vez, poderá repercutir na relação deste com aquele que lhe alcança a matéria-
prima e deste, por sua vez, com quem o financia e assim sucessivamente”. SILVA. A função
social do contrato no novo Código Civil e sua conexão com a solidariedade social. In:
SARLET (Org.). O novo Código Civil e a Constituição, p. 152.

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162 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

e de preocupações com os efeitos que cada contrato produz no meio


em que se encontra imerso.63 É por isso que cada contrato não pode
ser pensado como um fragmento jurídico autossuficiente, mas como
uma parte — que compõe o todo — deveras importante para o Direito.
O ocaso do individualismo também ensejou o questionamento da
ideia de justiça contratual. Como apontado neste estudo, há não muito
tempo, considerava-se justo o contrato gestado na livre manifestação
de vontade. Hodiernamente, essa noção é hialinamente insuficiente
no processo de significação daquela, impondo-se resgatar64 a norma-
tividade contida em potência no equilíbrio material dos contratos —
ou equivalência das prestações — e a preocupação com a constante
manutenção da equitativa proporção entre as prestações pactuadas,65
pois, mesmo um contrato livremente pactuado, pode estar prenhe de
injustiça.66 Saliente-se, novamente, que, em um sistema capitalista, é
por meio do contrato que o acesso aos bens sem os quais não é possível
viver dignamente será provido.
Apesar da transparência de tais constatações, é possível iden-
tificar críticas apontando que a função social do contrato não deve
significar a relativização da sua força obrigatória, mas, sim, a instru-
mentalização das trocas67 e afirmando que o movimento reformista deve
ser refreado, pois, sem segurança jurídica, não há liberdade, igualdade
ou legalidade, não há solidariedade social nem, tampouco, o respeito
à dignidade humana.68
O contrato precisa, ainda, é impossível negar, ser compreendido
como uma relação pautada pela observância de cada um dos multiface-
tados — e, no mais das vezes, desconhecidos — deveres gestados pela

63
NALIN. A função social do contrato no futuro Código Civil brasileiro. Revista de Direito
Privado, p. 54-56.
64
A palavra “resgate” é utilizada em razão de o princípio do equilíbrio não ser novo. Pelo
contrário: a preocupação com o seu significado já é percebida na obra de Aristóteles, em
especial em Ética a Nicômaco.
65
BRITO. Equivalência material: o equilíbrio do contrato como um dos princípios contratuais.
In: HIRONAKA; TARTUCE (Coord.). Direito contratual: temas atuais, p. 175.
66
NEGREIROS. Teoria do contrato: novos paradigmas, p. 160.
67
TIMM. O novo direito civil: ensaios sobre o mercado, a reprivatização do direito civil e a pri-
vatização do direito público, p. 90-92. Isso porque, como aponta o autor, a sociedade ganha
quando o contrato é cumprido, de modo a baixar os custos do inadimplemento que são
distribuídos na forma de juros.
68
THEODORO JUNIOR. A onda reformista do direito positivo e suas implicações com o prin-
cípio da segurança jurídica. Revista da Escola Nacional da Magistratura, p. 115-117. Quando
se restringe a liberdade de contratar, segundo o autor, aos limites da função social sem o
cuidado de relacionar parâmetros perceptíveis nos casos concretos, implanta-se, na ordem
jurídica obrigacional, um fator de grande insegurança.

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boa-fé, dentre eles, o de cooperação69 e o de funcionalizar — também aos


valores constitucionalmente eleitos — o exercício de qualquer posição
jurídica, premissas que, se fielmente seguidas, esgotam a necessidade
de tutela de um devedor outrora obrigado a sujeitar-se aos caprichos
do titular do direito à prestação.
Enfim, como se tentou demonstrar ao longo de cada uma das
linhas percorridas por este estudo, o contrato — na contemporaneidade
jurídica brasileira — deve ser lido como uma relação equilibrada, leal
e solidária, destinada à produção de efeitos jurídicos existenciais e
patrimoniais que repercutem não apenas na esfera de atuação de cada
contratante — ou de seus sucessores —, mas que atingem, também,
terceiros diretamente envolvidos (ou não) na relação jurídica negocial,70
sem o que ele não será merecedor de aplausos dos que vivenciam,
diuturnamente, a história da vida privada representada incessantemente
no palco da cidadania.

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69
MONTEIRO; MALUF; SILVA. Curso de direito civil, p. 25.
70
NALIN. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva
civil-constitucional, p. 253-254.

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A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO
DOS CONTRATOS NO CONTEXTO
DAS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO
E DO ESTADO

ANA CAROLINA TRINDADE SOARES

Considerações iniciais
As transformações pelas quais vem passando o Estado moderno,
marcado pelas noções de racionalidade e laicização, influenciam
diretamente a compreensão do ordenamento jurídico, impondo um
reexame do papel do direito na realidade social, sem o que se opera
um evidente distanciamento entre direito e realidade.
Através da teoria liberal burguesa, a fonte do direito deixou de
ser a palavra absoluta do príncipe, instaurando-se um estado de lei: o
liberalismo burguês trouxe “a proposta de substituição do ‘domínio
de lei’ em lugar da decadente idolatria absolutista”.1
Esse domínio da lei é caracterizado por uma compreensão mera-
mente formalista do direito, através da qual a precisão das disposições
legais se constituía em um meio de evitar o campo de ação do Estado
na aplicação das leis, limitando o poder de interpretação ao máximo
possível.

1
MAUS. O Judiciário como superego da sociedade: sobre o papel da atividade jurispruden-
cial na “sociedade órfã”. Anuário dos Cursos de Pós-Graduação em Direito, p. 131.

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168 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

E tal se justificava pelo fato de que a teoria liberal surgiu como


uma forma de desate das amarras do Estado absolutista, de descon-
centração do poder e de proteção da liberdade dos indivíduos contra
o Estado.
Tais objetivos somente seriam conquistados se os indivíduos
conhecessem exatamente os termos legais aos quais estavam vinculados;
e tanto era assim, que, em caso de incerteza acerca das disposições
legais, os julgadores deveriam recorrer à interpretação autêntica do
legislador.
Nesse contexto, a lei era tida como expressão máxima do direito,
como uma verdade preexistente que somente seria desvelada pelo juiz,
através de uma mera operação lógico-formal, pela qual se examinava
a correspondência entre “a descrição abstrata contida no texto da lei e
as situações particulares”,2 não se cogitando a possibilidade de sope-
samento das razões ou dos bens jurídicos protegidos.
Ansiava-se pela previsibilidade da intervenção estatal, como
garantia da propriedade e da liberdade individual, e, sobretudo, das
relações de mercado, típicos ideais burgueses.
Para que fossem asseguradas tais pretensões, o papel do Estado
resumia-se à auto-organização política, caracterizada pela divisão dos
poderes, e pelo consequente controle do poder político.
A ascensão da burguesia, e, por conseguinte, a proteção de
seus interesses, emoldurados nos direitos de propriedade e liberdade,
impunham a configuração de um Estado abstencionista, intimamente
relacionado às teorias econômicas do laissez faire e do laissez passer.
Não se cogitava a aferição das desigualdades que tal desenho
do Estado, e, por consequência, do direito, ocasionavam no ambiente
social. Liberdade, propriedade e igualdade perante a lei eram concebi-
das como postulados que serviam para legitimar o modelo de Estado
liberal, que, por sua vez, não mais se sustenta.
A preocupação suprema com a forma, com a pureza do manda-
mento legal e com a indiferença aos valores e aos dados da realidade está
sendo suplantada pela introdução dos aspectos sociais no ordenamento
jurídico, pela intervenção estatal na economia, pela maior amplitude
que se atribui ao direito de liberdade — agora não apenas restrito ao
ser proprietário —, pela igualdade substancial.
Ultrapassa-se a concepção legalista de ordenamento jurídico como
sistema estático, fazendo com que interpretação e aplicação do direito

2
PEREIRA. Interpretação constitucional e direitos fundamentais: uma contribuição ao estudo
das restrições aos direitos fundamentais na perspectiva da teoria dos princípios, p. 255.

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ANA CAROLINA TRINDADE SOARES
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DOS CONTRATOS NO CONTEXTO DAS TRANSFORMAÇÕES ...
169

passem a ter uma maior correspondência com a realidade, superando-­


se o paradigma da mera subsunção lógica e da absoluta neutralidade
do intérprete.3
Enquanto o direito do Estado liberal dependia basicamente do
legislador,4 o direito do Estado social impõe uma maior atuação do in-
térprete, a fim de que sejam realizadas as exigências materiais oriundas
da ordem jurídica, sobretudo no que diz respeito à teoria dos contratos,
amplamente marcada pela mudança de paradigma que o texto consti-
tucional impôs ao direito civil.

1 A necessidade de salvaguarda da liberdade como


garantia dos direitos individuais contra o Estado
O Estado liberal foi inicialmente concebido como uma oposição
ao absolutismo monárquico, instrumento de arbítrio e opressão aos
direitos individuais: na doutrina do liberalismo, o Estado foi sempre
o fantasma que atemorizou o indivíduo, e o poder estatal era o maior
inimigo da liberdade.5
Para os teóricos do liberalismo, era necessário proteger o in-
divíduo do Estado, garantindo-lhe um espaço onde pudesse fruir de
plena liberdade.
Essa compreensão estritamente liberal de liberdade, como con-
junto dos direitos individuais oponíveis ao Estado, surgiu a partir das
grandes revoluções burguesas, sobretudo da Revolução Francesa de
1789.
Tal concepção se distingue da que Mauro Barberis denomina
preliberal,6 consubstanciada na garantia da liberdade pela lei e pelo
Estado. Consideram-se o Estado e a legislação como as principais, se
não as únicas, garantias da liberdade individual — um indivíduo “é
livre de outros indivíduos para fazer o que se deve graças ao Estado e

3
Apesar dessas transformações pelas quais vêm passando as bases hermenêuticas, é de se
notar que o método lógico-dedutivo ainda vem sendo utilizado como forma de mascarar os
verdadeiros fundamentos da decisão judicial, não tendo o intérprete se desvencilhado com-
pletamente do apego ao formalismo jurídico. Como bem destaca João Maurício Adeodato
(Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica, p. 261), “parece até hoje permanecer
a convicção, ligada a uma mentalidade silogística, de que toda decisão jurídica parte de
uma norma geral prévia”.
4
KRELL. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um
direito constitucional “comparado”, p. 73.
5
BONAVIDES. Do Estado liberal ao Estado social, p. 40.
6
BARBERIS. Libertad y liberalismo. Isonomía – Revista de Teoría y Filosofía del Derecho, p. 181.

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170 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

às suas leis: por fora dessas condições institucionais, se está continua­


mente exposto ao governo do homem sobre o homem, à fatalidade da
dependência pessoal, à cega casualidade das relações de força”.7
Nessa perspectiva, partindo da concepção de que o estado de
natureza é também um estado de igualdade, no qual ninguém tem mais
do que qualquer outro, Locke o concebe como um “estado de perfeita
liberdade”, em que todos os homens se acham naturalmente livres para
ordenar-lhes as ações e regular-lhes as posses e as pessoas conforme
acharem conveniente, sem pedir permissão ou depender da vontade
de qualquer outro homem.8
Segundo Locke, todos os homens estão naturalmente nesse
estado, e nele permanecerão até que consintam em se tornar membros
de alguma sociedade política.
Assim, Locke procede a uma distinção entre a liberdade natural
do homem — que consiste em estar livre de qualquer poder superior
na terra, tendo somente a lei da natureza como regra —, e a liberdade
do homem na sociedade, pela qual este somente estaria submetido ao
poder legislativo, que, por sua vez, se estabeleceria por consentimento
da comunidade, pois a liberdade do homem sob um governo impor-
taria em ter regras que são comuns a todos os membros da sociedade.
É nessa ideia de liberdade por meio da lei — consistente na úni-
ca barreira autêntica ao poder do homem sobre o homem, tal qual se
desenhara no denominado estado de natureza — que Locke compreende
a liberdade do homem em sociedade.
Desta feita, cumpria ao Estado e às leis organizar a liberdade no
campo social: “o Estado manifesta-se, pois, como criação deliberada e
consciente da vontade dos indivíduos que o compõem”, constituindo-­
se no aparelho de que se servia o homem para alcançar, na sociedade,
a realização de seus fins.9
Sem a pretensão de realizar incursões jusfilosóficas, o presente
estudo revela-se como uma distinção entre as noções de liberdade
garantida através das leis e do Estado, e de liberdade contra o Estado,
tal qual concebida no Estado liberal, onde o poder estatal passou a ser
considerado um “inimigo da liberdade”.10

7
BARBERIS. Libertad y liberalismo. Isonomía – Revista de Teoría y Filosofía del Derecho, p. 187.
Tradução livre. Texto no idioma original: “(...) se es libre de otros individuos para hacer lo
que se debe gracias al Estado y a sus leyes: por fuera de estas condiciones institucionales,
se está continuamente expuesto al gobierno del hombre sobre el hombre, a la fatalidad de
la dependencia personal, a la ciega causalidad de las relaciones de fuerza”.
8
LOCKE. Segundo tratado sobre o governo, p. 217.
9
BONAVIDES. Do Estado liberal ao Estado social, p. 40-41.
10
BARBERIS. Libertad y liberalismo. Isonomía – Revista de Teoría y Filosofía del Derecho, p. 186.
No mesmo sentido, BONAVIDES. Do Estado liberal ao Estado social, p. 40.

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ANA CAROLINA TRINDADE SOARES
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DOS CONTRATOS NO CONTEXTO DAS TRANSFORMAÇÕES ...
171

Nesse plano, a ação estatal caracterizava-se pelo monopólio do


poder, ao qual a classe burguesa buscava opor obstáculos, objetivan-
do a salvaguarda da liberdade e da propriedade individuais contra a
ingerência do Estado: “fazia-se mister contrapor à onipotência do rei
um sistema infalível de garantias”.11
Era necessária, portanto, uma limitação do poder absoluto, que
veio a consubstanciar-se na técnica da divisão dos poderes como forma
de garantia do equilíbrio político e da liberdade individual.
Quanto menor fosse a presença do Estado nos atos da vida
humana, maior seria a esfera de liberdade do indivíduo (burguês).
Os ideais burgueses somente poderiam consolidar-se diante de um
Estado assentado no formalismo jurídico, “destituído de conteúdo,
neutralizado para todo ato de intervenção que pudesse embaraçar a
livre iniciativa material e espiritual do indivíduo, o qual, como soberano,
cingira a Coroa de todas as responsabilidades sociais”.12
A burguesia precisava de liberdade para desenvolver as suas
atividades econômicas, e, por conseguinte, para conservar a proprie-
dade. Impunha-se, assim, a configuração de um Estado abstencionista,
adstrito a organizar-se politicamente, através de uma distribuição do
poder entre titulares que não se confundiam.
Embora nos dias de hoje não mais se possa conceber essa se-
paração dos poderes em termos absolutos, é relevante ressaltar que a
descentralização do poder em muito contribuiu para a consolidação
dos direitos humanos.
Conquanto tais direitos somente tenham se ampliado a partir da
conformação do Estado social, onde a liberdade não mais se restringe
à garantia da propriedade, e a igualdade deixa de ser tomada somente
sob aspectos formais, a contenção do arbítrio do poder absoluto serviu
para a proteção do indivíduo.
Esses direitos fundamentais passaram a ser concebidos como
limites à atuação do Estado; eles demarcavam um campo no qual era
vedada a interferência estatal, estabelecendo-se uma rígida fronteira
entre o espaço do indivíduo e o espaço do Estado.
Nesse cenário, os direitos fundamentais de liberdade e igualda-
de formal despontam como meios de proteção do indivíduo em sua
relação com o Estado. Deles também decorria a noção de autonomia da
vontade como instrumento de disciplina das relações entre os sujeitos

11
BONAVIDES. Do Estado liberal ao Estado social, p. 45.
12
BONAVIDES. Do Estado liberal ao Estado social, p. 68.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
172 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

tidos como formalmente iguais, uma vez que o homem não era concreta
e historicamente considerado, era “quase uma abstração metafísica”,
não se cogitando dos seus anseios e necessidades reais.13
No plano econômico, almejava-se garantir a segurança e a pre-
visibilidade das relações negociais, com o Estado ausentando-se da
esfera econômica e dos conflitos distributivos.
O direito, por sua vez, era concebido como um mecanismo de
certeza e segurança de tais relações, pois se identificava estritamente
com a lei, cuja aplicação deveria ser a mais previsível possível, haja vista
que precedida de um raciocínio puramente lógico, através do qual os
casos concretos eram subsumidos a comandos legais abstratos, numa
verdadeira “sinonímia medular entre direito e lei”.14

2 O perfil do direito no Estado liberal: a interpretação e a


aplicação como operações meramente formais
O direito do Estado liberal coincide com a ascensão do positivis-
mo jurídico.15 À medida que era superada a ideia de direitos inatos e
transcendentes, estes passam a ser abrigados pela ordem jurídica posi-
tiva, com fins de garantir a segurança das relações entre os indivíduos.
Através da perspectiva positivista, o direito é considerado um
fato: “um conjunto de fatos, de fenômenos ou de dados sociais em tudo
análogos àqueles do mundo natural”.16 Assim, o jurista deveria atuar
com a objetividade e o distanciamento de um cientista, aplicando a lei
jurídica às situações nela descritas,17 estudando o direito da mesma for-
ma que os cientistas estudavam a realidade natural, ou seja, abstendo-se
de formar juízos de valor.
Tal compreensão do fenômeno jurídico é tributária da noção de
cientificidade oriunda das ciências naturais; a norma jurídica era tratada

13
SARMENTO. Direitos fundamentais e relações privadas, p. 28.
14
VIGO. Razonamiento justificatorio judicial. Doxa – Cuadernos de Filosofía del Derecho, p. 483.
15
Frise-se que o presente trabalho não pretende apresentar um estudo acerca das vertentes
do positivismo jurídico, mas apenas oferecer um panorama das principais características
do Direito no Estado liberal. Ademais, importante observar que a atividade interpretativa
se expressa de maneira diversa de acordo com as diferentes concepções do positivismo.
16
BOBBIO. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, p. 132.
17
PEREIRA. Interpretação constitucional e direitos fundamentais: uma contribuição ao estudo
das restrições aos direitos fundamentais na perspectiva da teoria dos princípios, p. 27.

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ANA CAROLINA TRINDADE SOARES
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DOS CONTRATOS NO CONTEXTO DAS TRANSFORMAÇÕES ...
173

como um objeto científico a ser conhecido, e o ordenamento jurídico


era concebido a partir da ideia de completude.18
Disso decorria (e ainda decorre, haja vista que, não obstante tal
percepção do fenômeno jurídico não mais se coadune com os anseios
da sociedade — revelados pelos ditames do Estado social —, muitos
juristas ainda mantêm o apego à forma) a concepção meramente forma-
lista da interpretação jurídica, que oferta absoluta prevalência às formas,
com base em uma operação meramente lógica, isto é, “aos conceitos
jurídicos abstratos da norma legislativa com prejuízo da finalidade
perseguida por esta, da realidade social que se encontra por trás da
forma e dos conflitos de interesse que se deve dirimir”.19
Propunha-se excluir da ciência do direito qualquer referência a
sentido ou a valor, e isso se justificava pelo fato de que, como os posi-
tivistas objetivavam se distanciar das ideias jusnaturalistas, havia um
receio em se fazer afirmações ou pressuposições que não pudessem ser
objetivamente demonstradas.
A Escola da Exegese e a Jurisprudência dos Conceitos são ver-
tentes hermenêuticas que caracterizam esse período de “primazia da
segurança formal”.20
Como sintetiza Marcelo Neves, esses modelos constituem uma
forma de interpretação que se pode denominar, semioticamente, de
sintático-semântica, uma vez que enfatiza as conexões sintáticas entre
os termos, expressões ou enunciados normativo-jurídicos, pressupondo
a univocidade destes. Partia-se da precisão denotativa e conotativa da
linguagem legal: “os problemas semânticos estariam subordinados aos
sintáticos, na medida em que a articulação lógica e sistemática entre
signos legais ou conceitos normativos possibilitaria a subsunção do
caso à hipótese legal pré-delineada”.21
Para os exegetas, o direito se resumia à lei, tida como expressão
precisa da intenção do legislador. Aqui, a interpretação e a aplicação
eram confiadas a uma razão judicial asséptica, que mediante um ele-
mentar mecanismo de subsunção remetia sem dificuldades a lei ao
caso.22

18
Importa salientar que o presente estudo não se aparta da ideia de direito como ciência, mas
intenta apresentar os problemas de sua identificação com as ciências naturais.
19
KRELL. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um
direito constitucional “comparado”, p. 71-72.
20
NEVES. A interpretação jurídica no Estado Democrático de Direito. In: GRAU; GUERRA
FILHO (Org.). Direito constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides, p. 357.
21
NEVES. A interpretação jurídica no Estado Democrático de Direito. In: GRAU; GUERRA
FILHO (Org.). Direito constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides, p. 357-358.
22
VIGO. Razonamiento justificatorio judicial. Doxa – Cuadernos de Filosofía del Derecho, p. 483.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
174 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

O valor decisivo e central deste modelo era a segurança jurídica,


consubstanciada na previsibilidade das decisões, em uma resposta
antecipada para cada problema concreto. A interpretação circunscrevia-­
se, assim, na reconstrução, com fidelidade, da vontade do legislador.
Também sob o prisma da atividade interpretativa como operação
lógica, só que desta feita partindo da ideia de subsunção da matéria de
fato a conceitos jurídicos, a Jurisprudência dos Conceitos “concebe o
ordenamento jurídico como um sistema fechado de conceitos jurídicos,
requerendo, assim, o «primado da lógica» no trabalho juscientífico”.23
O direito era concebido a partir de um pensamento conceitual
formal, em que as proposições jurídicas singulares que o constituíam
encontravam-se interligadas por um nexo lógico entre conceitos, que
precisavam ser reconhecidos entre si como condicionantes e derivantes,
e tudo através do sentido que o legislador conferiu às palavras por ele
utilizadas.
Exigia-se, pois, que o intérprete se colocasse no lugar do legis-
lador e executasse o seu pensamento, perseguindo as circunstâncias
jurídicas e os fins considerados ao tempo da edição da lei.
Mais além disso, propunha-se que a interpretação tivesse também
a missão de extrair o verdadeiro pensamento do legislador, e “não ape-
nas ajustar à expressão insuficiente da lei o sentido realmente pensado
pelo legislador, mas ainda «imaginar» o pensamento que o legislador
não pensou até ao fim”, ou seja, não se devia manter somente no plano
da sua vontade empírica, mas conhecer a sua vontade racional, que
deveria ser extraída das palavras da lei, a fim de que se atingisse “o
verdadeiro pensamento do Direito no seu todo”, numa unidade de
sentido objetiva.24
Diante disso, caberia ao intérprete desvelar o único sentido
juridicamente possível dos termos legais, a aplicação apropriada das
normas jurídicas, a única decisão correta; o que, por sua vez, era viabili-
zado pela “precisão denotativa e conotativa da linguagem legal”,25 que
permitia atingir o sentido essencial dos termos e expressões jurídicas.
O conteúdo da determinação jurídica era extraído, portanto, da
vontade do legislador, das palavras da lei, segundo o seu sentido lógico
e gramatical, que deveria ser reproduzido pelo intérprete/aplicador.

23
LARENZ. Metodologia da ciência do direito, p. 64.
24
LARENZ. Metodologia da ciência do direito, p. 36-37.
25
NEVES. A interpretação jurídica no Estado Democrático de Direito. In: GRAU; GUERRA
FILHO (Org.). Direito constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides, p. 358.

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ANA CAROLINA TRINDADE SOARES
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DOS CONTRATOS NO CONTEXTO DAS TRANSFORMAÇÕES ...
175

Sob esse prisma, o direito do Estado liberal servia para garantir


a segurança das relações entre os indivíduos, especialmente com base
nos direitos de liberdade individual e propriedade. Para tanto, partia-se
da ideia de predeterminação dos textos normativos, de interpretação
como tarefa meramente objetiva e formal, destacada pela plena neu-
tralidade do intérprete.26

3 A insuficiência do modelo liberal diante da


desigualdade material entre os indivíduos. A
necessidade de intervenção do Estado na economia e
nas relações sociais
Consoante já restou assinalado, embora o modelo de Estado
liberal tenha contribuído para a garantia dos direitos de liberdade e
igualdade dos indivíduos, a feição meramente formal de tais direitos
traduziu-se em verdadeira desigualdade social, refletida principalmente
na prevalência da vontade dos mais fortes.
Enquanto a liberdade era concebida apenas como forma de
desligamento das amarras estatais, como liberdade de mercado e de
propriedade, e a igualdade restringia-se à percepção de tratamento
igualitário perante a lei, desenvolvia-se uma sociedade massificada,
materialmente desigual, carente de direitos que consagrassem os
anseios sociais, e não apenas as pretensões do indivíduo proprietário.
Percebeu-se, então, menos por iniciativa do próprio Estado e
mais por exigência da sociedade, que não bastava simplesmente a ga-
rantia de direitos individuais, pois era também necessária a garantia
de condições mínimas de existência para cada ser humano e para as
suas relações com a sociedade.
O foco deixa de ser apenas o indivíduo e passa a ser o todo social,
do qual o indivíduo faz parte, e no qual se relaciona.
O Estado passa a ter como valores supremos o “homem-pessoa”
(≠ homem-indivíduo) e a sociedade, tudo indissoluvelmente vinculado
a uma “concepção reabilitadora e legitimante do papel do Estado com
referência à democracia, à liberdade e à igualdade”.27

26
Advirta-se que essa postura hermenêutica ainda vigora em grande medida em nosso país,
não obstante a Carta Constitucional de 1988 — precedida, no que toca ao perfil econômico-
social, pelas Constituições de 1934 e 1946 — tenha perpetrado uma verdadeira mudança
de paradigma hermenêutico, consoante se analisará ao longo deste estudo.
27
BONAVIDES. Do Estado liberal ao Estado social, p. 368.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
176 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

A liberdade individual e a propriedade passam a ser subordi-


nadas ao interesse social ou coletivo, sem significar, contudo, um tota-
litarismo dos aspectos coletivos e sociais em detrimento do indivíduo,
como têm entendido, com exagero, alguns autores;28 mas significando
uma forma de harmonizar interesses individuais e sociais/coletivos.
Assim, o Estado social não significa apenas a inserção dos direitos
sociais no ordenamento constitucional, mas que todos os demais direitos
devem ser entendidos sob a ótica social, a fim de que se assegure um
equilíbrio na relação entre os indivíduos, e entre estes e a sociedade.
Para que esse equilíbrio seja atingido, o Estado passa a intervir
nas relações sociais, econômicas, e, inclusive, nas relações que a priori
pareçam ter repercussões meramente individuais — tal como ocorre
nos contratos, por exemplo.
Ao contrário do que verberam os defensores do capitalismo
denominado neoliberal, essa intervenção do Estado nos aspectos sociais
e econômicos não possui caráter paternalista, não se constituindo em
uma proteção em excesso, ou na geração de parasitas sociais, mas
possui o objetivo primordial de concretizar o princípio da igualdade
em sua essência, fazendo com que as relações entre os indivíduos se
perfaçam de modo equânime, oferecendo uma superioridade jurídica
àqueles que são inferiores de fato, como exemplo, os trabalhadores,
consumidores etc.
O Estado social se constitui, assim, em um Estado interventor,
plasmado na promoção da justiça social e da igualdade substantiva.
Esse modelo de atuação estatal firmou-se no ordenamento jurí-
dico brasileiro a partir da Constituição de 1934, que foi seguida pelas
demais Constituições promulgadas de 1946 e 1988, quando o texto
constitucional passou a catalogar determinadas categorias de direitos
nos quais é prevalecente o caráter social sobre o individual, onde são
impostas ao Estado prestações positivas, objetivando acrescer aos direi-
tos fundamentais de primeira dimensão (vida, liberdade, propriedade
e igualdade formal) os ditames do desenvolvimento e da justiça social.
Nesse contexto, dilata-se o âmbito de ingerência do Estado, que
passa a intervir em esferas das quais se abstinha, sendo exemplo clás-
sico o direito de propriedade (tido como materializador da riqueza e

28
Daniel Sarmento (Direitos fundamentais e relações privadas, p. 41), por exemplo, posiciona-se
no sentido de que “se é certo que os excessos do individualismo egocêntrico do liberalismo
tinham de ser podados, em prol de interesses da coletividade e em especial dos hipossufi-
cientes, não é menos certo que a afirmação da superioridade do coletivo sobre o individual
— expressão de uma concepção organicista da sociedade, na qual a pessoa humana, como
parte, fica subordinada aos interesses do todo — representa a ante-sala para o totalitarismo”.

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ANA CAROLINA TRINDADE SOARES
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177

proclamado como fundamento da liberdade dos indivíduos), que sai


do campo de interesses puramente individuais e assume ampla função
social, largamente regulada pela Constituição.
Assim, interesses que eram tidos como intangíveis, e sem nenhum
reflexo para a sociedade, passam a ser disciplinados pela Constituição,
que unificou em torno de si todo o complexo material de normas que
compõe a ordem jurídica.
Para além disso, é de se destacar a incorporação pelo texto cons-
titucional de uma nova dimensão de direitos fundamentais, caracteri-
zada pelo redimensionamento da titularidade de tais direitos, que, de
eminentemente vinculados aos sujeitos, passam a abarcar determinados
grupos, numa verdadeira mudança de paradigma, onde prevalecem
os direitos de solidariedade, que somente vieram a ser plenamente
consolidados no Brasil com a Constituição Federal de 1988.
Nessa perspectiva, de intervenção estatal em busca da igualdade
material baseada nos preceitos de solidariedade, o direito civil — até
então marcado pelo pensamento liberal e pela ideia de sistema fecha-
do, porque concentrado em uma codificação, que oferecia estabilidade
jurídica a uma economia de mercado desvinculada do aspecto social
— não conseguia mais dar respostas aos novos anseios da sociedade,
principalmente após a Revolução Industrial, geradora de uma cultura
massificada, com grande circulação de bens e serviços, que não se
resumiam, como outrora, à propriedade clássica objeto primordial da
codificação.
Notou-se, então, que os valores desta sociedade não mais se
identificam com aqueles difundidos pelo direito do Estado liberal, ao
revés, são sobrepostos pelos ditames do Estado social, onde prevalecem
os princípios da função social, da boa-fé objetiva, do equilíbrio e da
igualdade material, perdendo coloração os postulados da autonomia
da vontade e da igualdade meramente formal.
Por outro lado, cogita-se, atualmente, da configuração de um Es-
tado pós-social, caracterizado pela subsidiariedade da atuação estatal29
e pela disseminação do poder pela sociedade, diminuindo horizontal-
mente o papel do Estado.30
Mais especificamente, esse modelo de Estado se caracterizaria pela
restituição à iniciativa privada do exercício de atividades econômicas
às quais vinha se dedicando, através de privatizações e da busca de
parcerias para a prestação de serviços públicos.

29
SARMENTO. Direitos fundamentais e relações privadas, p. 51.
30
SILVA. Vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de
Direito Público, p. 44.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
178 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Tal formulação advém da denominada crise do Estado social e


remonta aos defensores do neoliberalismo. Contudo, é de se observar
que tais circunstâncias não são suficientes para que se permita concluir
por um esfacelamento do Estado social no Brasil.
Conquanto nos últimos tempos governos conclamados neolibe-
rais tenham deflagrado uma série de privatizações, isto não significa que
a feição jurídica do Estado tenha perdido o seu perfil intervencionista.
Não obstante as privatizações, o poder de intervenção estatal na
atividade econômica subsiste. O Estado não pode se eximir de fiscali-
zar a atividade privada e intervir em sua atuação para adequá-la aos
ditames da justiça social.
O art. 170 da Constituição Federal, que regula a Ordem Econô-
mica e Financeira, estabelecendo os princípios que regem a atividade
econômica, permanece inalterado. Seu conteúdo normativo impõe
como finalidade da ordem econômica a garantia a todos de uma exis-
tência digna, observadas a função social da propriedade, a defesa do
consumidor e do meio ambiente, a redução das desigualdades sociais
e regionais, a busca pelo pleno emprego. No art. 174, o Estado aparece
como agente normativo e regulador da atividade econômica, exercendo
as funções de fiscalização, incentivo e planejamento.
De ver-se, portanto, que a chamada crise do Estado social se situa
na dimensão da ordem social insatisfeita (na falta de implementação
de políticas públicas, na ineficiência do Estado para a promoção das
exigências da coletividade, na desigualdade real que ainda persiste;
enfim, e infelizmente, na falta de efetividade dos direitos sociais), não
se estendendo à feição jurídica do Estado social e a toda a base princi-
piológica por ele instaurada.
Impende concluir, portanto, que a ordem jurídica brasileira
continua sendo regida pelos preceitos sociais, adequando-se perfeita-
mente à compreensão de Estado social, que “se revela pela interven-
ção legislativa, administrativa e judicial nas atividades privadas”, de
modo que as “Constituições sociais são assim compreendidas quando
regulam a ordem econômica e social, para além do que pretendia o
Estado liberal”.31
Os postulados do Estado social impõem uma nova forma de
compreensão da ordem jurídica, agora pautada pela promoção da jus-
tiça social, da garantia da dignidade da pessoa humana, da igualdade

31
LÔBO. Princípios sociais dos contratos no Código de Defesa do Consumidor e no novo
Código Civil. Revista de Direito do Consumidor, p. 187.

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A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DOS CONTRATOS NO CONTEXTO DAS TRANSFORMAÇÕES ...
179

material — e não somente da proclamação erística da igualdade —, da


solidariedade (concebida não apenas como preceito ético, mas como
imposição legal de cooperação de uns com os outros), da introdução
de aspectos axiológicos, e da superação dos rigores do formalismo
tradicional.
Com isso, a interpretação e a aplicação do direito ganham novos
contornos, opondo-se à estrita observância do modelo lógico-dedutivo
e incorporando as teorias antiformalistas, que ascenderam a partir do
século XIX, fazendo com que esses dois momentos do fenômeno jurídico
passassem a ter uma maior correspondência com a realidade: abstração
e formalismo dão lugar à concretude, ao exame das situações jurídicas
além da simples subsunção lógica.
Percebeu-se, então, que as novas demandas sociais, extremamen-
te complexas e empiricamente insolúveis através do simples recurso
à subsunção, “impunham uma concepção substantiva de justiça”32
inatingível por meio da compreensão formalista do fenômeno jurídico.
Como bem observa Paulo Bonavides,33 o direito passa a instaurar-­
se sobre outras bases, que não são as do individualismo minguante, mas
as da socialização ascendente, que trouxeram à altura constitucional os
direitos fundamentais da segunda dimensão, requerendo o alargamento
e a renovação de todo o instrumental interpretativo, buscando o direito
nas suas raízes sociais.

4 O direito contratual no Estado liberal. O Código Civil


como locus normativo dos contratos privados e o
dogma da completude
O estudo do direito não pode se afastar de uma análise da so-
ciedade e do indivíduo nela historicamente inserido, “de maneira a
permitir a individualização do papel e do significado da juridicidade
na unidade e na complexidade do fenômeno social”,34 sob pena de se
conceber um direito imutável, eterno, a-histórico e separado da reali-
dade que o circunda.
Dessa percepção igualmente não pode prescindir o estudo do
direito dos contratos, havendo, pois, a necessidade de contextualizá-­
lo às mutações históricas consideradas relevantes para a sociedade,

32
SARMENTO. A ponderação de interesses na Constituição Federal, p. 20.
33
BONAVIDES. Do Estado liberal ao Estado social, p. 9, 19.
34
PERLINGIERI. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional, p. 1.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
180 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

rompendo-se com o caráter absoluto outrora atribuído aos institutos


jurídicos.
A compreensão de contrato sempre esteve relacionada ao
acordo de vontades necessário para a sua formação, reduzindo-o a
uma categoria geral e abstrata, regida pelas regras da lógica formal.
O conjunto das ideias dominantes no liberalismo constituiu-se em
matriz da concepção do contrato como consenso e “da vontade como
fonte dos efeitos jurídicos, refletindo-se nessa idealização o contexto
individualista do jusnaturalismo, principalmente na superestimação
do papel do indivíduo”.35
Nesse cenário socioeconômico gerido pelo princípio do laissez
faire, o interesse público consistia em deixar os operadores econômi-
cos livres para agir e para contratar. Abstratamente considerados, os
indivíduos participavam de relações contratuais fundadas em uma
igualdade meramente formal: refletindo um projeto político de índole
burguesa, a codificação civil apreende este indivíduo como titular de
vontade e garante-lhe proteção patrimonial.36
Esse modelo, surgido no século XVIII e consolidado no século
XIX, baseia-se no consensualismo, que, por sua vez, servirá de funda-
mento para a obrigatoriedade dos contratos, que passa a justificar-se
pelo respeito ao que foi voluntária e igualmente (igualdade formal,
repita-se) definido pelas partes contratantes.
O Código Civil de 1916 reflete essa concepção, ao elevar a vontade
ao cerne do contrato, o que resulta no desenvolvimento de teorias em
torno da autonomia da vontade, da irrestrita obrigatoriedade dos con-
tratos e da proibição de ingerências externas ao seu conteúdo. Partia-se
do pressuposto de que as partes, livres e iguais que eram, deveriam
respeitar a palavra dada, o que justificava o dever de cumprimento das
obrigações pactuadas, independentemente do conteúdo do pacto, e a
formulação de normas jurídicas que assegurassem a obrigatoriedade
dos contratos.
A disciplina jurídica somente servia para assegurar o respeito
às regras do jogo. Como as partes eram livres para fixar o conteúdo do
contrato,37 o ordenamento jurídico não interferia para corrigir qualquer

35
GOMES. Contratos, p. 6.
36
NEGREIROS. Teoria do contrato: novos paradigmas, p. 15.
37
Observa Orlando Gomes (Contratos, p. 5-6) que a Escola do Direito Natural, racionalista e
individualista, influiu na formação histórica do conceito moderno de contrato ao defender
a concepção de que o fundamento racional do nascimento das obrigações se encontrava na
vontade livre dos contratantes, daí porque bastava o consentimento para obrigar. O acordo
de vontades era concebido como a fonte do vínculo jurídico, e, por isso, defendia-se que o
contrato tinha força de lei entre as partes.

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ANA CAROLINA TRINDADE SOARES
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DOS CONTRATOS NO CONTEXTO DAS TRANSFORMAÇÕES ...
181

desproporção eventualmente pactuada. Tratava-se, no dizer de Enzo


Roppo, “de regras de procedimento e não tanto de regras de substân-
cia, atinentes mais ao exterior que ao interior da relação contratual”.38
A preocupação do legislador e do aplicador da norma resumia-se a
garantir a exatidão dos modos pelos quais se chegava à formação e à
execução do contrato, pouco importando o seu conteúdo ou o controle
do equilíbrio das prestações.
Partindo-se do pressuposto de que as partes podiam livremen-
te discutir todas as condições contratuais, nos dissídios que acaso se
formassem, a missão do juiz era exclusivamente a de apurar a vontade
dos contratantes, em um processo de pura reconstrução.39 Os contratos
configuravam-se como uma espécie de “zona franca”40 das prescrições
dos poderes públicos, mostrando-se como domínio incontrolável da
vontade dos contratantes, haja vista serem concebidos como instru-
mento da autonomia privada.
Assim, o tratamento legislativo, doutrinário e jurisprudencial do
contrato limitava-se à explicação dos seus pressupostos e requisitos,
formas de dissolução, nulidade e classificação. A vontade como cerne
do contrato, aliada à crença na igualdade e liberdade dos contratantes,
impõe que tanto o legislador quanto o juiz lhes devem fiel observância,
não podendo intervir naquilo que foi pactuado entre as partes, haja
vista ser decorrência de obrigações voluntariamente fixadas. Aqui, a
lei somente teria a função de proteger a livre formação e manifestação
do consentimento.
Ganham destaque as teorias da vontade como expressão suprema
e inderrogável do indivíduo e de sua liberdade, de modo que o con-
trato passa a ser considerado fonte primordial das obrigações como e
enquanto manifestação da vontade.41

38
ROPPO. O contrato, p. 224.
39
BESSONE. Do contrato: teoria geral, p. 34.
40
Expressão utilizada por Enzo Roppo (O contrato, p. 336). Salienta Roppo que o contrato,
tido como eixo fundamental da sociedade liberal (baseado nos princípios da livre iniciativa
individual, da concorrência no mercado e da procura ilimitada pelos lucros), torna-se a
bandeira das sociedades nascidas das revoluções burguesas, e bem assim um elemento de
sua legitimação. Destaca que toda uma série de teorias em torno da gênese, da natureza,
do ordenamento e do funcionamento da sociedade, amadurecidas nos séculos XVII e XVIII,
intitulavam-se contratualismo, sendo comum aos filósofos deste período a ideia de que a
sociedade nasceu e se baseia no consenso.
41
MARTINS-COSTA. Crise e modificação da idéia de contrato no direito brasileiro. Revista de
Direito do Consumidor, p. 130. Esclarece Judith Martins-Costa (p. 132-133) que, para funda-
mentar a força da vontade, os adeptos da Teoria Subjetiva, ainda marcados pelo mais extre-
mado voluntarismo, explicavam que esta provinha de si, ou seja, o contrato obrigava pelo

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182 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

A força obrigatória dos contratos decorria justamente dessa


relevância atribuída à vontade. Se as partes eram iguais e livres para
constituir suas obrigações de acordo com a sua vontade, não podiam
furtar-se de cumpri-las. O contrato era, assim, a própria expressão da
autonomia privada, reconhecendo às partes a liberdade de estipular
o que lhes conviesse e fornecendo eficácia jurídica às combinações de
interesses.
As bases da força obrigatória dos contratos e, por conseguinte, da
sua imutabilidade, obrigação de irrestrito cumprimento, e impermea­
bilidade a interferências exteriores, consubstanciavam-se na ideia de
igualdade entre as partes e do contrato como decorrência da vontade
livre dos contratantes. A ordem jurídica tinha como eixo a tutela sub-
jetiva da vontade, o que, no ambiente do Estado social irá se deslocar
para a tutela da confiança, da proteção do contratante vulnerável e da
prevalência do princípio da solidariedade, conforme se verá adiante.
A ordenação jurídica de caracteres liberais resistia às tentativas
de introdução de limites e de medidas destinados à proteção da parte
contratualmente mais fraca. A obrigatoriedade de cumprimento das
obrigações contratuais na forma como dispostas pelos contratantes não
tolerava a intromissão do poder público.
À liberdade de contratar ou não, de definir com quem contratar
e de determinar o conteúdo do contrato correspondia, como necessário
contraponto, uma ilimitada responsabilidade pelos compromissos as-
sim assumidos, “configurados como um vínculo tão forte e inderrogável
que poderia equiparar-se à lei”.42

simples fato de ser “contrato”, vale dizer, consentimento. Já para os partidários da Teoria
da Declaração, a força da vontade derivaria da lei e por isso ela teria o condão de criar nor-
mas ou preceitos. Divergem — ainda quanto a esse aspecto — as teorias da vontade e da
declaração. Segundo a teoria da vontade (origem na França), esta é produtiva de obrigações
por sua própria força. “Ocorrendo dissídio, o papel do juiz consiste, modestamente, em
simples pesquisa da vontade real, preferindo-a à sua expressão material, se porventura não
coincidirem” (BESSONE. Do contrato: teoria geral, p. 36). Os propositores da teoria da de-
claração, de origem germânica, criticam a teoria da vontade defendendo que a vontade real
é de caráter interno ou subjetivo. Assim, se a declaração não a revelar, a sua apuração teria
de valer-se de meios inseguros e perigosos. Destacam que a vontade se constitui não apenas
internamente, mas de momentos integrativos sucessivos, dos quais o último é a declaração.
Defende Darcy Bessone (p. 37) que a verdadeira solução é a intermediária: se, em regra, é
de preferir-se a vontade real, casos há em que, por conveniências sociais de segurança nas
relações jurídicas, a vontade declarada deve prevalecer, porque, sendo a declaração o meio
normal de revelação da vontade interna, não devem os que nela confiarem sofrer prejuízo
pela divergência entre uma e outra. Segundo Bessone, a declaração não é uma das etapas
do processo constitutivo da vontade, mas tão somente a revelação ou expressão de uma
vontade constituída internamente.
42
ROPPO. O contrato, p. 34.

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A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DOS CONTRATOS NO CONTEXTO DAS TRANSFORMAÇÕES ...
183

Além de um fundamento ético, de cumprimento ao que fora


contratado, o princípio do pacta sunt servanda apresentava também
uma relevância econômica, pois a obrigatoriedade de cumprimento
dos compromissos assumidos contribuía para o desenvolvimento das
operações de circulação de riqueza, o que conferia segurança e previ-
sibilidade às operações econômicas.
A ideia de justiça que se extraía dessas relações decorria do fato de
que o conteúdo dos contratos correspondia à vontade livre das partes,
que, espontânea e conscientemente, o determinavam em conformida-
de com os seus interesses, “e, sobretudo, o determinavam num plano
de recíproca igualdade jurídica”,43 de paridade de todos os cidadãos
perante a lei. Liberdade e igualdade completavam-se reciprocamente,
para resultar na concepção de que o dizer contratual correspondia ao
dizer justo.
A máxima expressão do liberalismo e do individualismo con-
tratual encontrava-se, pois, no dogma da autonomia da vontade. Em
linhas gerais, as partes podiam definir por si, e não por imposição
externa, as regras de sua própria conduta. Livres para obrigarem-se
como quisessem, os sujeitos contratuais ligavam-se através de um
vínculo rigoroso, consistente no nexo entre liberdade contratual e
responsabilidade contratual.
Se o contrato possuía sua fonte na vontade concordante das par-
tes, não se podia admitir, ao menos em regra, que uma delas pudesse
unilateralmente subtrair-se aos seus comandos, o que consistiria em
grave violação à segurança jurídica, sobretudo no pertinente à segu-
rança das relações negociais.
Essa segurança também era buscada na ideia de codificação.
Destinado a constituir uma disciplina tendencialmente completa das
relações firmadas entre os particulares, o Código Civil era concebido
como centro normativo dos contratos privados. Entendia-se que suas
proposições, coerentemente organizadas, funcionavam como fator de
segurança, já que a regulamentação dos contratos se encontrava em
somente um corpo normativo, sistemático e completo.
Pretensamente neutra e calcada em abstratas categorias jurídicas,
a codificação civil destinava-se a ser impessoal, praticamente inatin-
gível e com pretensões à perenidade: o Código Civil era o código do
“homem sozinho, centrado em uma hipotética autorregulamentação
de seus interesses privados, e conduzido pela insustentável igualdade

43
ROPPO. O contrato, p. 35.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
184 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

formal”, que serviu para emoldurar o sistema jurídico privado,44 refle-


tindo no distanciamento entre o direito e as situações de fato existentes
na sociedade.
Como anota Judith Martins-Costa, o fenômeno da codificação
decorreu do específico conceito de igualdade (formal) gestado na Re-
volução Francesa, o que conduziu à criação de corpos organizados de
leis destinados a regular em abstrato situações análogas, “parificando
as soluções jurídicas com base no pressuposto de que, perante a lei,
todos os cidadãos são iguais”.45
Nesse plano, diferentemente do Código Civil de 2002 no que
concerne aos contratos, a codificação civil de 1916 limitava-se a regu-
lamentar as formas de manifestação da vontade e formação do vínculo
contratual, nada dispondo acerca dos limites à liberdade de contratar,
da boa-fé que deve reger as relações entre as partes contratantes, ou da
interpretação dos contratos; não tratando, aliás, da proteção do polo
contratual mais fraco.
O Código de 1916 espelhava, enfim, a visão jurídica prepon-
derante à época (doutrinária, legislativa e jurisprudencial) acerca das
relações entre particulares. Eminentemente patrimonialista e apartada
da realidade social, a Lei Civil acondicionava “um retumbante silêncio
sobre a vida e sobre o mundo”; nela somente especulou-se “sobre os que
têm, e se julgou o equilíbrio do patrimônio de quem se pôs, por força
dessa titularidade material, em uma relação reduzida a um conceito
discutível de esfera jurídica”.46
Sinteticamente, a codificação civil do Estado liberal resumia o
conteúdo do direito dos contratos à liberdade de contratar, baseada na
soberania da vontade individual dos contratantes, que, acreditava-se,
relacionavam-se igualitariamente.

5 Inserção da teoria dos contratos no Estado social. A


repersonalização do direito civil e sua influência na
teoria dos contratos. A mudança de paradigma da
legislação contratual
A compreensão do contrato como expressão da liberdade indi-
vidual e a ideia de que as partes contratantes eram iguais para dispor

44
FACHIN. Teoria crítica do direito civil: à luz do novo Código Civil brasileiro, p. 211.
45
MARTINS-COSTA. Crise e modificação da idéia de contrato no direito brasileiro. Revista
de Direito do Consumidor, p. 130-131.
46
FACHIN. Teoria crítica do direito civil: à luz do novo Código Civil brasileiro, p. 213-214.

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ANA CAROLINA TRINDADE SOARES
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DOS CONTRATOS NO CONTEXTO DAS TRANSFORMAÇÕES ...
185

dos termos contratuais na medida de seus interesses, sem interferências


exteriores, foi desenvolvida no contexto histórico do Estado liberal,
sobretudo na fase do predomínio do capitalismo industrial da segunda
metade do século XIX.
Contudo, conforme já se assinalou, o estudo do Direito, e aqui
mais especificamente o estudo da teoria dos contratos, não pode estar
apartado das transformações — econômicas, sociais e políticas — pelas
quais vem passando a sociedade.
Embora a legislação e a jurisprudência não assimilem tais trans-
formações de modo imediato, o que também ocorre com a doutrina,
que muitas vezes peca por manter um apego a determinados institu-
tos jurídicos que entende como absolutos, quando estes na realidade
igualmente sofrem a inegável e inafastável influência dos contornos
histórico-sociais, não se pode perder de vista que nas sociedades
contemporâneas o contrato e o direito dos contratos apresentam-se
diferentes de como se mostravam nos séculos XVIII e XIX.
Conquanto essas transformações sejam evidentes, muitos ain-
da têm dificuldade em captar o seu sentido e a sua dimensão real,
ministrando à realidade atual soluções que não mais se aplicam, em
uma manifesta desconsideração do processo histórico, o que “gera a
dessimetria, a disfunção do direito, com respeito às realidades social e
econômica que lhe são subjacentes”.47
A leitura da teoria dos contratos no Estado social afasta-se do
modelo do voluntarismo jurídico projetado pelo liberalismo econômico
e político, e busca compreender um novo modelo contratual moldado
pelas ideias de solidariedade, de igualdade real e de intervenção do
Estado nos contratos, outrora inatingíveis por fatores alheios à sacra-
lizada vontade das partes.
Além da intervenção do Estado, o direito dos contratos depara-­
se atualmente com práticas contratuais cada vez mais distantes da
autonomia privada tradicional e da “presença paradigmática do cunho
patrimonial nas relações jurídicas”.48

47
LÔBO. O contrato: exigências e concepções atuais, p. 13. Nesse sentido, são relevantes as
observações de Enzo Roppo (O contrato, p. 296), ao destacar que, quando negam que as
transformações dos contratos de fato se verificam e são profundas, as ideologias jurídicas
de índole conservadora fingem que o contrato e o direito dos contratos são, hoje, substan-
cialmente idênticos ao que eram no século XIX. Conclui que isso se deve a um tendencial
tradicionalismo dos juristas, “com a sua relutância e a sua lentidão na tomada de consciência
do que é novo”, o que resulta na incorreção de teorias e de determinados conceitos jurídicos.
48
FACHIN. Teoria crítica do direito civil: à luz do novo Código Civil brasileiro, p. 204.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
186 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Na tentativa de se aproximar da realidade que o circunda, o


direito civil “é chamado a desempenhar tarefas de proteção”49 a partir
de diferenciações normativas tendentes a proporcionar tratamento
jurídico distinto àqueles que se encontram em situações jurídicas dis-
tintas, rompendo com o paradigma individualista do sujeito de direito
abstrato dotado de capacidade negocial, para atingir a pessoa situada
concretamente nas suas relações econômico-sociais.
O ordenamento jurídico opta — embora lentamente — pelo
personalismo, caracterizado pela superação do individualismo e da
patrimonialidade como fim em si. A tutela da dignidade da pessoa
humana rompe com a concepção unitária de indivíduo e insere a pessoa
no ambiente social.
Com isso, não se projeta a expulsão ou a redução quantitativa do
conteúdo patrimonial no sistema jurídico, e, especialmente, no sistema
civilístico, pois “o momento econômico, como aspecto da realidade
social organizada, não é eliminável”: o que se busca é avaliar qualita-
tivamente o momento econômico, com vistas a encontrar, na exigência
de tutela do homem, um aspecto idôneo a atribuir-lhe uma justificativa
institucional de suporte ao livre desenvolvimento da pessoa.50 Assim,
a tutela aos interesses patrimoniais é qualitativamente diversa e atenta
aos valores existenciais.
A repersonalização do direito civil desafia o civilista a ver as
pessoas em toda a sua dimensão ontológica, e, por meio dela, o seu
patrimônio. Impõe-se a materialização dos sujeitos de direito, que são
mais que apenas titulares de bens. Restaura-se a primazia da pessoa
humana, que nas relações civis passa a ser a condição primeira de
adequação do direito à realidade e aos fundamentos constitucionais.51
Esse processo de materialização repercute na forma como se vê
o sujeito contratante e o conteúdo dos contratos, antes ofuscados pela
importância que se atribuía à formação e à manifestação da vontade
de contratar.
Quando a Constituição Federal de 1988 tutela o direito à vida e
à dignidade da pessoa humana e impõe como objetivo fundamental da

49
NEGREIROS. Teoria do contrato: novos paradigmas, p. 18.
50
PERLINGIERI. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional, p. 33. Perlingieri
adverte para a necessidade de redefinição do centro do sistema e das modalidades teóricas
de tal redefinição, anotando que a despatrimonialização do direito civil é o caminho para a
reconstrução do sistema; “não é uma moda, mas uma escolha de política legislativa de alcan-
ce histórico. Um caminho ‘difícil’, mas ‘possível’, sobre o qual as convergências não podem
ser só teóricas” (p. 66).
51
LÔBO. Constitucionalização do direito civil. Revista de Informação Legislativa, p. 103.

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ANA CAROLINA TRINDADE SOARES
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DOS CONTRATOS NO CONTEXTO DAS TRANSFORMAÇÕES ...
187

República Federativa do Brasil a constituição de uma sociedade livre,


justa e solidária, os faz com referência ao sujeito de direito concreto, ao
homem-pessoa, detentor de direitos e garantias constitucionalmente
previstos, e não àquele sujeito de direito abstrato do sistema clássico.
Essa imposição constitucional refletiu no Código Civil de 2002,
que espelha a preocupação do Constituinte em garantir a proteção
dos interesses privados, conciliada aos interesses da sociedade e do
indivíduo concretamente considerado.
Tal preocupação fica nítida, por exemplo, quando a legislação
civil adota a função social do contrato como expresso limite à liberdade
de contratar (Código Civil, art. 421), bem como quando determina que
as cláusulas ambíguas ou contraditórias do contrato de adesão devem
ser interpretadas de modo mais favorável ao aderente (art. 423), o que
de pronto já evidencia a mudança de paradigma da legislação contra-
tual, que sai da lógica individualista — manifestamente incapaz de
resistir ao confronto com a realidade e com os problemas postos pelas
desigualdades sociais — para examinar a produção de efeitos dos
contratos perante a sociedade, e bem assim para tutelar a parte mais
fraca da relação contratual.
Não se trata de subordinar ou de opor o interesse individual
ao interesse social, mas de conciliá-los, de buscar um ponto de equi-
líbrio, de reconhecer que as partes contratantes e, por conseguinte,
os contratos, não compõem uma categoria homogênea e apartada da
realidade social.
A partir desse reconhecimento, abandona-se a mera abstração
para construir critérios de diferenciação aptos a solucionar os conflitos
entre liberdade individual e solidariedade social, “abandonando-se
a idéia de ordenar toda a matéria contratual em torno de um único e
absoluto paradigma”.52
Embora se reconheça igualmente a dificuldade de definição
desses critérios, haja vista ser impossível o emprego de parâmetros
matemáticos e estáticos para a solução de qualquer problema jurídico,
com efeito, “a imposição de solidariedade, se excessiva, anula a liber-
dade; a liberdade desmedida é incompatível com a solidariedade”.53
Assim, esses dois marcos que atualmente vêm sendo observados na
teoria contratual devem ser entendidos mediante a ideia de comple-
mentaridade: “regulamenta-se a liberdade em prol da solidariedade

52
NEGREIROS. Teoria do contrato: novos paradigmas, p. 40.
53
MORAES. Constituição e direito civil: tendências. Revista Direito, Estado e Sociedade, p. 109.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
188 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

social, isto é, da relação de cada um com o interesse geral”,54 a fim de


reduzir a desigualdade e possibilitar o livre desenvolvimento da pessoa.
Isso não significa uma negação da importância do conteúdo
voluntarístico na constituição do contrato, muito menos uma absoluti-
zação do seu conteúdo social, mas um freio aos excessos provenientes
da clássica força jurígena atribuída à intocável vontade individual.
Superando-se a ideia de absoluta e abstrata igualdade entre as
partes contratantes, a autonomia da vontade e os demais princípios
que em decorrência dela fundaram o modelo de contrato vigente sob
a égide da codificação liberal não devem, portanto, ser anulados, mas
relidos à luz dos pressupostos do Estado social, que sem dúvida os
modificam em aspectos essenciais.
Se antes o encontro de vontades bastava para que o contrato
fosse formado e mantido sem quaisquer interferências alheias à von-
tade das partes, sendo bastante uma disciplina jurídica que garantisse
a execução do contrato na forma como pactuado, porque gestado em
um sistema econômico individualista e pouco dinâmico, no qual as
disposições contratuais eram discutidas e conservavam certo caráter
pessoal, esse disciplinamento jurídico não mais satisfaz as exigências
da atual sociedade de massa.
A mudança com relação ao decisivo relevo atribuído à vontade
individual é, assim, compreendida sob uma dúplice perspectiva: por
um lado, a realidade contratual mostra que os pactos não mais refletem
o efetivo consenso entre a vontade das partes; por outro, a vontade
dita como refletida no contrato não é mais imune à atuação legislativa
e judicial.
As relações contratuais massificadas caracterizam-se pelo in-
cremento do volume de trocas e pela celeridade com que as avenças
necessitam ser realizadas, o que gera uma crescente estandardização
e impessoalidade das disposições contratuais, incompatíveis com
a atribuição de relevância decisiva à vontade individual das partes
contratantes.
A despersonalização das relações contratuais e o automatismo
das atividades destinadas a constituí-las ficam evidentes nas relações de
consumo, por exemplo, onde não é incomum o emprego de condições
gerais, módulos e formulários, predispostos antecipadamente por uma
das partes, para uma massa homogênea e indiferenciada de contrapar-
tes, cuja atuação resume-se “a um simples acto de adesão mecânica e

54
MORAES. Constituição e direito civil: tendências. Revista Direito, Estado e Sociedade, p. 109.

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ANA CAROLINA TRINDADE SOARES
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DOS CONTRATOS NO CONTEXTO DAS TRANSFORMAÇÕES ...
189

passiva ao esquema pré-formulado, muito longe do significado que,


na época clássica do liberalismo contratual, se atribuía ao conceito de
‘declaração de vontade’”.55
Somado a isso, o papel e as características do poder da vontade
também se alteram em virtude da intervenção do Estado, com vistas a
ajustá-la à dimensão coletiva que lhe é subjacente e ao real equilíbrio
que deve existir entre as partes contratantes. Assim, o contrato deixa de
ser regido apenas pelas disposições resultantes da vontade das partes,
para ser regulado também por prescrições legais. Além disso, é possi-
bilitada a intervenção do Estado-Juiz no contrato, para (r)estabelecer
o equilíbrio da relação.
A atuação do juiz — que antes se resumia à tentativa de fiel
reconstrução da vontade das partes — muda de perfil e cresce em im-
portância. O controle judicial dos contratos, antes inimaginável, volta-­
se à equitativa distribuição dos riscos, das vantagens e desvantagens
deles originadas, tanto para as partes individualmente consideradas
quanto para a sociedade.
Os magistrados passam a se deparar com novos tipos de con-
flitos, que não mais se resumem aos interesses individuais. Agora é
preciso conciliar tais interesses com os direitos da coletividade, o que
exige do julgador um “novo padrão de racionalidade, de natureza
essencialmente material ou substantiva”,56 distinto dos limites estritos
da codificação liberal.
Assim, o Judiciário passa a assumir a função de um intérprete
que põe em evidência a vontade geral implícita nos textos constitucio-
nais, devendo assumir uma postura intervencionista,57 fundamental
nas sociedades democráticas atuais.
Note-se que não se trata da defesa de uma atuação judicial ir-
restrita, a excluir o papel da vontade para a formação do contrato. A
intensidade do controle judicial no âmbito dos contratos será diversa se
tratar-se de um contrato nos moldes tradicionais, vale dizer, precedido de
negociações, onde as partes puderam, em larga medida, fixar as cláusulas
e conformar o conteúdo do ajuste, ou se, ao contrário, se tratar de um
contrato configurado como de adesão, incluídos aqui, genericamente,
os contratos de consumo.58

55
ROPPO. O contrato, p. 302-303.
56
FARIA. Os desafios do judiciário. Revista da Universidade de São Paulo, p. 54.
57
STRECK. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do
direito, p. 45, 51.
58
MARTINS-COSTA. Crise e modificação da idéia de contrato no direito brasileiro. Revista
de Direito do Consumidor, p. 143.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
190 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Esse cenário não permite concluir, portanto, pelo declínio ou pela


morte dos contratos, pela extinção da liberdade de contratar e do papel
da autonomia da vontade. Tal compreensão decorre de uma interpre-
tação desnaturada, superficial e simplificante das transformações pelas
quais vêm passando o direito civil e o direito dos contratos, impedindo
que se apreenda o significado próprio dessas transformações.
“Com a fórmula falsamente unificadora do ‘declínio da vontade’
ou da ‘crise do contrato’ costumam-se, de fato, cobrir, frequentemente,
situações e processos profundamente diferentes entre si em sentido e
qualidade”: é necessário, ao invés, distinguir cuidadosamente os vários
fenômenos que concorrem para delinear a imagem hodierna do contra-
to, e para assinalar a sua novidade, em relação à imagem consagrada
pela tradição no século XIX.59
Fundamental continua sendo o instituto do contrato, notada-
mente como instrumento da livre iniciativa, cujos valores sociais foram
eleitos pela Constituição Federal (art. 170) como um dos fundamentos
da ordem econômica. O que se defende na atual teoria dos contratos
é que a liberdade de contratar não se confunde com os abusos desse
direito nem impede a intervenção do Estado na fixação de parâmetros
de ordem pública que as partes não devam ultrapassar, em respeito
aos anseios do bem comum.60
Na verdade, o que se verifica é o declínio do papel do contrato
na sua feição liberal, entendido como “instrumento de uma consciente,
livre e paritária auto-determinação da própria esfera econômica”,61
concepção que não se sustenta diante das relações contratuais da atu-
alidade, governadas não por um ajustamento equilibrado de interesses
contrapostos, precedido de uma discussão aberta, mas pela imposição
unilateral de um regulamento predisposto por uma das partes, a que
a outra somente oferece a sua mecânica adesão.

6 A constitucionalização do direito dos contratos: sua


relevância no conjunto normativo diante da primazia
constitucional
Não é novidade que a ideia de hierarquização do ordenamento
jurídico, em cujo topo figura a Constituição, impõe que todo o orde-
namento se subordine à norma constitucional. Entretanto, quando se

59
ROPPO. O contrato, p. 296-297.
60
GOMES. Contratos, p. 16.
61
ROPPO. O contrato, p. 336.

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ANA CAROLINA TRINDADE SOARES
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DOS CONTRATOS NO CONTEXTO DAS TRANSFORMAÇÕES ...
191

examina a constitucionalização dos diversos ramos do direito, e mais


notadamente do direito civil, questiona-se acerca da possibilidade e do
alcance da norma constitucional na regulação de relações entre parti-
culares, haja vista que até pouco tempo o Código Civil era considerado
o único centro irradiador de normas de direito privado.
O Código Civil de 1916, fruto da doutrina individualista e
vo­luntarista, tratava de regular, sob o aspecto formal, a atuação dos
sujeitos de direito (sobretudo o contratante e o proprietário). Cuidava
da garantia legal das relações patrimoniais, resguardando-as contra as
ingerências do Poder Público, que, por sua vez, não interferia na esfera
privada, “assumindo o Código Civil, portanto, o papel de estatuto único
e monopolizador das relações privadas”.62
O Código almejava a completude, porque destinado a regular to-
dos os possíveis centros de interesse jurídico de que os sujeitos privados
viessem a ser titulares, o que lhes fornecia uma segurança, pois cumpria
ao código garantir à atividade privada, e em particular ao sujeito de
direito, “a estabilidade proporcionada por regras quase imutáveis nas
suas relações econômicas”.63
Nesse contexto, justificava-se o sentido constitucional que era
atribuído ao Código Civil. As relações do indivíduo ante a sociedade e
o Estado eram, respectivamente, de indiferença e de resistência. Embora
não se desconhecesse a categoria de interesse público, este era concebido
como resultado da soma da satisfação dos interesses particulares, o que
conferia à codificação civil uma estatura constitucional, pois a própria
concepção e o próprio fundamento do Estado partiam do indivíduo,64
ao ponto de o direito civil adquirir uma supremacia material em face
do direito constitucional.
Essa crença no individualismo, que marcou a codificação de
1916, somada à distinção estanque que se ofertava ao direito público
e ao direito privado, resultou (e ainda resulta) em uma compreensão
equivocada da ordem jurídica civil, fazendo com que a Constituição
fosse lida a partir do Código, e não o contrário.
A superação da dicotomia entre público e privado favorece que
se reconheça a incidência das normas constitucionais na disciplina ci-
vilística, o que, no âmbito dos contratos, torna-se mais evidente a partir
da inserção na ordem jurídica contratual dos ditames do Estado social.

62
TEPEDINO. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. Revista
de Direito do Estado, p. 38.
63
TEPEDINO. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. Revista
de Direito do Estado, p. 39.
64
NEGREIROS. Teoria do contrato: novos paradigmas, p. 15.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
192 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Deve ser reconhecida a dificuldade em se localizar um interes-


se privado que seja completamente autônomo e isolado do interesse
público, sobretudo diante da crescente presença dos denominados
interesses coletivos. A partir desse reconhecimento, fica mais clara a
possibilidade de influência das chamadas, classicamente, normas de
direito público no direito privado, e, por conseguinte, a compreensão
do alcance das normas constitucionais que regulam, direta ou indire-
tamente, as relações entre os particulares.
A tarefa do Estado em sua feição atual não é tanto aquela de
impor aos cidadãos um próprio interesse superior, mas a de realizar
a tutela dos direitos fundamentais e de favorecer o pleno desenvolvi-
mento da pessoa: “o Estado tem a tarefa de intervir e de programar
na medida em que realiza os interesses existenciais e individuais, de
maneira que a realização deles é, ao mesmo tempo, fundamento e
justificação da sua intervenção”.65
Assim, diante da dificuldade em se definir contornos definitivos
entre os interesses individuais, sociais e estatais, resta compreender
que o fracionamento da matéria jurídica e do ordenamento em ramos
tem um sentido porque divide por competências e por necessidade de
exposição uma matéria única em si mesma, mas não deve significar
que a realidade do ordenamento é divisível em diversos setores, “dos
quais um é totalmente autônomo em relação ao outro, de tal modo que
possa ser proclamada a sua independência”.66
O direito civil não se apresenta, portanto, como uma antítese
ao denominado direito público, mas se trata de um ramo — tal qual
os demais — que se justifica por razões didáticas e sistemáticas. Além
disso, ainda que didaticamente tratados em separado, não se pode negar
que o público e o privado se complementam, e igualmente não se pode
perder de vista que “o público não se esgota no estatal”.67

65
PERLINGIERI. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional, p. 54. Segundo
Perlingieri, diante destas técnicas no âmbito do direito civil, normalmente visto como o setor
da livre vontade dos sujeitos, entra em crise a comum sistemática do direito subdividido em
público e privado, pois técnicas e institutos nascidos no campo do direito privado tradicio-
nal são utilizados naquele do direito público e vice-versa, de maneira que a distinção, nesse
contexto, não é mais qualitativa, mas quantitativa. Assim, salienta Perlingieri que existem
institutos em que é predominante o interesse dos indivíduos, mas é, também, sempre pre-
sente o interesse dito da coletividade e público; e interesses em que, ao contrário, prevalece,
em termos quantitativos, o interesse da coletividade, que é sempre funcionalizado, na sua
essência, à realização de interesses individuais e existenciais dos cidadãos.
66
PERLINGIERI. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional, p. 55.
67
MATTIETTO. O direito civil constitucional e a nova teoria dos contratos.

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A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DOS CONTRATOS NO CONTEXTO DAS TRANSFORMAÇÕES ...
193

Sob essas bases, não cabe mais cogitar da impossibilidade de


regulação constitucional das relações entre particulares, até porque é
fato que a Constituição Federal de 1988 apresenta inúmeros dispositi-
vos direcionados à normatização de tais relações, constituindo-se no
fundamento comum dos diversos ramos do direito.
Em decorrência disso, também merece ser afastada a ideia de que
as normas de direitos fundamentais não seriam aplicáveis às relações
entre os particulares.68
No que concerne a essa temática, o que se observa é que, além de
importar soluções jurídicas inaplicáveis à realidade brasileira, a doutri-
na e mesmo a jurisprudência também estão importando discussões que,
apesar de se constituírem em problemas em relação a ordenamentos
jurídicos estrangeiros, não se constituiriam em problemas sob o manto
da ordem jurídica brasileira.
Ao contrário da Constituição alemã de 1949, cujo catálogo de
direitos fundamentais consagrou essencialmente direitos de natureza
liberal, entendidos como exercitáveis contra o Estado, por se constitu-
írem em direitos de proteção contra a atuação estatal, a Constituição
brasileira de 1988 também dedica grande parte de seus dispositivos ao
estabelecimento e garantia de direitos exercitáveis através do Estado e
aplicáveis às relações entre particulares.
Não fosse assim, impossível seria a exigibilidade de exercício do
direito de propriedade em atendimento à sua função social, de modo
que o Estado não poderia intervir para tornar efetiva essa função em
um relacionamento entre particulares, por exemplo.69
Portanto, o caso brasileiro é diverso. Em uma ordem constitu-
cional cujos direitos possuem caráter essencialmente liberal, qualquer
extensão do âmbito de aplicação desses direitos a outros tipos de relação

68
A discussão que ainda subsiste na doutrina, e que não será especificamente tratada no pre-
sente trabalho, cuida da aplicabilidade dos direitos fundamentais às relações entre particu-
lares, precisamente da forma de aplicação, se direta ou indireta, havendo ainda quem negue
a produção de efeitos dos direitos fundamentais a tais relações, o que não é o nosso caso.
69
“O direito de propriedade não se reveste de caráter absoluto, eis que, sobre ele, pesa gra-
ve hipoteca social, a significar que, descumprida a função social que lhe é inerente (CF, art. 5º,
XXIII), legitimar-se-á a intervenção estatal na esfera dominial privada, observados, contudo,
para esse efeito, os limites, as formas e os procedimentos fixados na própria Constituição
da República. O acesso à terra, a solução dos conflitos sociais, o aproveitamento racional
e adequado do imóvel rural, a utilização apropriada dos recursos naturais disponíveis e
a preservação do meio ambiente constituem elementos de realização da função social da
propriedade” (BRASIL. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.213-MC. Diário de Justiça,
p. 296, grifo nosso).

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
194 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

que não as relações indivíduo-Estado exigem uma fundamentação que


não é trivial.70
Assim, seja porque a estrutura normativo-constitucional brasi-
leira já oferece ao intérprete/aplicador o suporte necessário à aplicação
desses direitos às relações entre particulares, seja porque essa aplicação
não ameaça a distinção funcional entre direito público e direito privado,
é plenamente possível a produção de efeitos do que se tem denominado
de constitucionalização do direito civil e do direito dos contratos, a exi-
gir que estes sejam interpretados a partir da normativa constitucional, e
que esta se faça sentir nas relações privadas por intermédio do próprio
material normativo civilístico.
Mais que uma superioridade meramente formal, a Constituição é
material e axiologicamente superior às demais normas do ordenamento
jurídico, compreensão relevante para legitimar a produção de seus
efeitos a todos os ramos do direito: mais que concordar com o procedi-
mento formalmente desenvolvido, a ordem jurídica deve conformar-se
ao sistema de valores instituído pela Constituição.
Esse sistema de valores, que encontra seu núcleo na pessoa
humana inserida na comunidade social e em sua dignidade, deve ser
válido como fundamento jurídico-constitucional para todas as áreas
do direito: a legislação, a administração e a jurisdição recebem dele
pautas e impulsos,71 o que “municia a perspectiva civil-constitucional
com instrumentos metodológicos apropriados a permitir às normas
constitucionais que incidam sobre as relações jurídicas estabelecidas
entre particulares”.72

70
SILVA. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre parti-
culares, p. 23. Note-se que apesar do grande comprometimento do sistema alemão com o
Estado social, foi grande a dificuldade em lidar com os denominados efeitos horizontais
dos direitos fundamentais, o que refletiu na enorme produção doutrinária e jurisprudencial
acerca do problema. Destaca Virgílio Afonso da Silva (p. 25) que essa dificuldade tem como
causa um problema normativo-constitucional: a ausência de normas de direitos fundamen-
tais que não aquelas de cunho liberal. Reafirme-se, finalmente, que a não inclusão de direi-
tos sociais na Lei Fundamental alemã não significa uma recusa do seu ideário subjacente,
pois o conceito de Estado social (Lei Fundamental, art. 20) representa uma “norma-fim de
Estado”, que fixa, de maneira obrigatória, as tarefas e a direção da atuação estatal presente
e futura (KRELL. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos
de um direito constitucional “comparado”, p. 48).
71
CRUZ. La Constitución como orden de valores: problemas jurídicos y políticos: un estudio
sobre los orígenes del neoconstitucionalismo, p. 15.
72
NEGREIROS. Teoria do contrato: novos paradigmas, p. 57-58. Registre-se que essa postura
hermenêutica não está imune a resistências. Segundo Friedrich Müller (Métodos de traba-
lho do direito constitucional, p. 17-18), tratar os direitos fundamentais e as demais normas da
Constituição como um sistema ou uma ordem objetiva de valores implicaria a tendência de
querer solucionar de modo metódico sua concretização, limitação e mediação com outras

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ANA CAROLINA TRINDADE SOARES
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DOS CONTRATOS NO CONTEXTO DAS TRANSFORMAÇÕES ...
195

Vista por este prisma, a ordem constitucional impõe uma inter-


pretação empenhada em conectar a legislação infraconstitucional às
normas constitucionais, buscando-se a efetiva proteção do desenvol-
vimento da pessoa humana.
Essa perspectiva civil-constitucional não está isenta de críticas.
A principal delas se refere ao que se tem denominado exacerbação da
função jurisdicional, uma vez que a aplicação dos preceitos constitu-
cionais, geralmente enunciados de maneira sintética e aberta, torna
imprescindível a densificação de seu conteúdo, o que, no exame do
caso concreto, é feito pelo julgador. A aplicação direta das normas cons-
titucionais às relações privadas esvaziaria os processos democráticos
inerentes ao exercício da função legislativa, substituindo-os pela função
jurisdicional. Além disso, tal aplicação se constituiria em um fator de
incerteza e insegurança, diante da vagueza/amplitude semântica das
disposições constitucionais, o que acabaria, ainda, por trivializar a
jurisdição constitucional.
Segundo Canotilho, a “panconstitucionalização” da ordem
jurídica privada lhe traria riscos evidentes, pois, apesar de não estar
divorciado da Constituição, o direito privado perderia a sua irredutível
autonomia quando as regulações civilísticas — legais ou contratuais –
tivessem o seu conteúdo substancialmente alterado pela eficácia direta
dos direitos fundamentais. A seu ver, seguindo essa ordem de ideias, a

normas (constitucionais) por meio de procedimentos da ponderação de bens ou interesses, o


que, por sua vez, não satisfaria as exigências, imperativas no Estado de Direito, a uma forma-
ção da decisão e representação da fundamentação, “controlável em termos de objetividade
da ciência jurídica no quadro da concretização da constituição e do ordenamento jurídico
infraconstitucional” (p. 18). Entendemos, entretanto, que o uso da técnica da ponderação
como instrumento para a solução de possíveis conflitos decorrentes da compreensão da or-
dem constitucional como instituidora de um sistema de valores não implica necessariamente
a ausência de objetividade e de controlabilidade das decisões judiciais. Em nosso entender,
a ponderação se revela como um meio transparente de identificação e solução dos conflitos,
pois, ao tempo que se mostra como uma técnica mais maleável, não escoa para o puro subje-
tivismo, uma vez que se apresenta plenamente controlável: alia segurança e previsibilidade
metodológicas “com a fluidez e plasticidade que devem necessariamente revestir a técnica
de composição dos conflitos entre interesses constitucionais antagônicos” (SARMENTO. A
ponderação de interesses na Constituição Federal, p. 23). A ponderação caracteriza-se pela sua
maior proximidade com as situações concretas, tomando o caso concreto como determi-
nante para a atribuição dos pesos específicos a cada direito em confronto, sem, contudo, se
apartar do dado normativo, essencial à segurança jurídica e controle dos resultados. De fato,
os juízos de valor são inevitáveis, contudo, a técnica da ponderação tem a vantagem de, a
partir do reconhecimento dessa circunstância, demonstrar como esses juízos são formula-
dos; ao contrário do que pode acontecer quando se recorre à subsunção, onde muitas vezes
os aspectos valorativos são camuflados pela falsa aparência de uma operação estritamente
lógico-dedutiva.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
196 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Constituição seria convocada “para as salas diárias dos tribunais com


a conseqüência da inevitável banalização constitucional”.73
Adverte que, “se o direito privado deve recolher os princípios
básicos dos direitos e garantias fundamentais, também os direitos fun-
damentais devem reconhecer um espaço de auto-regulação civil, evitan-
do transformar-se em ‘direito de não liberdade’ do direito privado”.74
Entretanto, o fato de a norma constitucional trazer para si os
fundamentos de validade do direito civil não se configura em uma
perda da autonomia desse ramo do direito, mas, pelo contrário, em seu
fortalecimento, na sua tutela constitucional, e na inserção de valores
que outrora eram desconhecidos pelo legislador constituinte.
No caso brasileiro, a mudança de paradigma perpetrada a par-
tir da Constituição de 1934, e mais especificamente pela Constituição
de 1988, não significa a quebra da autonomia do direito civil, mas a
imposição de que seja constituído e interpretado de acordo com os
mandamentos constitucionais, em decorrência das ideias de sistema e
de supremacia da Constituição, que há muito são pautas hermenêuticas
que devem ser observadas pelo intérprete/aplicador.
Nesses termos, não é apropriado falar-se em uma banalização
da Constituição no cenário desenhado por Canotilho. Entender que
a Constituição estaria sendo vulgarizada em face da sua diária con-
vocação nos tribunais é o mesmo que afastar o seu essencial caráter
normativo, esvaziando-a, reduzindo-a a mera carta de programas sem
qualquer poder vinculante, o que não se admite.
De fato, não se pode negar que as disposições constitucionais
são marcadas por uma amplitude semântica, o que já se constitui em
grande obstáculo à determinação apodítica do conteúdo normativo,
principalmente em se tratando dos direitos fundamentais. Além dis-
so, e principalmente, a complexidade dos problemas concretos que
envolvem esses direitos é enorme, de modo a exigir a intermediação
concretizadora do intérprete.
As críticas aqui mencionadas devem-se, sobretudo, ao apego que
ainda se mantém à técnica da norma regulamentar. “Parece que nós

73
CANOTILHO. Civilização do direito constitucional ou constitucionalização do direito ci-
vil? A eficácia dos direitos fundamentais na ordem jurídico-civil no contexto do direito
pós-moderno. In: GRAU; GUERRA FILHO (Org.). Direito constitucional: estudos em home-
nagem a Paulo Bonavides, p. 113.
74
CANOTILHO. Civilização do direito constitucional ou constitucionalização do direito ci-
vil? A eficácia dos direitos fundamentais na ordem jurídico-civil no contexto do direito
pós-moderno. In: GRAU; GUERRA FILHO (Org.). Direito constitucional: estudos em home-
nagem a Paulo Bonavides, p. 113.

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ANA CAROLINA TRINDADE SOARES
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DOS CONTRATOS NO CONTEXTO DAS TRANSFORMAÇÕES ...
197

não conseguimos nos sentir destinatários de normas jurídicas que não


desçam a especificidades do caso concreto”: trata-se de apego exagerado
a uma regulamentação impensável no dinâmico e complexo mundo
contemporâneo, não sendo mais consentido ficar à espera de uma espe-
cífica norma jurídica que explique, no plano infraconstitucional, como
as relações privadas devem absorver os efeitos jurídicos estabelecidos
pelo legislador constitucional.75
Resistências dessa natureza conduzem o intérprete a sobreva-
lorizar atos normativos de hierarquia inferior, chegando-se ao absur-
do de ler a Constituição à luz das normas infraconstitucionais.76
Quando se trata aqui de constitucionalização do direito civil e
do direito dos contratos, está-se a referir-se ao processo de elevação ao
plano constitucional de seus princípios fundamentais, e bem assim à
produção de efeitos, direta ou indiretamente, das normas constitucio-
nais nas relações por eles reguladas.
A Constituição, que antes não refletia as exigências sociais, agora
reúne os valores que, concomitantemente, vão sendo acompanhados
pelo legislador infraconstitucional, notadamente na proteção dos con-
tratantes vulneráveis. Percebeu-se a necessidade de uma regulação
particularizada de certas personagens, a fim de que fosse concretizado
materialmente o princípio isonômico previsto na Constituição Federal,
em seu art. 5º, caput, e em seu preâmbulo, onde a igualdade é tida como
um dos valores supremos da sociedade, aliada à dignidade da pessoa
humana, fundamento do Estado Democrático de Direito (art. 1º, III).
A Constituição de 1988 passou a disciplinar diretamente matérias
que até então eram de exclusivo tratamento pela lei ordinária. Define
princípios antes reservados ao Código Civil e ao império da vontade:
a função social da propriedade, os limites da atividade econômica e a
organização da família passam a ter tratamento constitucional. Aliás, o
próprio direito civil, através do código e da legislação extracodificada,
desloca sua preocupação, que antes era exclusiva para o indivíduo
dissociado do contexto social, para as atividades por ele desenvolvidas

75
TEPEDINO. Temas de direito civil, p. 226. Como bem adverte Gustavo Tepedino, nos dias de
hoje, a necessidade de se dar efetividade plena às cláusulas gerais faz-se tanto mais urgente
na medida em que se afigura praticamente impossível ao direito regular o conjunto de
situações negociais que surgem na vida contemporânea. Incapaz de disciplinar todas as
inúmeras situações jurídicas que florescem na esteira dos avanços sociais, o legislador vale-­
se da técnica das cláusulas gerais. Trata-se, pois, de constatação que impõe ao intérprete
uma mudança de atitude, sob pena de sucumbir à realidade social.
76
NEGREIROS. Teoria do contrato: novos paradigmas, p. 58.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
198 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

e para os reflexos delas decorrentes, de modo a assegurar os resultados


sociais pretendidos pelo Estado e definidos pela Constituição.77
A obrigação estatal de promover a defesa do consumidor, o dever
de atendimento à função social da propriedade e o necessário equilíbrio
material que se deve assegurar no relacionamento entre os contratantes,
aliados ao princípio da solidariedade social e aos princípios gerais da
atividade econômica definidos nos arts. 170 e seguintes da Constituição
Federal, constituem os principais postulados constitucionais do direito
dos contratos.
Evidencia-se, portanto, uma atribuição de relevância à equivalên-
cia material, em recusa à igualdade meramente formal que se admitia
existente entre as partes contratantes, a fim de se atingir uma “ética
material dos contratos”,78 distinta daquela configurada na acepção tra-
dicional e liberal, em que se tinha a figura do contrato entre indivíduos
autônomos e formalmente iguais, “realizando uma função individual de
harmonização de interesses antagônicos, segundo o esquema clássico
da oferta e da aceitação, do consentimento livre e da igualdade formal
das partes”.79
Elevadas as bases do direito dos contratos à Constituição, apenas
se admite o contrato que realiza a função social, a ela condicionando
os interesses individuais, observada a efetiva desigualdade material

77
Relevante anotar que mesmo uma mudança de paradigma imposta pela Constituição, tal
como ocorre com a Carta de 1988, e uma decorrente necessidade de adaptação da legislação
ordinária por imposição constitucional, infelizmente não implicam necessariamente mudan-
ças rápidas na sua aplicação. Não é incomum que a prática jurisprudencial se mostre refratá-
ria a mudanças e se mantenha presa a paradigmas superados não só pela Constituição, mas
também pela legislação ordinária: “quando os juristas não percebem, ou não querem aceitar
uma mudança de paradigma, pode ocorrer que, embora o processo de adaptação da legisla-
ção se realize rapidamente, essa rapidez não é acompanhada por uma mudança de paradig-
ma na aplicação da legislação ‘constitucionalizada’” (SILVA. A constitucionalização do direito: os
direitos fundamentais nas relações entre particulares, p. 41). É o que ocorre, com frequência,
em relação às mudanças introduzidas pelo Código de Defesa do Consumidor, por exemplo.
É necessário que a comunidade jurídica se aperceba das peculiaridades que cercam as re-
lações de consumo, identificando-as corretamente, e aplicando-lhes os princípios que lhes
são próprios, em conformidade com a novel tendência contratual que vem sendo elaborada,
ante a insuficiência dos princípios tradicionais para a regulação dos contratos firmados entre
consumidores e fornecedores. Nesse ponto, é importante frisar que já em 1983, em sua obra
Do contrato no Estado Social, bem como mais tarde, em O contrato: exigências e concepções atuais,
Paulo Luiz Netto Lôbo advertia acerca da necessidade de reelaboração de toda a construção
jurídica do contrato. Não obstante seja grande a produção doutrinária acerca dessa necessida-
de de colocar em prática esses novos ditames contratuais, é recorrente a produção de julgados
onde é nítida a aplicação dos princípios tradicionais dos contratos às relações de consumo, a
despeito da existência de regras e princípios próprios que regem tais relações.
78
Expressão utilizada por Franz Wieacker (História do direito privado moderno, p. 599).
79
LÔBO. Teoria geral das obrigações, p. 9.

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ANA CAROLINA TRINDADE SOARES
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DOS CONTRATOS NO CONTEXTO DAS TRANSFORMAÇÕES ...
199

existente entre as partes contratantes, e, partindo dessa consideração,


a busca da equivalência material das prestações.

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ANA CAROLINA TRINDADE SOARES
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DOS CONTRATOS NO CONTEXTO DAS TRANSFORMAÇÕES ...
201

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Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

SOARES, Ana Carolina Trindade. A constitucionalização do direito dos


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EHRHARDT JR., Marcos (Coord.). Os 10 anos do Código Civil: evolução e
perspectivas. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 167-201. ISBN 978-85-7700-616-8.

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PÁGINA EM BRANCO

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A RELATIVIZAÇÃO DA PROTEÇÃO
AO ATO JURÍDICO PERFEITO E AO
DIREITO ADQUIRIDO NO ÂMBITO DOS
CONTRATOS PRIVADOS
SEGURANÇA JURÍDICA E INTERPRETAÇÃO
CIVIL-CONSTITUCIONAL

ERMIRO NETO

1 Apresentação do tema
A constante evolução dos fenômenos sociais, desde sempre, tem
colocado à prova a capacidade do direito de regulamentar da melhor
maneira possível os fatos jurídicos. À medida que a sociedade evo-
lui, o senso comum é questionado, as necessidades e os objetivos da
comunidade modificam-se, tudo de modo a exigir da ordem jurídica
uma pronta resposta no sentido de também modificar os seus regimes
jurídicos.1 Não por outra razão, “normas são promulgadas, subsistem

1
Nesse sentido, veja-se: “A velocidade das mudanças, não só econômicas, tecnológicas e po-
líticas, mas também jurídicas, e a obsessão pragmática e funcionalizadora, que também
contamina a interpretação do Direito, não raro encantam pessoas, seus sonhos, seus pro-
jetos e suas legítimas expectativas como miudezas a serem descartadas, para que seja pos-
sível avançar (para onde?) mais rapidamente” (BARROSO. A segurança jurídica na era da
velocidade e do pragmatismo. In: BARROSO. Temas de direito constitucional, p. 51).

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no tempo, atuam, são substituídas por outras ou perdem sua atuali-


dade em decorrência de alterações nas situações normadas”.2 Diz-se,
portanto, que o sistema jurídico é dinâmico.3
A modificação das normas jurídicas ao longo do tempo, no en-
tanto, traz sérios inconvenientes. Se por um lado esta dinâmica é uma
necessidade inafastável de adequação da norma aos anseios sociais,
por outro, a mesma característica traz incontáveis dificuldades, prin-
cipalmente sob o ponto de vista da segurança jurídica. Como garantir
às relações um mínimo de estabilidade sem com isto impedir que as
normas jurídicas estejam no encalço dos anseios da sociedade? Como,
ao mesmo tempo, tutelar a segurança jurídica sem com isto “criar
uma muralha defensiva de certos interesses adquiridos e protegidos
por um complexo de normas”,4 incompatível com novos interesses da
comunidade?
O problema assume feições peculiares no campo do direito dos
contratos. É que neste ramo, mais do que em qualquer outro campo
do direito privado, nos últimos anos tem-se assistido a uma intensa
intervenção legislativa, a pretexto de impor cláusulas obrigatórias a
certos negócios jurídicos e limitar substancialmente a autonomia da
vontade das partes. Em vista disso, é possível constatar, como afirma
Gustavo Tepedino, a coexistência, no regulamento contratual, de dois
regimes jurídicos distintos:

na ordem jurídica contemporânea, (...), as relações contratuais não


são reguladas exclusivamente pela vontade das partes. Pelo contrário,
crescente se apresenta a intervenção do legislador no regulamento con-
tratual, que se constitui, assim, em uma disciplina múltipla e complexa,
congregando dispositivos hauridos de fontes obrigacionais diversas,
para além da vontade dos contratantes (...) Trata-se do fenômeno que a
doutrina italiana denominou de fonti di integrazioni contrattuali, a indicar
a justaposição, no regulamento contratual, de um regime obrigacional
voluntário e de um regime jurídico legal insuscetível de alteração pela
vontade dos contratantes.5

2
FERRAZ JR. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação, p. 178.
3
KELSEN. Teoria pura do direito, passim.
4
SAMPAIO. Expectativa de direito e direito adquirido como franquias e bloqueios de trans-
formação social. In: ROCHA (Coord.). Constituição e segurança jurídica: direito adquirido,
ato jurídico perfeito e coisa julgada: estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda Per-
tence, p. 294.
5
TEPEDINO. A incidência imediata dos planos econômicos e a noção de direito adquirido.
Reflexões sobre o art. 38 da Lei nº 8.880/94 (Plano Real). In: TEPEDINO. Temas de direito
civil, t. II, p. 217-218.

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ERMIRO NETO
A RELATIVIZAÇÃO DA PROTEÇÃO AO ATO JURÍDICO PERFEITO E AO DIREITO ADQUIRIDO NO ÂMBITO ...
205

A raiz deste fenômeno pode ser localizada historicamente. O


estudo dos contratos sob uma perspectiva histórica permite divisar, de
maneira muito clara, uma fase caracterizada pelo individualismo e pela
amplíssima liberdade concedida às partes para formatar o conteúdo
dos negócios jurídicos. O marco histórico desta fase é o liberalismo
francês do século XVIII, e tem como principal exemplo o Código Civil
Napoleônico, marcado pela suposição de igualdade formal entre as
partes, pela quase absoluta força obrigatória dos contratos e pela mí-
nima intervenção legislativa.
Para Tepedino os influxos desse período histórico influenciaram
profundamente o Código Civil de 1916, haja vista o seu objetivo, per-
ceptível nas entrelinhas, de proteger uma certa ordem social, erguida
sob a égide do individualismo e tendo como pilares, nas relações pri-
vadas, a autonomia da vontade e a propriedade privada. O legislador
não deveria interferir nos objetivos a serem alcançados pelo indivíduo,
cingindo-se a garantir a estabilidade das regras do jogo, de tal maneira
que a liberdade individual, expressão de inteligência de cada um dos
contratantes, pudesse desenvolver-se francamente, apropriando-se
dos bens jurídicos, os quais, uma vez adquiridos, não deveriam sofrer
restrições ou limitações exógenas.6
Com a crise do Estado Liberal, este modelo de regulamentação
dos contratos é posto em cheque. Fala-se, a partir de então, em dirigismo
contratual7 e, a reboque, as diversas ordens jurídicas passam a tutelar
estas operações de maneira mais detida, estipulando cláusulas obriga-
tórias, protegendo declaradamente a parte mais fraca (sob o ponto de
vista técnico ou econômico), tendo por finalidade garantir equilíbrio
nas relações jurídicas contratuais. Segundo Orlando Gomes, esta fase
é caracterizada por “regular o conteúdo do contrato por disposições
legais imperativas, de modo que as partes, obrigadas a aceitar o que
está predisposto na lei, não possam suscitar efeitos jurídicos diversos”.8
Mais intervenção do Estado nos contratos pressupõe um maior
número de disposições normativas sobre toda sorte de operações contra-
tuais, o que cria problemas óbvios do ponto de vista da incidência das
novas normas sob negócios firmados anteriormente. Afinal, com tantas
regras legais a incidir sobre negócios jurídicos, torna-se fundamental

6
TEPEDINO. As relações de consumo e a nova teoria contratual. In: TEPEDINO, Gustavo.
Temas de direito civil, p. 220.
7
A expressão ganhou notoriedade na bibliografia brasileira, sendo utilizada, inclusive, por
autores clássicos: Nesse sentido: ANDRADE. Do contrato: teoria geral; GOMES. Contratos;
PEREIRA. Instituições de direito civil, v. 3; LOPES. Curso de direito civil.
8
GOMES. Contratos, p. 36.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
206 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

ter claro qual norma deve ser observada, a fim de se evitar, inclusive,
o não preenchimento de certos requisitos de validade. Para casos tais,
criam-se sistemas de direito intertemporal, a fim de regulamentar o
conflito, no tempo, de leis integrativas em face de negócios jurídicos
firmados anteriormente.
A fixação de parâmetros para disciplinar a incidência da norma
jurídica no tempo pode ser considerada um dos grandes debates do
direito. Não por outra razão, Rubens Limongi França afirma que as
primeiras manifestações de direito intertemporal “se encontrariam nos
primórdios da vida jurídica da humanidade, pelo menos em estado
embrionário”.9 A civilização construiu um postulado básico que rege
a matéria, segundo o qual, via de regra, a lei que entra em vigor tem
efeito imediato e geral, regulando em princípio somente os casos futuros
(lex prospicit, non respicit). Todavia, se não há controvérsias neste ponto,
o mesmo não se pode falar da possibilidade de retroação da norma
jurídica, bem como dos limites de tal fenômeno.
Como regra geral, o sistema jurídico brasileiro consagra a pro-
teção do direito adquirido e do ato jurídico perfeito, além da coisa jul-
gada, erigindo tal postulado à condição de direito fundamental (art. 5º,
inc. XXXVI, Constituição Federal). A lei nova, portanto, não pode apa-
nhar fatos pretéritos, imperativo este com inegável inspiração em razões
de segurança jurídica. Entretanto, o apego à estabilidade das relações
jurídicas pode justamente travar a evolução da tutela de outros direitos,
a exemplo do que ocorre com os contratos de consumo. Argumenta-se
que a absoluta impossibilidade de que a nova lei possa alcançar todos
os efeitos dos negócios jurídicos que lhe sejam anteriores acaba por
limitar a certas pessoas os seus benefícios, de modo a gerar regimes
jurídicos diversos para sujeitos nas mesmas situações.
Bem percebido, pois, o debate se insere em um pano de fundo
maior: a possibilidade de flexibilizar a garantia da proteção do direito
adquirido e do ato jurídico perfeito no âmbito dos contratos privados.
Semelhante ao que tem ocorrido com o instituto da coisa julgada, ga-
rantia que vem sendo relativizada — de modo perigoso, diga-se — nos
últimos anos,10 a proteção da segurança jurídica tem sido questionada
no âmbito do direito civil, mormente em situações concretas e que
envolvam a tutela de direitos fundamentais.

9
FRANÇA. Direito intertemporal brasileiro: doutrina da irretroatividade das leis e do direito
adquirido, p. 19.
10
Para uma ampla visão a respeito do fenômeno da relativização (ou flexibilização) da
coisa julgada, bem como seus reflexos no campo do Direito de Família e do Processo de
Execução: DIDIER JR. (Org.). Relativização da coisa julgada.

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ERMIRO NETO
A RELATIVIZAÇÃO DA PROTEÇÃO AO ATO JURÍDICO PERFEITO E AO DIREITO ADQUIRIDO NO ÂMBITO ...
207

2 Direito intertemporal no Brasil: ato jurídico perfeito e


direito adquirido
Até alcançar o contorno atual, a matéria foi objeto de diversos
e antagônicos estudos. Os principais deles foram empreendidos por
Carlos Francesco Gabba11 e Paul Roubier,12 precursores, respectivamente,
das teorias do direito adquirido e das situações jurídicas.
Para Gabba, a lei não pode ser retroativa de modo tal que fira
direitos já integrados ao patrimônio jurídico de seu titular. Segundo o
autor italiano, embora o movimento normativo seja importante para
o progresso social, a segurança jurídica demanda que certos direitos
sejam respeitados pela nova lei. Assim, considerando que há retroati-
vidade quando a lei nova apanha, no presente, fatos nascidos antes de
seu advento, Gabba propõe que a lei nova, nestes casos, ponha a salvo
os chamados direitos adquiridos. O autor italiano parte da premissa de
que seria natural um certo grau de retroatividade (no sentido de que
a incidência da lei no presente projeta efeitos presentes para negócios
jurídicos firmados antes da sua vigência) da norma jurídica. Incumbe
ao ordenamento, todavia, criar parâmetros para limitar tal fenômeno.
Para Gabba, este limite constrói-se a partir da blindagem dos chamados
direitos adquiridos.13
Teriam esta qualidade aqueles direitos que, ao tempo da lei revo-
gada, estavam integrados ao patrimônio jurídico do titular, ou pendente
de termo ou condição suspensiva.
Por sua vez, Roubier considera despicienda a noção de direito
adquirido, defendendo que os conflitos da lei no tempo devem ser
resolvidos a partir de parâmetros objetivos. Daí ter distinguido os
fatos em facta praeterita (ocorridos antes da nova lei), facta futura (ocor-
ridos após a nova lei) e facta pendentia (situações em curso, ainda não
definitivamente consolidadas). Para Roubier, objetivamente, (i) se a lei
pretende apanhar fatos realizados, ela é retroativa e, em razão disso,
violadora do princípio da proibição da retroatividade; (ii) se tem sua
vigência voltada apenas para fatos futuros, é perfeitamente válida e
(iii) com relação a fatos pendentes, basta que se depure quais efeitos
ocorreram antes da lei nova e quais efeitos ocorreram depois, a fim de
se identificar qual norma deve incidir no caso concreto.14

11
GABBA. Teoria della retroattività delle leggi.
12
ROUBIER. Le droit transitoire (conflits des lois dans le temps).
13
Apud LEVADA. O direito intertemporal e os limites da proteção do direito adquirido, p. 19-20.
14
Apud LEVADA, op. cit., p. 21-22.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
208 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Aparentemente alheio ao antagonismo acima, o fato é que, no


Brasil, a legislação que rege a matéria foi profundamente influenciada
tanto pelo pensamento de Gabba, quanto pelo de Roubier,15 situação
que, somada à circunstância do tema ter sido erigido à estatura de
direito fundamental (art. 5º, inc. XXXVI, Constituição Federal), traz pro-
fundas peculiaridades para o sistema brasileiro de direito intertemporal.
Este ponto distingue sobremaneira o regime brasileiro de direito
intertemporal das outras ordens jurídicas. De fato, se, em outros países,
a matéria é relegada à legislação ordinária, no Brasil o marco regula-
tório foi alçado ao texto constitucional. Em razão disso, Luís Roberto
Barroso afirma que a proteção do direito adquirido constitui cláusula
pétrea, insuscetível de supressão até mesmo por emenda constitucional,
conforme previsto no art. 60, §4º, inciso IV da Constituição Federal. As
peculiaridades do sistema brasileiro são ressaltadas por Barroso:

(...) na maioria dos países esta garantia consta de legislação ordinária


— que admite sua derrogação por legislação superveniente — e não
da Constituição. Isso significa, portanto, que a importação de doutrina
e jurisprudência estrangeiras sobre o assunto deve ter o cuidado de
observar essa diferença essencial entre os sistemas jurídicos.16

Seguindo a mesma linha de raciocínio, Pontes de Miranda, diante


da regulamentação feita pela Constituição (à época, de 1967), considera
as definições da Lei de Introdução ao Código Civil sobre direito adqui-
rido, ato jurídico perfeito e coisa julgada sem qualquer “significação
no plano do direito constitucional” e, de outra parte, “tautológicas”.
Também para este autor, o conceito de direito adquirido é, eminente-
mente, “científico”, o qual foi, diferente do que ocorreu em outros países,
“constitucionalizado”.17
Em vista de todos estes influxos, as normas de regência do
sistema brasileiro de direito intertemporal podem ser encontradas na

15
O direito intertemporal brasileiro acabou adotando um sistema misto, que observa tanto a
regra do efeito imediato — propugnado por Roubier — quanto a proteção dos direitos ad-
quiridos — conforme defendido por Gabba. É fundamental ponderar que existem opiniões
em contrário, as quais ora apontam a adesão do sistema brasileiro à teoria de Gabba: FARIAS;
ROSENVALD. Direito civil: teoria geral, p. 100. Em sentido contrário, veja-se: PEREIRA. Insti-
tuições de direito civil: introdução ao direito civil: teoria geral de direito civil, p. 158.
16
BARROSO. Em algum lugar do passado: segurança jurídica, direito intertemporal e novo
Código Civil. In: ROCHA (Coord.). Constituição e segurança jurídica: direito adquirido, ato jurí-
dico perfeito e coisa julgada: estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence, p. 144.
17
PONTES DE MIRANDA. Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda n. 1, de 1969,
p. 64, 65, 72.

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ERMIRO NETO
A RELATIVIZAÇÃO DA PROTEÇÃO AO ATO JURÍDICO PERFEITO E AO DIREITO ADQUIRIDO NO ÂMBITO ...
209

Constituição Federal (art. 5º, XXXVI) e na Lei de Introdução às Normas


do Direito Brasileiro (LINDB) (art. 6º):

Art. 5º (...)
XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito
e a coisa julgada;
Art. 6º A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato
jurídico perfeito, direito adquirido e a coisa julgada.
§1º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente
ao tempo em que se efetuou.
§2º Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou
alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício
tenha termo prefixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio
de outrem.

Passando em revista a bibliografia sobre o tema, a doutrina cos-


tuma apontar para o fato de que o regime jurídico brasileiro de direito
intertemporal funda-se em duas regras básicas: a irretroatividade da
lei nova e o seu efeito imediato sob as relações jurídicas constituídas
na sua vigência. Nesse sentido, para Francisco Amaral “a lei nova se
aplica a todos os fatos que ocorrerem durante sua vigência (...) os fatos
verificados sob o império da lei antiga continuam regidos por ela”.
A regra da irretroatividade, porém, não é absoluta. Por inspiração
evidente na Teoria das Situações Jurídicas de Paul Roubier,18 entende-se
que a lei nova aplica-se aos casos pendentes.19 E mais: pode retroagir em

18
Caio Mário da Silva Pereira explica as razões para a doutrina brasileira debater qual teoria
teria sido adotada no controle da eficácia das leis no tempo. Segundo ele, “o Decreto-Lei
n. 4.657, de 4 de setembro de 1942, substitui a antiga Lei de Introdução por uma nova, e virou
de pólo a doutrina legal para o campo objetivista [Paul Roubier], prescrevendo que (art. 6º)
que a lei em vigor terá efeito imediato e geral e não atingirá as situações jurídicas definiti-
vamente constituídas da relação jurídica. Abandonou o legislador então a doutrina clássica
do direito adquirido, para encarar, em profissão de fé, objetivista, a situação jurídica, tal
como vimos na teoria de Roubier. Acontece, entretanto, que a jurisprudência não conseguiu
desvencilhar-se dos princípios assentados, e não obstante o direito positivo ter adotado
fundamento diferente, permaneceu fiel aos velhos conceitos, procurando dar solução aos
conflitos aos conflitos intertemporais de leis com aplicação de normas de cunho objetivista,
porém jogando com noções subjetivas de direito adquirido e expectativa de direito. Tendo
formado o seu espírito sob a inspiração das teorias tradicionais, os juízes não conseguiram
desvencilhar-se de seus cânones, e não puderam afeiçoar-se às concepções modernas. E
isso levou o legislador a um retorno, com a votação da Lei n. 3.238 de 1º de agosto de 1957,
alterando a redação do art. 6º da Lei de Introdução [ressuscitando] as definições da antiga
Lei de Introdução” (PEREIRA, op. cit., p. 37).
19
FARIAS; ROSENVALD. Direito civil: teoria geral, p. 74; GONÇALVES. Direito civil brasileiro,
v. 1.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
210 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

alguns casos, desde que haja disposição legal expressa nesse sentido e
não gere lesão ato jurídico perfeito, nem direito adquirido. O raciocínio
fundamenta-se no fato de que, no Brasil, não há vedação expressa à
retroatividade, mas tão somente à retroatividade que viole o ato jurídico
perfeito e o direito adquirido, como explica Édis Milaré, tratando da
possibilidade de retroação da lei nova em matéria de Direito Ambiental:

Buscando estabelecer uma regra para pacificar conflitos dessa natu-


reza, o princípio da irretroatividade da lei foi incorporado no Direito
positivo nacional como um preceito de política legislativa, inscrito nos
arts. 5º, XXXVI, da CF/1988 e 6º da Lei de Introdução ao Código Civil.
(...) Em decorrência, quando uma lei entra em vigor sua aplicação é
para o presente e para o futuro, pois não seria compreensível que, ao
instituir uma nova legislação, criando um novo instituto ou alterando
a disciplina da conduta social, o Poder Legislativo pretendesse ordenar
o comportamento passado. Entretanto, a retroatividade é excepcional-
mente permitida quando há expressa disposição legal e ressalvados,
sempre, o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.20 21

Carlos Maximiliano, também defendendo a possibilidade de


retroação da lei — desde que respeitadas as situações já consolidadas
— ensina que “não se entendeu jamais no Brasil, nem nos Estados Uni-
dos, que o texto constitucional fulminasse, com a nulidade absoluta,
indistintamente, todas as leis que tivessem efeito retroativo”.22 Mesmo
autores portugueses, distantes cientificamente do objeto de estudo, in-
formam, como o faz José de Oliveira Ascensão, “que a lei brasileira há
muito deixou de referir a não-retroatividade. Estabelece-se o princípio
de que a lei terá efeito imediato e geral, ressalvando-se o ato jurídico
perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada”.23
Como visto, a regra é a irretroatividade da lei; seja como for,
excepcionalmente, quando houver previsão legal, poderá ela deter efi-
cácia retroativa, respeitadas as situações jurídicas consolidadas. Parece,
portanto, que o ponto nevrálgico da questão esteja na definição do que
seria ato jurídico perfeito e direito adquirido.

20
MILARÉ. Direito do ambiente: doutrina, jurisprudência, glossário, p. 784.
21
O Supremo Tribunal Federal tem posição no sentido de que é possível a eficácia retroativa
da lei nova, desde que: (i) tal eficácia emane de disposição legal expressa e (ii) não gere
lesão ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à coisa julgada. Confira-se: STF, Ag.
nº 251533-6/SP, Rel. Min. Celso de Mello, com indicação de outros precedentes.
22
Apud FRANÇA, op. cit., p. 315.
23
ASCENSÃO. O direito: introdução e teoria geral, p. 582.

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A RELATIVIZAÇÃO DA PROTEÇÃO AO ATO JURÍDICO PERFEITO E AO DIREITO ADQUIRIDO NO ÂMBITO ...
211

3 Ato jurídico perfeito e direito adquirido como direitos


fundamentais
Se parece pacífico o entendimento de que a lei nova deve res-
guardar as situações jurídicas já consolidadas, o mesmo não se pode
dizer a respeito do exato conceito desta circunstância. A noção de ato
jurídico perfeito e direito adquirido, em que pese a existência de defini-
ção legal (art. 6º, §§1º e 2º, LINDB), não é de fácil assimilação, senão no
caso concreto.24 San Tiago Dantas, nesta mesma linha de pensamento,
assevera que “a noção de direito adquirido, sendo, embora, uma das
mais obscuras da dogmática civil, é, entretanto, das mais afortunadas”.
E arremata:

Daí resulta que quase todos que conceituam o direito adquirido de um


modo um pouco diverso, isto porque, em primeiro lugar, é difícil, a não
ser em alguns exemplos, dizer quando os fatos idôneos para a produção
de determinado direito estão todos reunidos e, em segundo lugar, esta
expressão entrados definitivamente no nosso patrimônio é das mais sutis que
se podem representar, porque a única coisa que entra definitivamente
para um patrimônio é algum bem ou valor que se lhe tenha incorporado,
ao passo que os direitos, muitas vezes, já representam benefícios e ainda
se tem dúvida se estão ou não definitivamente incorporados ao nosso
patrimônio (...).25

Na forma prevista pelo referido art. 6º da LINDB, consideram-se


adquiridos os direitos cujo exercício seja possível ou, não sendo possível,
que ao menos já tenha termo fixado ou condição estabelecida ao tempo
da vigência da lei nova. De outra banda, reputa-se perfeito o ato jurídico
já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. Não
sendo perfeito o ato, nem adquirido o direito, ter-se-á mera expectativa de
direito, como no exemplo clássico utilizado pela doutrina, da pessoa de
18 anos de idade que poderia ter feito testamento ao tempo da lei antiga,
mas é apanhado de surpresa por nova lei que impõe idade mínima de
21 anos para a prática de tal ato; não se pode falar em direito adquirido
à feitura de seu testamento com 18 anos.
Em meio a tamanha abstração, um ponto é certo: no Brasil, a
proteção do direito adquirido e do ato jurídico tem estatura de direito

24
A fluidez do conceito já foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, por meio do voto
do Ministro Sepúlveda Pertence (1989 – 2007) no julgamento do RE nº 186.389/RS, Rel.
Min. Sydney Sanches, ao afirmar que “o direito adquirido é um instituto que todos pen-
sam saber o que seja, mas, nos casos limites, ninguém verdadeiramente o sabe”.
25
DANTAS. Programa de direito civil: teoria geral, p. 112, 115.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
212 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

fundamental. Entre a defesa da segurança jurídica e a necessidade de


que novas leis, editadas de modo democrático, possam ter vigência
mais ampla possível, o legislador criou uma fórmula prévia, por meio
da qual permite-se a retroatividade da norma, ressalvadas as situações
jurídicas já consolidadas. Trata-se de verdadeira ponderação de princí-
pios, visando garantir a máxima eficácia possível a ambos.
Uma vez esta ponderação realizada previamente pelo legislador,
é prudente questionar se é possível, ao intérprete, em nova ponderação,
flexibilizar a blindagem criada ao direito adquirido e ao ato jurídico
perfeito. Tal possibilidade depende da premissa enunciada acima,
segundo a qual tal proteção pode ser inserida no contexto da Teoria
dos Direitos Fundamentais. E se o direito adquirido em questão pode
ser retirado de uma relação jurídica de direito privado — um contrato,
por exemplo — então o referido direito fundamental tem eficácia entre
os particulares, sendo possível inserir o tema no âmbito da discussão
sobre o efeito horizontal dos direitos fundamentais.
Convém desenvolver este ponto.

3.1 Direito fundamental à segurança jurídica nas


relações privadas e o conflito com outros direitos
fundamentais
Em sua construção clássica, os direitos fundamentais foram pen-
sados exclusivamente como limites à atuação do Estado.26 Associada que
está ao constitucionalismo liberal, a teoria geral dos direitos fundamen-
tais deita suas raízes na necessidade de “estabelecer limites jurídicos e
políticos ao poder do Estado”.27 Contudo, as diversas mutações pelas
quais passa o Estado no decorrer do século XVIII até o século XX, a
reboque da implementação de novos sistemas econômicos, permitem
constatar novas fontes de poder, no âmbito dos entes privados tão ou
mais arbitrárias do que o Estado.28
Em tal contexto, considerando que a Constituição deve irradiar
os seus efeitos em qualquer fonte de obrigação (lei ou contrato), bem

26
STEINMETZ. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais, p. 65.
27
STEINMETZ, op. cit., p. 66.
28
Nesse sentido, STEINMETZ, op. cit., p. 84-90; ANDRADE. Os direitos, liberdades e garan-
tias no âmbito das relações entre particulares. In: SARLET (Org.). Constituição, direitos fun-
damentais e direito privado, p. 274-277; SARMENTO. Direitos fundamentais e relações privadas,
p. 83-96; TEPEDINO. Direitos humanos e relações jurídicas privadas. In: TEPEDINO. Temas
de direito civil, p. 62-75.

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ERMIRO NETO
A RELATIVIZAÇÃO DA PROTEÇÃO AO ATO JURÍDICO PERFEITO E AO DIREITO ADQUIRIDO NO ÂMBITO ...
213

como tendo em vista a possibilidade de violação da dignidade humana


(cuja proteção é o objetivo final dos direitos fundamentais) também nas
relações privadas, passou-se a defender a existência de efeitos horizontais
(Drittwirkung) dos direitos fundamentais.
Nesta toada, Leonardo Martins e Dimitri Dimoulis registram que:

Os doutrinadores e a jurisprudência na Alemanha sustentaram, após a


Segunda Guerra Mundial que os direitos fundamentais produzem, além
do efeitos vertical, um efeito horizontal, mais conhecido na doutrina alemã
como Drittwirkung, que significa literalmente “efeito perante terceiros”,
isto é, vinculação de sujeitos de direito além do Estado. Vinculariam,
em determinadas situações, os particulares e poderiam ser invocados
perante os tribunais para que estes resolvam conflitos entre eles.29

A construção dogmática em torno da vinculação dos particulares


aos direitos fundamentais, iniciada a partir de 1958, com a decisão do
Tribunal Constitucional Alemão no caso Lüth, consolida-se de tal forma
que Virgílio Afonso da Silva pondera que “poucos são os publicistas
que ainda restringem a aplicação dos direitos fundamentais apenas
nas relações entre os indivíduos e o Estado (relação vertical)”.30 Sob
este ponto de vista, o problema restringe-se não ao “se” os particulares
submetem-se a tais efeitos, mas sim ao “como” ocorre esta incidência.31
Sucede que à segurança jurídica, mesmo em situações entre
particulares, podem ser opostos outros direitos fundamentais, os quais
poderiam mitigar a proteção oferecida ao direito adquirido e ao ato
jurídico perfeito. A intervenção legislativa no mercado de consumo ou
em áreas de interesse social, como planos de saúde, negócios bancários
ou locações, poderiam justificar a flexibilização da segurança jurídica.
Existem fundados argumentos para esta hipótese, uma vez que a garan-
tia da igualdade nas relações contratuais, a defesa do consumidor, do
meio ambiente poderiam diminuir, em situações concretas, a proteção
às situações ditas consolidadas.
Recente doutrina tem se posicionado neste sentido.
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald afirmam que “a
segurança jurídica, almejada através da afirmação do direito adquirido,
não é o mais importante valor protegido em sede constitucional, poden-
do ser superada, em casos concretos, por outros valores, que mereçam

29
DIMOULIS; MARTINS. Teoria geral dos direitos fundamentais, p. 98.
30
SILVA. Direitos fundamentais nas relações entre particulares, p. 174.
31
SILVA, op. cit., p. 175.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
214 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

proteção mais efetiva”.32 Fundados em tal premissa e referindo-se ainda


à possibilidade de flexibilização da coisa julgada — outro corolário
da segurança jurídica — defendem a “relativização do direito adquirido,
em face de outros valores constitucionais, de maior envergadura, em
cada caso concreto”,33 no que são acompanhados por Flávio Tartuce.34
Carlos Young Tolomei, em monografia dedicada ao tema, tam-
bém argumenta que a garantia do direito adquirido não é absoluta. Para
o autor, a se pensar em sentido contrário, “tornar-se-ia praticamente
impossível a erradicação de uma figura jurídica que se revelasse odiosa
em face dos novos valores sociais, sobretudo se for levada em conta a
impressionante (e antes impensável) velocidade com que mudam os
comportamentos e as exigências político-econômico-sociais”.35
José Adércio Leite Sampaio, no mesmo sentido, conclui que a
construção da proteção ao direito adquirido criou verdadeira “barreira
às transformações sociais”. Defende que:

em países marcados pela desigualdade social, deve-se atentar para


que as alternativas possíveis de superação da antinomia se dêem no
sentido de reduzir a exclusão social, havendo, de um lado, de mitigar
a intangibilidade dos direitos adquiridos que reforcem o processo de
exclusão social e, de outro, alargar o quadro normativo que amplie os
direitos fundamentais em geral, especialmente os que se orientam para
minorar o déficit de igualdade de oportunidades e para aprofundar o
sentimento de compromisso de solidariedade.36

A defesa da relativização do direito adquirido e da coisa julgada,


entretanto, deve ser acolhida cum grano salis. Não se pode desconsi-
derar as peculiaridades da proteção da segurança jurídica no âmbito
dos contratos privados, que envolve a tutela da autonomia da vontade
dos contratantes — e que não pode ser fulminada por argumentos de
“ordem pública” ou de publicização do Direito Civil.

32
FARIAS; ROSENVALD, op. cit., p. 104.
33
FARIAS; ROSENVALD, op. cit., p. 104.
34
TARTUCE. Direito civil, p. 66.
35
TOLOMEI. A proteção do direito adquirido sob o prisma civil-constitucional, p. 20.
36
SAMPAIO. Expectativa de direito e direito adquirido como franquias e bloqueios de trans-
formação social. In: ROCHA (Coord.). Constituição e segurança jurídica: direito adquirido,
ato jurídico perfeito e coisa julgada: estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda Per-
tence, p. 341.

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ERMIRO NETO
A RELATIVIZAÇÃO DA PROTEÇÃO AO ATO JURÍDICO PERFEITO E AO DIREITO ADQUIRIDO NO ÂMBITO ...
215

4 A impossibilidade de relativização do ato jurídico


perfeito e do direito adquirido no âmbito dos contratos
privados
Simoncelli, citado por San Tiago Dantas, distingue a proteção
das situações jurídicas consolidadas no âmbito do direito público e
do direito privado. No primeiro campo, razões de interesse público
justificariam que o “Estado tutele o bem comum, e, portanto, aplique
logo a lei nova, uma vez que esteja convencido de que a lei antiga é
contrária ao bem comum”. Já no âmbito do direito privado — mormente
quando se tratar de direitos decorrentes da vontade manifestada pelas
partes de um negócio jurídico — “é o interesse dos particulares que a
lei tutela”, de modo que a proteção dos direitos adquiridos por esta
via deve se mostrar de modo mais contundente.37
Não se pode deixar de reconhecer a aproximação do direito
público do direito privado. Tal circunstância teórica tem sido motiva-
da pelos movimentos de constitucionalização do direito privado e de
eficácia horizontal dos direitos fundamentais, e que tem concedido
instrumentos para um franco desenvolvimento metodológico em bus-
ca de uma tutela mais efetiva da pessoa humana no âmbito do direito
civil. Contudo o campo público e o privado não se confundem, eis que
fundados em marcos teóricos distintos.
Roxana Borges, nesse sentido, pondera que é no direito civil que
a liberdade pode ser exercida de modo mais contundente. E, tratando
especificamente sobre direitos da personalidade, ensina que:

embora se reconheça a crise da divisão entre direito público e privado,


(...) percebe-se que ainda há esferas da vida das pessoas que requerem
ora um tratamento de direito público, ora um tratamento de direito
privado, uma vez que em muitas situações (...) há sim uma distinção
relevante entre interesse público e interesse individual (...).38

Daí se concluir que a flexibilização do direito adquirido e do ato


jurídico perfeito não pode ser admitida no âmbito dos contratos priva-
dos. Uma vez firmado negócio jurídico, movido pelo legítimo exercício
da autonomia da vontade das partes — em grau máximo ou mínimo,
como no caso dos contratos de adesão — deve a lei resguardar tal ato.
Não se nega que a lei nova pode vir a incidir sobre fatos pretéritos.

37
DANTAS. Programa de direito civil: teoria geral, p. 116.
38
BORGES. Direitos da personalidade e autonomia privada, p. 91.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
216 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Todavia, como resultado de efetiva ponderação de direitos fundamen-


tais — por exemplo: segurança jurídica x defesa do consumidor — a
norma não pode apanhar situações jurídicas consolidadas. Reside em
tal conclusão a eficácia máxima de ambos os direitos fundamentais.
Tal fundamento pode ser aplicado para solucionar casos envol-
vendo a retroatividade das chamadas “leis de ordem pública” e sua
incidência sobre os direitos adquiridos. Discute-se, por exemplo, a in-
cidência da Lei Federal nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor)
sob contratos firmados anteriormente à sua vigência.
Para Rubens Limongi França, as normas de importância pública
ou social expressiva têm efeito imediato como regra e poderiam retro-
agir e atingir negócios jurídicos anteriores, desde que: (i) o legislador
assim determinasse e (ii) tal retroatividade, ao sobrepujar direitos ad-
quiridos, não alcançasse proporções de desequilíbrio social e jurídico.39
Apesar da existência de norma expressa com previsão de que o direito
adquirido possa ser afastado em face de aplicação de lei de ordem pú-
blica — o que, por si só, inviabilizaria tal construção doutrinária — o
argumento é, ainda hoje, prestigiado na doutrina.
Segundo Mário Luiz Delgado, inclusive, “o próprio Supremo
Tribunal Federal, com apoio em sólida doutrina, tradicionalmente,
sempre entendeu que os direitos adquiridos deveriam ceder diante
dos interesses de ordem pública, e que as normas de ordem pública
podem ser retroativas”.40
Não se afigura correta tal posição. Salta aos olhos o fato de que, de
lege lata, não existe norma de exceção à proteção concedida pela LINDB
ao direito adquirido e ato jurídico perfeito, tanto mais para colocar a
salvo da blindagem protetora das situações consolidadas as chamadas
leis de ordem pública. Aliás, não há definição clara sobre a natureza de
tais leis “de ordem pública” ou qual atributo lhe conferiria o privilégio
de alcançar atos perfeitos que lhe são anteriores.
Luís Roberto Barroso, em sentido contrário, defende a inviabi­
lidade de tal argumento, expondo que “em matéria de contratos, isto
é, atos jurídicos que resultam da disposição autônoma das partes,
não apenas as condições de sua validade, mas também os seus efei-
tos encontram-se protegidos da incidência da lei superveniente”.41 A

39
FRANÇA, op. cit., p. 253.
40
DELGADO. Problemas de direito intertemporal no Código Civil, p. 41.
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A RELATIVIZAÇÃO DA PROTEÇÃO AO ATO JURÍDICO PERFEITO E AO DIREITO ADQUIRIDO NO ÂMBITO ...
217

intervenção legislativa sobre negócios jurídicos já firmados, estipulando


novas condições ou mesmo novas cláusulas, inseridas no contrato por
força de lei nova, não parece razoável e não se configura em justa e
proporcional ponderação de direitos fundamentais. Nesse caso, haveria
frontal violação da autonomia privada e da liberdade de contratar, em
nome de uma ampla incidência da nova norma.
Não se pode colocar de lado a circunstância de que as partes, ao
firmarem o contrato, têm em conta a lei então vigente. A intervenção
do legislador, assim, modifica o regime que serviu de substrato para o
pacto entabulado, de sorte a afetar inclusive o seu equilíbrio econômico
e permitir a resolução por onerosidade excessiva, decorrente não de
fato econômico, mas legislativo.
Aliás, está-se partindo aqui da premissa de que é possível a rea-
lização da ponderação de princípios para solucionar casos envolvendo
o conflito entre segurança jurídica de aplicação da lei no tempo e outros
direitos fundamentais. Ao contrário, é defensável a ideia de que a norma
que protege o direito adquirido e o ato jurídico perfeito é uma regra, e
não um princípio, não admitindo sopesamento, mas somente aplicação
de “tudo ou nada”.
Nesse caso, uma vez feita a opção do legislador pela possibilida-
de de retroação sem violação das situações jurídicas consolidadas, não
seria dado ao intérprete afastar a incidência de tal regra, mormente em
razão de contrato firmado pelas partes. Neste caso, diferente do que
ocorre em situações em que o direito foi adquirido em função de estatuto
legal, a autonomia privada deve ser respeitada.
Seja como for, em função da existência de diversas decisões
admitindo a retroatividade contra direitos adquiridos por contrato, o
Supremo Tribunal Federal, recentemente, admitiu a repercussão geral
da matéria. É o que ocorre, por exemplo, no debate envolvendo con-
tratos de planos de saúde e a incidência da Lei Federal nº 10.741/2003
(Estatuto do Idoso)42 e da Lei Federal nº 9.656/98 (Lei de Planos de
Saúde).43 Em ambos os casos, deverá a Corte responder se as disposições
do Estatuto do Idoso e da Lei de Plano de Saúde incidem nos contratos
firmados antes de sua vigência.
Os mais recentes precedentes apontam para uma desconsideração
da incidência retroativa das leis de ordem pública, prestigiando a
proteção da segurança jurídica. A Corte já entendeu que a Lei de Planos

42
RE nº 630.852/RS, Rel. Min. Ellen Gracie.
43
RE nº 578.801/RS, Rel. Min. Cármen Lúcia.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
218 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

de Saúde não poderia incidir sob contratos que lhe são anteriores,
ne­gando de maneira expressa o entendimento de que leis de ordem
pública podem excepcionar os direitos adquiridos. No julgamento da
medida cautelar na ADI nº 1931/DF, consta do voto do relator, Ministro
Maurício Corrêa, que:

os contratos assinados com os consumidores antes na nova legislação


não podem ser modificadas pelas regras ora impostas, sob pena de
violação ao princípio do direito adquirido e também ao ato jurídico
perfeito — garantidas protegidas pelo mandamento constitucional. (...)
Nesse ponto, entendo patente e indébita a ingerência do Estado no pacto
firmado pelas partes. (...)
A retroatividade determinada por esses preceitos faz incidir regras da
legislação nova sobre cláusulas contratuais pré-existentes, firmada sobe
a égide do regime legal anterior, que, a meu ver, afrontam o direito
consolidado das partes, de tal modo que violam o princípio consagrado
no art. 5º, XXXVI da Constituição Federal.

Antes disso, no julgamento da Representação de Inconstitucio-


nalidade nº 1.451, Rel. Min. Moreira Alves, de modo semelhante, a
res­peito da eficácia retroativa e com violação dos direitos adquiridos
por parte de leis de ordem pública, ponderou-se que:

Aliás, no Brasil, sendo o princípio do respeito ao direito adquirido, ao


ato jurídico perfeito e à coisa julgada de natureza constitucional, sem
qualquer exceção a qualquer espécie de legislação ordinária, não tem
sentido a afirmação de muitos — apegados aos preceitos de países em
que o preceito é de origem meramente legal — de que as leis de ordem
pública se aplicam de imediato alcançando os efeitos futuros do ato
jurídico perfeito ou coisa julgada, e isto porque, se se alteram os efeitos,
é óbvio que se está introduzindo modificação na causa, o que é vedado
constitucionalmente.

Os últimos anos testemunharam um certo rebaixamento, à con-


dição de subprincípio, das normas, de índole constitucional ou não,
que tutelem a segurança jurídica. São diversas as hipóteses para tal
fenômeno: a ainda recente promulgação da Constituição Federal de
1988, posterior à fase de supressão das garantias individuais; o encan-
tamento da doutrina com a possibilidade de preenchimento dos anseios
sociais através do novo texto constitucional; a completa modificação, nos
últimos anos, do perfil de alguns institutos, a exemplo do que ocorreu
nos setores de financiamento imobiliário, consumo e planos de saúde.

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A RELATIVIZAÇÃO DA PROTEÇÃO AO ATO JURÍDICO PERFEITO E AO DIREITO ADQUIRIDO NO ÂMBITO ...
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Entretanto, não se pode perder de vista que a estabilidade das


relações jurídicas não pode ser suprimida, nem colocada na condição de
direito menor, eis que devidamente prevista no texto constitucional na
condição de direito fundamental (art. 5º, caput). É justamente este vetor
que, nos tempos de diminuição das liberdades individuais, impede o
cometimento de arbitrariedades por meio dos contratos.

5 Conclusão
Como se viu, a inserção da proteção do direito adquirido e do
ato jurídico perfeito no contexto dos direitos fundamentais não atrai a
conclusão a priori, de que tais garantias podem ser relativizadas quando
em confronto com outros direitos.
O legislador, previamente, já exerceu juízo de ponderação que, a
toda vista, preenche os requisitos de razoabilidade/proporcionalidade:
a lei nova pode retroagir, pode apanhar contratos pretéritos, todavia,
desde que não viole as chamadas situações jurídicas consolidadas.
Razões de ordem pública — esse tão fluido conceito que pode masca-
rar as piores arbitrariedades — não podem justificar que as relações
jurídicas estabelecidas em vista de um certo modelo contratual possam
ser modificadas, em afronta à vontade das partes e aos pressupostos
existentes ao tempo da contratação.
O encantamento com a técnica hermenêutica de ponderação
de interesses não permite, de modo automático, relativizar situações
jurídicas consolidadas pelas partes por meio de suas manifestações de
vontade. Não se despreza a existência hipotética de situações-limite,
em que contra a garantia do direito adquirido possam ser postos ar-
gumentos vinculados à dignidade humana, por exemplo; no entanto,
nenhuma das hipóteses suscitadas pela doutrina para flexibilizar tal
garantia parece ir a tanto.
Afirmar que a relativização ocorreria somente em casos excepcio-
nais é o canto da sereia, conforme curiosamente informa Nelson Nery
Júnior, ao tratar da flexibilização da coisa julgada.44 Não se admite a
proteção dos “aparentes” direitos adquiridos — aqueles fundados
em negócios inválidos, nulos — ou das meras expectativas de direito.
Todavia, uma vez perfeito o negócio, deve-se ter em vista a proteção
da expectativa das partes de que a vontade manifestada será o princi-
pal vetor da interpretação da operação pactuada ou, quando menos,

44
Apud LEVADA, p. 116.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
220 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

a necessidade de regras de transição que reduzam os danos causados


às situações jurídicas consolidadas, sob pena de violação do princípio
da segurança jurídica.45

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FRANÇA, Rubens Limongi. Direito intertemporal brasileiro: doutrina da irretroatividade
das leis e do direito adquirido. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968.

45
“Embora de aplicação mais genérica e, por isso, menos precisa, o princípio da segurança
jurídica traduz a proteção da confiança que se deposita na subsistência de um modelo legal
(...). Nesses casos, se o princípio da segurança jurídica não impede a implementação das
mudanças recomendadas pelo interesse público, pode fundamentar a obrigatoriedade de
edição de regras de transição, com o objetivo de reduzir o impacto da intervenção sobre as
posições jurídicas em questão” (MENDES. Direitos fundamentais e controle de constitucionalida-
de, p. 163).

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ERMIRO NETO
A RELATIVIZAÇÃO DA PROTEÇÃO AO ATO JURÍDICO PERFEITO E AO DIREITO ADQUIRIDO NO ÂMBITO ...
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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
222 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


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adquirido no âmbito dos contratos privados: segurança jurídica e interpretação
civil-constitucional. In: EHRHARDT JR., Marcos (Coord.). Os 10 anos do Código
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978-85-7700-616-8.

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A RESOLUÇÃO DO CONTRATO POR
ONEROSIDADE EXCESSIVA NO CÓDIGO
CIVIL BRASILEIRO DE 2002 E SUA
APLICAÇÃO NO SUPERIOR TRIBUNAL
DE JUSTIÇA

LARISSA MARIA DE MORAES LEAL


ROBERTO PAULINO DE ALBUQUERQUE JÚNIOR

Introdução
As intrincadas relações entre a vontade e o contrato, que
alcançaram momento máxime de fusão a partir das revoluções liberais,
não resistiram aos desafios do século XX. Os reclames contemporâneos
de justiça social avançaram em todas as esferas do direito, transformando
o direito civil tradicional. Superada, parece, a ideia de concepção da
vontade como critério-base e, ao mesmo tempo, limite dos contratos.
Todavia, ainda é possível encontrar, aqui e ali, em nossa legislação e
decisões judiciais, resvalos da teoria da vontade e, por consequência,
de seus efeitos no ambiente negocial. Assim ocorre com o tratamento
dado à onerosidade excessiva no Código Civil brasileiro de 2002, em
que figura arrolada apenas como mecanismo de extinção dos contratos.
Nosso objetivo é investigar as razões dessa escolha do legislador,
seus reflexos na dimensão social dos pactos e sua incidência prática
nas decisões do Superior Tribunal de Justiça. Consideramos apenas o

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
224 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

enfrentamento do tema da onerosidade excessiva na seara de contratos


civis e empresariais, excluindo-se da presente pesquisa a revisão ou
resolução dos contratos de consumo, haja vista sua regulação por lei
autônoma, o Código de Defesa do Consumidor.
No primeiro tópico, trataremos das transformações que afasta-
ram a teoria contratual da soberania clássica dos contratos, assentada
na prevalência da vontade como núcleo central e intangível dos negó-
cios, rumo à afirmação de uma base objetiva dos pactos, fundada na
justiça contratual.
A partir dessa perspectiva de uma reformada teoria do contrato,
avançamos no estudo da onerosidade excessiva e suas implicações no
ambiente contratual, tendo como norte a diretriz de garantia contempo-
rânea de equivalência material nos pactos. Nessa ambiência, daremos
especial atenção à força jurídica atribuída à alteração das circunstâncias
contratuais, que pode tanto conduzir à revisão do conteúdo negocial,
como à própria resolução do contrato.
O tratamento dado à onerosidade excessiva pelo Código Civil
brasileiro de 2002 é objeto do terceiro tópico deste trabalho. Sobreleva
notar a opção do legislador em direcionar a onerosidade excessiva
à resolução do contrato, ainda que as demais figuras hermenêuticas
destinadas à revisão dos contratos, como a cláusula rebus sic stantibus
e a teoria da imprevisão, constem do texto legal em comento.
Ao fim, as conclusões a que chegamos serão apresentadas por
meio de comentários à aplicação da onerosidade excessiva pelo Supe-
rior Tribunal de Justiça, onde traremos os efeitos da aludida escolha
do legislador. O texto das decisões colacionadas será confrontado com
os elementos dispostos, no Código Civil brasileiro, como requisitos de
aplicação da onerosidade excessiva no ambiente contratual e será aferi-
do se há, ou não, também nesta Corte Superior, uma visão mais voltada
a conferir eficácia resolutiva, em lugar de modificativa, à incidência de
alterações supervenientes das circunstâncias negociais.

1 Da soberania clássica do contrato à teoria da base


objetiva do contrato
Os contratos, tradicionalmente, apareciam revestidos pela súmu-
la pacta sunt servanda, corolário necessário da autonomia da vontade,1

1
LIMA. Reflexões sobre a resolução do contrato na nova teoria contratual. In: MARQUES
(Coord.). A nova crise do contrato: estudos sobre a nova teoria contratual, p. 513.

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LARISSA MARIA DE MORAES LEAL, ROBERTO PAULINO DE ALBUQUERQUE JÚNIOR
A RESOLUÇÃO DO CONTRATO POR ONEROSIDADE EXCESSIVA NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 2002 ...
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traduzida pela força vinculante dos pactos, que, como tal, deviam ser
cumpridos. Entretanto, nesta fórmula, a vontade ainda não era um ele-
mento conformador e causador dos contratos; pelo contrário, no direito
romano, a vontade ou o consenso apenas excepcionalmente formavam
os pactos. Foi apenas bem mais adiante, com o jusracionalismo, que a
vontade passou a ser compreendida como fonte máxima de obrigações.2
No decorrer do século XIX, uma convergência entre os juristas,
então tida como universal, estabelecia que o direito positivo seria
norteado e dominado por uma ordem natural de justiça. Essa conver-
gência era tamanha que foi considerada verdadeira religião de Estado.3
A vontade, nesse período, avançava, sob a égide dos princípios da
liberdade e igualdade, como expressão máxima de fonte legitimadora
e conformadora dos contratos, sendo, portanto, intangível por decreto
e por crença.
A alteração das condições contratuais, contudo, não obedecia aos
decretos de satisfação dos anseios de segurança jurídica dos moder-
nos. Os fatos supervenientes se impunham e o direito, até meados do
século XX, ainda absorto das verdades revolucionárias do liberalismo
e já estático diante da necessidade de lidar com as novas insurgências
da sociedade, passou a indagar: pode o Estado intervir na execução do
contrato? Pode o Estado alterar as condições contratuais, impedir ou
retardar a execução de obrigações previamente dispostas em contrato?
A mitigação dos princípios clássicos dos contratos — autonomia
da vontade, liberdade contratual e relatividade dos contratos — deu
margem à composição de uma nova teoria dos contratos, que passou a
contemplar, também, os princípios da função social dos pactos, da boa-­
fé objetiva, da equivalência material e, sobretudo, ofereceu ao direito
civil uma visão revolucionária de justiça contratual.4
Mas a segurança ilusória dos modernos, mesmo em uma nova
ordem social, ainda permanecia, como permanece até o tempos atuais,
latente, tanto assim que não faltaram autores que proclamaram ser
ainda a vontade a base da revisão dos contratos.
As doutrinas que colocam os instrumentos de revisão dos con­
tratos, como a cláusula rebus sic stantibus e a teoria da imprevisão,
sob a análise da força da autonomia contratual, consideram que esta
revisão deriva, tacitamente, da vontade das partes. Para estas, a revisão

2
ALMEIDA. Texto e enunciado na teoria do negócio jurídico, p. 69.
3
RIPERT. A regra moral nas obrigações civis, p. 16.
4
LEAL. Boa-fé contratual. In: LÔBO; LYRA JÚNIOR (Coord.). A teoria do contrato e o novo
Código Civil, p. 26.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
226 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

também é querida e esperada, dado que o estado de coisas no qual elas


teriam baseado sua declaração de vontade teria sido alterado de modo
profundo e imprevisível. Tendo se comprometido a uma prestação,
mediante uma vontade manifestada com base em determinado estado
de coisas, se houve modificação na base da vontade, a revisão, assim,
seria querida e pretendida como forma de proteger a própria vontade
das partes.5 Em síntese apertada, o que se oporia ao credor, em uma
revisão nesses moldes, seria sua própria vontade.
Se, na antiguidade, em princípio determinava-se a obrigação
de adimplemento a quem prometeu (se deve, pague), sem atenção aos
possíveis sacrifícios que esta diretriz gerava, foi o absolutismo dessa
proposição que levou à conclusão de que havia, ali, uma dissociação
entre o modo de lidar com o contrato e as necessárias adaptações que
o direito reclamava.6
A chamada crise do contrato domiciliava-se justamente na inade-
quação entre uma dogmática ainda assentada na vontade como centro
irradiador das normas contratuais e os reclames da contemporaneidade,
que tornaram urgentes a funcionalização social do contrato, a garantia
de equivalência material nos pactos e, por decorrência lógica, a revisão
de seus conteúdos, em razão da ocorrência de fatos supervenientes que
alterassem a condição de cumprimento contratual.
Foram, então, ao longo do século XX, resgatados institutos gene-
ticamente dirigidos à revisão negocial, mas que ainda não haviam sido
administrados de modo a realizar seu desiderato, como a cláusula rebus
sic stantibus, e sendo formulados os seus sucedâneos, como a teoria da
imprevisão, a teoria da base do negócio jurídico e, mais ao final, a one-
rosidade excessiva. Esses institutos foram trazidos para o ambiente da
teoria dos contratos com vistas à realização da função social dos pactos
e efetivação da ideia contemporânea de justiça contratual.
Oriunda do trabalho dos glosadores, a teoria da cláusula rebus
sic stantibus, reverenciada por autores como Hugo Grócio e Pufendorf,

5
MORAES. Cláusula Rebus sic Stantibus, p. 31-32. Argumenta o autor que a maioria das dou-
trinas que fundamentam a revisão contratual na análise da vontade contratual, “especial-
mente formuladas pelos estudiosos alemães e italianos, tem um parentesco com a teoria
da pressuposição, elaborada pelo jurista pandestista Windscheid. Mesmo as que surgiram
como uma crítica à pressuposição não deixam de ser por ela influenciadas. Assim, a partir de
aperfeiçoamentos à teoria de Windscheid, que fora acusada de ser excessivamente genérica
e confusa, apareceram a doutrina da base do negócio jurídico (Oertmann e Karl Larenz), a
teoria do erro (Giovene), a da vontade marginal (Osti), a teria da imprevisão do Conceil d´Etat
francês e diversas outras, cada uma com seu matiz próprio e, normalmente, defendidas por
juristas de reconhecida capacidade”, p. 32.
6
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, p. 216.

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LARISSA MARIA DE MORAES LEAL, ROBERTO PAULINO DE ALBUQUERQUE JÚNIOR
A RESOLUÇÃO DO CONTRATO POR ONEROSIDADE EXCESSIVA NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 2002 ...
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foi implantada no direito civil por Eberhard, no final do século XVIII,


sendo introduzida na codificação territorial prussinana e no Código
Civil austríaco. Ao longo dos séculos XVIII, XIX e início do século XX,
a cláusula rebus sic stantibus foi amplamente criticada, sendo comum
o argumento de que repugnaria à própria ciência do direito, por sua
imprecisão, e porque configuraria o elemento mais aparente de uma
teoria com que, sem lei ou norma geral, seria criada regra jurídica sobre
a base do contrato.7 Discutia-se, então, a própria concepção de base do
negócio jurídico.
Mesmo dirigida à defesa da possibilidade de revisão do contrato,
a teoria da base do negócio jurídico estava impregnada do princípio
da autonomia da vontade. Se, a rigor, como afirmava Pothier, a justiça
contratual constituía uma exceção ao rigor dos princípios do direito
romano, não foi com facilidade que os juristas avançaram rumo à lapi-
dação de uma perspectiva de justiça negocial em que estejam assegura-
dos, ao mesmo tempo, o equilíbrio do contrato, seus fins econômicos e
sociais e sua execução de boa-fé, tudo o que seria, atualmente, a base
objetiva, e não mais subjetiva, do contrato.8

2 A onerosidade excessiva e seus efeitos no ambiente


contratual
2.1 A onerosidade excessiva
Sempre que às circunstâncias nas quais o contrato foi celebrado
sobrevierem fatos que as alterem em substância, onerando excessi-
vamente uma das partes contratantes, o equilíbrio do contrato estará
alterado. Esse é o ambiente onde deve incidir o instituto da onerosidade
excessiva que, se esteve originalmente ligado à ideia de lesão contratual,
destinando-se à resolução do contrato, rapidamente orientou-se, na
doutrina, rumo à revisão dos pactos.
É certo que todo contrato, dada a sua função econômica, implica
risco, que se avoluma quando este pacto projeta-se no tempo, tendo
execução diferida. Não é possível estabelecer o ponto exato do equilí-
brio contratual ou de sustentação de suas condições, mas sempre que
a mudança de circunstâncias ultrapassar o limite objetivo e razoável
das expectativas das partes contratantes, o risco do negócio perde
importância. Neste caso, não será mais adequado exigir que a parte

7
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, p. 217-218.
8
RIPERT. A regra moral nas obrigações civis, p. 144.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
228 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

devedora, não tendo responsabilidade na alteração de condições, as-


suma a onerosidade excessiva decorrente.9
A onerosidade excessiva figurou em texto legal no Brasil apenas
no final do século XX, por meio do Código de Defesa do Consumidor.
Ali, no art. 6º, inciso V, sempre que um fato superveniente torne ex-
cessivamente onerosas as obrigações contraídas pelos consumidores,
lhes foi atribuído o direito de reivindicarem a modificação dessas
obrigações majoradas, reconduzindo-se o contrato a um ambiente de
proporcionalidade aceitável.
A linha de construção da ideia de onerosidade excessiva como
mecanismo hermenêutico destinado à revisão ou à resolução dos
contratos, sem embargos de opiniões distintas, pode ter como marco
inicial as construções doutrinárias acerca da cláusula rebus sic stantibus.
Como vimos anteriormente, o cumprimento dos pactos estaria adstrito,
implicitamente, ao conteúdo da cláusula geral de continuidade e per-
manência das condições da avença; alteradas essas condições por fato
superveniente, o cumprimento das obrigações decorrentes do contrato
estaria em xeque.
Na França, a evolução da cláusula rebus sic stantibus conduziu os
doutrinadores a concebê-la em um enfoque diferenciado. Sob a égide
de seu Code, ao longo de todo o século XIX, a jurisprudência civil fran-
cesa, dirigida pela máxima da completa intangibilidade do conteúdo
contratual, entendia ser impossível a revisão dos pactos.10 Já a doutrina
francesa, talvez por estar vinculada a esse sistema judiciário, tratou de
mitigar a abrangência da cláusula rebus sic stantibus, reduzindo o espaço
da revisão judicial do contrato e tornando exigível mais um requisito
para a sua realização: a imprevisibilidade do evento superveniente
que teria gerado a alteração das condições contratuais. Essa doutrina
francesa foi denominada teoria da imprevisão e teve larga influência
no direito civil pátrio.11
Na Itália, em 1942, o então novo Códice Civile, nos arts. 1467 a
1469, adotou a onerosidade excessiva, já assim expressa, como causa de
resolução contratual. Os italianos optaram por aplicá-la aos contratos
de execução continuada, periódica ou diferida, agravados pela ocor-
rência de eventos extraordinários e imprevisíveis, em que a alteração
de circunstâncias houvesse gerado uma excessiva onerosidade para
uma das partes. A onerosidade não seria considerada no âmbito da álea

9
LÔBO. Direito civil: contratos, p. 202.
10
MORAES. Cláusula Rebus sic Stantibus, p. 75-76.
11
LÔBO. Direito civil: contratos, p. 203-204.

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LARISSA MARIA DE MORAES LEAL, ROBERTO PAULINO DE ALBUQUERQUE JÚNIOR
A RESOLUÇÃO DO CONTRATO POR ONEROSIDADE EXCESSIVA NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 2002 ...
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natural de cada contrato e, assim como ficou consolidado no texto do


Código Civil brasileiro de 2002, a resolução somente poderia ser evitada
pela parte contra a qual fosse demandada, por meio de proposição de
modificação equitativa das condições do pacto.12
A vinculação da onerosidade excessiva com a teoria da impre-
visão, na Itália, justifica-se tanto por seu momento político-econômico,
como em razão das influências das discussões francesas sobre o tema.
Mas no Brasil, tal justificativa não há.
Os autores de anteprojeto do Código Civil brasileiro de 2002 co-
nheciam os tratamentos sucedâneos dados à cláusula rebus sic stantibus,
à teoria da imprevisão e à onerosidade excessiva. A revisão, assentada
na principiologia revisionista da teoria da imprevisão, foi justificada por
Miguel Reale, supervisor da comissão elaboradora e revisora do Código,
como sendo um dos muitos exemplos de atendimento à socialidade
do direito, tendo por objetivo imbuir nos pactos negociais estrutura e
função social.13 Mas não foi mencionada qualquer justificativa razoável
para que a onerosidade excessiva constasse do texto apenas em sua
vertente produtora de eficácia resolutiva dos pactos. Perdeu, portanto,
o legislador brasileiro um momento bastante oportuno para estabelecer,
em claras linhas, um novo programa de revisão dos contratos, mais
objetivo, mais dinâmico e em consonância com as demandas sociais.

2.2 A eficácia modificativa ou revisional da alteração de


circunstâncias
A apreensão do sentido de eficácia modificativa das alterações
de circunstâncias na esfera contratual remonta à Idade Média. O direito
romano primitivo, apegado ao formalismo que lhe era peculiar, pouco
cuidou em lidar com os pactos de trato sucessivo ou com os possíveis
desequilíbrios posteriores à formação dos contratos. Cabia às partes
o dever de precaução contra o perigo de superveniência de fatos que
alterassem o equilíbrio do contrato. Foram os canonistas que, revendo
o direito romano, cunharam a máxima non servantifidem, non est fides
servanda, julgando imoral que um contratante pudesse exigir o cumpri-
mento das promessas do outro quando não tivesse disposição ou não
tivesse condições, ele mesmo, de manter suas próprias promessas.14

12
MORAES. Cláusula Rebus sic Stantibus, p. 83.
13
MORAES. Resolução e revisão dos contratos por onerosidade excessiva. In: LÔBO; LYRA
JÚNIOR (Coord.). A teoria do contrato e o novo Código Civil, p. 208.
14
RIPERT. A regra moral nas obrigações civis, p. 143.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
230 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Atribuir efeito modificativo ou revisional à alteração das circuns-


tâncias contratuais persiste como problemática sensível na teoria dos
contratos. É comum a agregação, a tais situações, das discussões pró-
prias dos chamados conflitos entre os princípios gerais que informam
o direito. “Fala-se, assim, de conflito entre o valor da segurança, que
exige a manutenção dos contratos e o da justiça, que impede benefícios
injustificados para uma pessoa, à custa de outra.”15
Entrementes, apenas um giro de 180 graus, como o ocorrido na
teoria geral dos contratos, absorvendo uma nova ideologia principio-
lógica, tornou possível estabelecer que, por justiça contratual, os pactos
devem ser revistos ou extintos, a depender da possibilidade ou não de
sua continuidade, em razão da ocorrência de fatos supervenientes que
os tornem desequilibrados e dissociados de seus valores econômicos
e sociais.
Nesse sentido dispõe o Código Civil português, em seu art. 437,
nº 1, apontado como sendo de significativa clareza:

Se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar


tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à
resolução do contrato ou à modificação dele segundo juízos de equi-
dade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte
gravemente os princípios da boa-fé e não esteja coberta pelos riscos
próprios do contrato.

Seria, portanto, na legislação portuguesa, um juízo de equidade


o fundamento para atribuição de eficácia revisional, ou não, à alteração
das circunstâncias, diretriz contrária à determinada no Código Civil
brasileiro de 2002, que, como veremos, optou por restringir o papel
do juiz no tratamento dos fatos supervenientes hábeis a alterar as
condições dos pactos.

2.3 A eficácia resolutiva da alteração das circunstâncias


A eficácia resolutiva da modificação de circunstâncias contratuais
é conhecida, no Brasil, pela jurisprudência, desde 1930. Neste ano,
Nelson Hungria, ainda na condição de magistrado de primeira ins­tân­
cia, com base na cláusula rebus sic stantibus, determinou a re­so­lução de
uma promessa de compra e venda de imóvel, firmada 18 anos antes.

15
CORDEIRO. Direito das obrigações, p. 142.

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A RESOLUÇÃO DO CONTRATO POR ONEROSIDADE EXCESSIVA NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 2002 ...
231

O valor do objeto da avença havia sido decuplicado nesse intervalo


de tempo, como resultado de alterações imprevisíveis do mercado de
imóveis, ocasionadas por empreendimentos realizados pela Prefeitura
do Município do Rio de Janeiro. Foi com base nos princípios gerais
do direito, na equidade e no reconhecimento dessas alterações de
circunstâncias, que a promessa de compra e venda foi declarada re­sol­
vida, sendo-lhe negados todos os efeitos jurídicos.16
Em síntese, a eficácia resolutiva da alteração de circunstâncias
está assentada na seguinte premissa: o contrato era respeitável quando
concluído porque correspondia a fins legítimos; posteriormente à sua
conclusão, quer por culpa de uma das partes, de terceiro ou por um
acontecimento fortuito, desequilibrou-se, tornando a sua execução
indevida. Não obstante, como se trata de quebra de contrato, a inter-
venção do judiciário é necessária por dois motivos: para avaliação do
grau de inexecução, se parcial, acessória ou tardia; e porque não deve
haver extinção de pleno direito de obrigação legitimamente contratada
em decorrência de alteração das circunstâncias contratuais.17
Contudo, o que deveria ser residual ou excepcional, a termi-
nação do contrato, no Código Civil brasileiro passou à condição de
regra. Em seu texto, o Código dirige os contratos impactados por fatos
supervenientes — e tornados excessivamente onerosos — diretamente
à resolução, olvidando-se de que a própria ideia de função social dos
contratos reside, preliminarmente, em sua existência.
A eficácia resolutiva da alteração de condições deveria ser re-
conhecida somente nas hipóteses em que não fosse possível salvar o
contrato, garantir a continuidade da relação jurídica contratual, res-
gatando seu equilíbrio. Como veremos, o texto escorreito do Código
conduz, em uma interpretação literal, ao resgate do pacto apenas, e
somente apenas, quando a parte beneficiada pela alteração de condi-
ções, voluntariamente, oferecer-se para alterar o conteúdo contratual.

3 A onerosidade excessiva no Código Civil brasileiro de


2002 e sua aplicação no Superior Tribunal de Justiça
Em uma clara manifestação de sobrepujança dos efeitos extinti-
vos das alterações de condição contratual, como vimos, nosso Código
Civil optou por tratar a onerosidade excessiva no capítulo destinado
à extinção dos contratos.

16
MORAES. Cláusula Rebus sic Stantibus, p. XXI.
17
RIPERT. A regra moral nas obrigações civis, p. 144-145.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
232 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Dispõe o art. 478, do Código Civil brasileiro:

Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a presta-


ção de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema
vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários
e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os
efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.

São requisitos legais, portanto, para a resolução por onerosidade


excessiva: (a) que o contrato seja de execução diferida ou continuada;
(b) que a alteração de circunstâncias se dê em virtude de acontecimento
extraordinário e imprevisível; (c) que, em razão de tais acontecimentos,
a prestação de uma das partes se torne excessivamente onerosa e que,
concomitantemente, haja extrema vantagem para a outra parte. Ao lado
desses requisitos legais, temos também um requisito que se impõe em
razão do sistema de direito civil: (d) que a parte beneficiada pelo fato
superveniente não seja culpada ou responsável por sua ocorrência,
dado que a ninguém é permitido beneficiar-se de sua própria torpeza.
Pelo texto do Código Civil, a imprevisibilidade figura como re-
quisito não apenas à revisão dos contratos, mas também à sua resolução.
O fato previsível, em princípio, excluiria a alegação de onerosidade
excessiva.
Em outro sentido, o Código de Defesa do Consumidor avançou
ao não exigir a imprevisibilidade ou irresistibilidade do fato super-
veniente, exigindo, tão somente, a quebra da base objetiva do pacto,
caracterizada pela fratura de seu equilíbrio e abalo na relação de equi-
valência material das prestações.18
O elemento autorizador da revisão no Código Civil brasileiro,
que deveria ser objetivo — o desequilíbrio gerado pelo fato superve-
niente — foi tratado subjetivamente. A exigência de imprevisibilidade,
além de ser eminentemente subjetivista e apegada ao corolário da au-
tonomia da vontade, negligencia todo o desenvolvimento da chamada
nova teoria dos contratos e desafia, frontalmente, seus princípios sociais.
A doutrina, alternadamente, aponta dois modelos que teriam
servido de inspiração ao legislador nacional: para alguns, a comissão
de Miguel Reale teria seguido as diretrizes que compunham o Código
Civil italiano de 1942, em seus arts. 1467 a 1469, já aventados anterior-
mente. Para a maioria, contudo, o modelo parece ainda mais remoto: a

18
CARDOSO. O fim negativo do contrato no Código Civil de 2002: resolução por onerosida-
de excessiva. In: MARQUES (Coord.). A nova crise do contrato: estudos sobre a nova teoria
contratual, p. 556.

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LARISSA MARIA DE MORAES LEAL, ROBERTO PAULINO DE ALBUQUERQUE JÚNIOR
A RESOLUÇÃO DO CONTRATO POR ONEROSIDADE EXCESSIVA NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 2002 ...
233

Lei Failliot, de 1918, que propôs, na França, a rescisão dos contratos an-
teriores à guerra porque sua execução havia se tornado excessivamente
onerosa. Ali, ainda apegados à vontade, não se cogitava a possibilidade
de revisão dos conteúdos contratuais. Em seu art. 2º, a Lei Failliot tinha
como caráter essencial a intervenção do Juiz no desenlace contratual
porque as partes não poderiam, sozinhas, desligar-se de uma obrigação
que tornara-se ruinosa para uma delas. O juiz não poderia rever o pacto
para lhe modificar as cláusulas estabelecidas; os juristas consultados
antes da edição desta lei afastaram a proposta de revisão, afirmando
que esta somente poderia resultar de entendimento entre as partes.19
Nesse mesmo sentido, o legislador dispôs, no art. 479 do Código
Civil brasileiro:

Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar


equitativamente as condições do contrato.

Apesar de o legislador ter absorvido as ideias próprias da cláusu-


la rebus sic stantibus e da teoria da imprevisão, a exemplo da disposição
constante do art. 317 do Código Civil,20 e independentemente do modelo
seguido, se italiano ou francês, o fato é que o Código Civil brasileiro
não avançou quanto podia no tratamento da onerosidade excessiva.
A partir da segunda metade do século XX, já havia amplo consenso
doutrinário na Europa sobre a inspiração da onerosidade excessiva:
afastando a perspectiva de imprevisibilidade, a revisão do contrato
seria inspirada no conceito de equilíbrio objetivo entre as prestações,
de garantia de um sinalagma funcional nos pactos. Seria, pois, um
retorno à objetividade originária da cláusula rebus sic stantibus, com
maior intimidade com os princípios sociais dos contratos.
O Superior Tribunal de Justiça julgou menos de uma dezena de
pedidos nos quais houve alegação de resolução dos contratos decorrente
de alteração das circunstâncias, com base nas disposições do Código
Civil brasileiro de 2002. As razões para tanto assentam-se em três fato-
res: os filtros processuais que determinam quais pedidos serão conhe-
cidos e julgados em nossos Tribunais Superiores; a evidência de que,
na grande maioria das situações, é na seara dos contratos de consumo
que se tem requerido a incidência da onerosidade excessiva; e, por fim,

19
RIPERT. A regra moral nas obrigações civis, p. 145.
20
Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o va-
lor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido
da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
234 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

a rigidez dos critérios impostos pela legislação civil brasileira para a


aplicação da onerosidade excessiva, com especial destaque à escolha do
legislador em dirigir o contrato que teve suas condições alteradas por
fato superveniente à resolução e não à revisão dos pactos, bem como
o requisito de imprevisibilidade do fato superveniente, este que tem
sido o maior óbice à resolução dos contratos por onerosidade excessiva.
A opção do legislador, afastando no texto do Código o juízo de
equidade do magistrado, negando-lhe a opção entre rever ou resolver o
contrato, gerou consequências imediatas. As turmas do Superior Tribu-
nal de Justiça competentes para processar e julgar feitos dessa natureza,
a terceira e a quarta, têm julgado casos de onerosidade excessiva, inci-
dente em contratos civis e empresariais, de modo uniforme. A opção,
no STJ, segue a diretriz do legislador e, diante de onerosidade excessiva
incidente nos contratos, a opção tem sido a de buscar o preenchimento
literal de todos os requisitos arrolados no art. 478 já referido.
Não é demais ratificar, o requisito de imprevisibilidade, disso-
nante da teoria da onerosidade excessiva hodierna, aparece com força
total nos julgados do Tribunal da Cidadania. Se não resta provada
a imprevisibilidade do evento que alterou as condições contratuais,
prejudicada ficará a parte excessivamente onerada, a quem caberá o
cumprimento ordinário das obrigações que contraiu no momento da
contratação.
Dirimindo conflito de onerosidade excessiva em contratos de
safra, os quais têm alta carga de aleatoriedade, o STJ negou a estes
aplicação da onerosidade excessiva, assentado na premissa de que este
instituto reclama a superveniência de evento extraordinário e impossí-
vel de ser antevisto pelas partes contratantes. Não houve argumentação
pautada na possível vulnerabilidade jurídica de uma das partes; houve
simples aplicação escorreita do texto legal, conforme julgou a quarta
turma, em 28.2.2012:

RESP nº 945166/GO – Ementa: DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL.


RECURSO ESPECIAL. OMISSÃO. INEXISTÊNCIA. CONTRATO DE
COMPRA E VENDA DE SAFRA FUTURA DE SOJA. CONTRATO
QUE TAMBÉM TRAZ BENEFÍCIO AO AGRICULTOR. FERRUGEM
ASIÁ­TICA. DOENÇA QUE ACOMETE AS LAVOURAS DE SOJA DO
BRASIL DESDE 2001, PASSÍVEL DE CONTROLE PELO AGRICULTOR.
RESOLUÇÃO DO CONTRATO PORONEROSIDADE EXCESSIVA.
IMPOSSIBILIDADE. OSCILAÇÃO DE PREÇO DA ”COMMODITY”.
PREVISIBILIDADE NO PANORAMA CONTRATUAL.
1. A prévia fixação de preço da soja em contrato de compra e venda
futura, ainda que com emissão de cédula de produto rural, traz também

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A RESOLUÇÃO DO CONTRATO POR ONEROSIDADE EXCESSIVA NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 2002 ...
235

benefícios ao agricultor, ficando a salvo de oscilações excessivas de pre-


ço, garantindo o lucro e resguardando-se, com considerável segurança,
quanto ao cumprimento de despesas referentes aos custos de produção,
investimentos ou financiamentos.
2. A “ferrugem asiática” na lavoura não é fato extraordinário e imprevi-
sível, visto que, embora reduza a produtividade, é doença que atinge
as plantações de soja no Brasil desde 2001, não havendo perspectiva
de erradicação a médio prazo, mas sendo possível o seu controle pelo
agricultor. Precedentes.
3. A resolução contratual pela onerosidade excessiva reclama superveniência
de evento extraordinário, impossível às partes antever, não sendo suficiente
alterações que se inserem nos riscos ordinários. Precedentes.
4. Recurso especial parcialmente provido para restabelecer a sentença
de improcedência. (grifos nossos)

No mesmo sentido, e com base em fundamentos idênticos, já


havia julgado a terceira turma do STJ, caso semelhante que envolvia
contrato de safra, em 18.5.2010:

RESP nº 835498/GO – Ementa: CIVIL E PROCESSO CIVIL. COMPRA DE


SAFRA FUTURA DE SOJA. CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO CONCRE-
TO. CONTRATO ALEGADO COMUTATIVO. RECURSO ESPECIAL
PROVIDO. ACÓRDÃO IMPROCEDENTE
I - Não se viabiliza o especial pela indicada ausência de prestação juris-
dicional, porquanto a matéria em exame foi devidamente enfrentada,
emitindo-se pronunciamento de forma fundamentada, ainda que em
sentido contrário à pretensão dos recorrentes. A jurisprudência desta
Casa é pacífica ao proclamar que, se os fundamentos adotados bastam
para justificar o concluído na decisão, o julgador não está obrigado a
rebater, um a um, os argumentos utilizados pela parte.
II - Na hipótese dos autos o Tribunal de origem aludiu ao contrato de
compra de safra futura (aleatório), referindo-se a ele como um con-
trato comutativo. Isso não significa concluir, porém, que a execução
do contrato não se daria de forma diferida no tempo, igualando-se,
pois, o caso, aos inúmeros casos semelhantes a este já julgados por este
Tribunal. Muito ao revés, o acórdão é bastante claro em afirmar que as
partes contrataram a entrega de safra de soja para momento posterior
à celebração do negócio. Impertinente, por isso, o argumento de que
a resolução contratual com fundamento no artigo 478 do Código Civil
estaria desautorizada, devendo-se, no caso, seguir a jurisprudência já
pacificada nesta Corte em casos idênticos.
III - Tendo o aresto recorrido determinado a resolução do contrato com
base na onerosidade excessiva superveniente (artigo 478 do Código
Civil), revela-se impertinente, também, a alegação de ofensa ao artigo

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
236 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

157, §1º, do Código Civil, segundo o qual a desproporção entre as


obrigações para efeito da aplicação do instituto da lesão deve ser apurada
ao tempo em que celebrado o contrato. Isso porque o Acórdão está ancorado
na teoria da imprevisão e não no instituto da lesão. Incidência da Súmula
284 do Supremo Tribunal Federal.
IV - No caso concreto, os autores buscam a resolução do contrato por
onerosidade excessiva e não pelo inadimplemento de alguma contra-
prestação a que se obrigou a parte contrária. Dessa forma, a expressão
“interpelação judicial” contida no artigo 474 do Código de Processo Civil
deve ser compreendida como a própria propositura da ação judicial, não
havendo sentido exigir uma interpelação judicial prévia (procedimento
de jurisdição voluntária) para a constituição de uma mora que não se
verificou. Incidência da Súmula 284/STF.
V - “A compra e venda de safra futura, a preço certo, obriga as partes se
o fato que alterou o valor do produto agrícola (sua cotação no mercado
internacional) não era imprevisível.” (REsp nº 722130/GO, Rel. Ministro
ARI PARGENDLER, TERCEIRA TURMA, DJ, 20 fev. 2006);
VI - Recurso Especial provido, cancelada a imposição da multa do artigo
538 do Código de Processo Civil. (grifos nossos)

A confusão entre institutos operada pelo legislador desaguou nas


decisões judiciais. Na decisão acima, podemos inferir que o julgador
identifica a onerosidade excessiva com a teoria da imprevisão.
O resultado, quando investigamos os efeitos da disposição do
art. 478, do Código Civil, nos contratos aleatórios submetidos a fatos
supervenientes, é uniforme no Superior Tribunal de Justiça: por en-
tenderem que a sorte lhes é própria, o julgador afasta da incidência da
onerosidade excessiva a estes, negando-lhes eficácia modificativa ou
resolutiva, por entender que a alea, ou sorte, afasta qualquer possibili-
dade de discussão acerca do equilíbrio do contrato ou da equivalência
das obrigações das partes contratantes.
Máxime, nesse entendimento, o julgamento da terceira turma,
no Recurso Especial nº 866414, de 6.3.2008:

RESP nº 866414/GO – EMENTA: CIVIL.CONTRATO. COMPRA E


VENDA. SOJA. PREÇO FIXO. ENTREGA FUTURA. OSCILAÇÃO DO
MER­CADO. RESOLUÇÃO. ONEROSIDADE EXCESSIVA. BOA-FÉ
OBJETIVA. CÉDULA DE PRODUTO RURAL. NULIDADE.
- Nos contratos agrícolas de venda para entrega futura, o risco é inerente ao
negócio. Nele não se cogita em imprevisão.
- É nula a emissão de cédula de produto rural, pois desviada de sua
finalidade típica, qual seja, a de servir como instrumento de crédito
para o produtor rural.

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LARISSA MARIA DE MORAES LEAL, ROBERTO PAULINO DE ALBUQUERQUE JÚNIOR
A RESOLUÇÃO DO CONTRATO POR ONEROSIDADE EXCESSIVA NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 2002 ...
237

Acórdão:
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indica-
das, acordam os Ministros da TERCEIRA TURMA do Superior Tribunal
de Justiça na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir,
por maioria, conhecer do recurso especial e dar-lhe parcial provimento,
nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.
Vencidos os Srs. Ministros Nancy Andrighi e Castro Filho (art. 162, IV,
b, do RISTJ). Os Srs. Ministros Ari Pargendler e Sidnei Beneti votaram
com o Sr. Ministro Relator. (grifos nossos)

Na decisão acima, o entendimento do Superior Tribunal de


Justiça ainda não estava firmado. Tanto assim que os votos de diver-
gência, da lavra dos Ministros Fátima Nancy Andrighi e Castro Filho
argumentaram em outro sentido, entendendo ser cabível e oportuna a
aplicação da onerosidade excessiva, in casu, decorrente do desequilí-
brio contratual patente e por violação do princípio da boa-fé objetiva.
Argumentaram também, anteriormente, em divergência, os ministros
citados em sede do Recurso Especial nº 783520, julgado em 7.5.2007,
situação na qual também foram vencidos.
Desde 2008, em síntese, o Superior Tribunal de Justiça, por
entender que a imprevisibilidade do fato superveniente é requisito
para a aplicação da onerosidade excessiva aos contratos, tem negado
incidência da mesma nos pactos aleatórios.

4 Revisão por onerosidade excessiva após o Código


Civil de 2002
Muito embora o legislador de 2002 tenha optado pela resolução
contratual como consequência natural da onerosidade excessiva, a
técnica de revisão não é estranha ao direito privado comum e encontra
fundamento no sistema para além da literalidade do art. 478 do Código.
As decisões do Superior Tribunal de Justiça, como visto, ainda
se apegam à extinção do negócio desequilibrado, mas a doutrina tem
explorado as possibilidades da revisão, o que sinaliza para a recons-
trução da jurisprudência nas instâncias inferiores.
As bases desta discussão doutrinária são, por certo, bem ante-
riores ao próprio Código Civil de 2002.
Pontes de Miranda, por exemplo, ao estudar o poder de reso-
lução contratual, já salientava que há situações em que o contratante

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
238 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

prejudicado pela alteração de circunstâncias precisa necessariamente


recorrer ao pedido de modificação da contraprestação.21
A interpretação que nega o poder de intervenção contratual
em decorrência das limitações da regra codificada viola o velhíssimo
princípio da conservação do negócio jurídico, que hoje assume nova
roupagem à luz da tutela da função do contrato e do sentido finalista
do processo obrigacional.22
Por isso, quando do exame da experiência jurídica brasileira a
respeito da onerosidade excessiva após o novo Código, verifica-se que
a doutrina procurou de imediato inserir a revisão como uma faculdade
implícita,23 de modo a ajustar a lei às necessidades do sistema.
Essa interpretação construtiva, como dito anteriormente, acaba
por se fazer sentir também na jurisprudência.
Neste sentido, vale conferir o seguinte julgado, do Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo:

TJSP – Apelação nº 3002130-07.2010.8.26.0439 – julg. 24/05/12.


Revisão de contrato bancário. Possibilidade que decorre do próprio sistema
jurídico (arts. 478 e 480 do CC e art. 6º, V, do CDC). Aplicação do Código
de Defesa do Consumidor (Súmula 297 do STJ). Adesividade. Hiper-
vulnerabilidade do consumidor temperada por sistemática de cláusulas
principiológicas de equilíbrio e equidade. Adesão que em si mesma não
é antijurídica. Contrato de abertura de conta corrente. Capitalização
mensal dos juros remuneratórios. Inocorrência. Hipótese em que os
novos juros incidiram somente sobre o capital. Depósitos que amortizam
o saldo devedor. Imputação do pagamento. Aplicabilidade do art. 354
do CC. Anatocismo afastado. Contrato de empréstimo. Juros prefixa-
dos, calculados quando da celebração da avença e diluídos ao longo
do negócio jurídico. Capitalização mensal dos juros remuneratórios
inocorrente. Juros remuneratórios. Inaplicabilidade da Lei de Usura.
Vedação consubstanciada na Súmula 596 do STF. Inaplicabilidade do
art. 192, §3º, da CF, revogado pela EC 40/03. Inexistência de limitação

21
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, p. 262.
22
Neste sentido: “E se la regola di conservazione e di adeguamento del contenuto esprime
um’esigenza generale, riferibile all’autonomia privata nel suo complesso, a maggior ragione,
se diceva, essa deve operare la ddove — come cièstato spiegato — lo svolgimento del rap-
porto è funzionalmente connesso all’interesse dei contraenti ala continuità dell´esecuzione,
cioè nei contratti a lungo termine. Il riferimento è ale circostanze sopravvenute atte ad altera-
re, nel tempo, l´equilibrio di assetti programmato ab origine dai contraenti” (CRISCUOLO.
Autonomia negoziale e autonomia contrattuale, p. 284).
23
Entre outros: ASSIS; ANDRADE; ALVES. Do direito das obrigações. In: ALVIM; ALVIM
(Coord.). Comentários ao Código Civil brasileiro, p. 728-729; TEPEDINO; BARBOZA; MORAES.
Código Civil interpretado: conforme a Constituição da República, p. 133.

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LARISSA MARIA DE MORAES LEAL, ROBERTO PAULINO DE ALBUQUERQUE JÚNIOR
A RESOLUÇÃO DO CONTRATO POR ONEROSIDADE EXCESSIVA NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 2002 ...
239

legal ou constitucional. Incidência da Súmula Vinculante n.º 7 do STF.


Abusividade não comprovada. Spread bancário legítimo. Tarifas e en-
cargos bancários. Legitimidade. Desnecessidade de previsão contratual.
Autorização do Banco Central. Possibilidade de verificação nas próprias
agências bancárias e por meio eletrônico. Direito de informação não
violado. Sucumbência. Ônus devidos à parte vencida. Improcedência
da demanda. Honorários advocatícios impostos integralmente ao autor.
Princípio da causalidade. Recurso desprovido. (grifos nossos)

O precedente é interessante porque, mesmo tratando de hipótese


de revisão em relação de consumo, remete ao art. 478, assentando que
em relações privadas não submetidas ao CDC também existe a possi-
bilidade de intervenção no conteúdo do contrato.
Percebe-se, assim, que o nosso sistema dispõe de recursos téc-
nicos necessários para tratar a questão da onerosidade excessiva de
maneira bem mais adequada e efetiva do que pode sugerir uma leitura
restrita do dispositivo em questão.
Mais do que simplesmente prever a possibilidade de revisão,
entretanto, é preciso privilegiá-la, tê-la como solução prioritária a ser
adotada nos casos de desequilíbrio contratual.
Essa interpretação parece estar em plena consonância com os
fundamentos da teoria contratual brasileira contemporânea, e alinha
o modelo nacional com as propostas mais atuais colhidas no direito
comparado, como os Princípios do Direito Contratual Europeu e os
Princípios do Unidroit.24

Referências
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circunstancias del contrato em la unificación del derecho europeo. In: OSSORIO
SERRANO, Juan Miguel (Org.). Europa y los nuevos limites de la autonomia privada. Granada:
Universidad de Granada, 2005.
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Almedina, 1992. v. 1.
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Do direito das obrigações. In: ALVIM, Arruda; ALVIM, Thereza (Coord.). Comentários ao
Código Civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2007. v. 5. Art. 421 a 578.

24
ALCAÍN MARTÍNEZ. Problemas de la alteración sobrevenida de las circunstancias del
contrato em la unificación del derecho europeo. In: OSSORIO SERRANO (Org.). Europa y
los nuevos limites de la autonomia privada, p. 58-60.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
240 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

CARDOSO, Débora Rezende. O fim negativo do contrato no Código Civil de 2002:


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crise do contrato: estudos sobre a nova teoria contratual. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2007. p. 529-558.
CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha e Menezes. Direito das obrigações. Lisboa:
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CRISCUOLO, Fabrizio. Autonomia negoziale e autonomia contrattuale. Napoli: Edizione
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LEAL, Larissa Maria de Moraes. Boa-fé contratual. In: LÔBO, Paulo Luiz Netto; LYRA
JÚNIOR, Eduardo Messias Gonçalves de (Coord.). A teoria do contrato e o novo Código
Civil. Recife: Nossa Livraria, 2003. p. 25-42.
LIMA, Clarissa Costa de. Reflexões sobre a resolução do contrato na nova teoria contratual.
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

LEAL, Larissa Maria de Moraes; ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino de.


A resolução do contrato por onerosidade excessiva no Código Civil brasileiro
de 2002 e sua aplicação no Superior Tribunal de Justiça. In: EHRHARDT JR.,
Marcos (Coord.). Os 10 anos do Código Civil: evolução e perspectivas. Belo
Horizonte: Fórum, 2012. p. 223-240. ISBN 978-85-7700-616-8.

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A RESOLUÇÃO EXTRAJUDICIAL
DO CONTRATO EM VIRTUDE DO
DESCUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES
NOS ORDENAMENTOS JURÍDICOS
BRASILEIRO E PORTUGUÊS

LAVÍNIA CAVALCANTI LIMA CUNHA

1 Introdução
A resolução por descumprimento pode parecer mote simplório
e com poucas controvérsias; a verdade, no entanto, é contrária. O
embaralhamento referente à matéria existente na lei, na doutrina e na
jurisprudência, em conjunto com sua relevância fática, econômica e
jurídica foram as razões pelas quais o tema foi escolhido.
Após a celebração de um contrato, é difícil prever se será
observado. Inexistem dados objetivos que possam mensurar e fornecer
estatísticas e probabilidades de cumprimento do pacto. Por essas e
outras razões há quem perfaça a comparação entre o amor e o contrato:
no começo tudo é perfeito, somente o uso revela se o dia seguinte será de
choro ou de alegrias. Aproveitando essa metáfora, poderíamos afirmar
que, assim como no amor, as partes são otimistas e não se preparam
para o descumprimento do contrato, pois esperam que o ajuste seja
plenamente executado, afinal os contratos nascem para ser cumpridos.1

1
Em direta referência ao princípio pacta sunt servanda, cuja obrigatoriedade alicerça o direito
contratual.

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Contudo, deixando para trás a comparação de figuras tão dis-


tintas, é de bom alvitre observar que a doutrina também segue esse
padrão de otimismo e se detém em examinar com profundidade as
consequências do inadimplemento,2 quiçá porque o cumprimento do
contrato é o modo normal de cessação dos seus efeitos; é o seu fim
natural, enquanto o contrário seria a sua forma anormal de extinção.
Inobstante isso ser verdade, não é menos verdade que o cumprimento
não fornece maiores problemáticas jurídicas, se compararmos com a
situação do descumprimento do contrato.
A resolução é a figura extintiva mais importante, complexa e
problemática,3 e as discussões principiam na nomenclatura, atingem
o conceito e prolongam-se quase indefinidamente pelos seus pressu-
postos, forma e efeitos, tornando difícil a solução dos problemas. No
entanto, a sua utilidade é patente nas relações jurídicas contratuais.
Neste estudo, almejamos, sobretudo, repensar matérias e ar-
gumentos consolidados, no intuito de verificar se (ainda) possuem
justificativa, medir suas raízes e através de observação e análise crítica
atravessar sua lógica subjacente para alcançar eventuais princípios e
fundamentos gerais, mediante exame comparativo entre os ordena-
mentos jurídicos brasileiro e português.
O exame da matéria está restrito aos ordenamentos jurídicos
português e brasileiro, o que já se encontra identificado no próprio título
do trabalho, inobstante eventualmente ingressemos em outros sistemas
jurídicos para dilatar a visão do assunto. Dentro dos mencionados orde-
namentos, examinaremos apenas as disposições constantes aos Códigos
Civis, assim excluindo quaisquer regimes especiais da resolução por
incumprimento constantes em outros Códigos e legislações avulsas. E
mesmo no âmbito dos Códigos Civis, debruçaremo-nos apenas sobre
os preceitos diretamente ligados à parte geral da matéria, excluindo,
com isso, ocasionais disciplinamentos de contratos específicos.

2
A doutrina brasileira traz poucos contributos nessa área e, quando trata do assunto, normal-
mente o insere em manuais de modo simplório. De acordo com Pedro Romano Martinez, a
doutrina portuguesa também agiria dessa forma, Da cessação do contrato, p. 20 e, apesar de
concordarmos com o autor no que respeita à doutrina portuguesa, ao fazermos um compa-
rativo entre a situação jurídica brasileira e a portuguesa, esta última encontra-se em vanta-
gem, pois, além de possuir obras específicas mais vastas, também já caracteriza melhor as
figuras extintivas dos contratos.
3
Nesse sentido, José de Oliveira Ascensão também adverte que “a resolução é a figura extin-
tiva que traz maiores dificuldades”. OLIVEIRA. Direito civil: teoria geral, p. 337.

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A RESOLUÇÃO EXTRAJUDICIAL DO CONTRATO EM VIRTUDE DO DESCUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES ...
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2 Conceituação
Delimitar a figura através de seu conceito é condição sine qua non
para o exame de qualquer matéria.4 E essa tarefa assume especial rele-
vância quando estamos diante das figuras que possibilitam a extinção
do contrato, haja vista que a confusão que se faz entre elas chega mesmo
a comprometer seu estudo, em especial aquele a que nos propomos —
com fito de realizar uma comparação entre os ordenamentos jurídicos
português e brasileiro, haja posto que nesses sistemas a denominação
de uma figura que permita a extinção do contrato em um deles pode
não corresponder ao sentido que o mesmo instituto possui no outro
ordenamento ou sequer existir nesse outro sistema.5
É frequente notarmos na doutrina a mistura do conceito de
resolução com seus efeitos ou com a forma pela qual se realiza,6 sem a
atenção de diferenciá-la das outras espécies extintivas ou, até mesmo,
sem a preocupação de conceituar o instituto de modo amplo, pois é
constante a limitação do conceito a apenas um dos tipos de resolu-
ção, como se outros não existissem.7 O conceito de resolução, porém,
permitir-nos-á operacionalizar o estudo pretendido, ao balizar as in-
vestigações e não permitir que haja qualquer miscelânea com outras
espécies extintivas próximas.
A expressão “resolução” deriva de resolvere, resolutio, resolutionis e
possui diversos significados.8 Juridicamente, pode ser usada essencial-
mente em dois sentidos: para designar uma proposta aceita por uma
assembleia deliberativa que se constitui numa simples orientação ou

4
Paulo Luiz Netto Lôbo explica a importância da conceituação em virtude de categorias e
institutos do direito serem sempre plurissignificativos (LÔBO. Condições gerais dos contra-
tos e cláusulas abusivas, p. 24).
5
Isso ocorre, por exemplo, com a resilição, que vem disposta no art. 473 do Código Civil
brasileiro, porém não existe no ordenamento jurídico português.
6
A título de exemplo, Orlando Gomes conceitua a resolução como o “remédio concedido à
parte para romper o vínculo contratual mediante ação judicial”. GOMES. Contratos, p. 172.
Pedro Pais de Vasconcelos, por seu turno, entende que seria “uma declaração unilateral re-
cipienda ou receptícia pela qual uma das partes, dirigindo-se à outra, põe termo ao negócio
retroactivamente, destruindo assim a relação contratual”. VASCONCELOS. Teoria geral do
direito civil, p. 608.
7
Assim o faz Ruy Rosado Aguiar Júnior ao afirmar que a resolução seria “o modo de ex-
tinção dos contratos, decorrente do exercício do direito formativo do credor diante do
incumprimento do devedor”. AGUIAR JÚNIOR. Extinção dos contratos por incumprimento
do devedor, p. 12, sem se atentar para a existência da resolução por onerosidade excessiva.
8
O dicionário elaborado pela Academia das Ciências de Lisboa e a Fundação Calouste
Gulbenkian enumera dezessete significados para a palavra, inclusive no âmbito médico, ló-
gico, psicológico e musical (FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN. Dicionário da língua
portuguesa contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, p. 3219).

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como disposição do regulamento interno; ou, ainda, como um modo


de extinção do contrato.9 Essa última é a acepção que nos interessa.
A resolução é tratada por Inocêncio Galvão Telles como um ter-
mo geral que abrangeria todas as modalidades tratadas por ele como
extintivas do contrato, nomeadamente a revogação, a caducidade e a
rescisão, apesar de reconhecer que esse entendimento afasta-se da ter-
minologia adotada pelo Código Civil português.10 José Carlos Brandão
Proença, por seu turno, liga a resolução a uma perturbação da prestação
que originaria uma frustação do fim contratual,11 o que termina por
não explicar a causa da resolução e restringe-a meramente aos efeitos
que o incumprimento ou a alteração das circunstâncias, por exemplo,
produzem: perturbam as prestações e frustram o fim contratual.
A resolução é um modo de extinção do vínculo contratual que
depende da vontade unilateral e vinculada a um fundamento legal ou
convencional de um dos contratantes.12 O fundamento corresponde à
justa causa, que é um comportamento da outra parte ao qual se reage
ou um fato de outra origem13 que, caso não esteja previsto em lei ou
em convenção como suscetível de alicerçar a resolução, não poderá ser
alegado para alcançar tal fim. Assim, em razão de o descumprimento
(comportamento da outra parte) restar disciplinado em lei como base
para o direito de resolução, é que tal direito poderá ser exercido.
A mora, inobstante tratar-se de um comportamento da outra
parte, não pode ser suscitada como embasamento para o exercício do
direito de resolução se as partes assim não estipularem convencional-
mente, pois a lei não o faz. De todo modo, notadamente na resolução
por incumprimento, a justa causa corresponde ao inadimplemento
contratual.
Com o conceito de resolução em mente, passemos à análise da
situação jurídica do instituto em ambos os ordenamentos, visando a
um comparativo dessa situação jurídica.

9
Pedro Romano Martinez menciona um terceiro sentido em que o termo resolução seria uti-
lizado, qual seja como modo de solução de conflitos (MARTINEZ. Da cessação do contrato, p.
65). De fato, os métodos extrajudiciais de solução de conflitos, como a negociação, a media-
ção, a conciliação e a arbitragem são, também, relacionados às seguintes expressões: RAC
(Resolução Alternativa de Conflitos) ou RAD (Resolução Alternativa de Disputas).
10
TELLES. Manual dos contratos em geral, p. 379, 383.
11
PROENÇA. A resolução do contrato no direito civil: do enquadramento e do regime, p. 13.
12
Nesse sentido, também MARTINEZ. Da cessação do contrato, p. 67 e LEITÃO. Direito das
obrigações, p. 98.
13
Conceito fornecido por José de Oliveira Ascensão, Direito civil: teoria geral, p. 338.

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A RESOLUÇÃO EXTRAJUDICIAL DO CONTRATO EM VIRTUDE DO DESCUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES ...
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3 Situação jurídica comparada


Atualmente, em ambos os ordenamentos, a resolução é discipli-
nada de maneira autônoma, mas com intensidade e precisão científica
diametralmente opostas.
O Código Civil português localiza e identifica bem a questão da
resolução, pois traz o seu regime geral em uma subseção específica, in-
titulada resolução do contrato,14 ao passo que trata o regime específico
da resolução por alteração das circunstâncias na subseção seguinte. O
regime geral da resolução, especialmente, traz cinco artigos com dois
números cada, totalizando dez preceitos sobre a matéria, o que, por si, já
indica que o Código Civil português optou por tratá-la de maneira por-
menorizada, especificando seus pressupostos, sua forma e seus efeitos.
No outro oposto, o Código Civil brasileiro não situa bem a
matéria, pois a disciplina na seção15 intitulada cláusulas resolutivas,
como se tais fossem o gênero do qual a resolução seria espécie, quando
a verdade é contrária.
Ao criticar a intitulação da seção, Araken de Assis16 observa que
o direito legal à resolução do contrato restou confinado, no diploma
em vigor, à seção dedicada à “cláusula resolutiva”.
O art. 474 do Código Civil brasileiro seria, então, o microrregime
geral da resolução — apenas tratado como microrregime por se limitar
a determinar a forma da resolução legal e da convencional. No art. 475
do Código Civil brasileiro, por seu turno, encontramos o regime jurídico
específico da resolução por descumprimento, cuja disposição estabelece
quando deve ocorrer (quando houver inadimplemento), qual a parte
legitimada para a suscitar (a parte lesada) e quais as outras alternativas
da parte adimplente (exigir o cumprimento e exigir indenização).
Diferentemente do Código Civil português, que traz dez normas
jurídicas que tratam do regime geral, o Código Civil brasileiro apenas
traz uma norma jurídica referente ao regime geral e, ainda, bastante
confusa e sem a precisão necessária nas matérias abordadas — nomea-
damente em relação à forma e à intitulação, e omissão quanto a outras
de extrema importância, como os efeitos da resolução.

14
Nomeadamente na subseção VI, da seção I (contratos), do capítulo II (fonte das obrigações),
do título I (obrigações em geral), do Livro II (direito das obrigações) do Código Civil
português.
15
Seção II, do capítulo II (extinção do contrato), do título V (contratos em geral), do livro I
(direito das obrigações), da parte especial do Código Civil brasileiro.
16
ASSIS. Resolução do contrato por inadimplemento, p. 62.

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Desse modo, o Código Civil brasileiro apenas trata (de modo


confuso) dos pressupostos, da legitimidade e da forma da resolução
por incumprimento, sendo omisso no que toca a outros pontos de rele-
vo, tais como os seus efeitos.17 O Código Civil brasileiro deixou para a
doutrina, então, grande parte da construção do instituto da resolução,
o que seria até aceitável não fosse o fato de a própria doutrina tornar a
situação ainda mais gravosa e indigesta, em especial no tocante à forma
pela qual se opera a resolução.
Mas a situação já foi pior, haja vista que no Código Civil anterior
sequer existia uma seção específica à extinção dos contratos. A matéria
era tratada no capítulo relativo aos contratos bilaterais e apenas se
prescrevia no parágrafo único do art. 1.092 que a parte lesada pelo
inadimplemento poderia requerer a “rescisão” do contrato, o que ter-
minava por identificar a rescisão com a resolução, o que foi corrigido
acertadamente pelo novo Código Civil brasileiro.
O art. 1.092 do Código Civil brasileiro de 1916, contudo, não era
o único preceito aplicável à espécie, vez que o então parágrafo único do
art. 119 dispunha que a condição resolutiva da obrigação poderia ser
expressa ou tácita. No primeiro caso operaria de pleno direito, enquanto
no segundo operaria por interpelação judicial — preceito que inspirou
o atual art. 474 do Código Civil brasileiro.
Apesar de a situação ter sido aperfeiçoada, ela não pode ser
tida como satisfatória, haja vista que houve falta de precisão científica
nas matérias disciplinadas e omissão legislativa quanto a outras de
relevância.
Segundo José Carlos Brandão Proença, o Código Civil português
anterior também utilizava o termo rescisão em hipóteses de resolução,
o que, apesar de ter sido corrigido pelo Código Civil português atual,
terminou por influir de tal maneira na sua configuração que o atual
Código Civil português “conserva ainda uma certa confusão conceitual
e substancial, particularmente quando o legislador aproxima o regime
resolutivo de certos aspectos da invalidade”.18

17
Ruy Rosado Aguiar Júnior sustenta que, para além dos efeitos, o Código Civil brasileiro
também teria sido omisso quanto aos pressupostos da resolução, Extinção dos contratos por in-
cumprimento do devedor, p. 11, com o que não podemos concordar, uma vez que o pressuposto
da resolução por incumprimento é o próprio não cumprimento, que se encontra claramente
disposto no art. 475 do Código Civil brasileiro. Ao passo que o pressuposto da resolução por
onerosidade excessiva encontra-se (bem ou mal) também disposto no art. 478 do Código
Civil brasileiro. Assim, a crítica ao legislador cingir-se-ia, basicamente à omissão quanto aos
efeitos e à falta de clareza e discernimento em tudo quanto disciplinado.
18
PROENÇA. A resolução do contrato no direito civil: do enquadramento e do regime, p. 12.

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A RESOLUÇÃO EXTRAJUDICIAL DO CONTRATO EM VIRTUDE DO DESCUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES ...
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No entanto, comparando a hodierna situação jurídica brasileira


— em que predomina uma anarquia conceitual abominável — com a
conjuntura jurídica portuguesa, percebe-se facilmente que nessa últi-
ma o estado da matéria encontra-se emoldurado de modo razoável,
até mesmo porque o próprio legislador estipulou os pressupostos, a
forma e os efeitos da resolução de modo sistemático (o que já não fez
com as outras figuras extintivas),19 permitindo que a doutrina fixasse
as características e as diferenças da resolução com as outras espécies
extintivas, o que ainda é bastante incipiente no ordenamento jurídico
brasileiro, inobstante o Código Civil brasileiro ter disciplinado algumas
das espécies extintivas.
Por fim, denota-se que o legislador brasileiro optou por uma
grande simplicidade, para não dizer omissão, que gera grandes discus-
sões. Em contrapartida, o legislador português optou por uma delimi-
tação mais pormenorizada, que ocasiona uma melhor caracterização;
porém, com efeitos mais complexos. Ambos os regimes, dessa forma,
situam-se em extremos, contudo consideramos que os pontos comuns
entre os dois são maiores do que os pontos diferenciais. Citemos como
exemplos a nomenclatura, a conceituação, a forma que se opera e a regra
geral para os efeitos. No que respeita a diferença “no tratamento” da
forma em ambos os ordenamentos, acreditamos que o Código Civil
português, ao tratar a matéria expressamente, traduziu uma nitidez que
ocasiona mais segurança para ambas as partes do que as disposições
do Código Civil brasileiro.

4 Fundamento
O fundamento da resolução é matéria bastante controversa, e o
objetivo do seu estudo é o de justificar a razão pela qual apenas uma das
partes possui a faculdade de romper o vínculo contratual, sob o pretexto
de que a contraparte não cumpriu o quanto pactuado, em vez de aquela
buscar o cumprimento da obrigação (judicial ou extrajudicialmente), até
mesmo porque o inadimplemento, per si, não destrói o vínculo jurídico.
Desse modo, como permitir que a outra parte possa destruí-lo? A essa
indagação inúmeras respostas podem ser fornecidas, pois diversas teo­
rias foram criadas para tanto. Todas elas tentam chegar a um mesmo
resultado, contudo, por meio de realidades tão diversas que a escolha
de determinado fundamento pode influenciar diretamente o papel que

19
No mesmo sentido, vide MARTINEZ. Da cessação do contrato, p. 65.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
248 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

a resolução desempenha, a forma pela qual se perfaz, seus efeitos e até


o seu âmbito; em resumo, o fundamento pode exercer influência sobre
o próprio regime jurídico aplicável à resolução.20 Essa é a importância
prática da busca pelo fundamento da resolução.

4.1 Teoria da condição implícita


A tradicional teoria da condição implícita defende essencialmente
que em todo o contrato bilateral existiria uma condição implícita de-
corrente da presumível vontade das partes de que o não cumprimento
por uma delas autorizaria a outra a promover a sua resolução, apesar
de isso não ter sido acordado expressamente.
Os principais adeptos dessa posição foram os autores da escola
da exegese e alguns tratadistas franceses ulteriores, que baseavam
seus argumentos no art. 1.184 do CC francês.21 22 Esse entendimento foi
defendido pelos comentaristas do Código Civil português de Seabra,
tendo, no entanto, perdido espaço a partir do surgimento do novo
Código Civil português, de inspiração germânica.
A maior parte da doutrina brasileira a defende, apesar de que
tal é realizado quase de modo automático, haja vista que grande parte
da doutrina não ingressa na análise das demais teorias e das críticas
existentes à da condição implícita — simplesmente adotando-a como
se discussão não houvesse.23

20
Nesse mesmo sentido, vide VIGARAY. La resolucion de los contratos bilaterales por incumpli-
mento, p. 66 e Capitant, que assevera que o tipo de fundamento que se encontre influenciará
diretamente a interpretação que se deva dar ao art. 1.184 do CC francês, chegando a conse-
quências muito diversas sobre, por exemplo, o poder de decisão dos juízes e o âmbito da
resolução (CAPITANT. De la cause des obligations, p. 341 apud VIGARAY, op. cit., p. 66).
21
A primeira alínea do art. 1.184 do CC francês dispõe que “a condição resolutiva está sempre
subentendida nos contratos sinalagmáticos para o caso de uma das partes não cumprir
o seu compromisso”. Diversos países foram influenciados em seus códigos civis por esse
preceito e essa doutrina, nomeadamente o Código Civil Espanhol que, no seu art. 1.124,
prescreve que “la �������������������������������������������������������������������������������
faculdad de resolver las obligationes se entiende implícita en las recípro-
cas, para el caso de que uno de los obligados no cumpliere lo que lo incumbe”.
22
Rafael Alvarez Vigaray afirma que a utilização dessa doutrina permitia a interpretação
de que o juiz não é “llamado a romper el contrato, sino que se limita a constatar que el
contrato se ha resuelto”. VIGARAY, op. cit., p. 67.
23
Assim o fazem RIZZARDO. Contratos, p. 274; RODRIGUES. Direito civil, p. 90; DINIZ. Curso
de direito civil brasileiro, p. 163 e Orlando Gomes, que inicialmente explica o que seria a cláu-
sula resolutiva tácita pela teoria da condição implícita, para depois buscar o fundamento
“desse princípio” e após uma breve análise das demais teorias (mas não das críticas à teoria
que adota), parece dar preferência à teoria da condição implícita, ao afirmar que “melhor
se depreende o mesmo [fundamento] pelo conhecimento de sua formação histórica. Na
França, de onde vem, era usual a inclusão, nos contratos bilaterais, de cláusula especial em
que se previa a inexecução, estatuindo-se que, em vez de pugnar pela execução do contrato,

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A jurisprudência brasileira segue o mesmo entendimento, como


se denota do julgado da Apelação Cível nº 45.987/97, da 3ª Turma do Tri-
bunal de Justiça do Distrito Federal: “ainda que inexistente, no contrato,
cláusula resolutiva expressa em favor do compromitente-comprador,
isso não obsta o ajuizamento direto da ação rescisória, porque ínsita a
todo pacto bilateral a cláusula resolutiva tácita”.24 Assim também o fez
a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no Resp nº 159.661/MS,25
cuja ementa estipulou que a “cláusula resolutiva tácita pressupõe-se
presente em todos os contratos bilaterais, independentemente de estar
expressa, o que significa que qualquer das partes pode requerer a reso-
lução do contrato diante do inadimplemento da outra”.
Os tribunais brasileiros baseiam-se na “unanimidade” da doutri-
na para sustentar essa posição, ocasionando, com isso, um ciclo vicioso
que não parece ter fim próximo.
Tantas e tamanhas são as críticas a essa teoria que Rafael Alvarez
Vigaray chega a mencionar o abandono dela.26 Entretanto, tal não
pode ser professado no Brasil, haja vista que ainda é enorme a adesão
a essa teoria, apesar de crescentes os opositores brasileiros.27 Pontes
de Miranda já afirmou, de maneira pioneira no Brasil, que “onde a lei
estatui a resolução, ou resilição, seria superfetação imperdoável supor-
se vontade tacitamente manifestada pelos figurantes”.28
Dentre as principais críticas dirigidas, possui maior destaque a
de que sua interpretação teria sido uma má tradução do pensamento
de Pothier. No entanto, a verdade é que essa admoestação, per si, não
é substancial, pois não afeta o seu conteúdo; apenas levanta polêmica
acerca de sua origem; da sua causa, sem se atentar ao fato de que má
tradução ou não, ela existe e encontrou o alicerce para sua construção
no preceito do art. 1.184 do CC francês.29

a parte podia pedir ao juiz sua resolução. Tornou-se tão comum que, embora não estipula-
da, era subentendida”. GOMES. Contratos, p. 173.
Como exceção, citemos como exemplos AGUIAR JÚNIOR. Extinção dos contratos por incum-
primento do devedor, p. 15 et seq., e ASSIS. Resolução do contrato por inadimplemento, p. 54 et seq.,
que defendem a teoria da equidade após análise das demais e de suas críticas.
24
RT nº 752/287, de 1.12.1997, extraído de RIZZARDO, op. cit., p. 274.
25
Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira. DJ, p. 35, 14 fev. 2000. Dessa ementa, salta aos olhos
a utilização do STJ da expressão “resolução”, apesar de o Código Civil vigente à época
mencionar o termo “rescisão”, o que denota a preocupação da precisão terminológica desse
tribunal.
26
VIGARAY. La resolucion de los contratos bilaterales por incumplimento, p. 67.
27
Dentre os mais tenazes, encontramos Araken de Assis, Ruy Rosado Aguiar Júnior e Pontes
de Miranda.
28
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, p. 336.
29
No mesmo sentido, vide VIGARAY, op. cit., p. 66 e ASSIS, op. cit., p. 62, sendo que o primeiro
perfaz a crítica da crítica ao defender que “en la obra de Pothier se encuentra base suficiente

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250 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Outro argumento endereçado contra essa teoria cinge-se à im-


propriedade da condição, até porque a condição tácita não seria um
efeito do contrato, mas a sua origem. Por essa razão, pensava-se que a
condição tácita tratava-se de uma condição resolutiva legal.
No entanto, apesar de essa espécie de condição ser bastante
discutível,30 ela apenas almejava ilustrar que a resolução por incum-
primento é um efeito jurídico que, antes de mais, deriva da própria
lei e não da vontade presumivelmente implícita das partes. E ao di-
zermos vontade presumivelmente implícita, não estamos incorrendo
em exagero, haja vista que a teoria da condição implícita presume
que haja uma vontade implícita em todo contrato bilateral, gerando
uma extrapolação da dimensão da vontade das partes, pois é pouco
provável que, na celebração do contrato, as partes tenham pensado no
seu descumprimento de tal forma que não contratariam se houvesse
inexecução. Normalmente, elas são otimistas e não se preparam para o
incumprimento do contrato, pois esperam que o ajuste seja plenamente
executado. Quando as partes cogitam a possibilidade de inexecução
do contrato na sua fase de formação, elas simplesmente estipulam um
pacto comissório expresso.
Para além dessas, repreende-se ainda o caráter contraditório da
execução da condição resolutiva tácita, haja vista que impossível seria
garantir a execução, ao mesmo tempo, pela obrigação e pela condição,
pois, se a condição for suspensiva, suspenderia o aparecimento da
própria obrigação e, se resolutiva, faria desaparecer retroativamente a
obrigação em questão, tornando impraticável, assim, argumentar que
poderia existir efetivamente algo devido.31
Rafael Alvarez Vigaray, por seu turno, acusa esse entendimento
de não passar de um “jogo de palavras”, tendo em vista que �����������
na “resolu-
ción por incumplimiento no se le concede simultaneamente al acreedor
las facultades de exigir el cumplimiento y pedir la resolución, sino que

para la formulación de la teoría de la condición resolutoria tácita y de su consecuencia que


es la fundamentación de la resolución por incumplimiento em la voluntad presunta de las
partes” e, para além de transcrever a obra de Pothier, que pode ter servido de fundamento
aos adeptos dessa teoria, chega também a mencionar que, na exposição de motivos do
Código Civil francês, Bigot de Preameneu afirma que “en los contratos sinalagmáticos
cada parte no se presume haberse comprometido más que bajo uma condición resolutória
para el caso de que la outra parte no satisfaga su compromisso”, op. cit., p. 66-67.
30
Concordamos com Pontes de Miranda, quando refere como “obsoleta a discussão sobre a
suspensividade ou resolutividade a respeito da condição: condição não há; nem se há de
reviver o tema sabiniano”. PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, p. 337.
31
Em sentido semelhante, Araken de Assis indaga: “se à obrigação se liga uma condição
suspensiva, enquanto esta pender, não há dívida; e, não existindo dívida, como poderia o
inadimplemento extingui-la?”. ASSIS, op. cit., p. 64.

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A RESOLUÇÃO EXTRAJUDICIAL DO CONTRATO EM VIRTUDE DO DESCUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES ...
251

solo puede ejercitarlas de modo alternativo”,32 cujo pensamento não


corroboramos, haja vista que a parte inadimplente só pode exercer suas
faculdades alternativas de exigir o cumprimento ou pedir a resolução
se for verificado primordialmente que a obrigação não foi cumprida
e esta só pode ser ou não cumprida se inexistir condição suspensiva.
De todo modo, se essa posição estivesse correta, em vez de o
contrato ser a combinação de vontades sinceras e transparentes, pas-
saria a ser a combinação de vontades condicionais e obscuras, vez que,
por essa teoria, uma parte só teria contratado porque estaria movida
subjetivamente pelo fato de que a outra cumpriria o contrato, apesar
de isso nunca ter sido declarado (expressa ou tacitamente). Assim,
todo contrato bilateral seria, em verdade, um contrato condicional.33
Por todas as razões expostas, denota-se que essa teoria cria uma ficção
incompreensível da vontade implícita das partes.

4.2 Teoria da causa


Surgida uma crise no voluntarismo, passou a doutrina a buscar
outro fundamento para resolução e assim o fez a partir da noção de
causa do contrato, surgindo, então, a teoria da causa, que defende que,
nos contratos sinalagmáticos, tratando a obrigação de uma das partes
causa da outra, descumprindo umas delas sua obrigação, a obrigação
da outra finda, pois deixa de ter uma causa. Nesta, a noção de causa
canonista foi modificada do seu lugar na formação do contrato para
a execução do mesmo, desempenhando um novo papel em um novo
âmbito: permitir a resolução. O primeiro argumento contra essa posição
discute sua noção alargada de causa — considerada por seus adeptos
como fim a ser alcançado e que parece abarcar a própria noção de mo-
tivos, quando, na verdade, seriam em muito diversos.
Outra crítica compara a ficção injustificada desse entendimento
com a da condição implícita, em virtude de ela afirmar que a concor-
dância de uma das partes em celebrar o pacto possui como causa a
execução da obrigação assegurada pela outra.34 Com isso, retoma-se a

32
VIGARAY. La resolucion de los contratos bilaterales por incumplimento, p. 68.
33
Rafael Alvarez Vigaray menciona diversas outras críticas a essa teoria suscitadas por
Auletta, Capitant, Messineo, Roca Sastre, Stolfi e Mosco (VIGARAY, op. cit., p. 66 et seq).
34
Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho parecem adotar simultaneamente a teoria
da condição implícita, a teoria da causa e a teoria do sinalagma, apesar de não justificar seu
entendimento, o que, como já se afirmou anteriormente, ocorre com bastante frequência
na doutrina brasileira. Senão vejamos o que dizem os autores: “quando, contudo, as partes
nem sequer cogitaram acerca do inadimplemento contratual, fala-se, de maneira distinta,

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
252 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

ideia da teoria da condição implícita de presunção e subordinação da


vontade das partes ao cumprimento ou à execução correta das obriga-
ções, apesar de tal não constar no contrato.35
Contra, ainda se argumenta que, se a resolução por não cumpri-
mento se devesse à falta de causa, o remédio jurídico a ser suscitado seria
a nulidade, em virtude de esse vício respeitar a formação do contrato
e não a sua resolução. Para além disso, considerando que o incumpri-
mento acaba com a causa e, assim, aniquila o contrato, questiona-se
que a exegese dessa teoria não poderia levar a outra conclusão senão
a de que a parte inadimplente também poderia pedir a resolução do
contrato. Contudo, tal não seria possível no ordenamento jurídico bra-
sileiro diante de o art. 475 do Código Civil brasileiro estabelecer que “a
parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução ou exigir o
cumprimento”, estipulando, com isso, que a única parte legítima para
pedir a resolução é o credor e afastando a possibilidade de aplicação
desse fundamento do ordenamento jurídico brasileiro.
Por fim, mas não menos importante, ainda é suscitada a questão
de que a resolução não é a única alternativa à disposição do credor,
deixando sem explicação o fato de o descumprimento da obrigação de
um dos contratantes resultar na destruição da obrigação do outro se
este ainda pode exigir o cumprimento daquela obrigação inadimplida.36

4.3 Teoria da sanção


Pela teoria da sanção, cujo defensor mais diserto é Auletta, a
resolução por incumprimento do contrato constitui uma das sanções
impostas à parte que não executou o contrato por não ter mantido sua
palavra.
No entanto, em virtude de a resolução apenas se tratar de uma
das opções do credor, incluindo dentre as outras alternativas possíveis
também a reivindicação de cumprimento do contrato, rebate-se que

na preexistência de uma cláusula resolutória tácita, pois em todo contrato bilateral, por
força da interdependência das obrigações, o descumprimento culposo por uma das partes
deve constituir justa causa para a resolução do contrato, uma vez que, se um é causa do
outro, deixando-se de cumprir o primeiro, perderia o sentido o cumprimento do segundo”.
GAGLIANO; PAMPLONA FILHO. Novo curso de direito civil, p. 271.
35
De acordo com Rafael Alvarez Vigaray, algo de certo existe nessa observação “pues los auto-
res próximos a la codificación antes mencionados (Demolombe, Dusi) mezclan la teoría de la
causa com la teoría de la condición resolutoria tácita, sirviéndose de la primeira para apoyar
la segunda”. VIGARAY. La resolucion de los contratos bilaterales por incumplimento, p. 71.
36
Por tudo isso, Araken de Assis, afirma que esta teoria possui pouca aplicação (ASSIS.
Resolução do contrato por inadimplemento, p. 67).

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A RESOLUÇÃO EXTRAJUDICIAL DO CONTRATO EM VIRTUDE DO DESCUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES ...
253

essa alternativa não tem natureza de sanção, o que só poderia ser dito
da resolução. E assim o defende Pontes de Miranda quando afirma que
“a resolução é sanção, que o juiz aplica”,37 apesar de também afirmar
que a resolução seria uma escolha, “que tem o credor: ou exige, força-
damente, a prestação, ou resolve o contrato (exerce contra o devedor a
pretensão à resolução ou à resilição”.38
A função punitiva não é comumente concedida em direito priva-
do e a resolução possui maior função liberatória do que sancionatória
e, se fosse cabível sob esse fundamento, deveria aproveitar ambas as
partes, punindo, desse modo, tanto o credor quanto o devedor. Além
disso, existem hipóteses de resolução que não visam sancionar a parte
inadimplente, como ocorre nos casos de quebra de equilíbrio.39 Por fim,
cumpre notar que nem no ordenamento jurídico português, nem no
brasileiro, consegue-se vislumbrar qualquer disposição sancionatória
nos preceitos que tratam da resolução,40 mas apenas escolha do credor.

4.4. Teoria da equidade


A teoria da equidade defende ser contra o equilíbrio desejado
das partes que o contrato seja cumprido por uma delas, quando a outra
não procede da mesma forma, o que conduz à ideia de quebra da jus-
tiça contratual. Assim, a base para a resolução seria a de que, havendo
desequilíbrio do contrato, seja por vontade das partes ou não, executar
esse contrato seria imoral.41
Condena-se essa teoria em virtude de não explicar de modo
específico qual seria a pedra angular da resolução por incumprimento,
traduzindo, assim, uma fórmula geral do fundamento do instituto e, por
vezes, inatingível, vez que, além de crescente o surgimento de relações
jurídicas desequilibradas desde a sua origem, o próprio conceito de
equidade é algo bastante discutido.42

37
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, p. 338.
38
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, p. 338.
39
MARTINEZ. Da cessação do contrato, p. 227.
40
No mesmo sentido, entretanto, apenas se referindo ao ordenamento jurídico brasileiro,
Araken de Assis, que complementa que tal é verificável em comparação com outras normas
jurídicas sancionatórias (ASSIS. Resolução do contrato por inadimplemento, p. 72).
41
São adeptos dessa teoria AGUIAR JÚNIOR. Extinção dos contratos por incumprimento do deve-
dor, p. 16; ASSIS. Resolução do contrato por inadimplemento, p. 75-76 e PONTES DE MIRANDA.
Tratado de direito privado, p. 338.
42
Apesar de Silvio de Salvo Venosa conceituar a equidade como “uma forma de manifestação
de justiça que tem o condão de atenuar a rudeza de uma regra jurídica”, ele reconhece tratar-
se de conceito filosófico que fornece várias concepções (VENOSA. Direito civil, v. 1, p. 26).

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254 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

No entanto, esse argumento não serve para descaracterizá-la


como fundamento da resolução de per si, pois, se assim fosse, também
se deveria reavaliar o fundamento do direito do consumidor e do direito
do trabalho, por exemplo, haja posto que ambos têm no desequilíbrio
das partes a justificativa para sua existência.
Rafael Alvarez Vigaray verbera que “esta teoría de la equidad lo
que hace es corroborar las afirmaciones contenidas em las otras teorías
anteriormente expuestas”,43 o que não deixa de ter um fundo de ver-
dade, haja vista que a resolução poderia ser entendida como a sanção
aplicável ao devedor por desequilibrar o contrato — aproximando-a da
teoria da sanção, como também poderia ser defendido que o alicerce
da resolução seria a vontade tácita das partes de manterem o contrato
equilibrado — relacionando-a com a teoria da condição implícita, ou
ainda o de que coincide com a teoria da causa, pois, se a parte adim-
plente vê frustrado o fim prático do contrato, ocorrerá o enriquecimento
sem causa do devedor, gerando um desequilíbrio patrimonial.44
Esse comparativo com as demais teorias torna-se ainda mais
intenso em virtude de os adeptos da teoria da equidade remeterem-na
à ideia de justiça, haja vista que apesar de esse ser um dos fins mais
almejados pela humanidade, nunca houve consenso quanto ao seu
conceito, tentando-se, com isso, explicar uma fórmula genérica com
um instituto indeterminado.
Assim, se para Aristóteles um dos tipos de justiça é a corretiva45
e se a equidade é um dos elementos que compõem a justiça, estaríamos
novamente aproximando, em certo grau, a teoria da equidade da teoria
da sanção. Identificaríamos, a certo nível, essa teoria com a do sina-
lagma se optássemos pela noção de justiça de Hobbes — para quem a
fonte e a origem residem na terceira lei da natureza, que afirma que os

A noção de equidade pode ser encontrada em Aristóteles que, após verificar que são vários
os elementos que fazem parte do significado de justiça e que não são redutíveis ao legal e
ao igual (quais sejam: mérito, meio-termo, reciprocidade, proporcionalidade e equidade),
esclarece a natureza da equidade como “uma correção da lei quando esta é deficiente em
razão da sua universalidade”, deixando claro ainda que a equidade é superior a uma
simples espécie de justiça, pois um indivíduo age de forma justa quando, mesmo tendo
direitos garantidos pela lei, abre mão deles em favor de uma pessoa menos favorecida, por
exemplo (ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, p. 125).
43
VIGARAY. La resolucion de los contratos bilaterales por incumplimento, p. 75.
44
Identificando a teoria da equidade com a teoria da causa, SASTRE, Roca apud VIGARAY.
La resolucion de los contratos bilaterales por incumplimento, p. 75.
45
De acordo com Aristóteles, “da justiça e do que é justo no sentido que lhe corresponde, uma
das espécies é a que se manifesta nas distribuições de magistraturas, de dinheiro ou das ou-
tras coisas que são divididas entre aqueles que têm parte na constituição (pois em tais coisas
alguém pode receber um quinhão igual ou desigual ao de outra pessoa); a outra espécie é
aquela que desempenha uma função corretiva”. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, p. 108.

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A RESOLUÇÃO EXTRAJUDICIAL DO CONTRATO EM VIRTUDE DO DESCUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES ...
255

homens têm de cumprir os pactos que celebram, pois romper um pacto


é injustiça, enquanto no contrário revela-se a justiça.46 Por essas razões,
é absolutamente desaconselhável vincular qualquer teoria à noção
de justiça, haja posto que esta possui uma infinidade de concepções,
tornando-se, por vezes, quase um conceito vazio.
Constatamos, ainda, que a equidade, assim como outras teorias,
não explica a possibilidade que o credor detém de manter o vínculo
contratual, através do pedido de cumprimento do contrato, inobstante
tal atitude ser considerada imoral.

4.5 Teoria legal


Sustentamos que na realidade a resolução possui dois funda-
mentos: o imediato e o mediato. O fundamento imediato busca a razão
pela qual a parte pode romper o pacto unilateralmente, o qual se en-
contra na própria lei.47 É a norma jurídica que autoriza e fundamenta
a resolução por incumprimento. Desse modo, o fundamento imediato
da resolução é legal.
A despeito de não estar analisando especificamente a questão do
fundamento da resolução, mas sim do interesse objetivo do credor, João
Baptista Machado parece seguir essa mesma teoria legal ao criticar a teo-
ria da condição implícita — que alicerça o critério subjetivo do interesse
do credor e afirma que “o direito de resolução tem a sua fonte imediata
na lei” e depois, novamente, “na resolução legal, quer a hipótese quer
a consequência são um produto da lei, e não da vontade negocial”.48
Esse entendimento é corroborado no ordenamento jurídico bra-
sileiro no art. 475 do Código Civil brasileiro, que preceitua que a parte
lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato. É por
essa razão, inclusive, que a noção que se deve dar à cláusula resolutiva
tácita (art. 474 do Código Civil brasileiro) passa necessariamente pela
noção de fundamento legal. Assim, aquela deixa de ser entendida
como cláusula tácita em virtude da vontade presumível das partes,
para corresponder à resolução legal, cujo fundamento não se encontra
na vontade implícita das partes, mas sim na própria lei.

46
HOBBES. O leviatã, p. 86.
47
No que toca à anterior posição de desvinculação do fundamento do conceito de justiça, pois
ela também se liga à teoria legal, quando Aristóteles afirma ser justo o que for conforme a lei
e assegura que “o homem sem lei é injusto e o cumpridor da lei é justo, evidentemente todos
os atos conforme à lei são atos justos em certo sentido, pois os atos prescritos pela arte do
legislador são conforme à lei, e dizemos que cada um deles é justo”. ARISTÓTELES, op. cit.,
p. 104.
48
Pressupostos da resolução por incumprimento, in: MACHADO. Obra dispersa, p. 137.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
256 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

No ordenamento jurídico português, o nosso entendimento


encontra-se expresso no nº 1 do art. 432º, cujo preceito dispõe que é ad-
mitida a resolução do contrato fundada na lei ou na convenção. Assim,
tendo existido disposição expressa no contrato para o caso do descumpri-
mento, tal prevalece em observância ao princípio da autonomia privada
(assim como ocorre no Código Civil brasileiro). No entanto, inexistindo
essa disposição contratual ou não sendo ela suficiente, aplica-se o regime
geral da resolução expresso nos art. 432º e ss. do Código Civil português
e no art. 474 do Código Civil brasileiro.
O fundamento mediato intenta descobrir o motivo pelo qual o
legislador regulou a resolução e, apesar de sua discussão ser um pouco
vazia, pois independentemente da razão pela qual isso ocorreu já se
encontra na lei e é por ela que deve ser interpretada,49 defendemos que o
fundamento mediato da resolução é o de proteção do interesse objetivo
da parte adimplente.
É visando a proteção do interesse objetivo da parte adimplente
que ambos os ordenamentos admitem ter a mesma a faculdade de
optar entre exigir o cumprimento do contrato ou pedir sua resolução
(à contraparte), não deixando de fornecer ao credor a possibilidade de
pedir indenização em qualquer dos casos.
De acordo com João Baptista Machado, a objetividade constitui
a relevância “do interesse afectado pelo incumprimento objectivamente,
com base em elementos susceptíveis de serem valorados por qualquer
outra pessoa (designadamente pelo próprio devedor ou pelo juiz), e
não segundo o juízo valorativo arbitrário do próprio credor”.50
Segundo Rafael Alvarez Vigaray, a crítica dirigida à teoria legal
é que ela seria insuficiente per si para explicar o fundamento da reso-
lução, pois continuaria sem explicar a razão pela qual a lei possibilita a
resolução unilateral por apenas uma das partes,51 necessitando, assim,
sempre de um outro fundamento para tal.52

49
Pontes de Miranda parece corroborar nossa posição ao escrever que “se há regra jurídica,
o que mais importa é saber-se qual a construção que dela resulta, qual a sua natureza, qual
o fim, a ratio, que ela teve e tem e não se foi o uso que a inspirou ao legislador”. PONTES
DE MIRANDA. Tratado de direito privado, p. 337.
50
Pressupostos da resolução por incumprimento, in: MACHADO. Obra dispersa, p. 137.
51
Diferença básica que se pode observar entre a posição ora defendida e a defendida por Karl
Larenz é que, por essa última, tanto o credor quanto o devedor poderiam resolver o contrato
se a finalidade última de ambas as partes se tornasse impossível, enquanto pela tese ora de-
fendida apenas a parte lesada poderia resolver o contrato e somente na hipótese de ambas as
partes terem sido lesadas é que estaríamos diante da possibilidade de ambas resolverem-no
(LARENZ. Base del negocio jurídico y cumplimiento del contrato, p. 149).
52
VIGARAY, op. cit., p. 74.

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LAVÍNIA CAVALCANTI LIMA CUNHA
A RESOLUÇÃO EXTRAJUDICIAL DO CONTRATO EM VIRTUDE DO DESCUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES ...
257

Acreditamos que essa não se trata de uma crítica substancial,


principalmente em virtude de que não se pode negar que a resolução
por descumprimento encontre-se, com mais ou menos intensidade, na
lei e, estando a resolução disposta em lei, é primeiramente através dela
que deve ser examinada, razão pela qual o fundamento mediato seria
útil apenas em casos de omissão legal ou quando estivéssemos diante
de duas ou mais possibilidades de interpretação da própria lei, fazen-
do com que alcancemos, no âmbito da resolução por incumprimento,
um princípio geral que se traduziria na seguinte máxima: in dubio, pro
adimplente, de tal maneira que, em caso de dúvida, opte-se por aquela
interpretação que situe o adimplente numa posição um pouco mais pri-
vilegiada, ou seria melhor dizer na situação menos fragilizada possível.

5 Forma
No que respeita à forma, dois são os modelos que inspiraram
Códigos no mundo inteiro: o alemão e o francês. Esse último exige
intervenção judicial, ou seja, para que o contrato seja resolvido, é
necessária uma sentença judicial nesse sentido, enquanto o sistema
alemão, por seu turno, admite a resolução sem intervenção judicial,
exigindo apenas declaração do credor nesse sentido,53 o que não im-
pede, contudo, a interposição de qualquer ação judicial por parte do
devedor para discutir a resolução declarada pelo credor ou por parte
do próprio credor para declarar a resolução.
O sistema alemão foi, sem sombra de dúvidas, o sistema adotado
pelo Código Civil português, como se observa no art. 436º, nº 1, que
dispõe que a resolução do contrato pode fazer-se mediante declaração
à outra parte, ou seja, não depende de sentença judicial.
No que respeita o ordenamento jurídico brasileiro, a unanimi-
dade da doutrina brasileira defende que o Código Civil brasileiro teria
adotado o sistema francês, inobstante inexistir qualquer embasamento
para essa conclusão, assumindo essa temática, então, especial relevância
diante do que prescrevem os arts. 474 e 475 do Código Civil brasileiro.
Como não há discussões quanto à forma pela qual a resolução se opera
em Portugal, este tópico analisará apenas a problemática relativa ao
direito brasileiro.

53
Para análise dos sistemas francês e alemão, vide GOMES. Contratos, p. 174-175; PEREIRA.
Instituições de direito civil, 11. ed., p. 156. Exame dos sistemas adotados em diversos países
pode ser obtido ainda em MARTINEZ. Da cessação do contrato, p. 177, nota de rodapé n. 354.

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258 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

O art. 474 do Código Civil brasileiro opera a diferenciação en-


tre cláusula resolutiva tácita e cláusula resolutiva expressa e a forma
pela qual cada uma se realiza. A cláusula resolutiva tácita é, unânime
e essencialmente, entendida pela doutrina brasileira como a vontade
implícita que se presume existente em todo contrato bilateral no sentido
de que o não cumprimento da prestação por uma das partes autoriza
a outra a promover sua resolução, inobstante tal não ter constado no
contrato. A cláusula resolutiva expressa, por seu turno, seria aquela
que as partes fizeram constar expressamente no contrato.
A jurisprudência brasileira segue o mesmo entendimento, como
se denota do julgado do REsp nº 159.661/MS, da 4ª Turma do Superior
Tribunal de Justiça no REsp nº 159.661/MS, em cuja ementa se encontra
que a “cláusula resolutiva tácita pressupõe-se presente em todos os con-
tratos bilaterais, independentemente de estar expressa, o que significa
que qualquer das partes pode requerer a resolução do contrato diante
do inadimplemento da outra”.54 Os tribunais brasileiros baseiam-se na
unanimidade da doutrina para sustentar essa posição,55 ocasionando,
com isso, um ciclo vicioso que parece não ter fim.
No entanto, a cláusula resolutiva tácita, da forma como atualmen-
te é vista pela doutrina e jurisprudência brasileiras, corresponde a uma
ficção injustificada, que configura um abuso na dimensão da vontade
das partes, vez que é pouco provável que as partes, na celebração do
contrato, tenham pensado no seu descumprimento de tal forma que
não contratariam se houvesse inexecução, pois, se assim o tivessem
feito, teriam simplesmente estipulado uma cláusula resolutiva expressa.
Considerando que o fundamento da resolução está na lei e não na
vontade das partes — como vimos anteriormente, o conceito que se deve
dar à cláusula resolutiva tácita passa necessariamente pela noção de
fundamento legal. Assim, aquela deixa de ser entendida como cláusula
tácita em virtude da vontade presumível das partes para corresponder
à resolução legal, cujo fundamento não se encontra na vontade implícita
das partes, mas sim na própria lei.

54
Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira. DJ, p. 35, 14 fev. 2000. Dessa ementa, salta aos olhos
a utilização do STJ da expressão “resolução”, apesar de o Código Civil vigente à época men-
cionar o termo “rescisão”, o que denota a preocupação da precisão terminológica daquele
tribunal.
55
No voto aprovado do RESp nº 159.661/MS — citado na nota acima —, o relator sustenta que
“a doutrina se mostra uniforme no sentido de que a cláusula resolutiva tácita se pressupõe
presente em todos os contratos sinalagmáticos, ou, em outras palavras, independentemen-
te de estar expressa, qualquer das partes pode requerer a resolução do contrato diante do
inadimplemento da outra”.

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A RESOLUÇÃO EXTRAJUDICIAL DO CONTRATO EM VIRTUDE DO DESCUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES ...
259

A premissa da qual partimos, então, é a de que a cláusula resoluti-


va tácita corresponde à resolução legal, enquanto a expressa à resolução
convencional. Sempre que inexistir resolução convencional, aplicar-se-á
o regime da resolução legal ou, por outro prisma, o regime da resolução
legal aplicar-se-á sempre que inexistir resolução convencional.
O art. 474 do Código Civil brasileiro seria o microrregime jurídico
geral da resolução, a acarretar que a resolução legal se opera através de
interpelação judicial, ao passo que a resolução convencional se opera
de pleno direito.
No art. 475 do Código Civil brasileiro, por seu turno, encontra-
mos o regime jurídico específico da resolução por descumprimento, cuja
disposição estabelece quando deve ocorrer (quando houver inadimple-
mento), qual a parte legitimada para a suscitar (a parte lesada) e quais
as outras alternativas da parte adimplente (exigir o cumprimento e
exigir indenização). Destarte, inexistindo qualquer disposição específica
quanto à forma no regime específico da resolução por incumprimento,
sempre se aplicará o regime geral.

5.1 Resolução legal


Parafraseando Pontes de Miranda ao tratar do distrato, pode-
mos assegurar que o que se escreveu até agora na doutrina brasileira
sobre a forma como a resolução por incumprimento deve operar-se é
lamentável,56 pois a lei foi mal-interpretada, quiçá totalmente descon-
siderada.
O art. 474 do Código Civil brasileiro prescreve que a cláusula
resolutiva expressa opera de pleno direito; a tácita depende de inter-
pelação judicial. Inobstante esse artigo ter utilizado a expressão “in-
terpelação judicial”, a doutrina brasileira defende que a cláusula tácita
depende de “decisão judicial”.
São de Orlando Gomes as palavras de que a resolução é o “re-
médio concedido à parte para romper o vínculo contratual mediante
ação judicial”57 e depois confirma esse posicionamento ao proclamar
que “a resolução pela cláusula resolutiva tácita não se dá ipso jure, mas,
sim por sentença judicial”, deixando de explicar, no entanto, de qual
norma jurídica ele teria extraído essa interpretação.

56
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, p. 227.
57
GOMES. Contratos, p. 172.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
260 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Caio Mário da Silva Pereira, seguindo esse mesmo entendimento


(assim como o faz a unanimidade da doutrina brasileira), afirma que
esse sistema merece aplausos, pois não permite que a estabilidade dos
negócios se sujeite “aos caprichos ou ao precipitado comportamento de
um dos contratantes, interessado na ruptura do vínculo, e de submeter
as circunstâncias da inexecução ou da mora à apreciação imparcial e
desapaixonada do Poder Judiciário”.58
Por fim, mas não menos surpreendente, Jefferson Daibert escla-
rece que “operar de pleno direito” seria “quando o juiz simplesmente
a declarará [resolução], resolvendo o contrato”, enquanto “interpelação
judicial” seria “quando o juiz a pronunciará [resolução] com funda-
mento na lei”59, deixando claro que, independentemente da situação, a
resolução sempre passaria pelas mãos do juiz, mesmo que ela se opere
de pleno direito, como ocorre com a resolução convencional.
Não há, no entanto, qualquer fundamento legal para essas as-
sertivas. Elas se apoiam apenas nos primeiros ensinamentos relativos
à matéria, que foram iluminados pelo Código Civil francês e, quiçá, na
expressão “interpelação judicial”, admitida incondicionalmente como
sinônimo de sentença judicial, a ponto de alguns entenderem que,
inobstante o Código Civil brasileiro ter sido expresso ao afirmar que
a cláusula resolutiva expressa operaria de pleno direito, ela também
dependeria de sentença judicial.
Para além de não concordarmos com o fato de que a resolução por
via judicial seja a mais adequada à realidade e aos anseios da sociedade
moderna, também não acreditamos que o intuito do legislador tenha
sido o de submeter a cláusula resolutiva tácita a uma decisão judicial,
pois, se assim fosse, faria constar no art. 474 do Código Civil brasileiro
que a cláusula resolutiva tácita dependeria de “decisão judicial” ou
ainda de “sentença judicial”, que é, em muito, diversa da “interpelação
judicial”, pois, diferente do que possa parecer em primeira análise, a
interpelação judicial é uma ação provocativa60 utilizada (no âmbito
da resolução) para manifestar uma intenção de modo formal (art. 867
do CPC), razão pela qual pode ser compreendida apenas como uma
notificação judicial.61

58
PEREIRA. Instituições de direito civil, 10. ed., p. 95 e repetida na última edição, PEREIRA.
Instituições de direito civil, 11. ed., p. 157, sendo essa última edição publicada após o início
da vigência do novo Código Civil brasileiro.
59
DAIBERT. Dos contratos: parte especial das obrigações, p. 172.
60
No mesmo sentido, vide PONTES DE MIRANDA. Comentários ao Código de Processo Civil,
p. 203.
61
A intimação da outra parte é, inclusive, o pedido que deve constar na petição inicial, con-
forme estipula o art. 867 do CPC brasileiro.

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A RESOLUÇÃO EXTRAJUDICIAL DO CONTRATO EM VIRTUDE DO DESCUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES ...
261

Trata-se de procedimento voluntário (não contencioso), onde


inexiste contraditório, como se percebe nos arts. 871 e 872 do CPC
e onde a atividade do juiz nada tem de jurisdicional; é meramente
administrativa,62 haja vista que a interpelação não finda em virtude de
julgamento ou de decisão meritória de qualquer espécie, mas em razão
da intimação. Tanto que, assim que procedida a intimação, os autos
serão entregues à parte interpelante, nos termos do art. 872 do CPC,
sem nenhuma outra intervenção do juiz. Decorrido o prazo dado pela
interpelação judicial, então, a resolução operar-se-á automaticamente,
sem necessidade, sequer, de o juiz declará-la.
Denota-se, desse modo, que, inobstante o art. 474 do Código
Civil brasileiro mencionar que a resolução legal opera-se mediante
interpelação judicial, não intentou submetê-la a uma sentença judicial,
mas apenas revestiu-a de maiores formalidades do que as exigidas para
a resolução convencional, para se tentar obter uma segurança maior
quanto à intimação do devedor nos casos de resolução do contrato.
Noutros termos, serve para certificar que o devedor tem conhecimento
do fim do contrato em razão do seu incumprimento.
Poder-se-ia levantar que a solução defendida não seria tão sim-
plória em virtude de o art. 475 afirmar que a parte lesada “pode pedir a
resolução do contrato”, dando a entender que esse “pedido” refere-se a
um pedido judicial, pelo que rebateríamos afirmando inicialmente que,
em razão de o art. 475 do Código Civil brasileiro ser o regime específico
da resolução por incumprimento e o art. 474 do Código Civil brasileiro
ser o regime geral da resolução, não se permite suscitar aspectos espe-
cíficos da resolução na tentativa de resolver aspectos gerais; apenas o
contrário é válido.
Para além disso, ainda consideramos que o art. 475, ao mencionar
que a parte lesada pode pedir a resolução, não quis outra coisa senão
determinar a legitimidade ativa para dar azo à resolução ou pedir à
contraparte o cumprimento do contrato. A decisão de resolver ou man-
ter o contrato só pode estar na esfera jurídica da parte adimplente,63
sendo defeso à parte inadimplente pedir a resolução ao credor, pois

62
Por se tratar de atividade administrativa do Poder Judiciário, Leonardo Vitório Salge diz ser
descabida até a sua inclusão, tecnicamente, entre as medidas cautelares (SALGE. A exclu-
são do sócio pela maioria do capital social. Jus Navigandi).
63
Nesse sentido, Pontes de Miranda também termina por corroborar nossa posição, apesar de
adotar a teoria da sanção como fundamento da resolução, ao afirmar que “não há condição.
Há atribuição legal de escolha, que tem o credor: ou exige, forçadamente, a prestação, ou re-
solve o contrato (exerce contra o devedor a pretensão à resolução ou à resilição)”. PONTES
DE MIRANDA. Tratado de direito privado, p. 338.

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isso caracterizaria um aproveitamento da própria torpeza ou da própria


infidelidade.
Denota-se, com isso, que nada tem de judicial o mero fato de
constar no artigo a expressão pedir, pois ela apenas derivou da falta
de técnica do legislador, razão pela qual existiria mais precisão técnica
se o artigo dispusesse que a parte lesada pode declarar a resolução do
contrato, se não preferir exigir o seu cumprimento à contraparte.
Caso a resolução legal somente pudesse ser declarada por meio
de sentença judicial, o art. 475 perderia a razão de existir, uma vez que
estabelece que a única parte que detém legitimidade para declarar a
resolução seria a parte lesada e, se a resolução por descumprimento
dependesse de intervenção judicial, tanto a parte adimplente quanto
a parte inadimplente poderiam requerer a declaração nesse sentido
do Judiciário, vez que, pela Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988, nos termos do art. 5º, inciso XXXIV, é a todos assegura-
do o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou
contra ilegalidade ou abuso de poder e pelo inciso XXXV do mesmo
artigo, a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou
ameaça a direito.
Se ambas as partes podem discutir judicialmente a questão, qual
seria o sentido de o art. 475 estabelecer que apenas a parte lesada po-
deria requerê-la? Seria para estipular a legitimidade ativa processual?
Mas, se assim fosse, haveria qualquer impossibilidade de o devedor
discutir a resolução judicial se houvesse lesão ou ameaça de lesão a
seus direitos? Acreditamos que não, pois essa norma jurídica estaria
violando uma cláusula pétrea da CF/88.
Por todo o exposto, denota-se que é inviável a interpretação
de que a resolução seria o remédio extintivo que depende de decisão
judicial, pois a resolução é um direito potestativo que independe de
declaração do Poder Judiciário para existir e ser exercido.

5.2 Resolução convencional


No que respeita à cláusula resolutiva expressa, também é deno-
minada de resolução convencional, por se encontrar convencionada e
disposta de maneira expressa no contrato.
O art. 474 do Código Civil brasileiro estipula que a cláusula reso-
lutiva expressa opera de pleno direito, o que não impede certa doutrina
de continuar defendendo que essa espécie de resolução continuaria
dependendo de intervenção judicial. Assim o faz Jefferson Daibert de

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A RESOLUÇÃO EXTRAJUDICIAL DO CONTRATO EM VIRTUDE DO DESCUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES ...
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modo desfundamentado ao afirmar que operar de pleno direito seria


“quando o juiz simplesmente a declarará [resolução], resolvendo o
contrato”.64 Nesse mesmo sentido, Luiz Guilherme Loureiro assevera
que, “através da cláusula resolutiva expressa, as partes limitam o papel
do juiz, que não poderá verificar a gravidade do não cumprimento de
uma parte, tendo em atenção o interesse da outra e não poderá decidir
pela não extinção do contrato”,65 o que restringiria a função do juiz a
apenas, e tão somente, declarar a resolução e o que termina por não
fazer sentido algum.
Silvio de Salvo Venosa também segue essa linha, apesar de ser
um pouco mais moderado, tentando fazer a resolução convencional
dependente de uma sentença judicial não por sua natureza, mas “em
virtude de outros efeitos concretos de que as partes necessitam”66 e que
só poderiam ser declarados judicialmente, como a indenização, por
exemplo. Entretanto, inexiste necessidade de decisão judicial somente
em razão desses outros efeitos concretos, pois eles podem ser resolvidos
entre as partes fora dos tribunais e, somente havendo lide ou quiçá insa-
tisfação de uma das partes, é que se haverá de buscar amparo judicial.
Se há acordo entre as partes quanto à resolução e quanto à inde-
nização, não há razão de se buscar o Judiciário em nome de qualquer
preconceito de que as partes não são capazes de resolver seus conflitos
ou de qualquer tradição do Judiciário para resolver os conflitos.67
A parte não precisa buscar intervenção judicial para resolver
o contrato haja vista que não é o julgador que decretará a resolução
deste, mas a própria parte adimplente, que só pediria a intervenção do
judiciário para solucionar litígios que não conseguiram ser decididos
entre as partes.
Destarte, somente se a parte desejar ou lhe interessar é que caberá
o ajuizamento de uma ação — não de resolução, mas sim de indenização,
por exemplo. Quanto à questão específica da indenização, é o próprio
Silvio de Salvo Venosa que alerta: “não esqueçamos ainda que as partes

64
DAIBERT. Dos contratos: parte especial das obrigações, p. 172.
65
LOUREIRO. Contratos no novo Código Civil: teoria geral e contratos em espécie, p. 275.
66
Com suas palavras, ele afirma que “uma compreensão apressada do instituto poderia supor
que se afasta sistematicamente uma declaração judicial na hipótese. Não é o que acontece na
maioria das vezes. Quando se dá por resolvido um contrato, há outros efeitos concretos de
que necessitam as partes, além do singelo desfazimento”. VENOSA. Direito civil, v. 2, p. 499.
67
Essa ideia é a base dos Métodos Extrajudiciais de Solução de Conflitos, que visam devolver
às partes o poder decisório de seus conflitos. A legislação brasileira é rica em estímulos à
sua utilização, a exemplo do art. 840 do Código Civil brasileiro, inúmeros dispositivos do
Código de Processo Civil, da Lei nº 9.099/95 e, recentemente, do Pacto Republicano e da
Resolução nº 125 do Conselho Nacional de Justiça.

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264 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

podem sempre liquidar os danos sem instaurar procedimento para tal.


A questão é estritamente de direito civil, direito dispositivo, portanto”.68
Por esse entendimento, o Judiciário retornaria a exercer sua
função primordial: a de resolver litígios e não a de declarar resolvidos
os contratos. Essa mentalidade de que tudo quanto diga respeito à
resolução do contrato deva passar pelo Judiciário causa inúmeros in-
convenientes, seja às partes, seja ao Judiciário e até mesmo à sociedade.
Quanto às partes, e mais especialmente ao credor, estariam elas
sempre e necessariamente vinculadas a um contrato que não mais lhes
interessa até que uma decisão judicial liberatória fosse proferida (e tran-
sitasse em julgado), o que pode atingir na Justiça brasileira, no estágio
em que se encontra, quinze anos de trâmites processuais, suportando
exclusivamente o credor, nesse período, todos os prejuízos que teve e,
inclusive, os ônus relativos ao próprio ingresso no Judiciário — o que,
para recuperar em fase de execução e partindo do pressuposto que a
essa altura o devedor ainda se encontraria solvente, poderia atingir
mais cinco anos de trâmites judiciais; permanecendo, para além disso,
o credor frustrado e prejudicado por não ter recebido os lucros que
adviriam da execução do contrato e impossibilitado de contratar com
terceiros, vez que continuaria vinculado àquele contrato descumprido.
No que respeita ao Judiciário, ele termina sobrecarregado com
questões que poderiam ser resolvidas fora dos tribunais, gerando o
acúmulo de processos, piorando a situação de morosidade em que se
encontra e onerando os cofres públicos, o que, por seu turno, termina
por atingir a sociedade, que é quem arca com as despesas e se vê de-
sacreditada de um Judiciário célere.
Parte da doutrina brasileira, no entanto, já conseguiu desvincular
a resolução convencional da intervenção judicial (o mesmo não ocorreu
com a resolução legal), restando, no entanto, a atribulada questão de
saber se com a possibilidade de a resolução operar de pleno direito
ainda haveria obrigação de notificação extrajudicial.
Para Caio Mário da Silva Pereira, “deixando o contratante de
cumprir a obrigação na forma e no tempo ajustado, resolve-se o con-
trato automaticamente, sem necessidade de interpelação do faltoso”,69
pois o vínculo seria destruído em decorrência da própria vontade que
o criou, tendo ambas as partes concordado que a consequência do des-
cumprimento de qualquer delas seria a ruptura automática do vínculo.

68
VENOSA. Direito civil, v. 2, p. 329.
69
PEREIRA. Instituições de direito civil, 10. ed., p. 95 e repetida na citada 11ª edição, p. 158.

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A RESOLUÇÃO EXTRAJUDICIAL DO CONTRATO EM VIRTUDE DO DESCUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES ...
265

Argumenta-se, em contrário, que, se a resolução fosse automá-


tica, sem a necessidade de declaração da parte adimplente, poderia o
outro contratante, deixando de cumprir o contrato, exonerar-se desse
também automaticamente (podendo, inclusive, contratar com terceiro
subsequentemente), e o credor, contra o seu eventual interesse, poderia
restar sujeito à resolução, o que afetaria diretamente a possibilidade
de escolha autorizada pelo art. 475 do Código Civil — que não mais
poderia exigir o cumprimento ou decretar a resolução, passando a
resolução a depender não de um ato humano, mas seria decorrência
automática da existência de um fato (incumprimento) — assim como
ocorre com a decadência.
No entanto, o “operar de pleno direito”70 não quer significar
que se opera automática e independentemente da vontade da parte
lesada, mas que não precisa de interpelação judicial, como a resolu-
ção legal. Dependeria apenas de declaração (extrajudicial) dirigida à
parte inadimplente, para que ela também possa tomar conhecimento
da opção feita pela parte adimplente: se o cumprimento do contrato
ou sua resolução.
O art. 474 do Código Civil, ao modificar a estipulação anterior do
parágrafo único do art. 119 do Código Civil brasileiro de 1916, substi-
tuiu propositadamente a expressão “condição” pelo termo “cláusula”,
pois, enquanto a primeira verifica-se automaticamente, implicando a
imediata ineficácia do contrato, a segunda, nas palavras de Luís Manuel
Teles de Menezes Leitão, “limita-se a constituir um fundamento para
o exercício do direito de resolução, continuando o seu titular a poder
decidir se o exerce ou não”.71
Inobstante esse não ser o entendimento de Orlando Gomes, ele
parece corroborar nossa posição ao explicar que uma das principais
diferenças entre os sistemas francês e alemão seria que no primeiro
caso o contrato não se resolve de pleno direito, dependendo, assim, de
intervenção judicial, enquanto, pelo sistema alemão, o contrato resolve-­
se de pleno direito, ou seja, “se um dos contratantes não cumpre suas
obrigações, pode o outro declarar resolvido o contrato, independente-
mente de pronunciamento judicial”.72 Isso porque, por mais que se opere

70
Traduz J. Dias Marques o que significa operar ipso iure. MARQUES. Noções elementares de
direito civil, p. 109: quando o fato extintitivo ou resolutivo da eficácia negocial produz desde
logo, automaticamente, aquele seu efeito, enquanto outras vezes atribui tão somente aos
interessados o direito (potestativo) de, mediante uma sua declaração de vontade, por si só
ou integrada por uma decisão jurisdicional, obter a cessação daquela eficácia.
71
LEITÃO. Direito das obrigações, p. 99, nota de rodapé n. 208.
72
GOMES. Contratos, p. 174-175.

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266 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

de pleno direito, é sempre necessária uma declaração de que o contrato


foi resolvido, pois como lembra Pedro Romano Martinez, a resolução
“não funciona ipso facto”,73 ou seja, pelo próprio fato do incumprimento.
Caso a resolução convencional se realizasse automaticamente,
inexistindo, assim, obrigação de envio de declaração nesse sentido,
poderiam ser criadas algumas situações aberrantes, como exemplo:
a parte inadimplente não considerar (por diversas razões) que tenha
descumprido o contrato e continuar executando-o e, tendo o credor
considerado que tenha existido incumprimento e que a resolução já se
operou automaticamente e sem a necessidade de qualquer declaração
nesse sentido, não cumprirá mais o contrato a partir dali, acarretando a
hipótese de que, quando o credor for pedir indenização ao devedor, este
suscite que quem lhe deve indenização é o próprio credor, pois teria sido
ele quem descumpriu o contrato e dificilmente se conseguiria estipular
qual teria sido o momento certo em que o vínculo contratual cessou.
A segurança jurídica é um princípio que rege nosso entendimen-
to de que a resolução convencional depende de declaração do credor
dirigida ao devedor.

6 Conclusão
A resolução é um modo de extinção do vínculo contratual que
depende da vontade unilateral e vinculada a um fundamento (justa
causa) legal ou convencional de um dos contratantes. Na resolução
por descumprimento, mais especialmente, a justa causa corresponde
ao inadimplemento contratual.
Ela encontra-se disciplinada de modo autônomo igualmente
no Código Civil português e no Código Civil brasileiro, apesar de o
primeiro possuir sistemática mais hialina e coerente. A despeito de
inexistir qualquer indicação expressa nesse sentido, o art. 474 do Có-
digo Civil brasileiro é o microrregime geral da resolução — somente
tratado como microrregime por se limitar a determinar a forma como
a resolução legal e a convencional se operam, enquanto o art. 475 do
Código Civil brasileiro representa o regime jurídico específico da re-
solução por descumprimento.
Comparando-se as situações jurídicas dos ordenamentos anali-
sados, apreendemos que em Portugal o estado da matéria encontra-se

73
MARTINEZ. Da cessação do contrato, p. 75.

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A RESOLUÇÃO EXTRAJUDICIAL DO CONTRATO EM VIRTUDE DO DESCUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES ...
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emoldurado de modo razoável, o que não ocorre no Brasil, onde nu-


merosos aspectos ainda são abordados de modo bastante incipiente.
No que toca ao fundamento da resolução, têm-se dois: o imediato
e o mediato. O fundamento imediato busca o pretexto pelo qual a parte
pode romper o pacto unilateralmente, o qual se localiza na própria lei.
No ordenamento jurídico português, o nosso entendimento encontra-­se
expresso no nº 1 do art. 432º do Código Civil português e no art. 475
do Código Civil brasileiro. É por essa razão, inclusive, que a noção
que se deve dar à cláusula resolutiva tácita (art. 474 do Código Civil
brasileiro) atravessa necessariamente a noção de fundamento legal.
Assim, aquela deixa de ser entendida como cláusula tácita em virtude
da vontade presumível das partes para corresponder à resolução legal,
cujo fundamento não é sustentado pela vontade implícita das partes,
mas pela própria lei.
Por seu turno, o fundamento mediato é o de proteção do inte-
resse objetivo da parte adimplente. É visando à proteção do interesse
objetivo da parte adimplente que ambos os ordenamentos admitem ter
a mesma faculdade de optar entre exigir o cumprimento do contrato
ou pedir sua resolução (à contraparte), não deixando de fornecer ao
credor a possibilidade de pedir indenização em qualquer dos casos.
Essa posição nos permitiu alcançar o princípio geral relativo à reso-
lução por incumprimento que se traduziria na seguinte máxima: in
dubio, pro adimplente, de tal maneira que, em caso de dúvida, deve-se
optar pela interpretação que coloque o adimplente na situação menos
fragilizada possível.
Quanto à questão da forma pela qual a resolução opera, no Có-
digo Civil português é, via de regra, mediante declaração, enquanto a
questão se prolonga no Código Civil brasileiro, em virtude da diferen-
ciação realizada pelo art. 474 do Código Civil brasileiro entre a resolu-
ção legal e a convencional. A primeira opera-se mediante interpelação
judicial (mera notificação judicial) e não intervenção judicial, pois não
necessita de sentença judicial, assim como também não necessita de
sentença judicial a resolução convencional. Essa última apenas carece
de declaração (notificação extrajudicial) dirigida à parte inadimplen-
te, para que esta possa tomar conhecimento da opção feita pela parte
adimplente: se o cumprimento do contrato ou sua resolução.
Com isso, esperamos ter contribuído na construção de uma nova
percepção quanto à forma como se opera a resolução por descumpri-
mento das obrigações no ordenamento jurídico brasileiro: a da desne-
cessidade de qualquer sentença judicial para o contrato ser resolvido,
seja na resolução legal, seja na resolução convencional.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
268 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

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NOTAS SOBRE O CONTRATO DE
SEGURO NO CÓDIGO CIVIL DE 2002

FERNANDA PAES LEME PEYNEAU RITO

1 Introdução
A elaboração do projeto do Código Civil de 2002 foi guiado,
segundo Miguel Reale,1 por três princípios: socialidade; eticidade e
operabilidade. Identifica-se a influência de cada um deles no contrato
de seguro, sendo esta correlação o primeiro objetivo do estudo proposto.
O princípio da socialidade indica a aplicação do paradigma da
solidariedade, um dos objetivos fundamentais do Estado,2 impondo,
dentre outras coisas, a concepção social do contrato, segundo a qual as
partes devem cooperar entre si e observar, para além dos seus próprios
interesses, os valores socialmente relevantes. Não sem razão, usualmen-
te a socialidade é associada ao princípio da função social dos contratos,
embora com este último não se confunda.
Já o princípio da eticidade relaciona-se diretamente com o
paradigma personalista, impondo o comportamento ético entre os su­
jeitos das diversas relações, ao mesmo tempo em que, distanciando-se
do rigorismo formal indica e abre espaço para a busca de soluções

1
REALE, Miguel. Visão geral do projeto de Código Civil.
2
O princípio da solidariedade foi insculpido no art. 3º, I, da Constituição de 1988.

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pautadas na justiça e na equidade.3 A eticidade é comumente associada


ao princípio da boa-fé objetiva, embora com este também não se
confunda.
E, por fim, há o princípio da operabilidade, cujo objetivo funda-
mental é facilitar a realização do direito, conferindo sistematização mais
adequada a determinados institutos e incluindo dispositivos específicos
para esse fim. Este é complementado pelo princípio da concretude,
decorrente também do paradigma personalista, e que indica a opção
por legislar não para o sujeito de direito abstratamente considerado,
mas para o sujeito de relação em concreto.
A inspiração do Código de 2002, por si só, deveria ser suficiente
para afastar as críticas iniciais no sentido de que o Código já nascia
velho.4 O paradigma mudou, não em razão do Código, mas da Cons-
tituição, e, esse novo paradigma — personalista e solidarista — foi
incorporado, indicando a submissão da Lei Civil à matéria constitucio-
nal. Cumpre, então, ao intérprete continuar o caminhar pelo progresso
jurídico, especialmente naqueles pontos em que o projeto poderia ter
sido menos conservador.
A par dessa breve consideração inicial, em matéria de obrigações
e contratos, o Código de 2002 promoveu profunda alteração qualitativa,
ao renovar a principiologia contratual, afastando toda e qualquer dúvi-
da de que a relação contratual se distanciava sobremaneira daquela con-
cebida pelos ideais liberais e positivada nas codificações oitocentistas e
nas que nelas se inspiraram, tal como o Código Civil brasileiro de 1916.
Os princípios da boa-fé objetiva, da função social e do equilíbrio
econômico do contrato promoveram profundas transformações na seara
obrigacional como um todo e, na contratual, em especial. Do primeiro
decorreu a tríplice transformação do adimplemento,5 e, por intermédio
do segundo princípio, foi estabelecido um limite para a liberdade de
contratar.6 Já o princípio do equilíbrio econômico, embora não tenha

3
“O que importa numa codificação é o seu espírito; é um conjunto de idéias fundamentais
em torno das quais as normas se entrelaçam, se ordenam e se sistematizam. Em nosso pro-
jeto não prevalece a crença na plenitude hermética do Direito Positivo, sendo reconhecida a
imprescindível eticidade do ordenamento” (REALE, Miguel. Visão geral do projeto de Código
Civil).
4
Por essa razão, muitos juristas se abstêm de qualificar o Código Civil de 2002 como novo.
5
SCHREIBER. A tríplice transformação do adimplemento: adimplemento substancial, inadim-
plemento antecipado e outras figuras. Revista Trimestral de Direito Civil – RTDC, p. 3-27.
6
Para uma discussão acerca do conteúdo do princípio da função social do contrato, por to-
dos, ver: TEPEDINO. Notas sobre a função social dos contratos. In: TEPEDINO; FACHIN
(Coord.). O direito e o tempo: embates jurídicos e utopias contemporâneas: estudos em ho-
menagem ao Professor Ricardo Pereira Lira, p. 395-405.

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sido nominalmente positivado no Código Civil, tem fundamento cons-


titucional, o que lhe confere autonomia,7 embora usual seja perquirir
a sua concretização através dos diversos mecanismos de correção8 de
eventuais desequilíbrios positivados pelo legislador de 2002.
Mas, a inovação não parou por aí. O legislador de 2002 atendeu
alguns anseios da doutrina, como no tocante à unificação do direito das
obrigações, à inclusão da disciplina do contrato preliminar e de dispo-
sições acerca do contrato de adesão, e, alteração pontual, mas essencial,
na disciplina de alguns contratos em espécie, notadamente no contrato
de seguro, objeto deste estudo.
Muitas foram as alterações introduzidas no contrato de seguro,
entretanto, a análise aqui proposta será circunscrita à sua evolução
conceitual e à funcionalização do contrato de seguro, que embora de-
corrente da incidência dos valores constitucionais, encontrou especial
campo de atuação a partir da configuração jurídica conferida a esta
espécie contratual pelo legislador de 2002.

2 Conceito e elementos essenciais do contrato de seguro


Embora não seja função precípua do legislador definir os insti-
tutos jurídicos, o contrato de seguro foi conceituado tanto pelo Código
Civil de 1916, quanto pelo Código Civil de 2002. A comparação de am-
bos os conceitos legais evidencia a evolução e o amadurecimento no que
diz respeito ao tratamento dispensado à espécie contratual em voga.
No Código de 1916, art. 1432, o contrato de seguro era definido
como “aquele pelo qual uma das partes se obriga para com a outra,
mediante a paga de um prêmio, a indenizá-la de prejuízo resultante de
riscos futuros, previstos no contrato”. Os elementos essenciais depre-
endidos deste conceito são: prêmio, indenização e riscos.
Já no Código de 2002, nos termos do art. 757, foi definido que
“pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento

7
O princípio do equilíbrio econômico é corolário da justiça contratual que, por seu turno, é
alcançada a partir da fórmula derivada da união da liberdade funcionalizada com a igual-
dade substancial. Por essa razão é que o art. 170 da Constituição Federal determina: “A
ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem
por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”.
8
Dentre eles, cita-se: garantia legal em face de vício redibitório; possibilidade de resolução
da obrigação se o credor não aceitar pagar o preço aumentado do bem, em virtude de me-
lhoramento ocorrido entre a criação do vínculo jurídico e a tradição; vedação ao enriqueci-
mento sem causa; exceção de contrato não cumprido; anulabilidade do negócio, constatada
a lesão ou o estado de perigo; a resolução por onerosidade excessiva etc.

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do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa


ou a coisa, contra riscos predeterminados”. A partir desta nova con-
ceituação houve um incremento não só quantitativo, mas, sobretudo,
qualitativo no conjunto de elementos essenciais do contrato de seguro,
que passaram a ser: prêmio; garantia; interesse legítimo (segurável);
risco; e, empresarialidade.9
Essa alteração conceitual expressa os princípios norteadores do
Código de 2002. O princípio da eticidade se torna patente ao qualificar
o interesse segurável como legítimo, já que o critério da licitude na
contemporaneidade é insuficiente para assegurar o merecimento de
tutela dos atos de autonomia.
A obrigação de garantia em substituição à de indenizar concreti-
za, a um só tempo, o princípio da operabilidade, já que a definição do
Código de 1916 era incompatível com as duas modalidades de seguro
existentes e, também, o princípio da socialidade, na medida em que
ao segurador não se impõe como prestação principal indenizar, mas
garantir.
Por fim, o requisito da empresarialidade evidencia a concepção
social do contrato, sobretudo a preocupação com a parte hipossuficiente
da relação securitária. É verdade que, embora este requisito inexistisse
no Código de 1916, estava presente no ordenamento. Mas, a expressa
inclusão deste no parágrafo único do artigo inaugural do contrato de
seguro é especialmente representativa.
A conceituação proposta pelo legislador de 1916, ao determinar
como prestação principal do segurador a indenização e a do segurado
o pagamento do prêmio, encerrava dois graves problemas: (i) insufici-
ência do conceito para abarcar as duas modalidades de seguro (dano
e pessoas) e (ii) incompatibilidade da definição com o caráter bilateral
do contrato.
Em primeiro lugar, o fundamento indenitário, em que pese estar
presente no seguro de dano, inexiste no seguro de pessoas, à medida
que, enquanto no seguro de dano o prêmio não ultrapassa o valor da
coisa segurada, sendo este o valor máximo permitido para o ressarci-
mento, no seguro de pessoa o valor do prêmio corresponde ao valor
consignado no contrato, que é o reflexo da vontade e das possibilidades
do segurado. Assim, este último não possui caráter indenitário, mas
sim compensatório.

9
Este último elemento encontra-se previsto no parágrafo único do mesmo dispositivo que de-
termina que “somente pode ser parte, no contrato de seguro, como segurador, entidade para
tal fim legalmente autorizada”.

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Consequentemente, o conceito insculpido no art. 1432 do Código


de 1916 não englobava as duas modalidades de contrato de seguro dis-
ciplinadas pelo Código Civil, fato este corroborado pela disposição do
art. 1471 do mesmo diploma que definiu o seguro de vida como aquele
que “tem por objeto garantir, mediante o prêmio anual que se ajustar,
o pagamento de certa soma a determinada ou determinadas pessoas,
por morte do segurado”.10
Em segundo lugar, sendo a indenização a prestação principal
do segurador, a bilateralidade do contrato subordinava-se à condição
suspensiva de ocorrência do sinistro, já que, não ocorrendo este, “o
segurador nada pagaria ao segurado em contrapartida ao pagamento
do prêmio”.11 Em decorrência desta conceituação, doutrina tradicio-
nal afirmava o caráter aleatório12 do contrato de seguro, exatamente
porque, enquanto para o segurado sempre existia o dever de cumprir
integralmente a prestação pactuada, para o segurador a obrigação
correspondente de pagar a indenização era incerta.
O Código Civil de 2002, se não finalizou estas discussões, cer-
tamente, instrumentalizou eficazmente o debate, visto ter positivado
uma definição unitária fundamentada em um conceito suficientemente
amplo para abarcar as duas modalidades de seguro, assim como, ao
estabelecer o dever de garantia como principal prestação do segurador,
confirmou a bilateralidade do contrato e, com isso, indicou a natureza
comutativa deste, sendo esta a conclusão que se impõe da funcionali-
zação do contrato de seguro.

2.1 O interesse legítimo


A mudança de orientação jusfilosófica do indivíduo para a pessoa
concretamente considerada e da liberdade individual para a solidarieda-
de social implicou mudanças sensíveis no princípio da autonomia, for-
jando novos contornos para as relações intersubjetivas. Neste contexto,
a reconstrução da autonomia, orientada pelos valores constitucionais,
tem como premissa a ruptura com a tese da autonomia como dogma

10
Destaca-se que, ainda que essa crítica possa ser flexibilizada pelo reconhecimento de que o
Código revogado adotava uma conceituação plural, definindo o seguro de dano em seu art.
1432 e o seguro de pessoas no art. 1.471, permanece a crítica referente ao não atendimento
dos diversos seguros de responsabilidade.
11
TEPEDINO; BARBOZA; MORAES. Código Civil interpretado: conforme a Constituição da
República, v. 2, p. 561.
12
Cf. ALVIM. O contrato de seguro; PEREIRA. Instituições de direito civil; GOMES. Contratos;
SANTOS. Direito de seguro no cotidiano: coletânea de ensaios jurídicos.

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e valor,13 o que permitiu a superação do critério da legalidade pelo da


legitimidade e, consequentemente, do juízo de licitude-ilicitude pelo
juízo de merecimento de tutela do ato.
Fala-se em ruptura do modelo calcado tão somente na legalidade,
no sentido de que, atualmente, verifica-se a supremacia da legitimidade,
isto é, da observância dos valores e princípios sociais. Neste sentido,
os atos de autonomia, para serem merecedores de tutela, têm que,
não apenas observar as regras jurídicas, indo além, devem atender ao
programa de valores constitucionais.14
Assim, ao avocar o interesse legítimo como fundamento do con-
trato de seguro, o legislador não apenas ofertou um conceito suficiente-
mente amplo para abarcar as duas modalidades de seguros existentes,
mas, principalmente, positivou no âmbito do contrato de seguro uma
das teses principais da contemporaneidade, consubstanciada na refu-
tação da concepção da autonomia com dogma, em favor da submissão
de todos os atos de autonomia a um juízo de merecimento de tutela,
como acima exposto.
Importante frisar que o interesse legítimo relaciona-se com o
motivo determinante, representativo de uma relação de valor15 entre
aquele que contrata o seguro e o bem ou as faculdades da vida (própria
ou alheia), sendo certo que esse não pode ser ilícito, assim como deve
ser merecedor de tutela, o que impõe concluir que os danos causados
propositadamente pelo segurado, pelo beneficiário ou por terceiro a
favor de um daqueles, não são cobertos pelo seguro.
Explica-se: além de o interesse não poder recair sobre objeto
ilícito, como exemplo, um seguro contra danos relativos à mercadoria
guardada em depósito, consistindo essa em drogas ilícitas, deve atender
também ao requisito da legitimidade. Por essa razão é que, por exemplo,

13
Cf. PERLINGIERI. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil-constitucional.
14
Este entendimento já foi declarado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em
um julgado acerca de contrato de seguro: ementa: “APELAÇÃO CÍVEL. CONTRATO DE
SEGURO. RESILIÇÃO UNILATERAL DO CONTRATO BASEADO EM CIRCULARES DA
SUSEP. ABUSIVIDADE. SENTENÇA MANTIDA. O cancelamento imotivado de contrato de
seguro, com base em cláusula contratual de não-renovação, bem como por conta de novas
normas da SUSEP, coloca o consumidor em enorme desvantagem, porquanto, após man-
ter relação contratual continuada, passa a ser obrigado a aderir à nova contratação, com
diminuição das coberturas e aumento do prêmio. Normas com hierarquia inferior não po-
dem se sobrepor às normas civilistas da função social do contrato e do princípio da boa-fé.
Abusividade no cancelamento unilateral do contrato. Sentença mantida. Apelo desprovido”
(TJRS, 5CC. Ac. nº 70026044628/2008, Rel. Des. Romeu Marques Ribeiro Filho, j 5.11.2008).
15
Neste sentido, insta citar a lição de Fábio Konder Comparato: “o interesse segurável, como
objeto material do contrato de seguro, não é pois uma coisa, mas uma relação, como o indica
a própria etimologia (inter esse); mais precisamente, ele é a relação existente entre o segurado
e a coisa ou pessoa sujeita ao risco” (COMPARATO. O seguro de crédito: estudo jurídico, p. 26).

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ainda que seja permitida a contratação de seguro sobre a vida de outrem,


essa deve ser justificada.
Em regra o seguro de vida é celebrado entre segurado e segu-
rador, partes do contrato, em favor de um beneficiário, que pode ser o
próprio segurado na hipótese de cobertura por sobrevivência ou terceira
pessoa por ele indicada no caso de cobertura por morte. Na hipótese
de seguro de vida com cobertura por morte pode-se, excepcionalmen-
te, “fazer a operação inversa, isto é, o seguro do terceiro a favor do
estipulante”,16 sendo neste caso restringida a liberdade do estipulante.17
Excepcionando a regra do art. 140 do Código Civil de que “os
motivos que levaram o agente a praticar determinado negócio jurídico
são irrelevantes para o direito”,18 a validade do contrato de seguro de
vida sobre a vida de outrem fica subordinada à justificação do interes-
se19 sobre a vida daquela pessoa, evitando-se assim que o seguro seja
desvirtuado em um jogo ou aposta, atentando contra os preceitos de
ordem pública,20 ou até mesmo criminosos.21
Ainda em decorrência da legitimidade do interesse enquanto
fundamento do contrato de seguro, é nulo o contrato que visar garantir
risco proveniente de ato doloso do segurado,22 visto que, além de desviar

16
ALVIM. O seguro e o novo Código Civil, p. 153.
17
Art. 790, CC/2002. “No seguro sobre a vida de outros, o proponente é obrigado a declarar,
sob pena de falsidade, o seu interesse pela preservação da vida do segurado.
Parágrafo único. Até prova em contrário, presume-se o interesse, quando o segurado é
cônjuge, ascendente ou descendente do proponente.”
18
TEPEDINO; BARBOZA; MORAES. Código Civil interpretado: conforme a Constituição da
República, v. 2, p. 277.
19
José Augusto Delgado esclarece que “o interesse a ser declarado é de natureza econômica
ou jurídica. Tem de representar razões sociais, de moralidade e de conduta que justifiquem
a atitude do estipulante. O interesse em preservar a vida da pessoa segurada não pode
ser negativo. Ele há de representar ação a ser tomada pelo segurado no sentido de agir de
modo que preserve a vida do segurado” (DELGADO. Comentários ao novo Código Civil: das
várias espécies de contrato: do seguro (arts. 757 a 802), p. 724).
20
Destaca-se que o legislador brasileiro optou por exigir a justificação pelo interesse na pre-
servação da vida do terceiro, salvo se este for moral e presumido em função dos laços de
parentesco. Neste sentido: “o requisito de justificação do interesse assegurável, portanto,
desponta em relação ao seguro sobre a vida de terceiro, eis que assim o exigem os interesses
ligados à ordem pública, no intuito de se evitar a formação de contratos para fins ilícitos ou
mesmo criminosos” (TEPEDINO; BARBOZA; MORAES. Código Civil interpretado: conforme
a Constituição da República, v. 2, p. 600).
21
Sérgio Cavalieri Filho ilustra bem a questão, comentando o seguinte caso: “um empresário
francês, dono de um restaurante na França, fazia seguro de vida para seus empregados,
depois pagava-lhes um passeio turístico no Brasil e aqui os mandava matar (simulação de
assalto ou acidente) para receber a indenização. Um deles sobreviveu e revelou a trama”
(CAVALIERI FILHO. A trilogia do seguro. In: FÓRUM DE DIREITO DO SEGURO “JOSÉ
SOLLERO FILHO”, 3., p. 85-98).
22
Art. 762, CC/2002. “Nulo será o contrato para garantia de risco proveniente de ato doloso
do segurado, do beneficiário, ou de representante de um ou de outro.”

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o contrato dos seus fins econômicos e sociais,23 afetaria o equilíbrio do


fundo constituído, especialmente porque os riscos deixariam de ser
homogêneos, o que inevitavelmente, repercutiria negativamente na
esfera dos demais componentes da base mutuária do seguro.

2.2 A predeterminação dos riscos cobertos pelo contrato


de seguro
Risco é o acontecimento futuro e incerto previsto no contrato de
seguro, suscetível de causar lesão ao interesse garantido que, quando
se materializa, passa a ser chamado de sinistro. A sua essencialidade24
é imanente ao próprio seguro, visto que este só se justifica na existên-
cia de um risco25 do qual se pretenda precaver. Destaca-se que não
é necessário existir incerteza quanto à sua concretização, bastando
apenas a incerteza relativa ao momento da sua ocorrência, visto que
se assim não fosse, seria impossível a contratação de seguro de vida
com cobertura por morte.
A característica essencial do risco coberto por um contrato de
seguro é a sua predeterminação no contrato,26 não sem razão que o
legislador em diversas oportunidades27 disciplinou expressamente
o risco. Destaca-se ainda, que a predeterminação pressupõe a clara
indicação do objeto ou pessoa sobre a qual incide o interesse legítimo
que se pretende proteger de riscos mediante o seguro.28

23
TEPEDINO; BARBOZA; MORAES. Código Civil interpretado: conforme a Constituição da
República, v. 2, p. 569.
24
“O risco é o evento incerto ou de data incerta que independe da vontade das partes con-
tratantes e contra o qual é feito o seguro. O risco é a expectativa de sinistro. Sem risco não
pode haver contrato de seguro” (SOUZA et al. Dicionário de seguros: vocabulário conceitua-
do de seguros, p. 104).
25
Há quem defenda, inclusive, que o risco é o objeto do contrato de seguro. Neste sentido,
cf. PEREIRA. Instituições de direito civil, p. 393.
26
“Não há contrato de seguro sem que exista risco definido. É da sua própria natureza que
o risco seja identificado para que possa haver levantamento do grau de possibilidade do
seu acontecimento. O contrato de seguro não pode ser celebrado para garantir ocorrência
de risco indefinido” (DELGADO. Comentários ao novo Código Civil: das várias espécies de
contrato: do seguro (arts. 757 a 802), p. 181).
27
Arts. 757; 760; 761; 762; 764; 768; 769; 770; 773; 779 e 782, todos do Código Civil de 2002.
28
Neste sentido: “Sistema Financeiro de Habitação. Recurso Especial. Ação de indenização
securitária. Embargos de declaração. Ausência de indicação de omissão, contradição ou
obscuridade. Súmula 284/STF. Seguro habitacional. Contrato de gaveta. Morte do promi-
tente comprador. Impossibilidade de quitação do contrato. [...]. Hipótese em que o imóvel
financiado, segundo as normas do SFH, foi transferido por meio de contrato de promessa
de compra e venda, popularmente denominado de ‘contrato de gaveta’. Nessa situação,
apenas a morte do mutuário original obriga o agente financeiro e a seguradora, que não

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O risco coberto, sendo derivado de uma decisão,29 é predeter-


minado e, não poderia deixar de ser, sob pena de impor um perigo30
para a mutualidade. Isso porque o prêmio pago pelo segurado corres-
ponde à garantia ofertada pelo segurador que, por sua vez, reflete a
apreciação pecuniária do risco ao qual está exposto.31 Por esta razão
é que a boa-fé no contrato de seguro deve ser qualificada, tendo em
vista que o correto dimensionamento do risco depende sensivelmente
das informações prestadas pelo segurado e toda omissão ou inverdade
afeta a coletividade atrelada ao fundo constituído.
A importância do risco, entendido como uma decisão, é de tal
ordem no contrato de seguro que o legislador pune com a perda do
direito à garantia o segurador que agravar intencionalmente o risco32
predeterminado no contrato, assim como impõe ao segurado o dever

anuíram com a transferência do financiamento, a cumprir a cláusula contratual que prevê


a quitação do contrato. Recurso especial não provido” (STJ, 3ª T. REsp. nº 957.757/SC, Rel.
Min. Nancy Andrigui, j. 15.12.2009, DJe, 02 fev. 2010).
“SEGURO RESIDENCIAL. INCÊNDIO. ALTERAÇÃO DE ENDEREÇO SEM ENDOSSO
DA APÓLICE. AUSÊNCIA DE COBERTURA. I. Caso em que o autor contratou seguro
residencial para sua casa habitual, porém mudou-se para outro imóvel sem endossar a apó-
lice, sendo que a nova residência incendiou totalmente. II. Não tendo havido o endosso da
apólice para substituição do objeto segurado, não prospera a pretensão do segurado de es-
tender os efeitos do contrato a imóvel distinto. Não se trata de agravamento de risco, como
equivocadamente trabalhou a sentença, mas sim de inexistência de contrato, que é de onde
nasce a obrigação discutida. Recurso provido. Unânime” (TJRS, 2 CC. Ac. nº 71002329050,
Rel. Des. João Pedro Cavalli Júnior, j. 30.7.2010).
29
Dentre os sociólogos contemporâneos estudiosos do tema risco, que reformularam seu
conceito, dissociando-o da noção de perigo e alocando-o como resultado de uma decisão,
destaca-se: Ulrich Beck, Anthony Gidens, Scott Lash e Niklas Luhmann.
30
“Risco não se confunde, assim, com infortúnio ou perigo, mas a infortúnios ativamente
avaliados em relação a possibilidades futuras. A palavra só passa a ser comumente utiliza-
da em sociedades ‘orientadas para o futuro’, sendo característica primordial da civilização
industrial moderna. [...]. Os riscos crescentes foram acompanhados pelo desenvolvimento
dos sistemas de seguro, base a partir da qual as pessoas estão dispostas a assumir riscos,
especialmente os das atividades náuticas do século XVI, época dos primeiros seguros ma-
rítimos. Seguro é ‘algo concebível quando acreditamos num futuro humanamente arqui-
tetado’, sendo um dos meios de operar o planejamento e redistribuir o risco” (BARBOZA.
Responsabilidade civil em face das pesquisas em seres humanos: efeitos do consentimen-
to livre e esclarecido. In: MARTINS-COSTA; MÖLLER (Org.). Bioética e responsabilidade,
p. 205-233).
31
Neste sentido: “Não se ignora, portanto, que o contrato de seguro se assenta sobre a de
seleção de riscos, pois é inviável que um grupo de pessoas pretenda segurar-se contra todo
e qualquer risco e, por outro lado, é inútil proteger-se contra nenhum risco. É no processo
de seleção de riscos que se revela o entrechoque de interesses que, em última instância,
leva à celebração do contrato. O segurador busca maximizar as receitas que aufere para
administrar o fundo comum que irá cobrir riscos bem delimitados, enquanto o segurado
quer se proteger contra o maior número de riscos pelo menor custo possível” (STJ, 3ª T.
REsp. nº 763.648/PR, Rel. Min. Nancy Andrigui, j. 14.6.2007, DJ, p. 272, 1º dez. 2007).
32
Para uma análise completa do agravamento do risco no âmbito securitário, cf. ÁVILA. O
agravamento do risco no contrato de seguro.

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de comunicar ao segurador todo incidente que puder agravar consi-


deravelmente o risco coberto.33
Na verdade, em sendo o seguro obrigatoriamente um contrato de
trato sucessivo ou de execução continuada e comutativo, é de se aviltar
a possibilidade de, ao longo do seu curso, fatores externos romperem
com o equilíbrio originalmente estabelecido, de sorte que é imperiosa
a existência de mecanismos aptos a readequar o pacto.
Nessas hipóteses, além dos institutos genericamente previstos
para obrigações que se protraem no tempo, o legislador previu a pos-
sibilidade de revisão contratual sempre que, em virtude de alterações
no risco, seja quando ele diminui, seja quando é agravado, o contrato
se tornar desequilibrado.
Ressalta-se, contudo, que a possibilidade de revisão contratual
em decorrência de uma variação considerável no risco não se confunde
com a obrigatoriedade de pagamento integral do prêmio. Na verdade,
o princípio da indivisibilidade do prêmio, insculpido no art. 764 do
Código Civil de 2002,34 deriva da natureza comutativa deste contrato,
determinando que, independentemente da concretização do risco — da
ocorrência do sinistro —, o prêmio deve ser integralmente pago pelo
segurado, já que ele representa a remuneração da garantia contrapres-
tada pelo segurador, desde a celebração do contrato.35

33
Arts. 768 e 769, respectivamente, ambos do Código Civil de 2002: “Art. 768. O segurado
perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato”. “Art.
769. O segurado é obrigado a comunicar ao segurador, logo que saiba, todo incidente sus-
cetível de agravar consideravelmente o risco coberto, sob pena de perder o direito à garan-
tia, se provar que silenciou de má-fé. §1º O segurador, desde que o faça nos quinze dias
seguintes ao recebimento do aviso da agravação do risco sem culpa do segurado, poderá
dar-lhe ciência, por escrito, de sua decisão de resolver o contrato. §2º A resolução só será
eficaz trinta dias após a notificação, devendo ser restituída pelo segurador a diferença do
prêmio.”
34
Art. 764, CC/2002. “Salvo disposição especial, o fato de se não ter verificado o risco, em
previsão do qual se faz o seguro, não exime o segurado de pagar o prêmio.”
35
Para aqueles que entendem que o contrato de seguro é aleatório, a indivisibilidade do prê-
mio se justifica porque a vantagem possível do segurador reside exatamente na não ocor-
rência do sinistro. Neste sentido: DELGADO. Comentários ao novo Código Civil: das várias
espécies de contrato: do seguro (arts. 757 a 802); ALVIM. O seguro e o novo Código Civil. Mais
acertada parece ser a posição de Gustavo Tepedino, Heloísa Helena Barboza e Maria Celina
Bodin de Moraes que, reconhecendo a comutatividade do contrato de seguro, justificam a
indivisibilidade do prêmio nos seguintes termos: “em sendo a obrigação do segurador de
garantia do interesse segurado contra o implemento dos riscos previstos contratualmente
(ou seja, não se trata de obrigação de simples pagamento de indenização, tal como precei-
tuava o diploma anterior), disto se infere que o prêmio é devido pelo segurado, ainda que
alguns desses riscos jamais se concretize, sem que daí se possa aduzir a existência de even-
tual contradição com o caráter bilateral do contrato” (TEPEDINO; BARBOZA; MORAES.
Código Civil interpretado: conforme a Constituição da República, v. 2, p. 571).

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FERNANDA PAES LEME PEYNEAU RITO
NOTAS SOBRE O CONTRATO DE SEGURO NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
281

Ademais, não será toda e qualquer variação no risco que ensejará


a revisão do contrato. Esta só será devida quando a prestação do segu-
rado (prêmio) e a do segurador (garantia) se tornarem desproporcionais
em virtude de fatores externos e supervenientes que alterem o risco,
sob o qual as prestações foram calculadas.
Então, ainda que exista uma ligação direta entre o risco prede-
terminado e o dano, haverá exclusão da cobertura sempre que, por
fato próprio e intencional da vítima o risco tiver sido concretizado ou
agravado, nesta última hipótese, exige o STJ nexo de causalidade entre
o agravamento e o sinistro.36

2.3 A empresarialidade
A complexidade das situações subjetivas que se formam a partir
do contrato de seguro, somada à qualidade do interesse segurado, obri-
gatoriamente valorado como legítimo, assim como à comutatividade
do contrato, que impõe ao segurador o dever de garantia contra riscos
predeterminados desde a celebração da avença, impõe a empresaria-
lidade daquele que irá gerir o fundo e a estreita correlação entre os
riscos cobertos e os danos ressarcíveis, razão pela qual foi este alçado
à categoria de elemento essencial do contrato.

36
Neste sentido: “DIREITO CIVIL. CONTRATO DE SEGURO. ACIDENTE PESSOAL.
ESTADO DE EMBRIAGUEZ. FALECIMENTO DO SEGURADO. RESPONSABILIDADE
DA SEGURADORA. IMPOSSIBILIDADE DE ELISÃO. AGRAVAMENTO DO RISCO NÃO-
COMPROVADO. PROVA DO TEOR ALCÓOLICO E SINISTRO. AUSÊNCIA DE NEXO DE
CAUSALIDADE. CLÁUSULA LIBERATÓRIA DA OBRIGAÇÃO DE INDENIZAR. ARTS.
1.454 E 1.456 DO CÓDIGO CIVIL DE 1916. 1. A simples relação entre o estado de embriaguez
e a queda fatal, como única forma razoável de explicar o evento, não se mostra, por si só, su-
ficiente para elidir a responsabilidade da seguradora, com a consequente exoneração de pa-
gamento da indenização prevista no contrato. 2. A legitimidade de recusa ao pagamento do
seguro requer a comprovação de que houve voluntário e consciente agravamento do risco por
parte do segurado, revestindo-se seu ato condição determinante na configuração do sinistro,
para efeito de dar ensejo à perda da cobertura securitária, porquanto não basta a presença de
ajuste contratual prevendo que a embriaguez exclui a cobertura do seguro. 3. Destinando-se
o seguro a cobrir os danos advindos de possíveis acidentes, geralmente oriundos de atos dos
próprios segurados, nos seus normais e corriqueiros afazeres do dia-a-dia, a prova do teor
alcoólico na concentração de sangue não se mostra suficiente para se situar como nexo de
causalidade com o dano sofrido, notadamente por não exercer influência o álcool com idên-
tico grau de intensidade nos indivíduos. 4. A culpa do segurado, para efeito de caracterizar
desrespeito ao contrato, com prevalecimento da cláusula liberatória da obrigação de inde-
nizar prevista na apólice, exige a plena demonstração de intencional conduta do segurado
para agravar o risco objeto do contrato, devendo o juiz, na aplicação do art. 1.454 do Código
Civil de 1916, observar critérios de eqüidade, atentando-se para as reais circunstâncias que
envolvem o caso (art. 1.456 do mesmo diploma). 5. Recurso especial provido” (STJ. REsp
nº 780757/SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 1.12.2009, DJe, 14 dez. 2009).

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
282 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

No que tange à empresarialidade da entidade seguradora, o legis-


lador brasileiro demonstrou, desde a fase formativa do setor securitário,
e ao longo do seu desenvolvimento, preocupação com as entidades
que operacionalizavam seguros. Assim, em que pese o Código Civil de
1916 não ter incluído como elemento essencial do contrato de seguro a
empresarialidade, o Decreto-Lei nº 73, que instituiu o sistema nacional
de seguros privados, em seu art. 24, determinou que pudessem “operar
em seguros privados apenas Sociedades Anônimas ou Cooperativas,
devidamente autorizadas”, restringindo em seu parágrafo único a
atuação das sociedades cooperativas aos seguros agrícolas, de saúde e
de acidentes de trabalho.37
Certamente que à época o referido dispositivo não foi interpre-
tado dessa forma, mesmo porque o ordenamento brasileiro filiava-se à
teoria dos atos de comércio e não da empresa. No entanto, é exatamente
este dispositivo que integra o parágrafo único do art. 757 do Código
Civil de 2002 e, por esse motivo, pode-se dizer que o requisito é pree-
xistente ao Código de 2002. Por outro lado, o legislador de 2002 impôs
que a autorização para a exploração da atividade securitária decorra
obrigatoriamente de lei, o que não era exigido até então.
Independentemente de se tratar de uma inovação introduzida
pelo Código Civil de 2002 ou não, importa frisar que a exigência do
atributo da empresarialidade vai ao encontro do que foi defendido até
então em relação à natureza comutativa do contrato de seguro e à ne-
cessidade de impor exigências mais rígidas para atuação em um ramo
de atividade que congrega diferentes centros de interesses.
A empresarialidade consiste na obrigatoriedade de a entida-
de operadora de seguros ser constituída sob a forma de sociedade
empresária,38 o que se justifica pelo fato de a obrigação principal do
segurador ser a garantia, desde a celebração do contrato até a sua ex-
tinção, contra riscos predeterminados.
Esta obrigação, para ser cumprida a contento, requer a obser-
vação de uma série de deveres anexos, especialmente os relativos à
capacidade de gestão do fundo comum, constituído pelos prêmios

37
A Lei nº 5.136, de 14.9.1967, transferiu a operacionalização do seguro de acidentes de tra-
balho para o Estado, que passou a ter competência exclusiva.
38
“Empresarialidade significa o atributo da atividade econômica organizada em forma de
empresa. Quer dizer, a atividade econômica ostenta empresarialidade quando é organiza-
da como empresa. Se ela não apresenta os traços específicos da organização empresarial
(articulação de mão-de-obra, insumos, tecnologia e capital), não é dotada de empresariali-
dade” (COELHO. A empresarialidade da entidade seguradora. In: FÓRUM DE DIREITO
DO SEGURO “JOSÉ SOLLERO FILHO”, 3., p. 228-229).

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NOTAS SOBRE O CONTRATO DE SEGURO NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
283

pagos pelo conjunto de segurados, e à constituição de reservas técnicas


apropriadas.
Em outros termos, tendo em vista que o objeto imediato da
atividade securitária é garantir segurança em face de riscos predeter-
minados, ela só pode ser exercida pela sociedade empresária especifica-
mente criada para tal fim, congregando estrutura adequada de capital,
mão de obra especializada e tecnologia, visto ser isto que permite a
homogeneização e pulverização dos riscos assumidos e a solvência do
próprio fundo constituído.

3 A funcionalização do contrato de seguro


O princípio da socialidade, como já sucintamente apresentado,
decorre do paradigma solidarista e assim o é, pois parte do reconhe-
cimento de que “a pessoa é uma atividade vivida de auto-criação,
de comunicação e de adesão”,39 portanto, um conjunto de relações
complexas. Nessa perspectiva, na qual o sujeito de tutela passa a ser o
homem-pessoa, ser social, em detrimento do indivíduo abstratamente
considerado40 e, sob este viés coexistencial,41 torna-se inexorável à im-
posição de uma concepção social aos contratos.
A concepção social do contrato implica conferir relevância
jurídica às características das partes contratantes, assim como ao ob-
jeto do contrato, antes inteiramente desconsiderados. Neste contexto,
privilegia-se o aspecto funcional dos contratos em detrimento da sua
estrutura, exatamente porque, o aspecto funcional sendo sobrelevado,
permite a sua adequação ao atendimento dos interesses sociais rele-
vantes. Ademais, só a partir dessa inversão de ordem formal é que foi
possível submeter os atos de autonomia a um juízo de merecimento
de tutela.42

39
MOUNIER. O personalismo, p. 10.
40
“Lá, na doutrina individualista, partir-se-ia do homem natural, tomado como um ser iso-
lado, segregado dos demais homens, portador de prerrogativas próprias, nascido todos
absurdamente iguais em direito e livres. Aqui, na doutrina socialista, o homem é conside-
rado não abstrata e isoladamente, mas tal com efetivamente o é, um ser destinado a viver
em sociedade e que só na sociedade encontraria o meio natural do desenvolvimento de
suas aptidões” (SILVA. Responsabilidade sem culpa, p. 8-9).
41
O direito “tem como ponto de referência o homem na sua evolução psicofísica, ‘existencial’,
que se torna história na sua relação com os outros homens. A complexidade da vida social
implica que a determinação da relevância e do significado da existência deve ser efetuada
como existência no âmbito social, ou seja, como coexistência” (PERLINGIERI. Perfis do
direito civil: introdução ao direito civil-constitucional, p. 1).
42
“A função, portanto, é a síntese causal do fato, a sua profunda e complexa razão justifica-
dora: ela refere-se não somente à vontade dos sujeitos que o realizam, mas ao fato em si,

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
284 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Todas as situações jurídicas subjetivas são compostas por dois


aspectos, um estrutural, representativo da estrutura de poder conferida
ao titular da situação jurídica subjetiva, e um funcional, que vem a ser a
expressão da finalidade prático-social daquela mesma situação jurídica
subjetiva e condicionante do aspecto estrutural.43
Porém, enquanto o privilégio ao aspecto estrutural dos institu-
tos condiz com um ordenamento de matiz individualista, em que os
institutos exerciam tão somente a função específica para o qual foram
concebidos, em um ordenamento promocional, privilegia-se o aspecto
funcional, exatamente porque, além da função específica, individuada
por um processo unitário de interpretação e qualificação, os institutos
desempenham também uma função social, consubstanciada na concre-
tização dos valores inspiradores do ordenamento.
A funcionalização do contrato de seguro é especialmente marcan-
te, posto que evidencia a crise atual pela qual passa o direito subjetivo.44
Isto porque a sua noção clássica atrelada à ideia de poder reconhecido
pelo ordenamento a um sujeito para a realização de seus próprios in-
teresses, contemporaneamente, é funcionalizado aos valores sociais. E,
se é verdade que, hodiernamente, um interesse para ser tutelado tem
que, além de atender os interesses do seu titular, observar também os
da coletividade, mais rígida ainda torna-se esta obrigação quando se
trata de um contrato que, por natureza, é comunitário e fundado em
bases solidárias.45

enquanto social e juridicamente relevante” (PERLINGIERI. Perfis do direito civil: introdução


ao direito civil-constitucional, p. 96).
43
“Preliminarmente, pode-se dizer que estrutura e função respondem a duas indagações que
se põem em torno ao fato. O ‘como é?’ evidencia a estrutura, ‘o para que serve?’ evidencia
a função” (PERLINGIERI. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil-constitucional,
p. 94).
44
O direito subjetivo nasceu atrelado à ideia de um poder conferido ao indivíduo para a
realização de seus próprios interesses sob a égide da já ultrapassada doutrina voluntarista
que reconhecia na autonomia um valor em si. O direito subjetivo, tal qual tradicionalmente
concebido, atendia aos propósitos individualistas e, por isso mesmo, não realiza os anseios
de uma sociedade solidária e instruída por valores personalistas, na qual reconhece-se que
as situações subjetivas em uma perspectiva funcional são complexas, alternando para as
partes que a conformam momentos de poder e de dever. Neste sentido, Pietro Perlingieri
resume a crise do direito subjetivo nos seguintes termos: “Este nasceu para exprimir um
interesse individual e egoísta, enquanto que a noção de situação subjetiva complexa confi-
gura a função de solidariedade presente ao nível constitucional” (PERLINGIERI. Perfis do
direito civil: introdução ao direito civil-constitucional, p. 121).
45
Sobre esta questão, Miguel Reale Júnior adverte que “se o contrato deve atender ao inte-
resse geral, não há contrato mais significativamente voltado ao interesse geral do que o
contrato de seguro. [...]. Nos contratos de seguro há uma comutatividade que decorre da
existência de um conjunto, da existência de um grupo social. Este grupo social é consti-
tuído pela comunidade dos segurados, que é a parte destinatária do seguro. [...]. Há um

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FERNANDA PAES LEME PEYNEAU RITO
NOTAS SOBRE O CONTRATO DE SEGURO NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
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A funcionalização do contrato de seguro é peculiarmente ca-


racterizada pela necessidade de compatibilização de três centros de
interesses: (i) do segurado e do segurador, em uma perspectiva indi-
vidual; (ii) do conjunto de segurados e do fundo por eles constituído,
em uma perspectiva coletiva interna e (iii) dos centros de interesses
acima descritos com o da coletividade externa.
Em outros termos, sendo o seguro um contrato comunitário, a
relação estabelecida entre seguradora e segurado deve atender não
apenas os objetivos perquiridos pelas partes em suas relações isoladas,
mas sim o fim almejado pelo conjunto de relações que compõem a
base mutuária do sistema, permitindo a sua própria existência e, além
desses, os objetivos socialmente relevantes, à medida que, além da sua
função econômica própria, o contrato de seguro deve atender a função
social dos contratos.46
Consequentemente, nos termos do art. 757 do Código Civil de
2002, apenas os riscos relativos a interesse legítimo predeterminados
no contrato de seguro é que são garantidos pelo segurador e ressarcí-
veis quando da eventualidade de ocorrência do sinistro. Isso porque o
interesse é o objeto mediato do seguro: quem contrata um seguro busca
tranquilidade, consubstanciada na certeza de que, na eventualidade de
ocorrência de um dano ou de determinada situação,47 as consequências
pecuniárias do evento serão neutralizadas pelo fundo constituído pelo
seguro, restando protegido o seu interesse.48

interesse geral de que esta comunidade seja atendida ao lado do interesse particular do
segurado” (REALE JÚNIOR. Função social do contrato: integração das normas do capítulo
XV com os princípios e as cláusulas gerais. In: FÓRUM DE DIREITO DO SEGURO “JOSÉ
SOLLERO FILHO”, 3., p. 47).
46
Nessa perspectiva, Úrsula Goulart afirma que a função social do contrato de seguro é “tri-
plamente pacificadora, vez que traz garantia para o segurado contratante, para o grupo
de segurados e, ainda, para os terceiros que contam com a existência e validade do seguro
firmado para ter a paz de contrair obrigações e realizar negócios jurídicos com o segurado,
sem receios de respingar-lhes as conseqüências do implemento de um risco não desejado”
(GOULART. O agravamento do risco no contrato de seguro, f. 43).
47
Não é correto afirmar que o sinistro sempre diga respeito a um dano, visto existirem situa­
ções cobertas por seguro que, na verdade, representam algo bom, usualmente observá-
vel no seguro de vida com cobertura por sobrevida no seguro de vida. Cf. SOUZA et al.
Dicionário de seguros: vocabulário conceituado de seguros, p. 136.
48
Gustavo Tepedino; Maria Celina Bodin de Moraes e Heloísa Helena Barboza, comentando
a definição insculpida no art. 757 do Código Civil de 2002, afirmam que “trata-se de defi-
nição que consolida o conceito unitário de contrato de seguro, abrangendo, em seu âmbito,
tanto os seguros de danos como os seguros de pessoas — isto é, da relação de valor exis-
tente entre o segurado e determinada coisa ou pessoa — como sendo objeto do contrato”
(TEPEDINO; BARBOZA; MORAES. Código Civil interpretado: conforme a Constituição da
República, v. 2, p. 561).

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
286 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Nesse sentido, a garantia oferecida pelo segurador na qualida-


de de prestação principal e, portanto, de objeto imediato do contrato,
desde o momento do aperfeiçoamento da avença, é que permite que
a segurança seja alcançada, independentemente da ocorrência ou não
do sinistro.49

3.1 Prêmio e risco: técnica securitária e natureza


comutativa do seguro
O prêmio e o risco figuram como elementos essenciais do contrato
de seguro tanto na definição do Código de 1916, como na do Código
de 2002, como, diga-se, não poderia deixar de ser. O primeiro é a prin-
cipal obrigação do segurado e consiste em uma prestação pecuniária
correspondente ao preço do risco coberto ou, como propõe Ernesto
Tzirulnik,50 o “prêmio é o preço da garantia”. Já o segundo, além de ser
a própria razão justificadora do contrato, delimita a abrangência deste.
Os dois, em conjunto, orientam a técnica securitária, visto que o
caráter oneroso é decorrência necessária da natureza comunitária do
seguro, e o risco, o parâmetro definidor da correspectividade51 entre
o prêmio pago pelo segurado e a garantia assumida pelo segurador.
Isso significa dizer que o risco não é o objeto do contrato, mas a causa
que o justifica.
A técnica securitária consiste precisamente na pulverização dos
riscos entre o conjunto de segurados a partir da constituição do fundo
comum. Assim, o seguro é fundamentado e viabilizado pelo mutua-
lismo, compreendido como a união de esforços para um fim comum.
Importante destacar que o mutualismo, assim como o seguro, não imu-
niza dos riscos, mas permite a minimização dos prejuízos decorrentes
da sua concretização, tendo em vista que, para suportá-los, é gerido um
fundo comum que congrega os prêmios de um universo de interesses
sujeitos ao mesmo risco.52

49
A garantia oferecida pelo segurador é “representada pela segurança e tranqüilidade que
é outorgada ao segurado, desde logo, pela contratação do seguro” (POLIDO. Contrato de
seguro: novos paradigmas, p. 132).
50
TZIRULNIK; CAVALCANTI; PIMENTEL. O contrato de seguro: de acordo com o novo
Código Civil brasileiro, 2. ed., p. 38.
51
“É o prêmio, também, elemento essencial do contrato, na medida em que representa, tecni­
camente, o valor do risco garantido, não sendo possível, sem ele, formar o fundo comum
necessário a fazer frente aos pagamentos das indenizações securitárias” (GOULART. O
agravamento do risco no contrato de seguro, p. 72).
52
“O segurador nada mais é do que um garante do risco do segurado, uma espécie de ava-
lista ou fiador dos prejuízos que dele podem decorrer. Tão forte é essa garantia que até

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FERNANDA PAES LEME PEYNEAU RITO
NOTAS SOBRE O CONTRATO DE SEGURO NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
287

Isso significa dizer que, no contrato de seguro, a álea, além de


não ser essencial, desaparece, visto que a incerteza quanto à ocorrência
de um evento futuro e incerto se torna certeza matemática a partir da
aplicação da Lei dos Grandes Números,53 desde que os riscos sejam
corretamente mensurados, o que requer a empresarialidade da enti-
dade seguradora e a predeterminação contratual dos riscos assumidos.
Por esta razão, o seguro só existe enquanto contrato comunitário,
cuja técnica específica é baseada no mutualismo, ou seja, na cooperação
implícita entre um conjunto de pessoas. Consequentemente, a obrigação
do segurador é de garantia e não de indenizar, tal como foi assentado
pelo legislador de 2002. Não existe álea, mas sim correspectividade
entre as obrigações assumidas por cada uma das partes em torno de
um risco predeterminado.
O que caracteriza um contrato como comutativo é a equivalência
entre as prestações. Esta persiste no contrato de seguro, entretanto, em
decorrência de suas peculiaridades, não é possível estabelecer uma
equivalência, por assim dizer, direta. Faz-se necessária a utilização de
um parâmetro ou fator de comparação. Este, no contrato de seguro, é
o risco. É do risco e do cálculo atuarial em torno da probabilidade de
sua concretização que derivam as prestações do contrato — prêmio e
garantia. Com isso não se está a confundir a natureza do contrato com
o setor ao qual pertence. Mas, sim, distinguindo o seguro do jogo e da
aposta.54
Entretanto, em virtude de ser a solidariedade endógena a própria
técnica securitária, alguns juristas declararam a natureza aleatória deste
contrato, olvidando que esta só subsiste a partir dessa cooperação que
não precisa ser declarada, já que não é necessário que um conjunto de
pessoas detentoras de interesses sujeitos ao mesmo risco se una para a

costuma-se dizer que o seguro transfere os riscos do segurado para o segurador. Na reali-
dade, não é bem isso o que ocorre. O risco, de acordo com as leis naturais, é intransferível.
Com o seguro ou sem seguro, quem continua exposto a risco é a pessoa ou coisa [...]. O que
o seguro faz é transferir as consequências econômicas do risco caso ela venha a se materia-
lizar em um sinistro” (CAVALIERI FILHO. Programa de responsabilidade civil, p. 437).
53
“Nessa técnica estatística singela e prosaica, reside o segredo do negócio jurídico de seguro.
Os riscos, aqueles eventos danosos que nos podem afetar no futuro, absolutamente impre-
visíveis quando os tratamos individualmente, ou em ocorrências de pequenas grandezas
numéricas, tornam-se matematicamente previsíveis quando os podemos referir a ‘grandes
números’ de ocorrências” (SILVA. Relações jurídicas comunitárias e direitos subjetivos. In:
FÓRUM DE DIREITO DO SEGURO “JOSÉ SOLLERO FILHO”, 1., p. 37).
54
No jogo e na aposta, a álea é essencial, visto que é o fator sorte que determinará a quem será
devido “o pagamento de certa soma em dinheiro, ou a entrega de certo objeto determina-
do, ao ganhador, conforme o resultado de um evento fortuito” (TEPEDINO; BARBOZA;
MORAES. Código Civil interpretado: conforme a Constituição da República, v. 2, p. 625).

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
288 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

constituição do fundo comum, podendo restar essa função de seleção


e agrupamento de tais interesses, a cargo da seguradora.
Contudo, esta conclusão deriva da análise meramente estrutural
do instituto, isso porque, quando observado isoladamente, o contrato de
seguro se apresenta, de fato, como aleatório: a incerteza quanto à pres-
tação do segurador é patente. Contudo, a análise funcional aponta a sua
natureza comutativa. Isso porque só pode ser qualificado como seguro
o contrato desenvolvido à luz da técnica securitária, que pressupõe a
existência de um conjunto de contratos objetivamente semelhantes,55
impondo assim a natureza comutativa do contrato.56
Em suma, embora seja impossível precisar qual dos segurados
sofrerá o sinistro, é possível calcular aproximadamente quantos sofrerão
e prestar, desde a celebração do contrato, a garantia de ressarcibilidade
dos prejuízos ou danos concretizados.57 Essa, ao que parece, foi a orien-
tação do legislador pátrio ao determinar como prestação principal da
seguradora o dever de garantia.

55
“Os contratos individuais, por meio dos quais os segurados aderem ao sistema, funcionam
como uma espécie de ‘contratos-meio’, como elementos formadores do contrato de seguro.
Este não poderá existir sem os contratos individuais que o formam; e nem essas relações
jurídicas individuais formarão um contrato de seguro se não se constituir, pela reunião
de uma infinidade de instrumentos deste tipo, o ‘contrato-fim’. Certamente os contratos
individuais não são apenas negócios instrumentais, como se fossem componentes de um
contrato complexo e servissem somente para formar o contrato unitário de seguro. Não
se trata disso. O que se pretende significar é que o contrato individual constituirá um ne-
gócio jurídico de seguro se o segurador contratar uma infinidade de contratos análogos”
(SILVA. Relações jurídicas comunitárias e direitos subjetivos. In: FÓRUM DE DIREITO DO
SEGURO “JOSÉ SOLLERO FILHO”, 1., p. 44).
56
Defende-se nessa sede a natureza comutativa do contrato de seguro, sendo a principal
obri­gação do segurado o pagamento do prêmio e da seguradora a garantia contra riscos
predeterminados. Contudo, merece destaque a reflexão da Ministra Nancy Andrigui sobre
essa questão: “Assim, a necessidade de segurança contra riscos que são individualmente
incertos leva um grupo de pessoas, sob a administração de uma seguradora, ao um esfor-
ço mútuo e recíproco para se precaver contra prejuízos que são coletivamente, e segundo
cálculos estatísticos, certos. Tal fato revela a natural dificuldade doutrinária de se classificar
um contrato que é individualmente aleatório, mas coletivamente comutativo” (STJ. 3ª T.
REsp. nº 988.044/ES, Rel. Min. Nancy Andrigui, j. 17.12.2009).
57
Ricardo Bechara Santos critica essa posição afirmando ser “equivocado o argumento de que
a sociedade seguradora, na medida em que exercendo sistematicamente a sua atividade na
função de gestora de um mutualismo do qual faz parte cada segurado, chegando a reunir
um fundo de prêmios suficiente para pagar os capitais segurados e estabelecendo um sis-
tema tal de provisionamento técnico que torna remota a sua insolvência, liberaria por isso
mesmo o contrato de seguro de seu caráter aleatório. Nada mais equivocado e anacrônico,
porque o contrato de seguro é aleatório mesmo por sua própria natureza [...] porque, desas-
sombradamente, os ganhos e as perdas das partes, por mais atuarial que seja a atividade da
seguradora, por mais que se faça resseguro, co-seguro, retrocessão, estão na dependência
de circunstâncias futuras e incertas do risco” (SANTOS. Direito de seguro no cotidiano: coletâ-
nea de ensaios jurídicos, p. XXIII).

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FERNANDA PAES LEME PEYNEAU RITO
NOTAS SOBRE O CONTRATO DE SEGURO NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
289

Ademais, não fosse o contrato comutativo, mas, sim, aleatório,


qual seria a justificativa para a possibilidade de revisão deste ante a
alteração do risco coberto? Não seria, pois, natural, que essa variação
integrasse a álea, se esta fosse essencial ao contrato?

3.2 O seguro de responsabilidade civil


Em uma fase na qual os danos se multiplicam e a sociedade
não aceita vítimas sem reparação, o seguro de responsabilidade civil
transmite a ideia de dever social.58 Isso porque, ao contrário dos demais
tipos de seguro, o de responsabilidade civil tem por fim a reparação de
um dano sofrido por terceiro. Claro que pressupõe a responsabilidade
do segurado e, sobretudo, encerra uma proteção ao seu próprio
patrimônio.
Mas, se “há, cada vez mais, solidariedade na culpa (todos somos
culpados) e solidariedade nos danos (todos causamos danos)”,59 o ideal
seria que houvesse, igualmente, mais solidariedade na reparação, e os
seguros de responsabilidade civil se prestam a essa função.
Inquestionável é a opção do constituinte em reparar integralmen-
te a vítima de um dano injusto. Consequentemente, foram introduzidas
na legislação civil cláusulas gerais de responsabilidade civil, assim como
o princípio da reparação integral do dano. Nesse contexto, a introdução
do seguro de responsabilidade civil é tão representativa. Isso porque,
em que pese não ser propriamente uma inovação, já que, em que pese o
Código Civil de 1916 não ter regulamentado esta modalidade de seguro,
esta já se fazia presente, disciplinado pelo Decreto-Lei nº 73, de 1966,
reforça a possibilidade de reparação dos danos injustos.
O seguro de responsabilidade civil, como gênero, consiste em um
contrato pelo qual o segurado, mediante o pagamento de um prêmio,
transfere para o segurador as consequências econômicas de eventual
responsabilidade sua em indenizar terceiros.60 Não instrumentaliza uma
transferência de responsabilidade do segurado para o segurador, assim
como não se confunde com uma cláusula de não indenizar.

58
POLIDO. Contrato de seguro: novos paradigmas, p. 191.
59
SCHREIBER. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à
diluição dos danos, p. 213.
60
Segundo Carlos Roberto Gonçalves, o seguro de responsabilidade civil “compreende a co-
bertura ao segurado pelas indenizações que ele eventualmente seja obrigado a pagar por
danos causados a terceiros, resultantes de atos ilícitos, independentemente de ter ou não
agido culposamente” (GONÇALVES. Direito civil brasileiro, p. 489).

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
290 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Ao contrário, o seguro operacionaliza tão somente a transferência


das consequências econômicas do sinistro para o segurador, nos exatos
limites da cobertura contratada e, sendo assim, reforça a possibilidade
de satisfação do crédito da vítima. O responsável por eventual dano
causado a terceiro continua sendo o ofensor,61 individualizado pelo
nexo de causalidade entre a ação ou omissão e o dano.
Entretanto, as verbas reparatórias sairão do fundo constituído
pela seguradora e não do patrimônio do ofensor, exatamente porque,
adotando o princípio da prevenção, este último (ofensor), antes mesmo
do evento danoso, já havia transferido parcela do seu patrimônio, a
título de prêmio, para a seguradora.
Não se trata, portanto, de exoneração da responsabilidade do
ofensor que permanece subsidiariamente responsável na hipótese de
insolvência do segurador62 e diretamente responsável na hipótese de a
cobertura contratada se mostrar insuficiente para a reparação integral
do dano. Mas, sim, de reforço da possibilidade de satisfação do crédito
da vítima.
Originalmente, os danos causados injustamente diziam respeito
exclusivamente aos sujeitos daquela relação e, sendo assim, estavam
afastados da lógica da solidariedade mecânica, exatamente porque
acreditava-se que somente a consciência individual restava abalada.
Assim, caberia ao particular exigir ou não a sua reparação. Contudo,
a evolução em direção a uma sociedade de risco impôs a relativização
dessa lógica, na medida em que os danos passaram então a repercutir
negativamente na coletividade.63
Assim, não só o instituto da responsabilidade civil, mas, sobre-
tudo, o seguro de responsabilidade civil passa a desempenhar papel
primordial na realização da pacificação social, atuando na minimização
do desfazimento do prejuízo sistêmico e global que diretamente atinge
uma pessoa, mas indiretamente afeta a sociedade como um todo.
Entretanto, há de se reconhecer a existência de certa gradação
no afetamento coletivo, sendo certo que algumas espécies de danos,

61
“O seguro de responsabilidade civil não é uma convenção sobre as conseqüências da res-
ponsabilidade, pois aquele que pratica o ato danoso continuará a ser o responsável pela
ofensa causada à vítima, o que haverá é apenas a transferência das conseqüências patrimo-
niais (ressarcimento do prejuízo causado)” (PIMENTA. Seguro de responsabilidade civil, p. 96).
62
Nos termos do §4º do art. 787 do Código Civil.
63
“Qualquer dano causado a outra pessoa gera conflito social, pois que repercute na socie-
dade como um todo. Dificilmente uma pessoa é afetada sozinha, quando prejudicada por
um dano. A família sofrerá privações, a partir do momento em que seu provedor deixar
de exercer a atividade que a sustenta; cada cidadão é um elo que afeta toda a sociedade
organizada — o plexo social” (POLIDO. Contrato de seguro: novos paradigmas, p. 191-192).

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NOTAS SOBRE O CONTRATO DE SEGURO NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
291

em virtude de apresentarem grande probabilidade de ocorrência e


potencialmente atingirem um contingente elevado de pessoas, reper-
cutem mais direta e intensamente na coletividade do que outros danos
despidos de tais características.
Estas observações justificam a bipartição do seguro de respon-
sabilidade civil em obrigatório e facultativo, orientada genericamente
pela constatação de que os primeiros, por abarcarem os danos que
afetam a coletividade, requerem uma atuação preventiva e proativa
do Estado, ao passo que os do segundo grupo, por englobarem danos
afeitos a situações mais circunscritas e de menor irradiação — incidentes
apenas tangencialmente na consciência coletiva — podem ser deixados
a cargo da autonomia privada, restando ao Estado intervir apenas na
sua regulamentação.
Tradicionalmente, afirmava-se que no âmbito dos seguros obri-
gatórios de responsabilidade civil o interesse legítimo primordialmente
protegido era o da vítima em ter ressarcido o dano sofrido e, apenas
subsidiariamente, protegia-se o interesse patrimonial do ofensor. Já no
campo dos seguros facultativos, a racionalidade seria inversa: protegia-­
se primeiramente o interesse patrimonial do segurado, ou seja, daquele
que voluntariamente contratou o seguro e, residualmente, o interesse
da vítima.
A partir dessa distinção, estabeleceu-se a controvérsia doutrinária
e jurisprudencial acerca da legitimidade ativa da vítima para acionar
diretamente a seguradora para a obtenção da reparação pelo dano
causado por um segurado.64 Essa controvérsia é anterior ao Código
de 2002, entretanto, a partir de uma leitura conferida ao princípio da
função social dos contratos, acabou por ser retomada com novas bases
argumentativas.65

64
Ressalva-se que esta discussão diz respeito somente ao seguro facultativo de responsabi-
lidade civil, já que para os obrigatórios o legislador expressamente determinou que “a in-
denização por sinistro será paga pelo segurador diretamente ao terceiro prejudicado”, nos
termos do art. 788 do CC/2002: “Nos seguros de responsabilidade legalmente obrigatórios,
a indenização por sinistro será paga pelo segurador diretamente ao terceiro prejudicado.
Parágrafo único. Demandado em ação direta pela vítima do dano, o segurador não poderá
opor a exceção de contrato não cumprido pelo segurado, sem promover a citação deste
para integrar o contraditório”.
65
Essa discussão, a bem da verdade, é anterior ao Código de 2002, de sorte que o Tribunal
de Justiça de Santa Catarina, em julgado de junho de 1999, evocando a função social do
contrato, decidiu pela procedência da ação indenizatória ajuizada pela vítima do segurado
face diretamente à seguradora, merecendo especial destaque os seguintes trechos da de-
cisão: “Pela inafastável função social que o seguro encerra nos dias atuais [...], há que se
admitir o ajuizamento da ação de ressarcimento de danos diretamente contra o proprietário
do automotor causador do acidente como também contra a seguradora, circunscrita a res-
ponsabilidade desta às lindes do contrato de seguro. [...]. De fato, não se ignora o princípio

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292 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Ante ao silêncio do legislador no tocante aos seguros facultativos,


duas posições diametralmente opostas emergiram em torno da questão
de o seguro de responsabilidade civil consistir ou não em uma estipu-
lação em favor de terceiro.66 Esta última, tal como disciplinada pelo
Código Civil,67 representa um contrato sui generis,68 em que a prestação
é realizada em favor de terceiro, e não do próprio contratante.
De um lado, em defesa da ilegitimidade ativa da vítima, Sérgio
Cavalieri69 e Ricardo Bechara,70 dentre outros, argumentam que o segu-
ro de responsabilidade civil facultativo visa resguardar o patrimônio
do próprio segurado em vista de possíveis consequências econômicas
decorrentes de um dano provocado a outrem. Assim, o próprio segu-
rado é o beneficiário do contrato, vigorando na hipótese a teoria do
reembolso,71 pela qual o segurado paga diretamente à vítima o valor
correspondente à reparação do dano e, posteriormente, aciona a segu-
radora para reembolsar-lhe de tal despesa, nos limites da cobertura
contratada.

de direito civil segundo o qual o contrato, em regra, só produz efeitos entre as partes nele
avençadas. Menciona-se de regra, porquanto, no caso vertente, há que se abrir uma relevan-
tíssima exceção [...]. A função social do seguro é, pois, o fundamento primordial e inafastável
para o agasalhamento da tese tendente a viabilizar, em juízo, em caso de seguro facultativo,
o acionamento direto da seguradora, para, nos limites do contrato, de modo solidário com
o segurado, ser satisfeita a indenização pertinente”. (TJSC, 4ª CC. Agr. Inst. nº 99.004.384-3
(Araranguá), Rel. Des. Pedro Manoel Abreu, j. 30.6.1999).
66
Na verdade, essa discussão se desdobra em várias outras, como exemplo, a necessidade
ou não de litisconsórcio passivo (cf. ALVIM. O seguro e o novo Código Civil, p. 144.); necessi-
dade de alteração legislativa para inclusão de nova hipótese de chamamento ao processo
(CARNEIRO et al. Seguros: uma questão atual, p. 93) etc. Nesta sede, contudo, importa
apenas verificar se o direito material suporta a ação direta da vítima contra o segurador.
67
A estipulação em favor de terceiro foi disciplinada no título dos contratos em geral (título
V) do livro de obrigações (livro I), em que, no parágrafo único do art. 436, é assegurado “ao
terceiro, em favor de quem se estipulou a obrigação, [...] exigi-la, ficando, todavia, sujeito
às condições e normas do contrato, se a ele anuir, e o estipulante não o inovar nos termos
do art. 438”.
68
Em que pese as diversas teses acerca da natureza jurídica da estipulação em favor de ter-
ceiro, adota-se a que reconhece a sua natureza contratual, tendo em vista que o próprio
legislador utilizou a expressão contrato nos três dispositivos que disciplina a matéria.
Neste sentido se posiciona Carlos Roberto Gonçalves ao afirmar que “a teoria mais aceita,
finalmente, é a que considera a estipulação em favor de terceiro um contrato, porém sui
generis pelo fato de a prestação não ser realizada em favor do próprio estipulante, como
seria natural, mas em benefício de outrem, que não participa da avença” (GONÇALVES.
Direito civil brasileiro, p. 98).
69
CAVALIERI FILHO. Programa de responsabilidade civil.
70
SANTOS. Direito de seguro no cotidiano: coletânea de ensaios jurídicos.
71
Ricardo Bechara Santos afirma que o seguro de responsabilidade civil é, por excelência,
um seguro de reembolso “em que, primeiro, há de se caracterizar a responsabilidade civil
do segurado e o pagamento pelo mesmo despendido para, depois, assegurar-lhe o direito
de reembolso junto ao segurador, que é chamado à liça” (SANTOS. Direito de seguro no
cotidiano: coletânea de ensaios jurídicos, p. 507).

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NOTAS SOBRE O CONTRATO DE SEGURO NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
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Frisam ainda que, diversamente do que é observado nos segu-


ros obrigatórios, a vítima sequer figura como beneficiária do contrato,
sendo totalmente estranha à relação estabelecida entre segurador e
segurado, disto resultando sua ilegitimidade. Sobre esse ponto, Sérgio
Cavalieri conclui que “a relação jurídica da vítima é com o causador
do dano, fundada na responsabilidade extracontratual, ato ilícito, e
não no contrato de seguro”.72 Antonio L. Montenegro chega a afirmar
peremptoriamente que a “lei veda ao terceiro, vítima do dano causado
por culpa do titular de uma apólice de seguro, processar diretamente
a seguradora nos casos de seguros facultativos”.73
Essa argumentação, embora coerente em seus próprios termos,
reflete tão somente uma análise reducionista e estrutural do seguro de
responsabilidade civil. Reducionista porque se ocupa apenas de dois
dispositivos do Código Civil, olvidando que a disciplina securitária é
muito mais ampla. Estrutural porque prioriza a forma em detrimento
do conteúdo do seguro, descuidando ainda que o princípio da função
social do contrato, como preconiza o Enunciado nº 21 do Conselho
de Justiça Federal, impõe “a revisão do princípio da relatividade dos
efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a tutela externa
do crédito”.
A disciplina jurídica do contrato de seguro apresenta uma
complexidade própria, visto que a sua regulamentação é difusa entre
o Código Civil, Código de Defesa do Consumidor e o Decreto-Lei
nº 73, de 21.11.1966, além das normas expedidas pelo órgão fiscalizador.
Assim, a falta de disciplina expressa no Código Civil não autoriza afir-
mar que trata-se de vedação legal, nem mesmo de omissão legislativa,
indicando tão somente que a solução deve ser buscada no conjunto
normativo que regulamenta a matéria, a partir de uma interpretação
sistêmica e funcionalizada.
Inicialmente, destaca-se que o ordenamento jurídico brasileiro
admite expressamente a ação direta da vítima contra o segurado em
hipótese de seguro facultativo de responsabilidade civil por acidentes
provocados por veículos automotores de via terrestre.74 Essa previsão
já seria suficiente para uma exegese construtiva a partir da analogia.

72
CAVALIERI FILHO. Programa de responsabilidade civil, p. 470.
73
MONTENEGRO. Responsabilidade civil, p. 475.
74
Lei nº 6.194/74, art. 9º. “Nos seguros facultativos de responsabilidade civil dos proprietários
de veículos automotores de via terrestre, as indenizações por danos materiais causados a
terceiros serão pagas independentemente da responsabilidade que for apurada em ação
judicial contra o causador do dano, cabendo à Seguradora o direito de regresso contra o
responsável.”

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294 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Mas, além dessa, destaca-se o §4º, do art. 787, do Código Civil, que ao
determinar a responsabilidade subsidiária do segurado na hipótese de
insolvência do segurador, indica claramente que o segurador pode ser
acionado previamente ao segurado, autor do dano.75
A despeito da existência de específico suporte material para a
ação direta da vítima, a questão que sobreleva em importância diz
respeito à axiologia constitucional direcionada a beneficiar a vítima,
especialmente na situação em comento, em que nem mesmo o interesse
patrimonial do segurado está em jogo.76 De fato, recusar a ação direta da
vítima significa priorizar um formalismo que, não sendo relativizado,
pode vir a operar, no extremo do contínuo, a situação inaceitável de a
vítima restar irressarcida em que pese a identificação do causador do
dano e da existência de um seguro de responsabilidade civil.
Melissa Pimenta ilustra essa situação com a hipótese de o segura-
do não indenizar a vítima em decorrência de insolvência, por exemplo.
Neste caso não haveria a obrigação do segurador em reembolsar — já
que ausente qualquer desembolso por parte do segurado —, e possi-
bilitaria, por um lado, que a vítima restasse desamparada e, por outro,
“um ‘enriquecimento sem causa’ por parte do segurador, pois, mesmo
após o reconhecimento da responsabilidade do segurado, não haveria
o pagamento da indenização”.77
Essa foi a tese sustentada pelo então Ministro Eduardo Ribeiro
que, em voto-vista, afastou da discussão a controvertida questão de ser
o contrato de seguro uma estipulação em favor de terceiro, assentando
que a ação direta da vítima é coerente com os princípios informadores
do ordenamento jurídico, visto contribuir para que a vítima não reste
irressarcida e, também, para evitar um possível enriquecimento inde-
vido do segurador.78

75
Cf. ARMELIN. A ação direta da vítima contra a seguradora de responsabilidade civil:
fundamentos e regimes das exceções. In: FÓRUM DE DIREITO DO SEGURO “JOSÉ
SOLLERO FILHO”, 3., p. 169-188; TZIRULNIK; CAVALCANTI; PIMENTEL. O contrato de
seguro: novo Código Civil brasileiro, p. 147.
76
Sobre esta questão, Donaldo Armelin afirma que “se o seguro, como afirma os arts. 757 e 787
do novo Código Civil, é garantia, e mais, garantia em que o garante não faz jus a reclamar
do garantido qualquer reparação, não haverá porque obstar a vítima a exigir do garante
que honre a garantia efetuando o pagamento a que se obrigou perante o segurado, quem
suportou o prejuízo” (ARMELIN. A ação direta da vítima contra a seguradora de responsa-
bilidade civil: fundamentos e regimes das exceções. In: FÓRUM DE DIREITO DO SEGURO
“JOSÉ SOLLERO FILHO”, 3., p. 169-188).
77
PIMENTA. Seguro de responsabilidade civil, p.140.
78
“A tese de que se trataria de estipulação em favor de terceiro pode-se dizer superada, pois
evidentemente artificiosa. [...]. Não obstante a ausência de texto legal explícito que permita
afirmar a viabilidade da ação direta, ganha força a corrente que admite exija a vítima, da

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NOTAS SOBRE O CONTRATO DE SEGURO NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
295

Mas, a questão está longe de ser pacificada. Em um primeiro


momento, o Superior Tribunal de Justiça havia assentado o entendi-
mento de que, mesmo na hipótese de seguro facultativo, a vítima teria
legitimidade ativa para propor ação direta em face da seguradora, sob
o fundamento dos princípios da solidariedade social e da função social
do contrato.79
Recentemente, entretanto, a Segunda Seção do STJ,80 em julga-
mento de recurso repetitivo e com efeitos de repercussão geral, firmou
o entendimento de que descabe ação direta do terceiro vítima em face
da seguradora, já que a obrigação desta última pressupõe a responsa-
bilidade civil do segurado, que só poderá ser reconhecida em processo
no qual este intervenha, sob pena de violação do devido processo
legal. Além disso, prevaleceu a tese de que a obrigação da seguradora
sujeita-se à condição suspensiva de verificação da responsabilidade do
segurado e não da ocorrência do sinistro.
Ao que tudo indica, à vítima não será reconhecida legitimidade
para ingressar diretamente em face da seguradora, para ver ressarcido
um dano provocado por um segurado. Esta solução, em que pese ser
formal e estruturalmente correta, não nos parece ser a mais adequa-
da. Isto porque, de uma interpretação funcionalizada do contrato de
seguro conclui-se que toda a regulamentação do gênero foi orientada
“pela ideia fundamental de que, no seguro de responsabilidade civil,
a garantia ampara o terceiro e não o segurado”.81

seguradora, o pagamento da indenização, embora com ela não haja contratado. Há forte ten-
dência a não permitir que os danos injustamente sofridos fiquem sem reparação. E, no caso,
cumpre reconhecer, se o causador do dano for insolvente e a seguradora se recusar a pagar
diretamente à vítima, a conseqüência será ficar última sem ressarcimento, enriquecendo-se a
seguradora que, a final, haveria realmente de arcar com o pagamento. [...]. Cumpre reconhe-
cer que essa é a melhor solução e que se encontra coerente com os princípios que informam o
ordenamento [...]” (STJ, 3ª T. REsp. nº 228.840, Min. Eduardo Ribeiro, voto-vista, j. 26.6.2000).
79
“A visão preconizada nestes precedentes abraça o princípio constitucional da solidariedade
(art. 3º, I, da CF), em que se assenta o princípio da função social do contrato, este que ganha
enorme força com a vigência do novo Código Civil (art. 421). De fato, a interpretação do
contrato de seguro dentro desta perspectiva social autoriza e recomenda que a indenização
prevista para reparar os danos causados pelo segurado a terceiro, seja por este diretamente
reclamada da seguradora. Assim, sem se afrontar a liberdade contratual das partes — as
quais quiseram estipular uma cobertura para a hipótese de danos a terceiros — maximiza-­
se a eficácia social do contrato com a simplificação dos meios jurídicos pelos quais o preju-
dicado pode haver a reparação que lhe é devida. Cumpre-se o princípio constitucional da
solidariedade e garante-se a função social do contrato” (STJ, 3ª T. REsp. nº 444.716/BA, Rel.
Min. Nancy Andrighi, DJ, p. 300, 11 maio 2004).
80
STJ. Informativo nº 490, de 1º a 10 de fevereiro de 2012.
81
ALVIM. O seguro e o novo Código Civil, p. 143.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
296 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Isso porque, compreendida que a função social da responsa-


bilidade civil abarca uma dupla garantia consubstanciada na correta
apuração da responsabilidade e, também, na garantia da solução
reparatória,82 destas o seguro de responsabilidade civil, instrumento
daquela, não poderia se apartar. E, nesse sentido, imperioso faz-se
reconhecer a legitimidade ativa da vítima para acionar diretamente a
seguradora do autor da lesão.

4 Considerações finais
Pretendeu-se, com o presente estudo, contribuir para a análise
do contrato de seguro na contemporaneidade que, assim como todos os
institutos e categorias jurídicas, deve ser submetido a uma interpretação
funcionalizada aos valores socialmente relevantes, tendo em vista o
paradigma personalista e solidarista, adotado pela Constituição de 1988.
Buscou-se demonstrar que os princípios inspiradores do Código
Civil de 2002, inegavelmente, decorrem da opção constituinte, mas que,
cumpre a doutrina e a jurisprudência, continuar a traçar o necessário
caminho do progresso jurídico. Para tanto, deve-se utilizar a abertura
conferida ao sistema pela técnica legislativa da cláusula geral, concreti-
zando os conceitos jurídicos indeterminados à luz de uma interpretação
constitucionalizada.
O contrato de seguro, além de ser eminentemente comunitário,
já que fundado em bases solidárias a partir do mutualismo, apresenta-­
se como campo fértil para a concretização de tais valores. O legislador
de 2002, ao alterar qualitativamente o conceito do contrato de seguro,
contribuiu sobremaneira para isto, não cabendo ao operador do direi-
to, arraigado em um formalismo exacerbado, pretender interpretar as
regras estatuídas dissociadamente dos valores do ordenamento.

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82
TZIRULNIK; CAVALCANTI; PIMENTEL. O contrato de seguro: novo Código Civil brasilei-
ro, p. 133.

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Código Civil interpretado: conforme a Constituição da República. Rio de Janeiro: Renovar,
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TZIRULNIK, Ernesto; CAVALCANTI, Flávio de Queiroz B.; PIMENTEL, Ayrton. O
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

RITO, Fernanda Paes Leme Peyneau. Notas sobre o contrato de seguro no


Código Civil de 2002. In: EHRHARDT JR., Marcos (Coord.). Os 10 anos do
Código Civil: evolução e perspectivas. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 271-298.
ISBN 978-85-770-616-8.

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DISCIPLINA JURÍDICA DO JOGO E
APOSTA NO SISTEMA BRASILEIRO

PABLO STOLZE GAGLIANO


RODOLFO PAMPLONA FILHO

1 Introdução
“Quer apostar comigo?”
Esta frase, tão comum no nosso dia a dia, é o início de uma pro­
pos­ta para a celebração de uma modalidade contratual típica, prevista
no sistema codificado brasileiro desde a época da codificação de 1916.
Trata-se do contrato de aposta, que é tratado, juntamente com
o contrato de jogo, nos arts. 814/817, CC-02 (correspondente aos arts.
1.477/1.480, CC-16, com aperfeiçoamentos), em uma reunião de dois
contratos afins na mesma disciplina jurídica, tal qual também feito —
em linha semelhante, posto não igual — na regulação dos contratos de
agência e distribuição, previstos nos arts. 710/721 da vigente codificação
civil (sem correspondente no sistema anterior).
Feito tal registro inicial de afirmação da dualidade contratual na
mesma normatização, passemos a conceituar tais figuras contratuais.

2 Conceito
Como dito, a previsão dos arts. 814/817, CC-02, regula duas fi-
guras jurídicas com conceitos distintos, mas com evidentes afinidades.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
300 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

De fato, o contrato de jogo pode ser definido como o negócio ju-


rídico por meio do qual duas ou mais pessoas prometem realizar determinada
prestação (em geral, de conteúdo pecuniário) a quem conseguir um resultado
favorável na prática de um ato em que todos participam.
Registre-se, portanto, que o jogo (e, consequentemente, o sucesso
ou fracasso de cada parte) depende necessariamente da atuação de cada
sujeito (chamado jogador), seja por sua inteligência, habilidade, força
ou, simplesmente, sorte.
Já o contrato de aposta é o negócio jurídico em que duas ou mais
pessoas, com opiniões diferentes sobre certo acontecimento, prometem realizar
determinada prestação (em geral, de conteúdo pecuniário) àquela cuja opinião
prevalecer.
Na aposta, portanto, não se exige uma participação ativa de cada
sujeito (chamado apostador), contribuindo para o resultado do evento,
mas, sim, apenas, a manifestação de sua opinião pessoal.
A proximidade entre os dois institutos, porém, é evidente, no-
tadamente pelo elemento comum da álea que os envolve, pois, apenas
para recordar o velho clássico da corrida entre a lebre e a tartaruga, nem
sempre o mais habilidoso ou capaz vence uma competição...
Há tanta afinidade entre eles que, na prática, muitas vezes acaba-
mos fazendo referência a um, quando pretendemos utilizar o outro. É
o caso, por exemplo, quando dois amigos dizem “vamos apostar uma
corrida?”. Isso, na verdade, não é propriamente uma aposta, mas, sim,
um jogo, pois depende da participação efetiva dos contendores (habili-
dade, força ou velocidade) e não somente da sua sorte. Da mesma forma,
fala-se em “jogar nos cavalos”, quando o indivíduo está realizando, de
fato, apostas em corridas em um hipódromo.
Outros elementos marcantes, que demonstram o traço comum en-
tre os dois institutos, são a inexigibilidade das prestações deles advindas
e a irrepetibilidade do pagamento efetuado por sua causa,1 dados estes
que evidenciam, a toda prova, a sua natureza de obrigações naturais.2
É o que se infere do art. 814, caput e §1º, do CC-02 (correspondente
ao art. 1.477, caput e parágrafo único, CC-16):

1
Lembremos que a irrepetibilidade é a característica de impossibilidade de devolução da
prestação havida, o que é próprio de uma relação obrigacional efetivamente devida, como
o são as obrigações naturais.
2
Sobre o tema, confira-se o Capítulo VI (Obrigação natural) do v. II (Obrigações) do nosso
Novo curso de direito civil, 8. ed.

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PABLO STOLZE GAGLIANO, RODOLFO PAMPLONA FILHO
DISCIPLINA JURÍDICA DO JOGO E APOSTA NO SISTEMA BRASILEIRO
301

Art. 814. As dívidas de jogo ou de aposta não obrigam a pagamento; mas


não se pode recobrar a quantia, que voluntariamente se pagou, salvo se
foi ganha por dolo, ou se o perdente é menor ou interdito.3
§1º Estende-se esta disposição a qualquer contrato que encubra ou
envolva reconhecimento, novação ou fiança de dívida de jogo; mas a
nulidade resultante não pode ser oposta ao terceiro de boa-fé.

A ressalva do caput é imperfeita e inadequada,4 pois somente


abre exceção para o dolo quando, por uma questão de lógica e justiça,
também podem ser invocados os demais vícios de consentimento,
como o erro, a coação, o estado de perigo e a lesão, além dos vícios
sociais da fraude contra credores e a própria simulação (esta última
hipótese de nulidade absoluta).5 Além disso, sendo o perdente menor
ou interdito, a hipótese é de incapacidade, o que também invalidaria
o negócio jurídico.6
Interessante, porém, é a menção do §1º, pois estende a inexigi-
bilidade e a irrepetibilidade a todo e “qualquer contrato que encubra
ou envolva reconhecimento, novação ou fiança de dívida de jogo”, o
que nos parece medida das mais razoáveis, pois harmoniza-se com a
característica da inexigibilidade jurídica deste tipo de obrigação, sem
prejudicar os interesses dos terceiros de boa-fé.
Estabelecida a distinção conceitual e os elementos de aproxima-
ção entre as duas figuras, cabe-nos compreender agora a sua natureza
jurídica.

3
Norma equivalente é encontrada, por exemplo, no Código Civil italiano, que preceitua, em
seu art. 1933:
“1933. Mancanza di azione. [I]. Non compete azione per il pagamento di um debito di
giuoco o di scommessa, anche se si tratta di giuoco o di scommessa no proibiti [718 c.p.].
[II]. Il perdente tuttavia non può ripetere quanto abbia spontaneamente pagato dopo
l’esito di um giuoco o di uma scommessa in cui non vi sia stata alcuna frode [2034]. La
ripetizione è ammessa in ogni caso se il perdente è um incapace.”
4
Bem mais técnico, em nossa opinião, é o Código Civil português, ao preceituar, em seu art.
1245º, que o “jogo e a aposta não são contratos válidos nem constituem fonte de obrigações
civis; porém, quando lícitos, são fonte de obrigações naturais, excepto se neles concorrer
qualquer outro motivo de nulidade ou anulabilidade, nos termos gerais de direito, ou se
houver fraude do credor em sua execução”.
5
Sobre o tema, confira-se o capítulo XIII (Defeitos do negócio jurídico) do v. 1 (Parte geral)
do nosso Novo curso de direito civil, 9. ed.
6
Confira-se o capítulo XIV (Invalidade do negócio jurídico) do (v. 1. Parte geral), do nosso
Novo Curso de direito civil, 9. ed.

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302 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

3 Natureza jurídica
Fixados os conceitos básicos sobre jogo e aposta, parece-nos
relevante, neste momento, reafirmar a sua natureza jurídica contratual.
De fato, apesar de inseridos no Título VI (Das Várias Espécies
de Contrato), o fato de a lei negar alguns efeitos aos contratos de jogo
e aposta, como a inexigibilidade de suas prestações, faz com que haja pro-
funda controvérsia doutrinária em seu derredor.
Isso decorre, por certo, da concepção tradicional de que tanto
o jogo quanto a aposta eram condutas socialmente indesejáveis, de-
sagregadoras do ambiente familiar, pelo estabelecimento de posturas
viciadas e possibilidade de ruína do patrimônio dos seus envolvidos.
Nessa linha, a condição de obrigação natural, em que não há
exigibilidade judicial do conteúdo pactuado, faz com que a ideia de um
contrato, no sentido de autodeterminação da vontade para a produção
de efeitos, seja muito mal vista por setores da doutrina.
Afirma, por exemplo, Sílvio Rodrigues:

O Código Civil cuida do jogo e da aposta dentro do terreno dos contratos


nominados, ao mesmo tempo que nega a esses ajustes qualquer dos
efeitos almejados pelas partes, o que constitui uma contradição.
Se o jogo e a aposta fossem um contrato, seriam espécie do gênero ato
jurídico, gerando, por conseguinte, os efeitos almejados pelos contra-
tantes. Se isso ocorresse, seria justa sua disciplinação entre os contratos.
Todavia, tanto o jogo lícito quanto a aposta não são atos jurídicos, posto
que a lei lhes nega efeitos dentro do campo do direito. Assim, não
podem ser enfileirados entre os negócios jurídicos e, por conseguinte,
entre os contratos.7

A crítica, em nosso sentir, embora bem fundamentada, não deve


prevalecer.
A condição de obrigação natural não descaracteriza a figura
contratual.
A relação jurídica de direito material existe e é válida, tendo apenas
limitados alguns dos seus efeitos, por uma opção do legislador, calcado
em um (pre)conceito social, positivando valores, conduta que deve ser
respeitada. Todavia, negar a natureza contratual a um acordo de vonta-
des que produz efeitos, ainda que restritos, nos parece fazer sobrepujar
o preconceito à norma e à efetiva aceitabilidade social do instituto.

7
RODRIGUES. Direito civil, 25. ed., v. 3.

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DISCIPLINA JURÍDICA DO JOGO E APOSTA NO SISTEMA BRASILEIRO
303

Ademais, por outro lado, pretensões prescritas, por exemplo,


não invalidam os contratos em que se fundam, mesmo se há a perda
da exigibilidade judicial de algumas ou de todas as suas prestações.
Isso mostra que a produção limitada de efeitos não retira a natureza
contratual de um acordo de vontades para a produção de determinado
resultado.
Em síntese, posto que entendamos a limitação dos seus efeitos
jurídicos, justificada pela natureza peculiar desses institutos, não ne-
gamos, outrossim, a sua natureza eminentemente contratual.
Parece-nos interessante também, no que diz respeito à natureza
jurídica, diferenciar o jogo e a aposta da promessa de recompensa.
Nas modalidades aqui estudadas, temos um negócio jurídico
que potencialmente produzirá uma obrigação natural. Já na promessa
de recompensa, o que há é uma declaração unilateral de vontade, sem
destinatário determinado, mas que faz surgir um direito, plenamente
exigível, se atendida a condição ou desempenhado o serviço es­ta­
belecido.8

4 Espécies de jogo
Antes de abordar as características básicas dos contratos de jogo
e aposta, parece-nos relevante fazer algumas considerações sobre as
espécies de jogo.
Com efeito, o jogo pode ser classificado como ilícito (ou proibido) e
lícito, sendo que estes últimos se subdividem em tolerados ou autorizados
(legalmente permitidos).
Os jogos ilícitos, como é intuitivo, são aqueles vedados expres-
samente por normas legais.
Neste diapasão, o Decreto-Lei nº 3.688, de 3.10.1941 (conhecido
como a Lei das Contravenções Penais), estabelece, em seus arts. 50/58,9
diversas condutas típicas ensejadoras da persecução criminal.

8
Sobre o tema da promessa de recompensa, confira-se o Capítulo XXVII (Atos Unilaterais)
do v. II (Obrigações) do nosso Novo curso de direito civil, 8. ed.
9
Art. 50. Estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessível ao público,
mediante o pagamento de entrada ou sem ele:
Pena – prisão simples, de três meses a um ano, e multa, de dois a quinze contos de réis,
estendendo-se os efeitos da condenação à perda dos móveis e objetos de decoração do
local.
§1º A pena é aumentada de um terço, se existe entre os empregados ou participa do jogo
pessoa menor de dezoito anos.
§2º Incorre na pena de multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis, quem é encontrado
a participar do jogo, como ponteiro ou apostador.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
304 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

§3º Consideram-se jogos de azar:


a) o jogo em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte;
b) as apostas sobre corrida de cavalos fora de hipódromo ou de local onde sejam autorizadas;
c) as apostas sobre qualquer outra competição esportiva.
§4º Equiparam-se, para os efeitos penais, a lugar acessível ao público:
a) a casa particular em que se realizam jogos de azar, quando deles habitualmente partici-
pam pessoas que não sejam da família de quem a ocupa;
b) o hotel ou casa de habitação coletiva, a cujos hóspedes e moradores se proporciona jogo
de azar;
c) a sede ou dependência de sociedade ou associação, em que se realiza jogo de azar;
d) o estabelecimento destinado à exploração de jogo de azar, ainda que se dissimule esse
destino.
Art. 51. Promover ou fazer extrair loteria, sem autorização legal:
Pena – prisão simples, de seis meses a dois anos, e multa, de cinco a dez contos de réis,
estendendo-se os efeitos da condenação à perda dos móveis existentes no local.
§1º Incorre na mesma pena quem guarda, vende ou expõe à venda, tem sob sua guarda
para o fim de venda, introduz ou tenta introduzir na circulação bilhete de loteria não
autorizada.
§2º Considera-se loteria toda operação que, mediante a distribuição de bilhete, listas,
cupões, vales, sinais, símbolos ou meios análogos, faz depender de sorteio a obtenção de
prêmio em dinheiro ou bens de outra natureza.
§3º Não se compreendem na definição do parágrafo anterior os sorteios autorizados na
legislação especial.
Art. 52. Introduzir, no país, para o fim de comércio, bilhete de loteria, rifa ou tômbola
estrangeiras:
Pena – prisão simples, de quatro meses a um ano, e multa, de um a cinco contos de réis.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem vende, expõe à venda, tem sob sua guarda
para o fim de venda, introduz ou tenta introduzir na circulação, bilhete de loteria es­
trangeira.
Art. 53. Introduzir, para o fim de comércio, bilhete de loteria estadual em território onde
não possa legalmente circular:
Pena – prisão simples, de dois a seis meses, e multa, de um a três contos de réis.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem vende, expõe à venda, tem sob sua guarda,
para o fim de venda, introduz ou tonta introduzir na circulação, bilhete de loteria estadual,
em território onde não possa legalmente circular.
Art. 54. Exibir ou ter sob sua guarda lista de sorteio de loteria estrangeira:
Pena – prisão simples, de um a três meses, e multa, de duzentos mil réis a um conto de réis.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem exibe ou tem sob sua guarda lista de sorteio
de loteria estadual, em território onde esta não possa legalmente circular.
Art. 55. Imprimir ou executar qualquer serviço de feitura de bilhetes, lista de sorteio, avi-
sos ou cartazes relativos a loteria, em lugar onde ela não possa legalmente circular:
Pena – prisão simples, de um a seis meses, e multa, de duzentos mil réis a dois contos de
réis.
Art. 56. Distribuir ou transportar cartazes, listas de sorteio ou avisos de loteria, onde ela
não possa legalmente circular:
Pena – prisão simples, de um a três meses, e multa, de cem a quinhentos mil réis.
Art. 57. Divulgar, por meio de jornal ou outro impresso, de rádio, cinema, ou qualquer ou-
tra forma, ainda que disfarçadamente, anúncio, aviso ou resultado de extração de loteria,
onde a circulação dos seus bilhetes não seria legal:
Pena – multa, de um a dez contos de réis.
Art. 58. Explorar ou realizar a loteria denominada jogo do bicho, ou praticar qualquer ato
relativo à sua realização ou exploração:
Pena – prisão simples, de quatro meses a um ano, e multa, de dois a vinte contos de réis.
Parágrafo único. Incorre na pena de multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis,
aquele que participa da loteria, visando a obtenção de prêmio, para si ou para terceiro.

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DISCIPLINA JURÍDICA DO JOGO E APOSTA NO SISTEMA BRASILEIRO
305

Verifique-se, como nota comum, que todas estas condutas ve-


dadas se vinculam, necessariamente, a práticas em que o resultado
depende, única e exclusivamente, da sorte10 (como exemplo, jogo do
bicho, roleta, dados etc.), em lugar público ou acessível ao público.
Independentemente da conveniência ou não da manutenção
de tais tipos penais no ordenamento jurídico brasileiro, o fato é que
a vedação de tais condutas importa em reconhecer a impossibilidade
jurídica de reconhecer a validade plena de tais avenças.11
Todavia, até mesmo por força do princípio jurídico que impede
a alegação, em seu favor, da própria torpeza, bem como impede o
enriquecimento indevido, a natureza contratual (no sentido de um
acordo de vontades livremente estabelecido) impõe, sem dúvida, o
reconhecimento da validade do pagamento já efetivado, uma vez que
decorrente de ato voluntário do pagador, e, consequentemente, da
solutio retentio. Assim, ainda que ilícitos o jogo e/ou aposta, as regras
aqui tratadas lhes são plenamente aplicáveis.12
Protestando contra tal contradição do sistema normativo, ensi-
nava Orlando Gomes:

O contrato de jogo proibido é nulo de pleno direito, por ter causa ilícita.
Nenhum efeito produz. De ato nulo não resultam conseqüências susce-
tíveis de proteção legal. Nesta ordem de idéias, não pode surgir a dívida
de jogo como obrigação válida. A rigor, não se justifica a impossibilidade
de repetição do que foi pago voluntariamente. Diz-se, no entanto, que o
contrato de jogo proibido gera uma obrigação natural. Nessa assertiva
se contém difundido equívoco. O principal efeito da obrigação natural
consiste na soluti retentio. Ora, o credor de dívida de jogo proibido não
tem o direito de reter o que recebeu. A esse recebimento falta causa,
precisamente porque o contrato é nulo de pleno direito. Por outro
lado, embora imperfeita, porque desprovida de sanção, a obrigação
natural tem um fim moral e seu suporte psicológico é a convicção de

10
A Lei do Jogo portuguesa (Decreto-Lei nº 422, de 2.12.1989) define, em seu art. 1º que “jogos
de fortuna ou azar são aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fun-
damentalmente na sorte”.
11
Isso reflete até mesmo nas relações trabalhistas, não se podendo reconhecer validade aos
contratos de emprego estabelecidos especificamente para a prática de tais condutas. É o
caso, por exemplo, do “jogo do bicho”, prática que, embora ilícita, encontra grande aceita-
ção social, sobre o qual Tribunal Superior do Trabalho, através da sua Seção de Dissídios
Individuais – I, editou, desde 8.11.2000, a Orientação Jurisprudencial nº 199, com o seguinte
teor: “Orientação jurisprudencial 199: JOGO DO BICHO. CONTRATO DE TRABALHO.
NULIDADE. OBJETO ILÍCITO. ARTS. 82 E 145 DO CÓDIGO CIVIL”.
12
Quanto ao jogo do bicho, o fato é que já há, hoje, uma larga aceitação social da sua prática,
o que poderia, sobretudo em termos penais, permitir uma reflexão acerca da sua ilicitude
essencial.

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que deve ser cumprida porque assim manda a consciência. A prática


de ato ilícito não pode gerar uma obrigação com semelhante finalidade,
nem desperta o sentimento de que é desonroso o inadimplemento. Em
obrigação natural pode-se falar quando o jogo é tolerado, visto que a
lei lhe não atribui sanção apenas para não fomentar a prática de ato que
não tem objetivo sério.
A dívida oriunda de contrato de jogo proibido poderia ser repetida, por
consistir enriquecimento sem causa. O pagamento seria indevido, por
ter como causa contrato nulo. Realizado como é contra proibição legal,
esse contrato não pode originar qualquer efeito. Contudo, argúi-se que
a repetição deve ser repelida com apoio no princípio geral que manda
suprimir a condictio procedente da nulidade dos contratos quando há
causa torpe para ambas as partes, in paris causa turpitudinis, cessat repe-
titio. A nulidade do contrato justifica a inexistência da obrigação, mas a
repetição se excluiu pela concorrência de causa torpe.13

Uma questão interessante e tormentosa sobre este tema é a


disciplina jurídica das “Casas de Bingo” no Brasil. Em que pese a álea
evidente em tal modalidade de jogo, sua prática foi permitida e regu-
lamentada, em todo o território nacional, pela Lei nº 9.615/98 (Lei Pelé),
que destinou sua receita ao financiamento dos esportes olímpicos.14

13
GOMES. Contratos, 24. ed., p. 429-430.
14
Lei nº 9.615/98 (texto original):
“CAPÍTULO IX
DO BINGO

Art. 59. Os jogos de bingo são permitidos em todo o território nacional nos termos desta
Lei.

Art. 60. As entidades de administração e de prática desportiva poderão credenciar-se junto
à União para explorar o jogo de bingo permanente ou eventual com a finalidade de anga-
riar recursos para o fomento do desporto.

§1º Considera-se bingo permanente aquele realizado em salas próprias, com utilização de
processo de extração isento de contato humano, que assegure integral lisura dos resulta-
dos, inclusive com o apoio de sistema de circuito fechado de televisão e difusão de som,
oferecendo prêmios exclusivamente em dinheiro.

§2º (VETADO)

§3º As máquinas utilizadas nos sorteios, antes de iniciar quaisquer operações, deverão ser
submetidas à fiscalização do poder público, que autorizará ou não seu funcionamento,
bem como as verificará semestralmente, quando em operação.

Art. 61. Os bingos funcionarão sob responsabilidade exclusiva das entidades desportivas,
mesmo que a administração da sala seja entregue a empresa comercial idônea.

Art. 62. São requisitos para concessão da autorização de exploração dos bingos para a
entidade desportiva:

I - filiação a entidade de administração do esporte ou, conforme o caso, a entidade nacional
de administração, por um período mínimo de três anos, completados até a data do pedido
de autorização;

II - (VETADO)

III - (VETADO)

IV - prévia apresentação e aprovação de projeto detalhado de aplicação de recursos na
melhoria do desporto olímpico, com prioridade para a formação do atleta;

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DISCIPLINA JURÍDICA DO JOGO E APOSTA NO SISTEMA BRASILEIRO
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V - apresentação de certidões dos distribuidores cíveis, trabalhistas, criminais e dos cartó-
rios de protesto;

VI - comprovação de regularização de contribuições junto à Receita Federal e à Seguridade
Social;

VII - apresentação de parecer favorável da Prefeitura do Município onde se instalará a sala
de bingo, versando sobre os aspectos urbanísticos e o alcance social do empreendimento;

VIII - apresentação de planta da sala de bingo, demonstrando ter capacidade mínima para
duzentas pessoas e local isolado de recepção, sem acesso direto para a sala;

IX - prova de que a sede da entidade desportiva é situada no mesmo Município em que
funcionará a sala de bingo.

§1º Excepcionalmente, o mérito esportivo pode ser comprovado em relatório quantitativo
e qualitativo das atividades desenvolvidas pela entidade requerente nos três anos anterio-
res ao pedido de autorização.

§2º Para a autorização do bingo eventual são requisitos os constantes nos incisos I a VI do
caput, além da prova de prévia aquisição dos prêmios oferecidos.

Art. 63. Se a administração da sala de bingo for entregue a empresa comercial, entidade
desportiva juntará, ao pedido de autorização, além dos requisitos do artigo anterior, os
seguintes documentos:

I - certidão da Junta Comercial, demonstrando o regular registro da empresa e sua capaci-
dade para o comércio;

II - certidões dos distribuidores cíveis, trabalhistas e de cartórios de protesto em nome da
empresa;

III - certidões dos distribuidores cíveis, criminais, trabalhistas e de cartórios de protestos
em nome da pessoa ou pessoas físicas titulares da empresa;

IV - certidões de quitação de tributos federais e da seguridade social;

V - demonstrativo de contratação de firma para auditoria permanente da empresa admi-
nistradora;

VI - cópia do instrumento do contrato entre a entidade desportiva e a empresa administra-
tiva, cujo prazo máximo será de dois anos, renovável por igual período, sempre exigida a
forma escrita.

Art. 64. O Poder Público negará a autorização se não provados quaisquer dos requisitos
dos artigos anteriores ou houver indícios de inidoneidade da entidade desportiva, da em-
presa comercial ou de seus dirigentes, podendo ainda cassar a autorização se verificar
terem deixado de ser preenchidos os mesmos requisitos.

Art. 65. A autorização concedida somente será válida para local determinado e endereço
certo, sendo proibida a venda de cartelas fora da sala de bingo.

Parágrafo único. As cartelas de bingo eventual poderão ser vendidas em todo o território
nacional.

Art. 66.(VETADO)

Art. 67. (VETADO)

Art. 68. A premiação do bingo permanente será apenas em dinheiro, cujo montante não
poderá exceder o valor arrecadado por partida.

Parágrafo único. (VETADO)

Art. 69. (VETADO)

Art. 70. A entidade desportiva receberá percentual mínimo de sete por cento da receita
bruta da sala de bingo ou do bingo eventual.

Parágrafo único. As entidades desportivas prestarão contas semestralmente ao poder pú-
blico da aplicação dos recursos havidos dos bingos.

Art. 71. (VETADO) (Revogado, a partir de 31/12/2001, pela Lei nº 9.981, de 2000)

§1º (VETADO)

§2º (VETADO)

§3º (VETADO)

§4º É proibido o ingresso de menores de dezoito anos nas salas de bingo.

Art. 72. As salas de bingo destinar-se-ão exclusivamente a esse tipo de jogo.

Parágrafo único. A única atividade admissível concomitantemente ao bingo na sala é o
serviço de bar ou restaurante.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
308 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Posteriormente, a Lei nº 9.981/00 revogou os dispositivos que


autorizavam e disciplinavam os bingos, remetendo tal funcionamento à
autorização da Caixa Econômica Federal, o que já tinha sido, inclusive,
objeto de uma medida provisória anterior.15
Em seguida, proibiu-se completamente, pela Medida Provisória
nº 168, de 20.2.2004, o funcionamento dos bingos. Tal medida provisó-
ria, porém, foi rejeitada pelo Senado, ficando os bingos, todavia, sem


Art. 73. É proibida a instalação de qualquer tipo de máquinas de jogo de azar ou de diver-
sões eletrônicas nas salas de bingo.

Art. 74. Nenhuma outra modalidade de jogo ou similar, que não seja o bingo permanente
ou o eventual, poderá ser autorizada com base nesta Lei.

Parágrafo único. Excluem-se das exigências desta Lei os bingos realizados com fins apenas
beneficentes em favor de entidades filantrópicas federais, estaduais ou municipais, nos
termos da legislação especifica, desde que devidamente autorizados pela União.

Art. 75. Manter, facilitar ou realizar jogo de bingo sem a autorização prevista nesta Lei:

Pena - prisão simples de seis meses a dois anos, e multa.

Art. 76. (VETADO)

Art. 77. Oferecer, em bingo permanente ou eventual, prêmio diverso do permitido nesta
Lei:

Pena - prisão simples de seis meses a um ano, e multa de até cem vezes o valor do prêmio
oferecido.

Art. 78. (VETADO)

Art. 79. Fraudar, adulterar ou controlar de qualquer modo o resultado do jogo de bingo:

Pena - reclusão de um a três anos, e multa.

Art. 80. Permitir o ingresso de menor de dezoito anos em sala de bingo:

Pena - detenção de seis meses a dois anos, e multa.

Art. 81. Manter nas salas de bingo máquinas de jogo de azar ou diversões eletrônicas:

Pena - detenção de seis meses a dois anos, e multa.”
15
Medida Provisória nº 2.216-37, de 31.8.2001:
“Art. 1º A Lei nº 9.649, de 27 de maio de 1998, passa a vigorar com as seguintes alterações:

(...)
Art. 19-A. Fica extinto o Instituto Nacional de Desenvolvimento do Desporto - INDESP.
§1º É o Poder Executivo autorizado a remanejar, transpor, transferir, ou utilizar, a par-
tir da extinção do órgão referido no caput, as dotações orçamentárias aprovadas na Lei
Orçamentária de 2000 e 2001, consignadas ao Instituto Nacional de Desenvolvimento do
Desporto - INDESP, para o Ministério do Esporte e Turismo, mantida a mesma classifica-
ção orçamentária, expressa por categoria de programação em seu menor nível, observado
o disposto no §2º do art. 3º da Lei nº 9.811, de 28 de julho de 1999, e no §2º do art. 3º da Lei
nº 9.995, de 25 de julho de 2000, assim como o respectivo detalhamento por esfera orça-
mentária, grupos de despesa, fontes de recursos, modalidades de aplicação e identifica-
dores de uso.
§2º As atribuições do órgão extinto ficam transferidas para o Ministério do Esporte e Turis-
mo e as relativas aos jogos de bingo para a Caixa Econômica Federal.
§3º O acervo patrimonial do órgão extinto fica transferido para o Ministério do Esporte e
Turismo, que o inventariará.
§4º O quadro de servidores do INDESP fica transferido para o Ministério do Esporte e
Turismo.
(...)
Art. 17. O art. 59 da Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998, passa a vigorar com a seguinte
redação:
Art. 59. A exploração de jogos de bingo, serviço público de competência da União, será
executada, direta ou indiretamente, pela Caixa Econômica Federal em todo o território
nacional, nos termos desta Lei e do respectivo regulamento.” (grifos nossos)

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PABLO STOLZE GAGLIANO, RODOLFO PAMPLONA FILHO
DISCIPLINA JURÍDICA DO JOGO E APOSTA NO SISTEMA BRASILEIRO
309

uma disciplina legal, funcionando, desde então, com base em decisões


judiciais. O tema, porém, ainda comporta discussões, embora já haja
respeitável entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de
Justiça no sentido da ilegalidade da prática,16 bem como precedente
em decisão monocrática no Supremo Tribunal Federal.17

16
AGRAVO REGIMENTAL. SUSPENSÃO DE DECISÃO CONFIRMADA EM ACÓRDÃO.
COMPETÊNCIA DO STJ. EXAURIMENTO DA INSTÂNCIA. APREENSÃO DE EQUIPA-
MENTOS. JOGO DE BINGO. LESÃO À ORDEM PÚBLICA CONFIGURADA. – Compe-
tência desta Corte para processar e julgar pedido de suspensão de liminar, confirmada em
acórdão proferido por órgão colegiado do Tribunal de Justiça em mandado de segurança.
Exaurimento da instância ordinária realizado, mas prescindível. – “O tipo contravencional
proibitivo dos jogos de azar inclui a exploração do jogo de bingo, do que resulta inadmissí-
vel a concessão de tutela antecipada a permitir a adoção de conduta penalmente tipificada,
ou determinar, à autoridade competente, que se abstenha de tomar as medidas necessárias
a coibi-la” (AgRg na STA nº 69, Rel. Min. Edson Vidigal). Violação da ordem pública ca-
racterizada. Agravo improvido (STJ, Corte Especial, AgRg na SS nº 1.662/RS, Rel. Ministro
Barros Monteiro, j. 4.10.2006, DJ, p. 287, 11 dez. 2006).
CRIMINAL. RESP. EXPLORAÇÃO DE JOGOS DE BINGO. MANDADO DE BUSCA E
APREENSÃO. MANDADO DE SEGURANÇA. ORDEM CONCEDIDA PARA LIBERAR
O MATERIAL APREENDIDO E AUTORIZAR A CONTINUAÇÃO DA ATIVIDADE. RE-
VOGAÇÃO DO ART. 50 DA LCP. INOCORRÊNCIA. RECURSO PROVIDO. I. Hipótese
em que foram apreendidos diversos materiais correlacionados à exploração comercial de
jogos de bingos. II. O art. 50 da LCP não restou revogado pela Lei Pelé (Lei 9.651/98), que
veio apenas permitir o funcionamento provisório de “bingos”, desde que autorizados por
entidades de direito público. III. Com o advento da Lei 9.981/2000 (Lei Maguito Vilela)
foram revogados, a partir de 31/12/2001, os artigos 59 a 81 da Lei 9.651/98 (Lei Pelé), res-
peitando as autorizações que estivessem em vigor até a data de sua expiração, autorização
esta, com validade de 12 meses, conforme a legislação específica. IV. A partir de 31/12/2002,
ninguém mais poderia explorar o jogo do bingo por violação expressa ao art. 50 da Lei
3.688/41 (Lei de Contravenções Penais). V. Se o ato impugnado ocorreu em 2003, quando
as referidas empresas já não mais poderiam estar explorando a atividade, tem-se a cor-
reção da medida de busca e apreensão. VI. Recurso provido (STJ, Quinta Turma, REsp
nº 703.156/SP, Rel. Ministro Gilson Dipp, j. 19.4.2005, DJ, p. 402, 16 maio 2005).
ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. EX-
PLORAÇÃO COMERCIAL DE MÁQUINAS DE JOGOS ELETRÔNICOS. ILEGALIDA-
DE. 1. Cuidam os autos de mandado de segurança preventivo, com pedido de liminar,
impetrado por GSGAMES DIVERSÕES ELETÔNICAS LTDA. em face do SECRETÁRIO
DE JUSTIÇA E SEGURANÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, almejando a li-
beração de máquinas de jogos eletrônicos que porventura viessem a ser apreendidas sob
o argumento de que as mesmas estão legalizadas de acordo com os arts. 195, III, e 217 da
Constituição Federal, Leis Federais nºs 8212/91 e 9615/98, Decreto nº 2574/98, Lei Estadual
nº 11561/00 e Decreto Estadual nº 40593/01, sendo denegada a ordem pelo Tribunal de Jus-
tiça do Rio Grande do Sul sob o fundamento de não haver direito líquido e certo assegu-
rado. Neste momento, a empresa interpõe recurso ordinário defendendo a exploração da
atividade lícita de acordo com a Lei Previdenciária e lei de incentivo ao esporte, opinando
o representante do Ministério Público pelo improvimento do recurso. 2. Somente cabe à
União legislar sobre sistemas de consórcios e sorteios (art. 22, XX, CF/88). 3. Revogados os
artigos que dispunham sobre a autorização dos bingos pela Lei nº 9.981/00 regulamentada
pelo Decreto nº 3.659/00. 4. É de natureza ilícita a exploração e funcionamento das máqui-
nas de jogos eletrônicos (bingo e similares). 5. Precedentes desta Corte Superior. 6. Recurso
ordinário improvido (STJ, Primeira Turma, RMS nº 17.480/RS, Rel. Ministro José Delgado,
j. 28.9.2004, DJ, p. 164, 8 nov. 2004).

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
310 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Em paralelo às condutas tipificadas, há um outro campo de rela-


ções, referente a jogos e apostas, que merece a tutela do ordenamento
jurídico.17
Trata-se da área dos jogos e apostas lícitos, em que se faz mister
esclarecer uma importante distinção.
Há dois tipos de jogos lícitos.
A primeira forma de jogo lícito é aquele ocorrente no “grande
mar de licitude” existente fora das “ilhas de ilicitude”, o que é uma
homenagem ao princípio ontológico da liberdade de que “tudo que
não está juridicamente proibido está juridicamente permitido”.18

17
“Jogos de azar. Suspensa decisão que autoriza empresas a explorar bingo.
O Supremo Tribunal Federal suspendeu decisão que autorizou duas empresas a explo-
rar máquinas eletrônicas de caça-níqueis, vídeo-bingo e vídeo-pôquer. O ministro Gilmar
Mendes, que ocupa a presidência do STF, anulou liminares concedidas pelo Tribunal Re-
gional Federal da 2ª Região.
Em primeira instância, o juiz autorizou a busca e apreensão das máquinas. O TRF-2 sus-
pendeu, em parte, a eficácia da sentença da 4ª Vara Federal de Niterói (RJ). Ao acolher o
pedido de liminar, justificou que a apreensão das máquinas causaria prejuízos à atividade
econômica das empresas.
O procurador-geral da República recorreu ao STF por entender que há risco de irreparável
lesão à ordem à segurança pública, uma vez que a polícia está impedida de apreender as
máquinas de jogos de azar. Dessa forma, para ele, prevalecem interesses particulares das
empresas em detrimento ao interesse público de proteção aos eventuais usuários das má-
quinas.
No pedido, a procuradoria-geral citou precedente do próprio STF que firmou entendi-
mento no sentido de que a exploração de loterias e jogos de azar por meio de máquinas
eletrônicas não pode ser autorizada por normas estaduais.
Ao suspender a decisão, o ministro Gilmar Mendes observou a inconstitucionalidade de
normas estaduais que autorizam o funcionamento de bingos e a instalação e a operação de
máquinas eletrônicas de jogos de azar. Além disso, citou o julgamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade 2.948 que definiu a exploração desses jogos como ilícito penal.
‘No presente caso, entendo que se encontram demonstradas graves lesões à ordem e à
segurança públicas, pois a liberação das máquinas eletrônicas apreendidas, a serem uti-
lizadas na exploração de jogos de azar e loterias, é medida que se incompatibiliza com a
natureza contravencional dessa atividade. Defiro o pedido formulado para suspender a
execução das liminares concedidas pelo vice-presidente do TRF da 2ª Região’, decidiu.
SS 3.048. Revista Consultor Jurídico, 3 de janeiro de 2007” (Disponível em: <http://conjur.
estadao.com.br/static/text/51588,1>).
18
“Tudo, pois, que não é ilícito é lícito, e vice-versa, o que não deixa margem à possibilidade
de lacunas do direito.
Todavia, embora o princípio lógico acima enunciado ‘tudo que não é lícito é ilícito’ — seja,
como uma proposição, logicamente conversível, realmente não se pode proceder à conver-
são do princípio paralelo ou equivalente — ‘tudo que não está proibido está juridicamente
facultado’. A conversão deste princípio, embora tivesse o mesmo resultado lógico de com-
pletar a ordem jurídica, conferindo-lhe uma plenitude hermética, não seria compatível
com a liberdade em que a vida e a conduta essencialmente consistem; se ‘tudo o que não
é permitido é juridicamente proibido’, simplesmente a vida não é possível, pois para cada
contração muscular que executo para escrever este livro teria de haver uma expressa per-
missão por parte da ordem jurídica” (MACHADO NETO. Compêndio de introdução à ciência
do direito, 3. ed., p. 152).

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PABLO STOLZE GAGLIANO, RODOLFO PAMPLONA FILHO
DISCIPLINA JURÍDICA DO JOGO E APOSTA NO SISTEMA BRASILEIRO
311

Ou seja, toda modalidade de jogo ou aposta que não esteja ti-


pificada é considera lícita, como exemplo, a “corrida apostada” entre
amigos para ver quem chega primeiro, a rifa feita por uma comissão
de formatura ou o “carteado a dinheiro” entre membros da família
(fora, portanto, do âmbito de incidência do art. 50, §4º, “a”, da LCP).
Em tal modalidade de jogo ou aposta há apenas a tolerância do
ordenamento jurídico, pois, em que pese a aceitação de sua licitude,
não se admite a produção total dos efeitos do negócio jurídico, gerando
obrigações naturais, as quais também se aplicam às regras aqui tratadas.
Todavia, há uma segunda forma de jogo lícito.
Trata-se do jogo ou aposta autorizado ou legalmente permitido.
Em tais modalidades, não há que se falar em obrigação natural
ou juridicamente incompleta, mas, sim, de obrigação juridicamente
exigível, em todos os seus efeitos.
Tal distinção decorre da própria regra legal, inserida pelo codi-
ficador de 2002, em consonância com a realidade existente.
Confira-se, por isso, os dois últimos parágrafos do art. 814, CC-02
(sem equivalentes no CC-16), lembrando que o caput trata justamente
da inexigibilidade e irrepetibilidade do pagamento de dívida de jogo
e aposta:

§2º O preceito contido neste artigo tem aplicação, ainda que se trate
de jogo não proibido, só se excetuando os jogos e apostas legalmente
permitidos.
§3º Excetuam-se, igualmente, os prêmios oferecidos ou prometidos
para o vencedor em competição de natureza esportiva, intelectual ou
artística, desde que os interessados se submetam às prescrições legais
e regulamentares.

É o caso, pois, das diversas loterias patrocinadas pelo Governo


Federal, através da Caixa Econômica Federal, como, a título exempli-
ficativo, Lotofácil, Loteca, Lotogol, Lotomania, Loteria Instantânea,
Loteria Federal, Quina, Mega-Sena e Dupla Sena.
No mesmo sentido, enquadramos como obrigações juridicamen-
te exigíveis, por força do mencionado §3º, não somente competições
esportivas propriamente ditas, mas todo tipo de premiação lícita
prometida, seja em emissoras de televisão ou em qualquer outro meio
de divulgação. Nessas hipóteses, hão de ser aplicadas as “prescrições

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
312 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

legais e regulamentares”,19 bem como, se for o caso, o Código de Defesa


do Consumidor.20

5 Características
Pela sua evidente similitude, cuidaremos de caracterizar os
contratos de jogo e aposta conjuntamente, até mesmo pelo fato de am-
bos terem sido tratados na mesma disciplina tanto pelo Código Civil
brasileiro de 1916, quando pela vigente codificação de 2002.
A afirmação da natureza contratual do jogo e da aposta já os
consagra como contratos típicos e nominados.
Trata-se de modalidades contratuais bilaterais, com direitos e obri-
gações para ambos os contratantes, admitindo-se uma plurilateralidade
(ou multilateralidade), na medida em que haja mais de dois pactuantes.
Embora possa ser estabelecido, sem problemas, na modalidade
gratuita, o jogo e a aposta somente tem relevância para o Direito quando
celebrados de maneira onerosa.
Tendo em vista o elemento sorte (ou azar) que os envolve, são,
obviamente, contratos aleatórios, já que a obrigação de uma das partes
somente pode ser considerada devida em função de coisas ou fatos fu-
turos, cujo risco da não ocorrência foi assumido pelo outro contratante.
Podem ser estabelecidos tanto de maneira paritária como por
adesão, sendo ilustrativos, respectivamente, os exemplos da aposta entre
amigos e a “fezinha” na loteria esportiva.
Pela álea inerente ao contrato, a classificação de contrato evolutivo
é inaplicável ao jogo e aposta.
São típicos contratos civis, inaplicáveis para relações comerciais,
trabalhistas e administrativas, podendo se revestir como contratos con-
sumeristas.
Quanto à forma, são contratos não solenes e consensuais.
A priori, quanto à importância da pessoa do contratante para a ce­le­bração
e produção de efeitos do contrato, tais negócios jurídicos classificam-se

19
Destaque-se, por exemplo, a Lei nº 5.768, de 20.12.1971, que trata da legislação sobre distri-
buição gratuita de prêmios, mediante sorteio, vale-brinde ou concurso, a título de propa-
ganda, estabelece normas de proteção à poupança popular, e dá outras providências, bem
como seu Decreto regulamentador, a saber, o Decreto nº 70.951, de 9.8.1972.
20
TELEVISÃO. “SHOW DO MILHÃO”. Código de Defesa do Consumidor. Prática abusiva.
A emissora de televisão presta um serviço e como tal se subordina às regras do Código de
Defesa do Consumidor. Divulgação de concurso com promessa de recompensa segundo
critérios que podem prejudicar o participante. Manutenção da liminar para suspender a
prática. Recurso não conhecido (STJ, Quarta Turma, REsp nº 436.135/SP, Rel. Ministro Ruy
Rosado de Aguiar, j. 17.6.2003, DJ, p. 231, 12 ago. 2003).

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PABLO STOLZE GAGLIANO, RODOLFO PAMPLONA FILHO
DISCIPLINA JURÍDICA DO JOGO E APOSTA NO SISTEMA BRASILEIRO
313

como pessoais (também chamados de personalíssimos ou realizados


intuitu personae).
São contratos individuais, pois estipulados entre pessoas de­
terminadas, ainda que em número elevado, mas consideradas in­
dividual­mente.
Quanto ao tempo, podem ser tanto contratos instantâneos (seja de
execução imediata ou de execução diferida), quanto de duração (determinada
ou indeterminada), a depender da situação concreta.
São contratos tipicamente causais, a ponto de a regra de irrepeti-
bilidade e inexigibilidade ser estendida a qualquer outra avença “que
encubra ou envolva reconhecimento, novação ou fiança de dívida de
jogo”, na forma do já transcrito §1º do art. 814, CC-02 (parágrafo único
do art. 1.477, CC-16), o que afastaria a exigibilidade, por exemplo, de
títulos executivos decorrentes da dívida contraída tendo como causa
o jogo ou a aposta.21

21
PROCESSUAL CIVIL. MONITÓRIA. MEMÓRIA DE CÁLCULO. INEXISTÊNCIA. INÉP-
CIA. NÃO OCORRÊNCIA. PRODUÇÃO DE PROVAS. AUDIÊNCIA. NÃO REALIZAÇÃO.
AFERIÇÃO. SÚMULA 7 - STJ. CAUÇÃO. PESSOA JURÍDICA ESTRANGEIRA. ART. 835
DO CPC. INTERPRETAÇÃO. DÍVIDA DE JOGO. CARACTERIZAÇÃO. REEXAME DE
PROVAS. 1 - Em nenhum dos dispositivos que regem a monitória há a exigência de ser a
inicial da ação guarnecida com planilha de cálculos ou memória discriminada do montante
da dívida em cobrança, o que fica relegado aos embargos. 2 - A necessidade ou não de pro-
duzir prova em audiência é da exclusiva e soberana discricionariedade das instâncias ordi-
nárias, com apoio no acervo probatório, esbarrando, portanto, a questão federal (arts. 330, I
e 332, ambos do CPC), neste particular, no óbice da súmula 7 - STJ. 3 - Eventual retardo no
implemento da caução do art. 835 do CPC não rende ensejo à nulidade do processo, notada-
mente se, como na espécie, somente foi suscitada a falta em sede de embargos declaratórios
ao acórdão de apelação. 4 - Vinculada a questão federal à existência ou não de dívida de
jogo e as implicações disso resultantes, a irresignação encontra obstáculo intransponível no
verbete sumular nº 7 - STJ, máxime porque o acórdão além de reportar-se a ampla interpre-
tação probatória, menciona e se fundamenta em aspectos subjetivos da conduta do próprio
recorrente. 5 - Recurso especial não conhecido (STJ, Quarta Turma, REsp nº 307.104/DF, Rel.
Ministro Fernando Gonçalves, j. 3.6.2004, DJ, p. 239, 23 ago. 2004).
CHEQUE - Emissão para pagamento de dívida de jogo - Inexigibilidade - Irrelevância de
a obrigação haver sido contraída em país em que é legítima a jogatina - Inteligência dos
arts. 9º e 17 do Dec.-lei 4.657/42 e do art. 1.477 do CC. O cheque emitido para pagamento
de dívida de jogo é inexigível, nos termos do art. 1.477 do CC, ainda que a obrigação tenha
sido contraída em país em que a jogatina é lícita, eis que o princípio do locus regit actum,
consagrado no art. 9º da LICC, sofre restrições em face da regra insculpida no art. 17 do
mesmo diploma legal (TJRJ, 13ª Câmara Cível, Processo nº 18836/00, Apelação Cível, Rel.
Des. Nametala Jorge, j. 16.4.2001, DORJ, 28 jun. 2001).

CHEQUE – EMISSÃO PARA PAGAMENTO DE DÍVIDA DE JOGO – INEXIGIBILIDADE
– IRRELEVÂNCIA DE A OBRIGAÇÃO DE HAVER SIDO CONTRAÍDA EM PAÍS ONDE
É LEGÍTIMO O JOGO – REGRA ALIENÍGENA INAPLICÁVEL FACE AOS TERMOS EX-
PRESSOS DO ART. 17 DA LICC – APLICAÇÃO DOS ARTS. 1.477 E 1.478 DO CC – VOTO
VENCIDO EM PARTE. O título emitido para pagamento de dívida de jogo não pode ser
cobrado, posto que, para efeitos civis, a lei o considera ato ilícito (arts. 1477 e 1478 do CC).
Mesmo que a obrigação tenha sido contraída em país onde é legítimo o jogo, ela não pode
ser exigida no Brasil face aos termos expressos do art. 17 da LICC (TJMG,1ª Câmara Cível,
Apelação nº 128.795-4, Rel. Juiz Zulman Galdino j. 29.9.92).

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
314 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Sobre tal característica, é importante registrar que quando o


jogo ou a aposta é a própria causa de um outro negócio jurídico, a sua
condição de obrigação natural “contamina” a nova avença, o que é mais
evidente na hipótese de mútuo, conforme se verifica do art. 815, CC-02
(art.1.478, CC-16),22 analisado no final deste artigo.23
A classificação pela função econômica não é adequada para os
contratos de jogo e aposta, uma vez que a álea própria de tal relação
contratual é um traço distintivo que o peculiariza dentre as demais
formas contratuais. O mais próximo que se pode vislumbrar é de um
contrato de atividade, que é aquele que se caracteriza pela prestação de
uma conduta de fato, mediante a qual se conseguirá uma utilidade
econômica. A classificação, porém, não é perfeita, justamente pelo fato
de que a utilidade econômica não necessariamente será obtida, uma
vez que depende de outros fatores, independentemente da conduta
do contratante, como a sorte e a habilidade do adversário (no jogo).
Por fim, é típico contrato principal, com existência autônoma, e
definitivo, não sendo preparatório para qualquer negócio jurídico, nem
podendo sê-lo, pela inexigibilidade a ele inerente.

6 Contratos diferenciais
Uma modificação substancial entre a nova e a anterior codificação
diz respeito ao tratamento dos chamados contratos diferenciais.
São eles, no ensinamento de Orlando Gomes,

os contratos de vendas pelos quais as partes não se propõem realmente


a entregar a mercadoria, o título, ou valor, e a pagar o preço, mas, tão-só,
à liquidação pela diferença entre o preço estipulado e a cotação do bem
vendido no dia do vencimento. Se o preço subir, ganha o comprador,
pois o vendedor é obrigado a pagar a diferença. Se baixar, ganha o
vendedor, que à diferença faz jus. No primeiro caso, a diferença é paga
pelo vendedor, e no segundo, pelo comprador.24

No sistema codificado do século XX, tais modalidades contratuais


estavam equiparadas ao jogo, na forma do art. 1.479, CC-16,25 motivo

22
Art. 815. Não se pode exigir reembolso do que se emprestou para jogo ou aposta, no ato de
apostar ou jogar.
23
Confira-se o tópico 9 (O reembolso de empréstimo para jogo ou aposta) deste artigo.
24
GOMES. Contratos, 24. ed., p. 433.
25
Art. 1.479. São equiparados ao jogo, submetendo-se, como tais, ao disposto nos artigos an-
tecedentes, os contratos sobre títulos de bolsa, mercadorias ou valores, em que se estipule

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PABLO STOLZE GAGLIANO, RODOLFO PAMPLONA FILHO
DISCIPLINA JURÍDICA DO JOGO E APOSTA NO SISTEMA BRASILEIRO
315

pelo qual não tinham exigibilidade judicial, nem repetibilidade,


caracterizando-se como obrigações naturais.
Tudo mudou o Código Civil brasileiro de 2002, que expressamente
estabeleceu em seu art. 816:

Art. 816. As disposições dos arts. 814 e 815 não se aplicam aos contratos
sobre títulos de bolsa, mercadorias ou valores, em que se estipulem a
liquidação exclusivamente pela diferença entre o preço ajustado e a
cotação que eles tiverem no vencimento do ajuste.

Assim, embora também existente a álea, tal qual no jogo e aposta,


estabelece a regra positivada a impossibilidade de sua equiparação a
tais contratos, constituindo-se, portanto, em obrigações juridicamente
completas e exigíveis.
Tal mudança de diretriz nos parece bastante razoável, dada a
importância moderna das bolsas de futuros, cuja finalidade é a orga-
nização de um mercado para a negociação de produtos derivados de
títulos, mercadorias e valores.
Afinal de contas, tais negócios têm seu risco inerente, com a
possibilidade concreta de ganhos e perdas, como em qualquer sistema
clássico de Bolsas de Valores, o que nunca foi considerado ilegal.
Sobre o tema, vale registrar a observação de Jones Figueiredo
Alves:

O NCC aboliu o princípio da equiparação. Efetivamente, equiparar as


operações de bolsas de futuros a jogo ou aposta era algo que não podia
permanecer no Código Civil. Observe-se que o Decreto-Lei n. 2.286,
de 23-7-1986, já dispõe sobre a cobrança de impostos nas operações
a termo de bolsas de mercadorias ou mercados outros de liquidações
futuras, realizadas por pessoa física, tributando os rendimentos e ganhos
de capital delas decorrentes. E no art. 3º são definidos como valores
mobiliários sujeitos ao regime da Lei n. 6.385, de 7-12-1976, os índices
representativos de carteiras de ações e as opções de compra e venda de
valores mobiliários, sendo certo que o Conselho Monetário Nacional e
o Banco Central do Brasil, através das Resoluções n. 1.190/86 e 1.645/89,
respectivamente, referiam-se às bolsas, cujo objetivo é, justamente, a or-
ganização de um mercado livre e aberto para a negociação de produtos
derivativos de mercadorias e ativos financeiros.
Isto já existe no Brasil desde 1986, quando foi criada a Bolsa de Merca-
dorias & Futuros, que realiza um volume de negócios equivalente a dez

a liquidação exclusivamente pela diferença entre o preço ajustado e a cotação que eles tive-
rem, no vencimento do ajuste.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
316 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

vezes o nosso Produto Interno Bruto. Tais bolsas existem na Alemanha,


na França, na Itália, na Suíça, na Austrália, na Áustria, na Bélgica, em
Luxemburgo, na Holanda, no Reino Unido e sobretudo nos Estados
Unidos. Ser contra a existência dos negócios realizados nas Bolsas de
Mercadorias e Futuros com base na afirmativa de eles terem por objeto
negócios equiparados a jogo e aposta é despiciendo, porque nas clássi-
cas Bolsas de Valores as ações compradas ou vendidas também variam
de preço de um dia para o outro, sendo essa operação absolutamente
aceitável e tributada.26

7 Utilização do sorteio
Não é toda decisão que depende da sorte que pode ser conside-
rada jogo ou aposta.
Um bom exemplo disso é a técnica do sorteio que, quando não
tem por finalidade o divertimento ou ganho dos participantes, não
pode ser regulada como jogo.
Sobre o tema, estabelece o art. 817, CC-02 (art. 1.480, CC-16):

Art. 817. O sorteio para dirimir questões ou dividir coisas comuns con-
sidera-se sistema de partilha ou processo de transação, conforme o caso.

O sorteio, embora seja um método que envolve necessariamente


a sorte dos participantes, quando estabelecido como um critério para
dirimir questões, não pode ser encarado como um jogo.
Trata-se, apenas, de uma forma encontrada pelo sistema norma-
tivo para pôr termo a controvérsias.
Tal método é utilizado pelo ordenamento em diversas hipóteses
nas regras processuais, como, a título exemplificativo, no sorteio de
jurados, da distribuição de processos em comarcas onde há pluralidade
de juízos, da relatoria em recursos etc.
Nas relações jurídicas de direito material, um bom exemplo é o
da promessa de recompensa, em que o próprio Código Civil brasileiro
admite a utilização deste critério quando for simultânea à execução da
tarefa estabelecida.27

26
ALVES et al. (Coord.). Novo Código Civil comentado, p. 737-738.
27
CC-02: “Art. 858. Sendo simultânea a execução, a cada um tocará quinhão igual na recom-
pensa; se esta não for divisível, conferir-se-á por sorteio, e o que obtiver a coisa dará ao
outro o valor de seu quinhão” (No CC-16, §2º do art. 1.515).

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PABLO STOLZE GAGLIANO, RODOLFO PAMPLONA FILHO
DISCIPLINA JURÍDICA DO JOGO E APOSTA NO SISTEMA BRASILEIRO
317

Em pendências sobre direitos disponíveis entre pessoas capazes,


a possibilidade jurídica de renúncia e transação28 torna admissível
a eleição do sorteio como forma de solução de conflitos, o mesmo
podendo se dar no âmbito do inventário ou do arrolamento, em nível
sucessório, entre os herdeiros.
Observe-se, porém, que em todas essas situações não há neces-
sariamente a ideia de ganho para um, em detrimento dos outros, uma
vez que a sorte não tem por objetivo o lucro ou perda, mas apenas o
deslinde da controvérsia.

8 Exigibilidade de dívida de jogo contraída no exterior29


Um tema que sempre nos é perguntado em sala de aula diz res-
peito à eventual exigibilidade de dívida de jogo contraída no exterior.
De fato, não soa como uma heresia dizer que o jogo é permitido
no Brasil, seja na modalidade tolerada, seja na legalmente permitida,
pois o que há, com efeito, é a vedação legal de algumas modalidades
de jogos de azar.
Por isso, e constatando a circunstância de que um cidadão bra-
sileiro pode contrair dívidas de jogo no exterior (por exemplo, em um
cassino em Monte Carlo, no Principado de Mônaco, no Paraguai ou em
Punta del Este, no Uruguai), uma pergunta não quer calar: é possível, à
luz das normas de Direito Internacional Privado, cobrar, no Brasil, dívida de
jogo regularmente contraída por brasileiro no exterior?
Para responder a questão, é importante lembrar que a compe-
tência para a homologação das sentenças estrangeiras e a concessão
do exequatur às cartas rogatórias era, até 2004, do Supremo Tribunal
Federal (art. 102, I, “h”, CF/1988), passando, a partir daí, a ser, por
força da Emenda Constitucional nº 45/2004, do Superior Tribunal de
Justiça, conforme regra hoje inscrita no art. 105, I, “i”, da Constituição
Federal vigente.
Registre-se, inclusive, que o texto original da Constituição Fede-
ral admitia expressamente a delegação de tal matéria ao seu Presidente,
por força de norma regimental, o que, de fato, era autorizado pelo art. 13,
IX, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.

28
Confira-se o Capítulo XX (Transação) do nosso Novo curso de direito civil, t. II. (Contratos em
Espécie).
29
Sobre o tema, confira-se o interessante artigo de CASTRO JÚNIOR. Cobrança de dívida de
jogo contraída por brasileiro no exterior. Jus Navigandi.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
318 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

A matéria, para ser decidida, exige a aplicação das regras de


Direito Internacional Privado, o que, no Brasil, importa na incidência
do sistema normativo propugnado pela Lei de Introdução ao Código
Civil brasileiro.30
A regra básica para qualificação de obrigações está no art. 9º da
LICC, que assim estabelece:

Art. 9º Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país


em que se constituírem.
§1º Destinando-se a obrigação a ser executada no Brasil e dependendo
de forma essencial, será esta observada, admitidas as peculiaridades da
lei estrangeira quanto aos requisitos extrínsecos do ato.
§2º A obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar
em que residir o proponente.

Assim, sendo o jogo legal no território estrangeiro, onde foi


contraída a dívida, não seria por isso que estaria impedida a cobrança
deste valor no território nacional.
O óbice, porém, surge na colmatação de um conceito jurídico
indeterminado fundamental, que é a noção de ordem pública.
De fato, estabelece o art. 17 da mesma LICC:

Art. 17. As leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer
declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem
a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes.

É este o ponto fundamental que impede tal cobrança.


E a questão, sem sombra de dúvida, é de hermenêutica, pois
é possível se vislumbrar, nas decisões proferidas na época em que o
Supremo Tribunal Federal era o competente para a matéria, o quanto
essa interpretação variou,31 tendo encontrado, inclusive, guarida, ainda

30
Para um aprofundamento sobre o tema, confira-se o Capítulo III (Lei de introdução ao
Código Civil) do v. 1 (Parte geral) do nosso Novo curso de direito civil.
31
“Em 1993, ao julgar o Agravo Regimental na Carta Rogatória nº 5332, o eminente Ministro
Octavio Gallotti reconsiderou exequatur concedido para citação do devedor, sob o funda-
mento de atentado à ordem pública, baseado em a dívida de jogo ser obrigação natural, de
acordo com o CC/1916, bem como de a prática de jogo de azar ser considerada contraven-
ção penal, pela lei brasileira. Da mesma forma e igualmente baseada em atentado à ordem
pública, encontramos em 1996, a decisão proferida pelo Ministro Sepúlveda Pertence, ao
julgar a Carta Rogatória nº 7426 [07].
Entre 2001 e 2002, houve mudança de interpretação quanto ao tema, quando a presidência
do STF foi ocupada pelo eminente Ministro Marco Aurélio Mello. Em longo arrazoado,

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PABLO STOLZE GAGLIANO, RODOLFO PAMPLONA FILHO
DISCIPLINA JURÍDICA DO JOGO E APOSTA NO SISTEMA BRASILEIRO
319

que minoritária, em decisões de Tribunais de Justiça de vários pontos


do país.32

foi admitido o exequatur para citação de devedores de jogo, nos autos da Carta Rogatória
nº 9897 [08], oriunda dos Estados Unidos da América (No mesmo sentido: CR 9970, CR
10415, CR 10416 e CR 10416 ED), sob o fundamento de que a lei a ser utilizada seria a norte-­
americana, de acordo com o art. 9º da LICC, e que, por ser lícito o jogo no local onde foi
contraído, afastaria a incidência do art. 1.477 do Código Civil, não havendo, pois, atentado
à ordem pública, prevista no art. 17 da LICC.
Por serem decisões monocráticas, não há que se falar em tendência jurisprudencial, na
medida em que não refletem o pensamento do tribunal, mas de seu presidente. Assim, ao
assumir a presidência do STF em 2003, o Ministro Maurício Corrêa houve por modificar
o entendimento de seu antecessor, reconsiderando a decisão de concessão do exequatur,
em sede de Embargos Infringentes à Carta Rogatória nº 10415 [09] (no mesmo sentido: CR
10416 AgR), sob o fundamento de atentado à ordem pública” (CASTRO JÚNIOR. Cobran-
ça de dívida de jogo contraída por brasileiro no exterior. Jus Navigandi).
32
AÇÃO MONITORIA. NOTA PROMISSORIA. DESPESAS NO EXTERIOR. JOGO DE
AZAR. TERRITORIALIDADE. BOA-FÉ. Ação monitória. Prévia de cerceamento de defesa
que não prevalece. Pretensão à oitiva que não desnatura o título. Causa da emissão lícita
no território alienígena, onde emitido. Notas promissórias firmadas na Argentina a serem
pagas no Brasil. Débito oriundo de despesas com hospedagem, transporte, alimentação,
diversão e jogo contraídas no exterior onde o jogo é prática lícita. Alegação do réu de
inexigibilidade de dívida de jogo com base no art. 1.477 do CC de 1916 que não se aplica
diante do art. 9 da LICC. Princípio da territorialidade. O princípio da boa-fé deve permear
as relações. Prevalência da regra do “locus regit actum”. Sentença em que é julgado pro-
cedente a ação monitória convertendo as notas promissórias em título executivo judicial.
Irresignação que não se sustenta. Ato judicial mantido (TJRJ, Décima Sexta Câmara Cível,
Apelação Cível nº 2005.001.12814, Des. Rosita Maria de Oliveira Netto, j. 8.11.2005).
DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO. DÍVIDA DE JOGO CONTRAÍDA NO EXTE-
RIOR. PAGAMENTO COM CHEQUE DE CONTA ENCERRADA. ART. 9º DA LEI DE
INTRODUÇÃO AO CÓDIGO CIVIL. ORDEM PÚBLICA. ENRIQUECIMENTO ILÍCITO.
1. O ordenamento jurídico brasileiro não considera o jogo e a aposta como negócios jurídi-
cos exigíveis. Entretanto, no país em que ocorreram, não se consubstanciam tais atividades
em qualquer ilícito, representando, ao contrário, diversão pública propalada e legalmente
permitida, donde se deduz que a obrigação foi contraída pelo acionado de forma lícita. 2.
Dada a colisão de ordenamentos jurídicos no tocante à exigibilidade da dívida de jogo,
aplicam-se as regras do Direito Internacional Privado para definir qual das ordens deve
prevalecer. O art. 9º da LICC valorizou o locus celebrationis como elemento de conexão,
pois define que, “para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se
constituírem.” 3. A própria Lei de Introdução ao Código Civil limita a interferência do Di-
reito alienígena, quando houver afronta à soberania nacional, à ordem pública e aos bons
costumes. A ordem pública, para o direito internacional privado, é a base social, política
e jurídica de um Estado, considerada imprescindível para a sua sobrevivência, que pode
excluir a aplicação do direito estrangeiro. 4. Considerando a antinomia na interpenetração
dos dois sistemas jurídicos, ao passo que se caracterizou uma pretensão de cobrança de
dívida inexigível em nosso ordenamento, tem-se que houve enriquecimento sem causa
por parte do embargante, que abusou da boa fé da embargada, situação essa repudiada
pelo nosso ordenamento, vez que atentatória à ordem pública, no sentido que lhe dá o
Direito Internacional Privado. 5. Destarte, referendar o enriquecimento ilícito perpetrado
pelo embargante representaria afronta muito mais significativa à ordem pública do orde-
namento pátrio do que admitir a cobrança da dívida de jogo. 6. Recurso improvido (TJDF,
2ª Câmara Cível, Processo nº EIC 44.921/97, Embargos Infringentes na Apelação Cível, Rel.
Des. Wellington Medeiros, Revisora(a) Des. Adelith De Carvalho Lopes, data 14.10.1998).

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
320 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Resta, portanto, esperar o posicionamento final do Superior


Tribunal de Justiça sobre a matéria, órgão hoje competente para sua
apreciação.

9 O reembolso de empréstimo para jogo ou aposta


Como já afirmamos alhures, os contratos de jogo e de aposta são
negócios jurídicos tipicamente causais.
Por isso, suas características básicas de irrepetibilidade de pa-
gamento e inexigibilidade da prestação são estendidas “a qualquer
contrato que encubra ou envolva reconhecimento, novação ou fiança de
dívida de jogo”, como estabelece o mencionado §1º do art. 814, CC-02
(parágrafo único do art. 1.477, CC-16).
O traço mais evidente deste perfil causalista do sistema codifica-
do brasileiro se dá na relação do jogo e aposta com o mútuo.
De fato, é perfeitamente compreensível que, tomado pela exci-
tação do momento do jogo ou da aposta, algum incauto queira fazer
empréstimos para poder apostar ou jogar.
Tal consentimento, porém, é evidentemente viciado, motivo
pelo qual a regra legal estende a inexigilidade do reembolso para tal
empréstimo.
É o que se vislumbra no art. 815, CC-02 (art.1.478, CC-16), que
estabelece:

Art. 815. Não se pode exigir reembolso do que se emprestou para jogo
ou aposta, no ato de apostar ou jogar.

Parece-nos lógico que o preceito somente é aplicável para situ-


ações em que o mutuante tenha pleno conhecimento do fato, o que se
depreende da menção ao momento em que o empréstimo é feito (“no
ato de apostar ou jogar”).
Assim, por óbvio, entendemos que para os mútuos feitos sem
nenhum tipo de vinculação com o “ato de apostar ou jogar”, ainda que
sua finalidade implícita seja para tal mister, não se aplica o dispositivo,
em respeito, inclusive, à boa-fé subjetiva daquele que emprestou.
Por outro lado, acreditamos firmemente que outros negócios
jurídicos, como compra e venda de coisas móveis (pense-se na aquisição

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PABLO STOLZE GAGLIANO, RODOLFO PAMPLONA FILHO
DISCIPLINA JURÍDICA DO JOGO E APOSTA NO SISTEMA BRASILEIRO
321

de fichas para pagamento posterior, por exemplo),33 podem atrair a


aplicação analógica da norma, na hipótese de ter a mesma causa.

10 Extinção do contrato
Por se configurarem, regra geral, como obrigações naturais,
juridicamente inexigíveis, não há grande interesse — prático ou
acadêmico — no desenvolvimento deste tópico, razão pela qual o
legislador, corretamente, permaneceu silente.
Claro está, todavia, que, fora as situações de invalidade, o jogo
e a aposta extinguem-se com o cumprimento da prestação pecuniária, nos
termos e nas condições desenvolvidas no corpo deste capítulo.
Cumpre-nos lembrar, apenas, e em conclusão, que os jogos e
apostas oficialmente autorizados admitem a sua cobrança judicial por
não se subsumirem à noção de obrigações naturais ou imperfeitas, a
exemplo da Loto ou da Mega-Sena.

Referências
ALVES, Jones Figueiredo et al. (Coord.). Novo Código Civil comentado. São Paulo: Saraiva,
2002.
CASTRO JÚNIOR, Armindo de. Cobrança de dívida de jogo contraída por brasileiro no
exterior. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1131, 6 ago. 2006. Disponível em: <http://jus2.
uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8752>. Acesso em: 12 dez. 2006.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil.
9. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 1. Parte geral.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil.
8. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 2. Obrigações.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil. São
Paulo: Saraiva, 2007. v. 4. Contratos, t. II. Contratos em espécie.
GOMES, Orlando. Contratos. 24. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
MACHADO NETO, A. L. Compêndio de introdução à ciência do direito. 3. ed. São Paulo,
Saraiva, 1975.

33
DIVIDA DE JOGO. FORNECIMENTO DE FICHAS EM CLUBE DESTINADAS A JOGO
E PARA PAGAMENTO POSTERIOR. E INEXIGIVEL O REEMBOLSO DO QUE SE
EMPRESTOU NESSA SITUAÇÃO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO NÃO CONHECIDO
(STF. Segunda Turma, RE nº 65319/SP, Rel. Min. Evandro Lins, j. 3.12.1968, DJ, 27 dez. 1968).

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
322 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

RODRIGUES, Silvio. Direito civil. 25 ed. São Paulo: Saraiva, 1997. v. 3. Dos contratos e
declarações unilaterais de vontade.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Disciplina jurídica


do jogo e aposta no sistema brasileiro. In: EHRHARDT JR., Marcos (Coord.).
Os 10 anos do Código Civil: evolução e perspectivas. Belo Horizonte: Fórum,
2012. p. 299-322. ISBN 978-85-7700-616-8.

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PARTE III

RESPONSABILIDADE CIVIL

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PÁGINA EM BRANCO

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EM BUSCA DE UMA TEORIA GERAL
DA RESPONSABILIDADE CIVIL

MARCOS EHRHARDT JR.

1 Fundamento e funções da responsabilidade civil


Em que situações pessoas lesadas podem exigir de outrem a re-
paração dos danos em sua esfera jurídica? Fernando Noronha lembra
que se res perit domino, então casumsentit dominus, ou seja, se a coisa
perece para o dono, ele próprio deve suportar o risco, ou, como diriam
os ingleses, the loss lies where it falls.1
Ao longo dos anos, diversos argumentos foram empregados para
fundamentar a pretensão reparatória da vítima. Para os partidários da
culpa, só se poderia atribuir a obrigação de reparar os prejuízos se a
vítima demonstrasse que ao pretenso ofensor era exigível um compor-
tamento diverso. A inobservância de tal dever de cuidado justificava a
obrigação de indenizar.
Mais adiante, passou-se a sustentar a tese de que os danos deve-
riam ser suportados por seu causador, ainda que sem nenhuma culpa, se
os prejuízos tivessem conexão com as atividades por ele desenvolvidas.
Tem-se aqui os partidários da Teoria do Risco, que, grosso modo, sustenta-
vam a ideia de que primum non nocere, ou seja, “em primeiro lugar não

1
NORONHA. Direito das obrigações, p. 456.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
326 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

causar dano”, por entenderem que cada um de nós tem direito de não
ser afetado pela atuação de outros sujeitos, razão pela qual os riscos de
cada atividade devem ser suportados pela pessoa que a realiza.
Costuma-se ressaltar as vantagens do risco, como fundamento
do dever de indenizar, sustentando que ele seria mais adequado às
necessidades de segurança jurídica de uma sociedade marcada pelo
desenvolvimento tecnológico que necessita de estabilidade nas relações
econômicas entre os indivíduos. No entanto, a história do pensamento
jurídico ocidental é marcada por uma tradicional dicotomia entre os
partidários dos dois principais fundamentos. Na experiência brasileira,
mesmo no Código Civil de 1916, a doutrina discutia em que situações
seria necessária a adoção da teoria do risco.
Além disso, a discussão não se limitava aos extremos culpa vs.
risco. Entre cada um dos argumentos desenvolviam-se teorias sobre
objetivação da culpa e inversão do ônus probatório, criando-se casos
de culpa presumida como resposta às críticas ao sistema que erigia a
culpa como o principal fundamento do dever de indenizar.
É lícito afirmar que cada um tem a expectativa de não ser lesado
em sua esfera jurídica, ou seja, de que o sistema jurídico tutele seus
interesses preservando, sempre que possível, o status quo (situação
atual). Aqui se faz referência à função reparatória (ou indenizatória) da
responsabilidade civil, através da qual se procura eliminar o prejuízo
econômico sofrido pela vítima (tornando indene o dano patrimonial
infligido a sua esfera jurídica) ou compensar o sofrimento infligido por
um dano extrapatrimonial que repercuta negativamente na integridade
física, psíquica ou moral do ofendido.2
Dentro de uma perspectiva histórica é possível verificar que o
ordenamento jurídico brasileiro desenvolveu seu próprio sistema de
indenização para os danos, mesmo sendo iniludível a influência das
experiências francesa (Code Civil) e alemã (BGB).3 Inicialmente, antes
mesmo da edição do Código Civil de 1916, a jurisprudência da época
valia-se do disposto no art. 22 do Código Criminal de 18304 para fixar
as parcelas indenizáveis “em todas as suas partes e consequências” de

2
Importante destacar ainda que a natureza predominantemente indenizatória da responsabi-
lidade civil não impede que o magistrado, no caso concreto, possa reduzir equitativamente
o valor da indenização nos casos em que julgar existir excessiva desproporção entre a gravi-
dade da culpa e o dano, conforme dispõe o parágrafo único do art. 944 do Código Civil.
3
Cf. SANSEVERINO. Princípio da reparação integral, p. 26-29.
4
Eis o teor do referido artigo: “A satisfação será sempre a mais completa que for possível,
sendo no caso de dúvida a favor do ofendido. Para este fim, o mal que resultar à pessoa e
bens do ofendido será avaliado em todas as suas partes e consequências”.

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MARCOS EHRHARDT JR.
EM BUSCA DE UMA TEORIA GERAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL
327

modo que a satisfação da vítima pelos prejuízos experimentados fosse


a mais completa possível.
Com a edição do Código Beviláqua, o legislador brasileiro optou
pela tipificação das principais situações que ensejavam indenização nos
arts. 1.537 a 1.539, mas estabeleceu no art. 159 uma cláusula geral de
responsabilidade civil nos moldes do Código Napoleônico. Tal marco
legislativo perdurou até o advento da Constituição de 1988, que ao
dispor de modo amplo e irrestrito sobre a possibilidade de indenização
por danos extrapatrimoniais, especificamente nos incisos V5 e X6 do seu
art. 5º, marcou a superação de todos os obstáculos jurisprudenciais e
doutrinários que permeavam o debate desse período.7
A evolução de nosso modelo de responsabilidade civil continuou
com a edição do Código Civil de 2002, no qual fica ainda mais evidente
a abertura de nosso sistema à atividade jurisprudencial criativa. Ao
lado das cláusulas gerais tipificadas nos arts. 186, 187 e no parágrafo
único do art. 927, introduziu-se na codificação vigente, na parte final
dos enunciados normativos do art. 948 e do art. 949, respectivamente, as
expressões “sem excluir outras reparações”, em relação ao dano-morte
e “algum outro prejuízo que o ofendido prova haver sofrido” para os
casos de violação à integridade física, o que amplia consideravelmente
o rol de parcelas indenizáveis que podem ser reconhecidas pelo Poder
Judiciário, demonstrando que o CC/02 é apenas um ponto de partida,
apresentando um rol meramente exemplificativo de situações que
ensejam reparação.
Pode-se então afirmar que desde a consolidação do modelo de
responsabilidade civil dentro de uma perspectiva civil-constitucional,
inaugurado pela Carta Política de 1988, o princípio norteador da matéria
é o princípio da reparação integral, através do qual se procura reparar o
dano injustamente causado sob a inspiração de uma justiça distribu-
tiva, comprometida em restituir à vítima, o mais exatamente possível,
o status quo ante. A ideia de justiça exige que cada pessoa suporte as
consequências adversas de seus comportamentos, perseguindo-se o
restabelecimento do equilíbrio violado pela infração a dever, a todos
imposto pelo sistema jurídico.

5
“(...) é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por
dano material, moral ou à imagem.”
6
“(...) são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegu-
rado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.”
7
SANSEVERINO. Princípio da reparação integral, p. 26-27.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
328 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Entretanto, como bem anota Carlos Alberto Ghersi, “não existe


um verdadeiro restabelecimento ao estado anterior ao fato ou ato em
forma integral ou absoluta; é somente uma aproximação possível”.8
Anote-se que as referências à possibilidade de reparação natural
acima formulada não se limitam aos danos patrimoniais. É possível
vislumbrar a possibilidade de reparação in natura nos casos de danos
extrapatrimoniais, como ocorre, por exemplo, na violação da integrida-
de moral de alguém, que é reparada através de uma retratação pública
do ofensor na presença do ofendido.
Muito embora a reparação do dano in natura seja inegavelmente
o modo ideal de ressarcimento, são raras as situações em que o magis-
trado consegue conceder ao prejudicado a mesma situação econômica
de que desfrutaria se não houvesse ocorrido o evento danoso, quer pela
recomposição da mesma coisa, quer pela sua simples substituição por
outra detentora da mesma função. São diversos os obstáculos para a
efetivação da reparação natural, desde a impossibilidade material (v.g.,
morte da vítima), ao próprio desinteresse do ofendido, que faz opção
pela reparação pecuniária.9
Em nossos dias, o equivalente pecuniário tornou-se a forma
preferencial de reparação por danos, o que não impede a coexistência
entre os dois modelos, inclusive com a combinação entre eles para
atender às especificidades de casos concretos. Compete ao lesado, isto
é, ao credor da obrigação de indenizar, a opção pela reparação natural
ou pela indenização pecuniária, estando a escolha sujeita aos limites
gerais do ordenamento jurídico, como qualquer outro ato de exercício
da autonomia privada, que não pode desconsiderar as exigências de
boa-fé e a vedação ao enriquecimento sem causa, previstas na legisla-
ção vigente.10

8
GHERSI. Valor de la vida humana, p. 23. Sobre o tema ver também Pontes de Miranda tra-
tando do princípio da primazia da reparação in natura (PONTES DE MIRANDA. Tratado
de direito privado, p. 251).
9
SANSEVERINO. Princípio da reparação integral, p. 38-46.
10
Ao contrário de outras codificações, não existe no Código Civil um dispositivo específico
que discipline a forma de reparação dos prejuízos sofridos pela vítima. O Código Civil
português (art. 566, nº 1) determina que a indenização seja fixada em dinheiro, quando
“a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja ex-
cessivamente onerosa para o devedor”, sendo evidente a influência do Código alemão no
dispositivo (vide a segunda parte do §251 do BGB). Disposição semelhante pode ser encon-
trada no Código italiano (art. 2.058), que determina ressarcimento apenas no equivalente
pecuniário nos casos de onerosidade excessiva do devedor (o texto da norma, no original
é o seguinte: “Art. 2.058. Il danneggiato può chiedere la reintegrazione in forma specifica,
qualora sia in tutto o in parte possibile. Tutta via il giudice può disporre che il risarcimento
avvenga solo per equivalente, se lareintegrazione in forma specifica risulta eccessivamente

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MARCOS EHRHARDT JR.
EM BUSCA DE UMA TEORIA GERAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL
329

É importante não perder de vista o conteúdo do princípio da


reparação integral. Diferentemente do que ocorre na responsabilidade
penal, busca-se a reparação de toda a extensão dos danos sofridos pela
vítima (art. 944, CC/02), não devendo o magistrado pautar-se no grau
de culpa do ofensor no momento da fixação da indenização, mas sim
nas repercussões do dano na esfera jurídica do ofendido. Segundo
observa Marcos Catalan

por meio dessa leitura, não se promove um juízo de aprovação (ou não)
do comportamento do devedor, mas busca-se aferir se houve (ou não) a
satisfação dos legítimos interesses do credor. É imperioso perceber que
essa forma de compreender a questão deixa de lado a preocupação com
a sanção do causador do dano. O direito civil é um direito de acessos. O
papel de punir não lhe foi atribuído. Os holofotes são deslocados para
a reparação do lesado. Tutela-se, assim, a vítima de um dano injusto.
Tutela-se, por consequência, toda a sociedade.11

Enfim, avalia-se a extensão do dano, não se distinguindo graus de


culpa; afinal, busca-se reestabelecer o equilíbrio ameaçado pelo dano
injusto, tornando-se célebre a frase de GenevièveViney, tout le dommage,
mais rien que le dommage12 (todo o dano, mas não mais que o dano), que
serve de ponto de partida para as seguintes conclusões de Paulo de
Tarso Vieira Sanseverino:

A plena reparação do dano deve corresponder à totalidade dos prejuízos


efetivamente sofridos pela vítima do evento danoso (função compen-
satória), não se podendo, entretanto, ultrapassá-los para evitar que a
responsabilidade civil seja causa para o enriquecimento injustificado do
prejudicado (função indenitária), devendo-se estabelecer uma relação de
efetiva equivalência entre a indenização e os prejuízos efetivos derivados
dos danos com avaliação em concreto pelo juiz (função concretizadora
do prejuízo real).13

onerosa per il debitore”). Sustenta-se que as mesmas soluções encontradas nos diplomas
estrangeiros podem ser aplicáveis ao ordenamento pátrio mediante uma interpretação sis-
têmica do CC/02, levando-se em consideração, sobretudo, a cláusula geral da boa-fé.
11
CATALAN. A morte da culpa na responsabilidade contratual, f. 68.
12
VINEY. Les obligations: la responsabilité, effets, p. 81.
13
SANSEVERINO. Princípio da reparação integral, p. 58. Para construir a afirmação acima trans-
crita, o autor parte do pensamento de Yvone Lambert-Faivre, na obra Droitdudommagecorporel:
sytèmes d´indemnisation, que sintetiza os princípios orientadores do sistema de reparação dos
danos na seguinte máxima “todo o prejuízo, nada mais que o prejuízo, o prejuízo real”. Tem-
se então, dentro do pensamento de Sanseverino, três funções que devem ser observadas para
a correta aplicação do princípio da reparação integral: função compensatória, indenitária e

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
330 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Ocorre que, para além dessa função estática, que busca resta-
belecer o equilíbrio social rompido pelo dano14 e que representa sua
caracte­rística primordial, é possível vislumbrar outras funções igual-
mente importantes no campo da responsabilidade civil.
O quotidiano forense demonstra que objetivos até bem pouco
tempo restritos às demandas criminais passaram a integrar o conteúdo
de decisões cíveis, uma vez que, não raro, a compensação do dano e sua
reparação muitas vezes ficam aquém do prejuízo sofrido pelas vítimas,
além de não evitarem a reiteração do ilícito.15 Surgem novas palavras
de ordem no campo da responsabilidade civil: punir e prevenir.
Há quem sustente ser possível impor ao ofensor uma pena, ou
seja, castigo proporcional ao dano infligido à vítima, o que permitiria
dissuadir outras pessoas da prática de atos semelhantes, como também
desestimular o próprio agente da prática de novos danos. Fala-se então
de uma função sancionatória (ou punitiva) da responsabilidade civil,
que atualmente vem sendo aceita pela jurisprudência, com grande
variação na intensidade e de modo bem mitigado. Como bem explica
Fernando Noronha:

(...) não se deve exagerar na ideia de punição através da responsabili-


dade civil: a função dissuasora desta tem sempre um papel acessório;
em princípio, a responsabilidade civil visa apenas reparar danos. Um
sancionamento do ofensor só terá justificação quando haja dolo ou culpa;
unicamente nestes casos a reparação civil do dano pode passar a ser
também uma pena privada. Mas mesmo nestas situações, parece que o
agravamento da indenização só se justifica na medida em que a ideia
de punição do responsável (através da imposição da obrigação de pagar
uma quantia) constitua ainda uma forma de satisfação proporcionada
aos lesados, para de certo modo lhes “aplacar” a ira.16

O tratamento às prestações punitivas na experiência brasileira


não vem merecendo a atenção e o aprofundamento necessário para

concretizadora. Tais funções apresentam alcance diferente a depender do sistema jurídico.


Enquanto na experiência do Common Law a função compensatória (compensatory rule) perde
importância em casos de incidência dos punitive damages, na experiência francesa enfatiza-se
a compensação nas hipóteses de danos patrimoniais, destacando-se que nos casos de prejuí­
zos extrapatrimoniais deve prevalecer a natureza satisfatória da reparação. Anote-se ainda
que por força do disposto no caput do art. 994 c/c art. 884, ambos do CC/02, a extensão dos
danos constitui o limite máximo da indenização.
14
SANSEVERINO. Princípio da reparação integral, p. 34.
15
VAZ. Funções da responsabilidade civil: da reparação à punição e dissuasão, p. 75.
16
NORONHA. Direito das obrigações, p. 462.

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MARCOS EHRHARDT JR.
EM BUSCA DE UMA TEORIA GERAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL
331

uma melhor apreciação das consequências que sua adoção irrestrita


traria ao nosso sistema jurídico. Deve-se analisar a questão a partir
da (im)possibilidade de condenação do ofensor em valor excedente
àquele que concerne aos danos extrapatrimoniais e patrimoniais, não
se assemelhando a ou subsumindo em quaisquer destes.17
José Jairo Gomes considerada a solidariedade e a cooperação os
princípios que fundamentariam a função preventivo-pedagógica da
indenização punitiva, que teria por finalidade imediata a educação do
autor do dano para a vida social, além de intimidar as demais pessoas
para que se abstenham de realizar ações lesivas.18
Maria Celina Bodin de Morais admite excepcionalmente tal
função:

É de admitir-se, pois, como exceção, uma figura semelhante à do dano


punitivo, em sua função de exemplaridade, quando for imperioso dar
uma resposta à sociedade, isto é, à consciência social, tratando-se, por
exemplo, de conduta particularmente ultrajante, ou insultosa, em relação
à consciência coletiva, ou, ainda, quando se der o caso, não incomum,
de prática danosa reiterada. Requer a manifestação do legislador tan-
to para delinear as estremas do instituto, quanto para estabelecer as
garantias processuais respectivas, necessárias sempre que se trate de
juízo de punição.19

Ainda é possível se identificar uma função preventiva (ou dissua­


sora) da responsabilidade civil, que nos dias de hoje costuma sempre
ser destacada em casos de danos transindividuais, com o objetivo de
se evitar a ocorrência de tais danos — por atingirem interesses da ge-
neralidade de pessoas que integram uma comunidade,20 como ocorre,
por exemplo, nos casos de danos ambientais. A função de matiz dissua­
sório vem sendo debatida na doutrina e na jurisprudência sob várias
denominações e frequentemente vem associada à denominada “teoria
do valor do desestímulo”.21

17
VAZ. Funções da responsabilidade civil: da reparação à punição e dissuasão, p. 75.
18
GOMES. Responsabilidade civil e eticidade, p. 297.
19
MORAES. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais, p.
110-112.
20
NORONHA. Direito das obrigações, p. 463.
21
Cf. BITTAR. Reparação civil por danos morais, p. 232 et seq. Caroline Vaz apresenta uma síntese
dos principais argumentos comumente levantados para refutar a aplicação da “Teoria do
Desestímulo” no direito pátrio, a saber: “1) os danos punitivos são verdadeiras sanções pe-
nais, contrapondo-se ao instituto da responsabilidade civil, que visa ao ressarcimento/com-
pensação do dano efetivamente sofrido; 2) Admitir o uso dos ‘danos punitivos’ seria ensejar

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
332 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Nada obstante, deve-se atentar para a diferença entre as funções


dissuasória e punitiva atribuídas à responsabilidade civil. Segundo
Eugênio Facchini Neto:

(...) a função dissuasória se diferencia da punitiva por levar em con-


sideração não uma conduta passada, mas ao contrário, por buscar
dissuadir condutas futuras. Ressalta que as funções reparatória e pu-
nitiva possuem uma função dissuasória individual e geral. Mas no caso
da responsabilidade Civil com função dissuasória, porém, o objetivo de
prevenção geral de dissuasão ou de orientação sobre condutas a adotar
passa a ser o fim principal. O meio para alcançá-la, contudo, passa a
ser a condenação do responsável à reparação/compensação dos danos
individuais.22

Há ainda quem denomine tal função de educativa. Será que com


a condenação ao pagamento de uma indenização está-se realmente
buscando educar o ofensor ou apenas coibir comportamentos danosos?
No campo da responsabilidade negocial, não é raro verificar a
aproximação entre a função indenizatória e a função punitiva, quan-
do o magistrado se vale da imposição de multas cominatórias para
coagir a vontade do devedor e, desse modo, garantir a reparação do
dano causado.23 Ocorre que nessas hipóteses a multa não tem caráter

o enriquecimento sem causa, pois a reparação pecuniária extrapolaria o prejuízo sofrido;


3) Esses danos representam a mercantilização da justiça e das relações existenciais, trans-
formando o acesso à tutela jurisdicional em loteria, cujo prêmio máximo seriam ‘absurdas
indenizações milionárias’ (tort lottery ou overcompensation); 4) Seriam um bis in idem, já que em
hipóteses de condenação por lesões corporais, p. ex., além da pena privativa de liberdade ou
restritiva de direitos, o autor seria punido novamente ao reparar os danos; 5) A Constituição
Federal de 1988, ao utilizar a expressão ‘indenização’ no artigo 5º, inciso X, afasta qualquer
possibilidade de fixação de valor a título de danos morais que seja superior ao prejuízo cau-
sado”. Apesar das objeções acima apresentadas, conclui a autora pela compatibilidade dos
punitives damages com o sistema jurídico brasileiro (VAZ. Funções da responsabilidade civil: da
reparação à punição e dissuasão, p. 83).
22
FACCHINI NETO. Da responsabilidade civil no novo Código Civil. In: SARLET (Org.). O
novo Código Civil e a Constituição, p. 164.
23
Segundo o disposto no art. 461 do CPC (com redação dada pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994),
na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, pode-
rá o juiz conceder a tutela específica da obrigação ou, na hipótese de julgar procedente
o pedido, determinar providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do
adimplemento. O dispositivo prevê expressamente que nessas hipóteses a indenização por
perdas e danos dar-se-á sem prejuízo da multa (§2º), que poderá ser imposta pelo magis-
trado independentemente de pedido do autor, desde que seja fixado prazo razoável para o
cumprimento do preceito (§4º). Anote-se que a multa não é a única alternativa de coerção
de que dispõe o julgador, sendo o rol das opções disponíveis (§5º) meramente exemplifi-
cativo (é possível que seja determinada busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas,
desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de
força policial). A característica comum a todas as medidas disponíveis ao juiz é justamente

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EM BUSCA DE UMA TEORIA GERAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL
333

indenizatório, embora seja inegável que mediante a coerção do devedor


indiretamente se evita o agravamento da situação danosa pela resis-
tência do responsável.24
Anote-se que tais funções não se excluem. Ao contrário, devem
ser consideradas em conjunto, de modo a atender às necessidades do
caso concreto, competindo ao magistrado decidir sobre a intensidade
de sua utilização e a melhor forma de sua combinação para atender
aos fins de nossa Carta Política.

2 Questões terminológicas: ainda faz sentido manter a


denominação responsabilidade extracontratual?
Como exposto acima, em todas as manifestações das atividades
humanas se faz necessário tratar da questão da responsabilidade.
Costuma-se definir a responsabilidade civil como o dever de se reparar
o prejuízo decorrente da violação de outro dever jurídico. Nesse sen-
tido, pode-se identificar sua origem na necessidade de se restabelecer
o equilíbrio econômico e jurídico alterado pelo dano.25 Trata-se, pois,
de um dever jurídico sucessivo (secundário) que surge para recompor
os prejuízos decorrentes da violação de um dever jurídico preexistente
(primário).26
Tradicionalmente, divide-se o estudo da responsabilidade civil
em duas áreas distintas, aplicando a cada uma delas um regime ju-
rídico específico para lidar com danos antijuridicamente causados à
esfera jurídica de outrem, que geram o dever de indenizar. Optou-se
por denominá-las responsabilidade civil extranegocial e responsabilidade
negocial, em detrimento das clássicas denominações responsabilidade
extracontratual (ou aquiliana) e responsabilidade contratual, pelos
motivos abaixo descritos.
A expressão “responsabilidade contratual” não se limita ao estu-
do da obrigação de indenizar que decorre do não cumprimento de um
negócio jurídico. Aplica-se o mesmo regime aos danos provocados pelo

dissuadir o ofensor a manter a conduta ilícita que ocasionou o dano. Deve-se anotar ainda
que idêntico tratamento é conferido às obrigações que tenham por objeto a entrega de coisa,
após a introdução pela Lei nº 10.444/02 do art. 461-A no Código de Processo Civil. Além
disso, em qualquer dos casos, o valor ou a periodicidade da multa pode ser modificado de
ofício, caso o magistrado verifique que se tornou insuficiente ou excessiva.
24
NORONHA. Direito das obrigações, p. 464.
25
DIAS. Da responsabilidade civil, p. 55.
26
CAVALIERI FILHO. Programa de responsabilidade civil, p. 2.

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334 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

inadimplemento de atos unilaterais. Desse modo, não parece conve-


niente adotar, como denominação para uma categoria mais ampla, um
termo que não exprime todos os casos por ela abrangidos, sob pena de
se correr o risco de classificar, erroneamente, os danos provocados pelo
descumprimento de um ato unilateral (v.g., promessa de recompensa
ou gestão de negócio) como hipóteses de responsabilidade extracontratual.
Igualmente não parece conveniente referir-se à responsabilidade
extracontratual, pois, atualmente, tal categoria não se limita ao inadim-
plemento cuja origem não remonte a um vínculo contratual. Na ver-
dade, sob a expressão responsabilidade extracontratual, designa-se todo
e qualquer dever de reparar o injusto prejuízo, causado ao lesado, que
teve origem numa relação de direito absoluto, ou seja, trata-se do regime
geral da responsabilidade em nosso sistema, vale dizer, o direito comum
aplicável em matéria de danos, do qual a responsabilidade contratual,
ou melhor, negocial, é mera especialização, uma vez que continua sujeita
aos princípios e regras gerais daquela.
A expressão responsabilidade extracontratual (ou aquiliana), também
denominada responsabilidade por ato ilícito (responsabilidade exdelictu),
na dicção do art. 398 do Código Civil, mostrava-se mais ade­quada a
um paradigma que considerava a culpa como requisito essencial da
configuração do dever de indenizar.27
No entanto, mesmo durante a vigência da codificação anterior,
doutrina e jurisprudência apontavam para situações que permitiam o
exercício da pretensão reparatória independentemente da verificação da
culpa do ofensor. Logo, substituir a expressão em análise simplesmente
por responsabilidade civil, em oposição à responsabilidade negocial, ou ainda
enfatizar denominando-se responsabilidade civil extranegocial, facilita a
compreensão da matéria e promove uma atualização das denomina-
ções para um estágio mais consentâneo com a evolução da disciplina.28
Nada obstante, apesar das objeções acima apresentadas, deve-se
reconhecer que é corrente o uso dos clássicos termos responsabilidade

27
Como ensina Fernando Noronha, atribui-se à Lex Aquilia de damno, no século III a.C., a in-
trodução, ainda que em termos bastante restritos, da ideia de culpa no direito aplicável
(NORONHA. Direito das obrigações, p. 455). Sobre o tema, ver também Rubens Limongi
França, em artigo denominado “As Raízes da Responsabilidade Aquiliana”, in: NERY
JUNIOR; NERY (Org.). Responsabilidade civil, p. 267-287.
28
Ao tratar das impropriedades da categoria “responsabilidade extracontratual”, José Jairo
Gomes afirma que tal termo revela um acentuado matiz da “superada ideologia indivi-
dualista-liberal-burguesa que caracterizou a codificação oitocentista (...) Com esse termo,
privilegia-se a figura do contrato, como se fosse este o ocupante do centro do sistema ju-
rídico e não a pessoa. É a pessoa a razão de ser do Direito e não o contrato” (GOMES.
Responsabilidade civil e eticidade, p. 240).

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EM BUSCA DE UMA TEORIA GERAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL
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extracontratual e contratual tanto na doutrina como na jurisprudência,


razão pela qual, quando necessário, ainda se fará remissão a eles para
evitar uma confusão terminológica na compreensão dos argumentos
adiante apresentados.
Resta consignar que não se trata apenas de uma discussão quanto
à denominação a ser apresentada. Se considerar-se a responsabilidade civil
extranegocial (responsabilidade extracontratual) como o regime geral no
campo do direito de danos, aplicando seus princípios gerais inclusive
ao campo da responsabilidade negocial (responsabilidade contratual),
deve-se repensar o modo como o tema vem sendo abordado durante
a formação dos bacharéis em direito em nosso país.
Afinal, durante a faculdade, primeiramente se é apresentado
à responsabilidade negocial, sob a epígrafe “do inadimplemento das
obrigações” (arts. 389 e seguintes do Código Civil), para só depois se
estudar o que deve ser considerada a parte geral da disciplina (arts. 927
e seguintes do Código Civil), sob o título “da responsabilidade civil”.
Pode-se tentar delimitar o campo da responsabilidade civil, como
categoria geral, no princípio da incolumidade das esferas jurídicas
(neminem laedere), ou seja, no interesse que cada indivíduo possui na
preservação de sua esfera jurídica, que ocorre mediante reparação dos
danos causados injustamente por outrem, aqui incluídas as situações
nas quais o dano é resultado da violação de deveres gerais (superiores
e preexistentes) a um negócio jurídico, que por tal fundamento não
devem ser encarados como violação específica dele.29
Esclarecida a questão terminológica, deve-se analisar se ainda se
justifica a manutenção da dicotomia responsabilidade civil extranego-
cial x negocial na experiência jurídica brasileira. Para facilitar a com-
preensão do próximo item, considerando a vasta tradição de utilização
da nomenclatura responsabilidade civil extracontratual (aquiliana) e
responsabilidade civil contratual, será mantida a denominação clássica
durante o restante deste capítulo.

3 Os âmbitos da responsabilidade civil: da diversidade


à unidade
O entendimento pacificado na doutrina pátria quanto ao mo­
delo de responsabilidade adotado em nosso país subdivide a res­
ponsabilidade civil em contratual e extracontratual, também denominada

29
NORONHA. Direito das obrigações, p. 453.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
336 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

aquiliana.30 Tem-se a primeira quando resulta de ilícito contratual,


vale dizer, nas hipóteses de não cumprimento (ou cumprimento
defeituoso) da obrigação. Já a segunda cuida da violação de deveres
gerais de abstenção pertinentes aos direitos absolutos, isto é, de ilícito
extracontratual.31
Em outras palavras, poder-se-ia dizer que “a responsabilidade
contratual decorre da infração de um dever especial, enquanto a extra-
contratual, de um dever geral. A primeira resulta, geralmente, de ato
negativo (omissão); e a segunda, de ato positivo (ação)”.32
Anelise Becker afirma que a origem da separação formal entre a
responsabilidade civil contratual e a responsabilidade civil extracon-
tratual tem raízes no direito romano, baseando-se no aspecto penal da
reparação, uma vez que naquele período identificava-se na responsa-
bilidade extracontratual “o resultado de uma reprovação semelhante
à que decorre do delito no âmbito penal”.33
Se num primeiro momento a similitude entre o juízo de reprova-
bilidade civil e penal justificava a dicotomia contratual x extracontra-
tual, durante os séculos XVIII e XIX foi o dogma da vontade que passou
à posição de protagonista de tal distinção.
O estudo da responsabilidade contratual, dentro da perspectiva
acima destacada, é apresentado como mero efeito da obrigação primitiva
que surge a partir do contrato. Trata-se, por conseguinte, de afastar
qualquer tipo de autonomia para o tema, considerado mera consequên­
cia do inadimplemento (ou cumprimento defeituoso), que, sob essa
óptica, não é classificado como fonte de uma relação obrigacional. Para
Paulo Luiz Netto Lôbo:

Na Responsabilidade civil extranegocial, a relação jurídica obrigacional


instaura-se desde a ocorrência do dano imputável, por força de lei. A

30
A divisão entre responsabilidade contratual e extracontratual também pode ser encontrada
no Código Civil italiano de 1942, que em seu livro IV regula a responsabilidade civil extra-
contratual entre os arts. 2.043 e 2.059. Na experiência italiana, a responsabilidade contratual
é disciplinada do art. 1.218 ao art. 1.229. A dicotomia também persiste no Código Civil
português de 1966 (os arts. 483 a 510 tratam da responsabilidade extracontratual e os arts.
790 a 836 da responsabilidade contratual), muito embora este diploma legislativo apresente
uma tentativa de aproximação entre os dois sistemas ao regular de maneira única as conse-
quências da responsabilidade entre os arts. 562 e 572, que tratam da chamada obrigação de
indemnização.
31
FRANÇA (Coord.). Enciclopédia Saraiva do direito, p. 349.
32
ANDRADE. Teoria geral da relação, p. 127 apud FRANÇA (Coord.). Enciclopédia Saraiva do
direito, p. 349.
33
BECKER. Elementos para uma teoria unitária da responsabilidade civil. In: NERY JUNIOR;
NERY (Org.). Responsabilidade civil, p. 353.

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EM BUSCA DE UMA TEORIA GERAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL
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relação é entre o imputável pela reparação (devedor) e o ofendido ou


vítima do dano (credor). Nesse caso, dá-se instantaneamente a conversão
do direito do credor em pretensão e da dívida em obrigação, pois esta
é imediatamente exigível a partir do momento do dano.34

Dito de outro modo, a responsabilidade contratual seria oriunda


de relação obrigacional preexistente (origem num ato lícito, o acordo de
vontades que originou o negócio jurídico), enquanto na responsabilida-
de extracontratual a relação obrigacional apenas surgiria ao verificar-se
o dano (origem num ato ilícito, descrito em lei). Por conseguinte, en-
quanto naquela a prestação indenizatória é simples mudança do objeto
na relação obrigacional, nesta o dever de ressarcir é originário,35 donde
é possível apontar alguns elementos distintivos, para além da natureza
da obrigação violada, relativos aos fatores de imputação, carga da prova,
definição da autoridade competente para apreciar eventuais demandas,
prazos de prescrição, dentre outros, consoante se verá a seguir.
Basta verificar que o tratamento dispensado à solidariedade em
nosso sistema jurídico depende do modelo de responsabilidade adota-
do. Enquanto na responsabilidade contratual a solidariedade depende
de prévio acordo (art. 265, CC/02),36 na responsabilidade aquiliana a
previsão de solidariedade é legal, ou seja, necessária, pois independe
da vontade dos ofensores, conforme preconiza o art. 942 do CC/02.37
Escolhendo como critério a culpa, podem-se distinguir os dois
regimes de responsabilidade em dois planos distintos: tanto em relação
ao ônus da prova quanto em relação à relevância dos graus de culpa
para a imputação do dever de indenizar.38
Quanto ao ônus da prova, na responsabilidade contratual o deve-
dor é que tem de provar, em face do inadimplemento, a inexistência de
culpa ou qualquer excludente do dever de indenizar,39 sendo possível
ainda a inclusão de cláusula convencional, para reduzir ou excluir a

34
LÔBO. Obrigações, p. 51.
35
FRANÇA (Coord.). Enciclopédia Saraiva do direito, p. 350.
36
Art. 265, CC/02: “A solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes”.
37
Art. 942, CC/02: “Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem
ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos
responderão solidariamente pela reparação”.
38
SILVA. Inadimplemento das obrigações, p. 61.
39
Conforme lição de Sérgio Cavalieri Filho: “Na responsabilidade contratual, a culpa, de re-
gra, é presumida; inverte-se então o ônus da prova, cabendo ao credor demonstrar, apenas,
que a obrigação não foi cumprida; o devedor terá que provar que não agiu com culpa, ou,
então, que ocorreu alguma causa excludente do próprio nexo causal” (CAVALIERI FILHO.
Programa de responsabilidade civil, p. 291).

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indenização, desde que não se contrarie a ordem pública e os bons cos-


tumes. Na aquiliana, cabe à vítima o ônus de provar a culpa do agente.40
Ressalte-se, entretanto, que a presunção de culpa não depende
exclusivamente do fato de o dever jurídico violado ter sua fonte em um
contrato. O fator decisivo será o tipo de obrigação assumida no contrato
(obrigação de meio ou de resultado). Ao tratar do assunto, Paulo Luiz
Netto Lôbo anota que não há no direito brasileiro nenhuma norma que
positive tal dicotomia, que apesar disso é amplamente disseminada na
doutrina pátria.
As obrigações de meio (ou de diligência) são aquelas que teriam
como objetivo final a atividade em si e que demandariam um agir
diligente com os preceitos da técnica e da ciência pertinentes ao caso
concreto, independentemente do resultado obtido. Deslocando o foco
da própria atividade e do modo como ela será executa em direção ao
resultado esperado, considerando nesta hipótese a atividade empre-
gada como simples meio necessário para alcançá-lo,41 ter-se-ia a obrigação
de resultado.
Considerando a evolução da responsabilidade civil em nosso
sistema jurídico, Paulo Luiz Netto Lôbo não vislumbra possível a ma-
nutenção da utilização de tal dicotomia como instrumento decisivo
na atribuição do ônus da prova em ações de responsabilidade civil, e
apresenta fortes argumentos para corroborar sua tese:

Tal distinção das obrigações não mais se sustenta, pois contradiz um


dos principais fatores de transformação da responsabilidade civil,
ou seja, a primazia do interesse da vítima. Por outro lado, estabelece
uma inaceitável desigualdade na distribuição da carga da prova entre
as duas espécies: na obrigação de meio, a vítima não apenas tem de
provar os requisitos da responsabilidade civil para a reparação (dano,
fato causador, nexo de causalidade, imputabilidade), mas que o meio
empregado foi tecnicamente inadequado ou sem a diligência requerida,
o que envolve informações especializadas, que o autor do dano dispõe
e ela não; na obrigação de resultado, basta a prova dos requisitos. O
tratamento desigual para danos reais, em virtude da qualificação do
conteúdo da obrigação como de meio ou de resultado, conflita com o
princípio constitucional da igualdade, que é uma das conquistas mo-
dernas da responsabilidade civil (...) Afinal, é da natureza de qualquer
obrigação negocial a finalidade, o fim a que se destina, que nada mais é

40
FRANÇA (Coord.). Enciclopédia Saraiva do direito, p. 350-351.
41
LÔBO. Obrigações, p. 37. Ver também CALIXTO. A culpa na responsabilidade civil: estrutura
e função, p. 77-78.

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EM BUSCA DE UMA TEORIA GERAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL
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que o resultado pretendido. O resultado é o interesse do credor. Quem


procura um profissional liberal não quer a excelência dos meios por este
empregados, quer o resultado, no grau mais elevado de probabilidade.
Quanto mais renomado o profissional, mais provável o resultado pre-
tendido, no senso comum do cliente.42

No que concerne aos graus da culpa, pode-se afirmar que no


campo da responsabilidade contratual, em algumas hipóteses, é pos-
sível determinar a pré-exclusão da responsabilidade, dependendo da
falta de cuidado do agente, como v.g., ocorre nos contratos benéficos,
nos quais a parte que beneficia a outra só responde se tiver agido com
dolo (art. 392, CC/02).
Por outro lado, no campo da responsabilidade extracontratual,
a gradação em culpa leve ou grave não exerce nenhuma influência
para determinar a imputação em si — ou seja, se o agente deve ou não
indenizar o prejuízo causado à vítima —, embora possa determinar,
em face das circunstâncias do caso, a redução proporcional do valor
indenizatório (parágrafo único do art. 944) mediante juízo de equidade
do magistrado.43
Além disso, retomando as diferenças entre o regime da responsa-
bilidade extracontratual e da responsabilidade aquiliana, deve-se anotar
que as cláusulas restritivas (v.g., cláusula penal, arras penitenciais) ou
exonerativas de obrigações (v.g., cláusulas de não indenizar) só teriam
lugar na responsabilidade contratual, uma vez que configurariam uma
inadmissível derrogação convencional de regras de ordem pública na
seara da responsabilidade extracontratual.
Desse modo, no caso de inadimplemento contratual, compete à
vítima apenas demonstrar a celebração do negócio jurídico e a existência
de prestações não cumpridas, ao contrário do que ocorre no âmbito
extracontratual, no qual se exige a prova de autoria, imputabilidade,
antijuridicidade, dano e relação de causalidade.
Existem ainda diferenças em relação à capacidade das partes.
Fundando-se em um negócio jurídico, a responsabilidade contratual
pressupõe capacidade de exercício dos figurantes da relação jurídica
obrigacional (ou o suprimento desta mediante representação ou assis-
tência), sob pena de restar configurada a invalidade do negócio. Por
sua vez, na responsabilidade extracontratual, ainda que de maneira

42
LÔBO. Obrigações, p. 38.
43
SILVA. Inadimplemento das obrigações, p. 62.

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mitigada e subsidiária (art. 928, CC/02), a capacidade de praticar danos


injustos também abrange os incapazes.44
O principal argumento utilizado para justificar a coexistência de
dois regimes distintos de responsabilidade civil repousa no reconheci-
mento de funções diversas para cada tipo de responsabilidade. O campo
contratual, nessa perspectiva, serviria para proteger as partes em face
de um risco específico de dano criado pela particular relação jurídica
instaurada entre os sujeitos; no campo extranegocial a proteção seria
dirigida ao interesse de convivência pacífica.45
No entanto, é inegável o paralelismo entre os dois âmbitos de res-
ponsabilidade, que se desenvolveram num mesmo substrato econômico
e social. Estudar a evolução da responsabilidade civil em nosso sistema
jurídico implica avaliar a ascensão e o declínio do papel da vontade
individual que comumente integra o elemento subjetivo que serve de
fonte ao direito obrigacional, pois, o “dogma da vontade no contrato
e o primado da culpa no delito são espécies de um único gênero”.46
Caso se adote outra perspectiva, é possível posicionar a respon-
sabilidade contratual como fonte do direito obrigacional, sustentando
que é a partir do inadimplemento que nasce o dever de indenizar. Tal enten-
dimento permite uma aproximação dos regimes de responsabilidade
civil contratual e extracontratual, na direção do que se convencionou
denominar “responsabilidade por danos” ou “direito de danos”, pro-
duto da unificação dos dois regimes anteriormente citados.47
Unificar os regimes, dentro da perspectiva da operabilidade, um
dos princípios gerais que serviram de base para a elaboração do Código
Civil vigente, significaria uma simplificação do tratamento atualmente
conferido à matéria, facilitando sua compreensão na medida em que “a
ilicitude, a imputação, o prejuízo e a relação de causalidade são elemen-
tos comuns, perseguem um mesmo fim e cumprem a mesma função”.48

44
SILVA. Inadimplemento das obrigações, p. 63.
45
FERNÁNDEZ CRUZ. Los supoestos dogmáticos de la responsabilidade contractual:
ladivisión de sistemas y la previsibilidade. Revista de Direito Privado, p. 294.
46
BECKER. Elementos para uma teoria unitária da responsabilidade civil. In: NERY JUNIOR;
NERY (Org.). Responsabilidade civil, p. 354.
47
No mesmo sentido, Rodrigo Xavier Leonardo sustenta que “se antes o elemento primordial
da responsabilidade (expressão que traz consigo a ideia de reprimenda, de desvalor moral)
era a culpa, hoje o elemento basilar ao dever de indenizar é o dano. Nesse sentido, a própria
expressão ‘responsabilidade civil’ tem um significado limitado, vez que nem sempre a impu-
tação do dever de indenizar recai sobre o responsável pelo dano. Melhor referir-se a essa dis-
ciplina, hoje, como um direito de danos” (LEONARDO. Responsabilidade civil contratual
e extracontratual: primeira anotações em face do novo Código Civil brasileiro. In: NERY
JUNIOR; NERY (Org.). Responsabilidade civil, p. 396-397).
48
ITURRASPE; PIEDECASAS. Responsabilidad contractual, p. 12. Eis a citação no idioma
original: “La ilicitud, laimputación, elperjuicio, y larelación de causalidad, son elementos
comunes, persiguen um mismofin y cumplenlamismafunción”.

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Tal dicotomia tem como inconveniente a constatação de que a


um mesmo fato danoso podem-se aplicar regimes de responsabilidade
distintos, com cobertura de danos não coincidentes, o que ressaltaria
a importância de se buscar um nexo funcional unitário49 para o tema.
Pode-se exemplificar a importância da discussão sobre a neces-
sidade de unificação utilizando-se o tratamento conferido à prescrição
no Código Civil.
Apesar da existência de prazo de 3 (três) anos para pretensão de
reparação civil (art. 206,§3º, V), a jurisprudência vem entendendo que
a referida previsão legal somente se aplica às situações de responsabi-
lidade extracontratual, razão pela qual, nos casos de inadimplemento
contratual, por não haver prazo específico cominado, deve incidir o
prescricional de dez anos, previsto no art. 205 do referido diploma
legal.50
O tratamento jurisprudencial dos juros moratórios também
segue distinto em razão da dicotomia, como bem retratado na decisão
abaixo transcrita:

ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL. RESPONSABILIDADE


CIVIL DO ESTADO. HOSPITAL-ESCOLA. EXTRACONTRATUALI-
DADE. DANOS. JUROS MORATÓRIOS. TERMO INICIAL. EVENTO
DANOS. SÚMULA N. 54 DESTA CORTE SUPERIOR. 1. A responsa-
bilidade civil no caso não é contratual, e sim extracontratual, tendo

49
FERNÁNDEZ CRUZ. Los supoestos dogmáticos de la responsabilidade contractual:
ladivisión de sistemas y la previsibilidade. Revista de Direito Privado, p. 295.
50
DIREITO CIVIL E DO CONSUMIDOR. RECURSO ESPECIAL. RELAÇÃO ENTRE
BANCO E CLIENTE. CONSUMO. CELEBRAÇÃO DE CONTRATO DE EMPRÉSTIMO
EXTINGUINDO O DÉBITO ANTERIOR. DÍVIDA DEVIDAMENTE QUITADA PELO
CONSUMIDOR. INSCRIÇÃO POSTERIOR NO SPC, DANDO CONTA DO DÉBITO
QUE FORA EXTINTO POR NOVAÇÃO. RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL.
INAPLICABILIDADE DO PRAZO PRESCRICIONAL PREVISTO NO ARTIGO 206, §3º, V,
DO CÓDIGO CIVIL. 1. O defeito do serviço que resultou na negativação indevida do nome
do cliente da instituição bancária não se confunde com o fato do serviço, que pressupõe um
risco à segurança do consumidor, e cujo prazo prescricional é definido no art. 27 do CDC. 2.
É correto o entendimento de que o termo inicial do prazo prescricional para a propositura
de ação indenizatória é a data em que o consumidor toma ciência do registro desabonador,
pois, pelo princípio da “actio nata”, o direito de pleitear a indenização surge quando cons-
tatada a lesão e suas consequências. 3. A violação dos deveres anexos, também intitulados
instrumentais, laterais, ou acessórios do contrato — tais como a cláusula geral de boa-fé
objetiva, dever geral de lealdade e confiança recíproca entre as partes —, implica responsabi-
lidade civil contratual, como leciona a abalizada doutrina com respaldo em numerosos pre-
cedentes desta Corte, reconhecendo que, no caso, a negativação caracteriza ilícito contratual.
4. O caso não se amolda a nenhum dos prazos específicos do Código Civil, incidindo o prazo
prescricional de dez anos previsto no artigo 205, do mencionado Diploma. 5. Recurso espe-
cial não provido. (REsp nº 1276311/RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, j.
20.9.2011, DJe, 17 out. 2011).

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342 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

em conta que houve erro médico em cirurgia plástica promovida pelo


hospital-escola agravante sem existência de vínculo contratual agra-
vante-agravada. Incide, no caso, a Súmula n. 54 desta Corte Superior. 2.
Agravo regimental não provido. (AgRg no AgRg no REsp nº 1057210/RS,
Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, j. 19.3.2009,
DJe, 16 abr. 2009)51

A unificação permitiria também idêntico tratamento em relação


à mora e suas consequências, bem como a uniformização do entendi-
mento em relação às causas limitadoras do dever de indenizar.
Ponto importante a destacar é se as pretensões que surgem do
inadimplemento alteram substancialmente as pretensões que se consti-
tuem a partir dos contratos. Um exemplo ajudará a elucidar a questão.
Determinado fotógrafo contratado para registrar uma cerimônia
de casamento deixa de comparecer no dia e hora contratados, razão
pela qual os noivos ficaram sem um registro profissional da celebração.
Trata-se de hipótese de inadimplemento absoluto, uma vez que a pres-
tação originalmente contratada não mais pode satisfazer os interesses
dos noivos (credores), resolvendo-se em indenização pelas perdas e
danos, a ser suportada pelo fotógrafo (devedor).
Seria a pretensão indenizatória uma nova pretensão, que surgiria
a partir do inadimplemento, ou apenas uma mera faceta da pretensão
ao cumprimento, com origem no contrato celebrado entre as partes?
Dentro da perspectiva tradicional, na responsabilidade contratu-
al, ocorre simples mudança objetiva na relação jurídica, “substituindo-se
a prestação pelo id quod interest (ressarcimento)”.52 No entanto, na vio-
lação do dever genérico, que serve de fundamento da responsabilidade

51
Ainda sobre o tema, vale transcrever: “PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL
NO RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. NULIDADES. EXECUÇÃO
EXTRAJUDICIAL CONTRA A FAZENDA. CONTRATO. EXAME DE PROVA. SÚMULA
7/STJ. JUROS MORATÓRIOS. TERMO INICIAL. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. É firme o
entendimento do Superior Tribunal de Justiça de que, segundo o princípio ‘tempus regitac-
tum’, os juros moratórios, nos casos de indenização decorrente de responsabilidade extra-
contratual, devem incidir à taxa de 0,5% ao mês, nos termos do art. 1.062 do CC/16, da data
do evento danoso até 10/1/03 e, a partir de então, no percentual de 1% ao mês, conforme
o art. 462 do CC de 2002. Precedentes do STJ. 2. Contudo, há considerar que ‘A fixação do
termo inicial dos juros depende da liquidez da obrigação. Se a obrigação for líquida, os juros
serão contados a partir do vencimento da obrigação; se for ilíquida, os moratórios terão
como dies a quo a citação válida. Em face da iliquidez da obrigação, a incidência dos juros
moratórios é a citação, e não o vencimento de cada fatura’ (REsp nº 402.423/RO, Rel. Min.
Castro Meira, Segunda Turma, DJ, 20 fev. 2006). Logo, a incidência dos juros será devida a
partir da data em que configurado o inadimplemento contratual, e não da assinatura do con-
trato. (...) 4. Agravo regimental não provido” (AgRg no REsp nº 1125135/RR, Rel. Ministro
Arnaldo Esteves Lima, Primeira Turma, j. 16.12.2010, DJe, 02 fev. 2011).
52
FRANÇA (Coord.). Enciclopédia Saraiva do direito, p. 350-351.

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extracontratual (art. 186, CC/02),53 o dever de indenizar surge como uma


nova obrigação e não como decorrência de uma obrigação preexistente.
Dito de outro modo: quando ocorre a inexecução de um contra-
to, a obrigação de executar a prestação prometida é substituída pela
obrigação de o devedor reparar o prejuízo sofrido. Ainda que se afirme
que se trata de obrigações sucessivas e que a obrigação de reparar o
não cumprimento não exista sem a obrigação primária de executar a
prestação prometida, deve-se atentar para o fato de que enquanto a
primeira obrigação nasce da vontade das partes, a segunda obrigação
existe fora dela, razão pela qual Anelise Becker conclui que a responsabi-
lidade contratual, assim como ocorre nas hipóteses de responsabilidade
aquiliana, também é originária de ato ilícito, pois, em ambos os casos, a
responsabilidade nasce da inexecução de uma obrigação preexistente.54
Analisando o tema, Sérgio Cavalieri Filho assim se manifesta:

A responsabilidade contratual não está no contrato, como equivoca-


damente alguns a definem. O que está no contrato é o dever jurídico
preexistente, a obrigação originária voluntariamente assumida pelas
partes contratantes. A responsabilidade contratual surge quando uma
delas (ou ambas) descumpre esse dever, gerando o dever de indeni-
zar. (...) Há, portanto, na responsabilidade contratual tudo que há na
responsabilidade extracontratual (...) Tão mínima é a diferença que, a
rigor, não há distinção substancial entre a responsabilidade contratual
e a extracontratual. Na essência, ambas decorrem da violação de dever
jurídico preexistente. A distinção é tão insignificante que até já existe
movimento no sentido de unificação da responsabilidade.55

Em suma, o fundamento teórico para os defensores do inadim-


plemento como fonte do dever de indenizar repousa na constatação
de que, nas hipóteses de não cumprimento do contrato, aquilo que
se realiza no patrimônio do credor não é a prestação originalmente
devida, tampouco seu equivalente econômico, mas sim um objeto di-
verso, vale dizer, o “equivalente econômico do dano produzido pelo
inadimplemento”,56 ou seja, uma dívida de valor oriunda da obrigação
ressarcitória. Para corroborar este entendimento, vale transcrever lição
de Aguiar Dias:

53
Art. 186, CC/02: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência,
violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
54
BECKER. Elementos para uma teoria unitária da responsabilidade civil. In: NERY JUNIOR;
NERY (Org.). Responsabilidade civil, p. 358.
55
CAVALIERI FILHO. Programa de responsabilidade civil, p. 288.
56
ITURRASPE; PIEDECASAS. Responsabilidad contractual, p. 16.

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344 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Por outro lado, não se pode encarar a responsabilidade contratual como


simples problema de efeito das obrigações. Se o contrato é uma fonte de
obrigações, a sua inexecução também o é. Quando ocorre a inexecução,
não é a obrigação contratual que movimenta o mundo da responsabi-
lidade. O que se estabelece é uma obrigação nova que se substitui à
obrigação preexistente no todo ou em parte: a obrigação de reparar o
prejuízo consequente à inexecução da obrigação assumida. Essa verdade
se afirmará com mais vigor se observarmos que a primeira obrigação
(contratual) tem origem na vontade comum das partes, ao passo que a
obrigação que a substitui por efeito de inexecução, isto é, a obrigação
de reparar o prejuízo, advém, muito ao contrário, contra a vontade do
devedor: este não quis a obrigação nova, estabelecida com a inexecução
da obrigação que contratualmente consentira. Em suma: a obrigação
nascida do contrato é diferente da que nasce de sua inexecução. Assim
sendo, a responsabilidade contratual é também fonte de obrigações,
como a responsabilidade delitual.57

Ao tratar do tema da possibilidade de unificação dos dois regimes


de responsabilidade civil em nosso sistema jurídico, Paulo Luiz Netto
Lôbo anota que:

Sob a ótica do contratante devedor, radica na equivalência um dos sinais


destacados pela doutrina da unificação, pois é idêntica na responsa-
bilidade extracontratual e na contratual. Nesta, o interesse do credor,
prejudicado pelo inadimplemento, vê-se somente satisfeito mediante a
reparação ou o pagamento de uma indenização compensatória, o que
produz uma transformação da relação obrigacional, pois o devedor
deve realizar uma conduta distinta da inicialmente devida, que afeta
seu patrimônio em valor equivalente ao valor estimado do dano sofrido
pelo credor. Por seu turno, na responsabilidade extracontratual a origi-
nária conduta devida, consistente na obrigação de não fazer (não lesar o
outro), de cunho não patrimonial, transforma-se em outra obrigação, a
de reparar, com seu patrimônio, o dano sofrido pela vítima. Em ambas
há, com efeito, conversão das condutas devidas.58

No entanto, a opinião do citado autor em relação ao tema pode


ser facilmente observada quando afirma que “a pretensão à reparação
das perdas e danos e demais consequências pelo inadimplemento da
obrigação negocial (ilícito relativo) é a mesma da obrigação de prestar;

57
DIAS. Da responsabilidade civil, p. 157. Sobre o tema ver também ITURRASPE; PIEDECASAS.
Responsabilidad contractual, p. 21 e RUGGIERO. Instituições de direito civil: direito das obri-
gações, direito hereditário, p. 158-159.
58
LÔBO. Direito civil: contratos, p. 27.

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não há duas pretensões, uma para a prestação devida e outra para a


substituição desta”.59
No mesmo sentido, sustenta Pontes de Miranda que

Quem culposamente impossibilitou a prestação deixa de adimplir. O


crédito do credor persiste o mesmo (bem assim o direito de garantia,
se há); há apenas mudança do conteúdo. A pretensão à indenização, às
perdas e danos, é, aí, a mesma, posto que varie, para o que é possível
prestar-se, a prestação primária. É de repelir-se a concepção que vê em
tais circunstâncias duas pretensões, uma, à prestação prometida, e outra,
ao sucedâneo. Não há: a) Pretensão ao objeto prometido; b) Pretensão a
perdas e danos. Mas sim: pretensão ao objeto prometido (ou a perdas e
danos). É certo que a indenização das perdas e danos resulta de ilícito
relativo, mas o ilícito relativo não é criador de outro dever, nem de outro
crédito. Aí, a grande diferença em relação ao ilícito absoluto.60

A vantagem de se considerar o inadimplemento como fonte do


dever de indenizar parece ir ao encontro das perspectivas mais atuais
do pensamento jurídico pátrio, que constantemente pugna pelo avanço
de fatores objetivos de atribuição de responsabilidade sobre os fatores
subjetivos. Nesse sentido, Anelise Becker sustenta que:

A crise do papel da vontade, efeito da despersonalização e objetivação


do processo produtivo, modificou o conteúdo e a extensão da autonomia
privada, que se encaminha cada vez mais em direção a uma dimensão
objetiva, em correspondência à debilitação do papel do próprio elemento
subjetivo, também objetivado, na medida em que também as hipóteses
de responsabilidade com culpa recebam já um conceito de culpa sempre
mais despersonalizado e objetivo (tendência à avaliação da culpa
mediante standards objetivos).61

Situar a questão sob esse prisma significa em última instância


uma tentativa de separar o não cumprimento da obrigação da noção
de culpa, colocando o inadimplemento na posição de protagonista e não
de mero sucedâneo da obrigação originária nascida do contrato.
A análise da conveniência (ou não) de se manter a dualidade de
regimes de responsabilidade exige a observação de diversos aspectos

59
LÔBO. Direito civil: obrigações, p. 232. No mesmo sentido: “Como se vê, na responsabilidade
contratual a indenização funciona como substitutivo da prestação contratada” (CAVALIERI
FILHO. Programa de responsabilidade civil, p. 293).
60
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, p. 12.
61
BECKER. Elementos para uma teoria unitária da responsabilidade civil. In: NERY JUNIOR;
NERY (Org.). Responsabilidade civil, p. 355.

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do dever de reparar o prejuízo causado a outrem. Enquanto a inten-


cionalidade, vale dizer, a presença do elemento culpa como fator de
imputação, assume papel fundamental no campo do inadimplemento
contratual, porquanto o devedor, vale dizer, o réu na pretensão inde-
nizatória, pode valer-se de uma excludente na busca de um caminho
de liberação de tal ônus, deve-se anotar que no campo extracontratual
o dever de indenizar surge do ato ilícito, não sendo necessária a cons-
tituição em mora, o que somente ocorre no campo contratual.
De tal conclusão pode-se extrair a constatação de que, em prin-
cípio, a violação de um contrato não é tão grave quanto a violação a
texto expresso de lei, pois o interesse público no âmbito negocial surge
de modo indireto, uma vez que o inadimplemento contratual encerra
interesses predominantemente particulares.
Dessa forma, não raro, indeniza-se com mais amplitude no âmbi-
to da responsabilidade aquiliana do que no âmbito da responsabilidade
contratual, havendo previsão expressa nesta hipótese de redução (ou
até mesmo exoneração) do montante indenizatório mediante livre e
consciente manifestação de vontade dos próprios contratantes.
A dualidade aumenta a complexidade do estudo da matéria,
dificultando a aplicação do direito, já que os operadores jurídicos têm
de lidar com diferentes prazos prescricionais e até mesmo com dife-
rentes regras de fixação de competência jurisdicional, pois, no campo
da responsabilidade contratual, salvo disposição legal ou convencional
expressa noutro sentido, define-se o juiz competente pelo lugar de
cumprimento da obrigação; enquanto no campo da responsabilidade
aquiliana o lugar do fato ou o domicílio do demandado definem a
competência para decidir a demanda.
A análise de um caso concreto ajudará na compreensão de tal
afirmação.
No julgamento do REsp nº 930.875/MT, o Superior Tribunal de
Justiça decidiu que a competência para a ação que visa à reparação de
danos, fundada em responsabilidade contratual ou extracontratual,
deve ser proposta no local onde se produziu o dano e não no domicílio
do réu. No entanto, por se tratar de competência territorial relativa, é
possível a derrogação de tal regra em face de contrato celebrado entre
as partes, de modo a prevalecer o foro de eleição. Considerou o STJ que
“não desfaz a validade do foro de eleição a circunstância do ajuizamento
da ação, decorrente de contrato de franquia, como ação indenizatória,
porque esta sempre tem como antecedente a lide contratual”.62

62
REsp nº 930.875/MT, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, j. 14.6.2011, DJe, 17 jun. 2011.

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Gustavo Tepedino alerta quanto ao perigo de se conceber o sis-


tema jurídico mediante modelos binários. Embora a observação não
tenha sido dirigida especificamente à dicotomia entre responsabilidade
extracontratual e responsabilidade contratual, o argumento contribui
para o debate:

(...) considerando-se o ordenamento como um conjunto de normas


jurídicas apartadas da realidade e de sua aplicação jurisdicional, idea-
lizando-se, dessa forma, dois sistemas distintos: aquele concebido pelo
legislador e outro resultante dos fatos, nos quais incidirão em concreto
as normas jurídicas. Este modelo binário de interpretação espraia-se
em classificações falaciosas, ora segundo os destinatários das normas
jurídicas — legislador e sujeitos de direito —; ora de acordo com os
campos de conhecimento — direito público e direito privado; ora con-
forme os diversos setores de produção normativa — os microssistemas;
e assim por diante. O Professor Pietro Perlingieri insurge-se contra essa
concepção, demonstrando que somente se afigura possível falar em
ordenamento jurídico se este for concebido em sua unidade: ou bem o
ordenamento é uno ou não é ordenamento.63

O que dificulta bastante as conclusões sobre o tema é a multipli-


cidade de situações a que os pressupostos acima mencionados devem
ser aplicados. Além do inadimplemento contratual clássico, é possível
divisar situações em que o ilícito em análise não foi causado a um dos
contratantes, mas a um terceiro. Em sentido oposto, um terceiro pode
ter praticado conduta ilícita em detrimento de um ou de todos os con-
tratantes. Trata-se da denominada tutela externa do crédito, ou seja, da
extensão dos efeitos da relação jurídica obrigacional a terceiros.
Em suma, existem zonas cinzas, que não correspondem clara-
mente a nenhum dos dois regimes. Imagine, por exemplo, uma situação
danosa a um dos contratantes, que na condição de vítima demonstra a
existência de dano, mas não aponta a violação de nenhum dever con-
tratual específico, calcando sua pretensão indenizatória na violação da
cláusula geral da boa-fé objetiva, da qual irradiam diversos deveres,
consoante demonstrado no capítulo anterior.
Qual caminho a ser trilhado?
Tradicionalmente a resposta para a indagação exacerba a dico-
tomia e aponta para a ampliação de um de seus polos. Resolver-se-ia

63
TEPEDINO. O direito civil-constitucional e suas perspectivas atuais. In: TEPEDINO (Org.).
Direito civil contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade constitucional: anais do
Congresso Internacional de Direito Civil-Constitucional da Cidade do Rio de Janeiro, p. 361.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
348 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

a questão ampliando o alcance da responsabilidade contratual ou


alargando o âmbito da responsabilidade aquiliana?
A posição majoritária da doutrina nacional está bem cristalizada
na seguinte afirmação de Pontes de Miranda:

A responsabilidade pelo ilícito já é negocial antes de se concluir o


negócio jurídico. O hoteleiro é responsável pelos danos causados às
malas do futuro hóspede, mesmo se, ao chegar ao escritório ou balcão,
ou portaria, o hoteleiro verifica que não tem apartamento que sirva ao
freguês. Dá-se o mesmo se já foi paga a conta, entregues as chaves e o
dano é causado pelo empregado do hotel, ou pelo automóvel do hotel.64

A segunda opção, entretanto, conforme se verá no capítulo se-


guinte, parece ser a melhor resposta: os deveres gerais apontam para
um momento histórico em que predominam postulados da responsa-
bilidade extracontratual (dominante), ficando o âmbito contratual para
o que for específico.
Outra alternativa viável seria dirigir os estudos para as coinci-
dências entre os regimes, deixando as divergências em segundo plano,
como vem ocorrendo na experiência de outros países. Neste ponto,
vale registrar que o Código Civil português em seu art. 483 consagra
um princípio geral aplicável a ambos os regimes de responsabilidade,
ao prescrever que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilici-
tamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a
proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos
danos resultantes da violação”.
Na mesma linha de raciocínio, é possível — partindo-se do pres-
suposto de que os dois sistemas teriam fundamento no contato social
e que desenvolvem suas características a partir do mesmo conceito de
ilicitude — anotar que o tratamento dispensado aos danos emergentes e
lucros cessantes no modelo brasileiro não faz distinção se a responsabi-
lidade a ser apurada decorre de violação contratual ou extracontratual.65

64
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, p. 109.
65
Para ilustrar tal afirmação, interessante transcrever trecho de recente decisão do STJ: “2. A
imputação de responsabilidade civil — contratual ou extracontratual, objetiva ou subjetiva
— supõe a presença de dois elementos de fato (a conduta do agente e o resultado danoso) e
um elemento lógico-normativo, o nexo causal (que é lógico, porque consiste num elo refe-
rencial, numa relação de pertencialidade, entre os elementos de fato; e é normativo, porque
tem contornos e limites impostos pelo sistema de direito). 3. Relativamente ao elemento
normativo do nexo causal em matéria de responsabilidade civil, vigora, no direito brasileiro,
o princípio de causalidade adequada (ou do dano direto e imediato), cujo enunciado pode
ser decomposto em duas partes: a primeira (que decorre, a contrario sensu, do art. 159 do

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MARCOS EHRHARDT JR.
EM BUSCA DE UMA TEORIA GERAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL
349

A matéria é tratada nos arts. 402, 40366 e 404, assim positivados:

Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas


e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente
perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar.
Art. 403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas
e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito
dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual.
Art. 404. As perdas e danos, nas obrigações de pagamento em dinhei-
ro, serão pagas com atualização monetária segundo índices oficiais
regularmente estabelecidos, abrangendo juros, custas e honorários de
advogado, sem prejuízo da pena convencional.
Parágrafo único. Provado que os juros da mora não cobrem o prejuízo,
e não havendo pena convencional, pode o juiz conceder ao credor in-
denização suplementar.

O mesmo se verifica entre os arts. 944 a 954 do Código Civil


brasileiro, de cuja interpretação pode-se extrair uma disciplina única
para ambos os regimes de responsabilidade, como se verá, em breve
síntese, e apenas a título exemplificativo:
a) embora a indenização deva ser aferida levando-se em consi-
deração a extensão do dano, é possível a redução equitativa
de tal valor, pelo juiz, se constatar a existência de excessiva
desproporção entre a gravidade da culpa e o dano (parágrafo
único, art. 944);
b) admite-se ainda a redução do montante indenizatório se a
própria vítima tiver concorrido culposamente para o evento
danoso (art. 945);

CC/16 e do art 927 do CC/2002, que fixa a indispensabilidade do nexo causal), segundo a
qual ninguém pode ser responsabilizado por aquilo a que não tiver dado causa; e a outra
(que decorre do art. 1.060 do CC/16 e do art. 403 do CC/2002, que fixa o conteúdo e os limites
do nexo causal) segundo a qual somente se considera causa o evento que produziu direta e
concretamente o resultado danoso. 4. No caso, o evento danoso não decorreu direta e ime-
diatamente do registro de imóvel inexistente, e, sim, do comportamento da contratante, que
não cumpriu o que foi acordado com a demandante. 5. Recurso especial parcialmente conhe-
cido e, nesta parte, desprovido” (REsp nº 1198829/MS, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki,
Primeira Turma, j. 5.10.2010, DJe, 25 nov. 2010).
66
“Ora, em nosso sistema, como resulta do disposto no artigo 1.060 do Código Civil [art. 403
do CC/2002], a teoria adotada quanto ao nexo causal é a teoria do dano direto e imediato,
também denominada teoria da interrupção do nexo causal. Não obstante aquele dispo-
sitivo da codificação civil diga respeito à impropriamente denominada responsabilidade
contratual, aplica-se também à responsabilidade extracontratual, inclusive a objetiva (...)”
(REsp nº 719.738/RS, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, j. 16.9.2008, DJe,
22 set. 2008).

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
350 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

c) se a obrigação for indeterminada, e não houver na lei ou no


contrato disposição fixando a indenização devida pelo inadim-
plente, apurar-se-á o valor das perdas e danos na forma que
a lei processual determinar (art. 946);
d) diante da impossibilidade de o devedor cumprir a prestação
na espécie ajustada, substituir-se-á pelo seu valor, em moeda
corrente (art. 947);
e) no caso de homicídio, a indenização consiste, sem excluir
outras reparações, no pagamento das despesas com o trata-
mento da vítima, seu funeral e o luto da família, bem como na
prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os devia,
levando-se em conta a duração provável da vida da vítima
(art. 948);
f) no caso de lesão ou outra ofensa à saúde, o ofensor indenizará
o ofendido das despesas do tratamento e dos lucros cessantes
até o fim da convalescença, além de algum outro prejuízo que
o ofendido prove haver sofrido (art. 949);
g) se da ofensa resultar defeito pelo qual o ofendido não possa
exercer o seu ofício ou profissão, ou se lhe diminua a capaci-
dade de trabalho, a indenização, além das despesas do trata-
mento e lucros cessantes até o fim da convalescença, incluirá
pensão correspondente à importância do trabalho para que se
inabilitou, ou da depreciação que ele sofreu (art. 950).
Pelo exposto verifica-se que as bases para a unificação de trata-
mento entre os regimes já se encontram positivadas em nosso sistema.
O que sequer se constituiria em inovação da matéria. Deve-se citar o
Código de Defesa do Consumidor, que ao tratar da responsabilidade
civil do fornecedor de produtos e serviços o faz sem utilizar a clássica
dicotomia responsabilidade extracontratual e contratual, e disciplina a
responsabilidade pelo fato do produto e do serviço (arts. 12 a 17) ao lado
da responsabilidade pelo vício do produto e do serviço (arts. 18 a 25).
Extrai-se ainda do CDC (art. 17), no que concerne à responsa-
bilidade pelo fato do produto e do serviço, a equiparação aos consu-
midores de todas as vítimas do evento (bystanders), sendo idêntica
providência adotada em relação às práticas comerciais, uma vez que
o diploma consumerista dispõe em seu art. 29 que se equiparam aos
consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às
práticas nele previstas.67

67
Para Cláudia Lima Marques, a interpretação conjunta do disposto nos arts. 17 e 29 do CDC
permite concluir que uma grande contribuição do Código de Defesa do Consumidor ao

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MARCOS EHRHARDT JR.
EM BUSCA DE UMA TEORIA GERAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL
351

Desse modo, as dificuldades e imprecisões atinentes ao regime


dual adotado pelo Código Civil encontram-se resolvidas no CDC,
que, ao optar por outro caminho, oferece as bases para se demonstrar
a necessidade de superação da dicotomia responsabilidade extracon-
tratual vs. responsabilidade contratual, sendo importante ressaltar a
importância do diálogo sistemático de complementariedade entre as
referidas fontes normativas.
De um modo geral, ampliam-se cada vez mais as hipóteses de
responsabilidade civil contratual objetiva, diante do permissivo descrito
art. 927 do CC/02:

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a
outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente
de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente
desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os
direitos de outrem.

Ponto importante a anotar sobre essa reflexão é que a vinculação


contratual não absorve ou permite qualificar como contratuais todos os
danos que nesse lapso ou em ocasião do negócio possam causar uma
parte à outra.68
Vale transcrever um exemplo para ilustrar a afirmação acima:

PROCESSUAL CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANOS MORAIS.


JUROS MORATÓRIOS. RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL.
1. Com relação ao termo inicial dos juros moratórios, verifica-se que,
conquanto exista uma relação contratual, o dano moral não sobreveio
pelo descumprimento de suas cláusulas. Não há, na espécie, portanto,
responsabilidade civil de ordem contratual, e sim extracontratual.
De rigor a aplicação, por conseguinte, da Súmula 54/STJ, segundo a
qual os juros moratórios fluem a partir do evento danoso, em caso de
responsabilidade extracontratual 2. Agravo regimental a que se nega
provimento. (AgRg no Ag nº 536.709/RJ, Rel. Ministro Carlos Fernando
Mathias (Juiz Federal Convocado do TRF 1ª Região), Quarta Turma, j.
5.8.2008, DJe, 25 ago. 2008)

direito civil atual residiria na sua bem lograda superação do conceito de sujeito individual
da relação contratual, uma vez que o sujeito da relação jurídica obrigacional de consumo
pode ser individual, coletivo, difuso e até mesmo — para além do contratante e da vítima
contratante — também o bystanders ou aquele que apenas tem participação indireta na re-
lação de consumo (MARQUES. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime
das relações contratuais).
68
ITURRASPE; PIEDECASAS. Responsabilidad contractual, p. 15.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
352 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

No caso apresentado, apesar da existência de relação contratual


entre as partes, os prejuízos que motivaram a propositura da ação repa-
ratória tiveram origem externa à prestação contratual principal, razão
decisiva para a fixação do regime de juros a ser aplicável à espécie.
Na mesma linha de raciocínio, vale transcrever decisão que
ilustra hipótese bastante comum em nosso cotidiano forense, ligada à
indevida inscrição de um nome em cadastro de inadimplentes:

DIREITO CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS


DECORRENTES DA INSCRIÇÃO INDEVIDA DO NOME DO AUTOR
EM CADASTROS DE INADIMPLÊNCIA. PEDIDO JULGADO PRO-
CEDENTE. EXECUÇÃO DO JULGADO. DISCUSSÃO A RESPEITO
DO DIES A QUO PARA A FIXAÇÃO DOS JUROS. HIPÓTESE DE ATO
ILÍCITO, E NÃO DE ILÍCITO CONTRATUAL. A indevida inscrição de
um nome em cadastros de inadimplência consubstancia ato ilícito, e não um
inadimplemento contratual, ainda que a obrigação cujo alegado descumpri-
mento deu origem à inscrição tenha natureza contratual. O ilícito contratual
somente se configura quando há o descumprimento, por uma das par-
tes, de obrigação regulada no instrumento. A inscrição nos órgãos de
inadimplência não representa o exercício de um direito contratual.
Quando indevida, equipara-se a um ato de difamação. – Tratando-se
de ato ilícito, os juros devem incidir na forma da Súmula 54/STJ, ou
seja, a partir da prática do ato. – Na hipótese dos autos, todavia, não
há recurso do consumidor visando à integral aplicação do disposto da
Súmula 54/STJ, de modo que, para evitar a ocorrência de reformatio in
pejus, mantém-se o acórdão, que havia fixado o início do cômputo dos
juros na data da citação para o processo de conhecimento. Recurso
parcialmente conhecido e, nessa parte, provido. (REsp nº 660.459/RS,
Rel. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, Rel. p/ Acórdão Ministra
Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. 2.4.2007, DJ, p. 269, 20 ago. 2007)

O que os dois exemplos acima transcritos demonstram corrobora


a distinção formulada no primeiro capítulo deste trabalho quanto à
existência de atos ilícitos absolutos e atos ilícitos relativos e a necessi-
dade de precisão de tais conceitos no momento da definição do regime
de responsabilidade a ser aplicável.
Num cenário em que é cada vez mais tênue a linha divisória entre
os modelos de responsabilidade, facilitaria a tutela dos interesses da
vítima na direção da reparação dos danos sofridos, pois existem muitas
variáveis a considerar. Anote-se, ainda em relação ao segundo exemplo
citado, que o fato da qualificação da indevida inscrição restritiva de
crédito como ato ilícito e não como inadimplemento contratual, se por
um lado é positivo para a disciplina do regime de juros aplicável, por
outro lado impõe prazos prescricionais menores.

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MARCOS EHRHARDT JR.
EM BUSCA DE UMA TEORIA GERAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL
353

Caso se opte por exacerbar as diferenças entre os regimes, como,


aliás, escolheu a doutrina tradicional, sobretudo durante a vigência do
CC/16, deve-se levar em consideração que a jurisprudência aponta cada
vez mais a um modelo misto, que começou a se desenvolver a partir
de casos em que se permitiu a cumulação, numa mesma demanda, de
pretensões indenizatórias com fundamentos extracontratual e contra-
tual distintos.69
Na verdade, o que se constata é que estão se consolidando no pla-
no jurisprudencial as bases para uma teoria geral do inadimplemento,
a ser complementada pelo tratamento específico e particular em alguns
pontos, conforme demonstrado acima, em relação à fixação da com-
petência, regime de juros e prescrição a ser aplicável ao caso concreto.
Como isso não está previsto em lei e vem sendo construído
doutrinária e jurisprudencialmente, surge uma importante indagação:
pode-se escolher a que regime se quer submeter-se?
Pode o magistrado realizar uma escolha motivada, afastando
regras próprias de um regime para aplicação do outro, valendo-se de
uma interpretação fundada em princípios?
A análise de um caso concreto fornecerá mais subsídios para o
debate. Em 2005, o Superior Tribunal de Justiça apreciou um caso de
acidente de trânsito,70 no qual a empresa transportadora fora condenada
a indenizar os prejuízos sofridos por um dos passageiros do ônibus.
Os ministros fundamentaram seu entendimento na responsabilidade
contratual objetiva, razão por que a incidência dos juros moratórios
foi determinada apenas a partir da citação, nos termos do consolidado
entendimento daquela Corte, cristalizado na Súmula nº 54 do STJ.
Imagine-se situação diversa, envolvendo empresa transportadora
de cargas contratada por uma empresa de engenharia para transportar

69
AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. CUMULAÇÃO DE DEMANDAS. INADIMPLEMENTO
DO CONTRATO DE SEGURO E ILÍCITO EXTRACONTRATUAL DO CAUSADOR DO
ACIDENTE. 1. Não há impossibilidade jurídica do pedido de indenização cumulando aquela por
inadimplemento contratual e aquela por ilícito extracontratual. 2. Recurso especial conhecido e
provido (REsp nº 618.138/SP, Rel. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, Terceira Turma,
j. 4.8.2005, DJ, p. 264, 07 nov. 2005).
70
CIVIL RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. EMPRESA TRANS­
POR­ TADORA, PRESTADORA DE SERVIÇO PÚBLICO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO.
DANOS MORAIS E MATERIAIS. CABIMENTO. DANOS ESTÉTICOS. INOCORRÊNCIA.
QUANTUM. REDUÇÃO. JUROS MORATÓRIOS. RESPONSABILIDADE CONTRATUAL.
SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA. ART. 20 E 21 DO CPC. (...) 3. Cuida-se, na hipótese, de passa-
geiro de ônibus, havendo portanto responsabilidade objetiva e contratual da empresa de transportes. A
orientação desta Corte é no sentido de que em tal circunstância os juros moratórios correm a partir da
citação. Inaplicável, in casu, a Súmula 54/STJ, por não se tratar de responsabilidade extracontratual.
(Precedentes: REsp nº 327.382/RJ; REsp nº 131.376/RJ; (...) (REsp nº 726.939/RJ, Rel. Ministro
Jorge Scartezzini, Quarta Turma, j. 24.5.2005, DJ, p. 559, 1º jul. 2005).

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
354 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

equipamentos para um novo canteiro de obras. Um dos funcionários da


empresa contratante fora designado para acompanhar todo o transporte
(e tal atividade constava do contrato celebrado entre as partes) e acabou
lesionado por conta de um acidente de trânsito durante o transporte.
Aplicando-se o mesmo entendimento do STJ no julgamento do
caso acima referido, estar-se-ia diante de responsabilidade contratual
da transportadora, com fluência de juros a partir da citação.
No entanto, caso no mesmo acidente também tenha sido lesio-
nada outra pessoa, que estava passeando pela calçada no momento
do acidente e que, igualmente, tenha sofrido danos materiais e morais
provocados pelo veículo da empresa transportadora, a solução seria
diferente. Analisando a pretensão indenizatória pela perspectiva do
Código Civil, estar-se-ia diante de responsabilidade extracontratual da
transportadora, que por isso arcaria com o pagamento de juros mora-
tórios desde a ocorrência do ato ilícito, ou seja, do acidente.
Desse modo, no que concerne à incidência dos juros moratórios,
seria possível concluir ser mais benéfico o tratamento no campo extra-
contratual do que no campo contratual, ocorrendo evidente vantagem
para o terceiro em relação ao passageiro, considerando-se que no caso
hipotético em análise não incidiriam as normas do Código de Defesa
do Consumidor.
Uma vez detectada tal contradição, seria possível buscar uma
interpretação que prestigiasse os objetivos constitucionais de proteção
da pessoa humana em direção a uma reparação integral, sustentando-se,
em relação a ambos os casos, que os danos experimentados pelas víti-
mas atingiram bens extrapatrimoniais, merecendo idêntico tratamento
independentemente do regime de responsabilidade a ser adotado?
A resposta é afirmativa. O contrato seria considerado um elemen-
to totalmente contingente, incapaz de alterar o regime aplicável.71 O
que se pretende afirmar com tal assertiva é que o modelo constitucional
vigente impõe uma interpretação que seja mais favorável à vítima do
dano, sendo o magistrado o fiel depositário dessa missão constitucional,
a ser desempenhada com uma interpretação do texto legal que busque
a máxima funcionalização dos institutos, em atenção às exigências de
solidariedade e justiça social, previstas na Carta Magna.

71
SILVA. Inadimplemento das obrigações, p. 60. No mesmo sentido o entendimento de Fernando
Noronha: “a solução ficará mais clara se admitirmos que a responsabilidade do transpor-
tador, no caso de danos corpóreos, nunca poderá ser considerada contratual, por estarem
em causa bens indisponíveis” (NORONHA. Direito das Obrigações, p. 528).

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MARCOS EHRHARDT JR.
EM BUSCA DE UMA TEORIA GERAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL
355

Dessa forma, é possível concluir que de acordo com o atual es­


tá­gio do sistema jurídico pátrio, a melhor alternativa aponta para a
autonomia do dever de reparar, sob a perspectiva de que cada lesão
concretamente produzida não recai apenas sobre aquele que a supor-
tou, mas, de modo mais ou menos intenso, sobre toda a coletividade.72
Razão pela qual existem recursos teóricos suficientes para caminhar no
sentido da aproximação entre os regimes de responsabilidade extrane-
gocial e responsabilidade negocial até a sua unificação, o que facilitará
a configuração do dever de indenizar pela violação de deveres não
prestacionais, independentemente de existir qualquer patologia ligada
ao adimplemento prometido ou desempenhado.73

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72
CATALAN. A morte da culpa na responsabilidade contratual, p. 95.
73
CATALAN. A morte da culpa na responsabilidade contratual, p. 96.

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VINEY, Geneviève. Les obligations: la responsabilité, effets. Paris: LGDJ, 1988. Traitè de
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

EHRHARDT JR., Marcos. Em busca de uma teoria geral da responsabilidade


civil. In: EHRHARDT JR., Marcos (Coord.). Os 10 anos do Código Civil: evolução
e perspectivas. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 325-356. ISBN 978-85-7700-616-8.

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CODIFICAÇÃO OU INTERPRETAÇÃO? OS
EFEITOS POSSÍVEIS DOS ILÍCITOS CIVIS

FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO

1 O ambiente metodológico das codificações e a


ilicitude civil
É comum o exagero ao se comentar as novas legislações. Isso, de
algum modo, aconteceu cerca de dez anos atrás, quando do surgimento
do Código Civil de 2002. Esse exagero pode se apresentar de várias for-
mas: o apego exagerado à letra da nova lei, numa reverência religiosa
às suas disposições; o exagero niilista, que nada vê de aproveitável, e
tudo quer destruir; e o exagero em superdimensionar as mudanças,
potencializando, cegamente, certas alterações, como se fossem a rein-
venção da roda.
É prudente, portanto, evitar excessos. Até porque, como afirmou
certa vez um escritor, o novo não é sinônimo de qualidade teórica. O
autenticamente novo é um fiel depositário da tradição.
Quem já vinha acompanhando a cena do Direito Civil não se sur-
preendeu com o conteúdo normativo do Código Civil vigente. Ele não
trouxe — apesar de certas afirmações peremptórias, veiculadas, vez por
outra, na imprensa, cerca de dez anos atrás — alterações substanciais,
que não aquelas já resultantes da Constituição de 1988.
O que é relativamente comum é que os juristas, formados num
ambiente metodológico de excessivo apego às gramaticalidades,

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
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hesitam em concretizar, pela interpretação, as opções valorativas


presentes na Constituição, preferindo aguardar que a lei confirme o
que a Constituição já disse.
Em sendo assim, não é de se estranhar que alguns tenham can-
tado loas ao Código Civil vigente, como se fosse um divisor de águas
no Direito Civil. Não foi. Grande parte dos avanços que consagrou,
conquanto topicamente louváveis, já poderiam ser alcançados pela via
hermenêutica. A questão, cabe repetir, é mais profunda, e reflete a pró-
pria formação cultural do civilista. Ninguém desconhece que os juristas,
com o seu conservadorismo inteligente, não se sentem confortáveis com
o novo. Há, muitas vezes, um remodelamento cosmético dos sistemas
teóricos conhecidos, mantendo-se, no essencial, as mesmas convicções
formadas em outros contextos sociais.
Tal estado de coisas é particularmente visível nos ilícitos civis.
Há, de fato, uma tendência em rearrumar velhas e gastas categorias,
ofuscando uma real renovação, que está em curso no Direito Civil
contemporâneo.
Não havendo possibilidade de desenvolver, neste artigo, as múl­
tiplas conexões de sentido que os ilícitos ensejam, desde que perspecti-
vados à luz de valores constitucionais, limitaremos nossas ponderações
a dois pontos básicos: (a) a crítica ao paradigma clássico, que insiste em
identificar a ilicitude civil à responsabilidade civil; (b) a substituição,
na análise dos casos, da função repressiva à função preventiva, em
tema de ilícitos civis.
No que tange ao item “a”, cabe referir que um dos mais notórios
mal-entendidos, em matéria de ilicitude civil, é a exaltação despropo-
sitada da indenização ou reparação, como se apenas elas figurassem
no palco dos efeitos por eles — ilícitos — produzidos.
Tal identificação — ilicitude civil e responsabilidade civil — não
é verdadeira. A responsabilidade civil — cabe sempre repetir — é efeito
de certos ilícitos civis, não de todos. Existem, portanto, ilícitos civis
que não produzem, como eficácia, o dever de indenizar. Nada, nestes
termos, autoriza uma abordagem conjunta e monolítica, que obscureça
as diferenças significativas existentes.
Não há, nessa perspectiva, fundamento teórico para tratar, de
forma indistinta, ilícitos e responsabilidade civil. Seria o mesmo, mal
com­parando, que confundir uma fábrica, produtora de um largo es­pectro
de produtos, com apenas uma de suas produções. A nosso sentir, tal
postura empobrece, inexplicavelmente, o contexto dos ilícitos, reduzindo
o gênero ao estudo dos efeitos de uma de suas espécies.

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FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO
CODIFICAÇÃO OU INTERPRETAÇÃO? OS EFEITOS POSSÍVEIS DOS ILÍCITOS CIVIS
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Em Direito Civil, os ilícitos, em geral, são os fatos jurídicos dos


quais decorrem o dever de indenizar. Quem, culposamente, causa dano
a outrem, comete ato ilícito, e deverá repará-los (Código Civil, art. 186).
Quem excede manifestamente os limites impostos pelo fim econômico
ou social do Direito, pela boa-fé ou pelos bons costumes (Código Civil,
art. 187) também pratica ato ilícito, e a consequência, em ambos os casos,
é a obrigação de repará-los.
Os ilícitos apresentam, como eficácia preponderante no Direito
Civil, o dever de reparar os danos causados. O Código Civil vigente
reconheceu essa realidade, e definiu, no art. 927, que: “Aquele que,
por ato ilícito (arts. 186 e 187) causar dano a outrem, fica obrigado a
repará-lo”. Portanto, os ilícitos civis, causando danos, obrigam quem
os provocou a repará-los.
Como já tivemos oportunidade de explicar em outra ocasião,
existem outros efeitos, além do dever de indenizar, que podem resultar
dos ilícitos civis (NETTO, Felipe Peixoto Braga. Teoria dos ilícitos civis.
Belo Horizonte: Del Rey, 2003).1 Aliás, essas outras espécies — para
além do ilícito clássico, produtor do dever de indenizar — não são
propriamente novidades em nosso Direito positivo. No nosso Código
de 1916, os ilícitos já não ostentavam apenas a eficácia indenizante.
Essa foi uma falha de perspectiva advinda do apego ao literalismo do
Código. Existiam então — como ainda hoje existem — ilícitos cujos
efeitos consistem em autorizações, ou ilícitos que implicam na perda
de direitos em relação a quem os praticou.
Não se pode cair na tentação fácil de classificar, como espécie
única, a espécie mais visível, ou a mais frequente. Ainda que a maioria
dos ilícitos civis importe em dever de indenizar, isso por certo não pode

1
A doutrina nacional, em sua amplíssima maioria, identifica ilícito civil com responsabilidade
civil. Imagina, portanto, que ilícitos civis são aqueles previstos no Código Civil (arts. 186
e 187), cujo efeito é, sempre e apenas, o dever de indenizar (art. 927). Tal visão, segundo
cremos, é parcial e não dá conta da realidade do mundo jurídico. Na verdade, bem vistas as
coisas, os ilícitos civis perfazem um rico gênero, variado e multiforme, cujos contornos não
aceitam a tradução dogmática oferecida pela doutrina clássica, ainda hoje repetida nas novas
edições.
Pontes de Miranda, com a antevisão que o distinguia, percebeu, antes de todos, que os ilí-
citos civis são um gênero com múltiplas espécies, cada uma delas com requisitos e efeitos
diferenciados. Marcos Bernardes de Mello, em sua Teoria do fato jurídico — trilogia que ad-
quiriu, por seus méritos, lugar entre os clássicos da literatura jurídica nacional —, sistema-
tizou e problematizou, relativamente aos ilícitos, a obra de Pontes, ocupando a parte final
do primeiro volume — Teoria do fato jurídico: plano da existência. Propusemos, em outra
oportunidade — Teoria dos ilícitos civis, 2003 —, uma nova abordagem do tema, fundada, pre-
cipuamente, na classificação à luz de três critérios distintos (suporte fático abstrato; relação
jurídica violada; efeitos produzidos).

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
360 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

servir de escusa para lançar as demais espécies para debaixo do tapete.


Se a eficácia indenizante não exaure o espectro das eficácias possíveis,
está evidenciada a inconveniência do critério clássico.
É interessante, portanto, sob o prisma teórico, mostrar que não
existe uma relação necessária entre os ilícitos civis e o dever de indeni-
zar. Apenas para exemplificar, a ingratidão do donatário é um ilícito civil
cujo efeito consiste, exatamente, na possibilidade, que o ordenamento
faculta ao doador, de revogar a doação, se assim lhe aprouver (art. 557,
CC/02; art. 1.183, CC/16). Trata-se, portanto, de uma autorização como
efeito de um ilícito.
Os ilícitos civis também podem dar ensejo à perda de direitos
e demais categorias de eficácia. Por exemplo, o herdeiro que sonegar
bens, não os levando à colação, perde o direito que sobre eles pudesse
ter (art. 1.992, CC/02; art. 1.780, CC/16). Quer dizer: a perda de um
direito como efeito de um ato ilícito.
Enfim, é apenas uma demonstração, sumária e singela, que os
efeitos possíveis são múltiplos, não se resumem a uma eficácia única.
É equivocada a leitura tradicional, que vincula, de modo absoluto, os
ilícitos civis a uma eficácia monolítica, ofuscando as ricas possibilida-
des que o sistema jurídico, adequadamente compreendido, oferece. A
doutrina ainda hesita em admiti-los, negando a realidade que emerge
do próprio direito legislado. Mas, entre a negação de um fenômeno e
a sua inexistência, vai uma distância considerável.
Além do mais, e ingressando no item “b”, o senso comum teórico
confere, aos ilícitos, uma eficácia puramente repressiva, posterior ao
dano, que não é adequada à proteção dos chamados novos direitos,
os direitos extrapatrimoniais. Tal visão, tradutora de uma concepção
monetarista dos direitos, não há de ter uma acolhida confortável entre
nós. Não podemos nos dar por felizes, atualmente, em conceber, para
os direitos da personalidade, uma tutela repressiva, cuja sanção só se
faça sentir depois das violações ocorridas.
O Direito não pode, no século XXI, sob nossa complacência, igua-
lar, em termos de proteção jurídica, a pessoa humana e a propriedade.
Por incrível que pareça, a tradição do nosso Direito é diferenciar esses
bens — a pessoa humana e a propriedade —, mas diferenciar — pas-
mem — para assegurar uma proteção diferenciada para a propriedade.
No Direito Civil, só tínhamos tutela preventiva para o patrimônio,
com o interdito proibitório e a nunciação de obra nova, remédios que
protegem a posse e a propriedade.
E a pessoa humana? Não tínhamos, No Direito Civil, uma figura
semelhante ao mandado de segurança, que possa ser manejado de forma

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FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO
CODIFICAÇÃO OU INTERPRETAÇÃO? OS EFEITOS POSSÍVEIS DOS ILÍCITOS CIVIS
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preventiva. Quer dizer, tínhamos no Projeto do Código do Consumidor,


mas foi objeto de veto presidencial. O Código Civil prevê, no art. 12,
a chamada tutela inibitória, oportunizando a concessão de uma tutela
preventiva quando agredido direito da personalidade.
No entanto, mais à frente, o Código insiste na vinculação, equivo-
cada, da ilicitude à reparação. O art. 927 tem a seguinte redação: “Aquele
que, por ato ilícito, causar dano a outrem, é obrigado a repará-lo”. O
artigo tem dois inconvenientes. O primeiro é fazer supor que apenas o
ilícito dá ensejo à reparação, o que não é verdadeiro. Os atos praticados
em legítima defesa e em estado de necessidade também podem obrigar
a reparar, e não são ilícitos. O outro inconveniente — esse mais grave
— é a insistência na reparação como o único efeito possível que pode
resultar de um ilícito civil.
Essa vinculação — da ilicitude à reparação — não é correta. E não
é correta por várias razões, algumas das quais já foram mencionadas.
Mas há outra. É que a reparação, por sua própria definição, é posterior
ao ilícito, vem depois de já ocorrido o dano. E para os novos direitos,
os chamados direitos extrapatrimoniais, essa forma de tutela não é a
mais adequada.
E por que não é a mais adequada? Porque ela não impede a
agressão, a violação ao bem jurídico. Ela apenas procura, depois de
que agressão aconteceu, recompor, com dinheiro ou com bens, aquela
esfera jurídica atingida. O ilícito civil, em termos de hoje, deve ser
perspectivado não só como representante do dever de indenizar, mas
também, fundamentalmente, como a categoria que possibilita uma
atuação reativa do sistema para evitar a agressão aos valores, prin-
cípios e normas protegidos pelo Direito. Por razões metodológicas,
analisaremos, inicialmente, a dimensão interpretativa do Direito Civil
e seus reflexos na codificação do Direito. Voltaremos, depois, ao tema
esboçado nesta introdução, concluindo o argumento inicial.
Cabe apenas frisar, como encerramento do presente tópico, que os
códigos, grosso modo, perfazem o marco da estabilidade e permanên-
cia na experiência jurídica. Firmaram-se como modo de legislar numa
época em que a segurança era o valor-fim do ordenamento. Talvez por
isso, a metodologia, a eles associada, é hermeneuticamente pobre.2 As

2
Pontes de Miranda constatou a inércia mental que costuma acometer os juristas frente às
novas codificações: “As codificações ossificam, dão rigeza oficial e arquitetônica às leis. O
primeiro pendor dos comentadores é para a exegese literal, ou a distribuição das regras em
proposições coerentes, lógicas, que nunca se podem atacar entre si, nem, sequer, premir”
(Tratado de direito privado, p. 70). Menezes Cordeiro, em perspectiva semelhante, pondera:
“As codificações, essencialmente redutoras e simplificadoras, provocam, num primeiro mo-
mento, atitudes positivistas. Trata-se de uma conjunção facilmente demonstrada na França

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
362 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

codificações, pelas conexões lógicas que propiciam, oportunizam o


surgimento de um tipo de pensamento marcado por nexos formais e
conceituais, que afastam, como promiscuidade teórica, as concepções
mais arejadas, mais sensíveis às sugestões sociais.3
A questão, que deve prefaciar as discussões relativas ao Código
Civil brasileiro, é fundamentalmente metodológica: como ocorre sua in-
serção no Direito Civil nacional? O Código é um instrumento prestante
para veicular os valores e princípios constitucionais? Em que medida o
Direito Civil é atingido, em sua essência, pelo advento de um Código?
O ambiente contemporâneo mal disfarça uma certa desconfiança,
um certo estranhamento com a figura dos códigos.4 Seria pertinente
regular, mediante grandes leis, relações sociais tão caracteristicamente
instáveis? Ou, por outra, a codificação seria um instrumento próprio
dos séculos passados, anacrônico no século vinte e um, e antitético à
chamada pós-modernidade?
Atualmente, mercê das opções valorativas básicas delineadas
pela Constituição, nenhuma lei pode estabelecer uma nova ordem de
valores, significativamente distinta da já existente até seu advento. Em
relação aos códigos civis, é bem modesto o seu papel, se comparado
com a função de centralidade que puderam ostentar durante séculos.
Seus conteúdos normativos não podem, portanto, senão densificar, em
regras, as normas que já estão potencialmente dispostas, em forma de
princípios, na Constituição.
Questão interessante, e correlata à acima referida, é a inserção
do novo Código num sistema jurídico avesso a centralismos, refratário
à disciplina das relações privadas num único instrumento normativo.
O Código resgataria, em certo sentido, a centralidade perdida? Seria
esta, em alguma dimensão, a sua proposta?
Parece incorporado, ao aparato conceitual dos civilistas, a
crença de que tanto mais avançada será uma lei quanto maior for sua
potencialidade em exprimir a normativa constitucional.5 O Código do
Consumidor, nesse sentido, foi louvado não apenas por seus valores

pós-1804, na Alemanha pós-1900 e em Portugal pós-1966” (Os dilemas da ciência do direito


no final do século XX: prefácio. In: CANARIS. Pensamento sistemático e conceito de sistema na
ciência do direito, p. 13).
3
REIS. A matematização do direito e as origens da parte geral do direito civil. Revista de
Informação Legislativa, p. 124.
4
“O racionalismo marca, assim, a ciência jurídica moderna, cuja nota específica é a exatidão.
Sua realização máxima são os códigos e as constituições: razão, direito e política. O pensa-
mento sistemático invade a ordem jurídica” (AMARAL. Racionalidade e sistema no direito
civil brasileiro. Revista de Direito Civil, p. 47).
5
MONATERI. Pensare il diritto civile, p. 24-25.

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363

intrínsecos, e sim pela forma com que traduziu, em sede legislativa,


valores consignados na Constituição.

2 Heterogeneidade valorativa e complexidade social


O Direito atual é o Direito do heterogêneo e do plural. A heteroge-
neidade está na Constituição, como resultado multiforme de tendências
díspares; a heterogeneidade está nos valores, nem sempre conciliáveis,
a exigir ponderação; a heterogeneidade está nas fontes normativas,
cambiantes, hierarquicamente indefinidas, sem um papel previamente
estabelecido; a heterogeneidade, por fim — numa lista obviamente
exemplificativa — está nos sujeitos de direito, que deixaram de ser
a figura uniforme do citoyen para assumir a condição da pluralidade
concreta: são múltiplos os sujeitos de direito, cada um — consumidor,
possuidor, contratante — merecendo uma proteção diferenciada.
O sistema jurídico, nos dias que correm, não é formado, apenas,
por relações lógicas, claramente identificáveis. Há, também, por certo,
relações valorativas, cujas cargas não são passíveis de isolamento,
de mensuração precisa e objetiva.6 Há uma percepção difusa, porém
progressiva, da perda de certeza e de previsibilidade, como elementos
chaves do sistema jurídico. Trata-se, goste-se ou não, mais de uma
constatação empírica do que de um juízo de valor. As decisões judiciais
se valem, com uma intensidade cada vez maior, de elementos criativos
que não estavam, senão potencialmente, no sistema jurídico.
Vez por outra ganha corpo a crítica, recorrente, de usurpação,
pelo Judiciário, das funções próprias do Legislativo. Trata-se, no entan-
to, de postura teórica claramente envelhecida.7 A perda, pelo Legislativo,
da centralidade sistêmica que passou a ostentar a partir da Revolução
Francesa pode ser historicamente conectada, dentre outros múltiplos
fatores, à natural evolução social, cuja complexidade não permite que
o Estado, pela só edição de leis, tutele, adequadamente, os seus cida-
dãos. As constituições contemporâneas, ademais, impõem valores cuja
concretização há de se dar, sobretudo, pela via judicial.
Desde a clássica resposta de Hesse a Lassalle, acerca de força
normativa da Constituição, a história das ideias, no cenário jurídico,
conta com a percepção de que o direito condiciona e é condicionado.

6
WEINBERGER. Politica del diritto e istituzioni. In: MACCOMICK; WEINBERGER. Il diritto
come istituzione, p. 287.
7
ORRÚ. Richterrecht: Il problema della libertà e autorità giudiziale nella dottrina tedesca
contemporânea, p. 126.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
364 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Pretende alterar a realidade mas é, em larga medida, alterado por ela.


Tal truística constatação é o resultado a que se chegou após excessos
sociologistas e positivistas.8
Embora a ninguém surpreenda a tese da supremacia formal da
Constituição, o fato é que a convivência, efetiva e frequente, da normati-
va constitucional com as leis civis é algo recente, cuja tecnologia está em
construção. A própria incidência direta da Constituição sobre as relações
civis, conquanto indiscutivelmente possível, abre, operacionalmente,
um campo fértil de dúvidas, em especial pela ausência de tradição de
manejo que os operadores do direito, formados na escola axiomático-­
dedutiva, têm com as normas de teor semântico menos preciso.
Há um curioso e inédito intercâmbio, em curso, entre os ramos
do Direito. As teorias e técnicas parecem perder a referenciabilidade
unívoca a uma área, ou setor, do Direito, ganhando espectros mais am-
plos de atuação. A convivência fecunda do Direito Civil com o Direito
Constitucional faz com que este traga ao Direito Civil não apenas os
conteúdos normativos fundamentais, mas também, inovadoramente,
uma metodologia científica própria, desconhecida, até então, no Direito
privado. Os temas versados em sede constitucional — princípio da
proporcionalidade, eficácia direta e em face de terceiros dos direitos
fundamentais (Drittwirkungen), para ficarmos apenas nos exemplos
paradigmáticos — são projetados, auspiciosamente, para as cogitações
civis, renovando as ferramentas tradicionais dos civilistas.9
Tal eficácia, que independe da interpositio legislatoris, evidencia,
com cores nítidas, a força normativa dos direitos fundamentais, que
iluminam e condicionam as relações civis, rompendo, decisivamente,
com as velhas e esquemáticas noções de público e privado. Um dado
fundamental, e pleno de significações, é que, mercê de peculiaridades
históricas, os direitos fundamentais se afirmaram frente aos poderes do
Estado. Hoje, com o caráter multilateral que lhes é próprio, a proteção,
que deles surgem, não se esgota, naturalmente, face ao Estado, mas
se projeta frente a outros entes (empresas, fornecedores, sociedades
despersonalizadas etc.).
O Direito Civil, então, passa a ser regido por normas que não
cabem nos códigos. Quer dizer, ainda que os códigos tragam, aqui e ali,
princípios e regras que espelhem tal orientação, a natureza normativa
dos direitos fundamentais torna impossível o aprisionamento, em
numerus clausus, das possibilidades hermenêuticas deles decorrentes.

8
MÜLLER. Discours de la methode juridique, p. 169.
9
FARIAS; ROSENVALD. Curso de direito civil. contratos: teoria geral e contratos em espécie,
p. 38.

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CODIFICAÇÃO OU INTERPRETAÇÃO? OS EFEITOS POSSÍVEIS DOS ILÍCITOS CIVIS
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Por certo, a percepção, em si inovadora, da eficácia dos direitos


fundamentais nas relações particulares, não é uma panaceia para todos
os males. O Direito não tem poderes distributivos milagrosos, cabendo-­
lhe, quase sempre, a ingrata tarefa de distribuir recursos escassos. Os
direitos fundamentais, nessa perspectiva, não podem resultar numa
panresponsabilização, levando ao colapso do sistema jurídico. A incorpo-
ração, à técnica jurídica, de um novo instrumento, leva, num primeiro
momento, a excessos juvenis, que o tempo se encarrega de corrigir.
Não se trata, é bem de ver, de uma percepção estática, e sim di-
nâmica, porquanto insta o hermeneuta a construir pontes, janelas e vias
de contato entre as matérias jurídicas, numa conexão intrassistemática,
sem prejuízo das conexões externas, que relacionam, dialeticamente,
o Direito à sociedade.
Essa dinamicidade naturalmente indispõe-se com hierarquias
rígidas, com escalas apriorísticas de valores, definidas ao largo dos
conflitos concretamente configurados.10 Além do mais, há uma preo-
cupação, bastante oportuna, com a justiça concreta, e não com ideais
abstratos, discursivos e solenes, que dominaram o cenário jurídico num
passado recente.
Uma teoria, aos olhos de hoje, será tão mais sofisticada quanto
maior for o seu potencial de resolver, pragmaticamente, os conflitos
sociais. Não que a chamada ciência jurídica tenha perdido, de todo, seu
potencial especulativo e generalizante. Apenas se apurou, com novos
contextos históricos, a feição do Direito como prática social, em detri-
mento das especulações puramente lógicas, sem repercussão possível
na realidade social.
Houve, portanto, uma perda evidente da autorreferência que,
de modo tão próprio, caracterizou o Direito Civil. Os intercâmbios
normativos, entre setores antes isolados, passaram a ser cada vez mais
comuns. Aliás, a metodologia jurídica — tema central durante todo o
século XX —11 parece perder o pudor de contato com as demais ciências
sociais, algo a todo custo evitado, séculos atrás.
Os positivismos, de múltiplos matizes teóricos, tão exaltados
no século XX, chegam sem força ao século XXI. Ninguém mais crê,
cegamente, nas potencialidades absolutas da lei, na desconsideração —

10
GIORGI. Scienza del diritto e legittimazione, p. 242 et seq.
11
“O formalismo e o positivismo, apresentados, respectivamente, como o predomínio das es-
truturas gnoseológicas de tipo neo-kantiano e como a recusa, na ciência do Direito, de con-
siderações não estritamente jurídico-positivas, constituem o grande lastro metodológico do
século vinte” (CORDEIRO. Os dilemas da ciência do direito no final do século XX: prefácio.
In: CANARIS. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito, p. 15-16).

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
366 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

como uma postura teórica possível — de conteúdos mínimos de ética


e razoabilidade, na formulação e aplicação das leis.
As posições jurídicas — antes absolutas, no auge do individua­
lismo — são crescentemente moduladas. O proprietário, para o ser
legitimamente, deve considerar os interesses do não proprietário; o
credor do devedor; o fornecedor do consumidor, e assim sucessiva e
reciprocamente. Lorenzetti menciona a passagem do sujeito isolado para
o sujeito situado.12
O paroxismo voluntarista conduziu a desvios e a injustiças
intoleráveis para a mentalidade contemporânea. O pensamento clás-
sico olvidou, conscientemente ou não, que a liberdade jurídica, sem a
correspondente liberdade econômica, não passa de mera quimera.13 Os
juristas tardaram a perceber que a autonomia da vontade é um valor
político, antes de ser um valor jurídico.14
Os valores éticos penetram nas brechas dos seculares institutos
civis, dissolvendo-lhes, pouco a pouco, o excessivo teor patrimonialista,
e relativizando-lhes, progressivamente, o destacado acento formal.
Há uma clara passagem, nos dias que correm, do técnico ao ético.
A beleza formal das construções conceituais, patrimônio indiscutível
da pandectística, teve seu espaço e importância, mas seria francamente
despropositado que nós, ainda hoje, nos detivéssemos a discutir fili-
granas formais e não conteúdos materiais. O Direito não perdeu sua
dimensão técnica. Apenas acrescentou, a ela, outras dimensões, de
maior importância.

3 A dimensão interpretativa do Direito Civil


Hoje, tratar de qualquer instituto jurídico é cuidar, em alguma
medida, de hermenêutica. Mais relevante do que apontar alterações,
pontuais, em regras jurídicas, é frisar a renovação, portentosa e marcante,
da atividade de pensar, construtivamente, o Direito. Nelson Saldanha já
alertou que a interpretação não é algo externo ao Direito, que a ele — tido
como norma — vem se juntar.15 A interpretação integra, em certo sentido,

12
LORENZETTI. Fundamentos do direito privado, p. 83.
13
PUENTE Y LAVALE. Nuevas tendencias en la contratación moderna. Revista Peruana de
Derecho de la Empresa, p. 10.
14
RIEG. Le rôle de la volonté dans la formation de l’acte juridique d’après les doctrines
allemandes du XIX siècle. Archives de Philosophie du Droit, p. 126.
15
“Não cabe falar do Direito como algo completo, como um objeto inteiriço, ao qual se vem
agre­gar a interpretação”. Mais adiante, acrescenta: “a positividade da ordem jurídica não seria
inteligível sem as significações que cabe ao jurista ao mesmo tempo manter e questionar (...)

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o próprio Direito, sendo este o resultado de uma complexa atividade, no


qual a norma, embora relevante, é apenas um ponto de partida.
A dimensão interpretativa assume notável relevância. Toda ca-
tegoria jurídica é, hoje, em alguma medida, permeável a mudanças de
sentido resultantes do processo hermenêutico. Mesmo porque, observa
ironicamente Perelman, a clareza da norma muitas vezes não passa de
falta de imaginação do intérprete.16 Aliás, o próprio Direito romano,
referencial obrigatório do Direito clássico, teve suas grandes caracte­
rísticas firmadas no período da interpretatio, mercê de substanciais
trabalhos hermenêuticos perspectivados, embora a partir da práxis.17
A formação cultural do civilista, habituados que somos a lidar
com dogmas e permanências, nos põe inquietos e mal-ajustados com
o caráter ambíguo e avesso a racionalismos que caracteriza o sistema
jurídico contemporâneo. Não deixa de ter certo sabor de obviedade a
afirmação da existência de condicionamentos que impedem a percepção
de fenômenos relativamente evidentes. Sob o prisma social, a repeti-
ção de certos padrões faz com que somente a muito custo aceitemos
outros como legítimos. Sob o ângulo científico, a consagração de um
paradigma, afasta, como discursos teoricamente descontextualizados,
afirmações cujas pautas temáticas contornem, ou desviem, os percursos
dogmáticos aceitos.18
A história do Direito Civil — que em tantos aspectos se confunde
com a própria história humana —, pródiga em conceitos, categorias e
institutos seculares, criou, naturalmente, as condições propícias ao sur-
gimento de padrões lineares e estáveis de pensamento, secundados por
uma linguagem própria, autorreferente e monolítica. Essa estabilidade
relativa atravessou séculos alimentando a convicção, oculta ou latente,
de que as grandes unidades conceituais e epistemológicas permanece-
riam, a despeito das mudanças, profundas e estruturais, com que cada
época, historicamente situada, plasmou suas relações sociais.19
O civilista, cioso da magnitude de seu saber, sempre foi alguém
que olhava com certo desdém para as modificações sociais. Não lhe

o jurídico, neles, está no conjunto de significações que se atribui a esta ordem, e que a tornam
viva, relacionando-a com a consciência social” (SALDANHA. O componente hermenêutico:
sobre a necessidade de repensar a noção de direito. Revista de Direito Civil, p. 9, 14).
16
PERELMAN. Lógica jurídica, p. 51.
17
JOLOWICZ. Historical Introduction to the study of Roman Law, p. 87.
18
KUHN. A estrutura das revoluções científicas, p. 196-200.
19
Alguns juristas, ciosos do seu domínio, pugnam para que o Direito Civil reconquiste a cen-
tralidade perdida, retome “a posição condutora e paradigmática que lhe tem pertencido ao
longo dos tempos na investigação da generalidade dos temas comuns aos vários ramos do
direito” (COSTA. Direito das obrigações, p. 348).

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
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parecia possível que, fosse qual fosse a situação histórica, pudesse haver
mudanças de rota significativas na sua ciência. Firmou-se, institucional-
mente, um paradigma, normativo e científico, cujos postulados básicos
eram capazes de sustentar, com sólidas estruturas formais, quaisquer
embates existentes lá embaixo, no plano dos contatos sociais.
Essa tendência à abstração e ao isolamento marcou, como nota
típica, as manifestações dos últimos séculos — devendo ser referido,
naturalmente, que semelhantes afirmações, porque amplas e peremptó-
rias, carregam enorme grau de imprecisão e exceções pontuais. Grosso
modo, porém, um certo formalismo característico, um certo dar de om-
bros com as especificidades socioculturais, timbrou, sob certo aspecto,
o modo de ser do civilista clássico.
Não deixa de ser curioso perceber como tais características, que se
tornaram clássicas, contradizem, ontologicamente, as propostas, básicas
e originárias, do Direito Civil, como o direito do homem comum, das
relações sociais despidas de outras notas especializantes. Esses padrões
mentais tendem a se reproduzir, sem uma reconsideração crítica das
premissas adotadas. A questão, verdadeiramente provocadora, que
os estudos recentes acenam, é a seguinte: está em curso, de fato, uma
re­volução metodológica no Direito Civil, ou um mero reajuste de rota,
como tantos já havidos, próprios dos períodos de crise?20
A digressão é pertinente, porquanto oportuniza a reflexão acerca
das ferramentas metodológicas do civilista no século XXI. O modelo
cognitivo, que ao civilista de hoje se põe, ostenta, naturalmente, um
espectro temático insuspeitado para os séculos passados, caracteristi-
camente formais.
Seria impertinente, nessa perspectiva, tratar, atualmente, qual-
quer tema a partir do estatuto epistemológico que a tradição nos legou.
É imperioso, portanto — e é tarefa para esse início de século — construir
modelos teoricamente mais atuais, que deem conta de compreender,
menos imperfeitamente, as hipercomplexas relações sociais.
Virou lugar-comum, nas últimas décadas, consignar que o Direito
Civil está em crise. Talvez fosse mais apropriado dizer que a crise é algo
intrínseco ao Direito, nas complexas sociedades contemporâneas, e o

20
Cabe indagar da novidade conceitual da noção da era da informação, ou, mais propriamente,
em uma sociedade informacional (ACHAM. Vernunftanspruch und Erwartungsdruck. Studien zu
einer Philosophische Soziologie, p. 218 apud GUERRA FILHO. Autopoeise do direito na sociedade
pós-moderna, p. 25-26). Cabe destacar, portanto, o novum que vai além da mera novidade aciden-
tal. Há quem refira, em âmbito epistemológico, o surgimento do sujeito reflexivo (IBÁÑEZ.
Nuevos avances en la investigación social, p. 60).

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FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO
CODIFICAÇÃO OU INTERPRETAÇÃO? OS EFEITOS POSSÍVEIS DOS ILÍCITOS CIVIS
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inusitado — ou ingênuo — seria postular um Direito linear, monolítico


e estável, como uma espécie de contraponto à realidade com a qual
interage.
De toda sorte, é preciso redobrada prudência ao falar em crise.
Trata-se de termo historicamente gasto, que pouco explica.21 No Direi-
to, em particular, desde a Revolução Francesa, todos os períodos, sob
algum aspecto, englobam ou traduzem crises. A tendência de projetar
as características de uma época como características perenes torna o
conceito de crise um conceito recorrente. É que, não tarda, os contextos
sociais, renovando-se, indispõem-se com as categorias de pensamento
próprias de outras épocas, surgindo paradoxos e perplexidades.
A percepção, algo truística, da historicidade do fenômeno ju-
rídico livra-nos desses abismos conceituais. O jurista deixa de buscar
aparições ontológicas e passa a conviver, mais concretamente, com as
realidades sociais de seu tempo, buscando conferir-lhes razoabilidade.
Nessa perspectiva não há nada de novo em afirmar que as realida-
des sociais são outras, relativamente àquelas do passado. Nem mesmo
em afirmar que, mudando o contexto, deve mudar o texto, a norma.
No fundo, toda época se crê profundamente diferente da anterior, com
a qual, em regra, não quer se identificar.
Seria pertinente, a propósito, indagar da expressão pós-modernida-
de, cujo uso frequente traduz uma polissemia irritante. Afinal, desabafa
Paulo Rouanet, não é possível que um conceito signifique algo e ao
mesmo tempo o seu contrário. O mesmo autor, em trecho que merece
transcrição, analisa: “Dizer que somos pós-modernos dá um pouco a
impressão de que deixamos de ser contemporâneos de nós mesmos.
Seja como for, temos que aceitar filosoficamente o fato de que na opinião
de grande número de pessoas, nem todas lunáticas, entramos na era
da pós-modernidade”.22
Atualmente, continua Rouanet, há uma clara consciência de
ruptura. Como tal, pondera, o fenômeno merece ser levado a sério, por
mais confusas que sejam suas manifestações. Resta saber se a essa cons-
ciência corresponde uma ruptura real. Nem sempre existe coincidência
entre ruptura e consciência de ruptura. Menciona como exemplos,
respectivamente, a Revolução Francesa e a dicotomia antiqui/moderni
do século XIII, separados, segundo acreditavam, pela introdução do
ensino da filosofia aristotélica nas universidades.23

21
SALDANHA. Ordem e hermenêutica, p. 1.
22
ROUANET. As razões do iluminismo, p. 229.
23
ROUANET. As razões do iluminismo, p. 230-231.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
370 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Sem embargo dos significados possíveis da expressão, é inegável


que certas características, apontadas, pelos arautos da pós-moderni-
dade, como notas típicas das complexas relações jurídicas atuais já as
colocam em patamar diferenciado em relação àquelas historicamente
consagradas.
Expressivo da complexidade, para os padrões clássicos, das
experiências contemporâneas, é a contratualização da lei, contraposta,
em termos paradigmáticos, à crescente objetivação do contrato. Âmbitos
setoriais, com interesses claramente definidos, negociam e aprovam suas
leis. Lorenzetti menciona que na criação legislativa não há um ato de
soberania estatal, mas o acordo prévio dos grandes grupos organizados.
Em outros casos, pondera, a eficácia da lei depende exclusivamente do
consenso social que alcance.24
O curioso é que, na outra ponta, o contrato perde, progressi-
vamente, as suas qualidades mais conhecidas. Josserand se queixou,
algo desolado, que os contratos estavam se tornando menos e menos
contratuais. A feição clássica, à moda da oferta e da aceitação, ampla-
mente pensadas e amadurecidas, é algo que hoje — pelo menos como
modelo precípuo — só nos chega como sombra de épocas passadas.
A estrutura contratual contemporânea é de tal modo despersona-
lizada que já se cunhou, não sem significação, a expressão contratos sem
sujeitos.25 Tais alterações redefinem os padrões cognitivos básicos. Não
se trata de recondicionar, cosmeticamente, o instrumental dos séculos
passados. Situações historicamente inéditas pedem modelos jurídicos
atentos às suas particularidades. A autonomia da vontade, por exemplo,
que o Direito tradicionalmente assegurou às pessoas (ou autorregramen-
to da vontade, como prefere Pontes de Miranda) variou, naturalmente,
ao sabor das condições históricas, mas é sensível, há algumas décadas,
um movimento de crescente restrição a possibilidade de se impor, livre-
mente, regras, com pouca ou nenhuma intervenção estatal.26
A discussão, que contemporaneamente se põe, indaga dos limites
desse espaço deixado à vontade. Indaga-se, mais profundamente, se os
limites deixaram de ser puramente quantitativos, passando a ser qua-
litativos, alterando, substancialmente, a forma de intervir nas relações
negociais.27

24
LORENZETTI. Fundamentos do direito privado, p. 58.
25
GHERSI. La posmodernidad jurídica, p. 45.
26
Como projeção do laissez-faire, laissez-passer, não faltou quem, coerentemente, mencionasse
o laissez-contracter (CARBONNIER. Droit civil: Les obligations, p. 41).
27
Para Francisco Amaral, “o problema da autonomia privada, na sua existência e eficácia,
é apenas um problema de limites”. Segundo o autor, a crise “é mais quantitativa do que

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FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO
CODIFICAÇÃO OU INTERPRETAÇÃO? OS EFEITOS POSSÍVEIS DOS ILÍCITOS CIVIS
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O que se percebe é que, pelos abusos a que deu causa, pela hi­
póstase a que os séculos passados a conduziram, a importância da auto-
nomia da vontade, na dogmática contemporânea, foi redimensionada.28
Ao abandono da liberdade como dogma sagrado do sistema de Direito
privado, correspondeu o recrudescimento da boa-fé objetiva, poten-
cializando o agir socialmente correto, dentro dos padrões esperados,
afastando as surpresas desleais e as condutas caprichosas, ainda que
contratualmente resguardadas.29
A vinculação ético-social do Direito contemporâneo naturalmen-
te desautoriza a religiosa reverência às disposições contratuais. Quem
diz contratual, não diz necessariamente justo. O referencial de análise
ganha uma dinamicidade que não tolera posições absolutas, à maneira
do inflexível pacta sunt servanda. A consagração, no novo Código, dos
institutos do estado de perigo (art. 156), e da lesão (art. 157), represen-
tam, pontualmente, a filosofia adotada pelo legislador de 2002, natu-
ralmente refratária ao cortante individualismo dos séculos passados.
O contrato, nessa nova visão, passa a ser operacionalmente per-
meável à incidência de valores éticos, culturais e sociais, ensejando,
assim, uma saudável dialeticidade entre os conteúdos contratuais e
os valores sociais. Ao recuo do formalismo, característico do Direito
Privado liberal, corresponde o alargamento da noção de justiça mate-
rial, como paradigma que deve iluminar as obrigações dinamicamente
consideradas. Perde o contrato, nessa perspectiva, um referencial pu-
ramente interno, cujos liames interpretativos deveriam ser buscados
tão somente nas disposições objetivamente postas.30
Há uma passagem, no atual Direito das obrigações (pós-mo-
derno, como preferem alguns), da previsão à construção. As rígidas
fórmulas, estáticas e apriorísticas, cedem espaço à elaboração, dialética e
plural, de novos espaços de convivência, à luz de valores objetivamente
discerníveis. A relevância jurídica de certos fatos passa a depender, cada
vez menos, da previsão, escrita e formal, em leis e contratos, e mais

qualitativa” (A autonomia privada como princípio fundamental da ordem jurídica. Revista


de Informação Legislativa, p. 215, 217).
28
EHRHARDT JR. Revisão contratual: a busca pelo equilíbrio negocial diante da mudança de
circunstâncias, p. 117.
29
A boa-fé objetiva é norma cogente, não cabendo, nesse ponto, a preocupação exposta por
Antônio Junqueira de Azevedo, criticando a ausência de previsão, nesse sentido, do então
projeto de Código Civil (Insuficiências, deficiências e desatualização do projeto de Código
Civil na questão da boa-fé objetiva nos contratos. Revista dos Tribunais, p. 12).
30
NETTO. Responsabilidade civil, p. 428.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
372 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

da efetiva e substancial importância que ostentam para a convivência


social. O Direito passa a ser menos texto e mais contexto.31
Pertinente, portanto, pensar em processo de objetivação do
contrato,32 o que significaria, não o aniquilamento dos princípios clás-
sicos (autonomia privada, pacta sunt servanda e relatividade subjetiva),
mas sim a inclusão de novos princípios, próprios do Estado Social
(função social, boa-fé objetiva e equivalência material), a tornar mais
complexa, e menos voluntarista, a feição atual do contrato.33
Cabe ponderar que o declínio da autonomia privada não é,
obviamente, absoluto. A vontade continua a ocupar lugar de destaque
na ordem jurídica privada. A questão, bem focada, evidencia apenas
o interesse do Direito pela proteção de certos interesses para além do
aspecto volitivo.34 A questão tem contornos menos traumáticos para a
geração que surge, em cuja bagagem conceitual já existe a crença, fun-
damental, na historicidade das categorias jurídicas. O contrato não é
aquela figura, tornada clássica, do liberalismo. Ela é, apenas, uma forma
possível de contrato, mercê dos condicionamentos históricos. Outras
surgirão, e têm surgido, mais adequadas ao relativismo de nossos
dias. Não existe, nessa perspectiva, figuras ontológicas, mas conceitos
plasmados funcionalmente pelas realidades sociais.35
O ocaso dos referenciais clássicos poderia sugerir, a um obser-
vador formado nos padrões mentais da era da segurança, que o timbre
sistemático estaria afastado, peremptoriamente, do Direito Civil,
reinando uma informe promiscuidade metodológica. Tal postura de-
nunciaria mais o observador do que o objeto observado. Na verdade,
se supormos uma sistemática fechada, à maneira dos oitocentos, como
a única possível, certamente o pensamento sistemático estaria banido
da experiência jurídica atual.
O que importa investigar é se, de fato, o modelo axiomático-­
dedutivo exaure as possibilidades sistemáticas do pensamento jurídico;
se exaurir, a escolha, um tanto radical, deve ser feita entre o anacronismo
do sistema fechado e, na outra ponta, o pensamento tópico. Como opção
a tais escolhas pendulares, teríamos a construção de um sistema cujas

31
FARIAS; ROSENVALD. Curso de direito civil: contratos: teoria geral e contratos em espécie,
p. 186.
32
ROPPO. Il contrato, p. 265.
33
LÔBO. Princípios Sociais dos Contratos no Código de Defesa do Consumidor e no novo
Código Civil. Revista de Direito do Consumidor, p. 189.
34
SILVA. A obrigação como processo, p. 26-27.
35
Em sentido semelhante: ROPPO. Il contrato, passim.

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FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO
CODIFICAÇÃO OU INTERPRETAÇÃO? OS EFEITOS POSSÍVEIS DOS ILÍCITOS CIVIS
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unidades de sentido seriam valorativas, e não lógico-formais. É o que


parece ocorrer com o Direito Civil brasileiro atual.
O Direito Civil não perde, está claro, sua capacidade de articu-
lação interna; o que há é uma renovação qualitativa dessa articulação:
ao invés de raciocínios more geométrico, rigorosamente matematizan-
tes, ponderações abertas, suscetíveis a sugestões sociais. Os valores e
princípios não se articulam num plano lógico. A unidade, que desen-
volvem, é valorativa, e as hierarquias, se existem, são tópicas, fluidas
e dinâmicas.36 As regras, ao contrário, continuam a desempenhar
importante função normativa, porém atuam segundo a lógica formal,
estabelecendo, previamente, hipóteses e consequências, numa relação
puramente condicional.
O Direito Civil, nessa trilha, perdeu o caráter conceitual abstra-
to, porém não perdeu a sistematicidade funcional ou valorativa.37 Os
critérios de aferição se substancializam, ganhando em conteúdo o que
deixam de cultuar em forma.38 Não que os critérios clássicos tenham
perdido, de todo, sua importância. Apenas prevalecem os critérios
funcionais, nos quais a análise se faz à luz de valores e princípios, e
não de regras.
O que substancialmente define a nova feição do sistema civil são
os eixos centrais do sistema, que deixaram de apresentar, como notas
precípuas, os caracteres lógico-formais, e passaram a ostentar, como
característica fundamental, a presença de certos valores, condiciona-
dores da inteligência de qualquer de suas partes.
Mais do que unidade formal, ao Direito Civil de hoje importa a
unidade substancial. Quer dizer, é a presença de certos valores, bási-
cos e fundamentais, que o unifica, e não um código, ou um conjunto
de microssistemas. O que há, a rigor, é uma renovação axiológica no
Direito Civil. Os estudos modernos convergem, auspiciosamente, no
sentido de consagrar o princípio da dignidade da pessoa humana. A
operacionalização, concreta e sensível, de tal consagração, será lenta,
como soem ser as mudanças no Direito.
O que é alentador, além da aparente irreversibilidade do movi-
mento, é a passagem de um nível retórico, puramente discursivo, para

36
Sobre os princípios, precursoramente: ESSER. Principio y norma en la elaboración jurispru-
dencial del derecho privado, p. 10-11.
37
CANARIS. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito, p. 81.
38
A propósito, vale referir a perspectiva de Atienza, para quem o raciocínio jurídico é um
caso especial, altamente especializado e formalizado, de raciocínio moral (ATIENZA. As
razões do direito, p. 203).

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
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a busca de soluções técnicas e hermenêuticas que realizem, de fato, tal


orientação. Ou seja: não se trata, nem seria concebível que se tratasse,
de um discurso ingênuo, jusnaturalístico, à maneira do século XVIII.
O que se quer é a elaboração de um Direito substantivo que atinja, na
realidade da vida, os seus propósitos.

4 A unidade lógica dos ilícitos civis


Cabe, neste tópico, contextualizar os ilícitos civis na experiência
jurídica brasileira. É forçoso constatar, inicialmente, que o ilícito não se
desenvolveu, gerando monografias e discussões, como os atos lícitos
de ordem civil. Estes atingiram notável grau de refinamento teórico,
suscitando e resolvendo questões que surgiam do aprofundamento dos
debates. Tamanha foi a dimensão do fenômeno, que o nosso Código
Civil revogado definiu ato jurídico como ato lícito, eclipsando, total-
mente, a categorias dos ilícitos, com ato jurídico gerador de efeitos civis.
Construi-se, destarte, em relação aos lícitos, vigorosa doutrina,
que perpassou, durante décadas, a história do Direito Civil. Baseada,
fundamentalmente, na autonomia privada, estabeleceu que as pessoas
tinham uma esfera de condução dos próprios interesses ao abrigo de
ingerências estranhas, e que poderiam, contratando, preencher esse
branco deixado pelas normas.
Trata-se, obviamente, de concepção de forte inspiração liberal,
sem falar que a noção de autonomia privada sofre sérios ataques, com o
surgimento de estudos demonstrando sua inadequação com as relações
contratuais contemporâneas, massificadas e impessoais, que distam,
progressivamente, do esquema clássico.39
Mas é significativo sublinhar o exaustivo trabalho havido, de
um lado, de construção de conceitos e categorias tendentes a explicar a
realidade dos atos lícitos, e a praticamente nenhuma preocupação com
os atos ilícitos, que, paralelamente aos lícitos, povoam o mundo civil.
É pertinente, por conseguinte, averbar a profunda diferença
entre as duas categorias, sob o prisma teórico. Com os lícitos, avultam
livros, monografias, toda espécie de comunicação científica tendente a
divulgar e discutir os aspectos atinentes ao tema. Assim, são fartas as
menções aos pressupostos dos atos jurídicos lícitos, ao eterno debate
entre as teorias da declaração e a da vontade, aos elementos essenciais
e acidentais dos atos jurídicos, à questão da capacidade, da boa-fé etc.

39
LÔBO. Do contrato no Estado Social, p. 128.

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CODIFICAÇÃO OU INTERPRETAÇÃO? OS EFEITOS POSSÍVEIS DOS ILÍCITOS CIVIS
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Os ilícitos sempre se mantiveram à margem, como questão


menor, relegados a um plano secundário, quando muito. Não houve,
absolutamente, a construção de um estatuto teórico, tal como existe com
os lícitos, nem uma unidade lógica de pensamento. As referências, sem-
pre genéricas, em livros também genéricos, limitavam-se, na maioria
dos casos, a repetir os pressupostos do ilícito indenizante, reforçando
falsos conceitos, como a culpa e do dano, que sempre foram erigidos
à condição de pressupostos necessários à definição da ilicitude civil.
A análise da jurisprudência não conduziu a doutrina brasileira
a uma teorização acerca dos ilícitos. Sem embargo de quase um século
de vigência do nosso Código Civil de 1916, as análises mantiveram-se
basicamente as mesmas, desde o início do século passado até o início do
nosso século. O panorama teórico dos ilícitos, grosso modo, apresenta-­
se como uma vasta coleção de fatos empíricos apenas frouxamente
ligados pela teoria.
Sociologicamente, é possível relacionar, não sem apontar o
caráter precário e aproximativo dessas ponderações, a ausência de
apro­fundamento teórico na matéria com a definição de ato ilícito, pe-
remptória e supostamente definitiva, do Código Civil de 1916. Ou seja,
a doutrina, em conformidade com os padrões metodológicos então
reinantes, não avançou na análise, guardando, ao revés, uma atitude
de profunda reverência com o conceito legal, como se ele realmente
esgotasse a sistemática jurídica pertinente à espécie.
Cabe anotar de passagem — embora não seja possível desenvol-
ver o tema nos limites deste artigo — que a culpa não comparticipa da
ontologia do ilícito, em Direito Civil. Aliás, Enneccerus já excelente-
mente o vira, ao definir como ilícitos civis os atos contrários ao Direito,
quase sempre culposos, dos quais resulta ex lege uma consequência
desvantajosa para o seu autor.40 Aliás, tal constatação não é propria-
mente nova. Os direitos da personalidade, em sua clássica formulação,
já independiam de culpa para que sua violação se perfizesse.41 Ou seja,
a ofensa à personalidade, em seus múltiplos aspectos, é um ilícito civil,
cuja configuração prescinde de culpa.
Ganha força, destarte, a noção da completa ressarcibilidade do
dano causado, independente de culpa. Há, nesse sentido, uma retomada
da trilha do Direito germânico, cuja concepção de responsabilidade
extracontratual abstraía do elemento subjetivo.42 Retomando o fio do

40
ENNECCERUS. Tratado de Derecho Civil, p. 128.
41
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, t. II, p. 204.
42
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, t. LIII, p. 170.

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raciocínio iniciado parágrafos atrás: os tratados e manuais de Direito


Civil sempre apresentaram os ilícitos como uma categoria sem muito in-
teresse teórico. A única eficácia possível, na esteira do Direito legislado,
seria o dever de indenizar. A casuística se encarregaria de estabelecer os
casos passíveis de indenização, desde que, é claro, estivessem presentes
as clássicas notas (culpa e dano).
Houve, portanto, uma paralisação teórica, um ambiente teori-
camente morno, sem discussões significativas. Aliás, a matéria sempre
se ressentiu de grave desvio de perspectiva, consistente em tratar dos
ilícitos em conjunto com a responsabilidade civil. É preciso frisar que os
temas, pertinentes à responsabilidade, não guardam necessária relação
com os temas relativos aos ilícitos civis.43
Algo semelhante, mutatis mutandis, com o que ocorre no Direito
inglês, no qual a constatação do tort dá ensejo à ação de indenização. Se
a ação ou omissão é reputada ilícita, concerne a reparação. Não existe,
no entanto, uma doutrina sistemática, sendo os casos que formam a
teoria. Aliás, o sistema jurídico inglês é conhecido por não dar muita
importância à teorização, sendo infenso a construções meramente
abstratas, sem relações com os casos reais levados a juízo.
É preciso, entretanto, ressaltar que nem todos os casos de indeni-
zação decorrem de ilícitos. Tal ponderação é ponto pacífico em doutri-
na.44 Desde os casos clássicos de legítima defesa, estado de necessidade
e exercício regular de direito, passando por outras hipóteses, em que
a contrariedade ao Direito é pré-excluída,45 o ilícito não se forma, por
ausência do sinete da contrariedade ao Direito, ainda que persista o
dever de indenizar.
Uma das mais conhecidas associações, que se faz a respeito dos
ilícitos, diz respeito aos efeitos por eles produzidos. De fato, sempre que
se pensa em ilícito civil, relaciona-se, quase que intuitivamente, o dever
de indenizar, como eficácia naturalmente produzida. Essa é uma ideia

43
Mesmo numa perspectiva puramente ressarcitória — e oposta a por nós adotada neste artigo
— é possível perceber a tendência ao abandono da categoria clássica do ilícito extracontra-
tual em oposição ao ilícito contratual, em favor de uma nova figura, de maior abrangência,
denominada, por Grant Gilmore, de contort (The Death of Contract, 1974).
44
Expressiva a ponderação de Orizombo Nonato: “Contudo é possível, diante deles, afirmar,
como o egrégio Clóvis, que a idéia de dano ressarcível é, em nosso direito, mais ampla do
que a de ato ilícito.” Apud SILVA. Responsabilidade sem culpa, p. 69.
45
Pontes de Miranda dá exemplo eloquente, no caso do que vendeu penicilina a ser entregue
e, tendo havido grande desastre, a empregou nos feridos, não podendo adimplir, no dia, o
contrato. Haveria, em tese, ilícito relativo, pela violação da relação contratual. Na espécie,
no entanto, isso não ocorre, porquanto a contrariedade ao direito, essencial ao ilícito, foi
pré-excluída pelo estado de necessidade (Tratado de direito privado, t. II, p. 229).

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FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO
CODIFICAÇÃO OU INTERPRETAÇÃO? OS EFEITOS POSSÍVEIS DOS ILÍCITOS CIVIS
377

que nasceu, muito provavelmente, conforme observamos há pouco, da


definição de ilícito do Código Civil de 1916, que relacionou, de forma
peremptória, ilícito ao dever de indenizar, como eficácia supostamente
única: “Art. 159. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligên-
cia, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica
obrigado a reparar o dano”.
Tal disposição, que praticamente exaure o Título “Dos Atos
Ilícitos” do Código Civil de 1916, sempre foi lida como se esgotasse
as possibilidades de ilícitos no campo do Direito Civil. No entanto, a
doutrina poderia, investigando o ordenamento, concluir que não obs-
tante a letra do Código, ilícitos existiam que não participavam daquela
definição legal. Não foi esse, contudo, o procedimento adotado. Houve
certa mudez doutrinária, possivelmente nascida da convicção de que a
opção do legislador estaria acertada. Aliás, a posição doutrinária quanto
aos ilícitos civis foi, desde o advento do Código Civil, extremamente
restritiva, sempre se entendendo que a matéria iniciava-se e findava-se
com a análise do ilícito cujo efeito é a responsabilidade civil (Código
Civil de 1916, art. 159).
Bem sintomática dessa crença foi a postura de Clóvis Beviláqua.
O ilustre jurista, quando das discussões para a feitura do nosso Código
Civil de 1916, pugnava contra a inclusão legislativa dos ilícitos num
título único, ao argumento que lhes faltava “a necessária amplitude
conceitual”.46 Tal posição — que restou vencida quando da redação
do Código — reflete bem a mentalidade dos juristas a respeito da ma-
téria, que não foi sequer encarada como um problema que merecesse
cogitação teórica.
O Código Civil de 2002 se referiu aos atos ilícitos por intermédio
de duas cláusulas gerais. O art. 186 prescreve: “Aquele que, por ação ou
omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar
dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.47
O art. 187 tem a seguinte redação: “Também comete ato ilícito o
titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites

46
BEVILÁQUA. O Código Civil comentado, 1976.
47
De toda sorte, e sem embargo das críticas que se lhe possam ser feitas — no sentido de pre-
tender esgotar o conceito de ilícito civil —, é certo que o art. 159 do Código Civil revogado
(inspirador do art. 186 do atual Código Civil) é superior aos modelos legislativos existen-
tes à época de sua edição. Aliás, o próprio BGB, tido como uma codificação tecnicamente
escorreita, inseriu o ilícito civil na parte especial, no direito das obrigações, e não na parte
geral, como fizeram os códigos civis brasileiros. Outrossim, o BGB optou (§823) por uma
descrição tarifada dos bens jurídicos que, violados, ensejariam ilícitos, numa técnica inferior
àquela adotada pelos Códigos Civis brasileiros, que se valeram de cláusulas gerais (art. 159,
CC/16; art. 186 e 187, CC/02).

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
378 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons
costumes”. Consagrou-se, com esse dispositivo, a teoria do abuso de
direito, velha conhecida da jurisprudência, cuja caracterização como
ilícito, todavia, era polêmica.
Em livro que publicamos ainda antes da vigência do Código
Civil de 2002, defendemos a contrariedade ao direito de tais atos, aos
quais chamamos, todavia, de “ilícitos funcionais”.48 Escrevemos na
ocasião: “Atualmente, mercê da força, no direito atual, das diretrizes
constitucionais pertinentes, é algo fora de dúvida que a utilização de
um direito não pode se prestar a fins opostos àqueles que orientaram
seu nascimento, nem tampouco podem colidir com princípios maiores,
se em choque”.
O art. 187 está informado pela ideia de relatividade dos direitos.
Isto é, os direitos flexibilizam-se mutuamente; não há direito isolado,
mas dentro do corpo social, no qual outros direitos convivem. Pontes
de Miranda observou que “repugna à consciência moderna a ilimita-
bilidade no exercício do direito; já não nos servem mais as fórmulas
absolutas do direito romano”.49
O Código Civil, mais adiante, no art. 927, estatui: “Aquele que,
por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a
repará-lo”. É fácil perceber que o Código Civil de 2002, se interpretado
literalmente, conduz à conclusão de que a única eficácia possível, de-
rivada dos ilícitos civil, é a obrigação de indenizar os danos causados.
Dissemos que o ilícito civil sempre aparece mesclado com a
res­ponsabilidade civil. Nunca, pelo menos ao que nos conste, surgiu
a preocupação, em pesquisas monográficas, de teorizar o tema, como
classe autônoma e de inegável importância de fatos jurídicos. São co-
muns, destarte, ponderações no sentido da absoluta indissociabilidade
entre os atos ilícitos civis e a responsabilidade civil.50
Nesta concepção — que chamaremos, por brevidade, de clás-
sica — o ilícito é pensado e tratado, sempre e sem exceção, como um
apêndice da responsabilidade civil. Não haveria, para os que perfilham
semelhante concepção, razão maior para diferenciação, porquanto,
segundo raciocinam, o ilícito produz sempre, como eficácia, a respon-
sabilidade civil, de modo que estudando esta estaremos, com vantagem,
estudando aquele, ainda que nem toda responsabilidade civil advenha
de atos ilícitos.

48
NETTO. Teoria dos ilícitos civis, p. 116-123.
49
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, t. LIII, p. 62.
50
GOMES. Introdução ao direito civil, p. 417.

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FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO
CODIFICAÇÃO OU INTERPRETAÇÃO? OS EFEITOS POSSÍVEIS DOS ILÍCITOS CIVIS
379

Talvez a confusão se explique pela identificação entre o gênero


— os ilícitos civis — e uma espécie — o ato ilícito indenizante.51 Sem-
pre que se falava no tema, invocava-se essa espécie, e tudo que fosse
característica sua, atribuía-se, em descabida generalização, à classe, ao
gênero ilícito. E como essa espécie é geradora de responsabilidade civil,
nasceu outra identificação: ilícito civil é igual à responsabilidade civil.
No entanto, a experiência jurídica moderna desmente tal identifi-
cação entre ilícito e responsabilidade civil. Não é possível, teoricamente,
manter a tradicional associação.52 Primeiro, responsabilidade civil é
efeito, não é causa. Seu isolamento temático induz a certas análises
equivocadas, que ofuscam o fato jurídico, lícito ou ilícito, que origina
o dever de indenizar. Depois, uma abordagem restrita à responsabili-
dade civil necessariamente oblitera as eficácias não indenizantes dos
ilícitos civis.
Seria, mutatis mutandis, o mesmo que confundir uma fábrica,
produtora de um largo espectro de produtos, com apenas uma de suas
produções. A nosso sentir, tal postura empobrece, inexplicavelmente,
o contexto dos ilícitos, reduzindo o gênero ao estudo dos efeitos de
uma de suas espécies.
A responsabilidade civil — cabe sempre repetir — é efeito de
certos ilícitos civis, não de todos. Existem, portanto, ilícitos civis que
não produzem, como eficácia, o dever de indenizar. Nada, nestes ter-
mos, autoriza uma abordagem conjunta e monolítica, que obscureça
as diferenças significativas existentes.
No Direito dos oitocentos, cujo paradigma legislativo foi tão bem
traduzido pelo nosso Código Civil de 1916, os ilícitos já não ostentavam
apenas a eficácia indenizante. Essa foi uma falha de perspectiva advinda
do apego ao literalismo do Código. Existiam então — como ainda hoje
existem — ilícitos com efeitos que consistem em autorizações, ou ilíci-
tos que implicam na perda de direitos em relação a quem os praticou.
Por outro lado, o dever de indenizar pode resultar de ato lícito. O
dever de indenizar resultante de ato praticado em estado de necessidade

51
Pontes de Miranda prefere o termo ato ilícito em sentido estrito, ou delito civil (Tratado de direito
privado, t. II, p. 213). Essa expressão, contudo, não nos serve, porquanto abrange, em seus
limites conceituais, a culpa e o dano, fatores estranhos à eficácia.
52
Pontes de Miranda, escrevendo em meados do século passado, já consignava: “há mais atos
ilícitos ou contrários a direito que os atos ilícitos de que provém obrigação de indenizar”
(Tratado de direito privado, t. II, p. 201). Aliás, ainda antes, em 1928, no seu livro Fontes e evo-
lução do direito civil brasileiro, Pontes já intuía que os ilícitos não se esgotavam no dever de
indenizar. Assim, ao esboçar a classificação dos fatos jurídicos adotada pelo Código Civil,
bipartia os ilícitos em delitos e outros ilícitos, que não fossem delitos (Fontes e evolução do
direito civil brasileiro, p. 176).

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
380 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

não importa em resultante de ato ilícito, porquanto a contrariedade ao


Direito foi pré-excluída. Assim, “há indenizabilidade — excepcional-
mente, é certo — que não resulta da ilicitude. Reparam-se danos que
se causaram sem que os atos, de que resultaram, sejam ilícitos”.53
O estado de necessidade foi previsto no art. 188 do Código Civil:
“Não constituem atos ilícitos: II - a deterioração ou destruição da coisa
alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente. Parágra-
fo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as
circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo
os limites do indispensável para a remoção do perigo”.
Decidiu, a propósito, o STJ: “A empresa cujo preposto, buscan-
do evitar atropelamento, procede a manobra evasiva que culmina no
abalroamento de outro veículo, causando danos, responde civilmente
pela sua reparação, ainda que não se configura, na espécie, a ilicitude
do ato, praticado em estado de necessidade” (STJ, REsp. nº 124.527, Rel.
Min. Aldir Passarinho Júnior, 4ª T., j. 04.05.2000, DJ, 05 jun. 2000). O ato
praticado em estado de necessidade, embora lícito (Código Civil, art.
188, II), obriga a indenizar (Código Civil, art. 929).54
Ainda que a maioria dos ilícitos civis importe em dever de inde-
nizar, isso, decerto, não pode servir como escusa para que se lance as
demais espécies para debaixo do tapete. Se a eficácia indenizante não
exaure o espectro das eficácias possíveis dos ilícitos civis, está eviden-
ciada a inconveniência do critério clássico.
É interessante, portanto, sob o prisma teórico, mostrar que não
existe uma relação necessária entre os ilícitos civis e o dever de inde-
nizar. Esse dever, bem vistas as coisas, representa a eficácia de uma
espécie de ilícito — o ilícito indenizante —, sem que possa ser tido,
ademais, como propriedade exclusiva sua, mercê da possibilidade de
surgir como eficácia produzida por um ato lícito.
Em outra oportunidade elaboramos divisão dos ilícitos civis a
partir de três critérios. Escrevemos na ocasião: “Se afirmamos, até aqui,
que o ilícito civil é uma classe com várias espécies, compondo um gênero
rico e matizado, cabe arrolar as hipóteses, de molde a propiciar uma
visão integral do que se fala. Vale dizer que as três propostas de classi-
ficação que esboçamos (a partir do suporte fáctico abstrato, dos efeitos
produzidos e dos limites subjetivos de eficácia) porque fundadas em
critérios de análise distintos, não são excludentes, isto é, nada impede

53
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, t. LIII, p. 197.
54
NETTO. Responsabilidade civil.

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FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO
CODIFICAÇÃO OU INTERPRETAÇÃO? OS EFEITOS POSSÍVEIS DOS ILÍCITOS CIVIS
381

— antes tudo sugere — que um mesmo fato jurídico seja categorizado


simultaneamente nos três planos”.55
Contudo, por razões de espaço, nos limitaremos, neste artigo, a
uma das classificações propostas: aquela relativa aos efeitos produzidos.
Por isso, pela necessidade de exaurir os ilícitos civis encontráveis, julga-
mos imprescindível categorizá-los também tendo por norte a eficácia,
pois somente assim teremos uma visão completa e integral do problema.
Nossa proposta é separar a eficácia, com a seguinte pergunta:
qual o efeito que esse ilícito produz? E, com base nisso, traçar um qua-
dro com as modalidades possíveis de eficácia que podem dimanar de
um ilícito civil, de jeito a fornecer um material teórico que esgote os
esquemas de eficácia existentes.
Assim, eficacialmente falando, os atos ilícitos no Direito Civil
podem ser classificados em:
a) ilícito indenizante: é todo ilícito cujo efeito é o dever de inde-
nizar. Não importa o ato que está como pressuposto norma-
tivo. Se o efeito é reparar, in natura ou in pecunia, o ato ilícito
praticado, estaremos diante de um ilícito indenizante;
b) ilícito caducificante: é todo ilícito cujo efeito é a perda de um
direito. Também aqui não importa os dados de fatos aos quais
o legislador imputou tal eficácia. Importa, para os termos
presentes, que se tenha a perda de um direito como efeito de
um ato ilícito. Sendo assim, teremos um ilícito caducificante;
c) ilícito invalidante: é todo ilícito cujo efeito é a invalidade. Se
o ordenamento dispôs que a reação pelo ato ilícito se daria
através da negação dos efeitos que o ato normalmente pro-
duziria, em virtude da invalidade, o ato é invalidante, que
engloba tanto a nulidade quanto a anulabilidade;
d) ilícito autorizante: é todo ilícito cujo efeito é uma autorização.
Assim, em razão do ato ilícito, o sistema autoriza que a parte
prejudicada pratique determinado ato, geralmente em detri-
mento do ofensor.
Importa analisar, menos superficialmente, cada uma das espécies,
em ordem a potencializar-lhes o significado.

4.1 Ilícito indenizante


É o ilícito que produz como eficácia o dever de indenizar. Res-
salte-se, porém, que no dever de indenizar pode estar compreendido o

55
NETTO. Teoria dos ilícitos civis, p. 89.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
382 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

dever de ressarcir, que aliás deve ser priorizado.56 Denota, de qualquer


sorte, o dever do agressor de recompor a esfera jurídica do agredido.
É tão conhecido e tão comum que nos dispensaremos de maiores refe-
rências a propósito (Código Civil, arts. 186 e 187 c/c art. 927).
Digamos que alguém por negligência (míope, resolveu dirigir
mesmo tendo esquecido os óculos em casa) provoca dano (colide com
veículo alheio). Deverá, como consequência, indenizar os prejuízos
causados. Haverá, no caso, um ilícito (Código Civil, art. 186), cuja con-
sequência será a responsabilidade civil (Código Civil, art. 927).

4.2 Ilícito caducificante


No ilícito caducificante o sistema relaciona ao ilícito a perda de
um direito. Aliás, mais propriamente, a perda de qualquer categoria
eficacial.57 Assim, decorre do ilícito, de modo direito e imediato, a perda
de um direito.
Estatui, a propósito, o Código Civil, art. 1.638: “Perderá por ato
judicial o poder familiar o pai ou a mãe que: I - castigar imoderadamente
o filho; II - deixar o filho em abandono; III - praticar atos contrários à
moral e aos bons costumes; IV - incidir, reiteradamente, nas faltas pre-
vistas no artigo antecedente”. Assim, o pai (ou a mãe) que espanque o
filho pode perder o poder familiar. Se a mãe de recém-nascido castiga
imoderadamente o filho, poderá perder o poder familiar sobre ele.
Trata-se, na espécie, de um ilícito civil, sem prejuízo do ilícito penal
porventura caracterizado (lembremos que se o efeito — perda do poder
familiar — é civil, o fato jurídico que originou esse efeito também o é.
Sem prejuízo, repita-se, de o fato configurar, simultaneamente, suporte
fático de ilícito penal).
Os ilícitos civis — cabe insistir — podem dar ensejo à perda de
direitos ou outras categorias de eficácia. Apenas para exemplificar, o
herdeiro que sonegar bens, não os levando à colação, perde o direito
que sobre eles pudesse ter (Código Civil, art. 1.992: “O herdeiro que
sonegar bens da herança, não os descrevendo no inventário quando

56
Curioso é que Pontes de Miranda já houvera assentado a existência, no Brasil, do princípio
da primazia da reparação in natura. Hoje, por intermédio do art. 461 do Código de Processo
Civil e art. 84 do Código do Consumidor, deve ser buscado, em linha de princípio, a tutela
específica da obrigação. Não sendo possível, o resultado prático equivalente. Somente em
último caso, as perdas e danos.
57
Partindo da premissa, forte em Pontes de Miranda, de que a relação jurídica está no plano da
eficácia, integrada, no seu esquema integral, por direitos e deveres, pretensões e obrigações,
ações e situação de acionado (ação de direito material) e exceção e situação de exceptuado.

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FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO
CODIFICAÇÃO OU INTERPRETAÇÃO? OS EFEITOS POSSÍVEIS DOS ILÍCITOS CIVIS
383

estejam em seu poder, ou, com o seu conhecimento, no de outrem, ou


que os omitir na colação, a que os deva levar, ou que deixar de restituí-­
los, perderá o direito que sobre eles lhe caiba”). Quer dizer, a perda de
um direito como efeito de um ilícito civil.
Suponhamos que alguém recebeu um apartamento, doado por
seu pai. Deverá, no inventário deste, declarar que recebeu tal doação,
levando o bem à colação (para compensação com os demais irmãos,
por exemplo). Se omitir, escondendo o bem, perderá o direito sobre ele.
Trata-se da clássica sanção dos sonegados.
O contraente que pratica ato proibido pelo conteúdo do contrato
pode perder certos direitos, como o direito à resolução, o direito à posse
de determinado bem etc. Tal perda não decorrerá de um ato inválido,
mas apenas de um ilícito ao qual o sistema imputa, diretamente, a perda
de um direito, mercê do ato praticado.

4.3 Ilícito autorizante


São os ilícitos cujo efeito consiste na autorização, facultada pelo
sistema, ao ofendido, para praticar, ou não, a seu critério, determinado
ato. No ilícito autorizante o ordenamento relaciona ao ilícito uma auto-
rização, que sem o ilícito não existiria. Nasce, destarte, para o ofendido,
a possibilidade de praticar certo ato, como efeito do ato ilícito.
É interessante, portanto, sob o prisma teórico, mostrar que não
existe uma relação necessária entre os ilícitos civis e o dever de inde-
nizar. Apenas para exemplificar, a ingratidão do donatário é um ilícito
civil cujo efeito consiste, exatamente, na possibilidade, que o ordena-
mento faculta ao doador, de revogar a doação, se assim lhe aprouver
(Código Civil, art. 557: “Podem ser revogadas por ingratidão as doa-
ções: I - se o donatário atentou contra a vida do doador ou cometeu
crime de homicídio doloso contra ele; II - se cometeu contra ele ofensa
física; III - se o injuriou gravemente ou o caluniou; IV - se, podendo
ministrá-los, recusou ao doador os alimentos de que este necessitava”).
Trata-se, portanto, de uma autorização como efeito de um ilícito. Qual
o ilícito? A ingratidão do donatário. Qual o efeito? A possibilidade da
revogação da doação.
Imaginemos que alguém doe uma fazenda para seu afilhado. O
afilhado (donatário), porém, é ingrato para com o doador (conceito de
ingratidão de acordo com a lei civil). O Código Civil autoriza o doador,
nesse caso, a revogar, caso deseje, a doação válida e formalizada.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
384 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Essa possibilidade de revogar a doação — autorização — só existe


porque o ilícito foi praticado. Sem o ilícito ela inexistiria. É mais uma
demonstração de que os efeitos dos ilícitos civis são múltiplos, não se
resumem a uma eficácia única.
Formulemos outra hipótese. Uma pessoa tem seu sítio invadido
por desconhecidos. Poderá, caso queira, expulsar à força os invasores,
desde que o faça logo e sem excessos. Trata-se de um dos poucos casos
de exceção ao monopólio estatal no uso da força, ao lado da legítima
defesa. Pontes de Miranda lê tais casos como sendo hipóteses de justiça
de mão própria.
O Código Civil, no art. 1.210, §1º, regula a situação descrita: “O
possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por
sua própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de
desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou resti-
tuição da posse”. Trata-se, novamente, de uma autorização (expulsar
os invasores) que o Código Civil disponibiliza a quem sofre um ilícito
civil (no caso, teve sua propriedade invadida).

4.4 Ilícito invalidante


A grande questão, que aqui se põe, não é tanto identificar os invá-
lidos, mas caracterizá-los como lícitos ou ilícitos. A doutrina tradicional,
mercê da identificação do ilícito civil com uma de suas espécies, afastou,
sem maiores discussões, os inválidos da seara ilícita. Assim, no Direito
Civil, salvo em tópicas manifestações, os inválidos são considerados
lícitos, ainda que por exclusão.
Há autores, contudo, que distam dessa orientação. Pontes de
Miranda inclina-se em enxergar nos inválidos atos ilícitos.58 Marcos
Bernardes de Mello os tem como inquestionavelmente ilícitos.59 Paulo
Luiz Netto Lôbo, de igual modo, também assim os categoriza.60
De fato, as sanções, em Direito Civil, não se resumem ao ressar­
cimento, à reparação ou à indenização. Desde que se perceba, com cla-
reza, essa realidade, que emerge do próprio Direito legislado, é possível
dimensionar, com mais exatidão, os atos inválidos. E, por conseguinte,
verificar-lhes o caráter ilícito.
Os efeitos dos ilícitos civis podem assumir, simplesmente, o
caráter negativo. Ou seja: o sistema inibe o ato de produzir efeitos, ou

58
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, t. II, p. 202.
59
MELLO. Teoria do fato jurídico, p. 199.
60
LÔBO. Condições gerais dos contratos e cláusulas abusivas, p. 158.

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FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO
CODIFICAÇÃO OU INTERPRETAÇÃO? OS EFEITOS POSSÍVEIS DOS ILÍCITOS CIVIS
385

alguns deles. É preciso, nesse ponto, firmar uma premissa: invalidade é


sanção.61 É uma sanção atípica, se nos atermos ao senso comum de que
sanção, em Direito Civil, corresponde, fundamentalmente, à reparação
dos danos causados, mormente pecuniários.
Não há, de fato, razão jurídica a secundar a peremptória exclusão
dos inválidos da seara dos ilícitos civis. Ou seja, a tese tradicional pugna
pela conformidade ao direito de atos forjados à base de dolo, coação, etc.
Imagine-se que poderoso fazendeiro, desejando obter a terra de
modesto colono, ameaça-lhe (“ou você me vende a terra por tanto, ou
sua filha talvez não retorne da escola este mês...”). O colono, sentindo-­
se em perigo, realiza a venda. Estaremos diante de um ato lícito? Na-
turalmente que não. Dispõe, a propósito, o Código Civil, art. 151: “A
coação, para viciar a declaração de vontade, há de ser tal que incuta
ao paciente fundado temor de dano iminente e considerável à sua
pessoa, à sua família ou aos bens”. O artigo seguinte dispõe: “Art. 152.
No apreciar a coação, ter-se-ão em conta o sexo, a idade, a condição, a
saúde, o temperamento do paciente e todas as demais circunstâncias que
possam influir na gravidade dela”. Mais adiante, o Código Civil, no art.
178, dispõe: “É de quatro anos o prazo de decadência para pleitear-­se
a anulação do negócio jurídico, contado: I - no caso de coação, do dia
em que ela cessar”.
Com efeito, como defender o caráter lícito de um contrato em
cujo firmamento um dos contraentes foi coagido? A coação é causa de
anulação do negócio (Código Civil, art. 171, II). Não há razão jurídica
para postular a conformidade ao direito de um ato tal. Eles são contrá-
rios ao Direito, e como tais ilícitos.
Cabe lembrar que o dualismo lícito/ilícito esgota, sob o prisma
da conformidade ou contrariedade ao Direito, as possibilidades de
categorização dos atos jurídicos. Destarte, o que não for lícito será ilí-
cito, e vice-versa. Portanto, os que perfilham a tese de que somente são
ilícitos os atos cujo efeito é a indenização aceitam, de modo oblíquo, a
conformidade ao direito de atos realizados por pessoas coagidas, ou
contratos firmados com objetos ilícitos, por exemplo.
Os atos inválidos funcionam, por vezes, como uma espécie de
rede de segurança, impedindo a eficácia indesejada pelo sistema jurí-
dico. Nos inválidos apenas ocorre a negativa da produção dos efeitos
do ato ilícito realizado, sem que se perca direito já integrante do patri-
mônio jurídico (caducificantes), sem que surja autorização para praticar

61
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, t. LIII, p. 104.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
386 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

um ato (autorizantes), ou sem que surja, necessariamente, o dever de


indenizar (indenizantes).

5 Construindo paradigmas diferenciados de proteção


Concluindo a exposição — e tendo presente a advertência de
Hegel de que o excesso de argumento prejudica a causa —, cabe lembrar
que todo sistema jurídico tem de lidar com a violação de suas normas.
Estabelecer, juridicamente, padrões de conduta importa em prever,
naturalmente, modelos de comportamento que distem desses padrões.
O ilícito, nesse sentido, é uma reação, juridicamente organizada, do
sistema jurídico contra a conduta que viola seus valores, princípios e
regras.
O ilícito civil, em termos de hoje, deve ser perspectivado não só
como representante do dever de indenizar, mas também, fundamental-
mente, como a categoria que possibilita uma atuação reativa do sistema
para evitar a continuação ou a repetição das agressões aos valores e
princípios protegidos pelo Direito.
Amplia-se, assim, o espectro dos ilícitos civis, com a possibilidade
que eles defluam da violação a princípios, sem a tipologia fechada que
caracteriza o Direito Penal. Sustenta-se que os ilícitos civis são abertos,
no sentido de que princípios, e não apenas regras, podem servir de base
material para sua configuração.
Defende-se que a responsabilidade civil é efeito de uma espécie
de ilícito, e não do gênero ilícito civil. Postula-se a existência de outras
eficácias, igualmente existentes, que decorrem de ilícitos civis. As san-
ções civis, desse modo, não se resumem no dever de indenizar ou res-
sarcir, podendo também compreender: (a) a autorização para a prática
de certos atos pelo ofendido; (b) a perda de certas situações jurídicas
(direitos, pretensões e ações); ou (c) a neutralização da eficácia jurídica
(não produção dos efeitos jurídicos como sanção).
Essa percepção naturalmente conduz a uma notável ampliação
da função dos ilícitos no sistema jurídico. De fato, um entendimento
meramente estático dos ilícitos, a partir de certas propriedades abs-
tratamente postas, não se concilia com um sistema jurídico fundado
em valores e princípios, cujas bases são essencialmente axiológicas, e
não puramente lógico-formais (Constituição da República, art 1º, III;
art. 3º, I, III).
Os novos padrões de conduta, na esfera civil, são iluminados
por valores, tais como a dignidade da pessoa humana, justiça social,

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FELIPE PEIXOTO BRAGA NETTO
CODIFICAÇÃO OU INTERPRETAÇÃO? OS EFEITOS POSSÍVEIS DOS ILÍCITOS CIVIS
387

igualdade substancial, solidariedade, entre outros. Não existe mais


uma rígida tipologia de condutas possíveis e condutas vedadas. Não,
pelo menos, na órbita civil. As ações permitidas e as ações repudiadas
são definidas em razão dos condicionamentos históricos, recebendo
substancial influência de outros setores sociais, que penetram no
sistema jurídico através dos princípios, que por sua vez carecem de
concretização mediadora.
O ilícito civil, se perspectivado em termos contemporâneos, os-
tenta uma permeabilidade aos valores que é inédita aos olhos clássicos.
Possui uma mobilidade que lhe permite transitar pelo sistema jurídico,
incorporando referências axiológicas e as traduzindo em sanções, em
ordem a assegurar, de forma aberta e plural, a preponderância dos
valores fundamentais no sistema do Direito Civil.
O Direito Civil sempre ostentou um rico aparato conceitual, cuja
transmissão, de geração em geração, se dava sem parênteses críticos.
Tínhamos, nessa visão, uma sagrada herança que à nova geração não
era dado discutir, mas reverenciar e aplicar. Seria intelectualmente
suicida desprezar, em nome do novo, o notável legado clássico. Nem
o mais iconoclasta pensador proporia semelhante disparate. O que se
busca, naturalmente, é reler as velhas e sólidas categorias sob novas
luzes, tradutoras de novos valores e novas necessidades.
Embora pudéssemos arrolar múltiplos casos em abono a tais
linhas gerais, cremos que não acrescentaria muito, em substância, àquilo
que já pontuamos — Hegel, aliás, jocosamente alertou que o excesso
de argumento prejudica a causa. O que parece relevante, em estreita
conexão com o tema proposto, é otimizar os mecanismos preventivos
de tutela — desafio certamente árduo, para cujo implemento a juris-
prudência desempenhará notável função.
De pouco ou nada vale — senão em nível retórico — afirmar o
caráter não patrimonial de um direito, se o desarmamos de técnicas
efetivas de proteção prévia. A tutela inibitória, com vistas a evitar o
ilícito (ou quanto menos sua continuação), é imprescindível como meio
de adequação do que antes dissemos.
Mesmo porque a banalização do dano moral, em vez de proteger
a pessoa humana, acaba redundando, em grande parte das vezes, em seu
desprestígio. Por quê? Porque se patrimonializa situações que, a rigor, não
são patrimoniais. Tudo passa a ter um preço. Cecília Meirelles constatou,
já há algumas décadas, que o supérfluo se tornou tão imprescindível que
perdemos de vista o verdadeiramente essencial.
E o essencial, pelo menos neste nosso tema, é preservar os valores
que não podem ser reconstruídos se violados. Pelo menos não da forma

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
388 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

anterior à lesão. Não podemos nos dar por felizes com a confortável
afirmação que, depois da lesão, temos a reprimenda do dano moral.
Não é esta, seguramente, a atitude participativa que se deseja do civi-
lista no novo século. Luther King, em outro contexto, desabafou: “O
que me preocupa não é o grito dos violentos. O que me preocupa é o
silêncio dos bons”.
A construção de uma sociedade mais justa e solidária não se faz
apenas imputando aos danos reparações monetárias. É fundamental
ampliar os espaços de exercício da dignidade — na família, nos con-
tratos, na empresa, ou em quaisquer relações subjetivas que projetem
efeitos jurídicos.
Cabe aos civilistas abandonar a postura neutra — claramente en-
velhecida e historicamente gasta —, e estabelecer, à luz da Constituição,
paradigmas diferenciados de proteção, otimizando proteção àquelas
formas de contrato, de propriedade, de união familiar, que melhor
realizem os valores constantes em nossa ordem constitucional. Enfim,
deve-se buscar modelos que operacionalizem a realização dos valores
existenciais, em detrimento, havendo choque, dos valores patrimoniais.
É essa sua grande tarefa, no início do século XXI.

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978-85-7700-616-8.

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OS LIMITES IMPOSTOS PELO
ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO AO
EXERCÍCIO JURÍDICO DOS PROCEDIMENTOS
DE INSCRIÇÃO DO NOME DO CONSUMIDOR
EM CADASTROS DE INADIMPLENTES DO
COMÉRCIO E DE CORTE NO FORNECIMENTO
DE SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS
A QUESTÃO DOS DANOS RESULTANTES DA
CONCRETIZAÇÃO DESSES PROCEDIMENTOS POR
DÍVIDAS DE VALOR IRRISÓRIO E AS BALIZAS
RESULTANTES DA APLICAÇÃO DO ART. 187 DO
CÓDIGO CIVIL

MARCELO MARQUES CABRAL

1 Introdução
O novo modelo constitucional brasileiro, fruto da Constituição
democrática de 1988, concedeu à sociedade fortes armas, respaldadas
em valores e princípios jurídicos, para a consecução de uma nova teoria
da interpretação e da criação do Direito. Assim, centrada na dignidade
da pessoa humana, que é o fundamento axiológico supremo da Repú-
blica Federativa do Brasil, a Lei Maior da Nação vem impor a superação

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
392 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

de paradigmas para o Direito Civil e, mais particularmente, para o


Direito Obrigacional, sobretudo naquelas relações em que figure uma
parte considerada vulnerável, a exemplo do consumidor.
Essa mudança de paradigmas gerou a aceleração de movimentos
para se conceder ao povo brasileiro um Código de Defesa do Consu-
midor e um novo Código Civil, inspirados que foram pelos padrões
da eticidade e da solidariedade social, concebendo-se uma forma de
galgar o homem ao centro do ordenamento privado, sob o prisma de sua
dignidade enquanto ser humano, considerando a premente necessidade
da repersonalização do Direito Privado como um todo.
O presente trabalho, não obstante a sua delimitação metodoló-
gica, será desenvolvido sob o enfoque constitucional da interpretação
do Código Civil e do Código de Defesa do Consumidor, em diálogo
de coordenação de fontes, no afã de se estabelecer a aplicação coerente
dos dois sistemas para a melhor proteção contratual do vulnerável na
relação jurídico-material desenvolvida entre consumidor, de um lado,
e fornecedor do bem de consumo, de outro.
Abordar-se-á o instituto do abuso de Direito, delimitado pelo art. 187
do Código Civil brasileiro, e a consequente caracterização dos casos
de exercício jurídico inadmissível com relação aos procedimentos de
negativação do nome do consumidor nos cadastros de proteção ao cré-
dito e de corte no fornecimento de serviços essenciais, como de energia
e de água potável, em virtude de débito de valor irrisório, levando-se
em consideração a caracterização de uma ilicitude em sentido amplo,
diversa daquela prevista no art. 186 do mesmo Código.
Antes de mais, e da conclusão do raciocínio, é de se realizar as
con­siderações acerca da conceituação e da caracterização do exercício
abusivo de Direito e dos seus elementos delineadores acolhidos pelo
Código Civil relativos à boa-fé, aos bons costumes e aos fins sociais e
econômicos do Direito.
É dizer então que dentro da visão ampla da teoria dos atos-fatos
ilícitos adotada pela doutrina, desde Pontes de Miranda, tais fatos da­no­
sos, por não se poder chamá-los de ilícitos propriamente ditos, geram o
dever de reparar, e, da forma como se restou sistematizada a figura do
abuso de Direito no novo Código Civil, os procedimentos apa­rentemente
lícitos, mas consistentes em exercício jurídico inadmissível, caracteriza a
prática de negativação e de corte no fornecimento de energia e de água
por dívida de ínfimo valor contrária à boa-fé objetiva e desfuncionalizada
quanto aos limites impostos pelos fins sociais e econômicos do contrato
de consumo realizado entre as partes.

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MARCELO MARQUES CABRAL
OS LIMITES IMPOSTOS PELO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO AO EXERCÍCIO JURÍDICO ...
393

A prática de qualquer procedimento restritivo de direitos do


consumidor deve seguir estritamente os caminhos delineados pela lei,
no que diz respeito ao desenvolvimento do procedimento, para não se
configurar a ilicitude culposa por parte do exercente do Direito (art. 186).
Porém, a estrita observância dos delineadores legais, que faz aparentar
uma conformidade do ato com o ordenamento jurídico, não é suficiente
para esse mesmo ordenamento, o qual está a exigir mais! Exige, portanto,
comportamento coerente, leal, cooperativo entre as partes, com base na
solidariedade contratual, princípio corolário da solidariedade social,
previsto no art. 3º, inc. I, da Constituição Federal.

2 Inscrição do nome do devedor em cadastros de


proteção ao crédito e óbice no fornecimento de
serviços públicos essenciais como forma de atuação
das empresas no exercício regular de Direito
Explicitamente, o Código de Defesa do Consumidor, Lei nº 8.078
de 11 de setembro de 1990, permite a agnominada negativação do
nome do consumidor nos cadastros de maus pagadores do comércio
por inadimplemento ou impontualidade no pagamento de dívida,
desde que respeitadas as regras essenciais determinadas pelos arts.
4º, 39 e 51, assim como as previstas entre os arts. 43 e 50 deste mesmo
diploma legal. Destarte, tal procedimento restritício deve se efetivar
com o respeito à dignidade do consumidor, corolário do princípio da
dignidade da pessoa humana (CF. art. 1º, inc. III), com o respeito aos
deveres reflexos da boa-fé objetiva e considerando-se ainda a vedação
de sua prática decorrente de cobrança de débito oriundo de cláusula
ou prática abusiva.
O procedimento referido, respaldado na lei, deve observar
as seguintes formalidades, que se constituem, na realidade, deveres
implícitos ao dever de boa-fé objetiva, quais sejam: acessibilidade do
consumidor às informações arquivadas e existentes sobre ele nos bancos
de dados (CDC, art. 43); clareza, objetividade, veracidade e compreen­
sibilidade dos cadastros e dos dados (art. 43, §1º); notificação prévia
destinada ao consumidor da anotação cadastral (art. 43, §2º); concessão
do direito à retificação dos cadastros e dos dados (art. 43, §3º); e, por
último, vedação de comunicação de informações restritivas após a
consumação do prazo prescricional de 5 (cinco) anos para a cobrança
da dívida que gerou o cadastro negativo (art. 43, §5º).

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
394 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Ora, tais exigências legais se coadunam com a principiologia


constitucional sufragada pela Lei de Defesa do Consumidor, pois res-
paldada, sobretudo, na dignidade do consumidor e na boa-fé contratual.
Daí se concluir que o procedimento restritivo do crédito não constitui
meio de punição impingido ao consumidor inadimplente, pois como
acentua Rizzatto Nunes:1

(...) o devedor não é figura delituosa na ótica penal. O inadimplente


é apenas aquele que, por motivos pessoais, não pagou a dívida. Isso
não faz dele melhor ou pior pessoa que ninguém. Não o torna menos
digno. Apenas o transforma em pessoa que, por não poder saldar a sua
dívida, talvez não encontre pela frente alguém que queira emprestar-lhe
dinheiro ou dar-lhe qualquer tipo de crédito. Contudo, repita-se, não o
faz ser alguém que possa ter a sua imagem, vida privada ou dignidade
violadas. E é mais uma vez o próprio texto constitucional que impõe
dever de respeito ao devedor, consignando, ademais, que não há prisão
civil por dívida (art. 5º, LXVII).

O mesmo se pode dizer quanto ao corte no fornecimento de


serviços públicos essenciais, como, por exemplo, os de fornecimento
de água e de luz, por inadimplemento do consumidor.
Ora, há quem invoque a razão teleológica do art. 22 da Lei
nº 8.078/90 para declarar a ilegalidade desse tipo de procedimento e a
inconstitucionalidade do dispositivo da lei que o ampara (§3º do art. 6º
da Lei nº 8.987/95), porquanto a prestação desses serviços deve ser rea­
lizada de forma contínua, justamente por serem eles essenciais.2
Por outro lado, há aqueles que admitem a possibilidade de corte
nas situações de inadimplência do consumidor, conforme as lições de
Sérgio Cavalieri Filho,3 Ada Pelegrini Grinover e Zelmo Denari.4 En-
tretanto, há que se ressaltar, com respaldo nas lições deste último, que
o corte no fornecimento dessa espécie de serviço não pode se verificar
“ex abrupto, como instrumento de pressão contra o consumidor, para
forçá-lo ao pagamento da conta em atraso”.5
Deve-se, então, aplicar, analogicamente, as observações quanto
aos deveres impostos pelo art. 43, e seus §§, do CDC, no que for

1
NUNES. Curso de direito do consumidor, p. 641.
2
NUNES. Curso de direito do consumidor. p. 154-158.
3
CAVALIERI FILHO. Programa de direito do consumidor, p. 71.
4
GRINOVER et al. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do an-
teprojeto, p. 194.
5
GRINOVER et al. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do an-
teprojeto, p. 195.

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MARCELO MARQUES CABRAL
OS LIMITES IMPOSTOS PELO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO AO EXERCÍCIO JURÍDICO ...
395

possível, também ao procedimento de óbice no fornecimento de serviços


essenciais. Sendo assim, deve existir: 1º atraso evidente no pagamento
da dívida que gerará o corte; 2º notificação prévia, com prazo razoável,
para a concretização do procedimento, a fim de que se informe ao
con­sumidor a existência de possível débito em aberto; e 3º informação
de forma, clara, precisa e compreensível sobre o corte e a dívida,
considerando o nível intelectual da média da população brasileira.
Por evidente que o ordenamento nacional,6 não obstante adjetivar
o serviço público como “essencial”, não pode interferir na aplicação de
princípios básicos e clássicos do Direito Contratual, considerando que,
se os fornecedores dessa espécie de serviço estão submetidos ao controle
do CDC, também realizam com os consumidores relação jurídica de
Direito Privado, flexibilizada pelos princípios sociais encampados pela
legislação de índole protetiva dos vulneráveis. Logo, o fornecedor do
serviço tem todo o direito de tomar as devidas providências no intuito
da manutenção do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos e da
própria iniciativa econômico-privada, pois, do contrário, caso quase
todos os destinatários do serviço resolvessem simplesmente fugir ao
pagamento de seus débitos, o colapso do sistema seria certo, prejudi-
cando, aí sim, toda uma população.
Ocorre que tais procedimentos também não podem fugir às
regras essenciais estabelecidas para tanto, não se podendo adotá-los
como regra e medida de punição ao consumidor inadimplente, por-
tanto, da mesma forma, devem se encontrar submetidos à observância
dos limites impostos pela boa-fé objetiva, fins sociais e econômicos do
Direito e pelos bons costumes.

3 Casos de exercício jurídico inadmissível e a


delimitação determinada pelo art. 187 do Código Civil
brasileiro
Ab initio urge se indagar acerca da possibilidade da concretiza-
ção dos procedimentos de negativação do nome do consumidor em
cadastros de inadimplentes do comércio e de corte no fornecimento
dos serviços essenciais para aqueles que estão em débito para com o
fornecedor do serviço, entretanto, por valor irrisório.

6
O corte no fornecimento de serviços essenciais é expressamente admitido pelo inc. II do
§3º do art. 6º da Lei nº 8.987/95 e pela Lei nº 9.427/97, a qual criou a ANEEL e disciplinou o
regime de concessão dos serviços de fornecimento de energia elétrica.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
396 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Na prática, poderá o credor realizar os procedimentos supra-


citados por ter o beneficiário se tornado inadimplente por um débito,
p. ex.; de R$1 (um) ou R$2 (dois), ou mesmo por centavos de real?
As empresas, de regra, aduzem que sim, pois estariam elas
agindo sob o manto da excludente de ilicitude, exercício regular de um
direito reconhecido, na forma do art. 188, inc. I do Código Civil do Brasil.
Em princípio, soaria lógico aos mais desavisados que débito é
débito, não importando o seu valor. Porém, débito se constitui débito
para ser cobrado, não se justificando sempre a efetivação de procedi-
mentos radicais implicadores de danos maiores ao consumidor, sem
qualquer observância de critérios de razoabilidade.
A resposta não pode ser buscada nos dispositivos específicos
para a hipótese, estando a exigir um exame minucioso do ordenamento
como um todo e uma interpretação constitucional dos direitos em jogo.
Neste espaço entra em cena o diálogo de coordenação de fontes
entre o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor no intuito de
se despender a interpretação conjugada dos dispositivos relacionados
ao abuso de Direito, servindo o Código Civil de supedâneo conceitual
para a interpretação e aplicação do Código de Defesa do Consumidor,
retirando-se da lei especial a melhor interpretação que se coadune à
máxima proteção do consumidor, interpretação esta que depende do
sentido dos conceitos imbricados na lei geral. A coordenação das fon-
tes implica em se considerar não só a influência da lei geral sobre a lei
especial protetiva do consumidor, mas também a influência recíproca
a ser estabelecida entre elas.7
Pois bem, segundo o art. 187 do Código Civil: “também comete
ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifesta-
mente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé
ou pelos bons costumes”.
O dispositivo mencionado se encontra no Livro III, Título III,
do Código Civil, que trata dos atos ilícitos, o que redunda numa clara

7
Segundo Cláudia Lima Marques, com respaldo nos estudos do professor Erik Jayme, o
diálogo entre as fontes pode ser: diálogo sistemático de coerência de fontes, diálogo de
complementaridade ou subsidiariedade de fontes e diálogo de coordenação ou adaptação
de fontes. Tudo no ensejo de que as fontes do direito não mais se excluam, através de cri-
térios artificiosos de preponderância, por exemplo, da lei especial sobre a lei geral, da lei
posterior sobre a lei anterior etc., mas sim se dialoguem mutuamente; isto é, que conver-
sem entre si, dando-se prevalência a uma interpretação mais coerente com a primazia dos
valores existenciais da pessoa humana e dos valores constitucionais decorrentes do prin-
cípio da dignidade da pessoa humana (MARQUES. O “diálogo das fontes” como método
da nova teoria geral do direito: um tributo a Erik Jayme. In: MARQUES (Coord.). Diálogo
das fontes: do conflito à coordenação de normas do direito brasileiro, p. 17-66).

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MARCELO MARQUES CABRAL
OS LIMITES IMPOSTOS PELO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO AO EXERCÍCIO JURÍDICO ...
397

e óbvia conclusão de que os casos de exercício jurídico inadmissível8


ou, simplesmente, de abuso de Direito, é figura caracterizadora de
uma ilicitude, ao menos no seu sentido mais amplo, fazendo com que
se transpareça o entendimento do legislador atual no sentido de não
configurar a ilicitude pela simples atuação culposa do agente causador
do dano contra um regramento legal (ilicitude no sentido estrito ou
propriamente dita), mas também no sentido de configurar o exercício
“abusivo” de um Direito, ou situação jurídica, desligado de fatores
psicológicos, como a intenção emulativa daquele que está a exercer os
seus direitos; isto é, o abuso de Direito, já agora, se resta configurado
pelo simples desvio de funcionalidade econômico-social no exercício
do direito ou desvio no modo de agir das pessoas em suas relações
jurídicas em face dos bons costumes e das regras de condutas impostas
pela boa-fé objetiva.

3.1 Elementos delineadores da figura do abuso de Direito


O Código Civil de 1916 não previu expressamente o instituto.
Todavia, o próprio projetador desse monumento legislativo não descu-
rou da caracterização deste fenômeno ao tratar da doutrina de Saleilles
(obligations) nos comentários ao inc. I do art. 160 deste diploma, o qual
rezava não constituir ato ilícito: “os praticados em legítima defesa,
ou no exercício regular de um direito reconhecido”. Dessa maneira,
para Beviláqua, “o exercício anormal do direito é abusivo” e seria ato
ilícito, considerando o seu exercício irregular, no reverso da licitude
caracterizada pelo exercício regular, “reprovando a consciência pública
o exercício do direito do indivíduo, quando contrário ao destino eco-
nômico e social do direito em geral”.9

8
A expressão foi consagrada também, aqui no Brasil, embora não seja nova, por Judith
Martins-Costa: Os avatares do abuso do direito e o rumo indicado pela boa-fé. In: DELGADO;
ALVES (Coord.). Novo Código Civil: questões controvertidas: parte geral do Código Civil,
p. 506.
9
BEVILÁQUA. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado por Clóvis Beviláqua, p. 431,
433, 434. Embora conhecedor das teorias adotadas nos diplomas legislativos e pelos doutri-
nadores europeus, quanto à caracterização do abuso de direito, conforme citação de vários
deles, Clóvis Beviláqua se conduz ao reconhecimento da existência da figura no Direito bra-
sileiro e adota a teoria objetiva, por considerar reprovável o exercício de um direito quando
em contraste com o seu exercício econômico e social. Portanto, muito À frente dos teóricos
da época, de índole, na maioria das vezes, negativistas ou, quando muito, afirmativistas de
índole subjetivista.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
398 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Em sua Teoria Geral do Direito Civil,10 o mesmo Beviláqua expõe,


com muita perspicácia, que pela interpretação conjugada do art. 160,
inc. I, e do art. 100 do Código revogado se encontrava o fundamento da
teoria do abuso de Direito, e que, para este Código, o abuso de Direito
seria ato ilícito, consistente “no exercício irregular ou anormal do direito,
de modo a prejudicar alguém”.
O atual Código brasileiro, abeberando-se no Código Civil
português,11 e este, por sua vez, no Código grego,12 caracteriza a figura
do abuso do Direito como desvio no exercício de um Direito, cujos
limites são determinados pelos bons costumes, pelos fins sociais e
econômicos do contrato e pela boa-fé, fazendo caracterizar os casos de
exercício jurídico inadmissível de maneira objetiva de acordo com os
critérios que traça.

3.1.1 Fins econômicos e sociais do Direito


O art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil (hoje denominada
Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro – LINDB)13 precei-
tua que “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela
se dirige e às exigências do bem comum”, envolvendo uma atividade
hermenêutica destinada a interpretar as normas jurídicas, verificar
a existência de lacunas legislativas, realizando a efetiva integração e
destinada ao afastamento das contradições normativas, indicando os
critérios para solucioná-las.14
De início, portanto, o nosso ordenamento utiliza os fins sociais
do Direito ou da norma como parâmetro de atuação do juiz na inter-
pretação, integração e aplicação do Direito. Dessa forma, segundo
Maria Helena Diniz, toda norma é constituída com um fim, ou um
pro­pósito, e, tal propósito, “consiste em produzir na realidade social
determinados efeitos sociais que são desejados por serem valiosos,
justos, convenientes, adequados à subsistência de uma sociedade,
oportunos etc.”, constituindo esse fim social o bem comum, a meta do
aplicador do Direito.15

10
BEVILÁQUA. Teoria geral do direito civil, p. 276.
11
Art. 334º “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os
limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou econômico desse
direito” (PORTUGAL. Código Civil português: aprovado pelo Decreto-Lei nº 47.344 de 25 de
novembro de 1966, p. 93).
12
ROSENVALD. Dignidade humana e boa-fé no Código Civil, p. 122.
13
Denominação alterada pela Lei nº 12.376/10.
14
DINIZ. Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro interpretada, p. 140.
15
DINIZ. Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro interpretada, p. 167.

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MARCELO MARQUES CABRAL
OS LIMITES IMPOSTOS PELO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO AO EXERCÍCIO JURÍDICO ...
399

No que concerne ao art. 187, doutrina Rui Stoco que a função


social a que se refere o dispositivo em análise tem por objetivo estabe-
lecer a finalidade para a qual foi criado o Direito e todo comportamento
humano deve ser informado por um fim social,16 logo, a despropor-
cionalidade entre o exercício do Direito, interesse ou posição jurídica
por parte do seu titular e os fins sociais para os quais foram criados
caracteriza o seu exercício abusivo,17 haja vista a teoria objetiva utili-
zada pelo atual Código Civil pátrio, devendo existir, portanto, para
que o exercício do Direito seja admissível, a proporcionalidade entre
as vantagens decorrentes do exercício para o agente e os sacrifícios que
outras pessoas, ou até mesmo a sociedade, devam suportar.
Já os fins econômicos têm por escopo estabelecer a realização
do objetivo de ordem patrimonial na relação jurídica,18 isso porque
as partes têm direitos ou interesses patrimoniais e devem exercê-los
plenamente, entretanto, proporcionalmente ao resultado que a outra
parte deve também experimentar, não podendo impingir sacrifícios não
razoáveis ao outro contratante, fugindo à finalidade econômico-social
no exercício do direito ou interesse.
Em suma, os fins sociais e econômicos são partes de uma mesma
moeda, não tendo como separá-las dentro da ótica social da ordem
econômica nacional constituída pela Constituição Federal.

3.1.2 Bons costumes


Para Clóvis Beviláqua,19 o costume é fonte subsidiária do Direito
e consiste na observação constante de uma norma jurídica não baseada
em lei escrita.
Maria Helena Diniz ensina que o costume é fonte supletiva do
Direito, sendo formado por dois elementos, quais sejam: o uso e a con-
vicção jurídica “é a norma jurídica que deriva da longa prática uniforme,
constante, pública e geral de determinado ato com a convicção de sua
necessidade jurídica”.20 Outrossim, R. Limongi França doutrina que o
costume se constitui em um meio através do qual o Direito, latente na
“consciência nacional”, se manifesta, num estágio anterior ao da lei e
da jurisprudência.21

16
STOCO. Tratado de responsabilidade civil: doutrina e jurisprudência, p. 145.
17
NORONHA. Direito das obrigações, p. 394.
18
NORONHA. Direito das obrigações.
19
BEVILÁQUA. Teoria geral do direito civil, p. 30.
20
DINIZ. Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro interpretada, p. 121.
21
FRANÇA. Hermenêutica jurídica, p. 109.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
400 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Marcos Ehrhardt Jr., com base em Washington de Barros


Monteiro, ensina que:

(...) como fonte supletiva do direito, o costume caracteriza-se pela


constante repetição de determinado comportamento, de modo público
e notório, por agente convicto da obrigatoriedade de sua prática como
necessária à vida em comunidade. Sua força obrigatória baseia-se, por-
tanto, em sua continuidade, uniformidade, moralidade e diuturnidade.22

José de Oliveira Ascensão, comentando sobre o art. 334 do Có-


digo Civil português, pondera acerca dos bons costumes e sintetiza
que eles se caracterizam como uma cláusula geral através da qual se
confere abertura à ordem jurídica a preceitos de ordem ética e moral
socialmente aceite. São extrassistemáticos, não sendo gerados pela
ordem jurídica. A cláusula referente aos bons costumes, pois, permite
a intromissão destes no ordenamento jurídico, fazendo com que certos
comportamentos sejam proscritos por se não adequarem ao padrão ético
socialmente aceitável, havendo uma estreita sintonia e comunicação
entre a regra jurídica e a moral.23
Os bons costumes, destarte, é fonte supletiva do Direito, mas tam-
bém se caracteriza como fonte direta para a análise do comportamento
de um sujeito ao exercer um direito, interesse ou posição jurídica, pois
a conduta lícita de alguém pode ser considerada inadmissível pelos
usos sociais que norteiam as partes no seu exercício, não obstante não
seja ilícita no seu sentido mais restrito.

3.1.3 A boa-fé objetiva


A boa-fé objetiva,24 ou boa-fé lealdade, ou ainda boa-fé contratual,
distingue-se conceitualmente da boa-fé subjetiva. Enquanto na primei-
ra deve-se avaliar a conduta das partes, conduta esta que deve seguir

22
EHRHARDT JR. Direito civil, p. 52, 53.
23
ASCENSÃO. Direito civil: teoria geral, p. 223.
24
Sempre é importante lembrar os ensinamentos de quem mais entende do instituto da boa-fé
no mundo, juntamente com os alemães, os portugueses, quanto à necessidade de se estabe-
lecer uma diferença entre a boa-fé e os bons costumes. Segundo António Manuel da Rocha
e Menezes Cordeiro, já se entendeu não haver diferenças entre os bons costumes e a boa-fé,
porém, existem entre eles diferenças substanciais, como por exemplo: a boa-fé prescreve
a forma de atuação, ao passo que os bons costumes proscrevem os efeitos da atividade
jurígena ofensiva a eles. É dizer que a boa-fé prescreve condutas ou pode fazê-lo e intervém
de modo preferencial em relações específicas, já os bons costumes vedam apenas certos
comportamentos e concretizam-se, em absoluto, sem dependência de um relacionamento
particular (CORDEIRO. Da boa-fé no direito civil, p. 1213, 1223).

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MARCELO MARQUES CABRAL
OS LIMITES IMPOSTOS PELO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO AO EXERCÍCIO JURÍDICO ...
401

um arquétipo exemplar de conduta, um padrão médio com base na


lealdade contratual; na segunda, deve-se analisar o aspecto psicológico
do sujeito que alega a boa-fé para a aquisição de algum direito, como
ocorre nos casos de comprovação dos requisitos para a declaração de
aquisição do domínio de um bem pela usucapião ou como ocorre nos
casos do possuidor de boa-fé para ter direito aos frutos percebidos a não
responder pela perda ou deterioração da coisa, a que não deu causa,
e para ter direito à indenização das benfeitorias necessárias e úteis e
a de levantar as benfeitorias voluptuárias, a título exemplificativo.25
Forte na lição de Judith Martins-Costa, Jones Figueiredo Alves e
Mário Luiz Delgado,26 considerando que na tradição do Direito brasileiro
a expressão boa-fé sempre é tida em sua acepção subjetiva, fazem as
distinções primordiais entre as espécies, denotando a boa-fé subjetiva
como “estado de consciência” ou “convencimento individual de obrar
a parte em conformidade ao direito aplicável”, portanto, “havendo
necessidade para a sua aplicação de se considerar a intenção do sujeito
da relação jurídica, o seu estado psicológico ou a sua íntima convicção”
estando “antitética à boa-fé subjetiva a má-fé”. Por outro lado, a boa-fé
objetiva tem uma conotação que adveio da interpretação que se conferia
ao §242 do Código Civil alemão, configurando “modelo de conduta
social, arquétipo ou standard jurídico” ao qual cada pessoa deve moldar
a sua conduta contratual.
A boa-fé, dessa maneira, pode se apresentar como norma jurídica
principiológica27 (boa-fé objetiva) ou como elemento de suporte fático
de norma jurídica aplicável a um determinado caso (boa-fé subjetiva),
na medida em que ela se apresenta como elemento necessário à con-
figuração das consequências jurídicas desejadas por quem a invoca.
Seguir um padrão ou standard de conduta honesta e leal durante
todas as fases de um contrato e, ainda, durante as fases pré-contratual
e pós-contratual, é previsão legal tanto do Código de Defesa do Consu-
midor quanto do Código Civil, constituindo a própria norma jurídica a

25
Para simples exemplificação: Código Civil, arts. 1.242, 1.214, 1.217, 1.218, etc.
26
ALVES; DELGADO. Código Civil anotado: inovações comentadas: artigo por artigo, p. 84.
27
Segundo o professor Paulo Lôbo, seguindo as lições de Luigi Mengoni, “a boa-fé objetiva
não é princípio dedutivo, não é argumentação dialética; é medida diretiva para a pesquisa
da norma de decisão, da regra a aplicar no caso concreto, sem hipótese normativa pré-cons-
tituída, mas que será preenchida com a mediação concretizadora do intérprete-julgador”
(LÔBO. Teoria geral das obrigações, p. 81). Entretanto, de acordo com o conceito de norma ju-
rídica adrede explicado e aqui adotado, de qualquer maneira, o dispositivo legal, seja regra,
seja princípio jurídico explícito, necessita da interferência do julgador para a produção da
norma jurídica, ou como queiram, da norma de decisão.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
402 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

ser seguida. Ao revés, quando a boa-fé for pressuposto para aquisição


de um direito como elemento de suporte fático de norma necessário
para a produção de um determinado efeito jurídico almejado por um
agente, ela não se configura na própria norma jurídica a ser seguida.
A boa-fé objetiva, em suma, distingue-se da boa-fé subjetiva, tanto
pela sua natureza quanto pelos efeitos por ela projetados.
Segundo o professor Paulo Luiz Netto Lôbo:

A boa-fé objetiva é dever de conduta dos indivíduos nas relações jurídi-


cas obrigacionais, especialmente no contrato. Interessam as repercussões
de certos comportamentos na confiança que as pessoas normalmente
neles depositam. Confia-se no significado comum, usual, objetivo da
conduta ou comportamento reconhecível no mundo social. A boa-fé
objetiva importa conduta honesta, leal, correta. É a boa-fé de conduta.28

Com fundamento constitucional no princípio da solidariedade


social e no princípio da dignidade da pessoa humana, dos quais de-
fluem os demais princípios humanizadores previstos na Lei Maior, a
boa-fé lealdade é destinada a proteger a confiança inspirada por um
dos contratantes no outro, através de comportamentos ínsitos às fases
contratuais e extracontratuais, uma vez que a confiança é a mola pro-
pulsora da vida dos contratos, sendo necessário que a ordem jurídica
a proteja para a própria saúde das relações jurídicas e sociais. A con-
fiança, nesse sentido, é o objeto primordial de proteção do instituto da
boa-fé contratual, sendo considerada por juristas de escol como parte
integrante do seu conteúdo substancial.29
O contratante, com os seus comportamentos, comissivos ou
omissivos, pode causar, no outro, a inspiração para um determinado
pensar e, por consequência, modo de agir, já que a centralidade da
confiança se estabelece na aparência decorrente do comportamento.
Vários julgados são paradigmáticos quanto a esse entendimento,
desde 1991, como, v. g., aquele através do qual se estabeleceu que a
empresa responsável pela distribuição de sementes de tomates, entre
os agricultores do Estado do Rio Grande do Sul, por diversas vezes,
em sentido continuado, com a promessa de comprar-lhes a produção
posteriormente, tinha o dever de indenizá-los na ocasião em que não
comprara a produção, considerando a legítima confiança despertada
pelas atitudes anteriores e reiteradas na celebração do contrato de
compra e venda da produção, in verbis:

28
LÔBO. Teoria geral das obrigações, p. 81.
29
CORDEIRO. Da boa-fé no direito civil, p. 1234.

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MARCELO MARQUES CABRAL
OS LIMITES IMPOSTOS PELO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO AO EXERCÍCIO JURÍDICO ...
403

Contrato. Teoria da aparência. Inadimplemento. O trato contido na in-


tenção, configura contrato, porquanto os produtores, nos anos anteriores
plantaram para a Cica, e não tinham por que plantar, sem a garantia
da compra. (TJRS, Embargos Infringentes 591083357, Terceiro grupo
de câmara cíveis, Rel. Juiz Adalberto Libório Barros, j. 01/11/91. Fonte:
Jurisprudência TJRS, Cíveis, 1992. v. 2, t. XIV, p. 1-122)

Ad argumentandu tantum, a boa-fé objetiva tutela a confiança des-


pertada em uma das partes da relação contratual e visa garanti-la, na
medida em que comportamentos podem valer, na prática, muito mais
do que certas cláusulas escritas, tanto é que a teoria da confiança foi
adotada pelo Código Civil, em seu art. 112, em sede de interpretação
dos negócios jurídicos, como se pode defluir da interpretação lógica
dos arts. 112 e 113.
Insta deixar concluído que a boa-fé em estudo se perspectiva-
ciona em três dimensões naturais no ordenamento jurídico. A primeira
dimensão é aquela prevista pelo art. 113 do Código Civil que preconiza
a interpretação dos negócios jurídicos conforme a boa-fé (dimensão
interpretativo-integrativa). A segunda dimensão, prevista pelo art. 422
do mesmo Código, define e exprime os seus deveres laterais de conduta
(dimensão definidora de deveres). Já a terceira dimensão, prevista pelo
art. 187, estabelece limites ao exercício jurídico de direitos, interesses
ou posições jurídicas (dimensão limitadora).
Para o art. 187 do Código Civil do Brasil, o exercício jurídico de
interesse ou direito subjetivo encontra determinados limites impostos
pelos fins sociais e econômicos do Direito, pelos bons costumes e pela
boa-fé. Assim, nos dois primeiros casos se tem limites funcionais a
este exercício, enquanto que nos dois últimos, os limites não dizem
respeito à função, mas ao modo de exercício. Segundo José de Oliveira
Ascensão, os bons costumes e a boa-fé não geram limites funcionais,
porque não têm a função de realizar os bons costumes ou a boa-fé, mas
apenas de limitar um exercício em conformidade com a boa-fé e com
os bons costumes.30
A boa-fé, dentro da delimitação do art. 187 do Código Civil, as-
sume a característica de elemento conformador e limitador do exercício
de um direito,31 na medida em que impõe deveres de conduta para as

30
ASCENSÃO. Direito civil: teoria geral, p. 223, 224, 225.
31
Este articulista já teve oportunidade de julgar procedente uma ação de reparação por danos
morais decorrentes de inscrição de nome do consumidor em cadastros de inadimplentes do
comércio por dívida não adimplida, de insignificante monta, neste sentido: EMENTA: CIVIL

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
404 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

partes conforme os standards por ela representados. Standards estes


que enucleiam o conteúdo do conceito da boa-fé. Também é elemento
que assume maior relevância com relação aos demais (bons costume
e fins sociais e econômicos do contrato), uma vez que dotado de natu-
reza normativa mais pura e interna ao ordenamento jurídico, hábil à
construção da regra para a atuação das partes e da norma de decisão
pelo magistrado a ser aplicada no caso concreto. Logo, a lesão à boa-fé
objetiva, configurando-se32 como elemento axiológico da norma, pode
caracterizar o exercício anormal de um direito, dentro do conceito de
ilicitude objetiva adotada pelo novo codex.

3.2 A ilicitude decorrente do abuso de Direito


Segundo Pontes de Miranda existem mais atos ilícitos ou contrá-
rios a direitos que os atos ilícitos de que provém o dever de indenizar;
da mesma forma que existem obrigações de indenizar sem ilicitude do
ato ou de conduta, seria para ele a ilicitude juridicizante, ou seja, aquela
que traria repercussão na órbita do Direito quando: determinadora da
entrada do suporte fático no mundo jurídico para a irradiação da sua
eficácia responsabilizadora (art. 159, atual art. 186); determinadora para
a perda de um direito, pretensão ou ação (caducidade com culpa, como
se observa com a perda do pátrio poder – art. 395 do Código revogado,
e Código Penal arts. 92, II; 136; 244; e 246 e.g.); quando infratora culposa
de deveres, obrigações, ações ou exceções, como acontece com toda
responsabilidade culposa contratual, ou quando nulificante (art. 145,
inc. I do Código de 1916).33
O professor Silvio Neves Batista,34 seguindo a orientação Pontia-
na, fundamenta os danos de acordo com a classificação dos atos que os
ensejam. Assim, o ato ilícito no sentido estrito, ou ato ilícito stricto sensu,

E PROCESSUAL CIVIL. Negativação de nome do consumidor em cadastros de inadimplen-


tes do comércio por suposta dívida no valor de R$0,05 (cinco centavos). Conduta caracte-
rizadora do abuso de direito, nos termos do art. 187 do CC. Violação dos deveres anexos à
boa-fé objetiva, tais como o dever de lealdade e de cooperação e, ainda, violação dos limites
impostos pelos fins sociais e econômicos do contrato de consumo que conformam o conceito
dos casos. Ilicitude objetiva ou em sentido amplo. Dano moral configurado. Fixação do quan-
tum debeatur de forma razoável e com ponderação. Pedido julgado parcialmente procedente
(TJPE. I Juizado Especial Cível de Garanhuns – PE. Processo nº 0001609-14.2010.8.17.8022. De-
mandante: Raimundo Pequeno de Souza. Demandado: Companhia Energética de Pernambu-
co – CELPE. Juiz: Marcelo Marques Cabral. Pub. em 14.03.2011 em: <http://www.tjpe.jus.br>).
32
ROSENVALD. Dignidade humana e boa-fé no Código Civil, p. 129.
33
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, p. 241.
34
BAPTISTA. Teoria geral do dano, p. 50-56.

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MARCELO MARQUES CABRAL
OS LIMITES IMPOSTOS PELO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO AO EXERCÍCIO JURÍDICO ...
405

seria aquele ato violador da regra jurídica com culpa (dolo, negligência,
imprudência ou imperícia); o fato ilícito stricto sensu seria aquele que
se caracteriza pela existência de obrigação de reparar mesmo diante
de caso fortuito ou força maior, “em que a culpa não ingressa como
elemento configurativo da responsabilidade civil”, como acontece nas
hipóteses do possuidor de má-fé; do devedor em mora; do procura-
dor que substabelece os poderes outorgados, não obstante a proibição
contratual, mesmo que o prejuízo resulte de caso fortuito (art. 667, §1º),
etc.; por sua vez, o ato-fato ilícito seria aquele ato que não foi querido
pelo agente ou, mesmo se querido, a vontade do agente se apresenta
irrelevante para o ordenamento, dado “que a ação entra para o mundo
jurídico como um simples fato, resultando deste fato a sua eficácia”,
nessa hipótese se incluem, segundo o professor, a responsabilidade
civil fundada na teoria do risco. Por fim, o fato lícito, gerador do dano
lícito, impõe o dever de indenizar mesmo quando a violação do bem
seja permitida pelo ordenamento jurídico, a exemplo do dever de repa-
rar nas circunstâncias do art. 188, inc. II, c/c art. 929 do Código. Neste
último caso, trata-se de uma espécie de ato-fato, ou melhor, de um
ato-fato jurídico indenizativo, segundo Marcos Bernardes de Mello.35
Sintetizando, o dever de reparar, segundo o atual ordenamento
jurídico nacional e a mais abalizada doutrina sobre o assunto, pode se
originar de uma ilicitude no sentido mais restrito, também denomi-
nada comumente de ilicitude subjetiva, aqui denominada de ilicitude
propriamente dita, nos casos de sua caracterização por atuação culposa
do agente causador do dano (CC art. 186), e de uma ilicitude no seu
sentido mais amplo, comumente denominada de ilicitude objetiva, ou
aqui denominada de ilicitude não propriamente dita, considerando o
surgimento do dever de reparar decorrente de um fato ilícito stricto
sensu, de um ato-fato ilícito (parágrafo único do art. 927 do CC) e de
um ato-fato caracterizador do abuso de Direito (CC art. 187).
Não pairam mais dúvidas, nesse diapasão, de que o abuso de
Direito foi abarcado pelo nosso legislador civil como um caso configu-
rador de uma ilicitude em sentido amplo, decorrente do mau exercício
de um direito, não consagrador, a priori, da violação diretamente da
lei. É a “ilicitude no modo do exercício”.36 A violação aqui decorre da
contrariedade ao ordenamento como um todo, podendo se verificar

35
MELLO. Teoria do fato jurídico: plano da existência, p. 135.
36
MARTINS-COSTA. Os avatares do abuso do direito e o rumo indicado pela boa-fé. In:
DELGADO; ALVES (Coord.). Novo Código Civil: questões controvertidas: parte geral do
Código Civil, p. 517.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
406 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

este ordenamento como um complexo de princípios, regras e modelos


jurídicos derivados das fontes de produção de normatividade.37 Nesse
sentido, passou-se a estabelecer diferenças entre as figuras da ilegali-
dade e da ilicitude, sendo esta um termo mais abrangente.
Alvino Lima, com apoio em Campion, aduz que no abuso de
Direito se configura uma “culpa social”, ou seja, uma “culpa que lesa
diretamente a sociedade”, não havendo, nessa hipótese, apreciação
de erro de conduta, bastando a lesão à coletividade no exercício de
um direito, no que se baseia em um critério social. Diz ele: “O maior
prejuízo social constitui o critério fixador do ato abusivo de direito”.38

3.3 Os limites impostos ao exercício jurídico de


negativação do nome do consumidor nos cadastros
de proteção ao crédito e de corte no fornecimento de
serviços públicos essenciais
Ajoeiradas as premissas básicas para a construção do enunciado
configurador da ilicitude decorrente do abuso de Direito, urgem as
considerações para a conclusão da configuração da inadmissibilidade
do exercício de procedimentos restritícios ao crédito do consumidor
e do óbice no fornecimento de serviços essenciais, como o de água e
energia, por dívidas de valor irrisório.
Indubitavelmente, conforme alhures explanado, os atos ilícitos
violadores da ordem jurídica e, por isso mesmo, ilegítimos, não se re­
sumem àqueles decorrentes de conduta contrária, às expressas, ao Di­
reito, e, por isso também antijurídico,39 justamente por contrariar este
ordenamento.

37
MARTINS-COSTA. Os avatares do abuso do direito e o rumo indicado pela boa-fé. In:
DELGADO; ALVES (Coord.). Novo Código Civil: questões controvertidas: parte geral do
Código Civil, p. 518.
38
LIMA, Alvino. Culpa e risco, p. 256, 257.
39
A doutrina, de há muito, discute acerca da antijuridicidade do ato ilícito, pois se é ilícito o
ato, não pode ser ele jurídico, mas sim antijurídico. Todavia, apoiado em Pontes de Miranda,
Marcos Bernardes de Mello se posiciona a favor da juridicidade da ilicitude, pois os termos
juridicidade e ilicitude não se confundem. Para ele, com relação ao fato ilícito a norma jurí-
dica o prevê como seu suporte fático, como situação jurídica fática contrária à ordem, à qual
estabelece uma sanção. Caso aquela situação prevista na norma aconteça no mundo dos
fatos, dá-se a incidência da norma que a juridiciza e lhe oferece entrada no mundo do direito
(MELLO. Responsabilidade civil do produtor e do fornecedor por vício ou defeito do produ-
to ou do serviço: uma revisão dos conceitos. In: EHRHARDT JR.; BARROS (Coord.). Temas de
direito civil contemporâneo: estudos sobre o direito das obrigações e contratos em homenagem
ao professor Paulo Luiz Netto Lôbo, p. 483-503).

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Existe uma ilicitude implícita que ilegitima um ato quando o seu


exercício ofende certos limites funcionais extraídos da necessidade de
se determinar a função social e econômica do Direito quanto ao seu
exercício e da necessidade de adequar-se o modo de agir no exercício
de um interesse aos bons costumes e à boa-fé.
É dizer que o exercício de um Direito, interesse ou posição ju-
rídica, mesmo que não ofenda o ordenamento jurídico por violação
do comando legal preconizado pelo art. 186 do Código Civil, pode
o atingir reflexamente através de uma espécie de ilicitude objetiva,
caracterizando a ilegitimidade, ou ilicitude em sentido amplo, do ato,
uma vez que a ilicitude extraída do caso estaria a se caracterizar muito
mais no seu sentido social do justo, do razoável, do proporcional, ou
seja, do socialmente tolerável.
Olhando sob esse prisma, não há como se aceitar a conflagração
de uma restrição cadastral no crédito de um consumidor ou um corte
no fornecimento de serviços essenciais, estando ele inadimplente por
valores totalmente irrisórios ou ínfimos.
A atuação antissocial de tal procedimento é mais do que evidente!
Em primeiro lugar, existe uma desproporcionalidade gritante entre os
benefícios ínfimos retirados pelo fornecedor do bem de consumo e o
ônus impingido ao devedor decorrente da privação da utilização de
bens imprescindíveis à sua atuação cotidiana e, por conseguinte, com
implicação direta em sua saúde, em seu trabalho, em seu sossego, enfim,
no seu dia a dia. Em segundo, em toda relação de consumo, como de
resto em toda relação na qual esteja o homem imiscuído, os deveres
de atuação e de conduta com base na lealdade são imperativos éticos
de conduta, reflexos da boa-fé objetiva. Portanto, é dever primordial
agir de forma leal, cooperativa, esclarecedora e não contraditória com
o devedor.
O exercício do Direito, nessas hipóteses, estaria desfuncionaliza-
do na sua atuação social e econômica, além de se encontrar antitético
à boa-fé objetiva.
Ora, sob o ponto de vista da sociedade, nenhum proveito se
retiraria de tais procedimentos, não se lhe trazendo qualquer benefício
social. Muito ao revés, a sociedade repugna tal comportamento!
Para o devedor o peso do procedimento lhe configuraria ver­da­
deira punição, causando violação em suas interações existenciais, em
sua dignidade como homem e como consumidor. Por outro lado, para
aquele que está a realizar essa espécie de exercício jurídico inadmis­
sível, nenhum proveito mensurável se lhe garantiria, pois não há como
se visualizar enriquecimento justificante de sua conduta. Óbvia a

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408 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

desfuncionalização no exercício jurídico deste interesse, considerando


os limites impostos pelos seus fins sociais e econômicos.
Por fim, quanto ao modo de atuação do exercício jurídico, é de
se levar em consideração a sua desconformidade com o que estão a
exigir os deveres decorrentes do dever de boa-fé, com base na lealdade
e cooperação obrigacionais.
A limitação ao exercício jurídico da espécie de interesse ora
combatido, em conclusão, apresenta-se da seguinte maneira: 1. Pela não
realização da função social do Direito; 2. Pela não realização da função
econômica do Direito; e 3. Pela não adequação aos limites impostos
pela boa-fé objetiva.
A conclusão a que se chega advém da integração dos sistemas do
Código Civil e do Código de Defesa do Consumidor, aplicando-se as
regras específicas do estatuto de proteção do consumidor em diálogo
de coordenação de fontes com os conceitos hauridos do art. 187 do
diploma civilista pátrio, no que atine à boa-fé objetiva, fins sociais e
econômicos do Direito, etc., tudo em consonância com a interpretação
axiológica constitucional do Direito infraconstitucional.

4 A responsabilidade civil decorrente do exercício


jurídico inadmissível
A consequência invariável do dano injusto (ilícito e até lícito) ou,
nas palavras de Orlando Gomes, do fato danoso,40 é o dever de reparar.
Não seria diferente com relação ao dano decorrente da prática de um
exercício jurídico inadmissível pelo ordenamento, ou seja, nos casos
de danos decorrentes do exercício configurador do abuso de Direito.
Caracterizado o exercício jurídico inadmissível e o dano dele decor-
rente, cabe indenização, ou compensação, dependendo da etiologia
dos direitos violados.
Quanto ao dano injusto e às transformações sofridas pela respon-
sabilidade civil, ensina o professor argentino Eduardo A. Zannoni:41

(...) desde la concepción de la responsabilidad civil como reparación del


daño injustamente causado, se evoluciona hacia una responsabilidad que

40
Orlando Gomes explica que nem todo fato que gera o dever de reparar é ilícito (dentro
da leitura aqui elaborada, não são ilícitos no sentido restrito), pois há fatos que causam
prejuízos a outrem, mas não são ilícitos, não havendo que se confundir fato ilícito com fato
danoso (GOMES. Responsabilidade civil, p. 60).
41
ZANNONI. El daño en la responsabilidad civil, p. 6, 7.

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409

sitúa dicha reparación dando preponderancia a la víctima o damnificado


de un daño injustamente sufrido.
No se trata de una mera cuestión de palabras. La Idea de daño injusta-
mente causado pone el acento en la antijuridicidad del obrar humano
que es causa del perjuicio. Por eso non responde quien ha causado el
daño justificado por un obrar no antijurídico — contra ius — del autor.
Del Idea de daño injustamente sufrido pone el acento, en cambio, en
el menoscabo de todo o derecho o interés del damnificado que sea
considerado merecedor de protección, que será resarcible salvo que
la lesión non quede justificada por un derecho o interés superior del
lesionante, digno de tutela.
Mientras en la concepción clásica — se ha dicho — un daño no es
justificado cuando el acto que lo causa es antijurídico, en la concepción
moderna el daño no es justificado cuando, valorando comparativamente
los intereses en conflicto de quien lo causa y del damnificado no es justo
que lo suporte quien lo sufre.
Se ha llegado a afirmar, a partir de esta última formulación, que la noción
de daño injusto prescinde de la antijuridicidad como factor de atribución
de la responsabilidad. A nuestro juicio, y no obstante el predicamento
que paulatinamente ha adquirido esta Idea, sobre todo por medio de
la doctrina italiana, esto no es así (...)

O dano ilícito no seu sentido amplo legitima o ofendido a in-


gressar com uma ação de responsabilidade civil para o desiderato da
reparação, da mesma forma como se tivesse sido atingido por um ato
ilícito culposo. A natureza do ato danoso não interessa para o estabe-
lecimento do an debeatur, podendo, quando muito, interferir no valor
da reparação.
É clássica a subdivisão da responsabilidade civil em contratual
e extracontratual, não obstante a tendência, em vários países, como,
por exemplo, no Direito argentino, da unificação dos conceitos para
a fórmula subsumida na expressão “direitos de danos”, sendo “muy
fuerte el movimiento unificador de los ámbitos de responsabilidad
civil. Lo demuestran las recomendaciones de congresos y jornadas”
conforme anotam Iturraspe e Piedecasas.42
Conforme ensina Álvaro Villaça Azevedo,43 a chamada respon-
sabilidade contratual se situa no âmbito da inexecução obrigacional do
contrato; já a chamada responsabilidade extracontratual se posiciona
no inadimplemento obrigacional normativo.

42
MOSSET ITURRASPE; PIEDECASAS. Responsabilidad contractual, p. 45, 46.
43
AZEVEDO. Teoria geral das obrigações e responsabilidade civil: curso de direito civil, p. 244.

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410 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

No dizer de Henri e Léon Mazeaud44 “no existe diferencia fun­


damental entre los dos ordens de responsabilidades: su estudio de-
pende del de las fuentes y de los efectos de las obligaciones”. Assim,
as regras concernentes à responsabilidade contratual, segundo eles,
foram trazidas pelos redatores do Código Civil francês no capítulo
consagrado aos efeitos das obrigações convencionais, enquanto que as
da responsabilidade extracontratual, ou delitual, no título denominado
“de las obligaciones que se forman sin convención”, no capítulo II que
trata “de los delitos y cuasidelitos”, existindo um vínculo de direito
que ligam as partes na responsabilidade obrigacional e inexistindo esse
vínculo na responsabilidade extracontratual.
No que concerne ao objeto do presente estudo, a responsabili-
dade civil erigida para os casos variam de acordo com a natureza das
obrigações, não sendo tão fácil se constatar a caracterização de uma e
de outra.
De qualquer maneira, arrisca-se, já aqui, a classificação da respon-
sabilidade de reparar o dano oriundo do exercício jurídico inadmissível
do ato de inscrição do nome do devedor nos cadastros de restrição ao
crédito e do ato de se obstar o fornecimento de energia elétrica e de
água por débito de valor ínfimo, assim como outros assemelhados,
como sendo, para os casos de negativação ilegítima uma hipótese de
configuração de responsabilidade extracontratual e, no segundo caso,
como sendo uma hipótese de responsabilidade contratual.
Nas hipóteses de negativação por exercício abusivo de Direito, o
objeto do contrato não diz respeito ao ato restritício, como sendo uma
consequência de suposto inadimplemento por parte do devedor, inexis-
tindo, portanto, vínculo de direito que faça subsistir a relação negocial.
Ao revés, o óbice abusivo do fornecimento de serviços essenciais atinge
diretamente o objeto prestacional do contrato; isto é, o próprio forneci-
mento do serviço. Há, então, uma inexecução contratual indevida, por
parte do suposto credor, causadora de dano para o suposto devedor.
A negativação do nome do devedor em cadastros de proteção ao
crédito e o corte no fornecimento de serviços essenciais para o alguém
rotulado de devedor, por valor irrisório, em suma, constituem casos
de exercício jurídico inadmissível, caracterizador de dano injusto e não
justificável pelo ordenamento jurídico nacional, subsistindo o dever de
reparar por parte daquele que exerceu o seu direito de forma “abusiva”.

44
MAZEAUD; MAZEAUD; TUNC. Tratado teórico y practico de la responsabilidad civil delictual
y contractual, p. 115, 116.

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5 Conclusão
O Direito Contratual, sob os influxos da nova ordem constitu-
cional democrática, pautado nos princípios da dignidade da pessoa
humana, da igualdade substancial e da solidariedade contratual, passa
a conferir prevalência aos princípios de índole ética, não abolindo ou
colocando de lado no ordenamento os princípios individualistas, mas
conformando-os, ainda com mais rigor quando existir desequilíbrio
material entre as partes.
O Código de Defesa do Consumidor e o novo Código Civil
sofreram a influência dos valores e princípios democráticos da nova
ordem jurídica instaurada a partir da Constituição de 1988. O primei-
ro diploma, como norma principiológica constitucional e, o segundo,
como norma de regulação das relações privadas, mas que deixou de
ser o centro delas, cedendo este espaço para a Lei Maior. Sendo dessa
forma, a solidariedade constitucional conformou o princípio da soli-
dariedade contratual, que deve ser o norte de atuação dos particulares
em suas inter-relações.
A solidariedade contratual, pois, não comporta atuações incom-
patíveis com a boa-fé contratual, devendo ser reprimidas pelo ordena-
mento, daí arvorecer como princípio jurídico nuclear da solidariedade
social o princípio da boa-fé lealdade, que traça os padrões éticos de
condutas a serem seguidos pelos contratantes durante as fases pro-
priamente contratuais e durante as fases não propriamente contratuais,
local para onde expande as suas eficácias.
Nesse diapasão, a ordem jurídica exige que as partes atuem de
forma ética, em conformidade com deveres de conduta, decorrentes
de boa-fé, e, ainda, de acordo com os bons costumes, funcionalizando
a atuação contratual de acordo com os fins sociais e econômicos do
Direito posto em jogo na relação jurídica.
Com relação à boa-fé objetiva, esta foi prevista tridimensional-
mente no Código Civil brasileiro. Destarte, no art. 113, recebeu a dimen-
são de fonte para a interpretação e integração dos negócios jurídicos; no
art. 187, a dimensão de regra limitadora de casos de exercícios jurídicos
inadmissíveis pelos limites por ela impostos e; no art. 422, recebeu a
dimensão de norma criadora de deveres jurídicos secundários dela
decorrentes, através dos quais proíbe comportamentos desleais, des-
compromissados, contraditórios, incivilizados, não cooperativos, etc.
Em todas as suas dimensões, pois, a boa-fé, no conceito que ora
fora abordado, prestigia o princípio da confiança, que é elemento bá­
sico para a concretização da relação obrigacional, assim como para o

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
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seu desenvolvimento regular, e restaura a primazia da transparência


dos comportamentos em detrimento do dogma absoluto da vontade.
Em suma, a boa-fé objetiva atua como baliza respaldada no prin-
cípio da eticidade, servindo como norte para se padronizar modelos
de condutas com base na lealdade contratual. Já os fins sociais e eco-
nômicos do Direito determinam aos contratantes que atuem de forma
proporcional, tentando respaldar os resultados econômicos decorrentes
do cumprimento do contrato com os ônus impostos ao consumidor e
à própria sociedade.
A concretização dos procedimentos de registro do nome do con­
sumidor em cadastros de inadimplentes do comércio e de corte no for­
necimento de energia elétrica e água potável, entre outros asse­melhados,
fundamentado em dívida de valor irrisório, contraria os limites impostos
pelos fins sociais e econômicos do Direito e dos limites traçados pela
boa-fé objetiva.

Referências
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MARCELO MARQUES CABRAL
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413

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

CABRAL, Marcelo Marques. Os limites impostos pelo ordenamento jurídico


brasileiro ao exercício jurídico dos procedimentos de inscrição do nome
do consumidor em cadastros de inadimplentes do comércio e de corte no
fornecimento de serviços públicos essenciais: a questão dos danos resultantes
da concretização desses procedimentos por dívidas de valor irrisório e as
balizas resultantes da aplicação do art. 187 do Código Civil. In: EHRHARDT
JR., Marcos (Coord.). Os 10 anos do Código Civil: evolução e perspectivas. Belo
Horizonte: Fórum, 2012. p. 391-413. ISBN 978-85-7700-616-8.

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PARTE IV

DIREITO DAS COISAS

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OS DIREITOS REAIS CODIFICADOS NO
CURSO DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO
DIREITO CIVIL

RICARDO ARONNE

1 Ecos de um passado recente do Direito Privado


O direito das coisas, sob uma matriz tradicional, não obstante
apontado como “[...] a província do direito privado mais sensível às in-
fluências de evolução social”,1 ainda corresponde ao “complexo de nor-
mas reguladoras das relações jurídicas referentes às coisas suscetíveis de
apropriação pelo homem”.2 Pressupõe, com assento nessas premissas,
um profundo patrimonialismo, ignorando o sujeito enquanto não seja
titular de bens, em contraponto ao projeto constitucional. De mínima
sensibilidade social, esta percepção3 natural da Pandectista e da Escola
da Exegese, retoma o fetiche oitocentista da codificação revelando uma
visão própria de mundo4 aplicada ao Direito, em especial Civil, que

1
PEREIRA. Instituições de direito civil: direitos reais, p. 8.
2
BEVILÁQUA. Direito das coisas, p. 11.
3
Para uma introdução à crítica da percepção patrimonialista que norteou a confecção das
bases do Direito Civil, vide Jussara Meirelles (O ser e o ter na codificação civil brasileira:
do sujeito virtual à clausura patrimonial. In: FACHIN (Coord.). Repensando fundamentos do
direito civil brasileiro contemporâneo, p. 87-114).
4
Paradigmáticas as palavras de Sylvio Capanema de Souza, apresentando a obra de Melhim
Namem Chalhub (Curso de direito civil: direitos reais, p. 9): “Neste momento tão denso, que

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
418 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

repousa sobre os pilares da teoria da relação jurídica e direitos subje-


tivos. Identificado o Direito Civil ao Código Civil enquanto sistema
fechado, qual faz o discurso jurídico tradicional, tratando a discipli-
na à luz da infértil compreensão do regime de numerus clausus,5 um
dos respectivos livros da codificação, destinado aos direitos reais, ali
modelados como absolutos, carrega tal efígie nominal perfazendo efi-
ciente fronteira para o discurso clássico que permanece nos manuais.6
Nesse sentido, não obstante o discurso de renovação que acompanhou
algumas defesas do Código de 2002, percebe-se que os contrastes com
o Código Beviláqua, até existem, mas não são gritantes.7 A matriz
patrimonialista de sua arquitetura aliada ao discurso de centralidade
normativa que o envolve, somados ao anteparo da manutenção de
uma parte geral, a postulação de cláusulas gerais como filtros ao que
se projete para dentro da racionalidade codificada, e a atitude de pre-
servação que a comissão encarregada de sua feitura seguiu, denunciam
o exposto.8 Tendo nas origens as teorias oitocentistas, recebidas no
núcleo do Novo Código, o direito das coisas importa na regulação e
disciplina dos direitos patrimoniais absolutos, compreendidos como
a propriedade privada em suas diversas manifestações, expressões
e emanações, na percepção original, quase nominalista em razão da
taxatividade aplicada. Perceba-se tal formato de digressão já presente
em Lafayette, a mais referenciada doutrina nacional do século XIX.9

2 Raízes modernas da propriedade codificada


Como resultado do discurso privatista tradicional, uma forte
perspectiva abstrata e patrimonialista, coerente aos ares do liberalismo

vive a ordem jurídica brasileira, ao receber uma nova ordem jurídica, é de excepcional rele-
vância o papel da doutrina a quem cabe desvendar e explicar as mensagens que fluem do Código
Civil, orientando a construção pretoriana que surgirá, integrando o novo texto legal, para
suprir eventuais lacunas”.
5
Da manualística, em Sílvio Rodrigues (Direito civil: direito das coisas, p. 9), colhe-se enten-
dimento estritamente contrário à própria realidade registral nacional, traduzindo enfoque
substancialmente conservador, oitocentista, que ainda persevera em nichos teóricos do Di-
reito Privado: “Tal entendimento, data venia, não merece acolhida. O direito real é uma
espécie que vem munida de algumas regalias importantes, tais a oponibilidade erga-omnes
e a seqüela, de modo que a sua constituição não pode ficar a mercê do arbítrio individual”.
6
Vide, por todos, PEREIRA. Instituições de direito civil: direitos reais, p. 1.
7
RIZZARDO. Direito das coisas, p. 9.
8
REALE. Visão geral do novo Código Civil. In: TAPAI. Novo Código Civil brasileiro: estudo
comparativo do Código Civil de 1916, Constituição Federal, Legislação Codificada e Extra-
vagante, p. XI.
9
PEREIRA. Direito das coisas, p. 9.

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RICARDO ARONNE
OS DIREITOS REAIS CODIFICADOS NO CURSO DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL
419

econômico que gestou o regime de propriedade no nascimento do Es-


tado Moderno a partir do discurso iluminista, se entranhou no Direito
Civil.10 Fundado no jusracionalismo e ancorando-se no jusnaturalis-
mo, para qual o direito de propriedade perfaz um direito natural do
homem, facilmente o discurso moderno entronizou a inviolabilidade
da propriedade privada, alinhando-a com a noção de liberdade e
dignidade do indivíduo, derivada da sacralização do instituto já na
Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão. Recebendo um livro
próprio, no Code Napoleón, a propriedade em suas diversas manifes-
tações e arranjos, cuja relevância interessara ao liberalismo nascente,
ingressava no infante Direito Civil com arquitetura e configuração
própria.11 Na leitura tradicional privatista, a disciplina do direito das
coisas corresponde ao estudo do respectivo livro da codificação, com o
patrimonialismo e abstração que são naturais aos esquemas juscivilistas
clássicos.12 Reduzido à condição de sujeito de direito, o homem passa a
ser mero partícipe do abstrato13 reino da relação jurídica patrimonial.

10
Ainda ficando-se em Lafayete, Direito das coisas, p. 9: “Nas condições da vida humana, neste
mundo que Kant chamava fenomenal, a propriedade, isto é, o complexo de coisas corpóre-
as susceptíveis de apropriação, representa um papel necessário. A subsistência do homem,
a cultura e o engrandecimento de suas faculdades mentais, a educação e o desenvolvimento
dos germes que a mão da Providência depositou em seu coração, dependem essencialmen-
te das riquezas materiais”.
11
GONNARD. La propriété dans la doctrine et dans l’histoire, p. 1-2: “Dans les sociétés humaines
même les plus rudimentaires, se pose le problème de l’appropriation, c’est-á-dire le problème
de la manière dont sera assurée, aux individus ou aux groupes, la faculté, plus ou moins
durable et plus ou moins exclusive, de disposer des biens. [...] Et le droit de propriété, dans
sa forme et dans son organisation, on a beaucoup varié dans le temps et dans l’espace”.
12
PROVERA. La distinzione fra diritti reali e diritti di obbligazione alla luce delle istituzioni
di Gaio. In: IL MODELLO di Gaio nella formazione del giurista, p. 387: “La distinzione fra
diritti reali e diritti di obbligazione è fra le più dibattute dalla nostra dottrina civilistica,
impegnata nello sforzo di individuare i criteri idonei a giustificarla sul piano scientifico
e su quello normativo. Non occorre certo insistere per sottolinearne l’importanza, non
solo perché tutti i rapporti giuridici patrimoniali dovrebbero trovar posto, almeno in linea
di massima, nell’una o nell’altra delle due categorie, pensate come esaustive, ma anche
e soprattutto perché da tale collocazione dipende la scelta della disciplina normativa
appropriata, rispetivamente, a quelli di tipo reale ed a quelli di tipo obbligatorio. Non
va, d’altra parte, dimenticato che negli uni e negli altri si riflettono realtà economiche
radicalmente diverse a seconda dei modi in cui l’uomo opera concretamente, nella vita di
ogni giorno, al fine di procurarsi i mezzi necessari al soddisfacimento dei suoi bisogni. Si
pensi, ad esempio, al bisogno di una casa, che può, secondo l’id quod plerumque accidit,
essere soddisfatto acquistandola, in cambio di un prezzo, da chi ne è proprietario oppure
impegnando quest’ultimo a metterla a disposizione affinché altri ne goda per un certo
tempo in cambio di un corrispettivo”.
13
RIZZARDO. Direito das coisas, p. 1: “Direito das coisas é o ramo do saber humano e das nor-
matizações que trata da regulamentação do poder do homem sobre os bens e das formas
de disciplinar a sua utilização econômica. Dir-se-ia que, em última instância, o ser humano
é sempre movido tendo como motivo fundamental um fim econômico, o qual se concretiza

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420 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Como tal, este personagem somente manifesta motivações e percepções


compatíveis com as opções do liberalismo laico burguês.14 Cria um
Homo Economicus. Codificado, abstrato e eficiente em busca de gerir e
gerar “externalidades”. É ateu, não possui ódio, paixão, amor, raiva,
desprezo, amizade, ira, afeto ou sentimentos estranhos à codificação.
Suas motivações são exclusivamente econômicas. Ele se limita a possuir,
dispor, usar, fruir ou negociar. É um autômato metalista, apto a viver
sob a égide da Lex Mercatoria.15 Suas motivações centram-se na teoria
da justa troca.16 17
Percebida a função social da propriedade, a partir do núcleo
substancial do ordenamento jurídico, como direito fundamental (para
bem mais além de uma cláusula geral),18 uma mutação inicia seu
curso dando um profundo golpe na visão de direito absoluto que por
séculos envolveu o discurso proprietário e teceu o direito das coisas
codificado. O repensar inerente ao fenômeno da constitucionalização
do Direito Civil,19 introduziu novas reflexões acerca dos direitos reais,
cuja gama de interesses centrais da disciplina deixava de estar ubicada
tão somente na figura do proprietário ou demais titulares, percebendo
interesses distintos e até difusos em seu seio.20 Plural, como a socieda-
de brasileira resultou amalgamada, esta nova visão projeta um foco
bem mais amplo, abrigando, para além dos personagens codificados
tradicionais, os despossuídos e interesses extrapatrimoniais.21 Um

na conquista de bens. Por isso, o direito das coisas, embora necessária a sua especificação
dentro do universo do direito, repercute em todos os setores jurídicos, seja qual for a divi-
são que lhe empresta a metodologia na sua consideração geral”.
14
Afirma Washington de Barros Monteiro (Curso de direito civil, p. 1), introduzindo a matéria
em pauta, denunciando uma fronteira entre o direito e o não direito, haverem bens sem
interesse para o direito das coisas, fazendo perceber sua matriz patrimonialista — sem
atenção ao art. 170 et seq. da CF/88 —, de forma mais nítida ao posicionar-se dizendo neste
ponto haver uma “sincronização perfeita entre a ciência jurídica e a ciência econômica”.
15
Fundamental ao operador jurídico a releitura do papel das titularidades procedida por
Luiz Edson Fachin (FACHIN. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo, passim).
16
FERNANDES (Coord.). Habermas, p. 15-16.
17
Especificamente tratando os elementos da teoria da justa troca: HABERMAS. A crise de
legitimação do capitalismo tardio, p. 90-99.
18
Sobre a questão das cláusulas gerais, importantes considerações encontram-se tecidas por
Cristiano Tutikian (TUTIKIAN. Sistema e codificação: o Código Civil e as cláusulas gerais,
p. 19-31).
19
Para que se compreenda a real extensão deste fenômeno, com a prospecção nos três pilares
fundamentais do Direito Privado (propriedade, família e contrato), vide Luiz Edson Fachin
(Teoria crítica do direito civil).
20
FACHIN. Limites e possibilidades da nova teoria geral do direito civil. Estudos Jurídicos,
p. 99-107.
21
MEIRELLES. O ser e o ter na codificação civil brasileira: do sujeito virtual à clausura patri-
monial. In: FACHIN (Coord.). Repensando fundamentos do direito civil brasileiro contemporâ-
neo, p. 89.

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RICARDO ARONNE
OS DIREITOS REAIS CODIFICADOS NO CURSO DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL
421

sentido teleológico impresso por atratores normativos, que vinculam o


discurso conformador do intérprete. Superadas as teorias de afetação
tradicional que se entranharam na leitura dos direitos reais, salientada
a autonomia das titularidades de pertença frente ao núcleo dominial22
e liberta a posse das amarras proprietárias,23 pode-se definir o direi-
to das coisas na atualidade, simplesmente, como o ramo do Direito
Civil destinado à regulação sociopatrimonial da posse, titularidade
e domínio, com larga projeção e influência dos demais campos do
Direito (Agrário, Urbanístico, Ambiental, Administrativo, Biodireito,
Contratos, dentre outros); pois largamente influenciado e influente no
sistema jurídico como totalidade (aberta), a partir do reconhecimento
de sua unidade axiológica,24 com epicentro constitucional. Os institutos
são atingidos pela órbita axiológica de diversas normas (atratores),
resultantes de diversos diplomas legais, materialmente alinhados à
axiologia constitucional. Redesenhado em concreto, na sua fractal25
existência social, um direito subjetivo em pleito, sofre o influxo de
di­versas órbitas normativas, reciprocamente atratoras e rejeitoras, em
curso de preponderância variável, pela alimentação axiológica. E é nesta
constante mobilidade que reside o elemento de coerência material do
Direito. Teleologicamente orientado à realização do Estado Social e
Democrático projetado na Carta de 1988, interesses extraproprietários,
sejam de natureza pública ou social, resultaram lançados na mirada
do direito das coisas, em concurso com o respectivo interesse privado
dos titulares.26 A publicização do Direito Privado, fenômeno que, no
tocante ao Brasil, se iniciou nos anos 30 do século XX, tendo no curso

22
ARONNE. Propriedade e domínio: reexame sistemático das noções nucleares de direitos
reais, p. 206-211.
23
ARONNE. Titularidades e apropriação no novo Código Civil brasileiro: breve ensaio sobre
a posse e sua natureza. In: SARLET (Org.). O novo Código Civil e a Constituição, p. 239.
24
CANARIS. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito, p. 240-241.
25
ARONNE. Direito civil-constitucional e teoria do caos: estudos preliminares.
26
Jürgen Habermas traça, com acerto, fronteira ao discurso em tela. O Direito, enquanto obje-
to epistemológico do presente discurso, identifica-se a um Direito democraticamente cons-
truído, com aspirações de justiça e equidade material, não obstante a inserção da economia
de mercado. Diz (A ética da discussão e a questão da verdade, p. 38-40): “Grosso modo, penso
que as sociedades complexas contemporâneas se integram até certo ponto através de três
veículos ou mecanismos. O ‘dinheiro’ enquanto veículo está, por assim dizer, instituciona-
lizado no mercado; o ‘poder’ enquanto veículo está institucionalizado nas organizações;
e a ‘solidariedade’ é gerada pelas normas, pelos valores e pela comunicação”. Leciona o
filósofo que o mercado tem seus mecanismos no contrato e na propriedade. Por si só, ao
contrário da lição de Hayek, que remonta Adam Smith, o mercado não tem uma condição
distributiva ideal. Assim, havendo uma Constituição democrática, o Direito intervém no
mercado, através da regulação de seus mecanismos em abstrato (pela lei) e em concreto
(pela administração e jurisdição).

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
422 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

de seus altos e baixos denunciado a ruína da racionalidade codificada,


encontrou seu ápice a partir dos anos 90, na esteira da aplicação judicial
da visão contemporânea dos direitos fundamentais e das teorias de
eficácia que a alimentam hodiernamente.27
Como resultado, operou-se uma reconstrução, ainda em curso,
do Direito Civil, com amplo impacto no direito das coisas, na busca
de sua repersonalização, orientada pelo princípio da dignidade da
pessoa humana.28 Migrando o patrimônio para a periferia, deixando
ao homem, em sua antropomórfica dimensão intersubjetiva, o centro
dos interesses protetivos do sistema jurídico, a propriedade e suas
manifestações passam a guardar um papel instrumental. Torna-se
complexo repetir empoeirados conceitos tributários de valores oitocen-
tistas, não raro incompatíveis ao ordenamento jurídico vigente, como
se torna paradoxal voltar a trilhar a teoria de suporte dos direitos reais,
que angula a leitura e aplicação do direito das coisas tradicional. As
normas vigentes, à luz dos valores que as dinamizam, são repulsoras
desta postura. Não obstante, ao estudo da disciplina, se faz necessário
o domínio do manancial teórico clássico, senão por apuro acadêmico,
visto não se ignorar o asfalto que pavimenta o percurso histórico do
Direito, pelo fato de que ainda hoje na doutrina, largos setores repro-
duzem a visão tradicional; mesmo que sem maior reverberação na
jurisprudência. Paradoxo. Fenômeno natural à dialógica,29 orientada
como instrumento deontológico de operação. Útil ao reconhecimento
da complexidade, inerente ao paradigma atual, resistente ao simplis-
mo dialético das equações codificadas nas regras, por esquemas tipo/
sanção. Como dado de realidade, poder-se-ia, com alguma serenidade,
afirmar que em semelhante proporção com que se verifica a primazia

27
FACCHINI NETO. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito
privado. In: SARLET (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado, p. 41: “Com a
aceitação da idéia de que o direito civil não pode ser analisado apenas a partir dele próprio,
devendo sofrer o influxo do direito constitucional, começou-se a questionar sobre o tipo de
eficácia que os direitos fundamentais (justamente a parte mais nobre do direito constitucio-
nal) poderiam ter no âmbito das relações estritamente intersubjetivas”.
28
KRAEMER. Algumas anotações sobre os direitos reais no novo Código Civil. In: SARLET
(Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado, p. 199.
29
PASCAL. Pensamentos, p. 200: “O homem não é senão um caniço, o mais fraco da natureza,
mas é um caniço pensante”. Pascal, nesta obra, operando com pensamento dialógico, em
detrimento da dialética, acaba por revelar que os opostos simultaneamente antagonistas
e complementares são parte inalienável da condição humana. No que em larga medida,
acaba posteriormente acompanhado por Nietzche e Hanna Arendt, ele percebe na “condi-
ção humana” a coexistência de grandeza e miséria; entendendo que a natureza corrupta é
inseparável da grandeza humana. Seriam condições opostas e complementares. A grandeza
do homem seria sua faculdade de pensar e sua fragilidade seria a sua miséria. Tal raciona-
lidade é fundamental na operatividade dos princípios.

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RICARDO ARONNE
OS DIREITOS REAIS CODIFICADOS NO CURSO DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL
423

tradicional na teoria jurídica, este dado se inverte no sentido da prima-


zia contemporânea na aplicação do direito na vida prática,30 ainda que
muito ainda haja para ser trilhado. O que não se pode afirmar é que a
esta prática não subjaz uma teoria, pelo fato de ser menos compreendida
nos bancos acadêmicos.31

3 Um breve dissecar dos direitos reais


Sob a tradução semântica de vínculos reais, a teoria da relação
jurídica foi contrabandeada para o núcleo do direito das coisas, para
a construção da arquitetura das relações de propriedade, encastelada
na concepção de direito absoluto.32 A base justificadora da concepção
tradicional aponta fontes eminentemente romanas, ainda presentes na
fundamentação da dogmática manualista. Nasce, assim, a Teoria Realis-
ta. A propriedade, a partir da fórmula dominial havida nas Institutas,33
postulado do Direito Bizantino, fica expressa como um complexo de
relações entre titular e bem; compreendidas como os poderes de usar,
fruir e dispor. O único sujeito do vínculo seria o respectivo beneficiário,
de modo a não serem percebidos quaisquer outros interesses eventuais
de estranhos a tal relação. As faculdades proprietárias exteriorizavam-se
como verdadeiro potestas, possibilitando ao titular dar o destino que
melhor lhe aprouvesse ao bem, independente da conjuntura em que
se encontrava a respectiva situação dominial. A burguesia procedeu,
na confecção do Estado Liberal34 e do respectivo Direito Civil para o
qual este era servil, um contraponto extremo à insegurança patrimonial
promovida pelo Leviatã, claramente identificado ao Estado Absolutista,
entronizando a garantia e o exercício absoluto da propriedade privada
como ratio que influenciou até o contrato social que lhe serviu de su-
porte.35 A propriedade liberal burguesa,36 identificada a uma quixotesca
noção romana (de uma juridicidade secular invisível no seu curso de

30
FACCHINI NETO. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito
privado. In: SARLET (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado, p. 43, 44 e,
em especial, p. 51, 52.
31
GIORGIANNI. O direito privado e suas atuais fronteiras. Revista dos Tribunais, p. 35-36.
Assim já afirmou ocorrer no curso da década de 60 do Século XX o autor italiano.
32
PEREIRA. Instituições de direito civil: direitos reais, p. 89.
33
Mais especificamente Institutas 4.3.3: Dominium est jus utendi, fruendi et abutendi.
34
RÉMOND. O século XIX, p. 31.
35
CARVALHO; ANDRADE. A teoria geral da relação jurídica: seu sentido e limites, p. 13-14,
nota 1.
36
RÉMOND. O século XIX, p. 31-32.

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424 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

existência) de domínio, tal qual os direitos reais sobre coisas alheias;


implicava em ter o “bem da vida” (patrimônio) como objeto direto
da relação, em contraponto aos vínculos obrigacionais, de natureza
relativa. O exercício do direito real dar-se-ia diretamente in re; jamais
in personam, qualidade dos direitos relativos. Não haveria necessidade
de alguma prestação ou conduta de sujeito diverso, para o exercício
das pretensões jurídico-reais pelos titulares.37 Os bens,38 inanimados
por excelência, não são passíveis de resistência, de modo que o limite
de tal direito era verificável quase que somente diante de outros de
mesma natureza (direitos de vizinhança). Aqui se inicia o largo cará-
ter absoluto, dado aos direitos reais, na modernidade. Do explicitado
colhe-se a afirmação tradicional de que os bens são objeto direto das
relações jurídico-reais, enquanto guardam o papel de objeto indireto
das relações pessoais ou obrigacionais, cujo objeto direto é uma conduta
consistente em alguma das modalidades previstas no respectivo livro
da codificação.39 A propriedade resultava definida pelos poderes que
imanta,40 conforme a retórica realista. Importa a propriedade, consoante
o aforismo do caput do art. 1.228 do CCB, nos poderes de usar, fruir e
dispor do bem, dentro de abstratos limites negativos que a lei impõe.
Definida a propriedade e conduzida à condição de núcleo da disciplina
do direito das coisas, decorreram consequências jurídicas desta opção
política. Exemplo se alcança nos direitos reais sobre coisas alheias. Ca-
racterizados como elementos decorrentes da propriedade (identificada
ao domínio, pelo nada neutro discurso da dogmática oitocentista), se
identificaram às titularidades. Daí o art. 1.225 do Código denominar
titularidades como direitos reais. Até o final do século XX, alguns pres-
supostos aqui erigidos não seriam mais discutidos com efetividade. O
positivismo afastaria a epistemologia jurídica da controvérsia da legi-
timidade, para um discurso sobre validade e eficácia. Não se discutirá

37
PEREIRA. Instituições de direito civil: direitos reais, p. 2-4.
38
VENOSA. Direito civil: direitos reais, p. 17.
39
ALMEIDA. Direito das cousas: exposição systematica desta parte do direito civil patrio,
p. 37-38.
40
COVIELLO. Manuale di diritto civile italiano, p. 250: “L’espressione «oggetto di diritti» viene
usata in vario senso. Talora con essa viene a designarsi ciò che cada cade sotto la potestà
dell’uomo, e si dice anche oggetto immediato del diritto; talora significa ciò a cui il diritto
tende, ciò che a causa del diritto ci si rende possibile, lo scopo finale del diritto, e si dice
anche oggetto mediato del diritto. Così nei diritto d’obbligazione per esempio si chiama
oggetto tanto il fato del debitore, cioè la prestazzione, quanto la cosa di cui si deve godere in
forza della prestazione. Perciò, per maggiore esattezza di linguaggio e precisione d’idee, si
è convenuto di chiamare oggetto dei diritto ciò che cade sotto la potestà dell’uomo, e invece
contenuto dei diritti ciò che a causa dell diritto ci si rende possible ottenere”.

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RICARDO ARONNE
OS DIREITOS REAIS CODIFICADOS NO CURSO DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL
425

mais, por um longo curso histórico, entrecortado por Leon Dugüit, o


caráter absoluto da propriedade, e sim como este ocorre e como melhor
se caracteriza, de um ponto de vista cientificamente puro.41
Kant influenciou toda a ciência que se produziu na modernida-
de.42 No Direito não se verificou diferente. Para a metafísica, a dimensão
da liberdade e do agir humano são fundamentais para a construção do
fenômeno jurídico. Resultado desta ordem de ideias, surge no Direito
Privado uma resistência à proposta de relações nas quais os partícipes
dos seus dois polos não fossem sujeitos de direito.43 Rudimentarmente
pode-se apontar assim o nascedouro da teoria personalista, que refuta
a visão anterior. Para os cultores desta escola, os direitos reais são
absolutos na medida em que geram uma obrigação passiva universal,
resultante de sua oponibilidade erga omnes.44 Não obstante a correção
das oposições havidas entre personalistas e realistas, seria de lege ferenda
não admitir vínculos jurídicos de natureza real, na esteira da proposição
do próprio caput do art. 1.228 do CCB.45 As faculdades de uso, fruição e
disposição, expressas como poderes jurídicos do titular, no dispositivo
em apreço, restam positivadas no ordenamento e integram vínculos
dominiais de natureza real.

41
FACHIN. Direito civil contemporâneo. Consulex – Revista Jurídica, p. 32: “Talvez sua incom-
pletude funde o permanente enquanto instância transitória duradoura da motivação neces-
sária, na tentativa de refundar um sistema que colocou em seu núcleo o patrimônio e apenas
nas bordas o ser humano e sua concretude existencial. Uma virada que se faz necessária para
recolocar no centro o ser, como luz solar que tem direito ao seu lugar essencial e na periferia
o ter, como a pertença que aterra mais a morte do que a vida e suas possibilidades”.
42
Disse Martin Seymour-Smith (Os 100 livros que mais influenciaram a humanidade: a história
do pensamento dos tempos antigos à atualidade, p. 414-415), elegendo Crítica da Razão Pura
(1781, revisto em 1787), como a obra mais significativa dentre a sólida produção multifa-
cetada de Immanuel Kant: “Já houve quem dissesse que Kant seria o grande filósofo dos
tempos modernos, à altura de Platão e Aristóteles, embora essa opinião seja minoritária
hoje em dia. [...] O que é certo é o seguinte: qualquer pessoa educada e culta ou é ou não é
kantiana”. Martin Buber seria; Bertrand Russel não.
43
Observe-se a resistência de Caio Mário (Instituições de direito civil: direitos reais, p. 4): “Não
obstante o desfavor que envolve a doutrina personalista, ela continua, do ponto de vista filo-
sófico (especialmente metafísica), a merecer aplausos. Sem duvida que é muito mais simples
e prático dizer que o direito real arma-se entre o sujeito e a coisa, através de assenhoramento
ou dominação. Mas, do ponto de vista moral, não encontra explicação satisfatória esta re-
lação entre pessoa e coisa. Todo o direito se constitui entre humanos, pouco importando a
indeterminação subjetiva, que, aliás, em numerosas ocorrências aparece sem repulsas ou
protesto. [...] A teoria realista seria então mais pragmática. Mas, encarada a distinção em
termos de pura ciência, a teoria personalista é mais exata”.
44
PEREIRA. Instituições de direito civil: direitos reais, p. 3.
45
PESET. Dos ensayos sobre la historia de la propiedad de la tierra, p. 130.

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426 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Buscando solver a aporética resultante da controvérsia de ambas


as escolas, derivou a teoria eclética ou mista.46 Para esta, os poderes do-
miniais de usar, fruir e dispor integram o aspecto interno da proprieda-
de, também denominado aspecto econômico. O dever passivo universal
de abstenção, pelos não titulares, seria característica do aspecto externo
ou jurídico da propriedade. Não isenta de críticas, a teoria eclética dá
maior fluidez aos conceitos,47 porém mantém relações jurídicas de natu-
rezas diversas sob um único instituto, com vistas a solidificar a ideia de
direito absoluto do titular de direitos reais.48 Mesmo do ponto de vista
formal, diversas incoerências que permanecem arraigadas à tradição
jurídica clássica se fazem perceber no curso de sua análise.49 Porém, é
do ponto de vista material que as contradições ganham maior relevo,
principalmente com o advento da CF/88, trazendo dinamicidade às titu-
laridades a partir de sua funcionalização. O sistema jurídico, enquanto
unidade axiológica que perfaz um ordenamento, resultaria incoerente
se afirmada a absolutividade do direito de propriedade e dos demais
direitos reais,50 como designados tradicionalmente pelos cultores do
Direito Privado.51 Percebido que a função social resulta em medida de
exercício da propriedade privada, não se pode mais afirmar que esta
é absoluta. Limites sempre houveram, como o próprio Code Napoleon
admitia; ainda que apenas de natureza externa, como os decorrentes dos
direitos de vizinhança e regulamentos administrativos. Agora se trata
de configurar positivamente limites e elementos propulsores internos
ao direito de propriedade, traçando seu caráter relativo. O Direito ainda

46
WALD. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas, p. 105.
47
No mesmo sentido Melhim Namem Chalhub (Curso de direito civil: direitos reais, p. 4), não
obstante a diversidade metodológica.
48
MAZEAUD, H.; MAZEAUD, L.; MAZEAUD, J. Lecciones de derecho civil, p. 56.
49
FERNANDES. Mudanças sociais no Brasil: aspectos do desenvolvimento da sociedade bra-
sileira, p. 49-50.
50
ROCHA. Direitos fundamentais na Constituição de 1988. Revista dos Tribunais, p. 25.
51
Por todos, leia-se Arnoldo Wald (Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas, p. 31), no
qual fica nítida a diversidade das cidadanias epistemológicas que traduzem os respectivos
discursos científicos: “Na realidade não nos cabe apreciar aqui a utilidade da distinção entre
direitos reais e pessoais. Trata-se de uma diferenciação com fundamento histórico que as
legislações modernas adotaram e que se mostrou fecunda nos seus resultados práticos. Não
a devemos discutir de lege ferenda, como não discutimos a divisão do direito em público
e privado. São dados e quadros que a legislação positiva nos oferece e que constituem as
categorias fundamentais do nosso pensamento jurídico. A função do jurista, no campo do
direito civil, é meramente dogmática e não crítica e filosófica. Dentro do nosso sistema jurí-
dico, o Código Civil define e enumera os direitos reais, cabendo ao estudioso o trabalho de
caracterizá-los, interpretando as normas legais existentes e resolvendo, de acordo com os
princípios básicos e gerais do nosso direito, os casos limítrofes e as dúvidas eventualmente
suscitadas”.

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RICARDO ARONNE
OS DIREITOS REAIS CODIFICADOS NO CURSO DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL
427

opera com o regime de vedação de espécies de condutas proprietárias,


ou limites externos ao direito subjetivo, porém, hodiernamente, até
mesmo a inação pode levar à aplicação de sanções como IPTU ou ITR
progressivos, parcelamento forçado do solo e perda da titularidade por
interesse social. As titularidades tiveram seu conteúdo deslocado, com
a despatrimonialização progressiva dos interesses jurídico-privados.
Os três principais fenômenos do Direito Civil contemporâneo (a
constitucionalização, publicização e repersonalização do Direito Priva-
do), que denunciam a presença e atuação desses atratores normativos,
concretizam-se no direito das coisas de modo bem visível. Os valores
que orientam a disciplina da pertença não residem na codificação.
Integram o núcleo axiológico-normativo do ordenamento, constante
da Constituição, afetando diretamente o direito das coisas e regulando
especificamente a ordem econômica e social.52 Interesses extraproprietá-
rios, de natureza pública ou social, passam a concorrer com o respectivo
interesse privado, sem que necessariamente prepondere este último,
como natural na arquitetura absoluta das titularidades. A propriedade
desloca-se para uma condição de meio para a realização do homem e
não mais condição de fim para que este ascenda à dimensão jurídica.53
Não se podendo mais afirmar absoluta a propriedade priva-
da — como solidificou a própria jurisprudência do STF —, decorre
ser relativa. Duas consequências diretas disso passam a inquietar,
mesmo que silenciosamente, a mente dos juristas contemporâneos.
Primeira delas é o fato de que sendo relativa à propriedade privada,
os denominados direitos reais limitados ou direitos reais sobre coisa
alheia, enquanto emanações ou decorrências desta, não poderiam ser
tratados como absolutos. Na verdade, tal afirmação teórica de muito
já se mostrava infundada na prática ou mesmo sem arrimo no sistema
jurídico. Exemplo do que se trata pode ser colhido na Lei de Falências
vigente. A segunda é o fato de que a teoria de base do direito das coisas,
erigida para justificar e validar uma determinada ordem de valores —
cuja propriedade privada servia de paliçada —, resulta incoerente e
desconforme ao novo sistema, orientado pelas órbitas normativas de
influência axiológica de seus atratores.54 Destaca-se dentre os inúmeros
identificáveis os princípios da dignidade humana e da função social

52
RIBEIRO. Constitucionalização do direito civil. Boletim da Faculdade de Direito, p. 729-730.
53
Em especial, vide: FACHIN; RUZYK. Direitos fundamentais, dignidade da pessoa humana
e o novo Código Civil. In: SARLET (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado,
p. 87-103.
54
GARCÍA DE ENTERRÍA. La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional, p. 19-20.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
428 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

da propriedade privada. Potencialmente inconstitucional, o direito das


coisas codificado exige uma severa releitura axiológica de sua dogmática
e filtragem constitucional de sua epistemologia, tendente a gestionar
ou viabilizar uma percepção compatível55 ao renovado ordenamento
do Estado Social e Democrático de Direito.56
Mesmo que correto, para uma arqueologia conformadora de uma
semiótica nos moldes propostos, não basta afirmar que a propriedade
ganhou contornos relativos a partir da Constituição Federal de 1988 e
abolir todo o instrumental e doutrina que o Direito Civil formulou nes-
tes séculos ou fechar os olhos ao futuro buscando respostas no passado
para questões do presente, mantendo-se infenso ao coperniciano salto
dado pelo Direito Privado, ao fim do século XX.57 Dois dados relevan-
tes a destacar. O direito das coisas positivou a existência de direitos
reais, como se colhe do art. 524 do Código Beviláqua e se mantém no
art. 1.228 do atual Código Civil. As relações de uso, fruição e disposi­ção,
às quais os dispositivos fazem referência direta, têm natureza real, na
medida em que o bem é efetivamente objeto direto dela. Quem usa um
bem não se valerá da conduta de terceiro para realizar sua pretensão
material em relação à coisa. Existem, portanto, direitos reais. Víncu-
los jurídicos entre sujeitos e bens. Como segundo dado, existe o fato
de que os direitos reais integram a tradição jurídica do Direito Civil
brasileiro e, a princípio, se pretende preservar a existência. Trata-se do
imperativo prático. Em outra medida, cultural, também um atrator. Do
discurso científico em tela. Não se quer como seria próprio dos sistemas
monistas, abrir mão de qualidades distintas de garantias, por exemplo,
preservando o caráter da hipoteca, penhor ou alienação fiduciária, em
contraponto à fiança ou aval, de natureza distinta. Em apoio deste olhar,
comparece também a Teoria Geral do Direito, mais especificamente

55
PASQUALINI. Hermenêutica e sistema jurídico: uma introdução à interpretação sistemática
do direito, p. 23.
56
MIRANDA. Direitos fundamentais e interpretação constitucional. Revista do Tribunal Re-
gional Federal – 4ª Região, p. 24.
57
Nesse sentido, merecem registro as palavras de Mário Luiz Delgado, no prefácio que dedica
à obra de Luiz Guilherme Loureiro (Direitos reais: à luz do Código Civil e do direito registral,
p. 7), discorrendo sobre a doutrina e os direitos reais: “Como ramo do Direito Civil, é tido
pelos estudiosos de domínio ingrato, em face das agruras próprias de uma seara ao mesmo
tempo acentuadamente técnica, e intimamente ligada e dependente de aspectos históricos,
políticos e sobretudo sociológicos. As referências doutrinárias sobre a matéria sempre cons-
tituíram reserva intelectual de uns poucos [...] Esboçar em poucas linhas, o perfil e a apli-
cação prática dos institutos sistematizados no Direito das Coisas parecia tarefa demasiado
presunçosa para a maioria dos autores da atualidade. Barreira quase intransponível, erguida
pelos séculos de cultura jurídica, desde os primórdios da civilização”.

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RICARDO ARONNE
OS DIREITOS REAIS CODIFICADOS NO CURSO DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL
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no que diz com a interpretação conforme a Constituição. Um atrator


metodológico. Possibilitando dar ao direito das coisas uma interpreta-
ção conforme a ampla alteração promovida pela Carta atual, deve ser
preterida a declaração de inconstitucionalidade, havendo condições
de preservar o diploma civil mediante uma hermenêutica proativa dos
valores constitucionais, consoante os respectivos atratores normativos
que vinculam a interpretação.
Neste nicho epistemológico foi confeccionada a teoria da au-
tonomia. Autonomia lhe caracteriza, pois é através da libertação das
titularidades, resgatadas de dentro da noção de domínio, que é atin-
gida a relativização da propriedade privada em suas diversas formas,
viabilizando ainda a operação com os direitos reais.58 Não basta dizer
que a propriedade resulta relativa como decorrência do princípio da
função social. Está correto, porém é, no mínimo, ingênuo afirmar isto
sem maior amparo teórico. É relativa em qual medida? Constitui uma
obrigação? Qual o conteúdo da função social? É estanque ou variável?
Merece destaque o fato de que a jurisprudência alemã, debruçada sobre
o BGB, levou cinquenta anos para obter da doutrina uma formulação
passível de dar aplicação ao princípio da boa-fé objetiva.59 O conteúdo
do princípio da função social da propriedade constitui uma medida
de exercício ao direito de propriedade, relativizando-o. Isto basta à

58
Comentando o Código quando ainda projeto, em sede de parecer para bancada legislativa,
Adilson J. P. Barbosa e José Evaldo Gonçalo (O direito de propriedade e o novo Código
Civil): “Ao contrário, no que diz respeito ao Livro III, referente aos Direitos das Coisas, em
nome da ‘salvação’ de um trabalho de 25 (vinte e cinco anos) — tempo que o projeto trami-
ta no Congresso — o Brasil pode ter um Código Civil, com um programa normativo que
nos remete aos direitos de primeira geração elaborados no final do século XVIII, no qual
o direito de propriedade era concebido como um direito subjetivo de caráter absoluto. [...]
O PL 634/75, aparentemente, fundiu os conceitos de propriedade e domínio, eliminando a
polêmica sobre a existência ou não de identidade entre os dois termos. Entretanto, conforme
visto alhures, o absolutismo com que é tratado o direito de propriedade pela doutrina e
operadores jurídicos no Brasil, deve-se ao tratamento unitário dado a termos que traduzem
conceitos autônomos, o que tem merecido forte crítica de autores preocupados com a pouca
efetividade que as alterações do ordenamento econômico e social, promovidas pelo Texto
Constitucional de 1988, têm provocado no tratamento da propriedade. [...] As codificações
emanadas do Estado e tomadas como única fonte do Direito, abriram caminho para o posi-
tivismo jurídico, doutrina que considera o direito como um fato e não como um valor. O PL
634/75, no título que trata dos Direitos das Coisas, não se afasta dessa concepção. Ao con-
trário, fazendo-se surdo ao novo tratamento dado à propriedade pela Constituição Federal,
reflexo dos avanços da sociedade e das lutas sociais, expõe um texto decrépito e atrasado,
no qual, por força das normas positivadas no texto constitucional e na legislação ordinária
agrega alguns avanços, sem contudo avançar no que diz respeito ao tratamento dado as
várias formas de propriedade que aparecem na realidade brasileira”.
59
CHEMERIS. A função social da propriedade: o papel do Judiciário diante das invasões de
terras, p. 102-104.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
430 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

compreensão da arquitetura contemporânea da espécie, que é funda-


mental para qualquer discussão mais avançada. Também é importante
destacar que a função social é aqui percebida como um princípio espe-
cial que verte o respectivo direito fundamental, em consonância com
o eixo constitucional e a unidade axiológica que assim emana. Não se
trata, pois, de reduzir a uma cláusula geral, nos termos propostos pela
doutrina do BGB, já no final do século XIX.
Repisa-se, um dos papéis da teoria da autonomia é fornecer um
manancial teórico ao operador contemporâneo (seja ao representar,
compor ou decidir), para que se possa continuar operando com direitos
reais, consistentes em vínculos entre o sujeito e o bem, não obstante
forneça uma compreensão da propriedade e das demais titularidades,
de natureza relativa. É, portanto, meramente instrumental. O conteú-
do axiológico não é dado por ela. É dado na conexão do sistema com
os demais. Volte-se, pois, a arquitetura proposta, transdogmática por
refutar opções conceituais em detrimento da unidade complexa dos
valores constitutivos de um dado sistema para uma dada sociedade
em um dado e complexo contexto histórico. É um instrumento da juris-
prudência e não o seu conteúdo, verificável pela pragmática decisória
aplicada ao modelo.
Porém, retomando a questão central do texto, carecia até então,
o século XX, de uma teoria coerente à liquidez estrutural do instituto
proprietário e do direito das coisas vivido na pragmática do sistema
jurídico. Isso ocorre quando a noção de domínio é libertada dos gri-
lhões conceituais do instituto da propriedade. O domínio se constitui
de um conjunto de poderes no bem, que consistem em faculdades
jurídicas do titular às quais respectivamente são os direitos reais. Cada
vínculo potencial entre o sujeito e o bem pode traduzir-se em uma
faculdade real, um direito real. A propriedade envolve estes poderes,
instrumentalizando-os, porém não se confunde com eles. A propriedade
instrumentaliza o domínio sem confundir-se com este. Assim como
um contrato de compra e venda de um imóvel não se confunde com os
poderes e deveres que instrumentaliza (pagar, de um polo, escriturar,
de outro), o domínio ou sua eventual parcela não se confunde com a
titularidade que o instrumentaliza.60

60
ARONNE. Propriedade e domínio: reexame sistemático das noções nucleares de direitos reais,
p. 67 et seq.

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RICARDO ARONNE
OS DIREITOS REAIS CODIFICADOS NO CURSO DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL
431

4 Sistematizando as relações dominiais para além do


Código
O Direito contemporâneo incorporou os valores ao discurso
jurídico na segunda metade do século XX.61 Impossível de serem
deixados à subjetividade pura do intérprete tanto quanto resistentes
à doma objetivista da dogmática tradicional, o pós-guerra assistiu a
ciência jurídica galgar o platô da racionalidade intersubjetiva. Tema dos
menos pacíficos em sede de metodologia jurídica (jurisprudência, no
sentido que os europeus atribuem ao termo), os valores se encontram
presentes em grande parte da doutrina mais comprometida com a his-
toricidade do fenômeno jurídico, variando seu tratamento de acordo
com os compromissos científicos (ou sua ausência) dos respectivos
autores. Uma releitura integral do Direito Privado, a partir de seu eixo
fundamental, a pertença identificada às diversas titularidades, atingiu
todos seus pilares de sustentação62 e, hoje vivendo o prólogo, está lon-
ge de assistir seu epílogo.63 Há de ser dialógica, remetendo ao debate
correlato à sua eficácia, na espiral histórica da jurisprudência. Resulta
francamente impossível afirmar, contemporaneamente, fundado em
argumentos sérios, de maior ou menor sofisticação técnica, tratar-se
à propriedade privada como direito absoluto. O Direito brasileiro, a
exemplo da maioria das democracias vividas no século XXI, vinculou
toda propriedade privada à missão constitucional do Estado Social e
Democrático de Direito, na mesma e coerente intensidade com que a
reconhece e garante mediante tutela jurisdicional. Informado pela carga
axiológica do princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio
da função social da propriedade, indiscutivelmente dotado de eficácia
horizontal interprivada, conduziu uma releitura do direito das coisas,
iniciada pelos tribunais e tardiamente percebida pela doutrina civilista,
visivelmente conservadora.64
Da paradoxal jurisprudência do STF, pode-se pinçar diversos
exemplos65 no sentido da eficácia dos direitos fundamentais e sua

61
TEPEDINO. A caminho de um direito civil constitucional. Revista de Direito Civil, Imobiliário,
Agrário e Empresarial, p. 24.
62
CARBONNIER. Flexible droit: pour une sociologie du droit sans riguer, p. 201.
63
SERRES. O contrato natural, p. 49.
64
Para observar-se a diversidade possível de ser colhida em tema de propriedade, merece
transcrição respeitável posição em contrário. RIBEIRO FILHO. Das invasões coletivas: aspec-
tos jurisprudenciais, p. 69, 112.
65
Em especial: STF, T. Pleno, MS nº 22.164/SP, Rel. Min. Celso de Mello, v. unân., publicado
no DJ, p. 39206, 17 nov. 1995.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
432 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

incidência interprivada, não obstante a maior riqueza das instâncias


inferiores. Gustavo Tepedino66 revelou elementos de leitura tradutora
de novas facetas indisfarçavelmente presentes na propriedade privada
contemporânea que refutam os costumeiros conceitos do oitocentismo,
que servem de foyer aos valores predominantes no modelo econômico
anterior, que ditava a feitura e leitura do sistema jurídico. Leciona:

A construção, fundamental para a compreensão das inúmeras moda-


lidades contemporâneas de propriedade, serve de moldura para uma
posterior elaboração doutrinária, que entrevê na propriedade não mais
uma situação de poder, por si só e abstratamente considerada, o direito
subjetivo por excelência, mas “una situazione giuridica soggettiva tipica
e complessa”, necessariamente em conflito e coligada com outras, que
encontra sua legitimidade na concreta relação jurídica na qual se insere.
Cuida-se de tese que altera, radicalmente, o entendimento tradicional
que identifica na propriedade uma relação entre sujeito e objeto, caracte­
rística típica da noção de direito real absoluto (ou pleno), expressão da
“massima signoria sulla cosa” — formulação incompatível com a idéia
de relação intersubjetiva.67

Até serem percebidos os reais contornos da propriedade privada,


repetia-se, sem maior reflexão, os chavões oitocentistas imbricados nos
conceitos e fórmulas tradicionais.68 “A concepção privatista da proprie-
dade, [...], tem levado, freqüentemente, autores e tribunais à desconsi-
deração da natureza constitucional da propriedade, que é sempre um
direito-meio e não um direito-fim. A propriedade não é garantida em si
mesma, mas como instrumento de proteção de valores fundamentais”.69
Como percebido e criticado, restou mantida a arquitetura clássica na
codificação recente, não obstante sua tentativa de absorver os avanços
que o fim de século trouxe para os direitos reais.

O Código Civil de 2002, mantém sob a força histórica e dogmática dessa


expressão, o título do livro como direito das coisas. A manutenção da

66
TEPEDINO. Contornos constitucionais da propriedade privada. In: DIREITO (Org.). Estu-
dos em homenagem ao prof. Caio Tácito, p. 309-333. Republicado no ano 2000 como capítulo
(Temas de direito civil).
67
TEPEDINO. Contornos constitucionais da propriedade privada. In: DIREITO (Org.). Estu-
dos em homenagem ao prof. Caio Tácito, p. 279- 280.
68
TEPEDINO. Contornos constitucionais da propriedade privada. In: DIREITO (Org.). Estu-
dos em homenagem ao prof. Caio Tácito, p. 268.
69
COMPARATO. Direitos e deveres fundamentais em matéria de propriedade. Revista CEJ,
p. 98.

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RICARDO ARONNE
OS DIREITOS REAIS CODIFICADOS NO CURSO DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL
433

expressão que abre o regime jurídico dos poderes sobre os bens sob
a rubrica Direito das Coisas, por si só é apta a revelar o rumo episte-
mológico das opções do legislador de 2002. De uma parte emerge a
manutenção da topografia legal de 1916; de outro lado impende salientar
a tentativa de espargir sobre a codificação civil agora vigente nuanças
sociais que marcam a contemporaneidade no Brasil. Tem o novo Código
dois senhores temporais; foi fiel ao primeiro desde o início quando se
proclamou rente à sistemática de 1916, e é ávido por servir ao segundo
quando intentou colmatar lacunas, superar inconstitucionalidades e
inserir novas matérias. Entre esses dois lados da margem pode ter soço-
brado coerência da idéia e da formulação, sem embargo das vicissitudes
próprias da complexidade coeva das relações sociais.70

Identificada a percepção de dominium à concepção de proprietas,71


congregada a ars notariae do fim do medievo, decorrente do Direito Bi-
zantino glosado à exaustão desde o feudalismo, a propriedade torna-se
um direito absoluto diante da moldura que lhe é concedida pela codi-
ficação. Falar de obrigações resultantes de um contrato guarda óbvia
distinção entre o que seja o instrumento contratual propriamente dito.
Falar de titularidades imobiliárias, também importa em discorrer sobre
algo distinto dos poderes que são respectivamente instrumentalizados.
Propriedade não se confunde com domínio. Se no universo de análise
traçado houver somente um sujeito e uma gama de bens, não há senti-
do em discorrer sobre propriedade privada. As titularidades regulam
a pertença de modo intersubjetivo, através de um regime jurídico de
exclusão (obrigação negativa), gerador da oponibilidade erga omnes.
É regulação entre titulares e não titulares. Ou seja, entre sujeitos. A
compreensão do exposto assenta as bases da teoria da autonomia, que
se desenvolvia no fim dos anos 90 do século findo. As relações entre
sujeito e patrimônio integram o domínio. São instrumentalizados pela
propriedade, mas não se fundem como conceitos unívocos.72 A questão
técnica não deriva apenas no plano da forma, da estética ou da mera
esgrima conceitual. Se o vínculo dominial tem o bem por objeto direto, a
titularidade, de outra parte, não. Esta visa, através do sistema registral,
derivar aos não titulares obrigações de não ingerência no respectivo
bem. Nesta relação, a coisa é objeto indireto, sendo o dever negativo
elemento fulcral do direito subjetivo. Diversamente do domínio e seus

70
GOMES. Direitos reais, p. 9.
71
ARONNE. Propriedade e domínio: reexame sistemático das noções nucleares de direitos reais,
passim.
72
Especificamente sobre o tema, vide Orlando Gomes (op. cit., p. 26-27).

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
434 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

desdobramentos, a propriedade e demais titularidades são regimes


intersubjetivos. Decorre serem relativos e não absolutos. Não é de mera
forma, a teorização sobre a autonomia entre domínio e titularidades,
em especial a propriedade. Verte ela a possibilidade de uma leitura da
codificação alinhada ao projeto constitucional que dá as bases axio-
lógicas e normativas do ordenamento jurídico. Pode-se reconhecer a
existência e operações de direitos reais, com as categorias de vínculos
dominiais, sem entravar a constitucionalização do Direito Privado ou
reduzi-la a mero discurso, dando prestabilidade ao diploma civil em
face da Carta vigente. O rol do art. 1.225 do CCB, principiologicamente
poroso à abertura da mediação hermenêutica,73 traz uma lista de titula-
ridades que instrumentalizam arranjos dominiais. Quando designados,
impropriamente, por direitos reais, acabam por identificar domínio à
propriedade ou expressão menor em extensão de faculdades. Mesmo no
âmbito formal, a mais recente doutrina brasileira vem reconhecendo a
impropriedade técnica da percepção das escolas clássicas, na esteira do
que de muito fazia a prática dos tribunais, seja na usucapião, na saisine
ou mesmo na leitura das relações de condomínio, para o prestígio da
teoria da autonomia. A propriedade enquanto regime intersubjetivo de
titularidades importa em obrigação aos não titulares de absterem-se de
qualquer ingerência sobre o bem. A oponibilidade erga omnes disso já
era reconhecida pela doutrina oitocentista. As limitações externas, no
interesse público, também.
Com o princípio da função social, resta inovado o instituto da
propriedade privada, no sentido de que agora o titular também é
informado por deveres positivos e negativos, que derivam de sua ti­
tu­laridade, em face do respectivo ônus social decorrente da pertença
concreta de determinado bem. Obrigacionaliza-se a propriedade e as
demais titularidades que contemporaneamente a ladeiam ou venham
a ladear. Relativiza-se, também em sua compreensão técnica, diante
de uma teoria apta a dar suporte operativo. A propriedade privada
acaba por reconstruir a hermenêutica dos direitos reais, com reflexos
no Direito Urbanístico, Ambiental, Biodireito, Econômico, e para além
das fronteiras do próprio Direito. O domínio é o complexo de direitos
reais de um bem. É o conjunto de faculdades jurídicas que o sujeito
potencialmente tem reconhecido sobre o objeto de direito patrimonial.
Implica em traduzir pretensões jurídicas derivadas, das quais a coisa

73
ARONNE. Por uma nova hermenêutica dos direitos reais limitados: das raízes aos fundamentos
contemporâneos, p. 133-135.

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RICARDO ARONNE
OS DIREITOS REAIS CODIFICADOS NO CURSO DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL
435

não pode resistir, fundamentalmente por sua condição inanimada, im-


portando em uma gama de direitos reais. Esses vínculos dominiais são
tuteláveis mediante pretensão à abstenção derivada da titularidade que
os instrumentaliza. Esta pode variar dentro das figuras que o sistema
jurídico reconhece, implícita ou explicitamente. A propriedade, espécie
do gênero titularidade, é uma das formas que se pode encontrar dentro
do respectivo universo. Tal qual todo o âmbito dos designados direitos
reais sobre coisa alheia.

5 A Teoria dos princípios e os direitos reais


A modificação contemporânea pela qual o direito das coisas
passou e ainda passa, juntamente com a integralidade do Direito Pri-
vado, não é sintetizada em uma simples fórmula conceitual, guardando
complexidades e sutilezas. Não obstante, a temática da normatividade
— campo no qual se assistiu a amplas mutações em sede de Teoria do
Direito no século XX —, não pode ser tangenciado. Os princípios, de
postulados jusnaturalistas no oitocentismo, praticamente ignorados
pelo jusracionalimo, hoje traduzem ampla vinculatividade normativa,
com bem maior alcance do que o grupo de regras, limitado por sua
concreticidade e que teve seu resplendor com o vigor do liberalismo
clássico,74 nas três fases das codificações. Através destes entes norma-
tivos lato sensu dinamizadores da dialética normativa,75 o projeto de
Estado Social, constitucionalmente positivado e perseguido, pôde ter
vazão, com largo ganho de eficácia e transcendência tradicionalmente
dado aos direitos fundamentais.76 Os princípios fornecem ferramental
necessário para o sistema jurídico guardar conformação tópica, consoan-
te sua orientação teleológica, dada pela axiologia da cadeia normativa.77
Diverso do procedido pela dogmática que trabalha titularidades com
arrimo exclusivamente nos direitos fundamentais de primeira geração,
do que decorre a sacralização da propriedade em conformidade com
ideário liberal — oligarquia agrária no que diz com o Brasil,78 à qual

74
PASQUALINI. O público e o privado. In: SARLET (Org.). O direito público em tempos de
crise, p. 36-37.
75
HABERMAS. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da
sociedade burguesa, p. 263-264.
76
SARLET. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 62.
77
ARONNE. Por uma nova hermenêutica dos direitos reais limitados: das raízes aos fundamentos
contemporâneos, cap. 1.
78
WASSERMAN. A manutenção das oligarquias no poder: as transformações econômico-
políticas e a permanência dos privilégios sociais. Estudos Ibero-Americanos, p. 64.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
436 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

sobreviveu e se adaptou ao liberalismo (ou adaptou o liberalismo)


tanto quanto na Europa o ideal liberal resistiu à Restauração —, uma
hermenêutica renovada dos direitos reais pressupõe a compreensão
dos direitos fundamentais em toda gama de gerações, apreensível pela
análise principiológica normativa do sistema, orientada pelos valores
nele recebidos. A evolução do direito das coisas encontra-se neste nicho
epistemológico; não na formulação de um novo Código, ainda que
acompanhada de um discurso de cláusulas gerais.79
Em face deste novo paradigma, é gestado o Estado Social e Demo-
crático de Direito; mediante princípio estruturante da ordem jurídica.
Um atrator que reúne o conjunto de valores positivados, resultando
na norma mais abstrata do sistema. Por isso mesmo seu maior atrator
normativo. O princípio o Estado Social de Direito. Mais que um modo
de organização do Poder Público, foi dado à Carta um novo papel e
concepção axiológica, neste paradigma emergente. Nasce enraizada na
sociedade e dela emanada. A ser perseguida pela sociedade, asseguran-
do-a, realizando-a, e sendo por ela assegurada e realizada. Esta ordem
normativa nasce no princípio do Estado Social e Democrático de Direito,
ganhando densidade de acordo com os ramos de concretização que o
sistema guarde. Perde conteúdo axiológico para ganhar concreticidade
normativa. Perde indeterminação e alcance.
Portanto, afirmar que um princípio é uma cláusula geral, epis-
temologicamente há de guardar um compromisso vinculante, pois os
sentidos da norma não são unívocos e toda palavra tem um “senhor”
por trás de sua pronúncia. O sentido disso fica mais claro na esfera
metodológica. Enquanto a dogmática em torno das cláusulas gerais, na
mesma medida em que postula a entrada de elementos estrangeiros ao
seio da codificação, cria também uma muralha oitocentista de sentidos,
ao edificar um filtro de racionalidade que incorpora os fatos da vida ao
Código, enquanto o postulado contemporâneo vai em sentido oposto.
De incorporar o sistema jurídico à vida e dar uma unidade axiológica
a este, desde os vetores principiológicos que ostenta a atual normativi-
dade. Na medida em que ao Direito Civil cabe papéis hoje designados
pela Constituição,80 o princípio da função social da propriedade, antes
de qualquer coisa, deve realizar o princípio do Estado Social e Demo-
crático de Direito. Antes mesmo de figurar na codificação civil brasi-
leira, já ostentava a bem mais nobre condição de direito fundamental

79
Vide: NALIN. Cláusula geral e segurança jurídica no Código Civil. Revista Brasileira de
Direito, p. 90-96. Em nossas matrizes: TUTIKIAN. Sistema e codificação: o Código Civil e as
cláusulas gerais, p. 19-79.
80
RIVERA. El derecho privado constitucional. Revista dos Tribunais, p. 13.

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RICARDO ARONNE
OS DIREITOS REAIS CODIFICADOS NO CURSO DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL
437

de segunda geração, encartado no rol do art. 5º da CF/88. Atrator, por


excelência, de todo o discurso normativo. Como deveriam ser, àquilo
que classifica-se como direitos humanos. Ao intérprete e aplicador do
Direito, decorre um compromisso na atividade hermenêutica, com o
conjunto de valores que integram a opção axiológica da Constituição. A
interpretação, tal qual a norma, pelo caráter axiológico, tem seus filtros
de legitimidade. Atratores intersubjetivos do discurso. A função social
da propriedade privada importa em ser mais do que uma cláusula
geral da codificação, no sentido que muitos lhe atribuem. Guarda co-
nexão direta com o núcleo do sistema, alimentando o direito das coisas
com os valores constitucionais. Mais do que um necessário dever de
adaptar leitura desconforme à axiologia solidarística da Carta, traduz
critérios de racionalidade normativa que informam a leitura tópica do
fenômeno jurídico.81
É vasta a quantidade de princípios, em suas diversas quali-
dades de densificação (estruturante, fundamental, geral, especial ou
especialíssimo),82 restando todos interconectados na malha jurídica. Ao
direito das coisas, muitos guardam potencial diferenciado de conforma-
ção no caso concreto, como proporcionalidade, função social da posse,
meio ambiente ecologicamente equilibrado, prenotação, dentre outros.
Ao operador jurídico, cumpre o manuseio deôntico de toda essa gama
de normas, conjuntamente com a série de regras que toca à disciplina
de especialidade. Guarde-se que os princípios têm natureza normativa
de espécie diferente das regras, cujo conteúdo guarda maior concretici-
dade. Por serem abstratos, encontram-se dispersos em diversos graus
de densidade, uns dando sentido aos outros, de modo a formar um
sistema intersubjetivamente dotado de racionalidade. Esse sistema tem
sua gênese normativa em um princípio que agasalha o conteúdo dos
valores democraticamente escolhidos como legitimadores da ordem
jurídica. Os valores são o limite do sistema que se faz positivamente
aberto e móvel por sua indeterminação. Reconhece lacunas, porém
sucumbe diante de anomias. Tem metodologia para interpretação e
aplicação. Uma ordem atrás de um aparente caos.
O princípio estruturante do ordenamento pátrio é o Estado Social
e Democrático de Direito; pela abstração que guarda se densifica em
diversos outros — fundamentais — que revelam seu sentido. A função

81
CANARIS. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito, p. 66-67.
82
ARONNE. Por uma nova hermenêutica dos direitos reais limitados: das raízes aos fundamentos
contemporâneos, p. 110-162.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
438 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

social é concretizadora da dignidade humana.83 Assim, percorrer-se-á


essa via normativa. Sensível ao resultado de cada interface. Sensível às
condições iniciais. Indeterminado. Porém previsível em sua dinâmica
caótica. Racional em sua intersubjetividade. Esses graus diversos de
fixismo variante decorrem dos atratores. Sem eles o sistema jurídico
seria estocástico como o jogar de dados. Perceba-se o sentido das normas
como atratores. Inicie-se pelo mais abstrato. Portanto mais compreensi-
vo. Não existe Estado Social e Democrático de Direito ausente garantia
da dignidade da pessoa humana. Para além da proteção singular ou
egoística do indivíduo, tal princípio conclama à compreensão inter-
subjetiva do sujeito em sua inserção e contextualização social, para
realização. Traça ainda, enquanto densificador, meta de realização do
Estado Democrático e Social de Direito — pois um deixaria de existir
na ausência do outro —, advindo a “repersonalização”84 do Direito,
tendo o ser humano (e não o mercado) por fim, e não meio.85 De
Larenz, neo-hegeliano,86 pode-se colher a saudável intersubjetivação das
titularidades, não observável no personalismo ético que influenciou o
Código Civil alemão (BGB).87 Pelo personalismo ético, o Direito passa
à esfera da autorregulamentação88 em que fica sujeito às desigualdades
materiais dos indivíduos e serve ao aumento de tais desigualdades.
Qualquer noção de dignidade, tendo em vista um patamar material e
não meramente formal, deve ser apreendida concreta (tópica) e inter-
subjetivamente, como traduz Ingo Sarlet,89 na mais significativa obra
dedicada ao tema, na literatura jurídica nacional. Estando a dignidade
da pessoa humana na condição de densificadora do Estado Democrático
e Social de Direito, não é o sujeito que impõe limites a si mesmo, como
emerge da noção artificializada da metafísica tradicional, transmitidas
por von Savigny à Ciência do Direito do século XIX — também influente
no pensamento de Windscheid —,90 e sim cumpre ao Estado Social e
Democrático de Direito impor e assegurar os limites da atuação dos
sujeitos.91

83
NUNES. Os sistemas económicos, p. 123: “A primeira propriedade é a existência”.
84
CARVALHO; ANDRADE. A teoria geral da relação jurídica: seu sentido e limites, p. 10-11.
85
LARENZ. Derecho civil: parte general, p. 45-46.
86
RODRIGUEZ. Introdução ao pensamento e à obra jurídica de Karl Larenz, p. 27.
87
AMARAL NETO. Direito civil: introdução, p. 133.
88
LÔBO. Contrato e mudança social. Revista dos Tribunais, p. 40-45.
89
SARLET. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, p. 39-60.
90
LARENZ. Derecho civil: parte general, p. 45.
91
Com outra leitura, diz Larenz (Derecho civil: parte general, p. 44): “Con ello se considera que el
hombre, de acuerdo con su peculiar naturaleza y su destino, está constituido para configurar

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RICARDO ARONNE
OS DIREITOS REAIS CODIFICADOS NO CURSO DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL
439

A positivação expressa desse princípio conduz, pelo viés norma-


tivo, a “repersonalização” do direito das coisas. Quando uma norma
não dá vazão aos vetores axiológicos traçados, poderá ser retirada do
ordenamento, por substancial inconstitucionalidade, no caso de invia-
bilidade de funcionalização; que é obstaculizada pela teoria clássica,
no trato das titularidades como direitos absolutos, seccionando-os do
direito das obrigações, pela via conceitual.92

Comment, dès lors, nes pas commencer par faire connaître son sentiment
sur la question de la difference spècifique du droit réel et l’obligation?
Seulement, qu’on nous comprenne bien dès l’abord. Si, dès maintenant,
nous laissons entendre que nos sommes favorables à la thèse de
l’irreductibilité du droit réel à l’obligation et inversement de l’obligation
au droit réel, cela ne signifie pas qu’il faille accepter de façon absolue les
notions de droit réel et d’obligation telles que les a consacrées la doctrine
classique, en admettant, d’ailleurs, qu’il y ait uniformité d’opinion chez
les représentants de la doctrine classique, ce qui n’est pas établi.93

Concretizando o princípio da dignidade humana, no regime


normativo atual, estão os princípios gerais da liberdade e igualdade. O
primeiro migrou da condição de princípio estruturante para princípio
geral de direito. A igualdade era de ordem formal, pois mera garanti-
dora da liberdade, por meio da visão oitocentista de legalidade. Desde
a Carta de 1988, estas normas buscam a concretização da dignidade
da pessoa humana, ganhando sentido naquele princípio e consequente
valoração diferida no caso concreto, alinhando-se por relativização
mútua, em concordância prática.94 Igualdade e liberdade têm apreensão
material no sistema, implicando tratamento desigual para desiguais,
ou restrição de liberdade para sua própria realização, no sentido da
garantia da pessoa humana, na acepção intersubjetivada. O princípio
da igualdade, em sua densificação rumo ao direito das coisas, resta
concretizado pelo princípio da função social da propriedade — prin-
cípio especial —, impositivo ao intérprete de otimizar as titularidades
na consideração dos interesses extratitulares, fruto das necessidades
do meio em que se insere intersubjetivamente.95 “A função social da

libre e responsablemente su existencia y su entorno en el marco de las posibilidades dadas


en cada caso, para proponerse objetivos e imponerse a sí mismo límites en su actuación”.
92
WALD. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas, p. 31.
93
BONNECASE. Traité théorique et pratique de droit civil, p. 3.
94
HESSE. Escritos de derecho constitucional: seleccion, p. 48.
95
FRANÇA. Perfil constitucional da função social da propriedade. Revista de Informação
Legislativa, p. 14.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
440 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

propriedade corresponde a limitações fixadas no interesse público e


tem por finalidade instituir um conceito dinâmico de propriedade em
substituição ao conceito estático, representando uma projeção da rea-
ção anti-individualista”.96 São obrigações (positivas ou negativas) que
derivam do meio em que se insere a propriedade em pauta — móvel
ou imóvel material ou imaterial — que fornecerá por meio da análise
do sistema social e do ambiente97 tal conteúdo. Informando o atrator.
A função social de uma propriedade somente pode ser apreciada em
concreto, principalmente em um país de proporções continentais como
o Brasil, de perfis muito distintos em cada região ou comunidade, o
que dificulta a existência de fórmulas hábeis à sua pré-compreensão.
Interesses privados, sociais e públicos hão de se alinhar, relativizando-se
em caso de conflito, sem se eliminarem, de modo que, em sua constitui-
ção mútua, seja verificável o conteúdo de funcionalização em apreço,
plenamente exigível na condição de direito social, erguido nos ombros
do art. 5º da CF/88 à condição de direito fundamental.
Diversamente das regras, que convivem no plano da validade,
em face de sua concreticidade, reduzindo a discricionariedade do intér-
prete, os princípios convivem no plano valorativo. São dialógicos. Suas
razões são complementares, mesmo no antagonismo. As regras têm um
convívio antinômico, dialético, afastando-se no caso de antinomia para
valer ou não, topicamente. Os princípios não. De convivência conflitual,
hierarquizam-se axiologicamente para preservar a unidade material do
sistema. Dialogam. Relativizam-se mutuamente na incidência tópica,
no encadeamento teleológico dos valores em destaque. Ganhando sen-
tido em concreto, o princípio da função social da propriedade possui
plasticidade fractal suficiente para adequação tópica pelo intérprete,
no contexto da totalidade do sistema jurídico.
Com isso, resulta irreconhecível o direito das coisas em sua atual
fisionomia, frente seus lineares e abstratos modelos ancestrais.98

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parte do direito civil patrio. Rio de Janeiro: J. Ribeiro dos Santos, 1908. v. 1, p. 37-38.

96
FACHIN. A função social da posse e a propriedade contemporânea: uma perspectiva da usucapião
imobiliária rural, p. 19.
97
BARCELLONA. O egoísmo maduro e a insensatez do capital, p. 21.
98
No mesmo contexto, ainda que em outro sentido, vide: AZEVEDO. O direito civil tende a
desaparecer?. Revista dos Tribunais, p. 15-21.

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OS DIREITOS REAIS CODIFICADOS NO CURSO DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL
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Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

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do direito civil. In: EHRHARDT JR., Marcos (Coord.). Os 10 anos do Código
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A FUNCIONALIZAÇÃO DOS INSTITUTOS
DO DIREITO DE VIZINHANÇA NO CÓDIGO
CIVIL DE 2002

PAULA MOURA F. DE LEMOS PEREIRA

1 Introdução
O Código Civil de 2002, ao longo desses dez anos, contribuiu
muito para a releitura de algumas categorias jurídicas que estão di-
retamente atreladas às bases das relações jurídicas — propriedade,
família, contrato.
No Direito de Vizinhança, tema que será abordado, algumas
alterações com a nova codificação foram importantes para dar maior
ênfase aos princípios da solidariedade e da dignidade da pessoa hu-
mana que o orienta. E isso tanto na parte geral, com o uso de critérios
axiológicos, conceitos jurídicos indeterminados, haja vista os arts. 1.278
e 1.279 do Código Civil, como na parte especial (arts. 1.258, 1.259, 1.301,
§1º, todos do CC).
O Direito de Vizinhança visa à convivência entre os vizinhos a fim
de conciliar os interesses que porventura se choquem, e o faz por meio
de restrições, limitações de ordem pública e privada, que incidem sobre
a propriedade imóvel. Esse Direito interferirá diretamente na dinâmica
do exercício do Direito de Propriedade e deve ser estudado tendo por
base não só os aspectos patrimoniais típicos do Direito de Propriedade,
mas, especialmente, sua função social e os aspectos existenciais atinentes

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
448 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

à pessoa humana, ao sujeito de direito, que está por trás da relação


jurídica estabelecida, e seus direitos fundamentais.
A existência do iura vicinitatis é essencial para a própria manu-
tenção da propriedade. Por isso, o que se pretende fazer aqui é uma
breve análise de seus institutos sob uma ótica funcionalizada e verificar
a contribuição jurisprudencial na tutela dos interesses que envolvem os
conflitos de vizinhança. Isso porque são constantes as mudanças ocorri-
das na seara da vizinhança, haja vista todo o processo de urbanização,
os crescimentos dos condomínios,1 loteamentos, entre outros aconte-
cimentos, que conferem ao Direito de Vizinhança novos contornos.
É preciso, portanto, uma hermenêutica compatível com a reali-
dade social e econômica.

2 O Código Civil e a funcionalização do Direito de


Vizinhança
Os institutos consagrados no Direito Civil encontram amparo na
Constituição de 1988 e devem ser lidos à luz dos valores nela consagrados,
especialmente, o da dignidade da pessoa humana, fundamento da Re-
pública Federativa do Brasil (art. 1º, III, da CF); da livre iniciativa (art. 1º,
IV, da CF); da solidariedade social (art. 3º, III, CF); do princípio da
igualdade substancial (art. 5º, CF). A pessoa humana está no centro do
ordenamento jurídico e mister se faz a proteção de seus direitos fun-
damentais, como os da igualdade, da liberdade, da integral reparação
do dano, da inviolabilidade da vida privada, da imagem, entre outros.
O ser humano é um ser de relação, e a coexistência é essencial
ao seu próprio desenvolvimento. No entanto, faz-se necessário algum
grau de regulamentação dessas relações, sob pena de se viver em meio à
desordem, em um ambiente dissociado de qualquer espécie de proteção.
E, nesse aspecto, o Direito assume importante papel na disciplina das
relações sociais, ressalvando os direitos e deveres daqueles que nelas
se inserem de forma direta e indireta, como o que ocorre no Direito
de Vizinhança.
O iura vicinitatis diz respeito tanto às relações entre particulares
como ao interesse do Poder Público de regular e, por meio de seu poder
de polícia, conciliar a atividade econômica com os bens jurídicos por
ele tutelados.

1
Além das restrições comuns de vizinhança previstas nos arts. 1.277 a 1.313 do Código
Civil, há regras específicas que regulam os deveres dos condôminos, como as previstas no
art. 1.336, II, III e IV, do referido diploma legal.

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PAULA MOURA F. DE LEMOS PEREIRA
A FUNCIONALIZAÇÃO DOS INSTITUTOS DO DIREITO DE VIZINHANÇA NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
449

As normas de vizinhança podem ter origem na vontade das par-


tes, emanarem do Código Civil, ou diretamente pelo Poder Público, as
chamadas limitações administrativas, que ocorrem por meio de normas
de ordem pública, cuja finalidade é ordenar as atividades individuais
ligadas à construção ou edificação no sentido do bem social, por in-
termédio de decretos, regulamentos, provimentos e leis tais como o
Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01). Além disso, são orientadas pelos
princípios que alicerçam o ordenamento jurídico, como o da função
social da propriedade (art. 5º, XXIII; 170, III; 182, §2º; 186, todos da
Constituição Federal; e art. 1.228, §1º, do CC), da solidariedade social,
da equidade, da justiça social, da igualdade, da dignidade da pessoa
humana.
Esse Direito reúne todas as restrições, limitações que incidem
sobre a propriedade imóvel nos interesses particulares e se insere
dentro do estudo do domínio, do poder de uso, tendo como finalidade
a convivência entre os vizinhos, a organização da coexistência das pro-
priedades imóveis vizinhas, mas não necessariamente em contiguidade.
O objetivo é colocar a salvo e conciliar os interesses opostos por meio
de normas de vizinhança, dividindo os ônus e os proveitos, compondo
os conflitos de interesses. Isso porque é praticamente impossível que o
exercício do Direito de Propriedade não repercuta, não afete terceiros,
não produza efeitos adjacentes, nem que seja de forma direta, imediata,
ou indireta, mediata.
O que se pretende com o presente texto é analisar as restrições
de vizinhança de ordem privada e que abrangem, na sistemática do
Código Civil, não apenas os prédios confinantes, mas também os mais
afastados, desde que passíveis de serem afetados pelo uso nocivo da
propriedade.
A leitura do Direito de Vizinhança não pode ser feita sob a ótica
oitocentista, individualista, que vigorava no Código Civil de 1916, pela
qual o proprietário podia amplamente dispor do seu bem, transformá-­
lo, edificá-lo ou modificá-lo da maneira que melhor lhe aprouvesse
e de acordo com a utilização econômica que lhe pretendesse dar. Os
objetivos das regras de vizinhança eram tão somente evitar prejuízos
aos particulares ou ao interesse público e resolver os conflitos existentes
entre duas ou mais pessoas.
Com as mudanças sociais e a consagração pela Constituição de
1988 da função social da propriedade, do status de Direito fundamen-
tal (art. 5º, XXIII), além de princípio da ordem econômica (art. 170, II
e III), com conteúdo definitivo em relação às propriedades urbana e
rural (arts. 182, 183, 184 e 186), o Direito de Propriedade ganha uma

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450 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

diversificação de acordo com seu conteúdo (propriedade pública, so-


cial, privada, agrícola, industrial, rural, urbana, de bens de consumo,
de bens de produção, de uso pessoal, de capital). A propriedade não é
mais vista de forma absoluta e o Direito de Vizinhança acompanhará
essa nova perspectiva à luz de sua função social.
O Direito de Vizinhança, assim como os Direitos da Personali-
dade, os Direitos Contratuais, o Direito de Propriedade, o Direito de
Família, não pode se afastar dos fatos sociais, das constantes mudanças
econômicas e tecnológicas que ocorrem no seio da sociedade. É um
Direito vivo que demandará do intérprete o cuidado de buscar sua
máxima eficácia social, harmonizando-o com o sistema normativo
civil-constitucional.
O sistema atual está inspirado na solidariedade política, econômi-
ca e social e no pleno desenvolvimento da pessoa humana, extraindo do
texto constitucional os valores que orientam o Direito de Propriedade.
Os conflitos de vizinhança vão-se alterando com as transforma-
ções da sociedade, e o papel do legislador é dar as ferramentas para
que os operadores do Direito façam uma interpretação diante do fato
concreto compatível com a realidade cultural da época e do lugar.
Nesse sentido, o Código Civil de 2002 trouxe uma grande contri-
buição, pois, calcado no princípio da operabilidade,2 utilizou cláusulas
gerais, conceitos jurídicos indeterminados, princípios gerais que confe-
rem maior concretude na aplicação dos institutos. No que diz respeito
ao Direito de Vizinhança, apesar de manter a redação anterior de vários
artigos, inovou na parte geral (arts. 1.277, 1.278, 1.279, 1.280 e 1.281) e em
alguns direitos específicos (arts. 1.285, 1.286, 1.288, 1.291, 1.292, 1.293,
1.294, 1.295, 1.296, 1.297, §2º e 3º, 1.301, 1.302, 1.311 e 1.313), ampliando
sua aplicação não só para os proprietários (titulares do domínio) dos
imóveis, mas também para os possuidores (compromissário compra-
dor, locatário, comodatário etc.), todos sujeitos às mesmas obrigações
de proteção à segurança, ao sossego e à saúde dos vizinhos, sejam eles
confinantes ou não. Essa maior abrangência veio corroborar o que já
vinha sendo decidido pelos tribunais e conferir maior efetividade ao
Direito Vicinal, pois muitos conflitos ocorrem entre possuidores, haja
vista as diversas formas de ocupação da propriedade imóvel.
Entretanto, como bem acentuou Gustavo Tepedino,3 a estrutura
da nova codificação, apesar de alguns avanços atinentes à função social

2
REALE. Visão geral do projeto de Código Civil.
3
TEPEDINO. Os direitos reais no novo Código Civil. In: ANAIS dos seminários EMERJ
debate o novo Código Civil, p. 168-176.

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PAULA MOURA F. DE LEMOS PEREIRA
A FUNCIONALIZAÇÃO DOS INSTITUTOS DO DIREITO DE VIZINHANÇA NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
451

da propriedade, ainda manteve em alguns pontos a mesma estrutura


assentada no conceito de posse e propriedade do século XX. Tal fato
faz com que a tarefa hermenêutica continue e aumente a importância
do papel criativo da jurisprudência para obter respostas coerentes aos
atuais conflitos de vizinhança dentro do sistema jurídico, preocupado
com a pessoa humana, com seus valores, fundamentos e com o bem-­
estar social, e não apenas com a tutela do patrimônio.
O Direito de Vizinhança, regulado pelo Direito Privado, está
especialmente normatizado pelo Código Civil e se insere no Livro III
referente ao Direito das Coisas,4 e dentro do Título III, que trata do Di-
reito de Propriedade, gerando algumas controvérsias acerca da natureza
jurídica deste instituto. Em razão das peculiaridades que o envolve, a
doutrina diverge acerca do enquadramento jurídico do Direito de Vi-
zinhança, a despeito da evolução quanto às classificações e mitigação
da dicotomia entre Direito Real e Direito Obrigacional,5 havendo quem
defenda tratar-se de Direito Real, de um Direito Obrigacional ou, até
mesmo, de obrigação propter rem.6
A tendência atual do Direito é conferir caráter unitário às situa-
ções jurídicas, pois todas estão sujeitas ao princípio constitucional da
solidariedade. No Direito de Vizinhança há os extremos do Direito
Pessoal e do Direito Real: do primeiro, a prestação efetiva de um obri-
gado e a responsabilidade patrimonial ilimitada enquanto a coisa se
acha em seu poder; do segundo, a aderência à coisa, que tanto pode
pôr fim à obrigação pelo abandono do prédio, como pode acompanhar
o imóvel como um acessório seu, ressurgindo nas mãos de cada novo
adquirente — obrigação propter rem.
A relação de vizinhança, como bem esclarece San Tiago Dantas,7
é uma “relação de continuidade e dependência natural entre prédios
de diferentes donos”, uma relação jurídica complexa, compostas por
deveres jurídicos e direitos subjetivos.
Os deveres decorrentes das relações de vizinhança são divididos
em positivos e negativos. Os primeiros consistem em prestações que

4
“Conjunto das normas que regulam as relações jurídicas referentes às coisas suscetíveis de
apropriação, estabelecendo um vínculo imediato e direto entre o sujeito ativo ou titular do
Direito e a coisa sobre a qual o Direito recai e criando um dever jurídico para todos os mem-
bros da sociedade. Ramo do Direito que regula as relações entre os indivíduos e os bens
sobre os quais exerce o seu poder” (WALD. Direito das coisas, p. 15).
5
PERLINGIERI. O direito civil na legalidade constitucional, p. 901-902.
6
VENOSA. Código Civil comentado: direito das coisas, posse, direitos reais, propriedade,
p. 340.
7
DANTAS. Conflito de vizinhança e sua composição.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
452 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

o proprietário deve fazer ao vizinho que dele a espera, como o dever


de demolição previsto no art. 1.280 do CC, o de demarcação (art. 1.298
do CC) e o de partilhar despesas de tapagem (art. 1.297 do CC). Já os
deveres negativos são os de abstenção, de não fazer, referentes tanto às
privações que se impõem ao proprietário quanto aos atos compreendi-
dos no seu poder de uso, como, por exemplo, o dever de não impedir
o decurso da água para o prédio vizinho (art. 1.288 e 1.290 do CC); de
não abrir janela, ou fazer eirado, terraço ou varanda, a menos de metro
e meio do terreno vizinho (art. 1.301 do CC); de não levantar edificações
a menos de metro e meio do terreno vizinho em área rural (art. 1.304
do CC); de não levantar construções que violem o direito dos vizinhos
e normas (art. 1.299 do CC); e os deveres de tolerância, de permitir que
outros interfiram na sua esfera jurídica, realizando atos que ele estava
em condições de repelir, como o dever de tolerar atividade exercida
por vizinho (1.277, parágrafo único, 1.279, ambos do CC); de conceder
passagem (art. 1.285 do CC); de permitir que passe cabos e tubulações
(art. 1.286 do CC); de tolerar entrada de água; de tolerar que árvores
de sua propriedade tenham seus galhos cortados (art. 1.283 do CC);
de tolerar que o vizinho construa sua parede até meia espessura no
terreno contíguo e utilizá-la (art. 1.305 e 1.306, ambos do CC); e de
tolerar a entrada do vizinho para fazer reparos, apoderar-se de coisas
suas (art. 1.313 do CC).
Os direitos vicinais interferem, portanto, diretamente na dinâmi-
ca do exercício do Direito de Propriedade, estando, portanto, atrelados
à função social da propriedade que demanda a análise de seus aspectos.
O Direito de Propriedade confere ao seu titular, consoante o
art. 1.228, CC/02, a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direi­
to de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou
detenha. Deste dispositivo Gustavo Tepedino8 bem ressalta os aspectos
estruturais e funcionais da propriedade.
O aspecto estrutural do Direito de Propriedade é composto por
um núcleo interno ou econômico do domínio (faculdades de usar, gozar
e dispor, ou seja, dar à coisa a destinação econômica que lhe é própria,
sem alterações substanciais, de perceber os frutos, os benefícios das
coisas, seus benefícios e o poder de decisão acerca do seu destino);
e um núcleo externo ou jurídico, que diz respeito à tutela jurídica da
propriedade, a possibilidade de utilizar as vias judiciais para repelir a
ingerência alheia, para reaver a coisa de quem quer que, injustamente,
a possua, por meio de ações próprias, ações de tutela do domínio. E o

8
TEPEDINO et al. Código Civil interpretado.

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PAULA MOURA F. DE LEMOS PEREIRA
A FUNCIONALIZAÇÃO DOS INSTITUTOS DO DIREITO DE VIZINHANÇA NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
453

aspecto funcional, considerando a função social como elemento interno


e não restrição externamente imposta pelo Estado, elemento intrínseco
à própria propriedade, capaz de promover os valores fundamentais do
ordenamento.
A função social é responsável pelo controle de legitimidade
funcional do Direito de Propriedade, impondo ao titular o dever de
respeitar situações jurídicas e interesses não proprietários socialmente
tutelados, atingidos pelo exercício dominical, como, por exemplo, o de
preservar o meio ambiente.
Os problemas decorrentes das relações de vizinhança e que acar-
retam prejuízos ao vizinho ou até mesmo restrição do pleno exercício
do Direito de Propriedade, desvalorização do seu imóvel, remetem à
aplicação do instituto da responsabilidade civil, do dever de indeni-
zar, além de outras medidas judiciais utilizadas para garantir o uso da
propriedade ou protegê-la de atos nocivos.
Na seara da responsabilidade civil,9 é preciso analisar se a con-
duta praticada pelo vizinho afronta as normas atinentes ao Direito de
Vizinhança, se constitui ato anormal capaz de acarretar danos. Além
do dever de indenizar há outros meios de proteger ou fazer cessar as
condutas que violam as normas de vizinhança.
As medidas judiciais cabíveis para a tutela do Direito de Vizi-
nhança variam de acordo com o que se pretende proteger. O vizinho
prejudicado pode propor ação demolitória (arts. 1.280 e 1.312, ambos
do Código Civil); ação de dano infecto (art. 1.280 e 1.281, ambos do
Código Civil); ação de nunciação de obra nova, também denominada
embargo de obra nova (arts. 934 a 940 do CPC, e art. 1.301 do Código
Civil); ação indenizatória (art. 275, II, “c”, do CPC); ações cominatórias
(obrigação de fazer e não fazer) como as de construção e conservação de
tapumes divisórios (art. 1.297, §1º do Código Civil, e art. 461 do CPC); de
travejamento em parede divisória (art. 1.304 do Código Civil); ação de
passagem forçada (arts. 1.285 e 1.286, ambos do Código Civil, arts. 920
a 931 e 932, todos do CPC); demarcatória e divisória (arts. 1.297, 1.298
e 1.320 do Código Civil; arts. 946 a 981 do CPC); medidas preventivas
(art. 796 et seq. do CPC), entre outras.
Nesse contexto, surgem várias “teorias da vizinhança”, que bus-
cam estabelecer critérios para a resolução dos problemas decorrentes
da responsabilidade civil pelos danos causados aos vizinhos, e definir

9
A responsabilidade civil decorrente da infringência de qualquer norma de edificação é
objetiva, independe da análise de culpa, resulta do fato de violar Direito de Vizinhança, da
lesividade e não da culpabilidade. Vide arts. 937 e 938, ambos do Código Civil.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
454 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

quais condutas se caracterizam como infratoras, excessivas do uso da


propriedade.
San Tiago Dantas10 em sua precursora obra a respeito dos con-
flitos de vizinhança e sua composição, datada de 1972, explicita as
teorias existentes e a evolução do pensamento, partindo das principais
teorias, da culpa, do ato emulativo,11 para a teoria do uso normal12 e da
necessidade,13 concluindo por uma teoria mista, uma combinação entre
os principais subsídios das teorias de Ihering e de Bonfante.
O Código Civil adotou a teoria do uso anormal da propriedade,
fundada na equidade e na utilidade social, no interesse da sociedade,
das regras de utilidade geral. Ele distingue o uso normal e anormal
da propriedade pela situação in concreto, por meio de critérios legais e
objetivos e outros subjetivos, como se verifica do disposto no parágrafo
único do art. 1.277: “Proíbem-se as interferências considerando-se a
natureza da utilização, a localização do prédio, atendidas as normas
que distribuem as edificações em zonas, e os limites ordinários de
tolerância dos moradores da vizinhança”.

10
DANTAS. Conflito de vizinhança e sua composição, 1972.
11
A teoria da emulação se refere aos atos praticados com a intenção de prejudicar; é o uso da
propriedade com ânimo de causar dano a outrem. Essa teoria está superada em razão de
os conflitos dificilmente serem presididos pelo espírito emulativo, além de decorrerem de
outros problemas. A teoria do abuso do direito é considerada evolução da teoria da emu-
lação, pelo que se passou a utilizar o critério objetivista, segundo o qual a responsabilidade
dos proprietários por excederem no exercício de sua propriedade, agir de forma irregular,
antissocial, ou de violação da destinação econômica e social do seu direito, se insere fora
dos quadros da culpa – art. 197 do Código Civil (CARPENA. Abuso do direito no Código
de 2002: relativização de direitos na ótica civil-constitucional. In: TEPEDINO (Coord.). A
parte geral do novo Código Civil: estudos na perspectiva civil-constitucional, p. 367- 385).
12
Para a teoria do uso normal (IHERING, 1862), o que importa para o Direito não é a imissão,
mas a interferência sofrida por um prédio e causada pelo outro. Para aferir o uso normal
da propriedade era necessário perquirir os aspectos ativo e passivo do uso da proprieda-
de. O aspecto ativo verifica se a utilização da propriedade está dentro dos parâmetros já
consagrados em determinada região, e o passivo a receptividade abstrata do homem mé-
dio, grau médio de tolerabilidade, naquela determinada época e localidade, no sentido de
que esses stantards são sempre relativos, flexíveis. De acordo com Ihering era preciso deter-
minar um standard do uso normal da propriedade. Para defini-lo, era necessário investigar
se a utilização da propriedade estava dentro dos parâmetros consagrados em determinada
região (aspecto ativo) e a receptividade abstrata do homem médio, ou seja, o grau médio
de tolerabilidade do homem normal (aspecto negativo).
13
A teoria da necessidade (Pietro Bonfante) surge em contraposição à teoria do uso normal, ne-
cessidade geral do ato e que legitima as interferências in vicino, a necessidade civil e não a de
algumas indústrias e profissões. Essa teoria surgiu no auge da industrialização. De acordo
com Bonfante, em face de determinada interferência na propriedade, o papel do juiz não é
indagar a sua normalidade, mas sua necessidade, isto é, cumpre-lhe averiguar se ela é inevi-
tável, se a vida civil a impõe, e se impõe, cumpre-lhe mantê-la. Diz ainda o autor italiano que
a evolução econômica faz surgir necessidades novas. A indústria, de atividade excepcional e
movida pelo interesse de quem a empreende, torna-se atividade comum, necessária, indis-
pensável mesmo ao progresso, ao bem-estar e à independência política dos povos.

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PAULA MOURA F. DE LEMOS PEREIRA
A FUNCIONALIZAÇÃO DOS INSTITUTOS DO DIREITO DE VIZINHANÇA NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
455

É importante averiguar a natureza da utilização, a destinação da


propriedade vizinha, a localização do prédio e a área de zoneamento:
área residencial, comercial ou industrial, para concluir se houve ou
não excessos no exercício do Direito de Propriedade que possam ter
afetado os vizinhos.
Além disso, a doutrina defende o uso do critério do homem mé-
dio para aferir a normalidade do uso e da interferência entre vizinhos
e os limites de tolerância. Isso porque o limite do tolerável estaria na
média das pessoas. Todavia, esse critério não resolve por si só o pro-
blema, pois será indispensável a verificação in concreto, e, a despeito
de a maioria da doutrina utilizá-lo, há uma tendência em se afastar
desse parâmetro, pois ele não atende à necessidade fática e concreta;
por isso, a avaliação ocorre conforme as peculiaridades apresentadas.14
No entanto, ainda há resquícios da teoria dos atos emulativos e
do abuso do direito, haja vista o disposto no art. 1.228, §2º do Código
Civil: “São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer
comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de preju-
dicar outrem”.
O Código Civil utiliza o que a doutrina chama de teoria dos
três “s”: saúde, sossego e segurança, haja vista o disposto no caput do
art. 1.277: “O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito
de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e
à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade
vizinha”.
A segurança refere-se à atividade ou inatividade que pode
acarretar dano ao vizinho ou colocar em risco a própria pessoa ou seu
patrimônio. As hipóteses mais comuns são as de obras irregulares,
construções que interferem na estrutura do prédio vizinho, riscos de
desabamento de prédios antigos, infiltrações, trepidações perigosas,
explosões violentas, animais de grande porte em condomínio, instalação
de toldos e construção de muros de forma inadequada, realização de
grandes eventos em locais impróprios, guarda de materiais explosivos
etc.

14
O afastamento do critério do homem médio (homo medius), de um padrão abstrato, tem sido
contemplado na verificação do erro escusável para caracterizar o vício de consentimento
capaz de anular o negócio jurídico, a despeito do previsto no art. 138 do Código Civil, pois
a jurisprudência já tem utilizado o critério do caso concreto, as condições pessoais de quem
alega o erro (desenvolvimento mental, cultura, profissional etc.). Enunciado 12 do Conselho
de Justiça Federal (CJF). “12 – Art. 138: na sistemática do artigo 138, é irrelevante ser ou
não escusável o erro, porque o dispositivo adota o princípio da confiança”. Disponível em:
<http://daleth.cjf.jus.br/revista/enunciados/IJornada.pdf>. Acesso em: 02 fev. 2010.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
456 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

O sossego15 diz respeito às interferências que afetam a percepção


sensitiva, tais como, o som, a luz, o cheiro, as sensações térmicas e as
imagens, já que o que se assegura é a tranquilidade dos vizinhos, que
permite a normalidade da vida, respeitando os horários, o limite dos
ruídos.
A saúde16 diz respeito à higidez física e psíquica dos vizinhos
em relação à propagação de gases, mau cheiro, fumaça, lixo, ondas de
transmissão de antenas de telefonia celular, infiltrações etc.
A proteção da segurança, do sossego e da saúde dos vizinhos
encontra amparo nos direitos fundamentais da inviolabilidade da vida
privada, da intimidade,17 e no próprio princípio da dignidade da pessoa
humana,18 abrangendo todos os seus substratos axiológicos: liberdade
privada, integridade psicofísica, igualdade substancial (art. 3º, III, da
CF) e da solidariedade social (art. 3º, I, da CF). É direito inerente à
personalidade.

3 As espécies de Direitos de Vizinhança


O Direito de Vizinhança está dividido no Código Civil em duas
partes — uma geral e outra especial. A parte geral versa sobre normas
que definem a possibilidade de uso da propriedade, os limites a esse uso
e as interferências proibidas, ressalvando nesta última hipótese os casos
de interesse público, além de conferir o direito de exigir determinadas
condutas do proprietário ou possuidor vizinho (arts. 1.277 a 1.281, todos
do Código Civil). A parte especial prevê de forma expressa e específica
alguns deveres e direitos que compõem a relação jurídica de vizinhança.
Como acima abordado, o Direito de Vizinhança estabelece
direitos e deveres para os proprietários ou possuidores de imóveis
confinantes que podem se manifestar de forma positiva, refletindo

15
TJSP, Apelação com Revisão nº 9176466-12.2008.8.26.0000, Relator Marcondes D’Angelo,
Vigésima Quinta Câmara Cível, Julgamento 06.07.2011. TJRJ, Apelação Cível nº 0057881-
20.2006.8.19.0001 Quinta Câmara Cível, Relator Des. Horacio S. Ribeiro Neto, Julgamento
01.07.2010.
16
STJ Resp nº 163.483/RS (98.008167-4), Relator(a) Ministro Peçanha Martins. Relator(a) desig-
nado Ministro Adhemar Maciel, Órgão Julgador Segunda Turma, Julgamento 01.09.1998,
DJ, p. 150, 29 mar. 1999.
17
Enunciado nº 319 do Conselho de Justiça Federal – CJF: “Art. 1.277. A condução e a solução
das causas envolvendo conflitos de vizinhança devem guardar estreita sintonia com os
princípios constitucionais da intimidade, da inviolabilidade da vida privada e da proteção
ao meio ambiente”. Disponível em: <http://daleth.cjf.jus.br/revista/enunciados/IVJornada.
pdf>. Acesso em: 10 mar. 2012.
18
MORAES. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais.

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PAULA MOURA F. DE LEMOS PEREIRA
A FUNCIONALIZAÇÃO DOS INSTITUTOS DO DIREITO DE VIZINHANÇA NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
457

obrigação de fazer, ou de forma negativa, o tolerar, o permitir que ou-


tros interfiram na sua esfera jurídica. E essas condutas estão melhores
definidas na parte especial, que prevê o Direito de Corte de raízes e
ramos de árvore, de percepção de frutos (arts. 1.282 a 1.284 do Código
Civil); o Direito de Passagem (art. 1.285 do Código Civil); o Direito de
Passagem de cabos e tubulações (arts. 1.286 e 1.287 do Código Civil);
das águas (arts. 1.288 a 1.296 do Código Civil); o Direito de Tapagem
(art. 1.297 do Código Civil); o Direito de Demarcação (art. 1.297 e 1.298
do Código Civil); o Direito de Construir (arts. 1.299 a 1.312 do Código
Civil); e o Direito de Penetração (art. 1.313 do Código Civil).
O propósito não é abordar todos esses direitos e deveres da rela-
ção de vizinhança, mas fazer algumas observações acerca do tratamento
desses institutos pela doutrina e jurisprudência, considerando sua evo-
lução e as alterações trazidas pelo Código Civil de 2002, com destaque
para o Direito de Corte (árvores limítrofes); o Direito de Passagem,
inclusive, de cabos e tubulações; o Direito de Tapagem e Demarcação;
o Direito de Construir; e o Direito de Penetração.

3.1 Árvores limítrofes


O Direito de Propriedade referente às árvores limítrofes está
regulado nos arts. 1.282 a 1284 do Código Civil e trata de três situações
jurídicas que envolvem as árvores que crescem na linha que estrema
uma propriedade de outra: (i) árvores nascidas entre dois prédios; (ii)
penetração de ramos e raízes da árvore de um prédio contíguo; (iii)
frutos caídos de árvore localizada em terreno anexo.
Nos casos referentes às árvores, nascidas naturalmente, plan-
tadas ou semeadas, entre dois prédios (art. 1.282 do CC) aplica-se a
presunção de condomínio em relação àquelas cujo tronco estiver na
linha divisória, condomínio legal, necessário em relação à árvore.19 É
uma forma especial de cotitularidade; é uma propriedade em comum
aos donos do edifício confinante. Caso a árvore não tenha seu tronco
na linha divisória, pertence ao dono do prédio em que ela estiver, pois
é a localização do tronco que define o proprietário; desprezam-se ou-
tros atributos da árvore, tais como raízes, galhos etc. A presunção de
condomínio pode ser rompida pela prova de um dos confinantes, por

19
A linha divisória é aquela que demarca os lindes das propriedades contíguas, tendo como
critério o traçado da linha demarcanda ou da linha demarcatória.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
458 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

meio de uma ação demarcatória, de que a titularidade é apenas sua, já


que se está diante de uma presunção juris tantum20 (relativa).21
Como as árvores estão na linha divisória e pertencem, em co-
mum, a ambos os confinantes, as consequências resultantes do con-
domínio são: (i) os frutos pertencem aos vizinhos que participam em
partes iguais para as despesas; (ii) repartir as despesas de preservação
e colheita; (iii) se a árvore é cortada, arrancada, morre, é repartida ao
meio; (iv) penetração de ramos e raízes da árvore de um prédio contí-
guo (art. 1.283 do CC).
Quando os ramos ou raízes das árvores transpõem a estrema do
prédio, seja pelo espaço aéreo, terrestre, ou, até mesmo, pelo subsolo,
causando dano ou incômodo à propriedade vizinha, o dono do prédio
invadido pode cortar os ramos na vertical do plano divisório, já que
não pode ser compelido a aceitar uma invasão que lhe seja prejudicial.
É o direito de eliminar a irrupção de raízes e ramos que ultrapassarem
a linha do imóvel.
Esse Direito de Vizinhança tem sido objeto de análise dos Tri-
bunais de Justiça em razão das controvérsias acerca da necessidade ou
não de uma reclamação judicial para autorizar o corte,22 23 24 pois a lei

20
PEREIRA. Instituições de direito civil: direitos reais, 185.
21
Hely Lopes Meirelles defende tratar-se de presunção absoluta (Direito de construir, p. 66).
22
[...] “Poda de Árvore Limítrofe. A decisão proferida acolheu a preliminar de falta de interesse
processual, tendo em vista que o pedido formulado pelo autor, nos autos da ação de obriga-
ção de fazer, foi no sentido de compelir o réu a retirar a parte da copa da árvore em cima do
telhado do autor. Estando parte da copa da árvore dentro da propriedade do agravante, ele
próprio pode fazer a poda pretendida, carecendo-lhe de interesse de agir. Desprovimento do
recurso” (TJRJ 0042502-37.2009.8.19.0000 – 2009.002.46081 – Agravo de Instrumento – Des.
Jorge Luiz Habib – Julgamento: 18.05.2010 – Décima Oitava Câmara Cível).
23
“Direito de Vizinhança. Ação Cominatória. Árvores Limítrofes. Alegação de incômodos ge-
rados pela sujeira das folhas e frutos, bem como pela excessiva umidade. Em restando confi-
gurado o uso nocivo da propriedade pela ré em função do plantio de árvores de grande porte
na área limítrofe ao seu imóvel, ocasionando a queda de folhas e frutos no terreno do autor,
bem como a produção de excessiva umidade, merece ser mantida a determinação contida
na sentença de corte dos galhos que ultrapassem o limite divisório da propriedade. Senten-
ça confirmada por seus próprios fundamentos. Recurso impróvido” (TJRS, Recurso Cível
nº 71000960401, Primeira Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Ricardo Torres
Hermann, Julgado em 19.10.2006).
24
“Vizinhança – Árvores Limítrofes – Poda de cerca viva entre terrenos vizinhos – danos ma-
teriais e morais. Ação proposta pelo apelante em face da apelada, objetivando a condenação
desta a reconstruir a cerca viva existente na divisa dos respectivos terrenos. [...] Trata-se,
portanto, de matéria preclusa. O artigo 1.283 do novo Código Civil, reproduzindo a norma
do artigo 558 do Código Civil de 1916, faculta ao proprietário do terreno invadido cortar
raízes e ramos que ultrapassem a divisa do prédio, até o plano vertical divisório. Hipótese
em que, por ocasião da oportuna inspeção no local, o Juiz verificou que ‘o caminho usado
pela ré para ir aos fundos do terreno fica em parte prejudicado pela cerca viva’. Ademais,
estando esta dentro da propriedade do autor e a cerca de meio metro de distância do limite
dos terrenos, ele poderia fazer a manutenção da mesma sem precisar de autorização da ré.

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PAULA MOURA F. DE LEMOS PEREIRA
A FUNCIONALIZAÇÃO DOS INSTITUTOS DO DIREITO DE VIZINHANÇA NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
459

já prevê o Direito de Corte. Além disso, se questiona se existe ou não


limites ao plantio de árvores,25 que possam acarretar danos ao vizinho,
pois a matéria encontra previsão no art. 225 da Constituição Federal, que
estabelece a proteção do meio ambiente, além das normas ambientais
e administrativas pertinentes.
A doutrina já se manifestou pela possibilidade do corte, inde-
pendentemente de qualquer autorização do vizinho confinante,26 sendo
certo que a supressão de parte de uma árvore está subordinada à prévia
autorização administrativa27 e ao respeito às normas ambientais, o que
limita o exercício da autonomia privada,28 já que o bem jurídico tutelado
ultrapassa os interesses patrimoniais dos confinantes. Tal fato não limita
o Direito de Plantar29 desde que esse ato não configure abuso de direito.30
Esse direito, conforme posicionamento doutrinário,31 é asse-
gurado não só ao proprietário do prédio invadido, mas também ao
possuidor, podendo este exercer, a qualquer tempo, o direito, cabendo
a ele a propriedade dos galhos, ramos e raízes cortados. Ao vizinho
cabe apenas tolerar o corte, pois está diante de um direito potestativo,32
imprescritível.

Portanto, a poda da cerca viva pela ré constitui legítimo exercício do Direito de Vizinhança.
Provimento parcial do Recurso, tão somente para reduzir a verba honorária para R$1.000,00,
em favor do Centro de Estudos Jurídicos da Defensoria Pública” (TJRJ, Decisão: Ac. unân. da
18ª Câm. Cív., publ. em 03 fev. 2005, Recurso: Ap. nº 2004.001.17548, Relator: Relª Desª Cássia
Medeiros, Julgamento: 26.10.2004).
25
TJRJ 0115648-94.1998.8.19.0001 (2002.005.00510) – Embargos Infringentes, Décima Segun­da Câ-
mara Cível, Des. Wellington Jones Paiva, Julgamento: 12.08.2003; TJRJ, Ap. nº 2000.001.15949,
Décima Segunda Câmara Cível, publ. em 27 maio 2004, Relator: Rel. Des. Wellington Jones
Paiva.
26
GRANADO. Os direitos de vizinhança no Código civil de 2002. Revista Forense, p. 87-126;
PELUSO (Coord.). Código civil comentado: doutrina e jurisprudência: Lei n. 10.406, de
10.01.2002: contém o Código Civil de 1916.
27
Art. 39 da Lei nº 9.605/98: “Cortar árvores em floresta considerada de preservação perma-
nente, sem permissão da autoridade competente: Pena – detenção, de um a três anos, ou
multa, ou ambas as penas cumulativamente”.
28
PELUSO (Coord.). Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência: Lei n. 10.406, de
10.01.2002: contém o Código Civil de 1916.
29
TJDF 0016453-42.2007.807.0006, Relator(a): Romulo de Araujo Mendes, Julgamento:
27.01.2009, Órgão Julgador: Segunda Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Cri-
minais do DF. DJ-e, p. 218, 04 mar. 2009; TJRJ 0115648-94.1998.8.19.0001 (2002.005.00510) –
Embargos Infringentes – Des. Wellington Jones Paiva – Julgamento: 12.08.2003 – Décima
Segunda Câmara Cível.
30
STJ Resp. nº 935474/RJ RECURSO ESPECIAL nº 2004/0102491-0 Relator(a) Ministro Ari
Pargendler Relator(a) p/ Acórdão Ministra Nancy Andrighi, Órgão Julgador Terceira Tur-
ma, Julgamento 19.08.2008, DJe, 16 set. 2008, RDR, v. 43, p. 266.
31
MONTEIRO FILHO. O direito de vizinhança no novo Código Civil. In: ANAIS dos semi-
nários EMERJ debate o novo Código Civil, p. 163. VENOSA. Código Civil comentado: direito
das coisas, posse, direitos reais, propriedade, v. 12, p. 357.
32
TJRS, Apelação Cível nº 598429462, Décima Sétima Câmara Cível, Relator: Elaine Harzheim
Macedo. Julgado em 02/03/1999.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
460 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Eventuais prejuízos sofridos pela queda da árvore, de seus ramos


ou de seus frutos, implicará na responsabilidade civil33 pelo fato da
coisa, aplicando o disposto no art. 937 do Código Civil.
Quando a árvore for frutífera, nascida naturalmente, plantada,
ou semeada, e estender seus ramos por sobre a linha lindeira, os fru-
tos caídos pertencerão ao dono do solo em que caírem, se este for de
propriedade particular, não lhe sendo lícito, porém, provocar a queda.
Os frutos pendentes, por sua vez, são do dono da árvore e somente ele
pode colhê-los, mesmo que estes deitem ao lado do prédio vizinho.
Enquanto os frutos estão nesse estado pertencerão ao dono da árvore,
aplicando-se o princípio segundo o qual o accessorium sequitur principale
(art. 1.284 do CC). Quando o fruto cai ocorre exceção a esse princípio
de que o acessório segue o principal.
Critica-se34 o dispositivo legal acima apontado sob o argumento
de que não deveria caber ao vizinho os frutos caídos em seu terreno,
pois as árvores são tratadas e cultivadas pelo proprietário. E, se o vi-
zinho não cortou os ramos que se projetaram em seu terreno, tolerou
o incômodo. No entanto, há quem defenda a ideia de que pode haver
duas soluções: a primeira, de que deveria haver um condomínio dos
proprietários sobre os frutos caídos no terreno vizinho; e outra de que
deveria haver plena e exclusiva propriedade de tais frutos pelo dono
da árvore, salvo se o vizinho utilizar seu direito de obstar pelo corte
a invasão.
A intenção do legislador foi evitar conflitos como a invasão
abrupta do dono da árvore no terreno vizinho para recolher os frutos

33
Direito de Vizinhança – Uso Nocivo da Propriedade – Árvores que avançam sobre terreno
vizinho e lançam galhos, folhas e raízes – Uso Nocivo da Propriedade – Danos Causados em
Prédio Urbano – Indenização – Reconhecimento. Comprovado Pericialmente que as raízes,
galhos e folhas das árvores invadem o terreno vizinho e provocam danificações, a Respon-
sabilidade do Proprietário pelos danos apurados emerge translúcida. Recurso Parcialmen-
te Provido (TJSP, Apelação com Revisão nº 992051362090 (902437800), Relator(a): Emanuel
Oliveira, Órgão julgador: 34ª Câmara do Sétimo Grupo (Ext. 2° TAC), Data do julgamento:
09.11.2005, Data de registro: 06.12.2005); TJRS, Apelação Cível nº 70010903946, Décima Oi-
tava Câmara Cível, Relator: Pedro Celso Dal Pra, Julgado em 31.03.2005; Ação de Indeniza-
ção. Direito de Vizinhança. Poda de três galhos de árvore que pendia seus ramos sobre lote
lindeiro. Exercício regular de um direito. Recurso Improvido. Demonstrado nos autos que
o requerido cortou galhos de árvore limítrofe que invadiam seu terreno, causando danos
à piscina ali existente, não há lugar para condenar-se o suplicado a reparar danos, porque
agiu no exercício regular de um direito, mormente em se considerando que o autor não
tinha benfeitoria alguma no imóvel de sua propriedade e, ainda, procurou influenciar na
prova, modificando a situação de fato flagrada pelo juiz-leigo. Sentença de improcedência
confirmada por seus próprios fundamentos (TJRS Recurso Cível nº 71001215284, Segunda
Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Clovis Moacyr Mattana Ramos, Julgado
em 07.03.2007).
34
CHAVES. Lições de direito civil: direito das coisas, p. 26.

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PAULA MOURA F. DE LEMOS PEREIRA
A FUNCIONALIZAÇÃO DOS INSTITUTOS DO DIREITO DE VIZINHANÇA NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
461

caídos, já que, uma vez caídos, o dono certamente teria de ingressar


no imóvel de seu vizinho para apanhá-los. Se o terreno é público, não
existirá motivo para restrição da propriedade, não se extinguindo a
propriedade do dono da árvore sobre os frutos.

3.2 Direito de Passagem


O Direito de Passagem forçada, outra forma de restrição do Di-
reito de Propriedade decorrente das relações de vizinhança, constitui
o direito do proprietário do prédio encravado de exigir do proprietário
do prédio encravante, mediante indenização, que lhe assegure por meio
de seu imóvel o acesso à via pública.
O Código Civil de 2002 inovou em relação à passagem forçada,
em observância aos avanços da tecnologia e da prestação de serviços
públicos, embora não tenha feito menção ao direito do possuidor à
passagem forçada, o que, de acordo com a doutrina,35 a ele se estende,
sendo legítimos para pleitear os usufrutuários, os usuários, e os possui-
dores, o que vai ao encontro do que está disposto na parte geral (arts.
1.277, 1.280 e 1.281, todos do Código Civil).
A finalidade, segundo Hely Lopes Meirelles,36 é impor a solida-
riedade entre vizinhos e “resulta da consideração de que não pode um
prédio perder a sua finalidade e valor econômico por falta de acesso
à via pública, nascente ou porto, permanecendo confinado entre as
propriedades que os circundam, limítrofes ou não”.
Esse direito tem amparo no princípio da solidariedade e da
utilidade, pois permite a completa fruição dos atributos inerentes ao
Direito de Propriedade, o Direito de Movimentação, que impõe ao
proprietário do prédio vizinho o dever de tolerar a passagem, desde
que seja necessário e o aproveitamento econômico do prédio encrava-
do. A simples comodidade não gera o direito de passagem, pois, para
isso, o encravamento, ou seja, a falta de acesso à via pública, deve ser
real e efetivo.
A passagem forçada, também chamada por alguns de servidão
legal, se difere do instituto da servidão de passagem ou servidão de
trânsito. A primeira se insere no Direito de Vizinhança, cuja natureza
jurídica, de acordo com a doutrina majoritária, é de obrigação propter
rem, e se caracteriza por limitar o exercício dos direitos do proprietário,

35
VENOSA. Código Civil comentado: direito das coisas, posse, direitos reais, propriedade, v. 12,
p. 360.
36
MEIRELLES. Direito de construir, p. 77.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
462 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

mas que também confere direitos e encontra previsão no art. 1.285 do


Código Civil, tendo fundamento, portanto, na lei. O Direito de Passa-
gem é insuscetível de posse, pelo que não pode ser adquirido mediante
usucapião e para ser conferido depende de haver encravamento do
prédio, ou seja, necessitar de saída para via pública e prescinde de
transcrição no Registro de Imóvel. Sua finalidade é evitar prejuízos,
atender ao interesse público de coexistência e pacificação das relações de
vizinhança, e possibilitar a completa fruição do Direito de Propriedade.
Está calcado no princípio da solidariedade social. Outra característica
é que é um direito oneroso, pois somente é exercido mediante paga-
mento de indenização cabal ao vizinho prejudicado. Já a servidão de
passagem é um Direito Real limitado sobre coisa alheia; não abrange
todos os direitos inerentes à propriedade ou domínio, é acessório,
pois incide sobre o bem imóvel, mas não subsiste sem o prédio a que
se refere, está previsto no art. 1.225, III, e 1.378-1.389, todos do Código
Civil, constitui um encargo imposto a um prédio em proveito do outro,
que gera vantagens sobre prédio dominante e restrições para o prédio
serviente e decorre da vontade das partes ou da usucapião (art. 1.379
do CC), não depende de encravamento do prédio dominante para
ser constituída, porque decorre do consenso entre as partes, e deve
ser levado a registro junto ao Registro Geral de Imóveis (art. 167, “i”,
nº 6, da Lei nº 6.015/73). A finalidade é a criação de vantagem, benefício
para a propriedade dominante, melhorar o acesso, o uso da coisa, aten-
dendo o interesse e a conveniência das partes, não havendo obrigação
de pagar indenização.
Em diversas oportunidades os Tribunais37 têm-se pronunciado
acerca da diferença entre esses institutos, pois muitas vezes há aplicação
errônea, havendo, na prática, confusão entre o Direito de Passagem
forçada decorrente da existência do encravamento e a servidão de pas-
sagem que surge do acordo entre as partes ou do uso pacífico da coisa.
A passagem forçada só se extingue quando cessa o encravamen-
to; mesmo com a alienação parcial do imóvel permanece o dever de
tolerar a passagem, seja o que já existia ou o que passou a existir com
a alienação de parte do imóvel (art. 1.285, §§2º e 3º, do CC).

37
STJ, REsp nº 223.590/SP, Recurso Especial nº 1999/0063265-6, Relator(a) Ministra Nancy
Andrighi, Órgão Julgador Terceira Turma, Julgamento 20.08.2001, DJ, p. 161, 17 set. 2001; TJMG,
Decisão: Ac. unân. da 10ª Câmara Cível, publ. em 31.05.2008, Recurso: Ap. nº 1.0024.00.097445-
1/001, Relator: Rel. Des. Pereira da Silva; TJSP, Apelação nº 991080801804 (7295208400)
Relator(a): Irineu Fava, Comarca: Penápolis, Órgão julgador: 13ª Câmara de Direito Privado,
Julgamento: 11.02.2009, Data de registro: 17.03.2009; TJRJ, 0004536-52.2006.8.19.0030 – Apela-
ção Des. Marcos Alcino A Torres - Julgamento: 28.02.2012 – Décima Nona Câmara Cível.

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PAULA MOURA F. DE LEMOS PEREIRA
A FUNCIONALIZAÇÃO DOS INSTITUTOS DO DIREITO DE VIZINHANÇA NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
463

A fixação do rumo de passagem será feita judicialmente se for


necessário, pois se pressupõe a composição extrajudicial.
Para que nasça o direito de utilizar a passagem forçada, deve-­
se observar a presença de três requisitos: (i) acesso inexistente às vias
públicas; (ii) essa falta de acesso deve ter origem natural, isto é, não
pode ter sido causada por aquele que pede a passagem forçada; (iii)
haver o pagamento de indenização ao vizinho.
Questão relevante que permeia o Direito de Passagem forçada é
justamente a abrangência da expressão prédio encravado, divergindo
a doutrina e a jurisprudência pátria se o encravamento se restringe às
hipóteses de imóveis que não têm saída para a via pública ou também
àqueles que, embora tenham saída, esta é impraticável, perigosa, difícil,
quase inacessível e/ou muito dispendiosa. Ou seja, deve-se definir se o
encravamento tem que ser ou não absoluto.
Para a maioria da doutrina,38 o encravamento tem de ser absoluto,
porque a passagem forçada é uma restrição à propriedade privada do
vizinho; por isso, só quando o prédio não encontrar outra possibilidade
de saída é que haverá o direito a essa passagem.
No entanto, há quem defenda, como Arnaldo Rizzardo,39 Pontes
de Miranda,40 Carvalho Santos, Nelson Rosenvald41 e Daniel Willian
Granado,42 que o encravamento não precisa ser absoluto, ou seja, não se
exige que o fundo não disponha de nenhuma saída para a via pública.
Se a passagem for penosa, longa, estreita, perigosa ou impraticável, com
codispêndio excessivo para comunicação, não fica afastado o Direito
de Passagem.
O tema deve ser interpretado à luz dos princípios que fundamen-
tam a restrição de um Direito de Propriedade, qual seja, a função social
da propriedade (art. 5º, XXIII, CF, art. 1.228, §1º, do CC), a solidariedade
social. O legislador, em diversos dispositivos atinentes ao Direito de Vi-
zinhança, conferiu ao operador do direito maior liberdade na apreciação
dos casos por meio de cláusulas gerais, conceitos indeterminados e em
diversos dispositivos — como o art. 1.286 do Código Civil, que versa
sobre a passagem de cabos e tubulações, faz a ressalva da necessidade
de permitir a passagem se por outro meio for impossível ou excessiva-
mente oneroso. Certo é que a lei se tornará morta se no caso concreto

38
Nesse sentido Hely Lopes Meirelles, Orlando Gomes, Caio Mário da Silva Pereira, Marco
Aurélio S. Viana.
39
RIZZARDO. Servidão de trânsito e passagem forçada. Ajuris, p. 163.
40
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado: parte especial: direito das coisas, p. 328.
41
FARIAS; ROSENVALD. Direitos reais, p. 527.
42
GRANADO. Os direitos de vizinhança no Código Civil de 2002. Revista Forense, p. 87-126.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
464 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

não for possível avaliar a necessidade da passagem, o que permite que


o encravamento seja visto de forma relativa,43 interpretação esta em
maior conformidade com a ratio legis. Deve prevalecer a função social
que protege a destinação coletiva da coisa, beneficiando seu titular e a
comunidade com garantia da finalidade econômica.
A finalidade da lei é tornar possível a exploração ou o conveniente
uso dos prédios, de sorte que o titular do domínio com uma saída insu-
ficiente, e que para melhorá-la ou ampliá-la se impõem um dispêndio
excessivo, tem direito ao acesso, pois o prédio não deixa de ser encra-
vado. Um exemplo citado é o do prédio encravado, separado por um
curso de água sem ponte ou barca, que seria, diante das construções
atuais, da evolução dos meios de transportes, possível encontrar uma
solução que descaracterizaria o encravamento, mas ao mesmo tempo
seria excessivamente oneroso para o proprietário desse prédio.
A jurisprudência reflete a divergência, ora exigindo o encrava-
mento total do imóvel,44 ora se contentando com a excessiva dificuldade
ou onerosidade de acesso já existente à via pública.45
A falta de acesso do prédio à via pública deve ter origem natu-
ral, isto é, não pode ter sido causada por aquele que pede a passagem
forçada, como, por exemplo, o encravamento decorrente de sucessivas
alienações parciais (art. 1.285, §§2 e 3, do CC): (i) alienação parcial do
imóvel — a passagem será exigível do comprador ou permutante sobre
o prédio correspondente à parte alienada; (ii) passagem já existente no
terreno vizinho se mantém no caso de alienação parcial.
A passagem forçada é um Direito de Vizinhança oneroso, pois
exige indenização cabal, o que expressa a onerosidade. A indenização é
o preço da servidão, se qualifica como cabal, abrangendo não somente
todos os transtornos e incômodos decorrentes da passagem, como
também obras e cercas que se façam necessárias para assegurar a inco-
lumidade do remanescente. Computam-se danos emergentes e lucros

43
Enunciado nº 88 do Conselho de Justiça Federal (CJF): Art. 1.285: O direito de passagem
forçada, previsto no art. 1.285 do CC, também é garantido nos casos em que o acesso à via
pública for insuficiente ou inadequado, consideradas, inclusive, as necessidades de explo-
ração econômica. Disponível em: <http://daleth.cjf.jus.br/revista/enunciados/IJornada.pdf>.
Acesso em: 10 mar. 2012.
44
TJRJ 0007230-66.2004.8.19.0061 (2009.001.29548) – Apelação – Des. Jesse Torres – Julgamen-
to: 10.06.2009 – Segunda Câmara Cível.
45
TJRJ 0003419-06.2001.8.19.0061 (2009.001.03378) – Apelação – Des. Renata Cotta –
Julgamento: 06.03.2009 – Nona Câmara Cível; TJRS Apelação Cível nº 70026715987, Décima
Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nelson José Gonzaga, Julgado em
25.06.2009; STJ, Resp nº 316.336/MS Recurso Especial nº 2001/0039356-0 Relator Ministro
Ari Pargendler, Órgão Julgador Terceira Turma, Data do Julgamento 18.08.2005, DJ, p. 316,
19 set. 2005, LEXSTJ, v. 194, p. 92, RT, v. 845, p. 195.

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PAULA MOURA F. DE LEMOS PEREIRA
A FUNCIONALIZAÇÃO DOS INSTITUTOS DO DIREITO DE VIZINHANÇA NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
465

cessantes em razão da não utilização da faixa de passagem, inclusive


eventual desvalorização do remanescente.

3.3 Da passagem de cabos e tubulações


O dever do vizinho de tolerar a passagem de fios, tubulações,
conexões, dutos, e outros instrumentos utilizados para passar sanea-
mento básico, linhas telefônicas, televisão, internet, água, entre outros,
pela via subterrânea não estava expressamente previsto no Código Civil
de 1916. Todavia, em observância ao que já vinha sendo defendido pela
doutrina e jurisprudência, e considerando o intenso avanço tecnológico
atual, houve por bem positivar as normas atinentes a esse Direito de
Vizinhança nos arts. 1.286 e 1.287 do Código Civil.
O Direito de Passagem de Cabos, Conduto e Tubulações está
fundamentado no princípio da solidariedade social, e visa conferir
maior comodidade e bem-estar aos proprietários vizinhos, facilitando
o uso de serviços públicos essenciais, de utilidade pública, tanto no
âmbito residencial, comercial, agrícola ou industrial da localidade.46
Esse direito também se inclui no grupo dos direitos de vizinhança
onerosos, haja vista que assegura ao dono do prédio que se submete à
passagem de cabos e tubulações o direito de receber indenização cabal,47
que abrangerá as restrições imediatas (na área efetivamente ocupada) e
mediatas (desvalorização do remanescente) de fruição sobre o imóvel,
ou seja, a desvalorização de sua propriedade.
No entanto, esse Direito de Passagem de Tubulação e Cabo
apenas surge no caso de impossibilidade de utilizar outro caminho
que não o prédio vizinho ou se outro meio for excessivamente oneroso.
O proprietário onerado pela passagem, por sua vez, pode exigir
que a instalação de passagem seja de modo menos oneroso. Isso para

46
Direito de Vizinhança. Tolerância à Passagem de Tubulação de Esgoto. Direito Assegurado
ao dono do Prédio Vizinho. Uso Normal da Propriedade. Apelação Improvida (TJSP, Apel.
nº 606.806-0/3, Segundo Tribunal de Alçada Civil, Comarca São Paulo – F. Reg. S. Miguel
Paulista, 2ª V. Cível).
47
San Tiago Dantas bem diferencia os tipos de indenização que podem decorrer da relação de
vizinhança, a de cunho expropriatório e a que visa reparar prejuízo efetivo. As indenizações
expropriativas, necessárias (art. 560, 567 e 579 do CC/16) independem dos prejuízos sofridos,
a própria obrigação de tolerar já constitui lesão do direito e eventuais (587 do CC/16) — pre-
juízos sofridos, nesse caso a indenização é prévia, a reparação pecuniária precede o direito,
tanto que, omitindo-se por qualquer motivo, começa a correr a prescrição liberatória desde o
dia em que a passagem se estabeleceu (art. 567 e 560 do CC/16). Já nos casos de diminuição do
direito do proprietário onerado, com prejuízos efetivos, a reparação é a posteriori, apurados e
liquidados os danos – art. 587, CC/16 (DANTAS. Conflito de vizinhança e sua composição).

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
466 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

minimizar a restrição de seu direito. No entanto, caso haja alteração


do rumo deverá arcar com as despesas da obra (art. 1.286, parágrafo
único do CC).
Certo é que o exercício desse direito deve ocorrer de forma a não
colocar em risco48 a segurança do dono do prédio serviente, surgindo,
inclusive, o direito deste de exigir que o proprietário do prédio por onde
passa a tubulação realize obras de segurança, consoante o disposto no
art. 1.287 do Código Civil, que também encontra previsão no art. 1.281
do referido diploma legal.
O tema traz alguns questionamentos que não encontram respos-
tas diretas nos dispositivos legais que o regula, mas que têm sido objeto
de análise pelos operadores do direito em casos concretos. Como o
prazo para exercício do direito de pleitear a indenização expropriatória
e quem teria o dever de pagar.
As respostas dependem de uma interpretação sistemática com
amparo no instituto da prescrição e do próprio Direito de Vizinhança.
Alguns julgados que enfrentaram a questão se inclinam pela impos-
sibilidade de pleitear a referida indenização em caso de sua aceitação
tácita, mormente em se tratando de obra realizada por proprietários
anteriores,49 deixando, no entanto, de adentrar no aspecto prescricional,
para o qual se aplica os prazos estabelecidos na parte geral do Código
Civil.

48
Esse risco não precisa ser grave, conforme defende Caio Mário da Silva Pereira (Instituições
de direito civil: direitos reais, p. 189).
49
Ação de Passagem Forçada. Tubulação subterrânea de esgoto sob terreno vizinho. Inter-
rupção pela nova compradora. O proprietário é obrigado a tolerar a passagem, através
de seu imóvel, de cabos, tubulações e outros condutos subterrâneos de utilidade pública,
em proveito de proprietários vizinhos, quando de outro modo for impossível ou excessi-
vamente onerosa (artigo 1.286 do Código Civil). Apelação Desprovida (TJRS, Apelação Cí-
vel nº 70024051872, Vigésima Câmara Cível, Relator: Newton Carpes da Silva, Julgado em
06.08.2008); Obrigação de fazer, c/c indenização por danos morais, julgada improcedente.
Servidão de passagem de esgotamento sanitário e água potável, autorizada por antigo pos-
suidor do imóvel. Direito assegurado no art. 1.277, do Código Civil. Inexistência de vaza-
mento e mau cheiro no local. Fato constitutivo do direito da apelante não demonstrado.
art. 333, I, do CPC. Ausência de danos morais. Indenização para tolerar a passagem de cabos
e tubulações. Art. 1.286, daquele diploma legal. Matéria a ser enfrentada em ação própria.
Sentença correta. Desprovimento do recurso. Decisão unânime (TJRJ, Processo nº 0002595-
31.2007.8.19.0063 (2009.001.48480) Apelação, DES. Jose Mota Filho – Julgamento: 07.10.2009
– Sétima Câmara Cível); Ação visando o restabelecimento de passagem de tubulação sub-
terrânea sob prédio vizinho. Servidão instituída pelos antigos proprietários que deve ser
respeitada, eis que existente há mais de vinte anos. Multa fixada para o caso de descum-
primento da ordem judicial mantida. Eventual indenização pela desvalorização do imóvel
que não é arguível em face do autor, mas, em tese, poderia ser oposta ao vendedor, em face
do alegado desconhecimento da situação de fato já consolidada entre os prédios vizinhos.
Apelo Desprovido (TJRJ, Apelação Cível nº 70013366976, Vigésima Câmara Cível, Tribunal
de Justiça do RS, Relator: José Aquino Flores de Camargo, Julgado em 23.11.2005).

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A FUNCIONALIZAÇÃO DOS INSTITUTOS DO DIREITO DE VIZINHANÇA NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
467

3.4 Direito de Tapagem e de Demarcação


O Direito de Tapagem e o Direito de Demarcação estão previstos
nos arts. 1.297 e 1.298, ambos do Código Civil.
O Direito de Tapagem (primeira parte do caput do art. 1.297 do
Código Civil) é inerente à propriedade e diz respeito ao direito do
proprietário do prédio de garantir ou tornar efetiva a exclusividade
de seu domínio por meio de ato material tendente a impedir acesso de
estranhos à coisa, estabelecendo a divisa entre os prédios. Consiste no
direito do proprietário de cercar, murar, valar ou tapar o seu imóvel,
protegendo-o da visão de terceiros, o que se pode dar por sebes vivas,
cercas de arame ou madeira, as valas ou banquetas, ou quaisquer outros
meios de separação.
Esse direito tem amparo no direito fundamental à privacidade,
que busca proteger a pessoa humana. Todavia, encontra limite e restri-
ções de ordem administrativa, e até de cunho convencional.
A colocação dos muros, paredes, cercas ou valas deve observar
as dimensões estabelecidas nas posturas municipais e, de acordo com
os costumes de cada localidade, podem decorrer de comum acordo
entre os vizinhos, ou por presunção legal, caso não haja prova de pro-
priedade exclusiva. Pode ser necessário para impedir a passagem de
animais de grande porte, como, por exemplo, gado vacum, cavalar e
muar, ou servir de mera ornamentação.
Presume-se que os tapumes divisórios comuns pertencem aos
proprietários dos terrenos lindeiros, mas é cabível prova em contrário
(art. 1.297, §1º, do Código Civil). Configura-se o condomínio forçado
em cercas, muros e valas, que implica em repartir, em partes iguais, os
gastos de sua edificação, manutenção e conservação.
Os confinantes são obrigados a concorrer com as despesas re-
lativas aos tapumes divisórios, de forma convencionada.50 À falta de

50
Construção de muro divisório entre imóveis lindeiros. Direito irrecusável de um dos pro-
prietários de murar e de exigir a divisão dos encargos respectivos. Ação para obrigar vi-
zinho a realizar obras de acabamento de muro que ergueu. Procedência parcial. Apelação
provida, com inversão integral do resultado do julgamento (TJSP Apelação nº 992090794841
(1292488100) Relator(a): Sebastião Flávio Comarca: Cotia Órgão julgador: 25ª Câmara de
Direito Privado, Data do julgamento: 20.07.2010, Data de registro: 10.08.2010); Vizinhança
– Direito de Tapagem – Cercamento de faixa ocupada por linha férrea – concorrência em
partes iguais para as despesas. Segundo a lei civil, tem o proprietário direito a tapar de qual-
quer modo o seu prédio rural. Assim, considerando que os tapumes divisórios presumem-­
se comuns, sendo os lindeiros obrigados a concorrer, em partes iguais, para as despesas
de sua construção e conservação, cabe à ferrovia concessionária atender ao texto legal, ain-
da mais, quando autorizada a teor do disposto no artigo 10 do Dec. 2.089/63, que aprova
o Regulamento da Segurança, Tráfego e Polícia das Estradas de Ferro, ao qual se sujeita,
inclusive, a empresa concessionária da exploração (TJRJ, Decisão: unân. da 9ª Câm. Cív.,

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
468 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

acordo, o proprietário interessado na construção da obra deve obter


o reconhecimento judicial da obrigação do confinante de contribuir
para a construção do tapume, se a construção decorrer de exigência
administrativa constante de lei ou regulamento. As construções devem
ocorrer em virtude de necessidade ou utilidade, não por mera questão
de estética; nesse caso, o proprietário arcará com os custos.
O Direito de Demarcação está regulado na segunda parte do
caput do art. 1.297 do Código Civil e visa assegurar não só o interesse
dos particulares de, por exemplo, impedir que um proprietário invada
o terreno do outro alegando que não percebeu o limite, como o interesse
público de garantir a paz social, o exercício de seu poder de polícia,
entre outros.
Esse direito teve origem no Direito Romano e remonta ao direi-
to de ação que se reconhece ao dono de um imóvel, de estremá-lo da
propriedade vizinha — actio finium regundorum.
No que concerne aos limites entre prédios, diversos são os di-
reitos subjetivos: (i) o de obrigar seu confinante a proceder com ele à
demarcação entre os dois prédios, a aviventar rumos apagados e a reno-
var marcos destruídos ou arruinados; (ii) o de usar em comum o muro,
vala ou cerca ou outra obra divisória, como condomínio presuntivo.
Os custos dessa demarcação devem ser divididos em partes
iguais, haja vista o interesse comum na fixação ou reestabelecimento51
da linha demarcatória.
As ações demarcatórias e divisórias estão reguladas dos arts.
946 a 981 do CPC (950 a 966) e têm como requisitos: (i) terem as partes,

publ. em 18.11.1999, Recurso: Ap nº 6.750/99, Relator: Des. Marcus Tullius); TJRS, Número:
70013366976, Seção: CIVEL Tipo de Processo: Apelação Cível Órgão Julgador: Vigésima Câ-
mara Cível Decisão: Acórdão Relator: José Aquino Flores de Camargo. Comarca de Origem:
Comarca de Porto Alegre.
51
Ação Demarcatória – Cabimento – Divergência entre os limites e confrontações definidos
nos títulos dominiais e a realidade. A ação demarcatória é cabível, mesmo quando definidos
os limites divisórios, ainda restando dúvidas sobre sua correção e, principalmente, discor-
dância entre o título de domínio e a realidade. Por isso que, havendo divergência entre a
verdadeira linha de confrontação dos imóveis e os correspondentes limites fixados no título
dominial, cabível a ação demarcatória para eventual estabelecimento de novos limites —
artigo 946, I, do CPC c/c artigo 1.297 do CC. Precedentes. Em face da imprecisão da linha
divisória, não seria possível intentar a ação reivindicatória, pois, para tanto, é necessária a
perfeita individuação da coisa reivindicada, o que não ocorre na espécie. A não realização do
necessário cotejo analítico dos acórdãos, com indicação das circunstâncias que identifiquem
as semelhanças entre o aresto recorrido e os paradigmas, implica o desatendimento de re-
quisitos indispensáveis à comprovação do dissídio jurisprudencial. Recurso especial conhe-
cido em parte e, na extensão, provido, a fim de cassar o julgado recorrido, determinando o
retorno dos autos à instância de origem para que se prossiga o exame da causa (STJ, REsp
nº 759.018-MT, Relator: Rel. Min. Luis Felipe Salomão, publ. em 18 maio 2009).

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PAULA MOURA F. DE LEMOS PEREIRA
A FUNCIONALIZAÇÃO DOS INSTITUTOS DO DIREITO DE VIZINHANÇA NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
469

autor e réu, direito real sobre a coisa demarcanda, prédio rural ou ur-
bano (art. 950 e 967 do CPC);52 (ii) haver contiguidade de prédios; (iii)
haver confusão entre os limites, ou risco de haver confusão entre os
limites dos prédios confinantes, aviventar marcos apagados ou renovar
marcos destruídos.
A confusão de limites gera dúvidas quanto ao delineamento da
linha divisória, o que se resolve mediante a busca de títulos de proprie-
dade para determinar os lindes, os limites entre os prédios. Caso não
seja possível com base no título, fixa-se a linha divisória, demarcando-­se
as fronteiras entre os dois prédios pelo critério previsto no art. 1.298 do
CC, qual seja, o da posse justa. Mas, não havendo prova da posse justa,
reparte-se em partes iguais entre os prédios, ou, não sendo possível a
divisão adequada e vantajosa para ambos, o juiz irá determinar a adju-
dicação da propriedade a um dos imóveis, indenizando o proprietário
vizinho.

3.5 Direito de Construir


O Direito de Construir, de levantar em seu terreno as construções
que entender necessárias, passou por grande evolução ao longo dos

52
Doutrina e jurisprudência incluem como parte legítima, além do proprietário, o enfiteuta,
o usufrutuário, o nu-proprietário, e o usuário, havendo, inclusive julgado conferindo di-
reito ao possuidor. No entanto, em caso de manejo pelo possuidor, a demarcação, segundo
Humberto Theodoro Júnior, seria da posse e não do domínio (Posse e propriedade. São Paulo:
Edição Universitária de Direito, 1985). A respeito do tema merece trazer à baila os seguintes
julgados: Ação Demarcatória – Alegação de Ilegitimidade Ativa – Possuidor de longa data
que busca a aquisição do domínio via usucapião. A ação demarcatória, consoante o artigo
569 do Código Civil de 1916 e artigo 946, I, do Digesto Processual Civil, em regra, caberia
somente ao proprietário do terreno que se quer demarcar. Não se pode, contudo, negar
igual direito ao possuidor de longa data que busca a aquisição do domínio via usucapião,
porque a sentença lá obtida tem caráter declaratório e apenas regulariza uma situação fática
preexistente. Clara é a possibilidade jurídica do pedido demarcatório, estando a discussão
aqui travada adstrita somente a verificar se é possível a sua realização nas dimensões e
formas pretendidas pelos autores, questão que envolve puramente o pano de fundo da
lide (TJSC, Decisão: Ac. unân. da 1ª Câm. de Direito Civil, publ. em 08.06.2007, Recurso:
Ap. Cív. nº 2006.038136-2: Relator: Relª Desª Maria do Rocio Luz Santa Ritta); Ação De-
marcatória – Petição inicial não instruída com o título de propriedade devidamente regis-
trado – Extinção do feito, sem exame do mérito, decretada corretamente em primeiro grau
– Hipótese em que é pressuposto essencial da presente demanda ser o autor proprietário
do imóvel demarcando (arts. 950 do CPC e 1.297 do CC) – Promovente-apelante que, “in
casu”, se apresenta como mero possuidor do imóvel urbano em causa, o que o impede
de deduzir pretensão demarcatoria – Recurso não provido (TJSP, Apelação nº 9192499-
48.2006.8.26.0000, Relator(a): José Carlos Ferreira Alves, Comarca: Juquiá, Órgão julgador:
2ª Câmara de Direito Privado, Data do julgamento: 23.11.2010, Data de registro: 06.12.2010,
Outros números: 0457722.4/8-00, 994.06.030302-1); (STJ, REsp nº 926.755/MG, Recurso Es-
pecial nº 2007/0030681-5, Relator(a) Ministro Sidnei Beneti, Órgão Julgador Terceira Turma,
Data do Julgamento 12.05.2009, DJe, 04 ago. 2009, RSTJ, v. 215, p. 409).

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
470 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

séculos. No ordenamento jurídico pátrio, o Código Civil anterior tra-


tava o Direito de Propriedade como absoluto sob a influência da visão
tradicional, pelo que os limites do direito de construir eram apenas os
direitos de vizinhança e regulamentos administrativos. Os direitos de
vizinhança eram tão somente para resolução dos conflitos particulares
entre dois ou mais indivíduos. A teoria da normalidade era aplicada
no exercício do Direito de Propriedade.
Após a década de 1930, com uma política intervencionista (diri-
gismo econômico), as restrições à propriedade privada estavam mais
atreladas à justiça distributiva e ao bem-estar social. A Constituição
de 1946 previu pela primeira vez a função social da propriedade, e a
Constituição de 1967 inseriu a função social como princípio da ordem
econômica. Com a Constituição de 1988, a função social da propriedade
ganhou status de direito fundamental (art. 5º, XXIII), além de princípio
da ordem econômica (art. 170, II e III), com conteúdo definitivo em rela-
ção às propriedades urbana e rural (arts. 182, 183, 184 e 186). O Direito
de Propriedade ganha uma diversificação de acordo com seu conteúdo
(propriedade pública, social, privada, agrícola, industrial, rural, urbana,
de bens de consumo, de bens de produção, de uso pessoal, de capital),
o que refletirá na sua função.
Essas mudanças influenciaram na forma de análise da tutela do
Direito de Propriedade e do Direito de Vizinhança, com influência direta
no direito de construir por parte do proprietário do imóvel.
O sistema atual garante a liberdade de construir como regra,
mas estabelece restrições, que constituem como exceção (art. 1.299
do Código Civil), inspiradas na solidariedade política, econômica e
so­cial, e no pleno desenvolvimento da pessoa humana, extraindo do
texto constitucional os valores que orientam o exercício do Direito de
Propriedade, arts. 1º e 3º, da CF/88.
Por isso, o direito de construir não pode ser exercido de forma
irrestrita, mas em consonância com sua função social. E, pode ser res-
tringido pela convenção entre as partes; pelas normas do Direito de Vizi-
nhança estabelecidas no Código Civil; por limitações administrativas;53
pela própria função social da propriedade (art. 1.228, §1º, do CC); e
pelos valores que orientam o sistema jurídico.
As limitações administrativas, quando dizem respeito ao direito
de construir, visam: (i) a segurança e defesa nacional (por exemplo,

53
Conforme Hely Lopes Meirelles, “limitação administrativa é toda imposição geral, gratui-
ta, unilateral e de ordem pública, condicionadora do exercício de direitos ou de atividades
particulares às exigências do bem-estar social” (Direito de construir, p. 89).

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PAULA MOURA F. DE LEMOS PEREIRA
A FUNCIONALIZAÇÃO DOS INSTITUTOS DO DIREITO DE VIZINHANÇA NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
471

normas proibitivas de construção em regiões estratégicas); (ii) a cultura


nacional, em particular, o patrimônio histórico e artístico (exemplo:
imodificabilidade das coisas tombadas), a higiene e a saúde pública;
(iii) interesse urbanístico (exemplo: leis de zoneamento, edificações,
taxa de ocupação, gabaritos etc.).
Entre os diversos dispositivos do Código Civil que tratam do
Direito de Construir (arts. 1.299 ao 1.313), destacam-se algumas regras
específicas que estabelecem distâncias legais mínimas para a constru-
ção de edificações em relação aos limites entre imóveis. Como é o caso
dos imóveis rurais que teve a distância mínima a ser mantida entre as
construções vizinhas, e que foi aumentada pelo Código Civil de 2002,
pelo que devem observar o afastamento de três metros do terreno
vizinho (art. 1.303 do CC); e nos imóveis urbanos: (a) o de não poder
abrir janela, terraço ou varanda, a menos de 1 metro e meio do terreno
vizinho (art. 1.301 do CC);54 (b) 75 cm para as janelas perpendiculares
e aquelas cuja visão não incida sobre a linha divisória (art. 1.301, §1º,
do CC);55 (c) aberturas menores (menos de 10 por 20cm) para luz ou
ventilação devem estar a mais de dois metros de altura de cada piso
(art. 1.301, §2º, do CC).
O objetivo desta regra é garantir a privacidade (art. 5º, X, da CF;
art. 21 do CC), evitar que se devasse o prédio vizinho, tanto no aspecto
visual como no auditivo, permitindo uma convivência harmônica e
pacífica entre os proprietários de imóveis muito próximos.
Em caso de inobservância das normas, o prejudicado pode pro-
por ação de nunciação de obra nova se a construção estiver em curso,
podendo requerer liminarmente para obstar o prosseguimento da obra
(art. 934 do CPC), e, se já terminou a obra, cabe ação demolitória, desde
que proposta no prazo decadencial de um ano e dia após sua conclusão
(art. 1.302 do CC).56 Do contrário, a lei também faculta erguer contra-

54
Súmula nº 120 do STF: “Parede de tijolos de vidro translúcido pode ser levantada a menos
de metro e meio do prédio vizinho, não importando servidão sobre ele”. De acordo com a
doutrina, essa súmula continua sendo aplicada, está de acordo com o Código Civil de 2002.
Os tijolos de vidro possibilitam a iluminação interna, a passagem de luz, sem devassamen-
to, garantindo a privacidade.
55
Súmula nº 414 do STF: “Não se distingue a visão direta da oblíqua na proibição de abrir
janela, ou fazer terraço, eirado, ou varanda, a menos de metro e meio do prédio de outrem”.
Essa súmula de acordo com a doutrina não mais persiste, até mesmo pelo disposto no
art. 1.301, §1º, do Código Civil.
56
A contagem do prazo, segundo Francisco Eduardo Loureiro, é da data da expedição do
habite-se pela autoridade administrativa, e não da abertura da janela ou terraço, e se conta
na forma do art. 132 do CC, excluindo o dies a quo e computando-se o dies ad quem (PELUSO
(Coord.). Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.01.2002:
contém o Código Civil de 1916).

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
472 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

muro para evitar o devassamento, observadas as medidas previstas no


art. 1.301 do Código Civil. Essa faculdade concedida ao vizinho pre-
judicado constitui inovação do Código Civil de 2002, e a ratio legis é
assegurar o direito do proprietário prejudicado de construir até a linha
divisória, sem que isso implique em acarretar outros danos ao vizinho,
mesmo que este tenha desrespeitado a limitação legal, até porque a lei
sempre assegura a privacidade, direito fundamental da pessoa humana.
A perda do prazo de um ano e dia para reclamar, apesar de ga-
rantir ao vizinho o direito de erguer o referido contramuro, observada
a distância legal para abertura de janelas, terraço, varanda,57 remete
à indagação quanto à existência ou não de servidão de luz em favor
daquele que construiu em desacordo com a distância mínima legal.
Na vigência do Código Civil de 1916, a matéria já era controversa,
sendo que a maioria da doutrina defendia a existência de servidão de
luz em favor daquele que construiu fora dos limites legais pelo decurso
do tempo e da não impugnação pelo outro vizinho no prazo legal de
ano e dia. Dessa forma, o vizinho não poderia erguer construção em
seu terreno que vedasse a abertura de janela. Todavia, algumas vozes,
como a de Pontes de Miranda,58 se inclinavam no sentido da possibi-
lidade de construção no terreno mesmo que em prejuízo da janela do
vizinho59 que não respeitou a distância de metro e meio prevista em
lei (art. 573, 576 do CC).
Para os que defendem, mesmo na vigência do Código anterior,
o direito à construção do contramuro poderia até mesmo vedar a cla-
ridade60 do vizinho.

57
Direito de vizinhança. Demolitória. Construção realizada com apoio em parede divisória
sem autorização do confinante. Aplicação do prazo previsto no art. 1.302 do CC. Descabi-
mento. Situação de fato que não se enquadra nas hipóteses arroladas por referido dispo-
sitivo, o qual estabelece disciplina especial e, portanto, deve ser interpretado estritamente.
Decadência afastada. Capacidade da parede divisória de escorar a nova construção. Prova.
Ausência. Oportunidade de produção. Inexistência. Cerceamento de defesa. Reconheci-
mento. Recurso provido (TJSP Apelação nº 992070205450 (1120141000) Relator(a): Nestor
Duarte Comarca: Araraquara Órgão julgador: 34ª Câmara de Direito Privado Data do jul-
gamento: 14.12.2009 Data de registro: 14.01.2010).
58
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado: parte especial: direito das coisas:
loteamento: direitos de vizinhança, p. 398-400.
59
TJSP, Decisão: unân. da 2ª Câm. Cív., publ. na RJTJSP, n. 135/243, Recurso: Ap nº 149.621-1,
Relator: Des. Urbano Ruiz, Partes: Vera Maria Pípolo Vaghetti x José Migliorini.
60
Apelação Cível. Direito de vizinhança. Ação de nunciação de obra nova. Janela aberta a
menos de um metro e meio da divisa entre imóveis. O fato de o vizinho não ter se oposto,
no prazo de ano e dia, à abertura de janela para seu imóvel, a menos de um metro e meio da
divisa, não faz surgir uma servidão de luz. Pensar de modo contrário atentaria ao Direito
de Propriedade. Correta, portanto, a sentença que permitiu ao confrontante construir rente
à divisa, embora inutilizando a janela do seu vizinho. Inteligência do art. 1.302, parágrafo

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PAULA MOURA F. DE LEMOS PEREIRA
A FUNCIONALIZAÇÃO DOS INSTITUTOS DO DIREITO DE VIZINHANÇA NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
473

No entanto, como já dito, a construção deverá respeitar a dis-


tância legal, já que a sua inércia não poderá repercutir danosamente
na titularidade do outro vizinho.
Gustavo Tepedino61 fala em servidão de janela, direito real de
respeitar a distância legal entre a janela e as novas construções lindei-
ras, em favor de quem construiu irregularmente. Por isso, caso não
propostas as medidas cabíveis para obstar ou desfazer a obra irregular
no prazo legal, não pode o prejudicado pura e simplesmente vedar a
janela ali aberta, levantando um contramuro. O prejudicado terá de
respeitar os 75cm para a nova construção e não poderá abrir janelas,
terraços, varandas ou eirados a menos de 1,5m da linha divisória, sob
a alegação de que o vizinho não observou tal regra.62 Ou seja, criou-se,
agora, a servidão de janela63 pela inoperância do vizinho no exercício
da ação demolitória.
A jurisprudência não é pacífica a respeito do tema, havendo de-
cisões divergentes quanto à instituição de servidão de luz,64 inclusive,

único, do Código Civil (TJRJ, 0000670-62.2007.8.19.0010 (2009.001.03993) – Apelação. Des.


Antonio Iloizio B. Bastos – Julgamento: 14.04.2009 – Décima Segunda Camara Civel).
61
TEPEDINO. Os direitos reais no novo Código Civil. In: ANAIS dos seminários EMERJ
debate o novo Código Civil, p. 168-176.
62
Agravo de Instrumento. Ação Cautelar. Liminar. Indeferimento por ofensiva a direito de
vizinhança. Pedido de permissão de continuidade à construção de telhado que cobriria
a janela do vizinho, fundando no art. 1032, parágrafo único, do CC. Agravante-autor que
é proprietário de imóvel localizado na parte térrea, onde construiu acréscimo e sobre ele
instalou caixa d’água, a qual se encontra no nível da janela do prédio do andar superior,
pretendendo, agora, construir telhado para cobrir a caixa d’água que já ultrapassa os limites
de sua propriedade, em atuação que nitidamente extrapola seu direito de construir, previs-
to no art. 1299 do CC, eis que não respeita o direito de seus vizinhos, o que torna inaplicável
a norma do art. 1302, parágrafo único, do NCC. Decisão que merece ser mantida por seus
próprios fundamentos. Induvidosa ausência de fumus boni iuris. Inteligência do verbete su-
mular nº 58 do TJRJ. Recurso em confronto com súmula deste Tribunal de Justiça. Art. 557,
caput, do CPC. Negativa de seguimento (TJRJ 0029188-92.2007.8.19.0000 (2007.002.24654)
– Agravo de Instrumento – Des. Celia Meliga Pessoa – Julgamento: 21.11.2007 – Décima
Oitava Câmara Cível).
63
[...] Janela – Abertura – Código Civil, Art. 576. Não se opondo o proprietário, no prazo de
ano e dia, a abertura de janela sobre seu prédio, ficará impossibilitado de exigir o desfa-
zimento da obra, mas daí não resulta em servidão (REsp nº 37.897/SP, Recurso Especial
1993/0023273-8, Relator(a) Ministro Eduardo Ribeiro, Órgão Julgador Terceira Turma, Data
do Julgamento 01.04.1997, Data da Publicação/Fonte. DJ, p. 67.489, 19 dez. 1997; RSTJ,
v. 103, p. 161).
64
Nunciação de obra nova. Abertura de janela. Não se opondo o proprietário, no prazo de
ano e dia, à abertura de janela sobre seu prédio, ficará impossibilitado de exigir o desfazi-
mento da obra, mas daí não resulta seja obrigado ao recuo de metro e meio ao edificar nos
limites de sua propriedade (STJ, REsp nº 229.164/MA, Recurso Especial nº 1999/0080312-4,
Relator(a) Ministro Eduardo Ribeiro, Órgão Julgador Terceira Turma, Data do Julgamento
14.10.1999, DJ, p. 90, 06 dez. 1999, JSTJ, v. 13, p. 252; LEXSTJ, v. 128, p. 240; RSTJ, v. 127,
p. 282; STJ, REsp nº 34.864/SP). Direitos de vizinhança. Artigos 573, par-2. e 576 do Código

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
474 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

antes da vigência do Código Civil de 2012. No entanto, com a nova


disposição minimizou a divergência.

3.6 Direito de Penetração


Outro direito que afeta o pleno exercício da propriedade e decorre
do dever recíproco do Direito de Vizinhança é o Direito de Penetração,
pelo qual o proprietário ou ocupante do imóvel é obrigado a tolerar a
entrada de algumas pessoas no seu imóvel (art. 1.313 do CC). Restrin-
gir-se-á o Direito de Propriedade, permitindo que o vizinho utilize o
prédio alheio no seu interesse, mas com o fim de conservação, limpeza,
segurança e saúde dos vizinhos.
As hipóteses de ingresso na propriedade alheia estão previstas
na lei, quais sejam: (i) para apoderar-se de coisas suas, inclusive ani-
mais, que se encontrem no prédio vizinho, desde que o vizinho não
se disponha a buscá-los e entregá-los ao dono; e (ii) para promover

Civil. – Vencido o prazo de ano e dia estipulado no art. 576 do Código Civil, o confinante
prejudicado não pode exigir que se desfaça a janela, sacada, terraço ou goteira, mas não
fica impedido de construir no seu terreno com distância menor do que metro e meio, ainda
que a construção prejudique ou vede a claridade do prédio vizinho. – Ausência de servi-
dão. – Recurso não conhecido (STJ, Recurso Especial nº 1993/0012712-8, Relator(a) Ministro
Antonio Torreão Braz, Órgão Julgador Quarta Turma, Data do Julgamento 13.09.1993, DJ,
p. 20557, 04 out. 1993, LEXSTJ, v. 54, p. 302; RDC, v. 75, p. 158); Permite: Apelação Cível.
Propriedade e direitos reais sobre coisas alheias. Reivindicatória. Servidão de luz. Abertura
de janelas a menos de metro e meio do limite da propriedade lindeira. Ausência de oposição
no prazo de ano e dia. Omissão que não inibe o proprietário de edificar nos limites de sua
propriedade. Redação do art. 1.302 do código civil atual que não alterou o disposto no §2º
do art. 573 do Código Civil de 1916. A ausência de oposição, pelo proprietário, no prazo
de ano e dia, à abertura de janela com inobservância do limite legal, tem o efeito de obstar
o direito ao desfazimento da obra. Todavia, a omissão não o inibe de edificar nos limites
de sua propriedade, ainda que eventualmente acarrete vedação de claridade ao vizinho.
Precedentes do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, assim como
deste Órgão Fracionário. Servidão aparente. Exercício contínuo e incontestado, pelo prazo
legal, não comprovado. Ausência de justo título. Exegese do parágrafo único do art. 1.379
do Código Civil. Uso contínuo de passagem de luz, pelo prazo de lei, não demonstrado.
Pedido de uniformização de jurisprudência. Art. 476 do CPC. Desacolhimento. O pedido de
uniformização de jurisprudência constitui faculdade do julgador, não lhe sendo obrigatória
a sua arguição, ainda que verificada divergência de entendimento na jurisprudência das
diversas Câmaras do Tribunal. Conveniência e oportunidade da medida não constatadas.
Precedentes. Recurso de apelação ao qual se nega provimento. Unânime (TJRS, Apelação
Cível nº 70043172451, Décima Oitava Câmara Cível, Relator: Pedro Celso Dal Pra, Julgado
em 30.06.2011); Declaratória de Servidão. Demolitória. Muro construído na divisa de imó-
veis lindeiros. Servidão de luz. Inexistência. Abertura de janelas a menos de metro e meio da
divisa do terreno. Autorização pelo proprietário do imóvel vizinho. Ausência de oposição,
no prazo de ano e dia, que não inibe o proprietário de edificar nos limites de sua proprie-
dade. Interpretação dos arts. 573, §2º, e 576, CCB/1916. Precedentes. Negaram provimento
(TJRS, Apelação Cível nº 70040369662, Décima Nona Câmara Cível, Relator: Carlos Rafael
dos Santos Júnior, Julgado em 31.01.2012).

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PAULA MOURA F. DE LEMOS PEREIRA
A FUNCIONALIZAÇÃO DOS INSTITUTOS DO DIREITO DE VIZINHANÇA NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
475

a reparação, construção, reconstrução ou limpeza de sua casa ou do


muro divisório (exemplo: limpeza e reparação de esgotos, goteiras,
aparelho higiênico, poços, nascentes e aparo de cerca viva, infiltrações
em apartamentos vizinhos).
A penetração decorre da ponderação de valores; de um lado, se
restringe o direito de um para permitir a exploração e a utilização da
propriedade imobiliária. No entanto, essa penetração deve ser temporá-
ria, perdurar apenas enquanto necessária para o ato, e, uma vez cessada
a causa prevista em lei, nasce automaticamente o dever de retirar-se do
imóvel alheio, sob pena da permanência configurar turbação ou esbu-
lho. Além disso, deve ocorrer mediante prévio aviso e ser indispensável
para o ingresso na propriedade vizinha, ser indispensável.
Há divergência quanto à necessidade de anuência65 prévia por
parte do vizinho ou se basta prévia ciência, já que a lei se refere ao aviso
prévio. O melhor entendimento é o que não admite a autotutela, pois
difere do que ocorre no disposto no art. 1.210, §1º, do CC, comporta
tutela específica (art. 461 do CPC). Assim, no caso de corte de sebes
vivas, árvores, ou plantas só podem ser cortadas com prévio consenso
entre os vizinhos (art. 1.297, §2º, do Código Civil).
O Direito de Penetração, como bem acentua Caio Mário da
Silva Pereira,66 traz à baila a aplicação da técnica da ponderação de
interesses,67 pois deve haver proteção do sossego e tranquilidade daque-
le que tem de tolerar a entrada do vizinho em sua propriedade. Conciliar
com a escolha de horário, local e duração. Evitar mera emulação, sob
pena de dar ensejo à obrigação de reparar eventuais danos causados
com o ingresso no imóvel vizinho.

4 Conclusão
O Direito Vicinal estabelece restrições ao Direito de Propriedade,
a fim de propiciar um pacífico uso da propriedade imóvel, adequando
a utilização social dos prédios com a segurança, o sossego, e a saúde
dos vizinhos.
O Código Civil regula o Direito de Vizinhança, como amplamente
abordado, por meio de normas gerais, cláusulas gerais, conceitos jurídi-
cos indeterminados que dão contornos às hipóteses de interferências na

65
PELUSO (Coord.). Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência: Lei n. 10.406, de
10.01.2002: contém o Código Civil de 1916.
66
PEREIRA. Instituições de direito civil: direitos reais.
67
SARMENTO. A ponderação de interesses na Constituição.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
476 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

propriedade vizinha e ao próprio uso, gozo e fruição da propriedade,


e normas específicas, que tipificam algumas situações em que se confe-
rem direitos e deveres aos proprietários e/ou possuidores vizinhos. É o
caso das árvores limítrofes, dos prédios encravados ou com restrições
para passagem de cabos e tubulações, do uso de tapumes e demarca-
ção dos prédios, e das construções. Em cada um desses institutos há
salvaguarda de um direito fundamental da pessoa humana que está
por trás da relação vicinal.
As condutas dos vizinhos devem estar dentro dos limites de
tolerância, permitindo-se interferências desde que atendidas as normas
de vizinhança de ordem pública e privada. Esses limites de tolerância
variam em conformidade com o tempo e espaço, não havendo como
definir de antemão quais são as condutas nocivas ao vizinho e afetam
seus direitos básicos.
Nesse contexto, assevera-se o papel dos operadores de direito e
da jurisprudência na avaliação dos casos concretos quanto à observância
e inobservância das normas de vizinhança se o uso da coisa é ou não
nocivo. A análise dos fatos deve observar a técnica da ponderação de
interesses de forma a conciliar o direito ao pleno uso da propriedade
(art. 5º, XXII, da CF), com os direitos dos vizinhos à privacidade, à
intimidade, à incolumidade física e psíquica, entre outros direitos
fundamentais que podem ser afetados na relação de vizinhança. A
interpretação deve ocorrer em conformidade com a função social da
propriedade, com os princípios da solidariedade social, da igualdade,
da dignidade da pessoa humana.
É com base na ordem constitucional vigente que deve ser lido e
aplicado o Direito de Vizinhança, que condiciona o uso da propriedade
ao pleno desenvolvimento urbano e, especialmente, da pessoa humana.

Referências
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ao Ministro José Carlos Moreira Alves. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
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A FUNCIONALIZAÇÃO DOS INSTITUTOS DO DIREITO DE VIZINHANÇA NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
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478 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

PEREIRA, Paula Moura F. de Lemos. A funcionalização dos institutos do direito


de vizinhança no Código Civil de 2002. In: EHRHARDT JR., Marcos (Coord.).
Os 10 anos do Código Civil: evolução e perspectivas. Belo Horizonte: Fórum,
2012. p. 447-478. ISBN 978-85-7700-616-8.

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O CALVÁRIO DO §2º DO
ART. 1.276 DO CÓDIGO CIVIL
VIDA E MORTE DE UM MALFADADO DISPOSITIVO
LEGAL A PARTIR DE UMA INTERPRETAÇÃO
CONSTITUCIONAL

CRISTIANO CHAVES DE FARIAS

Não sou escravo de ninguém


Ninguém é senhor do meu domínio
Sei o que devo defender...
Minha terra é a terra que é minha
E sempre será minha terra
Tem a lua, tem estrelas e sempre terá
(Legião Urbana)

1 Colocação do problema
A mudança do vetor de compreensão do Direito Privado, que
passa por um movimento de adaptação aos ventos que sopram do
elevado planalto constitucional, vem causando profundos impactos
na civilística brasileira, seja sob o aspecto material, seja sob o formal.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
480 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Impõe-se ao civilista contemporâneo (em atitude não vista


quando da vigência do Código Civil de 1916) descortinar a estrutura
endógena de institutos contidos no Código Civil de 2002, analisando
(mais do que a sua finalidade e a sua ratio essendi) a sua compatibilidade
com a tábua axiológica da Constituição da República de 1988. Enfim, é
tarefa do jurista de um novo tempo promover uma filtragem em insti-
tutos jurídicos diversos (muitos deles remontando a priscas eras) para
garantir a concretização da norma constitucional.
O instituto da perda da propriedade pelo não pagamento de
tributos (previsto no art. 1.276, §2º, da Codificação de 2002)1 não pode
ser subtraído dessa operação, pena de subversão hermenêutica.
Nessa ordem de ideias, é o momento de engendrar uma acura-
da análise desse instituto, submetendo-o à legalidade constitucional
e assegurando uma interpretação construtiva e concretista da norma
constitucional.

2 A necessidade de uma interpretação sistêmica da


Constituição e a inexistência de direitos fundamentais
absolutos
Os estudos mais recentes no âmbito do Direito Constitucional
vêm percebendo que, especialmente aquelas promulgadas em espaços
democráticos, as Cartas Constitucionais consubstanciam um produto
dialético resultante da combinação de diferentes ideologias, interesses
e crenças.
A partir dessa multiplicidade de concepções ideológicas, não
se apresenta rara a possibilidade de tensão, colisão, entre diferentes
normas constitucionais, impondo-se, por conseguinte, a busca de uma
unidade na interpretação constitucional.
Esclarece Luís Roberto Barroso não ser a Constituição “um con-
junto de normas justapostas, mas um sistema normativo fundado em
determinadas idéias que configuram um núcleo irredutível, condicio-
nante da inteligência de qualquer de suas partes”. Por isso, exsurge,

1
Art. 1.276, CC: “o imóvel urbano que o proprietário abandonar, com a intenção de não mais
o conservar em seu patrimônio, e que se não encontrar na posse de outrem, poderá ser ar-
recadado, como bem vago, e passar, três anos depois, à propriedade do Município ou à do
Distrito Federal, se se achar nas respectivas circunscrições. §1º O imóvel situado na zona
rural, abandonado nas mesmas circunstâncias, poderá ser arrecadado, como bem vago, e
passar, três anos depois, à propriedade da União, onde quer que ele se localize. §2º Presumir-­
se-á de modo absoluto a intenção a que se refere este artigo, quando, cessados os atos de posse, deixar o
proprietário de satisfazer os ônus fiscais”.

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CRISTIANO CHAVES DE FARIAS
O CALVÁRIO DO §2º DO ART. 1.276 DO CÓDIGO CIVIL – VIDA E MORTE DE UM MALFADADO ...
481

com invulgar relevância, o princípio interpretativo da unidade da


Constituição, como especificação da interpretação sistemática, impondo
“o dever de harmonizar as tensões e contradições entre normas”, atra-
vés da “grande bússola da interpretação constitucional: os princípios
fundamentais, gerais e setoriais inscritos ou decorrentes da Lei Maior”.2
Ora, decorrendo de uma vontade unitária e geradas no mesmo
momento, as normas constitucionais não podem estar em conflito
ideológico no momento de sua concretização, razão pela qual sobre-
leva alcançar a conciliação entre eventuais tensões (proposições com
aparência de antagonismo) para respeitar o espírito (no nosso caso,
garantista!) da Lex Fundamentallis.3
É o que se extrai da sempre oportuna lição de Dirley da Cunha
Júnior, eminente constitucionalista baiano: “é necessário, portanto,
haver uma relação de conciliação ou de ponderação ou concordância
prática entre os direitos fundamentais concretamente em conflito,
balanceando-se, através de um juízo de proporcionalidade, os valores
em disputa, num esforço de harmonização, de modo que não acarrete o
sacrifício definitivo de algum deles. Isso significa que a restrição de um
direito fundamental só é possível in concreto, atendendo-se a regra da
máxima observância e mínima restrição dos direitos fundamentais. Não
há a mínima possibilidade de se limitar um direito fundamental em
abstrato. Vale dizer, os limites aos direitos fundamentais não podem
ocorrer em nível abstrato, mas unicamente em nível concreto. Ademais,
há uma ordem excepcional de limitações constitucionais dos direitos
fundamentais, que podemos chamar de limitações circunstanciais, pois
dizem respeito às restrições impostas circunstancialmente durante si-
tuações constitucionais de crise, por ocasião da decretação dos estados
de sítio e de defesa”.4

2
BARROSO. Interpretação e aplicação da Constituição, p. 196.
3
Colhe-se interessante precedente na jurisprudência fluminense, prestigiando a tese aqui
esposada. Veja-se: “sempre que princípios constitucionais aparentam colidir, deve o intér-
prete procurar as recíprocas implicações existentes entre eles até chegar a uma inteligência
harmoniosa, porquanto, em face do princípio da unidade constitucional, a Constituição não
pode estar em conflito consigo mesma, não obstante a diversidade de normas e princípios
que contém. Assim, se ao direito à livre expressão da atividade intelectual e de comunicação
contrapõem-se o direito à inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da ima-
gem segue-se como conseqüência lógica que este último condiciona o exercício do primeiro,
atuando como limite estabelecido pela própria Lei Maior para impedir excessos e abusos”
(TJ/RJ, Ap. Cív. nº 29.708-01, rel. Des. Sérgio Cavalieri Filho, DOERJ, p. 352, 29 ago. 2002).
4
CUNHA JUNIOR. Controle judicial das omissões do Poder Público: em busca de uma dogmá-
tica constitucional transformadora à luz do direito fundamental à efetivação da Constitui-
ção, p. 223-224.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
482 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

A partir dessa interpretação sistêmica (almejando a unidade


da Constituição), dessome-se, com clareza meridiana, a inexistência
de superioridade, assim como a inexistência de caráter absoluto (não
relatividade) nas normas constitucionais, vislumbrando uma natural
limitabilidade.
Não há, enfim, direito fundamental absoluto, decorrendo, de
modo sistemático, a sua relatividade, em razão da possibilidade de
limitação recíproca a partir de um juízo de ponderação entre os valores
colidentes.5
É de se rejeitar, assim, toda e qualquer tentativa de conferir pri-
mazia a um determinado valor constitucional em detrimento de outro.
É certo — e isso não se põe em dúvida — que os diferentes valores
magnos ganham efetividade como um todo, harmonizando-se, sem
que um venha a aniquilar o outro.
No que tange à matéria focalizada, é mister destacar que a fun-
ção social da propriedade, como valor constitucional que é, tem de se
harmonizar com outros valores assentados na mesma sede, como o
devido processo legal, a vedação ao confisco etc.

3 A compreensão dos institutos e dispositivos do


Código Civil conforme a norma constitucional
Afastando-se de um histórico caráter neutro e indiferente
socialmente, a Carta Constitucional de 1988 deixou de cuidar, apenas,
da organização política do Estado, para avizinhar-se das necessidades
humanas reais, concretas, ao cuidar de direitos individuais e sociais.
Trata-se, sem dúvida, da afirmação de uma nova e fecunda teoria
constitucional. Com isso, ocorreu uma verdadeira migração dos
princípios e regras atinentes às instituições privadas (historicamente
tratadas exclusivamente no Código Civil) para o Texto Constitucional.
Assumiu a Magna Carta um papel centralizador, passando a demarcar
o território do Direito Civil.6

5
Já se disse, não sem razão, que “não há direitos fundamentais absolutos. Isto porque ‘hay un
principio válido para todos los derechos reconocidos en la Constitución: ellos nunca son absolutos, sino
pueden ser siempre reglamentados por las leyes por razón de bien común’. São, em essência, direitos
relativos e, conseqüentemente, limitáveis. Essa possibilidade de limitação dos direitos fun-
damentais é recíproca, de modo que um direito pode, in concreto, limitar o exercício do ou-
tro”, conforme a advertência de Dirley da Cunha Júnior, buscando inspiração em Humberto
Quiroga Lavié (Controle judicial das omissões do Poder Público: em busca de uma dogmática
constitucional transformadora à luz do direito fundamental à efetivação da Constituição,
p. 223-224).
6
Chegam a uma idêntica conclusão: Orlando Gomes (Novos temas de direito civil, p. 46); Gustavo
Tepedino (Temas de direito civil, p. 7); Luiz Edson Fachin (Teoria crítica do direito civil, p. 21 et
seq.); e Pietro Perlingieri (Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional, p. 4).

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CRISTIANO CHAVES DE FARIAS
O CALVÁRIO DO §2º DO ART. 1.276 DO CÓDIGO CIVIL – VIDA E MORTE DE UM MALFADADO ...
483

Até mesmo porque o Código Civil não pode, em face de sua posi-
ção hierarquicamente inferior, promover, através de princípios estáveis,
as necessidades do homem (pós)moderno. A Constituição da República,
então, apresenta novos valores, informando e fundamentando as rela-
ções privadas, fincando, por conseguinte, as vigas de sustentação do
sistema de Direito Privado, reunificando o sistema civilista.7
Não se pense, entretanto, que institutos do Direito Civil foram
deslocados para o Direito Público, em atividade migratória. Não se
trata disso. Apenas mereceram regulamentação em sede constitucional,
sofrendo alteração em seu conteúdo.
“O Código Civil perde, assim, definitivamente, o seu papel de
Constituição do Direito Privado. Os textos constitucionais, paulatina-
mente, definem princípios relacionados a temas antes reservados ex-
clusivamente ao Código Civil e ao império da vontade: a função social
da propriedade, os limites da atividade econômica, a organização da
família, matérias típicas do direito privado, passam a integrar uma nova
ordem pública constitucional. Por outro lado, o próprio direito civil,
através da legislação extracodificada, desloca sua preocupação central,
que já não se volta tanto para o indivíduo, senão para as atividades por
ele desenvolvidas e os riscos delas decorrentes”, conforme a lição de
Gustavo Tepedino.8 Na mesma direção, Perlingieri expõe: “o Código
Civil certamente perdeu a centralidade de outrora. O papel unificador
do sistema, tanto nos seus aspectos mais tradicionalmente civilísticos
quanto naqueles de relevância publicista, é desempenhado de maneira
cada vez mais incisiva pelo Texto Constitucional. Falar de descodificação
relativamente ao Código vigente não implica absolutamente a perda
do fundamento unitário do ordenamento, de modo a propor a sua
fragmentação em diversos microordenamentos e em diversos micros-
sistemas, com ausência de um desenho global... O respeito aos valores
e aos princípios fundamentais da República representa a passagem
essencial para estabelecer uma correta e rigorosa relação entre poder
do Estado e poder dos grupos, entre maioria e minoria, entre poder
econômico e os direitos dos marginalizados, dos mais desfavorecidos”.9
Importante salientar que a constitucionalização do Direito Civil
não implica em (simplesmente) estabelecer limites externos à atividade

7
As ideias sobre o tema, defendendo a interpretação constitucional de todos os institutos de
Direito Civil, são coligidas, especialmente, de: FARIAS; ROSENVALD. Direito civil: teoria
geral, especialmente, p. 23 et seq. Milton Santos em seu A natureza do espaço
8
TEPEDINO. Temas de direito civil, p. 7.
9
PERLINGIERI. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional, p. 6.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
484 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

privada. Não se trata apenas disso. É muito mais. A Constituição Federal


de 1988 impôs uma releitura dos institutos fundamentais do Direito
Civil, em razão de tê-los reformulado internamente, em seu conteúdo,
em seu âmago.
Cuida-se, pois, de uma alteração na estrutura intrínseca dos
institutos e conceitos fundamentais de Direito Civil, reoxigenando-os
e determinando a necessidade de uma redefinição de seus contornos,
à luz da nova tábua valorativa determinada pela Constituição Cidadã.
Em linha de coerência com o que se afirma, é de se perceber que
a simples interpretação das normas civis (e, por conseguinte, a busca
da solução para os seus problemas atuais) reclama adequação aos
princípios constitucionais e à valorização existencial da pessoa humana.
Exige-se uma interpretação afinada com o toque da dignidade humana
e da igualdade substancial. Do contrário, haverá verdadeira negação da
norma constitucional, subvertendo o sistema.
Assim, se determinada norma civil se apresenta em rota de
colisão com os valores constitucionais, impõe-se o seu imediato afas-
tamento, expurgada do sistema pela incompatibilidade com a Lei
Maior — que é condição de validade para a admissibilidade de toda
e qualquer norma.
Percebe-se, pois, que o Texto Constitucional, sem sufocar a vida
privada, conferiu maior eficácia aos institutos fundamentais do Direito
Civil, revitalizando-os, à luz de valores fundamentais aclamados como
garantias e direitos fundamentais do cidadão.10 Houve uma redefinição
das categorias jurídicas fundamentais do Direito Civil, inclusive da
propriedade, a partir dos fundamentos principiológicos constitucio-
nais, particularmente da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), da
solidariedade social (art. 3º, III) e da igualdade substancial (arts. 3º e 5º).
Ou seja, a Constituição promoveu uma alteração interna, modificando
a estrutura, o conteúdo, das categorias jurídicas civis e não apenas
impondo limites externos.
Tomando como exemplo o direito de propriedade, vê-se que ao
impor uma função social à propriedade privada (arts. 5º, XXII e XXIII, e
170, III), o constituinte não está apenas limitando o exercício da (histó-
rica) propriedade privada, talhada no liberalismo oitocentista, porém
transcendendo as velhas ideias postas, exigindo uma nova compreensão
da propriedade privada, a partir dos valores sociais e humanitários

10
TEPEDINO. Normas constitucionais e relações de direito civil na experiência brasileira.
Studia Ivrídica – Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, p. 340.

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CRISTIANO CHAVES DE FARIAS
O CALVÁRIO DO §2º DO ART. 1.276 DO CÓDIGO CIVIL – VIDA E MORTE DE UM MALFADADO ...
485

apresentados pela Constituição. Enfim, está afirmado, em sede cons-


titucional, que o conteúdo da propriedade privada é a própria função
social, não merecendo proteção a propriedade que não atender ao seu
fundamento de validade estabelecido constitucionalmente.

4 Noções gerais sobre a perda da propriedade pelo


abandono
O abandono da propriedade é o ato material pelo qual o pro-
prietário se desfaz da coisa porque não quer mais ser seu dono. Ato
distinto da renúncia, o abandono deve resultar de atos exteriores que
atestem a manifesta intenção de abandonar, sendo insuficiente o mero
desprezo físico pela coisa, se não acompanhado de sinais evidentes do
ânimo de abdicar da propriedade.
Em palavras mais claras: o mero desuso não importa em aban-
dono, sendo necessária a sua conjugação ao elemento psíquico, na
perquirição do real interesse do titular de se desfazer da propriedade.
Por tais razões, acaba se tornando redundante a primeira parte do art.
1.276 da Codificação ao qualificar como abandonado o imóvel cujo
titular tenha a “intenção de não mais o conservar em seu patrimônio”.11
Nessa medida, é certo e incontroverso que o proprietário tem a
prerrogativa de usar e fruir da coisa, e nesta encontra-se compreendida
a liberdade de não utilizá-la, como no comum exemplo do proprietário
de uma casa de praia que apenas a visita em férias, uma ou duas vezes
ao ano. Não há, aqui, de se cogitar de abandono e, por conseguinte, de
perda da propriedade.12
Exatamente por isso, assiste razão a Marco Aurélio Viana quando
assevera ser difícil precisar a intenção quando se cuida de bem imóvel,
pois “o simples fato de uma pessoa fechar a sua casa não implica aban-
dono. Ele não se presume, devendo resultar de atos que virtualmente
o contenham”.13

11
Nessa esteira, Beatriz Areán leciona que o abandono é um modo unilateral de perda da pro-
priedade que não deve ser confundido com a falta de exercício. E expõe, em tradução livre:
“como não existe um dever jurídico de manter o exercício mediante uma vigília permanen-
te, o silêncio ou a inação não podem ser interpretados como uma expressão de vontade de
abandonar. Por outra parte, sendo o abandono um fato excepcional, não se presume. Exige-­
se uma manifestação de vontade espontânea e clara, categórica, devendo ser interpretada
restritivamente” (Derechos reales, p. 370).
12
O exemplo foi pinçado de nossa obra sobre os direitos reais, para a qual se remete o leitor
para maior aprofundamento do tema: FARIAS; ROSENVALD. Direitos reais, p. 328 et seq.
13
VIANA. Comentários ao novo Código Civil, p. 201.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
486 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

É de grande relevo destacar que, de acordo com a dicção do


art. 1.276 do Código Civil, o imóvel abandonado poderá ser arrecadado,
como bem vago, passando, após três anos, para a titularidade do Poder
Público14 municipal, ou do Distrito Federal, (quando situado em área
urbana) ou federal (se localizado em zona rural).15
Convém sublinhar que o momento em que se consubstancia a
perda da propriedade imobiliária pelo abandono com a sua constatação,
tornando-se o imóvel res nullius,16 até a sua eventual apropriação pelo
Poder Público, após o decurso do prazo apontado em lei. Aliás, basta
perceber que o próprio Código Civil é de clareza solar ao estabelecer
como perda da propriedade o abandono, explicitando a sua intenção. Se
assim não fosse, seria intuitivo que indicaria como causa de supressão
da propriedade não o abandono, mas a “arrecadação do bem”.
O abandono dispensa a formalidade do registro. No entanto,
a eficácia da perda da propriedade perante a coletividade só poderá
ocorrer quando a titularidade no Cartório de Imóveis for alterada pela
inserção do nome de um novo proprietário. Ou seja, enquanto este mo-
mento não se consuma, “o abandono da propriedade não tem eficácia
completa, erga omnes.17 Proprietário é para terceiros, quem consta do
livro fundiário”.18
Não é despiciendo o registro de que, considerando não ser o mero
decurso do tempo suficiente para transferir o bem abandonado ao domí-
nio público (sendo indispensável proceder à arrecadação judicial), nada

14
Também o Direito argentino prevê a possibilidade de arrecadação pelo Estado dos imóveis
abandonados, conforme previsão do Código Civil portenho, art. 2.342, incs. 1º e 3º. A res-
peito do procedimento, veja-se: AREÁN. Derechos reales, p. 371 et seq.
15
Conquanto a regra sub occulis não esclareça, expressamente, se o critério para a aferição da
propriedade como urbana ou rural é o da destinação ou da localização, em precisa inter-
pretação, sintonizada com os institutos do usucapião (arts. 183 e 191 da CF/88) e da tribu-
tação (IPTU ou ITR), é possível afirmar, com tranquilidade, que é a localização do imóvel o
fato distintivo para determinar a atuação da União ou do município para o procedimento
da referida arrecadação. Isto é, basta verificar se pelo plano diretor (ou pela lei municipal)
o imóvel localiza-se na área urbana ou urbanizável. Naturalmente, será considerado rural
por exclusão, quando não se tratar de imóvel urbano, hipótese em que a arrecadação cabe-
rá à União. Defendendo esse entendimento, veja-se: FARIAS; ROSENVALD. Direitos reais,
p. 328-329.
16
Outro não é o entendimento de Sílvio Rodrigues, para quem “o imóvel abandonado perma-
necerá como coisa de ninguém, ainda que declarado vago ou ocupado por terceiro, durante
um período de três anos, período esse expressamente contemplado pelo legislador quando,
no dispositivo acima transcrito, determinou que o imóvel abandonado passará, três anos
depois, ao domínio do Poder Público. Por conseguinte, enquanto não ocorrer o transcurso
desse prazo, o prédio não fica sob a sujeição de quem quer que seja” (Direito civil, p. 176).
17
A respeito dos efeitos erga omnes dos direitos reais, seja consentido remeter-se ao parecer
da lavra do Professor Arruda Alvim (Direito privado, p. 177-179).
18
Nesse sentido: MONTEIRO. Curso de direito civil: direito das coisas, p. 169.

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O CALVÁRIO DO §2º DO ART. 1.276 DO CÓDIGO CIVIL – VIDA E MORTE DE UM MALFADADO ...
487

impedirá uma eventual aquisição originária por usucapião, através de


um terceiro que estabeleça posse no imóvel, pelo tempo exigido por lei,
aproveitando-se da desídia conjunta do proprietário e da pessoa jurídica
de Direito Público, que só poderá interromper a prescrição aquisitiva
após dar início ao processo de arrecadação. Ou seja, sendo a coisa ainda
registrada em nome do particular, contra ele e os demais litisconsortes a
ação será direcionada, eis que ainda não está a propriedade submetida
à regra da imprescritibilidade dos bens públicos a que alude o art. 102
do Código Civil.19
Percebe-se, então, a importância de destacar que, em conformi-
dade com o acertado caput do art. 1.276 da Lei Civil, a identificação do
abandono (para fins de arrecadação pelo Estado) exige que o imóvel
não se encontre na posse de outrem, tratando-se de louvável previsão legal,
significando que não basta a demonstração de que o proprietário não
mais deseja a coisa para si, pois a posse de terceiros sobre o bem é fator
suficiente para conceder função social à propriedade e determinar a
exclusão da pretensão à titularidade pelo Poder Público.20

5 A presunção de abandono no Código Civil pela falta


de pagamento de tributos e a sua conexão com o largo
alcance da função social da propriedade
O Código Civil de 2002 implementou, no §2º do art. 1.276, uma
turbulenta regra:

Art. 1.276, §2º, Código Civil:


Presumir-se-á de modo absoluto a intenção a que se refere este artigo,
quando, cessados os atos de posse, deixar o proprietário de satisfazer
os ônus fiscais.

Estabelece a Lei Civil, assim, uma presunção absoluta21 de aban-


dono do imóvel quando o proprietário associar ao desuso o inadim-
plemento de tributos reais, como os impostos prediais e territoriais e
as taxas.

19
Art. 102, CC: “os bens públicos não estão sujeitos a usucapião”.
20
Com o mesmo entendimento, analisando com esmero e cuidado o dispositivo legal, Marco
Aurélio Bezerra de Melo assegura não ser “interesse do Estado arrecadar para si imóveis
abandonados. Para isso o ordenamento prevê a desapropriação. A finalidade da lei é que os
bens não fiquem vagos, pois isso desinteressa à sociedade” (Novo Código Civil anotado, p. 99).
21
Também entendendo que a presunção é absoluta: NADER. Curso de direito civil, p. 206.

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488 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Sem dúvida, é facilmente perceptível o esforço do legislador em


concretizar a função social da propriedade, relativizando a noção de
sua perpetuidade. Merece, assim, aplausos pela tentativa.
De acordo com a regra codificada, a recusa do proprietário em
satisfazer os ônus fiscais importará em demonstração objetiva do aban-
dono, quando aliada à cessação dos atos de posse. Detectados, então, os
dois requisitos, a arrecadação do bem pelo Estado será uma imposição,
em nome da socialidade, não podendo o proprietário objetar-se em face
da caracterização de uma verdadeira presunção absoluta de abandono.
Não é demais lembrar que dentre as garantias individuais, logo
em seu art. 5°, XXIII, a Constituição da República impõe que toda pro-
priedade atenda a uma função social. Não fosse suficiente, mais adiante,
ao regulamentar a ordem econômica (art. 170, II e III),22 o constituinte
consagrou, dentre os seus princípios fundamentais, a propriedade pri-
vada e a função social da propriedade, explicitando a sua fundamental
preocupação com o tema.
Como já tive oportunidade de assinalar, em outra sede, em
companhia de ilustre civilista comprometido com um Direito mais
próximo da realidade social do Brasil, esta ordem de inserção de prin-
cípios não é acidental, e sim intencional. Inexiste incompatibilidade
entre a propriedade e a função social, mas uma obrigatória relação de
complementaridade, como princípios da mesma hierarquia. Não se
pode mais conceder proteção à propriedade pelo mero aspecto formal
da titularidade em razão do registro. A visão romanística, egoística e
individualizada, sucumbiu face à evolução da humanidade. A Lei Maior
tutela a propriedade formalmente individual a partir do instante que se
exiba materialmente social, demonstrando merecimento e garantindo a
sua perpetuidade e exclusividade. A propriedade que não for legitimada pela
função social será sancionada pelo sistema por diversas formas e intensidades.
E mais. Percebe-se que a proposital ênfase à dimensão axiológica da
propriedade, evidenciada no art. 170, II e III, da CF/88, teve o escopo de
confirmar que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho
e na livre iniciativa, com a imprescindível conciliação da propriedade
com a sua função social.23
Aliás, já não mais é momento de controverter acerca da reper-
cussão da Constituição Federal nas relações privadas, porém a respeito

22
Art. 170, CF/88: “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na
livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da
justiça social, observados os seguintes princípios: (...) II - propriedade privada; III - função
social da propriedade”.
23
FARIAS; ROSENVALD. Direitos reais, p. 206.

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O CALVÁRIO DO §2º DO ART. 1.276 DO CÓDIGO CIVIL – VIDA E MORTE DE UM MALFADADO ...
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da intensidade de tal intervenção. Com esse desiderato, o Código Civil,


procurando adaptar-se ao comando constitucional, também abraçou
a função social da propriedade como diretriz dos direitos reais, como
se pode extrair da simples e ainda que perfunctória leitura do seu
art. 1.228, §1º.24
Pois bem, buscando compreender as latitudes da função social
da propriedade é mister lembrar que as feridas produzidas na huma-
nidade, ao longo do século passado, repercutiram nas Constituições
forjadas nos últimos 50 anos. O compromisso com a tutela da dignidade
da pessoa humana e a valorização da solidariedade social e erradicação
da pobreza acarretou o prestígio dos direitos da personalidade, em de-
trimento da antiga preocupação patrimonialista. A primazia atribuída
às situações existenciais pela Lex Legum é traduzida em extenso rol de
direitos fundamentais e, nesse sistema, o indivíduo solitário, isolado em
sua atividade econômica, é convertido na pessoa solidária que convive
em sociedade e encontra nas necessidades do outro um claro limite à
sua liberdade de atuação.25
Essa mudança de paradigma provoca uma necessária concilia-
ção entre os poderes e os deveres do proprietário, tendo em vista que
a tutela da propriedade e dos poderes econômicos e jurídicos de seu
titular passa a ser condicionada ao adimplemento de deveres sociais.
O direito de propriedade, até então tido como um direito subjetivo na
órbita patrimonial, passa a ser encarado como uma complexa situação
jurídica subjetiva, na qual se inserem obrigações positivas do proprie-
tário perante a comunidade. Com a mesma perspectiva, Caio Mário
da Silva Pereira reconhece que “bombardeado de todos os ângulos, o
absolutismo do direito de propriedade cede lugar a uma nova concep-
ção. A ordem jurídica reconhece que os bens não são dados ao homem
para que levem a sua fruição até o ponto em que o seu exercício atente
contra o bem comum”.26

24
Art. 1.228, CC: “o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito
de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. §1º O direito de
propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo
que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna,
as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como
evitada a poluição do ar e das águas”.
25
Aplicando tais ideias no âmbito da propriedade, Eusébio Carvalho chega mesmo a afirmar
que a propriedade mudou o seu caráter “patrimonialista” para uma percepção “persona-
lista”, em texto digno de nota (Direito à propriedade: do discurso à realidade. In: FARIAS
(Org.). Leituras complementares de direito civil, p. 278).
26
PEREIRA. Direito civil: alguns aspectos de sua evolução, p. 71-72. Arremata o saudoso
civilista das Alterosas, aduzindo que “não se compraz com as idéias dominantes neste

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490 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Assim, a função social traduz o comportamento regular do pro-


prietário, exigindo que ele atue em dimensão ético-social, na qual não
prejudique interesses coletivos. Vale dizer, a propriedade mantém-se
privada e livremente transmissível, porém detendo finalidade que se
concilie com as metas do organismo social. Busca-se, pois, paralisar
o egoísmo do proprietário, com a prevalência de valores ligados à
solidariedade social, a fim de que o exercício dos poderes dominiais
seja guiado por uma conduta ética, pautada no respeito aos interesses
metaindividuais que sejam dignos de tutela, e o acesso de todos a bens
mínimos capazes de conferir-lhes uma vida digna.27
Penetrando na própria estrutura interna e substância do direito
à propriedade privada, traduz-se em uma necessidade de atuação
promocional pelo proprietário, pautada no estímulo a obrigações de
fazer, consistentes em implementação de medidas hábeis a impulsionar
a exploração racional do bem, com a finalidade de satisfazer os seus
anseios econômicos sem aviltar as demandas coletivas, promovendo o
desenvolvimento econômico e social, de modo a alcançar a justiça social.
Enquanto o proprietário do Estado Liberal agia nos limites impostos
pela lei, segundo a máxima “posso fazer o que quiser, desde que não
prejudique terceiros”, o proprietário dos tempos modernos sofre uma
remodelação em sua autonomia privada, considerando que deve fazer
tudo para colaborar com a sociedade, desde que não se prejudique.28
A previsão legal em apreço (art. 1.276, §2º, CC) inspira-se, sem
dúvida, na materialização da função social da propriedade, preten-
dendo servir de limitação a uma utilização egoística, em respeito aos
direitos fundamentais.29
Resta, entretanto, averiguar se os demais valores constitucionais
também foram respeitados, de modo a que o dispositivo esteja em con-
formidade com o espírito constitucional como um todo. Até porque,

começo de milênio, que o dominus tenha o poder de utilização e gozo da coisa sua, numa
tal extensão, que chegue a sacrificar o direito alheio, ou, mais precisamente, o bem-estar da
coletividade”.
27
Nas palavras apropriadas de Pietro Perlingieri, a função social “deve ser entendida não
como uma intervenção em ódio à propriedade privada, mas torna-se a própria razão pela
qual o direito de propriedade foi atribuído a um determinado sujeito, um critério de ação
para o legislador, e um critério de individuação da normativa a ser aplicada para o intérprete
chamado a avaliar as atividades do titular” (Perfis do direito civil: introdução ao direito civil
constitucional, p. 226).
28
FARIAS; ROSENVALD. Direitos reais, p. 208.
29
Tecendo referências elogiosas à norma, Marco Aurélio Bezerra de Melo chega a asseverar:
“outra aplaudida previsão legal é a presunção absoluta de abandono da posse quando,
cessados os atos possessórios, o proprietário deixar de cumprir com as obrigações fiscais”
(Novo Código Civil anotado, p. 106).

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O CALVÁRIO DO §2º DO ART. 1.276 DO CÓDIGO CIVIL – VIDA E MORTE DE UM MALFADADO ...
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conquanto a função social da propriedade seja um valor fundamental


constitucional, não existem, como visto alhures, valores absolutos no
sistema arquitetado pela Lei Maior, impondo-se a sua compreensão em
harmonia com as demais garantias individuais e sociais constitucionais
— o que poderá implicar em relativização de um dos valores para o
prestígio de outro que, no caso concreto, se apresente mais proeminente.
Sendo assim, o dispositivo legal sub occulis reclama uma compreen­
são simétrica com outros princípios constitucionais, como o devido
pro­cesso legal e a vedação de uso de tributo com natureza confiscatória.

6 A(s) inconstitucionalidade(s) do §2º do art. 1.276 do


Código Civil
Não há dúvidas quanto à preocupação do dispositivo codificado
com a implementação da função social da propriedade. É evidente.
Entrementes, a função social não pode pairar acima dos demais valores
e garantias constitucionais, sendo imperiosa a harmonização da mul-
ticitada regra (contemplada no §2º do art. 1.276 da Lei Civil) com as
latitudes constitucionais, em especial com as garantias fundamentais
traçadas no Texto Maior.
É que a função social não pode implicar em arbitrariedades em
detrimento dos direitos fundamentais da pessoa humana, o que atinge
a sua própria dignidade.
Sobreleva, assim, analisar a adequação da presunção absoluta de
abandono da propriedade pela falta de pagamento de tributos com os
valores sociais e garantistas da Lex Legum. Pois bem, volvendo a visão
para a tábua axiomática constitucional, afigura-se imperativo atentar
para algumas martirizações do Texto Magno. Veja-se.

6.1 Violação do devido processo legal


Primus, é de se observar que a legislação infraconstitucional não
pode ofender o devido processo legal (art. 5º, LIV, CF/88).
Com nítida inspiração na Magna Charta de João Sem Terra, de
1215 (que também influenciou a Constituição norte-americana de
1787), proclama, com clareza meridiana, o Texto Constitucional que
“ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido
processo legal” (inc. LIV, do art. 5º, CF/88), estabelecendo a verdadeira
gênese interpretativa de todos os direitos fundamentais.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
492 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Em percepção mais ampla, o due process of law é marcado, fun-


damentalmente, pelo trinômio vida-liberdade-propriedade,30 consagrando
uma tutela avançada e privilegiada desses bens jurídicos que foram
reputados de proteção fundamental pelo constituinte e pelos Estados
Democráticos de Direito.
Embora uma visão perfunctória pudesse, indevidamente, dar
outra conotação, não se pode represar o devido processo legal somente
na seara processual. É certo e incontroverso que a cláusula due process
of law traz consigo um inescondível sentido material, atuando direta
e eficazmente sobre as relações de direito substancial,31 inclusive no
que tange ao Direito Civil. Pensar diferentemente, aliás, seria mesmo
desfigurar a sua própria importância.
Buscando, assim, a efetivação da cláusula que garante o devido
processo legal nas relações de direito material privado, tem-se que nin-
guém poderá ser privado de seus bens (assim como de sua liberdade
ou de sua vida) sem o respeito ao contraditório e sem a necessária e
ampla defesa — desdobramentos naturais do substantive due process.
Via de consequência, ao mencionar no §2º do art. 1.276 que ha-
verá uma presunção de abandono da propriedade decorrente do não
pagamento de tributos sobre ela incidentes, o Código Civil está ferindo
o devido processo legal, por não conceder qualquer oportunidade para
o proprietário promover a sua defesa (mínima que fosse!) e justificar
a sua inadimplência fiscal ou mesmo para que viesse a regularizar o
pagamento. Aliás, também afronta o devido processo legal o fato de o
proprietário estar proibido de provar em juízo que não teve a intenção
do abandono, mas apenas passou por dificuldades econômicas, por
exemplo.

30
A ideia é desenvolvida, com maior amplitude por NERY JR. Princípios do processo civil na
Constituição Federal, p. 35 et seq. Chega mesmo a afirmar o citado processualista que “o
prestígio do direito constitucional norte-americano tem como sua causa maior a interpre-
tação da cláusula due process pela Suprema Corte. O tribunal não só vem interpretando o
princípio de modo a fazer valer o que o espírito do constituinte pretendeu quando adotou
a regra, como também a fazê-lo de forma analítica, ‘declarando’ que a corte decidiria dessa
ou daquela maneira, se o problema fosse equacionado de outro modo”.
31
No mesmo diapasão, releva fazer referência à obra de Manoel Jorge e Silva Neto, ao esclare-
cer que “sob ângulos distintos poderá ser entendida a cláusula do due process of law: genérico,
que se biparte em material e processual. O devido processo legal, no sentido genérico, tutela
os direitos à vida, à liberdade e à propriedade, devendo-se entender neste sentido a previsão
do art. 5º, LIV, da Constituição. No sentido material ou substancial (substantive due process), a
cláusula versa a respeito dos direitos materiais e a sua proteção por meio de processo judicial
ou administrativo. No sentido processual (procedural due process), tem o sentido de atribuir-­
se aos litigantes diversas garantias dentro da relação jurídica processual” (Curso de direito
constitucional, p. 533).

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CRISTIANO CHAVES DE FARIAS
O CALVÁRIO DO §2º DO ART. 1.276 DO CÓDIGO CIVIL – VIDA E MORTE DE UM MALFADADO ...
493

É possível afirmar, então, que a privação da propriedade somente


será possível com prévia formalização da ampla defesa e do contradi-
tório. Julgando questão com essa mesma envergadura, já deliberou o
Supremo Tribunal Federal:

O postulado constitucional do due process of law, em sua destinação ju-


rídica, também está vocacionado à proteção da propriedade. Ninguém
será privado de seus bens sem o devido processo legal (cf. art. 5º, LIV. A
União Federal — mesmo tratando-se de execução e implementação do
programa de reforma agrária — não está dispensada da obrigação de
respeitar, no desempenho de sua atividade de expropriação, por interesse
social, os princípios constitucionais que, em tema de propriedade, pro-
tegem as pessoas contra a eventual expansão arbitrária do poder estatal.
A cláusula de garantia dominial que emerge do sistema consagrado pela
Constituição da República tem por objetivo impedir o injusto sacrifício
do direito de propriedade... (STF, Ac. unân. Plenário, MS nº 22.164-0/SP,
rel. Min. Celso de Mello, j. 30.10.1995, DJU, p. 39206, 17 nov. 1995)

Ora, nessa ordem de ideia, é fácil perceber, lembrando a lição


de Celso Ribeiro Bastos, que, em concreto, a essência da garantia ao
direito de propriedade reside em impedir que o Estado, por medida
genérica ou abstrata, evite a apropriação dos bens econômicos ou, ve-
nha a sacrificá-la mediante um processo de confisco, o que materializa
o substantive due process.32
Por tudo isso, é natural anuir ao que dispara Adolfo Mamoru
Nishiyama, em texto dedicado à matéria, asseverando que o §2º do
art. 1.276 da Codificação Civil é inconstitucional, porque “conforme
disposição constitucional expressa, o indivíduo só poderá ser privado
de seus bens com a observância do devido processo legal”.33 34
De fato, como admitir que alguém pode ser privado de sua titula-
ridade sem que tenha oportunidade, sequer, de ter ciência da pretensão
estatal e de poder se objetar ao que é alegado? Fácil, então, perceber a
violação do devido processo legal, pelo caráter autoritário e déspota
do dispositivo legal.
Porém, a afronta ao Texto Maior não se restringe à violação ao
devido processo legal.

32
Curso de direito constitucional, p. 207-213.
33
A inconstitucionalidade do art. 1. 276 do novo Código Civil e a garantia do direito de pro-
priedade. Revista de Direito Privado, p. 9.
34
Com essa preocupação, inclusive, foi cimentado entendimento na Jornada de Direito Civil
propondo que “a aplicação do art. 1.276 depende de devido processo legal em que seja
assegurado ao interessado demonstrar a não cessação da posse”.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
494 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

6.2 Violação da regra de que somente a Constituição


pode determinar a perda da propriedade sem
indenização
Secundus, é de se lembrar que somente a Constituição poderá
criar hipóteses de perda da propriedade sem a devida retribuição.
Enquanto norma infraconstitucional, o Código Civil está sujeito
à Constituição, devendo adequar-se às hipóteses de privação da pro-
priedade tracejadas, com pincel garantista, pela Carta Maior de 1988.
Dessa maneira, considerando que os casos de perda ou restrição
à propriedade privada estarão contempladas em sede constitucional,
impõe-se à norma infraconstitucional adequar-se a esta realidade, so-
mente podendo estampar limitações à titularidade de direitos reais de
acordo com a Magna Carta.35
Com isso, percebe-se que estabelecendo hipótese nova de perda
da propriedade, fugindo das diretrizes constitucionais, o art. 1.276, no-
tadamente em seu §2º, está eivado de absoluta incompatibilidade com
o Texto Constitucional, impondo-se que seja expurgado do sistema,
por afrontar garantias individuais.

6.3 Violação à regra do não confisco


Tertius, há uma evidente afronta à norma do art. 150, IV, da
Constituição Federal que estabelece em candentes palavras ser vedado
“utilizar tributo com efeito de confisco”.
Apesar da dificílima conceituação do princípio do não confisco,36
é possível destrinchar, genericamente, o espírito dessa previsão cons-
titucional, concluindo que a norma teve na tela da imaginação o pro-
pósito de reforçar a proteção da propriedade privada,37 consagrando
a impossibilidade de o proprietário perder a sua titularidade (ou parte

35
Com o mesmo sentido, veja-se o que sustenta Adolfo Mamoru Nishiyama, ponderando que
o preceito codificado é inconstitucional por inteiro, uma vez que a Constituição garante o di-
reito de propriedade e assim “qualquer limitação à propriedade, principalmente no tocante
à sua perda, deve estar de acordo com a Magna Carta” (A inconstitucionalidade do art. 1.276
do novo Código Civil e a garantia do direito de propriedade. Revista de Direito Privado, p. 9).
36
Destacando a dificuldade em identificar objetivamente o princípio do não confisco, veja-se a
lição de Fábio Brun Goldschmidt, observando que “o Texto Constitucional não oferece qual-
quer auxílio na penosa situação dos limites da tributação com efeito de confisco e, nem os
juristas, nem o Legislativo, nem o Judiciário lograram até agora fornecer qualquer subsídio
objetivo na sua identificação” (O princípio do não-confisco no direito tributário, p. 89).
37
Com esse entendimento: LEITE; MEDEIROS. Os princípios constitucionais e a atividade
tributária do Estado. In: LEITE (Org.). Dos princípios constitucionais, p. 397.

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O CALVÁRIO DO §2º DO ART. 1.276 DO CÓDIGO CIVIL – VIDA E MORTE DE UM MALFADADO ...
495

substancial dela) para o Poder Público sem uma indenização justa e


correlata.
O não confisco, assim, é dogma essencial (verdade fundante) do
sistema tributário, necessário à sua perfeita compatibilização do direito
de propriedade, também garantido constitucionalmente.38
Aliás, a proibição de confisco apresenta-se como induvidoso valor
(leia-se princípio) constitucional, servindo como um limite objetivo para
as normas infraconstitucionais, vinculando todo o tecido legislativo
brasileiro, inclusive, por óbvio, o Código Civil, que não poderá estabe-
lecer regras atentatórias a ele. Convém destacar que, se assim não fosse,
restaria esvaziada a intenção do constituinte, pois teria se restringido a
fazer menção a uma garantia genérica do direito de propriedade, sem
indicar uma ferramenta idônea e consistente para a promoção concreta
e efetiva de tal direito.
Em concreto, a inconstitucionalidade de determinada norma por
violar o não confisco, pela falta de regras objetivas, decorre da ultrapas-
sagem da barreira do aceitável. Equivale a dizer: malgrado seja difícil
estabelecer os limites ideais, sempre haverá uma certa carga tributária
que, no caso concreto, se apresentará com um espírito confiscatório, a
partir da incorporação do valor decorrente do art. 150, IV, da Norma
Maior.
Funciona, assim, a vedação ao confisco com um papel promocio-
nal de valorização da propriedade, estabelecendo limitações objetivas
ao Estado no sentido de não praticar condutas que, de algum modo,
atentem contra a propriedade privada. Essa simples digressão é su-
ficiente, certamente, para justificar a inconstitucionalidade da regra
que permite ao Poder Público adquirir uma propriedade pela simples
paralisação do pagamento de tributos aliada à cessação de posse. Sem
dúvida, extrapola-se o limite estabelecido pelo não confisco.39
Nesse diapasão, Fábio Brun Goldschmidt, com total razão e
peculiar senso expositivo, sustenta que é obrigação de todos (inclusive

38
GOLDSCHMIDT. O princípio do não-confisco no direito tributário, p. 89.
39
Na jurisprudência argentina já se teve oportunidade de reconhecer que viola o não confisco
qualquer instrumento utilizado pelo Estado para privar a propriedade privada, sem a devi-
da indenização. Afirmou a Corte Superior de Justiça (CSJN) portenha: “la Corte manifiesta
que no se puede admitir que por la vía del impuesto el Poder Publico o el Poder Legislativo
venga a privar a los ciudadanos del derecho de propiedad. En impuesto sería una especie de
instrumento usado indirectamente para lograr el mismo fin de la confiscación de bienes, y
la Corte expresa que el hecho de adoptar el instrumento fiscal no puede permitir tampoco al
Congreso privar a los ciudadanos de sus derechos patrimoniales”, apud LEITE; MEDEIROS.
Os princípios constitucionais e a atividade tributária do Estado. In: LEITE (Org.). Dos princí-
pios constitucionais, p. 398.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
496 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

ao legislador civil!) “procurar atender à vontade do constituinte para


outorgar mais e mais contornos de regra (de violação facilmente iden-
tificável) ao art. 150, IV, e com isso fazer viver com mais intensidade o
valor por ele protegido”.40 A partir dessa compreensão, sem dúvida,
é fácil assegurar que, emprestando concretização (efetividade em lin-
guagem bem hodierna) à vedação de utilização de tributo com efeito
confiscatório, impõe-se que a norma infraconstitucional (inclusive a Lei
Civil, repita-se à exaustão!) não se preste a violar a propriedade privada
para satisfação de interesses fiscais, o que implicaria em desajuste do
sistema econômico-social e atentado fundamentalista contra a Consti-
tuição Federal.41 Por isso, não se pode deixar de perceber que o §2º do
art. 1.276 do Codex, ao ultrapassar os confins da aceitabilidade jurídica,
está em rota de colisão com o Texto Magno, pelo que se reclama o seu
afastamento do sistema.
Por tudo isso, se uma determinada norma prevê a possibilidade
de perda da propriedade pelo não pagamento de tributos, é fácil inferir
que ultrapassa o limite da razoabilidade e estabelece confisco, por via
oblíqua. Nessa esteira, já reconheceu o Pretório Excelso:

(...) A proibição constitucional do confisco em matéria tributária nada


mais representa senão a interdição, pela Carta Política, de qualquer pre-
tensão governamental que possa conduzir, no campo da fiscalidade, à injusta
apropriação estatal, no todo ou em parte, do patrimônio ou dos rendimentos
dos contribuintes, comprometendo-lhes, pela insuportabilidade da
carga tributária, o exercício do direito a uma existência digna, ou a
prática de atividade profissional lícita ou, ainda, a regular satisfação de
suas necessidades vitais (educação, saúde e habitação, por exemplo).
A identificação do efeito confiscatório deve ser feita em função da totalidade
da carga tributária, mediante verificação da capacidade de que dispõe o
contribuinte — considerado o montante de sua riqueza (renda e capi-
tal) — para suportar e sofrer a incidência de todos os tributos que ele
deverá pagar, dentro de determinado período, à mesma pessoa política
que os houver instituído (a União Federal, no caso), condicionando-se,
ainda, a aferição do grau de insuportabilidade econômico-financeira, à
observância, pelo legislador, de padrões de razoabilidade destinados a neutralizar

40
GOLDSCHMIDT. O princípio do não-confisco no direito tributário, p. 93.
41
Já teve oportunidade de afirmar a nossa jurisprudência, em acórdão tão oportuno ao que é
sustentado neste escrito, que “a vedação do confisco, muito embora seja de difícil concei-
tuação no direito pátrio, em face da ausência de definição objetiva que possibilite aplicá-lo
concretamente, deve ser estudado em consonância com o sistema sócio-econômico vigente,
observando-se a proteção da propriedade em sua função social” (TRF-5ª Região, Ac. 2ª T.,
Ap MS nº 95.05.49273/PB, rel. Juiz José Delgado, j. 20.06.1995, DJU, p. 48734, 4 ago. 1995).

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O CALVÁRIO DO §2º DO ART. 1.276 DO CÓDIGO CIVIL – VIDA E MORTE DE UM MALFADADO ...
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excessos de ordem fiscal eventualmente praticados pelo Poder Público... (STF,


Ac. Tribunal Pleno, ADIn/MC nº 2010-2/DF, rel. Min. Celso de Mello,
j.30.09.1999, DJU, p. 51, 12 abr. 2002)

Em suma-síntese, ao estabelecer a possibilidade de perda da


propriedade pela paralisação de pagamento de tributos, o Código Civil
afronta a Constituição Federal por estabelecer modalidade confiscatória
indireta (não custa lembrar que a Lei Maior somente autoriza uma única
hipótese de confisco, no seu art. 243, dizendo respeito às glebas onde
forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas, autorizando
uma expropriação imediata sem qualquer indenização ao proprietário).
Também por esse motivo (violação do não confisco), destarte, o
§2º do art. 1.276 da Lei Civil tem de ser afastado do sistema normativo
brasileiro.

6.4 Violação ao princípio da razoabilidade


Demais de tudo isso, o §2º do art. 1.276 da Lei Civil ofende, ainda,
o princípio da razoabilidade — que consagra as ideias de adequação e
necessidade, afastando-se da legalidade constitucional.
Através da razoabilidade,42 não basta que o ato da Adminis-
tração Pública tenha uma finalidade específica, é necessário que os
meios empregados por ela sejam adequados à consecução do fim almejado
e que sua utilização, especialmente quando se trata de medidas restritivas ou
punitivas, seja realmente necessária. Trata-se de um verdadeiro equilíbrio
de valores sociais.
O razoável é aquilo que se conforma com o equilíbrio. É o que
se apresenta moderável, lógico, aceitável, sensato, enfim. Promove-­
se o bom senso, a justiça equitativa e o equilíbrio, conectando no ato
da Administração Pública o efeito e a causa, de modo a não perder a
plausibilidade entre um e outro, contrapondo-se ao capricho e à arbi-
trariedade do administrador. É a busca do prestígio da prudência e a
realização de valores superiores propugnados em cada comunidade.43

42
Sem dúvida, é antiquíssimo o substrato teórico da razoabilidade, remontando mesmo a
priscas eras, sendo possível lembrar a máxima aristotélica, segundo a qual o meio-termo e
o justo é o proporcional. O padrão do justo residiria no equilíbrio das emoções e valores, até
mesmo na fé, aproximando a ideia de proporcionalidade da própria ontologia do Direito.
Para maior aprofundamento, veja-se: OLIVEIRA. Por uma teoria dos princípios: o princípio
constitucional da razoabilidade, p. 71.
43
OLIVEIRA. Por uma teoria dos princípios: o princípio constitucional da razoabilidade, p. 92.

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Bem percebe Paulo Bonavides que a razoabilidade é mais fácil


de ser compreendida do que de ser definida,44 em face da inexatidão de
seu conceito, não sendo possível aprisioná-la em meras teorias, pena
de perder o seu verdadeiro sentido e alcance (elasticidade).
Buscando conferir concretude à razoabilidade, sobreleva reco-
nhecer que a sua grande e relevante missão é condicionar a discriciona-
riedade estatal, obstando que se transmude em arbitrariedade. Trata-se
de uma condicionante de causa e efeito nas condutas estatais, buscando
o senso do que se mostra proporcional, equilibrado.45
Com efeito, não é difícil perceber que atenta de modo direto con-
tra a razoabilidade a edição de lei que associe em caráter irrevogável o
inadimplemento de obrigações tributárias à perda da propriedade de
um imóvel. Sem dúvida, a norma escoa pelo filtro da discricionariedade
e alcança a arbitrariedade. Importante sublinhar que a função social
da propriedade é valor de grande envergadura, mas deve ser aplicado
em um Estado Democrático de Direito, sob pena de ter o seu conteúdo
reduzido a um modo autoritário de destituição de titularidades em
prol da vontade estatal.
Por oportuno, vale invocar o escólio de Fábio Corrêa Souza de
Oliveira, destacando que embora seja utilizada, no mais das vezes, “para
aferir a congruência das medidas estatais”, nada obsta, “muito pelo
contrário, na realidade tudo indica, seu emprego (da razoabilidade)
no âmbito do direito privado”, servindo de anteparo para os “direitos
fundamentais, não apenas proibindo restrições descabidas, mas também
impondo ações em benefício dos mesmos”.46
Ora, diante de tal argumentação, não é difícil notar que escapa
à mais simples razoabilidade permitir ao Estado privar o titular de
sua propriedade como consequência (verdadeira sanção) do simples
inadimplemento fiscal (causa).47 Não há, em verdade, justificativa para
a correlação entre causa e efeito, impondo-se o afastamento da norma.

44
BONAVIDES. Curso de direito constitucional, p. 356.
45
Com esse entendimento, o Supremo Tribunal Federal firmou a sua jurisprudência: “O Po-
der Público, especialmente em sede de tributação, não pode agir imoderadamente, pois a ati-
vidade estatal acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade, que traduz
limitação material à ação normativa do Poder Legislativo” (STF, Ac. Tribunal Pleno, Adin
nº 2.551/MG, rel. Min. Celso de Mello, j. 02.04.2003, DJU, p. 5, 20 abr. 2006).
46
OLIVEIRA. Por uma teoria dos princípios: o princípio constitucional da razoabilidade, p. 92.
47
Em caso análogo, já asseverou a Suprema Corte: “o poder de taxar não pode chegar à desme-
dida do poder de destruir, uma vez que aquele somente pode ser exercido dentro dos limites
que o tornem compatível com a liberdade de trabalho, comércio e indústria e com o direito
de propriedade. É um poder cujo exercício não deve ir até o abuso, o excesso, o desvio, sendo
aplicável, ainda aqui, a doutrina fecunda do détournement de pouvoir. Não há que estranhar

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O CALVÁRIO DO §2º DO ART. 1.276 DO CÓDIGO CIVIL – VIDA E MORTE DE UM MALFADADO ...
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Até mesmo porque a privação da propriedade pela inadimplência


fiscal não se amolda à necessidade e à adequação — necessárias à com-
preensão de cada norma jurídica e materializadoras da razoabilidade.

7 Notas conclusivas – A impossibilidade de salvação


do §2º do art. 1.276 do Código Civil, impondo-se o
reconhecimento de sua inconstitucionalidade para
preservação dos valores constitucionais
A propriedade é bem jurídico tutelado em sede constitucional,
dentre as garantias individuais previstas no art. 5º, não podendo a le-
gislação infraconstitucional conspirar para subtrair-lhe a tutela jurídica
dispensada pela Lei Maior.
Assim, atentando frontalmente contra diferentes garantias
constitucionais (o devido processo legal, a vedação à utilização de
tributo como confisco, a razoabilidade normativa e a regra de que
somente a Constituição poderá estabelecer hipóteses de privação da
propriedade), o §2º do art. 1.276 do Código Civil padece de induvi-
dosa inconstitucionalidade, ao estabelecer uma presunção absoluta
de abandono da propriedade em razão da cessação do pagamento de
tributos sobre ela instituídos — ainda que visando prestigiar a função
social da propriedade.
E, lamentavelmente, não será possível aproveitar a citada norma,
sequer em interpretação conforme a Constituição, tentando harmonizá-­
la. É que, ainda que se tente formalizar o devido processo legal, através
de procedimento administrativo no qual fosse facultada ao proprietário
ampla defesa e contraditório, ainda assim restariam ofendidos outros
valores constitucionais, como a vedação à utilização de tributos com
natureza confiscatória, o que impõe, de qualquer sorte, o reconheci-
mento da imprestabilidade da norma codificada, por estar em rota de
colisão com as latitudes e longitudes constitucionais.
Não fossem suficientes (embora sejam!) os argumentos da incons-
titucionalidade da norma, vale, ademais, apresentar uma ponderação
de cunho sociológico. Com efeito, é de se atentar, também, para a crise
econômico-social que assola o País. Não é difícil notar que muitos dos

a invocação dessa doutrina ao propósito da inconstitucionalidade, quando os julgados têm


proclamado que o conflito entre a norma comum e o preceito da Lei Maior pode se acender
não somente considerando a letra do texto, como também, e principalmente, o espírito do
dispositivo invocado” (STF, RE nº 18.331, rel. Min. Orozimbo Nonato, 1953).

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inadimplentes fiscais deixam de pagar as suas obrigações tributárias por


falta de condições, o que implicaria, não raro, em violação da própria
subsistência ou de sua família. Tais inadimplentes, todavia, muitas
vezes estão conferindo função social à sua propriedade, sem qualquer
intenção de abandoná-la — o que serve, por igual, para demonstrar a
incoerência do multicitado dispositivo legal.
Sem dúvida, exige-se de todo e qualquer proprietário (inclusive
do Poder Público, o que poderá, de algum modo, levar à discussão
acerca da imprescritibilidade das terras devolutas, por exemplo) o
atendimento da função social, de onde deriva, dentre outros consectá-
rios, o respeito ao interesse comunitário (que poderá ser visto, também,
pelo prisma do regular pagamento de tributos). No entanto, é preciso
que as consequências práticas do descumprimento da função social
estejam conciliadas com as garantias constitucionais do proprietário,
como pessoa humana e como titular de patrimônio.
Trata-se, pois, de verdadeiro grito de alerta para apontar que o
§2º do art. 1.276 do Código Civil é arbitrário e martiriza frontalmente
garantias individuais previstas na Constituição da República, ao se
preocupar exacerbadamente com a ordem tributária, em detrimento da
pessoa humana e do titular de bens, além de não considerar o eventual
cumprimento da função social da propriedade.
É que no entrechoque entre diferentes valores constitucionais (no
caso, a função social da propriedade e o devido processo legal, o não
confisco, a razoabilidade e não privação de titularidade sem previsão
constitucional), deve ser prestigiada a solução que respeite, com maior
amplitude, a dignidade humana e as garantias constitucionais, devendo
ser repelida toda e qualquer norma infraconstitucional que se ponha
em rota de colisão com tais ideias.
Por isso, propõe-se que, em concreto, por provocação do inte-
ressado, do Ministério Público ou mesmo ex officio, os juízes exerçam
o controle difuso de constitucionalidade do malfadado dispositivo
codificado,48 expurgando do sistema todo e qualquer efeito que dele
poderá decorrer. Não se pode, efetivamente, tolerar o autoritarismo
do Poder Público em um Estado Democrático de Direito, e a situação

48
Sobre o controle de constitucionalidade, seja feita menção à obra de Dirley da Cunha Jú-
nior, explicando que no controle difuso “a questão constitucional consistente na inconsti-
tucionalidade dos atos ou omissões do Estado, ostenta a natureza de questão prejudicial
(pré=antes; judicial=de julgar), na medida em que deve ser decidida pelo juiz ou tribunal
antes de julgar a própria controvérsia e para poder, até mesmo, resolvê-la definitivamente.
É um antecedente lógico e uma conditio sine qua non da resolução do conflito” (Controle de
constitucionalidade: teoria e prática, p. 99).

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exposta é de uma absurda incompatibilidade com os preceitos garan-


tistas do Pacto Social de 1988.
A propriedade adquirida legalmente precisa estar protegida
contra o arbítrio estatal, como projeção da própria dignidade huma-
na, também reconhecida ao titular. E como lembrava a fina percepção
de Chico Buarque de Hollanda, “sou feliz e devo a Deus o meu éden
tropical, orgulho dos meus pais e dos filhos meus, ninguém me tira
nem por mal...”

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TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
VARELA, Laura Beck. Das propriedades à propriedade: construção de um direito. In:
MARTINS-COSTA, Judith (Org.). A reconstrução do direito privado. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2002.

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CRISTIANO CHAVES DE FARIAS
O CALVÁRIO DO §2º DO ART. 1.276 DO CÓDIGO CIVIL – VIDA E MORTE DE UM MALFADADO ...
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VARELA, Laura Beck; LUDWIG, Marcos de Campos. Da propriedade às propriedades:


função social e reconstrução de um direito. In: MARTINS-COSTA, Judith (Org.). A
reconstrução do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
VIANA, Marco Aurélio. Comentários ao novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
v. 16.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

FARIAS, Cristiano Chaves de. O calvário do §2º do art. 1.276 do Código Civil:
vida e morte de um malfadado dispositivo legal a partir de uma interpretação
constitucional. In: EHRHARDT JR., Marcos (Coord.). Os 10 anos do Código
Civil: evolução e perspectivas. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 479-503. ISBN
978-85-7700-616-8.

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A TUTELA DO BEM DIFUSO NAS
RELAÇÕES JURÍDICAS DE DIREITO CIVIL

EVERILDA BRANDÃO GUILHERMINO

1 Considerações iniciais
Quando Norberto Bobbio apresentou seus estudos sobre um
tempo que denominou de Era dos Direitos, apontava ali os novos
valores sociais decorrentes do aumento da complexidade das relações
pessoais, e consequentemente, as alterações que elas trazem para os
ordenamentos.
Afirma o filósofo que os direitos vão surgindo ao longo do tempo,
através das novas necessidades e das novas relações jurídicas vividas
pelos homens. A mudança de cenário no elenco dos direitos fundamen-
tais positivados desde o século XVIII parece relatar mundos diferentes,
tamanha a disparidade dos valores sociais que eles representam.1
O século XX ganha destaque porque remodelou os parâmetros
normativos das relações públicas e privadas. A migração do individua­
lismo do Estado Liberal para a funcionalidade dos direitos no Estado
Social vem causando impactos significativos, especialmente no âmbito
das relações privadas, cujo histórico é de individualidade e não de
solidariedade.

1
BOBBIO. A era dos direitos, p. 18.

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É a percepção jurídica de uma esfera de interesses que não se


adequa de forma exclusiva na proteção dos direitos individuais, co-
letivos, ou do Estado, justamente porque se sobrepõe a ambos. Paulo
Bonavides2 define o conteúdo desta esfera como direitos que “têm
primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento
expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de exis-
tencialidade concreta”.
Também importantes as palavras de Ricardo Lorenzetti3 quando
leciona que “nos últimos anos surgiu uma categoria de bens que não
pertencem ao Estado nem aos particulares de forma exclusiva, e que
não são suscetíveis de ser divididos em partes que permitam afirmar
sobre elas a titularidade individual de um direito dominial”.
Esta é a premissa para a existência de uma tutela legal dirigida
a temas como a paz, o desenvolvimento, o interesse público, a ordem
pública, a comunicação, o meio ambiente e o patrimônio comum da
humanidade. São direitos decorrentes do valor fraternidade e jurisdi-
cionalizados com o nome de direitos de solidariedade.

2 O bem difuso nas relações privadas


No Brasil, a promulgação da Constituição de 1988 inaugurou a
sua era dos direitos, tendo como marco a tutela dos direitos de terceira
geração. Seu texto traz a previsão de um bem até então desconhecido
no ordenamento, o bem difuso, tutelado posteriormente de forma mais
sistematizada pelo Direito Ambiental e pelo Direito do Consumidor.
A criação do Estado Social fez migrar o foco da lei, antes dirigido
exclusivamente à satisfação individual e agora virado para o bem-estar
coletivo. A proteção dos grupos (trabalhador, idoso, criança, deficiente,
homossexual, índio, etc.) foi a primeira forma de manifestação deste
pensar coletivo. Em seguida, esses grupos, cuja identificação de seus
membros é plenamente possível, evoluiu para a proteção de uma
coletividade tão diluída que não mais era possível sua identificação.
Nasceu assim a proteção do bem difuso, sendo o meio ambiente seu
principal representante.
É possível afirmar que a proteção dos grupos foi uma preparação
para se alcançar o entendimento necessário para a tutela do bem difuso.
Mudando-se o olhar do legislador, muda-se a lei.

2
BONAVIDES. Curso de direito constitucional, p. 523.
3
LORENZETTI. Teoria da decisão judicial: fundamentos de direito, p. 271.

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A TUTELA DO BEM DIFUSO NAS RELAÇÕES JURÍDICAS DE DIREITO CIVIL
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Ricardo Lorenzetti4 traz uma conceituação didática sobre essa


tutela, assim manifestando-se:

Quando o bem é coletivo, o indivíduo não é o titular ou proprietário


do bem. É conferido a ele um direito (property right) que, na realidade,
é uma ação para defesa do bem que lhe pertence em conjunto com os
demais indivíduos. É um interesse difuso, porque compartilhado com
outros. Daí porque deverá ser feita a distinção entre a titularidade e o
exercício desses direitos.

O valor filosófico da fraternidade ainda encontra vasto campo de


aplicação nos ordenamentos, que através do princípio da solidariedade,
constrói a cada dia novos institutos e novas possibilidades jurídicas
para um mundo em constante transformação.
Tradicionalmente a classificação dos bens é tarefa do Direito
Privado e historicamente o Código Civil só conheceu em seu rol os
bens públicos e os bens privados. O texto normativo de 2002, mesmo
promulgado após a vigência da Constituição Federal, não atualizou
tal classificação para abarcar a terceira espécie de bem, o difuso. Como
consequência, não há uma clareza normativa no Direito Civil sobre as
regras de proteção aos bens difusos envolvidos nas relações jurídicas
reguladas pelo direito das obrigações e pela responsabilidade civil.
Nesse contexto, é preciso aprofundar os estudos sobre a tutela
de um Direito que repercute intensamente nas relações privadas,
realizando-se adequadamente a finalidade normativa de justiça social.
O fato é que não se destinou no Código Civil nenhum capítulo
específico para tratar da proteção do bem difuso nas relações privadas.
O que se produziu no campo dos direitos da personalidade, alargando
o campo de interesse da norma para uma melhor adequação aos direi-
tos fundamentais assegurados no texto constitucional, não se realizou
na seara dos bens, a fim de promover uma adequação ao direito das
obrigações e à responsabilidade civil.
E não havendo nenhuma previsão expressa sobre o bem difuso
e sua regulamentação neste diploma legal, qual a melhor técnica in-
terpretativa a ser utilizada pelo operador do Direito em cada relação
privada? Como adaptar os estudos tradicionais dos institutos civis aos
novos direitos trazidos pelo texto Constitucional?
O Código Civil não apresentou em sua recente reforma nenhuma
adequação de linguagem; como reconhecer, então, no âmbito privado,

4
LORENZETTI. Teoria da decisão judicial: fundamentos de direito, p. 113.

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508 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

o momento de incidência do interesse público? Há uma necessidade


de se promover uma análise da aplicação das normas de Direito Civil
atinentes à categoria dos bens, quando houver a participação de bens
difusos nas relações jurídicas privadas.

3 Para um novo Direito, novos parâmetros


As relações jurídicas de caráter privado, que até pouco tempo
se limitavam aos interesses dos particulares, agora se veem diante de
regras gerais de conduta fundamentadas no interesse público. Por
consequência, cada ato privado, especialmente nas esferas negociais,
é um potencial violador de um direito difuso, tornando-se um alvo da
intervenção Estatal por força da característica reguladora e interven-
cionista do Estado Social.
Se considerarmos o novo modelo contratual adotado pelo Estado
Social, no qual o pacto negocial vai além dos benefícios dos contratantes,
envolvendo a coletividade como parte interessada em seus termos, não
se pode utilizar os institutos do Direito Privado com a mesma perspec-
tiva trabalhada antes da promulgação da Constituição Federal de 1988.
Hodiernamente, a negociação se inicia com as vantagens eco-
nômicas para as partes e avança com a preocupação em não se violar
direitos fundamentais, equilíbrio ecológico e ordem pública.
O Direito Privado não pertence mais apenas aos particulares
contratantes. Está ele envolvido com o Direito Público, porque os
valores jurídicos não concebem mais um sujeito contratante isolado
de seu mundo e alheio aos efeitos do seu negócio no universo externo
ao contrato.
A modernidade exige uma nova comunicação entre o público e
o privado, pois não é mais possível perceber as relações privadas com
o foco único no interesse do indivíduo. Desde a instauração do Estado
Social, o Direito Público tem incorporado alguns institutos privados,
assim como o Direito Privado passou a consolidar elementos públicos
em seu conjunto de normas.
Não se quer dizer com isso que a solução esteja na negação do
indivíduo na esfera de proteção da lei, pois o grupo só encontra sua
essência na felicidade dos seus componentes. Quando o interesse
individual dá seu lugar para o interesse coletivo, não se anula em ne-
nhuma hipótese a proteção privada e singular. Ao contrário, tendo em
vista que nenhum ser humano vive sozinho, pois precisa de seus pares
para realizar na convivência a sua evolução individual, será ele muito

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A TUTELA DO BEM DIFUSO NAS RELAÇÕES JURÍDICAS DE DIREITO CIVIL
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mais feliz e pleno a fazer parte de um grupo feliz no lugar de ser feliz
sozinho. Seguindo as palavras de Farias:5

A existência do homem só tem sentido no quadro da sociedade, e sua


função deve ser dirigida para o “dever social” de preencher seu papel no
seu sistema da “solidariedade social”, pois seu próprio desenvolvimento
enquanto homem depende do sistema social de “solidariedade” como
um todo.

A repartição didática construída pela doutrina que estabeleceu


dois círculos de atuação normativa, um de natureza pública e outra
privada, tem uma imensa utilidade, na medida em que permite a vi-
sualização de dois momentos de percepção do indivíduo; o momento
em que ele precisa ser protegido enquanto ser único e insubstituível
pela sua condição humana, e o momento em que ele é protegido por
ser parte de um grupo social.
Analogicamente, podemos pensar no olhar normativo como
a mão humana. Ora é preciso priorizar o individual, o particular, o
privado, como se fosse ele o dedo ameaçado de mutilação. Mesmo
existindo outros dedos, nenhum deles pode tornar desnecessária a
existência do outro.
Em outros momentos, proteger um único dedo pode significar o
comprometimento das funções da mão, cuja essência está no conjunto,
na diversidade e na ideia de completude dos dedos que a compõe.
Segundo Fábio Podestá,6 a esfera social é o prolongamento da
esfera individual. E explica:

Os direitos econômicos e sociais são um prolongamento dos direitos


e liberdades individuais, valorizando a pessoa humana além de sua
qualidade pessoal, notadamente para conferir justa garantia aos seus
direitos de participação na sociedade, a substituição de um conceito de
justiça distributiva pelo de uma justiça comutativa, que deve considerar
desigualdades individuais, ou seja, tratar desigualmente os desiguais
para igualá-los.

Portanto, não parece razoável a ideia de que o Direito Privado


está caminhando para a publicização. O fato de estar ele mais humano e
solidário não quer dizer que esteja perdendo sua essência de regulação
da vida privada. O fato é que o indivíduo vem sofrendo profundas

5
FARIAS. A origem do direito de solidariedade, p. 233.
6
PODESTÁ. Interesses difusos: qualidade da comunicação e controle judicial, p. 34.

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510 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

modificações de valores desde o fim do século XX, e o Direito Privado


que o protege e regula precisa acompanhar essa transformação.
Nesse ponto, torna-se oportuno descrever o pensamento de
Daniel Sarmento7 ao analisar os efeitos de uma migração ilimitada dos
ramos do Direito para a Constituição Federal.

Como a base da constitucionalização — pelo menos a da sua faceta mais


virtuosa, identificada com a filtragem constitucional do Direito — é
composta por normas vagas e abstratas, a irradiação destas normas para
o ordenamento, quando realizada pelo Poder Judiciário sem critérios
racionais e intersubjetivamente controláveis, pode comprometer valores
muito caros ao Estado Democrático de Direito.

O sentido de solidariedade consolidado no art. 4º da Constituição


Federal como objetivo do Estado só é alcançado se for possível proteger
harmonicamente o interesse público e o interesse privado.
Hanna Arendt8 assegura que a contradição entre o público e o
privado foi um fenômeno temporário, culminando com a submersão
de ambas na esfera social. Segundo suas palavras, “estamos em posição
bem melhor para compreender as consequências, para a existência hu-
mana, do desaparecimento de ambas estas esferas da vida — a esfera
pública porque se tornou função da esfera privada, e a esfera privada
porque se tornou a única preocupação comum que sobreviveu”.
Resgata-se o pensamento grego que ao criar a cidade-estado obri-
gou o cidadão a compor sua vida privada com uma segunda vida, o seu
bios politikos. Ali cada cidadão pertencia a duas ordens de existência; e
há grande diferença em sua vida entre aquilo que lhe é próprio (idion)
e o que é comum (koinon).9
Também na idade média se concebeu uma concepção de coleti-
vidade, como afirma Hannah Arendt:10

o conceito medieval de “bem comum”, longe de indicar a existência


de uma esfera política, reconhecia apenas que os indivíduos privados
têm interesses materiais e espirituais em comum, e só podem conservar
sua privatividade e cuidar de seus próprios negócios quando um deles
se encarrega de zelar por esses próprios negócios quando um deles se
encarrega de zelar por esses interesses comuns.

7
Ubiquidade constitucional: os dois lados da moeda. SARMENTO; SOUZA NETO (Org.).
In: SARMENTO; SOUZA NETO. A constitucionalização do direito: fundamentos teóricos e
aplicações específicas, p. 115.
8
ARENDT. A condição humana, p. 78.
9
ARENDT. A condição humana, p. 33.
10
ARENDT. A condição humana, p. 44.

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EVERILDA BRANDÃO GUILHERMINO
A TUTELA DO BEM DIFUSO NAS RELAÇÕES JURÍDICAS DE DIREITO CIVIL
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A categoria do bem difuso possui uma particularidade jurídica:


não nasceu no ordenamento nem público nem privado. Mesmo uma
concepção de bem público não permite atribuir sua propriedade a ne-
nhum ente federativo, pois não está entre os bens dominiais. Tampouco
pertence a um cidadão ou grupo de cidadãos, embora seja possível o
uso individual de tais bens. Não há direito de propriedade ou posses-
sório que permita sua aquisição. Se visto pela ótica do Direito Privado
é inegável que possui interesse público, e quando visto pelo Direito
Público, notoriamente não está adstrito ao domínio exclusivo do Estado.
A racionalidade até então utilizada para a interpretação dos insti-
tutos civis exige profunda reformulação, não para revogá-los, mas para
atualizá-los. É a necessidade de reconstruir os conteúdos das palavras
já existentes a fim de se alcançar a sociedade livre, justa e solidária que
é desejada pela Constituição Federal.
O Direito Civil já contempla alguns institutos cujo tronco é o
princípio da solidariedade. Assim ocorre, por exemplo, nos contratos
coletivos como os consórcios, nas feiras comerciais, nas compras cole-
tivas, nos contratos em rede, nas associações, na responsabilidade civil
coletiva. É a simples percepção de que a solidariedade é mais produtiva
do que a individualidade competitiva.
No campo da responsabilidade civil e penal, o bem difuso tem
como marco a prevenção dos danos, e não a sanção. Seu valor é de bem
existencial e não há multa ou liberdade de locomoção que substitua o
que foi perdido.
Nessa seara, o papel do Direito é garantir a promoção das virtu-
des civis, evitando danos e deixando a penalidade como último recurso.
Se o ponto de reflexão for a consequência pública das condutas priva-
das, terá o legislador como trabalhar melhor o sistema de regulação
do Direito Privado a fim de harmonizar as searas pública e privada.
Para um novo Direito é preciso um novo olhar sobre o próprio
ordenamento. Trabalhar com institutos novos à luz de institutos anti-
gos limita o alcance de eficácia da norma. Urge uma reformulação da
linguagem e da interpretação dos institutos quando há participação do
bem difuso nas relações jurídicas de natureza privada.

4 Seria o bem difuso um sujeito de direito?


O que faz o ordenamento considerar algo ou alguém como sujeito
de direito no ordenamento jurídico?
O primeiro critério adotado é o da racionalidade. O ser humano,
dotado de razão, se distingue dos demais seres e para ele foi criado o

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
512 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

conjunto de leis, objetivando regular sua convivência com seus pares


no meio social.
Contudo, o critério da racionalidade não é suficiente para identifi-
car um sujeito de direito. Não é preciso ser dotado de razão, consciência
ou autonomia para ser protegido pelo ordenamento. Outros interesses
jurídicos legitimam a tutela legal. Assim acontece com o nascituro, pela
identificação humana com aquele que ainda não é considerado pessoa;
com o espólio, pela necessidade de garantir as relações patrimoniais
no intervalo entre a morte do antigo proprietário e a transferência da
propriedade para os herdeiros; com as gerações futuras e com os ani-
mais, a quem é garantido certos direitos.
Partindo-se da premissa de que o ordenamento jurídico reco-
nhece como sujeito de direito entes não dotados de personalidade
jurídica, não seria inapropriado considerar o bem difuso como sujeito
de direito, uma vez que goza de proteção legal. A criação do bem difuso
no ordenamento jurídico brasileiro, garantindo-lhe ampla proteção,
torna legítima a sua observação como uma nova categoria de sujeito de
direito, justificando-se um estudo mais aprofundado sobre as normas
que sobre ele incidem.
As transformações causadas nos ramos do Direito após a criação
do bem difuso pela Constituição Federal ainda vêm sendo estudadas
pela doutrina e pela jurisprudência. E esse caminho só demonstra o
longínquo horizonte a ser alcançado. Como afirma Ricardo Lorenzetti,11
“há correlação entre o conteúdo dos direitos e os recursos escassos com
os quais se conta para concedê-los, o que leva à obrigação de desen-
volvimento progressivo”.
Se tomarmos como exemplo o meio ambiente, que é bem difuso,
há que se destacar que a qualificação desse bem como de uso comum
traz reflexões importantes, especialmente no âmbito do Direito Privado.
Ao mesmo tempo em que é identificado na Constituição Federal como
bem de uso comum, goza de proteção jurídica, atuando em juízo pela
via da representação do Ministério Público.

5 Um Código Civil tradicional para um Direito de


vanguarda
A estrutura tripartite das categorias básicas do Código Civil
compõe o estudo sobre as pessoas, os bens e os fatos jurídicos, sendo

11
LORENZETTI. Teoria da decisão judicial: fundamentos de direito, p. 136.

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EVERILDA BRANDÃO GUILHERMINO
A TUTELA DO BEM DIFUSO NAS RELAÇÕES JURÍDICAS DE DIREITO CIVIL
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este o ponto de partida para a regulamentação das situações existentes


no âmbito privado. Dentre estas categorias, clara é a deficiência da ca-
tegoria dos bens, que por força da Constituição Federal de 1988 precisa
abarcar a existência jurídica do bem difuso, mas nem mesmo o elenca
no seu rol classificatório.
Segundo Maria Helena Diniz, o critério de exclusão define os bens
entre públicos e privados. Diz a autora: que “os bens públicos, segun-
do o art. 98 do Código Civil, são do domínio nacional, pertencentes à
União, aos Estados ou aos Municípios e às demais pessoas de Direito
Público Interno (CC, art. 41, I a V). Todos os demais são particulares,
pertençam a quem seja”.12
Se pensarmos no meio ambiente, como bem difuso criado pelo
art. 225 da Constituição Federal, a sua qualificação como bem público
ou privado é deficiente, pois sua identificação como bem de uso co-
mum traz uma concepção diferente daquela apresentada no art. 98 do
Código Civil.
Por esta razão, Roxana Borges visualiza um alargamento da ca-
tegoria dos bens prevista no Código Civil. Adverte ela que a expressão
“bem de uso comum”, trazido naquele diploma, confere a qualidade de
bem público, que não reflete o bem ambiental trazido pela Constituição.
Para ela, a previsão constitucional que caracterizou o bem ambiental
como de uso comum do povo ampliou a lista trazida pela legislação
ordinária, acrescentando-lhe o “bem difuso” e acrescentando aos já
existentes o “interesse difuso”.13
Sem retirar a qualificação de bem público ou privado, faz incidir
sobre estes bens um regime jurídico de interesse difuso que se sobrepõe
à natureza jurídica pública ou privada que um bem possa ter.14
Segundo a autora, o bem difuso se configura numa terceira mo-
dalidade, distinta do bem público e do bem privado, e que, portanto,
não é passível de apropriação tanto pelo particular quanto pelo Esta-
do. Portanto, propõe a autora a existência de três categorias de bens
ambientais: os bens ambientais privados de interesse difuso, os bens
ambientais públicos de interesse difuso e o bem difuso propriamente
dito (seu objeto é difuso e sua titularidade também).15

12
DINIZ. Compêndio de introdução à ciência do direito, p. 532.
13
BORGES. Reconstruindo o direito civil a partir do direito ambiental: contrato, bens, sujeito.
Diritto & Diritti – Rivista Giuridica On Line, p. 18. Disponível em: <http://www.diritto.it/art.
php?file=/archivio/24661.html>. Acesso em: 15 out. 2009.
14
Idem, p. 19.
15
Ibidem, p. 20.

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514 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

A afirmativa traz uma discussão pertinente. Se partirmos do


pressuposto que passamos a ter um terceiro item na classificação dos
bens, e se tal categoria do Direito encontra sua base jurídica no Códi-
go Civil, é preciso analisar mais detidamente a correta aplicação das
normas que envolvam o instituto do bem difuso, determinando sua
correta interpretação quando inserida nas relações de Direito Civil.
Como se vê, o Código Civil ainda não abarcou expressamente o
conceito trazido pela Constituição Federal. Há necessidade evidente de
uma atualização da linguagem e das categorias ali existentes. Não obs-
tante, partindo-se da constitucionalização do Direito Civil já é possível
ampliar a interpretação dos conceitos e adaptar as categorias aos novos
paradigmas. Pietro Perlingieri16 chega a propor uma “conformação do
estatuto proprietário”, o que não deve ser confundido com um estatuto
substancialmente expropriativo. E segue afirmando:

A conclusão pela qual é preciso falar de conteúdos mínimos da proprie-


dade deve ser interpretada não em chave jusnaturalista, mas em relação
à reserva de lei prevista na Constituição, a qual garante a propriedade
atribuindo à lei a tarefa de determinar os modos de aquisição, de gozo
e os limites, com o objetivo de assegurar a função social e de torná-la
acessível a todos.

Torna-se inevitável a visualização da fragilidade do Código Civil


para enfrentar os problemas contemporâneos que batem às portas da
propriedade privada. Sua linguagem rígida e a resistência na atualiza-
ção dos institutos entrega uma maior responsabilidade ao intérprete,
que terá que buscar em outros ramos do Direito as soluções adequadas
a cada caso concreto.
Isso não quer dizer, contudo, que haja limitações ao intérprete
frente aos conflitos que envolvam o bem difuso nas relações privadas.
Como bem leciona Pietro Perlingieri,17 o Direito Civil não se apresenta
em antítese ao Direito Público, o fracionamento da matéria jurídica se dá
por razões didáticas, mas não significa a divisão em setores autônomos
e independentes. “Os problemas concernentes às relações civilísticas
devem ser colocados recuperando os valores publicísticos ao Direito
Privado e os valores privatísticos ao Direito Público”.
O Direito Privado não conseguia vislumbrar qualquer perspec-
tiva pública porque se via diminuído em seu papel delimitador, uma
vez que ele mesmo proporcionava ações individuais impenetráveis e

16
PERLINGIERI. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional, p. 231.
17
PERLINGIERI. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional, p. 55.

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EVERILDA BRANDÃO GUILHERMINO
A TUTELA DO BEM DIFUSO NAS RELAÇÕES JURÍDICAS DE DIREITO CIVIL
515

desligadas entre si. Esse valor jurídico foi ultrapassado com a criação
do Estado Social e com a consagração do princípio da solidariedade
como valor constitucional.18
Tomemos como ponto de análise a teoria dos danos. Requer ela
uma nova concepção, na medida em que os danos decorrentes dos
contratos e do ato ilícito são fartamente discutidos para a reparação
individual, mas timidamente refletida quando a lesão toca o bem di-
fuso. Não resguardou o Código Civil nenhum espaço para esse tema,
posto que foi talhado para proteger o indivíduo livre e proprietário que
requer indenização por ato de um outro indivíduo livre e proprietário.
A linguagem de tal legislação não permitiu até agora a concepção de
uma resposta satisfatória a uma lesão que transcende o individual,
embora nascida dentro de uma relação privada.
Ricardo Lorenzetti19 aponta uma crise na unidade do fenômeno
ressarcitório, nascida de dois fatores preponderantes: a escassez de
artigos do Código Civil para regular a explosão de litígios do mundo
moderno e a criação de leis especiais e temas jurisprudenciais sobre a
matéria. E conclui dizendo:

Entendemos necessário empreender uma tarefa de “reconstrução” teórica


da responsabilidade por danos. Essa deve partir imprescindivelmente
dos casos, das responsabilidades especiais, para constatar quanta
heterogeneidade há nelas. Feita essa tarefa, deve ser construída a partir
desses dados uma nova “teoria geral” capaz de compreender os diversos
subsistemas.

A redefinição dos valores jurídicos nasce da transformação do


cidadão. São as relações humanas que fornecem a matéria-prima para
o legislador. Não há sentido em se criar leis que não regulam fato al-
gum. A visão que cada um tem sobre si mesmo é determinante para
uma convivência equilibrada ou desequilibrada do indivíduo com os
seus pares.
Por essa razão torna-se importante um aprofundamento teórico
sobre o tema da tutela legal do bem difuso, especialmente quando
aplicada nas relações privadas, terreno historicamente resguardado
para os interesses individuais e que agora se vê obrigado, por força da
constitucionalização do Direito Civil, a repartir o espaço de proteção
com o interesse público.

18
GUILHERMINO. Propriedade privada funcionalizada, p. 62.
19
LORENZETTI. Teoria da decisão judicial: fundamentos de direito, p. 48-49.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
516 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

O indivíduo se realiza e se completa no coletivo. Junto com seus


pares, experimentando a diversidade, o ser humano encontra sua es-
sência. Desde que a ciência conseguiu produzir bens artificiais para a
satisfação da vida humana, criou-se a falsa ideia de que é possível criar
um mundo próprio, isolado dos demais componentes do planeta. Não
obstante, ao final, percebeu-se a raça humana num estado de solidão
e de um vazio existencial.
O desenvolvimento do valor solidariedade produz um resgate
do ser humano, possibilitando uma viagem a suas origens, naquilo que
o compõe e identifica. Ao vislumbrar sua conectividade natural com o
meio externo a ele, o indivíduo consegue perceber que é no outro que
encontra a si mesmo. Como diria aquela conhecida história, um por
todos e todos por um.
O estudo, necessariamente se amplia para a percepção de uma
seara pública que está entre o espaço público e o espaço privado e,
consequentemente, para a correta aplicação das normas quando o
interesse público se atrela ao interesse privado.

Referências
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EVERILDA BRANDÃO GUILHERMINO
A TUTELA DO BEM DIFUSO NAS RELAÇÕES JURÍDICAS DE DIREITO CIVIL
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ISBN 978-85-7700-616-8.

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DIREITO DE SUPERFÍCIE NO CC/02
AVANÇOS E CONTROVÉRSIAS

PEDRO PONTES DE AZEVÊDO

1 Introdução
O Direito Privado tem passado por profundas transformações
ao longo do tempo, sendo que atualmente encontra-se em uma fase
marcada pela constitucionalização dos seus institutos e regras. Esse
fenômeno, já há muito tempo em desenvolvimento, é marcado por uma
guinada paradigmática, de um viés patrimonialista para um outro, de
cunho existencial. Isto ocorre porque os valores propugnados pelos
movimentos liberais do séc. XVIII, adequados a uma época em que era
necessário proteger os interesses individuais do arbítrio do Estado, já
não se coadunam com a realidade social hodierna.
No Direito Civil, essa mudança paradigmática é sobremaneira
sentida, em todos os seus ramos. O ideário liberal, pautado no indivi-
dualismo, no patriarcalismo e na propriedade como direito absoluto
é substituído por uma visão pautada na dignidade humana, com uma
forte tendência coletiva, funcional, solidária, implementada a partir
dos textos constitucionais e levada a efeito pela legislação infracons-
titucional.
No tocante ao direito de propriedade, o cenário não destoa muito
dessa realidade. Se é indiscutível que a propriedade continua sendo o

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
520 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

direito real em torno do qual gravitam todos os demais, sendo, pois,


aquele de maior importância econômica e social, as semelhanças com
a propriedade oitocentista terminam por aí. Outrora tida como um
direito absoluto, quase ilimitado, a propriedade do séc. XXI é notada-
mente marcada pelo seu caráter coletivo, funcionalizado. No dizer de
Maurício Mota e Marcos Alcino Torres: “Uma propriedade é legítima se
está em conformidade com os limites impostos pelo bem comum, pela
destinação final, sempre anterior a qualquer uso particular”.1
O ordenamento jurídico-constitucional eleva o princípio da
função social da propriedade ao status de norma fundante do sistema
de direitos reais. A propriedade só pode ser tutelada se estiver em
harmonia com a sua destinação social.2 Nesta linha de pensar, Gustavo
Tepedino e Anderson Schreiber defendem que “no direito brasileiro,
a garantia da propriedade não pode ser compreendida sem atenção à
sua função social”.3
O exercício individual do direito de propriedade é, pois, prece-
dido pelos interesses coletivos. Estes, por sua vez, se materializam de
duas maneiras: em primeiro lugar, por meio de limitações impostas
ao proprietário, que deve respeitar a legislação ambiental, trabalhista,
previdenciária, de modo a não gerar prejuízos à coletividade; por outro
lado, para além desse cariz limitador, a função social impõe que a pro-
priedade assuma um papel positivo, impulsionador4 de solidariedade,
igualdade e dignidade.
Um dos institutos que se propõe a atuar como funcionalizador
da propriedade no ordenamento jurídico pátrio é a superfície, direito
real sobre coisa alheia regulamentado pelo Código Civil de 2002 e pelo
Estatuto da Cidade (Ecid – Lei nº 10.257/01). Há, entretanto, diversas
questões que ainda se encontram em aberto, mesmo após esses dez pri-
meiros anos de vida do diploma civil. É sobre algumas dessas questões
que se fará uma análise, nos tópicos seguintes.

1
MOTA; TORRES (Coord.). Transformações do direito de propriedade privada, p. VII.
2
Nesse sentido, preleciona Maurício Mota: “Portanto o direito de propriedade não é um
absoluto formal, mas só se justifica se a ele é dado um uso social e na medida dessa justifi-
cação, mormente naquela classe de bens que não se destina primordialmente ao mercado,
como é o caso da terra” (MOTA. Questões de direito civil contemporâneo, p. 589).
3
TEPEDINO; SCHREIBER. A garantia da propriedade no direito brasileiro. Revista da
Faculdade de Direito de Campos, p. 102.
4
O termo “intervenções impulsionadoras” é utilizado por José de Oliveira Ascensão, para
quem: (...) “enquanto no século passado a lei quase se limitava a certo número de interven-
ções de carácter restritivo, agora multiplicam-se as intervenções impulsionadoras, de modo
a aumentar o proveito que socialmente se pode extrair do bem” (ASCENSÃO. Direito civil:
reais, p. 192).

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PEDRO PONTES DE AZEVÊDO
DIREITO DE SUPERFÍCIE NO CC/02 – AVANÇOS E CONTROVÉRSIAS
521

2 Direito real de superfície – Breve análise do seu


conceito e das suas características
O direito de superfície surgiu no Direito Romano, na fase final
do período clássico, sendo considerado inicialmente uma relação obri-
gacional e posteriormente como direito real, por criação pretoriana.5
Em um primeiro momento valia o primado segundo o qual tudo o que
fosse acrescido ao solo pertencia ao proprietário daquele bem imóvel.
Segundo A. Santos Justo:

O direito de superfície é também uma figura jurídica puramente romana,


criada para afastar as consequências anti-económicas do conceito romano
de propriedade (dominium): constituindo a propriedade imobiliária um
pequeno território e pertencendo ao proprietário (dominus fundi) o que
lhe fosse acrescentado ou incorporado (superfícies solo cedit), o edifício
construído não podia deixar também de lhe pertencer.6

Com o passar do tempo, entretanto, foi necessário se desenvol-


ver institutos que permitissem a exploração dos terrenos, que na sua
maioria eram de propriedade do Estado. A princípio foi permitida a
construção por particulares em terrenos públicos mediante o pagamento
de um cânon anual, em relações que assumiam um caráter pessoal. No
Direito justinianeu é que se atribuiu à superfície o status de direito real.7
No Brasil, o instituto não é novidade introduzida pelo CC/02,
como alguns chegam a propagar, posto que era aplicado quando das
Ordenações do Reino, restando vigente ainda durante o Império, até
ser revogado pela Lei nº 1.237, de 1864, que não o regulamentou como
direito real.8 O Código Civil de 1916 também não o regulamentou em
seu rol de direitos reais, razão pela qual a superfície só foi reintroduzida
no nosso sistema jurídico pelo Ecid (Lei nº 10.257/01), que a regulamen-
tou em quatro dos seus dispositivos (arts. 21 a 24). Posteriormente, o
direito de superfície foi regulamentado pelo Código Civil de 2002, que
o disciplinou em nove dos seus artigos (1.369 a 1.377).
No tocante ao seu conceito, tem-se, com José de Oliveira Ascensão,
que direito de superfície é “o direito real de ter coisa própria incorporada
em terreno alheio”.9 No dizer de A. Santos Justo, superfície é:

5
Sobre a evolução histórica do direito de superfície: Cf. LEITÃO. Direitos reais, p. 374;
FARIAS; ROSENVALD. Direitos reais, p. 415.
6
JUSTO. Direitos reais, p. 390.
7
Ibidem.
8
NADER. Curso de direito civil, p. 296.
9
ASCENSÃO. Direitos reais, p. 525.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
522 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

(...) um direito real transmissível inter vivos e mortis causa de, perpetu-
amente ou durante largo tempo, gozar, plena e exclusivamente, de um
edifício construído em solo alheio, mediante o pagamento de um cânone
em regra anual, denominado pensio ou solarium.10

Por fim, para Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald:

O direito de superfície consiste na faculdade que o proprietário possui


de conceder a um terceiro, tido como superficiário, a propriedade das
construções e plantações que este efetue sobre ou sob o solo alheio (solo,
subsolo ou especo aéreo do terreno), por tempo determinado ou sem
prazo, desde que promova a escritura pública no registro imobiliário.11

Superfície, portanto, é um direito real sobre a coisa alheia que


se caracteriza como uma limitação voluntária às prerrogativas do pro-
prietário, para permitir que outra pessoa utilize o seu bem imóvel e
nele faça construções ou plantações. Possui a importante característica
de permitir que um bem imóvel seja explorado por alguém distinto do
titular do domínio.
O objetivo do presente artigo é analisar o direito de superfície
regulamentado pelo Código Civil de 2002, que ora completa dez anos
de existência. Para isso, iniciar-se-á fazendo uma breve explanação
acerca dos dispositivos codificados.

3 Regulamentação legal no Código Civil de 2002


O Código Civil de 2002 inseriu o direito de superfície no rol de
direitos reais do art. 1.225 (inc. II), sendo que o instituto já havia sido
reintroduzido no ordenamento pátrio pelo Ecid, consoante já explanado.
O objeto do direito de superfície previsto no CC/02 é a exploração
de um bem imóvel, por meio de construções ou plantações a serem
promovidas pelo superficiário. De acordo com a regra codificada, o
direito real em tela só abrange o uso do solo. Excepcionalmente, porém,
poderá ser realizada obra no subsolo, desde que a utilização deste seja
inerente à natureza da edificação, ou seja, aquela que se não ocorresse
tornaria inviável a exploração do terreno.
A constituição da superfície se dá por escritura pública, a ser
registrada no Cartório de Registro de Imóveis. A concessão do direito

10
JUSTO, op. cit., p. 391.
11
FARIAS; ROSENVALD, op. cit., p. 414-415.

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PEDRO PONTES DE AZEVÊDO
DIREITO DE SUPERFÍCIE NO CC/02 – AVANÇOS E CONTROVÉRSIAS
523

real pode ser gratuita ou onerosa, no entanto o superficiário ficará


responsável pelos encargos e tributos que incidirem sobre o imóvel.
O direito é transmissível a terceiros, seja por contrato ou pela
sucessão do titular da superfície. Na primeira hipótese, de transmissão
inter vivos, contudo, o proprietário terá preferência em relação a terceiros
para a aquisição do direito de superfície, em igualdade de condições.
O mesmo se aplica ao superficiário, se o proprietário decidir alienar
o imóvel, tudo em conformidade com o estatuído pelo art. 1.373, do
CC/02.12 Se tiver o seu direito de preferência preterido, o superficiário
poderá valer-se de ação para efetuar o depósito judicial do valor corres-
pondente e pleitear a adjudicação do imóvel, consoante entendimento
exarado no Enunciado a seguir transcrito:

Enunciado 510, da V Jornada de Direito Civil


Ao superficiário que não foi previamente notificado pelo proprietário
para exercer o direito de preferência previsto no art. 1.373 do CC é as-
segurado o direito de, no prazo de seis meses, contado do registro da
alienação, adjudicar para si o bem mediante depósito do preço.

Outro ponto importante é o que diz respeito ao prazo da super-


fície. No caso das regras previstas pelo CC/02, as partes deverão esta-
belecer um tempo determinado para a sua duração. Não há, todavia,
previsão legal quanto ao mínimo e ao máximo de tempo permitido.
Assim, caberá às partes, por meio da imposição de termo final, estipular
o tempo de duração da superfície. Assim, o direito real de superfície se
extinguirá com o advento do termo final definido pelas partes. Antes
do seu implemento, porém, poderá ser extinto se o superficiário der
ao terreno uma destinação diferente da acordada com o proprietário,
na forma do art. 1.374, do CC/02.13
São estes os principais aspectos da propriedade superficiária
regulamentada pelo CC/02. Atualmente, entretanto, o direito de super-
fície ainda dá margem a algumas interpretações conflitantes, seja em
razão da sua recente reintrodução no ordenamento jurídico, seja em
função da ausência de regulamentação de alguns pontos importantes
do instituto. Nos itens que se seguem serão analisadas algumas dessas
questões controvertidas.

12
CC/02 – Art. 1.373. ����������������������������������������������������������������������
Em caso de alienação do imóvel ou do direito de superfície, o superfi-
ciário ou o proprietário tem direito de preferência, em igualdade de condições.
13
CC/02 – Art. 1.374. Antes do termo final, resolver-se-á a concessão se o superficiário der ao
terreno destinação diversa daquela para que foi concedida.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
524 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

4 Avanços e controvérsias acerca do direito de superfície


4.1 Convivência entre as normas do CC/02 e do Estatuto
da Cidade (Lei nº 10.257/01) no regramento do direito
de superfície
O Estatuto da Cidade regulamentou a superfície em alguns de
seus comandos normativos, tendo sido o diploma legal que reinseriu o
referido direito real no nosso ordenamento jurídico, como já se salien-
tou. Do ponto de vista temporal, a lei em questão é anterior ao Código
Civil, o que levou alguns juristas à interpretação de que ela teria sido
revogada pelo diploma civil, no tocante à superfície.
Esta análise mostrou-se equivocada, embora ainda haja alguns
posicionamentos contrários,14 tendo a doutrina entendido majorita-
riamente que as normas do Ecid e do CC/02 sobre o direito de super-
fície são válidas e convivem harmonicamente, tendo apenas âmbitos
de incidência distintos. Em outras palavras, as normas relativas ao
direito de superfície contidas no CC/02 não revogaram as já existen-
tes anteriormente no Ecid, mas apenas possuem uma aplicabilidade
diferente.15 Nesse sentido, por todos, o entendimento de Luciano de
Camargo Penteado:

Assim, convivem no sistema de direito positivo o direito de superfície


do Ecid, para imóveis urbanos, no contexto do microssistema de direito
urbanístico por ele regido e o direito de superfície de ius commune, para a
generalidade das hipóteses imobiliárias, com regimes distintos, embora
parcialmente complementares.16

Na mesma linha de exegese, confira-se o teor do Enunciado 93, da


I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: “O Estatuto
da Cidade prevê o direito de superfície com peculiaridades distintas
daquelas previstas pelo Código Civil”.
Desta forma, o critério para se determinar em que casos deve
ser aplicada a regulamentação codificada e em quais deve-se aplicar as
regras estatutárias é orientado pela situação do imóvel. Em se tratando

14
Por todos, Carlos Roberto Gonçalves: “Com a entrada em vigor, porém, do último diploma
houve a derrogação do aludido Estatuto, passando o instituto em apreço a ser regulado
inteiramente pelos arts. 1.369 a 1.377 do novo Codex” (GONÇALVES. Direito civil brasileiro,
p. 414).
15
Corroboram esse pensamento, dentre outros, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald,
para quem: “A partir de 11 de janeiro de 2003, as legislações geral e especial iniciaram regime
de coabitação” (FARIAS; ROSENVALD, op. cit., p. 416-417).
16
PENTEADO. Direito das coisas, p. 406.

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PEDRO PONTES DE AZEVÊDO
DIREITO DE SUPERFÍCIE NO CC/02 – AVANÇOS E CONTROVÉRSIAS
525

de concessão de superfície com objetivo de promoção da função social


da cidade, de sua urbanização e sustentabilidade, serão aplicáveis as
normas do Ecid. Por outro lado, em se tratando de relação privada,
ainda que se esteja diante de imóvel urbano, incidirão as normas do
Código Civil de 2002. Aliás, o próprio CC/02, em seu art. 1.377, deter-
mina a subsidiariedade das suas normas quando se tratar de superfície
concedida por Pessoa Jurídica de Direito Público Interno.
Esta definição é importante, porque há algumas divergências
nos dois regramentos. Por não se tratar do objeto do presente estudo,
limitar-se-á a apresentar algumas delas. A primeira delas diz respeito
ao prazo de duração, já que pelo Ecid a superfície pode ser estabelecida
por tempo determinado ou indeterminado, enquanto que pelo CC/02,
conforme já frisado, ela só pode ser concedida por tempo determinado.
Uma outra distinção relevante se dá no tocante ao uso do subsolo pelo
superficiário. No Ecid, há previsão expressa nesse sentido, enquanto
que no CC/02 o uso do solo é adstrito às situações em que ele seja in-
dispensável à exploração do imóvel. Por fim, quanto ao uso do espaço
aéreo pelo superficiário, o Ecid tem previsão expressa nesse sentido,
enquanto o CC/02 restou silente nesse ponto.
Isto posto, tem-se que embora o instituto da superfície seja tra-
tado por dois diplomas legais diferentes, que se sucederam no tempo,
ambos convivem harmonicamente, devendo-se apenas observar o caso
concreto para determinar qual deles regerá a sua concessão.

4.2 Possibilidade e legalidade da sobrelevação (ou direito


de laje) e da superfície por cisão
Outras duas questões importantes e controversas quanto ao direi-
to de superfície são: (a) a possibilidade de sobrelevação; e (b) a licitude
da superfície por cisão. A sobrelevação se dá quando o proprietário cede
a outra pessoa o direito de construir sobre a base da sua edificação.
Recebe também a denominação de “direito de laje”, dizendo respeito,
pois, a uma faceta horizontal do direito de superfície. Já a superfície
por cisão ocorre quando já existe uma construção no imóvel e o pro-
prietário concede o direito de o superficiário utilizar essa construção,
independentemente da necessidade de reformas ou melhoramentos.17
As duas questões serão analisadas nos itens que seguem.

17
Rodrigo Mazzei divide a superfície por cisão em duas espécies, quais sejam: (a) ordinária:
quando o superficiário não precisar introduzir benfeitorias no implante; e (b) qualificada:

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
526 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

I) Sobrelevação
A possibilidade de sobrelevação no nosso sistema jurídico divide
a doutrina. O ponto fulcral da polêmica diz respeito à suposta ausência
de regulamentação legal do tema. Para aqueles que advogam pela sua
impossibilidade, isso impediria a sua constituição na prática. Já os que
interpretam favoravelmente ao direito de laje o fazem basicamente
lastreados em duas questões: (a) o ordenamento não proíbe a sua exis-
tência, ficando a questão adstrita à autonomia privada dos contratantes;
e (b) o Ecid, ao regulamentar o direito de superfície, permite a cessão
do espaço aéreo pelo proprietário.
De fato, o CC/02 não regulamenta o direito de laje, diferen-
temente do que ocorre em Portugal, onde há previsão expressa, no
art. 1.526º do Código Civil. Por essa razão, fazendo uma exegese literal
do comando normativo plasmado no art. 1.369 do CC/02, há uma cor-
rente que advoga pela sua impossibilidade em nosso ordenamento,18
posto que o citado dispositivo não faz menção ao uso do espaço aéreo
do imóvel, mas apenas ao solo e ao subsolo, este último apenas quando
for imprescindível.19 Ressalte-se que no regime superficiário do Ecid
a concessão de direitos sobre o espaço aéreo é textualmente prevista
no art. 21, §1º.20
Para superar essa divergência, duas soluções podem ser apre-
sentadas, de acordo com a corrente majoritária.21 Em primeiro lugar,
poder-se-ia considerar que a sobrelevação possui papel relevante no
planejamento urbano, em virtude da sua contribuição para um melhor

na hipótese em que ele precisa fazê-las. Sobre o tema, Cf. MAZZEI. O direito de superfície e
a sobrelevação. In: DELGADO; ALVES (Coord.). Novo Código Civil: questões controvertidas,
p. 229.
18
Contrário à sobrelevação, por todos, veja-se o argumento de Carlos Roberto Gonçalves: “O
novo diploma não contempla também a possibilidade de sobrelevação ou da superfície em
segundo grau, autorizada nos direitos português, francês (surélévation) e suiço (superfície
au deuxième degré)” (GONÇALVES. Direito civil brasileiro, p. 418).
19
CC/02 – Art. 1.369. O proprietário pode conceder a outrem o direito de construir ou de
plantar em seu terreno, por tempo determinado, mediante escritura pública devidamente
registrada no Cartório de Registro de Imóveis.
Parágrafo único. O direito de superfície não autoriza obra no subsolo, salvo se for inerente
ao objeto da concessão.
20
Lei nº 10.257/01 – Art. 21. O proprietário urbano poderá conceder a outrem o direito de
superfície do seu terreno, por tempo determinado ou indeterminado, mediante escritura
pública registrada no cartório de registro de imóveis.
§1º O direito de superfície abrange o direito de utilizar o solo, o subsolo ou o espaço aéreo
relativo ao terreno, na forma estabelecida no contrato respectivo, atendida a legislação
urbanística.
21
É de opinião favorável à possibilidade de sobrelevação, dentre outros, Rodrigo Mazzei (O
direito de superfície e a sobrelevação. In: DELGADO; ALVES (Coord.). Novo Código Civil:
questões controvertidas, p. 236-237).

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PEDRO PONTES DE AZEVÊDO
DIREITO DE SUPERFÍCIE NO CC/02 – AVANÇOS E CONTROVÉRSIAS
527

aproveitamento dos bens imóveis. Por essa característica, seria aplicado


o regramento do Estatuto da Cidade, com fins de se atingir e permitir
o cumprimento da função social da cidade. Dito isto, restaria superada
a tese da impossibilidade de sobrelevação.
Em segundo lugar, é preciso salientar que não se está diante
da criação de um novo direito real, o que só seria possível por lei, em
razão do princípio da tipicidade. O que se advoga é a possibilidade de
uma subespécie do direito de superfície, que se constituiria por meio
de uma cessão outorgada pelo proprietário do imóvel, permitindo
que o superficiário construísse acima da sua propriedade. Ademais,
aquilo que não é proibido por lei é permitido aos particulares, dentro
da sua esfera de autonomia privada. Entende-se, desta forma, com a
corrente majoritária, que a sobrelevação é perfeitamente cabível no
nosso sistema jurídico.
Isto posto, há ainda uma questão interessante a analisar sobre o
tema, que é a relação jurídica que se instaura quando da concessão do
direito de laje. Ocorre que a sobrelevação dá ao superficiário o direito
de construir, extinguindo-se o direito de superfície quando do término
da edificação. Deste ponto em diante, a acessão será incorporada ao
edifício principal, que ali já existia, formando-se um condomínio no
imóvel agora existente. Essa peculiaridade afasta a sobrelevação do
regramento comum da superfície, tendo em vista que esta incide sobre
o solo e é sempre temporária.
No dizer de Luís Manuel Teles de Menezes Leitão:

O afastamento do regime comum da superfície é muito acentuado, uma


vez que o direito de sobrelevação não incide sobre um terreno, mas antes
sobre um edifício, não sendo assim atribuídos ao superficiário quaisquer
poderes de transformação do solo. Por outro lado, o conteúdo do direito
limita-se à faculdade de construir.22

E conclui o professor português explicando que:

A superfície extingue-se consequentemente com a nova construção,


surgindo a partir daí um direito de propriedade horizontal, atribuindo-
se igualmente ao construtor um direito sobre as partes comuns do
prédio (art. 1421º) para evitar que fossem defraudadas as regras desse
instituto.23

22
LEITÃO. Direitos reais, p. 389.
23
Ibidem.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
528 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Em verdade, conclui-se assim que o direito de superfície, na


espécie sobrelevação, tem duração certa e determinada, qual seja, o
período necessário à edificação. Ao seu término, o superficiário passa
a ser coproprietário do imóvel. Trata-se de uma situação fática que, se
corretamente utilizada, pode ser um mecanismo para o melhor apro-
veitamento do solo e a diminuição do déficit habitacional no Brasil.

II) Superfície por cisão


Consoante já explicitado, superfície por cisão é aquela que ocorre
quando o superficiário incorpora ao seu patrimônio, temporalmente,
a acessão já existente em um imóvel objeto de concessão superficiária.
Assim como ocorre com o direito de laje, há controvérsia quanto à sua
legalidade, em virtude da ausência de previsão legal. Na verdade,
interpretando-se o art. 1.369 do CC/02, uma parte da doutrina entende
que a cessão de edificações já construídas desnaturaria o direito de
superfície. Tal entendimento se baseia no fato de que a lei só permite
que a superfície englobe o direito de fazer acessões (construções e
plantações) no imóvel, sendo impossível a cessão de obra já edificada,
seja ou não necessário fazer benfeitorias para explorá-la.24
Não é este o entendimento da maior parte da doutrina, que en-
tende inclusive que o texto do CC/02 deixou de avançar como deveria
nessa questão. Ao não regulamentar a superfície por cisão, o legislador
teria deixado passar uma oportunidade de prever um instituto que
possivelmente traria um importante contributo para a conservação de
prédios em ruínas e se tornaria um instrumento para que se atingisse
a almejada função social da cidade.
Não é outro o pensamento de Cristiano Chaves de Farias e
Nelson Rosenvald:

Parece-nos que neste ponto o legislador agiu de forma tímida, pois a


possibilidade de concessão de “superfície por cisão” seria excelente
modo de revitalização de edificações mal conservadas, abandonadas
pelo tempo, ou de conclusão de obras de edificação que foram parali-
sadas por desídia ou carência econômica dos proprietários.25

No entanto, o fato de não haver previsão normativa expressa


não impede a constituição da superfície por cisão, tendo em vista não
haver proibição legal. Na mesma linha de raciocínio empreendida
quando da análise da sobrelevação, não há por que se entender pela

24
Entre outros, cite-se a posição de Carlos Roberto Gonçalves, contrária à possibilidade de
superfície por cisão (GONÇALVES, op. cit., p. 414).
25
FARIAS; ROSENVALD, op. cit., p. 418.

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DIREITO DE SUPERFÍCIE NO CC/02 – AVANÇOS E CONTROVÉRSIAS
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impossibilidade de superfície por cisão, apenas por essa razão. Reitera-­


se o conhecido primado de que aos particulares tudo aquilo que não
for proibido é permitido.
Nesse sentido, o Conselho da Justiça Federal aprovou, na III
Jornada de Direito Civil, um Enunciado sobre o tema, reforçando o
entendimento aqui esposado: “Enunciado 250: Art. 1.369: Admite-se a
constituição do direito de superfície por cisão”. Comentando o tema em
questão, Rodrigo Mazzei corrobora o entendimento de que a superfície
por cisão é admitida no ordenamento pátrio:

A conclusão é correta, uma vez que seria — no mínimo — estranho dizer


que o nosso sistema admite o direito de superfície mais complexo (com
duas fases: feitura do implante e fruição do implante), mas rejeita a con-
cessão por cisão, de natureza mais simples (possui apenas uma fase).26

Diante desses argumentos, é de se concluir que o ordenamento


jurídico brasileiro não proíbe a constituição de superfície por cisão, o
que autoriza os pactuantes a fazê-lo, dentro da sua esfera de autono-
mia privada. Este modo de concessão superficiária, portanto, pode ser
utilizado como relevante mecanismo para que se combata a ociosidade
de terras em nosso País.

4.3 Direito de superfície como instrumento de


funcionalização da propriedade
Conforme já salientado, o direito de superfície possui grande
potencial funcionalizador da propriedade, especialmente no seu viés
promocional.27 Vislumbram-se vantagens tanto para o proprietário, que
não pode ou não pretende fazer uso do seu bem imóvel imediatamente,
quanto para o superficiário, que recebe o direito de explorar a proprie-
dade, o que lhe restaria vedado em razão dos altos investimentos que
teria que fazer para adquiri-la.

26
MAZZEI, op. cit., p. 229, nota 10.
27
Essa matriz positiva da função social da propriedade é defendida por Pietro Perlingieri, para
quem: “A função social predeterminada para a propriedade privada não diz respeito exclusi-
vamente aos seus limites. (...) Em um sistema inspirado na solidariedade política, econômica
e social e ao pleno desenvolvimento da pessoa (art. 2 Const.) o conteúdo da função social
assume um papel de tipo promocional, no sentido de que a disciplina das formas de proprie-
dade e as suas interpretações deveriam ser atuadas para garantir e para promover os valores
sobre os quais se funda o ordenamento” (PERLINGIERI. Perfis do direito civil: introdução ao
direito civil constitucional, p. 226).

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
530 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

O proprietário se beneficia em pelo menos duas frentes: a) ao não


correr o risco de sofrer as sanções impostas pelo ordenamento jurídico-­
constitucional ao solo não utilizado, subutilizado ou ao edificado, tais
como o parcelamento, a utilização e a edificação compulsória, o Imposto
Predial e Territorial progressivo no tempo e até a medida extrema da
desapropriação;28 b) ao transferir para o superficiário, enquanto durar
a superfície, o ônus de pagar os tributos que recaiam sobre o imóvel.
Já o superficiário se beneficia de maneira ainda mais clara, pois
pode explorar imóvel alheio sem contrapartida obrigatória, retirando
dele os frutos e demais benefícios, sem precisar adquirir a proprieda-
de do mesmo (o que demandaria um aporte de capital muitas vezes
inviável para a maioria das pessoas).
Diante da realidade socioeconômica do Brasil, em que se verifica
um déficit habitacional muito grande, apesar do número significativo
de propriedades inutilizadas e/ou improdutivas existentes, o direito de
superfície poderia servir como elemento de transição para uma utili-
zação mais justa, coletivizada da propriedade. Esta medida, inclusive,
estaria albergada não só pelo primado da função social da propriedade,
mas também pelos princípios da solidariedade social e da dignidade
humana, todos preconizados pela Constituição Federal.
Com base nesses argumentos, demonstrados aqui de forma
concisa em razão do objetivo do presente texto, entende-se que não há
como negar o potencial da superfície como mecanismo funcionaliza-
dor da propriedade. Nesse sentido, transcrevem-se os ensinamentos
de Paulo Nader:

Em um país como o nosso que, paralelamente à crise de moradias,


apresenta grandes latifúndios inaproveitados, o instituto da superfície,
devidamente adaptado à realidade brasileira e consagrando os calores
do justo, há de despertar a motivação de quem pretenda dedicar-se à
cultura da terra ou promover edificações e atender, ao mesmo tempo,

28
Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal,
conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvi-
mento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. (...)
§ 4º É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no
plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edifica-
do, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena,
sucessivamente, de:
I - parcelamento ou edificação compulsórios;
II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previa-
mente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas
anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.

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PEDRO PONTES DE AZEVÊDO
DIREITO DE SUPERFÍCIE NO CC/02 – AVANÇOS E CONTROVÉRSIAS
531

os proprietários que não têm condições de desenvolver projetos de


utilização do solo.29

Corrobora com esse entendimento Luciano de Camargo Penteado,


aduzindo que:

Desta forma, acaba por ser, principalmente, um instrumento de natureza


jurídica para facilitar a efetiva e atual utilização de terrenos para fins de
atividade ou moradia, à vista de implementar as diretrizes fundamentais
de função social da propriedade.30

Por fim, ainda sobre o ponto, Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald


aduzem que:

Uma das maiores utilidades do direito de superfície é a sua grande


densidade econômica. Uma pessoa poderá construir ou plantar em solo
alheio, sem a necessidade de adquirir o terreno e despender grande so-
mas de capital, propiciando a concessão de função social à propriedade.31

O potencial caráter funcionalizador da propriedade do direito de


superfície é cristalino. O instituto em tela possui, na sua gênese, um forte
viés socializante do direito de propriedade. A despeito disso, porém,
ainda não ganhou um número significativo de adeptos em nosso País.

5 Conclusões
A propriedade contemporânea não pode ser tutelada se não
cumprir a sua função social, seja no aspecto limitativo, seja no âmbito
promocional. O proprietário hodierno não pode se adstringir ao uso
e exploração do seu bem, devendo, ao contrário, utilizá-lo de maneira
sustentável e adequada ao interesse coletivo.
Conforme se pretendeu demonstrar neste texto, o direito de
superfície é, indubitavelmente, um instituto que pode propiciar o
cum­primento da função social da propriedade, em razão do seu viés
socializante.
A recente reintrodução da superfície em nosso sistema jurídico
ainda não se refletiu em um grande número de concessões na prática.

29
NADER, op. cit., p. 297.
30
PENTEADO. Direito das coisas, p. 404.
31
FARIAS; ROSENVALD, op. cit., p. 416.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
532 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Além disso, o instituto possui especificidades, como a sua regulamen-


tação por dois diplomas legais distintos (CC/02 e Ecid), o que por si só
gera controvérsias quanto à sua aplicação.
A despeito da regulamentação pouco técnica empreendida pelo
legislador, especialmente no texto codificado, a doutrina tem se esfor-
çado para ampliar o seu âmbito de incidência. Variações do direito de
superfície, como a sobrelevação e a superfície por cisão, são exemplos
desse movimento.
Em face de algumas das peculiaridades aqui demonstradas,
contudo, a superfície ainda possui irrisória aplicação concreta, o que
talvez se explique pela sua recente reintrodução no ordenamento ju-
rídico pátrio e pelas questões polêmicas acerca da sua aplicabilidade.
Obviamente não se mudará a atual disposição social e econô-
mica, calcada na falsa percepção de segurança jurídica que as pessoas
têm ao manter o patrimônio imobiliário “parado”, estático, para outra
realidade, dinâmica, funcional, em um curto espaço de tempo. A sua
maior aplicação prática, portanto, talvez seja uma questão de tempo, ou
mesmo de difusão da sua relevância e contribuição para o cumprimento
da função social da propriedade.
Cabe ao legislador regulamentar as questões ainda controversas,
e aos juristas incentivar a utilização desse instituto, para que ele possa
se tornar aquilo que se espera que ele seja: um importante mecanismo
de democratização dos bens e dos espaços sociais.

Referências
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito civil: reais. 5. ed. Coimbra: Coimbra Ed., 2000.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 6. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2009.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
v. 5. Direito das coisas.
JUSTO, A. Santos. Direitos reais. 3. ed. Coimbra: Coimbra Ed., 2011.
LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direitos reais. Coimbra: Almedina, 2009.
MAZZEI, Rodrigo. O direito de superfície e a sobrelevação. In: DELGADO, Mário Luiz;
ALVES, Jones Figueiredo (Coord.). Novo Código Civil: questões controvertidas. São Paulo:
Método, 2008. v. 7, p. 225-242. Direito das coisas.
MOTA, Maurício. Questões de direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008.
MOTA, Maurício; TORRES, Marcos Alcino (Coord.). Transformações do direito de propriedade
privada. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.

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PEDRO PONTES DE AZEVÊDO
DIREITO DE SUPERFÍCIE NO CC/02 – AVANÇOS E CONTROVÉRSIAS
533

NADER, Paulo. Curso de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2010. v. 4. Direito das coisas.
PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das coisas. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2008.
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional.
Tradução de Maria Cristina De Cicco. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.
TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. A garantia da propriedade no direito
brasileiro. Revista da Faculdade de Direito de Campos, ano 6, n. 6, p. 101-119, jun. 2005.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

AZEVÊDO, Pedro Pontes de. Direito de superfície no CC/02: avanços e


controvérsias. In: EHRHARDT JR., Marcos (Coord.). Os 10 anos do Código
Civil: evolução e perspectivas. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 519-533. ISBN
978-85-7700-616-8.

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SOBRE OS AUTORES

Adriano Marteleto Godinho


Professor de Direito Civil da Universidade Federal da Paraíba. Mestre em Direi-
to Civil pela Universidade Federal de Minas Gerais. Doutorando em Ciências
Jurídicas pela Universidade de Lisboa. Advogado.

Ana Carolina Trindade Soares


Mestre em Direito pela UFAL. Professora Universitária. Servidora do TJ/PE.

Carolina Valença Ferraz


Doutora e Mestre em Direito Civil pela PUC-SP. Professora da Universidade
Católica de Pernambuco (Unicap), do Centro Universitário de João Pessoa
(Unipê) e da Faculdade de Direito de Caruaru (Asces).

Cristiano Chaves de Farias


Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Mestre em
Famílias na Sociedade Contemporânea pela UCSal (Universidade Católica do
Salvador). Professor de Direito Civil da Faculdade Baiana de Direito e do Curso
Telepresencial LFG – preparatório para as carreiras jurídicas. Coordenador do
curso de Pós-Graduação em Direito Civil do Curso JusPodivm. Membro do
Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).

Ermiro Neto
Professor de Direito Civil da Faculdade Baiana de Direito e da Escola Supe-
rior de Advocacia da OAB/BA (ESAD-OAB/BA). Especialista em Direito Civil
(Juspodivm/Unyahna) e aluno do Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal da Bahia (PPGD/UFBA), em nível de Mestrado (linha
“Relações Sociais e Novos Direitos”). Advogado e Consultor Jurídico.

Everilda Brandão Guilhermino


Advogada. Mestre em Direito Privado pela Universidade Federal de Alagoas.
Professora de Direito Civil e Direito Ambiental em Graduação e Pós-Graduação
lato sensu.

Felipe Peixoto Braga Netto


Mestre em Direito Civil pela UFPE. Professor da ESDHC, da PUC Minas e da
ESMPU. Membro do Ministério Público Federal (Procurador da República).
Procurador Regional Eleitoral de Minas Gerais (2010/2012). Autor de 16 livros,
entre obras individuais e coletivas.

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
536 OS 10 ANOS DO CÓDIGO CIVIL – EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS

Fernanda Paes Leme Peyneau Rito


Doutoranda em Direito Civil pela UERJ. Mestra em Direito Civil pela UERJ.
Professora de Direito Civil do Ibmec e da Universidade Cândido Mendes. Pro-
fessora convidada dos cursos de Pós-Graduação lato sensu do curso de Direito
Civil Constitucional do Centro de Estudos e Pesquisas no Ensino do Direito
(Ceped), da Faculdade de Direito da UERJ. Professora convidada do curso de
Pós-Graduação lato sensu em Responsabilidade Civil e Direito do Consumidor
da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Professora convidada
dos cursos de Pós-Graduação lato sensu do Instituto de Direito da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Advogada.

Flávio Tartuce
Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela
PUC-SP. Coordenador e Professor dos cursos de Graduação e Pós-Graduação
da Escola Paulista de Direito. Professor da rede de ensino LFG. Advogado e
Consultor Jurídico.

Glauber Salomão Leite


Doutor e Mestre em Direito Civil pela PUC-SP. Professor da Universidade
Estadual da Paraíba (UEPB), do Centro Universitário de João Pessoa (Unipê)
e da Faculdade de Direito de Caruaru (Asces).

José Barros Correia Júnior


Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Profes-
sor do curso de Graduação em Direito da Universidade Federal de Alagoas
(UFAL). Professor de vários cursos de Pós-Graduação e Advogado militante.

Larissa Maria de Moraes Leal


Mestre e Doutora em Direito Privado pela UFPE. Professora Adjunta de Di-
reito Civil da UFPE. Professora Titular de Direito Civil da Faculdade Marista.
Leiloeira Pública Oficial.

Lavínia Cavalcanti Lima Cunha


Mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de
Lisboa. Professora de Direito Civil da Universidade Federal de Alagoas, onde
leciona Teoria Geral do Direito Civil, Obrigações, Contratos, Mediação e Direito
do Consumidor. Atuou como Professora da Pós-Graduação da Ematra/AL e
Cesmac/Fadima e como convidada em cursos da Esmal e Cameal. Possui uma
série de publicações nacionais e estrangeiras.

Marcelo Marques Cabral


Mestre em Direito pela UFPE. Especialista em Direito Civil e Empresarial pela
UFPE. Juiz de Direito do TJPE.

Marcos Catalan
Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo. Mestre em Direito pela
Universidade Estadual de Londrina. Professor de Direito Civil na Unisinos e
em cursos de Pós-Graduação.

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SOBRE OS AUTORES 537

Marcos Ehrhardt Jr.


Advogado. Doutor pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mestre
pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Professor de Direito Civil da
UFAL, dos cursos de Pós-Graduação da UFPE, do Centro Universitário Cesmac
e da Escola Superior da Magistratura em Pernambuco (Esmape). Coordenador
da Revista Fórum de Direito Civil – RFDC.

Pablo Stolze Gagliano


Professor de Direito Civil da Universidade Federal da Bahia. Juiz de Direito
no Estado da Bahia. Professor de Direito Civil da Escola da Magistratura do
Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de extensão da Faculdade
Autônoma de Direito de São Paulo. Professor dos cursos de Pós-Graduação da
Fundação Faculdade de Direito da Bahia e da Unifacs. Mestre em Direito Civil
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Especialista em Direito
Civil pela Fundação Faculdade de Direito da Bahia.

Paula Moura F. de Lemos Pereira


Mestre em Direito Civil pela UERJ. Especialista em Advocacia Pública pela
UERJ. Pós-Graduanda em Direito da Medicina pela Universidade de Coimbra.
Professora convidada nos cursos de Pós-Graduação lato sensu do curso de Di-
reito Civil-Constitucional (DCC) do Centro de Estudos e Pesquisas no Ensino
do Direito (Ceped), da Faculdade de Direito da UERJ e de Pós-Graduação lato
sensu do curso de Especialização em Direito Imobiliário do Instituto de Direito
da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Advogada.

Pedro Pontes de Azevêdo


Mestre em Direito Econômico pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
Doutorando em Direito das Cidades pela Universidade Estadual do Rio de
Janeiro (UERJ). Professor de Direito Civil da UFPB. Advogado.

Ricardo Aronne
Doutor em Direito Civil e Sociedade pela UFPR, Mestre em Direito do Estado
pela PUCRS, Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela PUCRS, Profes-
sor e Orientador nos programas de Graduação e Pós-Graduação desta mesma
instituição, líder do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional
(PUCRS/CNPq), Pós-Doutorando em Direito Privado pela UFPR, em Filosofia
pela Unisinos e em Matemática e Tecnologia da Informação pela Uninova.

Roberto Paulino de Albuquerque Júnior


Mestre e Doutor em Direito Privado pela UFPE. Professor Adjunto de Direito
Civil da UFPE. Professor Titular de Direito Civil da Faculdade Marista. Tabelião
de notas e Registrador de imóveis.

Rodolfo Pamplona Filho


Professor titular de Direito Processual do Trabalho da Universidade Salvador
(Unifacs). Professor adjunto da Faculdade de Direito da UFBA (Universidade
Federal da Bahia). Professor da Pós-Graduação em Direito (Mestrado e

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MARCOS EHRHARDT JR. (COORD.)
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Doutorado) da UFBA. Coordenador do curso de Especialização em Direito e


Processo do Trabalho do JusPodivm/BA. Mestre e Doutor em Direito do Trabalho
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Membro da Academia
Nacional de Direito do Trabalho e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia.
Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Salvador (Tribunal Regional do Trabalho
da Quinta Região).

Rodrigo Xavier Leonardo


Professor adjunto de Direito Civil nos cursos de Graduação e Pós-Graduação
em Direito da UFPR. Mestre e Doutor em Direito Civil pela USP. Advogado.

Suzana Rahde Gerchmann


Acadêmica de Direito na Unisinos.

Venceslau Tavares Costa Filho


Advogado. Pesquisador do CNPq/UFPE e do Pibic/Favip. Especialista, Mestre
e Doutorando em Direito Civil pela UFPE. Professor dos cursos de Graduação
em Direito da Favip, da Focca, da Faculdade Damas e da Faculdade Metropo-
litana. Professor de Direito Civil dos cursos de Pós-Graduação em Direito da
ESA-OAB/PE, da Faculdade Damas e da Faculdade Joaquim Nabuco. Diretor
Cultural da Escola Superior de Advocacia Professor Ruy Antunes da OAB –
Seção Pernambuco (ESA-OAB/PE). Membro da Comissão de Ensino Jurídico
da OAB – Seção Pernambuco. Ex-Presidente da Comissão de Preservação da
Memória da Advocacia, da OAB – Seção Pernambuco (2007-2009). Conselheiro
Estadual da OAB – Seção Pernambuco.

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e impressa em papel Offset 63g (miolo) e Supremo 250g (capa)
pela Gráfica e Editora O Lutador.
Belo Horizonte/MG, outubro de 2012.

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