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Revista Brasileira de
DiReito PRocessual RBDPro 78
Revista Brasileira de
DiReito PRocessual
RBDPro
Fórmula de problematização do discurso em Popper e teoria processual da democracia – RBDPro renasce. Inicialmente produzida no seio
• Atualização permanente Andréa Alves de Almeida da cidade de Uberaba, MG, pela Editora Vitória, e,
• Nova e exclusiva ferramenta de acesso
depois, editada, por muitos anos, pela Forense,
às informações The Electronic Judicial Proceeding in Brazil – Brunela Vieira de Vincenzi, Luiza Saito Sampaio agora, nesta novíssima fase, a empreitada é
• Todos os periódicos publicados e
assumida pela entusiasta equipe da Editora Fórum.
atualizados pela Editora Fórum em formato O conceito de sentença no Novo Código de Processo Civil e suas implicações no processo de
E a novidade surge em boa hora. Afinal,
digital, disponíveis sempre que necessário execução – O acerto do Projeto nº 8.046/10 – Rafael de Oliveira Guimarães
as mudanças na legislação processual são uma
• Atualização com elevado padrão científico
• Informação de valor, atualizada e precisa Aplicabilidade da multa do art. 475-J do CPC condicionada à espécie de liquidação exigida pela sentença
DoutRiNa e ReseNHas constante. Na busca de maiores celeridade e efe-
tividade, as alterações legislativas assumem a
• Leitura em dispositivos móveis* condenatória – Maurício Zandoná dianteira e obrigam o jurista a revisitar institutos
• Autores renomados
e conceitos, muitos dos quais já se tinham por
• Conteúdos exclusivos Repensando a (in)constitucionalidade da penhora online – Vanessa Bezerra Maneschy
consolidados, para, se necessário, conferir-lhes
• Geração de PDF
um novo colorido, mais adequado aos novos
(Neo)Processualismo e (Neo)CPC – Reflexões sobre a nova interpretação processual
* Consulte-nos sobre suportes compatíveis tempos. À doutrina e aos veículos editoriais res-
Rafael José Nadim de Lazari
ponsáveis por sua divulgação atribui-se respon-
PERIÓDICOS Liquidação de títulos executivos extrajudiciais – Rodrigo Ramina de Lucca sabilidade inquestionável nesse propósito.
É diante desse cenário de transformações
• Interesse Público – IP que a RBDPro ressurge. Sua aparência encontra-
• Fórum Administrativo – FA A aplicabilidade da multa por litigância de má-fé aos advogados atuantes no processo
Gabriel Freitas Maciel Garcia de Carvalho se renovada, mas seus propósitos, seus objetivos
• Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP
• Fórum de Direito Urbano e Ambiental – FDUA permanecem os mesmos que levaram à sua
• Revista Fórum de Direito Tributário – RFDT Ius postulandi na Justiça do Trabalho – Acesso à justiça ou injustiça? – Lícia Bonesi Jardim criação, quando dirigida pelos notáveis Edson
RBDPro
• A&C – Revista de Direito Administrativo Prata e Ronaldo Cunha Campos. Enfim, o que se
& Constitucional O momento do interrogatório do réu na Lei de Tóxicos sob a perspectiva da garantia fundamental pretende é proporcionar um espaço, de alcance
• Revista Brasileira de Direito Municipal – RBDM da ampla defesa – Alcenir José Demo, Carlos Henrique Bezerra Leite nacional e internacional, apto a fomentar o debate
• Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro científico e a contribuir com o desenvolvimento
• Revista Brasileira de Direito Público – RBDP Resenhas da ciência processual, mediante a difusão de
• Revista Brasileira de Estudos
Constitucionais – RBEC ideias inovadoras e de qualidade comprovada.
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• Revista de Direito de Informática e Saraiva 2012 – Eduardo Henrique de Oliveira Yoshikawa E-mail para remessa de artigos, pareceres e
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DOUTRINA
Artigos
FONSECA, João Francisco Naves da. Exame dos fatos nos recursos extraordinário e especial.
São Paulo: Saraiva, 2012
Eduardo Henrique de Oliveira Yoshikawa....................................................................................................... 231
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 7-10, abr./jun. 2012
8 Editorial
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 7-10, abr./jun. 2012
Editorial 9
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10 Editorial
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DOUTRINA
Artigos
Aplicação do Direito objetivo e tutela
de direitos subjetivos nas ações
transindividuais e homogeneizantes
José Maria Tesheiner
Professor de Processo Civil na Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça
do Estado do Rio Grande do Sul.
Introdução
Disse Shakespeare que uma rosa é uma rosa, seja qual for o nome que se lhe dê.
Entretanto, isso não nos livra de explicar a que nos queremos referir, quando
dissemos “rosa”: flor da roseira? Nossa amiga Rosa?
Podemos com alguma facilidade apontar o objeto de nosso estudo: as ações a
que se refere o art. 81, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor,1 isto é,
as ações relativas a interesses ou direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.
Mas que nome dar ao conjunto dessas três ações e a cada uma delas?
1
Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida
em juízo individualmente, ou a título coletivo.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 13-28, abr./jun. 2012
14 José Maria Tesheiner
Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
I – interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindivi-
duais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por
circunstâncias de fato;
II – interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindivi-
duais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas
entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;
III – interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de
origem comum.
2
“Pacífico no Superior Tribunal de Justiça o entendimento segundo o qual o Ministério Públi-
co possui legitimidade para a defesa, em juízo, via ação civil pública, do direito à saúde (e, em
última instância, do direito à vida) de menor carente” (STJ, 2ª Turma, AgRg nos EDcl no REsp
nº 1.075.839, Min. Mauro Campbel Marques, relator, j. 04.05.2010).
3
Sobre o tema, ver: SAVIO, Manuela Pereira. Ação civil pública e ação coletiva: problema
terminológico. Disponível em: <http://www.processoscoletivos.net/ve_artigo.asp?id=11>.
Acesso em: 06 nov. 2011.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 13-28, abr./jun. 2012
Aplicação do Direito objetivo e tutela de direitos subjetivos nas ações transindividuais e homogeneizantes 15
difusos e coletivos stricto sensu) e, de outro, a tutela coletiva de direitos (direitos indivi-
duais homogêneos).4 A ideia fundamental é a de que direitos individuais homogêneos
são direitos individuais5 (contra: Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr.).
Atendendo, porém, ao uso, não deixamos de chamar de ação civil pública a pro-
posta pelo Ministério Público para fornecimento de medicamentos, por exemplo, a um
menor, embora se trate, aí, de ação individual.
Por igual razão, eventualmente utilizamos as expressões “ação civil pública” e
“ações coletivas” como gênero, a indicar as que visam à tutela de interesses ou direitos
difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneos, especialmente nas citações
diretas e indiretas de obras de outros autores e de acórdãos.
4
ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de
direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
5
A tutela dos direitos individuais homogêneos “não se restringe aos direitos individuais das
vítimas. Vai além, tutelando a coletividade mesmo quando os titulares dos direitos individuais
não se habilitarem em número compatível com a gravidade do dano, com a reversão dos
valores ao FDD. Assim, não se pode continuar afirmando serem esses direitos estruturalmente
direitos individuais, sua função é notavelmente mais ampla. Ao contrário do que se afirma
com foros de obviedade, não se trata de direitos acidentalmente coletivos, mas de direitos
coletivizados pelo ordenamento para os fins de obter a tutela jurisdicional constitucional-
mente adequada e integral” (DIDIER JUNIOR, Fredie; ZANETI JUNIOR, Hermes. Curso de direito
processual civil: processo coletivo. 5. ed. Salvador: JusPodivm, 2010. v. 4, p. 81).
6
PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos. Tutela coletiva da livre concorrência. Revista de Direito
do Consumidor, v. 49, p. 11, jan. 2004.
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16 José Maria Tesheiner
7
LEITE, Carlos Henrique. Tendências do direito processual do trabalho e a tutela dos interesses
metaindividuais. Revista de Direito do Trabalho, v. 105, p. 24, jan. 2002.
8
“A reversão aos fundos é o único equacionamento possível quando se trata de salvaguardar
interesses difusos ou coletivos stricto sensu, nos quais a titularidade é sempre indeterminada.
Já no caso das ações civis coletivas em matéria trabalhista (interesses individuais homogêneos),
parece-nos mais apropriado que as indenizações pelos danos morais coletivos revertam em
favor das pessoas prejudicadas (os trabalhadores), mediante distribuição proporcional que
observe, em sede de liquidação, as necessidades e/ou os danos sofridos por cada titular
determinado. Não tem sido este, porém, o entendimento dominante” (FELICIANO, Guilherme
Guimarães. Tutela processual dos direitos humanos nas relações de trabalho. Revista de Direito
do Trabalho, v. 121, p. 59, jan. 2006).
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 13-28, abr./jun. 2012
Aplicação do Direito objetivo e tutela de direitos subjetivos nas ações transindividuais e homogeneizantes 17
o interesse público, por dizerem respeito a um grupo disperso, mas que
não chegam a confundir-se com o interesse geral da coletividade (como
o dos consumidores de um produto); c) em conflito com o interesse da
coletividade como um todo (como os interesses dos trabalhadores na
indústria do tabaco); d) em conflito com o interesse do Estado, enquan-
to pessoa jurídica (como o interesse dos contribuintes); e) atinentes a
grupos que mantêm conflitos entre si (interesses transindividuais reci-
procamente conflitantes, como os dos que desfrutam do conforto dos
aeroportos urbanos, ou da animação dos chamados trios elétricos car-
navalescos, em oposição aos interesses dos que se sentem prejudicados
pela correspondente poluição sonora).9
A ação civil pública nasceu para proteger novos bens jurídicos, referin-
do-se a uma nova pauta de bens ou valores, marcados pelas caracterís-
ticas do que veio a ser denominado de interesses e direitos difusos ou
coletivos, dos quais se pode dizer, serem profundamente diferentes ou
“opostas” às da categoria clássica dos direitos subjetivos, que marcaram
o direito privado e o processo civil tradicional.10
9
MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor,
patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 53-54.
10
ALVIM, Arruda. Ação civil pública: sua evolução normativa significou crescimento em prol da
proteção às situações coletivas. In: ASSIS, Araken de et al. (Org.). Processo coletivo e outros
temas de direito processual: homenagem: 50 anos de docência do Professor José Maria Rosa
Tesheiner, 30 anos de docência do Professor Sérgio Gilberto Porto. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2012.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 13-28, abr./jun. 2012
18 José Maria Tesheiner
a entes públicos e privados para a tutela de interesses não individuais stricto sensu”.11
Complementa-se essa observação, com a afirmação de que se trata de ação que visa à
aplicação do Direito objetivo, proposta por entes públicos e privados que assim exer-
cem função pública.
Filiamo-nos, assim, à teoria clássica, que afirma a existência de direito subje
tivo somente quando há interesse juridicamente protegido de um sujeito passível de
determinação.
Sem adotar essa posição, explica Antônio Lenza que “a doutrina clássica (...)
prefere utilizar a terminologia direito somente quando a titularidade do interesse juri-
dicamente protegido pertencer a um sujeito perfeitamente determinável”.12
O entendimento contrário, de Antonio Gidi,13 que é também o da legislação,
afirmando a existência de direitos subjetivos da titularidade de “pessoas indetermina-
das e ligadas por circunstâncias de fato”,14 não é errado, já que resulta de uma opção
terminológica, mas constitui indevida transposição, para o âmbito dos processos cole-
tivos e serve antes para obscurecer o fenômeno de que as ações relativas a interesses
difusos visam à aplicação do Direito objetivo, e não à tutela de supostos direitos indi-
viduais. Reflete o preconceito de que o Poder Judiciário somente poderia atuar para
a tutela de direitos subjetivos, impondo-se a ampliação desse conceito para justificar
sua atuação em prol de interesses difusos.
11
MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco. 7. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2011. p. 1409.
12
LENZA, Pedro. Teoria geral da ação civil pública. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005. p. 47.
MORAIS, Jose Luis Bolzan de. Do direito social aos interesses transindividuais: o Estado e o
direito na ordem contemporânea. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996. p. 109.
13
GIDI, Antonio. Coisa julgada e litispendência em ações coletivas. São Paulo: Saraiva, 1995.
p. 17-18.
14
Código de Defesa do Consumidor, art. 81, parágrafo único:
“A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
I – interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os
transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e
ligadas por circunstâncias de fato;”
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 13-28, abr./jun. 2012
Aplicação do Direito objetivo e tutela de direitos subjetivos nas ações transindividuais e homogeneizantes 19
José Carlos Barbosa Moreira aponta como exemplo os interesses de um
condomínio, composto por uma coletividade determinada, unida pelo vínculo de
copropriedade de um imóvel.15
Outro exemplo é o de uma categoria de trabalhadores que, por seu sindicato,
pleiteia uma revisão geral de salários (dissídio coletivo de natureza econômica). Trata-se
de um interesse que se transforma em direito da categoria, se acolhido o pedido.
“Em sede trabalhista”, diz Carlos Henrique Bezerra Leite, “o interesse coletivo stric-
to sensu é revelado historicamente pelo conceito de categoria. Exemplos: o piso salarial
da categoria; a realização de exames médicos admissionais, periódicos e demissionais; a
eliminação e redução de insalubridade ou periculosidade no âmbito da empresa etc.”16
O direito de greve é um direito coletivo. Não há greve de um homem só, assim,
como não há exército de um homem só. A paralisação do trabalho por um só trabalha-
dor, em defesa de sua saúde e de sua segurança pode caracterizar-se como direito de
resistência individual.17
15
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Ação popular do direito brasileiro como instrumento de tutela
jurisdicional dos chamados interesses difusos. In: MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de
direito processual. São Paulo: Saraiva, 1977.
16
LEITE, Carlos Henrique. Tendências do direito processual do trabalho e a tutela dos interesses
metaindividuais. Revista de Direito do Trabalho, n. 105, p. 24, jan. 2002.
17
Sobre o tema: AIRES, Mariella Carvalho de Farias. Direito de greve ambiental no ordenamento
jurídico brasileiro. Revista de Direito do Trabalho, n. 129, p. 147, jan. 2008.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 13-28, abr./jun. 2012
20 José Maria Tesheiner
Outros casos são apontados por Kazuo Watanabe, como a ação do sócio para anu-
lar deliberação de assembleia geral, a de qualquer do povo para fazer cessar poluição
gerada por determinada indústria e a dos usuários de serviços telefônicos impugnando
tarifas de assinatura.
Com referência às últimas, informa Watanabe que num só Juizado Especial Cível
da capital de São Paulo foram distribuídas mais de 30.000 demandas dessa espécie,
concluindo que, pela natureza unitária e incindível e pelas peculiaridades do contrato
de concessão, qualquer modificação na estrutura de tarifas, inclusive por decisão do
Judiciário, somente poderá ser feita de modo global e uniforme para todos os usuários.
Jamais de forma individual e diversificada, com exclusão de uma tarifa em relação apenas
a alguns usuários e sua manutenção em relação aos demais.19
São, diz Watanabe, “ações pseudoindividuais”.
Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti discordam, afirmando a existência, no caso, de
direito e ação individuais,20 o que nos parece mais correto.
Para efeito de raciocínio, tomamos como hipótese paradigmática a ação de sócio
para anular deliberação de assembleia geral.
No sistema tradicional das ações individuais, chega-se a um resultado paradoxal:
julgado procedente o pedido, a sentença, por efeito reflexo, atinge todos os sócios,
inclusive os interessados na declaração de validade da deliberação; julgado improcedente,
a eficácia da sentença é restrita ao autor, podendo, pois, outros sócios, propor outra ação,
18
GRINOVER, Ada Pellegrini. O controle de políticas públicas pelo poder judiciário. Revista de
Direito Bancário e do Mercado de Capitais, n. 42, p. 11, out. 2008.
19
WATANABE, Kazuo. Relação entre demanda coletiva e demandas individuais. Revista de
Processo, São Paulo, n. 139, p. 29-35, 2006.
20
DIDIER JUNIOR, Fredie; ZANETI JUNIOR, Hermes. Curso de direito processual civil: Processo
Coletivo. 5. ed. Salvador: JusPodivm, 2010. v. 4, p. 93.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 13-28, abr./jun. 2012
Aplicação do Direito objetivo e tutela de direitos subjetivos nas ações transindividuais e homogeneizantes 21
com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir. Em consequência, há coisa julgada
secundum eventus litis, uma aberração, em termos de ações individuais. A solução de
estender-se a autoridade da coisa julgada aos demais sócios encontra óbice na regra de
que a sentença faz coisa julgada às partes às quais é dada.
Concebendo-se a hipótese como a de uma ação coletiva, admitindo-se a legiti-
midade de titular de direito individual, como no sistema norte-americano, chega-se a
um resultado igualmente insatisfatório, porque, no sistema vigente, o julgamento de
improcedência não impede ações individuais.
Resultado satisfatório apenas se obteria com o sistema da ação popular: coisa
julgada erga omnes, pro et contra, salvo se julgado improcedente o pedido por insufi-
ciência de provas. Mas, é claro que, na hipótese considerada, não nos encontramos no
âmbito de incidência da ação popular.
A conclusão, pois, é que não temos como obter um resultado razoável, ainda que,
negando a existência de direito individual, qualificássemos como coletiva essa ação.
Parece, pois, indispensável intervenção legislativa, seja para o caso específico
de ações “pseudoindividuais”, seja pela alteração do sistema de nossas ações coletivas,
com legitimidade individual de representante adequado e com formação de coisa jul-
gada pro et contra.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 13-28, abr./jun. 2012
22 José Maria Tesheiner
economia (direito coletivo), bem como ação ajuizada pelo Ministério Pú-
blico, em favor da vida e segurança das pessoas, para que seja interditada
a embarcação a fim de se evitarem novos acidentes (direito difuso). Em
suma, o tipo de pretensão é que classifica um direito ou interesse como
difuso, coletivo ou individual.21
8 Substituição processual
No âmbito dos processos individuais, são ordinariamente legitimados para a cau-
sa: ativamente aquele que se autoafirma titular de um direito subjetivo e passivamente
aquele que aponta como devedor, no caso de afirmado direito de crédito ou como
sujeito passivo, no caso de afirmação de direito formativo. Excepcionalmente, a Lei
legitima para a causa alguém que não é sujeito da relação material afirmada. É o que
ocorre, por exemplo, no caso de alienação da coisa ou direito litigioso, em que o alienan-
te (autor ou réu) permanece no processo, embora transmitida a coisa ou o direito para o
21
NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 4. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1997. p. 114-115.
22
O substituto processual atua em juízo em nome próprio em defesa de alegado direito alheio.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 13-28, abr./jun. 2012
Aplicação do Direito objetivo e tutela de direitos subjetivos nas ações transindividuais e homogeneizantes 23
adquirente. Diz-se, então, no primeiro caso, que a legitimação é ordinária; no segundo,
que extraordinária.
Não é outra a ideia de “substituição processual”: o substituto está em juízo a
defender, em nome próprio, direito que não é seu, mas do substituído.
Há, contudo, quem faça distinção entre legitimação extraordinária e substituição
processual. Álvaro Luiz Valery Mirra, por exemplo, afirma que nem todo caso de legi-
timação extraordinária é substituição processual, embora todo caso de substituição
processual seja legitimação extraordinária. Sustenta que só há substituição processual
nos casos de legitimação extraordinária exclusiva, pois é somente nela que alguém
atua em nome próprio na defesa de direito alheio, excluindo a participação do titular
do direito material, e, portanto, substituindo-o. Não há substituição processual nos
casos de legitimação extraordinária concorrente, casos em que o legitimado extraor-
dinário não exclui o ordinário e vice-versa, porque a simples possibilidade de o legi-
timado ordinário participar do processo já descaracteriza a substituição processual.
Exige, ainda, um vínculo jurídico entre o substituto e o substituído. Assevera que é
ordinária a legitimação do autor, na ação popular, tanto porque legitimados outros a
intervir no feito como litisconsortes como por inexistir vínculo jurídico entre o autor e
a coletividade.23
Mais comumente, legitimação extraordinária e substituição processual são
expressões empregadas como sinônimas.
Diz Alfredo Buzaid:
23
MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Um estudo sobre a legitimação para agir no direito processual civil:
a legitimação ordinária do autor popular. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 76, n. 618, p. 34,
abr. 1987.
24
BUZAID, Alfredo. Considerações sobre o mandado de segurança coletivo. São Paulo: Saraiva,
1992. p. 63-64.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 13-28, abr./jun. 2012
24 José Maria Tesheiner
25
Ver: SANTOS, Alfeu Gomes dos. Aspectos peculiares da substituição processual no direito do
trabalho. Revista Âmbito Jurídico, Rio Grande, RS, n. 79, ago. 2010. Disponível em: <http://www.
ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8174>.
Acesso em: 1º fev. 2012.
26
Cf. GARBAGNATI, op. cit., p. 230; MOSCONE, Cesare. Sostituzione processuale. In: ENCICLOPEDIA
Forense. Milano: Casa Editrice Dr. Francesco Vallardi, 1962.
27
ALLORIO, op. cit., p. 419; ROSENBERG, Leo. Tratado de derecho procesal civil. Tradução de
Angela Romera Vera. Buenos Aires: Jurídicas Europa-América, 1955. v. 1.
28
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo. Estudo sobre a substituição processual no direito brasileiro.
Revista dos Tribunais, n. 809, p. 743, mar. 2003.
29
PASSOS, J. J. Calmon de. Especificidade das ações coletivas e das decisões de mérito nelas
proferidas. Revista de Direito do Trabalho, v. 123, p. 284, jul. 2006.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 13-28, abr./jun. 2012
Aplicação do Direito objetivo e tutela de direitos subjetivos nas ações transindividuais e homogeneizantes 25
A existência de interesse do substituto é apontada por José Augusto Delgado
interesse do substituído:
30
DELGADO, José Augusto. Substituição processual. Revista de Processo, v. 47, p. 240, jul. 1987.
31
MOURA, Mário Aguiar. Substituição processual. Revista de Processo, v. 47, p. 240, jul. 1987.
32
“Art. 1.548. É nulo o casamento contraído:
I – pelo enfermo mental sem o necessário discernimento para os atos da vida civil;
II – por infringência de impedimento.
Art. 1.549. A decretação de nulidade de casamento, pelos motivos previstos no artigo
antecedente, pode ser promovida mediante ação direta, por qualquer interessado, ou pelo
Ministério Público”.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 13-28, abr./jun. 2012
26 José Maria Tesheiner
que são mais propriamente casos de exercício de função pública, voltada primordialmente
à aplicação do Direito objetivo.
Pode-se então dizer que o Ministério Público não é nunca substituto processual,
o que o transformaria numa espécie de advogado gratuito da parte.
Ainda, porém, que não se exija o requisito do interesse para se ter configurada
hipótese de substituição processual, cabe distinguir as hipóteses em que o substituto
age com interesse próprio daqueles em que busca a aplicação do Direito objetivo.
O Ministério Público é “fiscal da Lei”, mesmo quando atua como parte e ainda
que de sua ação possa resultar a satisfação de algum direito individual.
O Ministério Público apresenta-se no processo como órgão do Estado e voz da
sociedade. Ele, mais do que representa, “presenta” a sociedade. É a voz da sociedade
que se faz ouvir no processo.
Nessa linha de pensamento é que se justifica a legitimidade do Ministério
Público, reconhecida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região, em ação
proposta pela Procuradoria do Trabalho da mesma região, objetivando a condena-
ção da reclamada “ao integral pagamento das verbas rescisórias (saldo de salários,
aviso prévio, décimo terceiro salário, férias vencidas e proporcionais, acrescidas de
um terço, multa de 40% sobre o saldo do FGTS, multa prevista no art. 477, §8º, da
CLT, pagamento direto aos empregados dos valores concernentes ao FGTS, não efe-
tivados em época própria — art. 18 da Lei nº 8.036/90), devidos a todos os seus em-
pregados que, prestando serviços junto a agências do Banco do Brasil, neste Estado,
tiveram seus contratos de trabalho rescindidos”, bem assim “o salário referente ao
mês de novembro de 1996 e a gratificação natalina, relativa ao mesmo ano, àque-
les empregados que, continuando a prestar serviços à demandada, com atividade
junto ao Banco do Brasil, não receberam tais verbas...” (TRT, 12ª Região, 1ª Turma,
RO nº 5.786/97, Acórdão nº 3.121/98, Dilnei Ângelo Bilésimo, relator, j. 30.03.1998).
No Recurso Especial nº 794.752, o Superior Tribunal de Justiça restabeleceu a
sentença de 1º grau que julgou procedente ação proposta pelo Ministério Público con-
tra instituições financeiras, proibindo-as de cobrar remuneração ou tarifa por boletos,
fichas ou documento bancário equivalente, sob pena de multa diária (matéria que se
enquadra como interesses difusos), desacolhendo, porém, o pedido de devolução, aos
consumidores, dos valores indevidamente cobrados (matéria que se enquadra entre
os direitos individuais homogêneos). Afirmou o acórdão que o requerimento de devo-
lução dos valores indevidamente cobrados tem caráter subjetivo individual, devendo
ser postulado por seus próprios titulares em ações próprias, não se vislumbrando, em
relação a este ponto, o interesse coletivo a ser tutelado (STJ, 16.03.2010, Recurso Especial
nº 794.752, Min. Luís Felipe Salomão, relator, j. 16.03.2010).
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 13-28, abr./jun. 2012
Aplicação do Direito objetivo e tutela de direitos subjetivos nas ações transindividuais e homogeneizantes 27
Ora, admitida, como se admitiu no acórdão, a legitimidade do Ministério Público
para a proteção de direitos individuais homogêneos do consumidor, impunha-se a
prolação de sentença genérica, como prevê a lei, para condenar as instituições finan-
ceiras a restituir os valores indevidamente cobrados. Apenas a liquidação e a execução
é que exigiriam iniciativa individual dos prejudicados (CDC, arts. 95 e 97).33
Em ações como essa, ainda que qualificada como relativa a direitos individuais
homogêneos, o Ministério Público exerce função pública, com vistas à aplicação
do Direito objetivo. A consequente tutela de direitos individuais é apenas um sub-
produto. Já se foram os tempos em que a tutela de direitos individuais era sempre
dependente da iniciativa da parte. Em certas situações, como a da existência de muitos
lesados, o Estado, por ação proposta pelo Ministério Público ou por outro legitimado,
impõe a observância da lei e o pagamento aos prejudicados.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 13-28, abr./jun. 2012
28 José Maria Tesheiner
Abstract: Diffuse indivisible interests are not rights, in the proper sense
of the term. Class actions related to them intend to enforce the Law. There
are subjective indivisible rights of groups, categories or classes of people
in opposition to divisible homogeneous rights. The Public Prosecution
represents the whole society even in actions related to homogenous
rights.
TESHEINER, José Maria. Aplicação do Direito objetivo e tutela de direitos subjetivos nas ações
transindividuaisehomogeneizantes.RevistaBrasileiradeDireitoProcessual–RBDPro,BeloHorizonte,
ano 20, n. 78, p. 13-28, abr./jun. 2012.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 13-28, abr./jun. 2012
Fórmula de problematização do
discurso em Popper e teoria processual
da democracia
Andréa Alves de Almeida
Doutora em Direito Processual pela PUC Minas.
Professora da Pós-Graduação lato sensu da UNIUBE
e UNIFEMM. Professora da Graduação na UNIFEMM.
Sócia fundadora e pesquisadora do Instituto
Popperiano de Estudos Jurídicos (INPEJ).
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 29-44, abr./jun. 2012
30 Andréa Alves de Almeida
2
Por meio da teoria do balde mental ou teoria da mente como recipiente, Popper explica que
a atitude crítica se opõe à atitude de crença. Utilizando a ilustração de um balde com olhos,
nariz e boca, explica que o maior obstáculo à critica é a concepção de que o conhecimento
é obtido por meio dos sentidos. É como se os órgãos dos sentidos, após serem atingidos por
estímulos vindos do mundo exterior, se transformassem em dados sensoriais ou perceptivos,
os quais, depois de muitos estímulos e repetições, passariam a estar aptos a descobrir
similitudes (regularidades) e a estabelecer generalizações e regras simplesmente pela crença
no hábito e no costume. A teoria do balde mental é uma maneira bem óbvia de demonstrar
como o empirismo se volta para o registro passivo da observação da realidade, inibindo o
ativismo e a criticabilidade intelectual (POPPER, Karl. O conhecimento e o problema corpo-
mente. Tradução de Joaquim Alberto Ferreira Gomes. Lisboa: Edições 70, 1996. p. 28; POPPER,
karl. Conhecimento objetivo: uma abordagem evolucionária. Tradução de Milton Amado. Belo
Horizonte: Itatiaia, 1999. p. 14-15).
3
POPPER, Karl. O racionalismo crítico na política. Tradução de Maria da Conceição Côrtes-Real.
Brasília: Universidade de Brasília, 1981. p. 58.
4
HUME, David. Investigação sobre o entendimento humano. Tradução de Leonel Vallandro. São
Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os Pensadores).
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 29-44, abr./jun. 2012
Fórmula de problematização do discurso em Popper e teoria processual da democracia 31
pelos indutivistas: “Qual a justificativa para a crença de que o futuro será amplamente
como o passado?”, ou “qual a justificativa para as inferências indutivas?” Os indutivistas
não respondem porque creem nas regularidades, dão ênfase a exemplos positivos.
David Hume, tentando responder a P1, explica que os indutivistas não conseguem jus-
tificar racionalmente as crenças, ou seja, que há uma racionalidade nas crenças, o que
o faz formular outro problema (P2): “Por que mesmo não havendo lógica no hábito e
na crença nas repetições elas guiam nossos pensamentos e ações?” Hume responde
a P2 afirmando que somos condicionados pelas repetições, senão difícil sobreviver.
Popper, ao testificar (EE) a teoria de Hume (TT), percebe que Hume transformou-se
num cético e, ao mesmo tempo, num crente (crente numa epistemologia irracionalista)
e que a aporia está na abordagem do problema da indução, por isso as respostas até
então eram insatisfatórias.
Peirce5 também sustenta que, no aspecto psicológico, todo pensamento tem
por fim a produção de crença porque esta aplaca a irritação da dúvida com a criação de
um hábito e regras de ação, repousando por um momento o pensamento. Peirce pre-
tendeu esclarecer um método de investigação científica que pudesse clarear as ideias,
aplacando as dúvidas com crenças determinadas não por algo humano, mas por algo
externo e estável. Seu procedimento consistia em afastar, na formação do significado,
três métodos: o método a priori, que leva a conclusões fáceis porque acolhe qualquer
crença a que nos sintamos inclinados; o método da autoridade, que suprime por
coação ou terrorismo moral o pensamento ameaçador; e o método da tenacidade,
que escolhida uma crença, simplesmente se fecha a qualquer outra.6
No plano lógico, Peirce destaca o raciocínio por abdução como o método mais
adequado para explorar os significados de um texto. Acentua que, embora o raciocínio
dedutivo tenha a característica de não ser arriscado e seja útil para aplicar regras gerais
a casos individuais, carece por completo de criatividade, pois não adiciona coisa alguma
ao já conhecido.7 Quando se deseja um raciocínio mais criativo, é comum se utilizar a
indução, que permite muitas premissas menores constatáveis sem dificuldade para se
saltar do particular para o geral. Como esse raciocínio se baseia em dados empíricos e
5
PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica e filosofia. Tradução de Octanny Silveira da Mota e
Leonidas Hegenberg. São Paulo: Cultrix, 1972. p. 49-59.
6
PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica e filosofia. Tradução de Octanny Silveira da Mota e
Leonidas Hegenberg. São Paulo: Cultrix, 1972. p. 84-89.
7
Peirce ilustra, mediante o exemplo da bolsa de feijões, o que seria regra, caso e resultado na
dedução. Sendo a regra “todos os feijões desta bolsa são brancos”, o caso seria “estes feijões
são desta bolsa” e o resultado “estes feijões são brancos” (PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica
e filosofia. Tradução de Octanny Silveira da Mota e Leonidas Hegenberg. São Paulo: Cultrix,
1972. p. 111-149).
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 29-44, abr./jun. 2012
32 Andréa Alves de Almeida
não apenas nas leis da lógica, acaba carecendo de segurança, sendo útil apenas para
criar hipóteses e não convicções.8
Para Peirce, nossa compreensão do texto e, de modo geral a semiose, não se
satisfazem somente com um raciocínio dedutivo que “demonstra que algo deve ser”,
nem com um raciocínio indutivo que “demonstra que algo é realmente operativo”. O
raciocínio que atua no momento em que se trata de extrair significado de um texto é a
abdução. A abdução se limita a “sugerir que algo pode ser”.9 Na abdução, a hipótese está
na base da parte final do raciocínio e é um caso, não uma regra; é a hipótese de um caso.
8
Peirce também utiliza, para explicar a indução, o exemplo da bolsa de feijões. Parte-se do
caso “estes feijões são desta bolsa” e do resultado “estes feijões são brancos” para se chegar
à regra “todos os feijões desta bolsa são brancos” (PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica e
filosofia. Tradução de Octanny Silveira da Mota e Leonidas Hegenberg. São Paulo: Cultrix, 1972.
p. 111-149).
9
No exemplo da bolsa de feijões, a abdução parte da regra “todos os feijões desta bolsa são
brancos”, em que o resultado é “estes feijões são brancos” e o caso “estes feijões são desta
bolsa” (PEIRCE, Charles Sanders Semiótica e filosofia. Tradução de Octanny Silveira da Mota e
Leonidas Hegenberg. São Paulo: Cultrix, 1972. p. 111-149).
10
PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica e filosofia. Tradução de Octanny Silveira da Mota e
Leonidas Hegenberg. São Paulo: Cultrix, 1972. p. 112.
11
PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica e filosofia. Tradução de Octanny Silveira da Mota e
Leonidas Hegenberg. São Paulo: Cultrix, 1972. p. 65-68.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 29-44, abr./jun. 2012
Fórmula de problematização do discurso em Popper e teoria processual da democracia 33
[...] a proposição em Peirce não serve à lógica deôntica na perspectiva
jurídico-democrática, porque o dever-ser que com ela se pudesse conferir
às normas é válido por testes indutivos a partir de um real experienciado
(um real por si lícito ou ilícito, ou seja, juridicidade ou antijuridicidade
concreta) por inferências dedutivas (sempre supondo fatos), indutivas
(observando fatos), abdutivas (cogitando explicações hipotéticas sobre
fatos insólitos e invulgares), enquanto que, em Popper, não existem
descrições (explicações hipotéticas em qualquer concepção) isentas de
teorias, porque “não existe nenhuma ciência puramente observacional”,
por isso não podemos justificar integral e absolutamente, a partir
da realidade nua, as nossas teorias ou provar em definitivo que são
faticamente irrefutáveis, mas, segundo Popper, podemos no entanto
refutá-las gradual e evolucionariamente por problematizações (testes
concorrenciais com outras teorias) para situar uma “racionalidade crítica”
como escolha proposicional da mais resistente entre várias. Portanto,
em Popper, os testes de validação se fazem por via de possibilidades
argumentativas (asserções) a serem levantadas teoricamente em face de
atos, fatos, situações, apreensões e compreensões de mundo ou mundos
conjecturais. As inferências lógicas não se confrontam diretamente com
as coisas, mas as teorizam (arriscam-se a conjecturar como as coisas são,
poderiam ou deveriam ser).12
12
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Fórum, 2010.
p. 156.
13
POPPER, Karl. Conhecimento objetivo: uma abordagem evolucionária. Tradução de Milton
Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 29-44, abr./jun. 2012
34 Andréa Alves de Almeida
14
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Fórum, 2010.
p. 186.
15
POPPER, Karl. O conhecimento e o problema corpo-mente. Tradução de Joaquim Alberto
Ferreira Gomes. Lisboa: Edições 70, 1996.
16
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. O discurso científico na modernidade: o conceito de paradigma
é aplicado ao direito?. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 198.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 29-44, abr./jun. 2012
Fórmula de problematização do discurso em Popper e teoria processual da democracia 35
simultaneamente, na tentativa de resolver um problema é que gera um debate
crítico apreciativo.
Pelo método de eliminação podemos dar com uma teoria verdadeira, mas em
nenhum caso o método pode estabelecer uma verdade. Nunca podemos justificar
empiricamente (por asserções de teste) a alegação de que uma teoria é verdadeira.
A questão de preferência surge com respeito a um conjunto de teorias concorrentes
(teorias oferecidas como soluções para os mesmos problemas). A melhor teoria é
encarada como possivelmente verdadeira no tempo em que não é refutada — “a melhor
das testadas”. O grau de ousadia de uma teoria também depende de sua relação com
suas predecessoras — explanação da velha teoria para contradizê-la.
Assim, ao se remeter à teoria semântica da verdade de Tarski17 (1972, p. 12)
“de que a verdade de uma oração consiste em sua correspondência com a realidade”,
Popper não está se rendendo ao observacionismo, mas ressaltando que a verdade
como correspondência com os fatos somente significa que ainda não se encontrou
observação negativa para a asserção descritiva. Sendo assim, essa correspondência
não é absoluta nem exata, trata-se de aproximação da verdade, pois as observações e
as asserções de observação têm caráter conjectural e teórico.
Popper elucida que a lógica (teoria das teorias) não é juízo sintético a priori;
consiste na preferência a teoria mais resistente à crítica. A atitude crítica é característica
da atitude racional e somente uma teoria formulada (diferente de teoria crida) pode
ser objetiva, pois é a formulação e objetividade que tornam a crítica possível. Daí a
necessidade do animal para ser racional e manter a sua racionalidade, criar o terceiro
mundo, o mundo dos conteúdos lógicos.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 29-44, abr./jun. 2012
36 Andréa Alves de Almeida
da ênfase que é dada aos fenômenos sociais, à lei natural, à lei legislada ou à justiça
do juiz. Nessas vertentes, a fundamentação decisória se reduz em justificar o contexto
historicista utilitarista das necessidades e dos interesses e a verdade não passa de con-
senso, “acordo”, aceitação social. Ao centrarem o discurso jurídico nos valores sociais e
na figura do juiz como salvaguarda da justiça, assentam a ciência do direito e a prática
judicial ainda mais numa teoria subjetivista do conhecimento.
Por outro lado, o racionalismo crítico eliminacionista popperiano, ao se apoiar
na problematização e numa concorrência conteudística de teorias, possibilita a cons-
trução de uma sociedade aberta,18 uma vez que a institucionalização da crítica é con-
dição para a construção de uma sociedade político-jurídico-democrática.
Com base na fórmula de problematização do discurso, Popper formula a teoria
do terceiro mundo.19 O mundo 1 representa o mundo físico ou de estados materiais. O
mundo 2, as experiências conscientes, o conhecimento subjetivo e as disposições com-
portamentais para agir. E o mundo 3 representa os sistemas teóricos, sendo os argu-
mentos críticos os moradores mais importantes e os problemas o elemento mais fértil.
A primeira tese nesta teoria do terceiro mundo é de que o mundo 2 (conhecimento
subjetivo) é irrelevante para o conhecimento científico. A segunda tese é de que o mundo
3 é autônomo embora seja produto nosso e de ter efeito de retrocarga sobre nós, isto é,
gera seus próprios problemas e o impacto sobre nós excede vastamente o impacto que
qualquer de nós possa produzir sobre ele. A terceira tese é que há uma retrocarga do
mundo 3 sobre o mundo 2 e o mundo 1, ou seja, a epistemologia objetivista que estuda
o mundo 1 pode lançar imensa soma de luz sobre o mundo 2 de consciência subjetiva.
A partir da fórmula de problematização do discurso e da tese da retrocarga
que o mundo 3 (mundo das teorias) exerce sobre o mundo 2 e mundo 1, podemos
concluir que o critério popperiano de demarcação científica, além de abordar razões
técnicas em epistemologia, tem o mérito de demonstrar que a institucionalização da
crítica é condição de possibilidade para a existência da sociedade democrática e que o
autoritarismo está diretamente ligado à predominância do probabilismo indutivista.
Logo, o ideal de ordem defendido e construído para a sociedade, quer seja autocracia
ou democracia, sustenta-se nas posições epistemológicas que assumimos.
A democracia se desenvolve no mundo 3 em que as argumentações críticas são os
moradores mais importantes e os problemas o elemento mais fértil. Em outras palavras, a
ampla defesa, o contraditório e a isonomia consistem no recinto argumentativo.
18
POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte:
Itatiaia-EDUSP, 1998. v. 1, 2.
19
POPPER, karl. Conhecimento objetivo: uma abordagem evolucionária. Tradução de Milton
Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999. p. 151-179.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 29-44, abr./jun. 2012
Fórmula de problematização do discurso em Popper e teoria processual da democracia 37
A concepção da racionalidade como abertura e submissão incondicional à crítica
está tanto na base do falseacionismo quanto na base da concepção de democracia. Por
isso, Popper sinaliza a necessidade de uma teoria que estabilize a democracia numa
órbita de discursividade reconstrutiva incessante, o que vem ressaltar a imprescindibi-
lidade da principiologia da ampla defesa, do contraditório e da isonomia (devido pro-
cesso constitucional) como referente hermenêutico de problematização qualificadora da
Constitucionalidade Democrática. Este é o grande mérito da teoria neoinstitucionalista,20
que tem como objetivo o esclarecimento do Processo como referente-lógico jurídico
para testificar as teorias e provimentos que se rotulam democráticos.
20
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 9. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2010; LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo:
Landy, 2002; LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte:
Fórum, 2010; LEAL, Rosemiro Pereira. A principiologia jurídica do processo na teoria neo-
institucionalista. Disponível em: <http://www.fmd.pucminas.br/Virtuajus/2_2006/Docentes/
pdf/Rosemiro.pdf>. Acesso em: 20 dez. 2006.
21
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 9. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2010.
22
A interpretação do ordenamento jurídico por mentes judicantes a serviço da ética derivada de
supostos discursos políticos preservadores da integração social é defendida pela dogmática
jurídica. Afirma Menelick Carvalho Netto: [...] “ao nosso Poder Judiciário em geral, ao Supremo
Tribunal Federal em particular, compete assumir a guarda da Constituição de modo a densificar
o princípio da moralidade constitucionalmente acolhido” (A hermenêutica constitucional sob
o paradigma do estado democrático de direito. In: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade.
(Coord.). Jurisdição e hermenêutica constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004. p. 44).
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 29-44, abr./jun. 2012
38 Andréa Alves de Almeida
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 29-44, abr./jun. 2012
Fórmula de problematização do discurso em Popper e teoria processual da democracia 39
mais eficiente do que o da manipulação dos sentidos. Aquele que ma-
nipula o sentido do discurso transforma-se no árbitro todo-poderoso da co-
munidade para a qual define o que venha a ser valor e antivalor; é ele quem
assinala os objetivos a serem perseguidos pelo grupo, dita as regras de com-
portamento que hão de dirigir a ação singular dos indivíduos na tentativa de
realização de seus valores, pune e recompensa. Pois como os mitos de sempre
demonstraram, só o que sabe quer, só o que sabe pode, só o que sabe faz.24
24
LOPES, Edward. Discurso, texto e significação: uma teoria do interpretante. São Paulo: Cultrix,
1978. p. 4.
25
LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Fórum, 2010.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 29-44, abr./jun. 2012
40 Andréa Alves de Almeida
26
ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa. Belo Horizonte:
Fórum, 2005.
27
POPPER, Karl. O racionalismo crítico na política. Tradução de Maria da Conceição Côrtes-Real.
Brasília: Universidade de Brasília, 1981. p. 28-29.
28
PROTÁGORAS DE ABDERA. Dissoi logoi: textos relativistas. Edición José Solana Dueso.
Madrid: Akal, 1996.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 29-44, abr./jun. 2012
Fórmula de problematização do discurso em Popper e teoria processual da democracia 41
chega à aceitação de uma teoria prevalente depois de submeter as teorias concor-
rentes a testes severos de refutação e puder se constatar que a teoria resistiu ao teste.
Popper esclarece que os equívocos da dialética resultam de como os dialéti-
cos se referem a contradições. Embora reconheçam que as contradições são da maior
importância, acabam retirando toda a vantagem das contradições em contribuir para o
progresso intelectual com a atitude de tolerar contradições. Se estivermos dispostos a
tolerar contradições, a descoberta de contradições já não nos levará a modificá-las e toda
a crítica (que consiste sempre na indicação de contradições) perde então a sua força.29
No que diz respeito à dialética, é interessante lembrar que Hegel, a fim de rejeitar
o racionalismo kantiano, que adota a lei da não contradição, afirmou que o mundo está
cheio de contradições e que elas fazem parte do desenvolvimento do pensamento e da
razão, pois, para o hegelianismo, tudo se dá por meio da dialética. Popper30 esclarece
que o sistema dialético de Hegel não passa de um dogmatismo reforçado (pode ser
usado para apoiar outros sistemas dogmáticos), uma vez que, por se basear na tese, na
antítese e na síntese, está disposto a conviver com as contradições. O problema ocorre
porque, na tríade, a síntese resulta numa teoria em que os melhores pontos da tese e
da antítese ficam preservados, o que coloca o sistema dialético e todo pensamento ao
abrigo de qualquer espécie de crítica ou ataque.
Recorrendo à dialética é possível sustentar qualquer ideia, mesmo que haja
contradições; é sempre possível argumentar com aparente razoabilidade a favor de
qualquer ideia, pois as críticas (contradições) que forem apontadas fazem parte do
desenvolvimento (evolução) da razão e do mundo.
A dogmática jurídica e a jurisprudência são campo vasto para o raciocínio dialético.
Assim se sustentam também os juízos de proporcionalidade, razoabilidade, ponderação,
adequabilidade como síntese de contrários.
Para que o espaço de refutação esteja reservado para o outro, a lide tem que
ser compreendida como campo de problematização e o processo como recinto de
eliminação de erro antes de ser recinto de conciliação, pois a atividade de cognição é
uma intervenção no erro-problema, cujo objetivo é esvaziar o conflito na estrutura da
sociedade por ganho de eficiência sistêmica de todo o ordenamento jurídico.31 A cam-
panha judiciária de que “conciliar é legal” gera um descrédito no próprio ordenamento
jurídico, afinal pode se questionar para que cumprir a lei se depois o juiz é o primeiro a
29
POPPER, Karl. O racionalismo crítico na política. Tradução de Maria da Conceição Côrtes-Real.
Brasília: Universidade de Brasília, 1981. p. 30.
30
POPPER, Karl. O racionalismo crítico na política. Tradução de Maria da Conceição Côrtes-Real.
Brasília: Universidade de Brasília, 1981. p. 44-49.
31
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 29-44, abr./jun. 2012
42 Andréa Alves de Almeida
insistir para que as partes façam acordo, estimulando, a cada processo que se põe fim,
o nascimento de tantos outros.32
O aperfeiçoamento do controle democrático é obtido no espaço jurídico pro-
cessualizado, que é recinto de discursividade proposicional (conjectura testificada
aberta à critica incessante) e legítimo da metalinguagem (linguagem para arguir a
linguagem natural) e não em espaços desprocessualizados como os da Ágora pública
e do Lebenswelt (mundo da vida).33 Decisões com base em jurisprudência majoritária,
súmula, presunção absoluta de verdade, experiência do juiz, casos repetitivos, juízo de
probabilidade, proporcionalidade, ponderação de valores, razoabilidade, adequabilidade,
reserva do possível, não passam de justificacionismo ou verificacionismo, de recusa de
trabalhar o futuro;34 o que significa um retrocesso, e não progresso na democracia. Essas
justificativas não são nem sequer falseáveis, porque respondem a qualquer pergunta,
não importa como. Servem mesmo é para um procedimento arbitrário ou discricioná-
rio em que temos poucas perguntas e resposta para tudo, nem que seja para silenciar
os opoentes, e não para a democracia, em que temos mais demanda do que respostas,
já que é possível testificar todas as decisões e omissões.
4 Conclusão
A adoção do método indutivo (observacionismo/justificacionismo) ou do mé-
todo dedutivo (verificacionismo) inibe o ativismo, o criticionismo intelectual e freia o
exercício pleno da liberdade, fomentando o autoritarismo, já que são construídos a
partir da observação passiva da realidade e do registro das regularidades (repetições).
O racionalismo crítico eliminacionista popperiano, por não se apoiar no mundo
das subjetividades e das disposições comportamentais, ocupado pelas expectativas
individuais, coletivas e culturais (comunidade pressuposta de sentido), possibilita a
construção de uma sociedade aberta, democrática. A fim de afastar a subjetividade (e
intersubjetividade) que aumenta o poder de mando do decididor, Popper esclarece
a necessidade de se construir e exercer a democracia no mundo 3 das teorias, em
que as argumentações críticas desempenham um importante papel e os problemas
assumem uma função criativa.
Por conseguinte, o exercício da democracia já constitucionalizada está na
dependência de uma virada epistemológica do justificacionismo e do verificacionismo
32
MESQUITA, José Ignácio Botelho de. Teses, estudos e pareceres de processo civil. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2005. v. 1, p. 290.
33
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio
Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. 1, 2.
34
HABERMAS, Jürgen. Passado como futuro. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1993.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 29-44, abr./jun. 2012
Fórmula de problematização do discurso em Popper e teoria processual da democracia 43
para o racionalismo crítico, e não de um giro pragmático-transcendental na filosofia da
linguagem nem mesmo na dialética (harmonia dos contrários) liberalismo-republicanismo.35
Com base nas teorias de Popper de falibilidade discursiva e do mundo 3, a
teoria neoinstitucionalista do processo esclarece que o contraditório, a ampla defesa
e a isonomia consistem no espaço jurídico argumentativo de testificação das leis e das
teorias que se rotulam democráticas.
Referências
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Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. 1, 2.
HABERMAS, Jürgen. Passado como futuro. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1993.
De modo diverso, CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito, política e filosofia: contri-
35
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 29-44, abr./jun. 2012
44 Andréa Alves de Almeida
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R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 29-44, abr./jun. 2012
The Electronic Judicial Proceeding
in Brazil
Dr. Brunela Vieira de Vincenzi, LL.M.
Doutora em Direito pela Goethe Universität
(Frankfurt am Main, Alemanha). Mestre em Direito
Civil e Direito Processual Civil pela Universidade
de São Paulo. Membro da Associação de Juristas
Alemanha-Brasil (DBJV), da DIS (instituição alemã
para arbitragem na Alemanha e no Brasil) e da
Comissão de Mediação e Arbitragem da OAB/
SP. Head do Brazil Desk no escritório Noerr LLP
(Frankfurt am Main, Alemanha).
Abstract: The Brazilian judicial system has been struggling with serious
efficiency and effectiveness shortcomings mostly as a result of the crit
ical delay in obtaining a final decision. During the past two decades
remarkable initiatives have been adopted aiming at mitigating these
time costs associated with highly bureaucratic proceedings. The digital
ization of court proceedings has progressively taken place by means of
the enactment of laws introducing information technology communica-
tion in procedural acts. In this sense, the most important statute is the
Brazilian Digital Procedural Law (Law n. 11,419/2006), which scope of
application and main features are analyzed in this paper. Furthermore,
considering that moving judicial proceedings to digital platforms is an
ongoing process, the benefits and the challenges currently faced by the
Brazilian judicial system are also addressed.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 45-53, abr./jun. 2012
46 Brunela Vieira de Vincenzi, Luiza Saito Sampaio
I Introduction
The Brazilian judicial system has been struggling with serious, challenging
efficiency and effectiveness shortcomings. Besides the lack of social confidence
in the system actually achieving justice goals, judicial delay is a major problem in
Brazil. On the one hand, extremely lengthy proceedings cause final decisions to be
rendered only after a considerable period of time. On the other hand, and as subse-
quent problem, enforcement of such judicial final decisions is mostly only accom-
plished at the cost of undesired delays.
There is widespread consensus that such time costs — ultimately, depending of
the nature of the litigation, translated into financial costs to the parties and unjustified
impairment to justice — result basically from a) the overly formalistic nature of judi-
cial proceedings in Brazil, which unfortunately might even make it possible for parties
willing to pursue procrastination strategies to resort to appeal mechanisms of a purely
procedural nature, and b) work overload born by Brazilian judges, who face an increas-
ing number of pending cases from year to year. Even in proceedings pending before
the Brazilian Small Courts, which were created to allow a brighter access to the judicial
system by those who would not have the financial means to pay for expensive fees and
professional legal advise, the situation is the same.
In addition to the over formalistic nature of judicial proceedings, the 1988
Constitution and the Brazilian Code of Civil Proceeding (“Código Brasileiro de Processo
Civil”)1 allows virtually every sentence (including even minor civil, family and criminal
matters which have been transformed into constitutional cases) to be appealed all the
way up to the higher constitutional and Federal courts.2 Indeed, as a research conducted
by Fundação Getulio Vargas indicates, 91.64% of all lawsuits filed before the Federal
Supreme Court (“Supremo Tribunal Federal”) between 1988 and 2009, corresponding
to a total of 1,120,597 lawsuits, were appeals.3
In reference to the work overload born by Brazilian judges, it is worth noting
the great imbalance between the number of lawsuits and the number of magistrates.
According to a report prepared by the National Council of Justice (“Conselho Nacional
de Justiça”) in 2010, there are only 0.9 federal magistrates for every 100,000 Brazilian
citizens. Furthermore, caseload and backlog ratios displayed in such report provide
clear evidence of the referred work overload, which is aggravated by the rigorous selec-
tion of magistrates and the resulting growing number of vacant court positions. At the
1
Law n. 5,869 of January 11th, 1973.
2
ZIMMERMANN, Augusto, “How Brazilian Judges Undermine the Rule of Law: A Critical
Appraisal”, 2008, 11 International Trade and Business Law Review, p. 179-217.
3
I Relatório Supremo em Números” [“First Report – The Supreme Court in Numbers”], FGV
DIREITO RIO, Escola de Matemática Aplicada – EMAp-FGV, April 2011.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 45-53, abr./jun. 2012
The Electronic Judicial Proceeding in Brazil 47
first instance, the average caseload in 2009 amounted to the impressive figure of 5,493
lawsuits per magistrate. The backlog ratio (i.e. percentage of lawsuits being processed
which have not yet been closed in definite) was equivalent to 59.6% for pre-trial law-
suits and to 86.6% for execution stage lawsuits. At the second instance, the caseload and
backlog ratios in 2009 were respectively 2,623 cases per magistrate and 51.7%.4 In the
State of Sao Paulo, where the situation is very critical in terms of the number of pending
proceedings and time delay for the decision process, the current challenge is to recruit
new judges. To recruit new judges in Brazil, it is necessary that each jurisdiction proceed
to a public contest. In the State of Sao Paulo during the past years, there were always
remaining places, since not all candidates were qualified to become a judge.
Thus, being litigation in Brazil a very often undesired procedure, arbitration
proceedings have emerged as an effective method for resolving disputes in the
last years. Since the enactment of Law n. 9,307 of September 23rd, 1996 (“Brazilian
Arbitration Law”) and after 2001, when the Federal Supreme Court held such law consti-
tutional, arbitration has attained an increasing level of use in Brazil. In terms of inter-
national arbitration, this trend has been further reinforced by the adoption of the UN
Convention on the Recognition and Enforcement of Foreign Arbitral Awards of 1958
(“New York Convention”) in 2002 and of the Agreement on International Commercial
Arbitration of Mercosur in 2003. Since foreign companies are aware of the challenges of
the Brazilian judicial system, specially in the overburdened State of Sao Paulo, where
most of the investments are done, arbitration clauses have been increasingly included
in agreements with Brazilian counterparties. Therefore, for very complex issues or
special business investments in Brazil, there is a tendency to use and rely more in
arbitration proceedings than years before, which can been confirmed not only by
empirical studies but also by recent court decisions.
Nevertheless, arbitration is still an expensive alternative to the judicial system and
is not available for everyman’s pocket. For that reason, it is important to observe that a
remarkable development in the Brazilian judicial system seeking to mitigate the time
costs associated with highly bureaucratic, cumbersome proceedings has been taking
place during the last two decades, which is the deformalizing and digitalization of court
proceedings, by means of what we will call here the Electronic Proceeding.
Based on the principle of efficiency and on the fundamental rule that procedural
acts must not follow a specific form (unless otherwise prescribed by law), both principles
embraced by the Brazilian Code of Civil Proceeding, a series of legislative reforms have
been implemented in order to speed up and simplify judicial proceedings. However, it is
4
Justice in Numbers 2009 – Indicators of the Judiciary Power, National Council of Justice
(Conselho Nacional de Justiça), September 2010.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 45-53, abr./jun. 2012
48 Brunela Vieira de Vincenzi, Luiza Saito Sampaio
important to note that reforms have not only taken the form of innovative legislation,
but also effective, positive experiences of Brazilian courts have reinforced such mod-
ernization trend, as for instance, initiatives by the Special Federal Courts (“Tribunais
Especiais Federais”) of the Federal Regional Court of the 4th Region (“Tribunal Regional
Federal da 4ª Região”).5
Section II presents a brief historical overview of laws enacted with the purpose
of modernizing judicial proceedings and literally bringing Brazilian courts to the XXI
century by progressively introducing information technology communication in pro-
cedural acts. The true turnaround came about with the enactment of Law n. 11,419 of
December 19th, 2006 — the so-called Brazilian Digital Procedural Law — which scope of
applicability and main features are analyzed in Section III.
Section IV and Section V discuss, respectively, the perceived benefits and the
persisting challenges faced by the Brazilian judicial system in view of the ongoing
process of moving judicial proceedings and courts to virtual, digital platforms. Finally,
Section VI summarizes some concluding remarks.
5
LAZZARI, João Batista, “O Processo Eletrônico como Solução para a Morosidade do Judiciário”
[“The Electronic Proceeding as a Solution to Judiciary Delay”], Revista de Previdência Social:
RPS, São Paulo: LTr, Ano 30, n. 304, March 2006, p.173-174.
6
REINALDO FILHO, Demócrito, “A Informatização do Processo Judicial - Da “Lei do Fax” à Lei
11.419/06: Uma Breve Retrospectiva Legislativa” [“The Digitalization of the Judicial Proceeding
– From the “Facsimile Law” to Law n. 11,419/06: A Brief Legislative Retrospective”], December
2006, available at <http://www.fiscosoft.com.br/main_index.php?home=home_artigos&m=
_&nx_=&viewid=151157>.
7
It should be emphasized that Article 19 of Law n. 9,099/1995 already provided for service of
process in special proceedings to be conducted by any sound, proper means. In this case,
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 45-53, abr./jun. 2012
The Electronic Judicial Proceeding in Brazil 49
sense, Article 8, §2 of Law n. 10,259/01 authorizes the implementation of electronic
services for the communication of procedural acts and allows for the submission of
digital documents without the subsequent need to deliver a printed counterpart of
such documents. A very pragmatic, interesting rule was set by Article 14, §3, according
to which judges responsible for standardizing the case law (“Turma de Uniformização
Jurisprudencial”) and residing in different cities should set meetings to be conducted
by distance, digital means.
A subsequent development came about with the enactment of Law n.
11,280/06, which introduced a sole paragraph to Article 154 of the Brazilian Code of
Civil Proceeding. According to this new provision, courts may, within the ambit of their
respective jurisdictions, discipline the practice and official communication of proce-
dural acts by electronic means, with due regard to the requirements of authenticity,
integrity, legal validity and interoperability of the Brazilian Public Keys Infrastructure
(“Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP – Brasil”).
It is important to note that this general rule represents an effort towards the
increasing adoption of electronic means and digital technologies for the purpose of
improving and modernizing the Brazilian judicial system; however, such effort is not
free of restrictions specifically imposed by law. In other words, in cases where the law
requires a special form for a specific act, as for example, proof of real estate property
(which depends on the registration of the title deed with the competent real estate
property register), information technologies might not be resorted to. In this specific
example, even if it is possible to attach the electronic copy of a real estate deed, the
legal validity of such document will be contingent on the effective presentation of the
deed issued by the notary office. Therefore, if the real estate register cannot electron
ically issue the deed, no completely electronic procedure would be possible.
Finally, two important new laws paving the way to an increasing use of IT
resources applied to judicial proceedings in Brazil were enacted in 2006. The first
one, Law n. 11,341 of August 7th, 2006, changed the wording of Article 541 of the
Brazilian Code of Civil Proceeding, in order to authorize the use of judicial decisions
available online as a means of proof in extraordinary and special appeals based on
jurisprudential conflicts. Secondly, Law n. 11,382 of December 6th, 2006 introduced
two important, innovative mechanisms in the enforcement proceeding of extrajudi-
cial deeds: the online seizure (Article 655-A) and the online auction (Article 689-A).
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 45-53, abr./jun. 2012
50 Brunela Vieira de Vincenzi, Luiza Saito Sampaio
8
For a critical analysis about this formal reform of the judicial procedure in Brazil, please refer
to CAVALCANTE, Montavanni Colares, “A Supremacia da Imagem no “Processo Eletrônico” e a
Ameaça à Inteligência do Texto Escrito” [“The Image Supremacy in the “Electronic Procedure”
and the Threat to the Meaning of the Written Text”], Revista Dialética de Direito Processual,
n. 100, 2011, p. 69-77.
9
AQUINO, Ramon Ramos Ferreira de, “O Processo Eletrônico no Direito Brasileiro: A Lei de Infor-
matização do Processo Judicial e Breves Comentários à Informatização do Processo Adminis
trativo” [“The Electronic Procedure in the Brazilian Law: the Digitalization of Judicial Proceed-
ings Law and Brief Comments to the Digitalization of Administrative Proceedings”], available at
<http://www.iesb.br/ModuloOnline/Atena/arquivos_upload/TCC_Ramon%20Ramos.pdf>.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 45-53, abr./jun. 2012
The Electronic Judicial Proceeding in Brazil 51
IV Technology and its benefits
IT resources, as discussed above, offer more alternatives to achieve the goal of
effectiveness and efficiency in judicial proceedings. In addition, electronic systems pro-
vide the extremely useful mechanism to automatically store precise data that can be
further used to monitor and feedback the system. The civil society, and specifically legal
practitioners, may have access to an online case law research database, which further
serves the fundamental principles of transparency and publicity of procedural acts.10
There are other important advantages, which must be highlighted here. Among
these is the flexibility in filing new claims, eliminating costs involved in travelling to the
competent forum. There is also the possibility of using the data upon receipt of docu-
ments in digital form, eliminating the retyping by the registration of new processes,
work that is normally done by court clerks. Also a considerable benefit is the saving of
time due to the integration of all state courts to the digital process, including upper
courts. Finally, a notable achievement is the increase of the access of the parties and
their lawyers to justice, since the digital process allows the filling of a suit from any
computer terminal with internet access.
10
It is important to highlight a possible conflict of constitutional guarantees, where fostering
great publicity and transparency of procedural acts might result in damage to intimacy and data
protection rights. For an interesting discussion about this matter, please refer to MENDONÇA,
Priscila Faricelli, “Notas sobre o Princípio da Publicidade Processual na Atualidade: Processo
Eletrônico e Mídia” [“Notes on the Procedural Publicity Principle Nowadays: Electronic Proceed-
ings and Media”], Revista Dialética de Direito Processual, n. 101, 2011, p. 114-132.
11
ALMEIDA FILHO, José Carlos de Araújo, “A Segurança da Informação no Processo Eletrônico e a
Necessidade de Regulamentação da Privacidade de Dados” [“Information Safety in Electronic
Proceedings and the Need to Regulate Data Privacy”], Revista de Processo, 2007, p. 165-180.
12
MADEIRA, Dhenis Cruz, “Processo Eletrônico e Cognição no Direito Democrático” [“Elec
tronic Proceedings and Cognition in Democratic Law”], Revista de Direito Processual, n. 55,
2007, p. 51-68.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 45-53, abr./jun. 2012
52 Brunela Vieira de Vincenzi, Luiza Saito Sampaio
to justice. In this sense, it is important to discuss the question related to the access to
information by the parties and its lawyers. It will be important that the Brazilian courts
define an objective and clear system to calculate the beginning and the end of dead-
lines in a digital proceeding in order to avoid fraud or unjust preclusions.13
VI Concluding remarks
The use of technology has given courts, judges and legal practitioners the tools
to conduct and to participate in judicial proceedings in a more efficient manner, such
as the digital filing of documents and online seizures abovementioned. Besides that,
recent institutional cooperation between courts and the Federal Revenue Secretariat,
the Central Bank and the National Registers of Automobiles has, for instance, granted
judges the possibility of having computer access to debtors’ tax information without
disrespecting any fundamental rights.14
The legislative developments discussed above and the recent experience of
Brazilian courts demonstrates, therefore, that (even where there might be challenges to
be overcome) the use of information technology shall be intensified in the years to come.
13
Further critics to the digitalization of judicial proceedings have been presented by the
Brazilian Bar Association (OAB) in connection with a possible breach of the constitutional
principles of legality, due process of law and publicity. For a detailed analysis of these
critics (and why they could be dismissed in most cases), please refer to VIANNA, Túlio, “A
Constitucionalidade do Procedimento Eletrônico Frente à Nova Redação do Artigo 154 do
Código de Processo Civil” [“The Constitutional Rule of the Electronic Proceedings in View
of the New Wording of Article 154 of the Brazilian Code of Civil Proceeding”], RT/Fasc.Civ.,
Vol. 874, August 1998, p. 103-108.
14
FRAGALE FILHO, Roberto, “The use of ICT in Brazilian Courts”, Electronic Journal of
e-Government, Volume 7, Issue 4, 2009, p. 349-358, available at <www.ejeg.com>.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 45-53, abr./jun. 2012
The Electronic Judicial Proceeding in Brazil 53
Palavras-chave: Brasil. Sistema judiciário. Procedimento eletrônico.
Tecnologia da informação. Lei de informatização do processo judicial.
VINCENZI, Brunela Vieira de; SAMPAIO, Luiza Saito. The electronic judicial proceeding in Brazil.
Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 45-53, abr./jun. 2012.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 45-53, abr./jun. 2012
O conceito de sentença no Novo Código
de Processo Civil e suas implicações
no processo de execução – O acerto do
Projeto n° 8.046/10
Rafael de Oliveira Guimarães
Mestre e Doutorando em Direito Processual
Civil pela PUC-SP. Membro do Instituto Brasileiro
de Direito Processual Civil. Professor de Direito
Processual Civil na Universidade Estadual de
Maringá (UEM). Professor na Pós-Graduação da
PUCPR, UNIPAR (Umuarama) e UNIVEL (Cascavel).
Advogado em Maringá/PR.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 55-91, abr./jun. 2012
56 Rafael de Oliveira Guimarães
1 Considerações iniciais
Certamente, uma das grandes discussões em direito processual civil é o
pronunciamento judicial denominado sentença, e a sua possibilidade de detectá-la
na execução civil. Surgem indagações se o referido pronunciamento possui iden
tidade com a execução civil, se há sentenças no processo de execução, ou mesmo se
há como um processo de execução ter fim sem uma sentença que assim declare. Para
isso, importante um visita ao conceito básico de sentença, a sua evolução e as senten-
ças que eventualmente têm caráter meritório, para somente assim se opinar sobre a
espécie de pronunciamento judicial que põe fim à execução e a natureza do mesmo.
Após essas definições, mister fazer uma análise dos conceitos relacionados aos
pronunciamentos judiciais dentro da sistemática anterior a 2005, a vigente, e a que
provavelmente entrará em vigor com o Novo Código de Processo Civil, cujo projeto se
encontra em trâmite na Câmara dos Deputados.
Por fim, se definirá a natureza do ato do juiz que põe fim à execução com base
no art. 795 do CPC (art. 880 do Novo CPC), se este é sentença, decisão interlocutória,
despacho ou ato meramente ordinatório, tudo dentro da sistemática atual e o que
dispõe o Projeto do Novo Código de Processo Civil.
1
Cf. DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. 3. ed. São Paulo:
Malheiros, 2000. v. 1, p. 202.
2
DINAMARCO. Fundamentos..., p. 219.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 55-91, abr./jun. 2012
O conceito de sentença no Novo Código de Processo Civil e suas implicações no processo de execução... 57
a ‘substanciação’, ou ‘individuação’?) —, tais dúvidas constituem um desafio, a ser ain-
da enfrentado convenientemente em nossa doutrina”.
É forçoso concluir que o conceito de mérito abrange a causa de pedir e o pedido,
ou objeto litigioso. Pode ser o mérito identificado com o objeto do processo, como deno
mina Arruda Alvim. Integram o mérito ainda todas as questões sobre as quais incidirão a
cognição do juiz, ao julgar. Ou seja, as prejudiciais que integram o mérito. E isso decorre do
próprio sistema. O art. 474 do CPC, que contém o princípio do deduzido e dedutível, é
mostra disso. O ordenamento, ao vedar que as argumentações não utilizadas pela parte
(causa de pedir próxima, segundo a teoria da substanciação do pedido) sejam deduzidas
em outra demanda com o mesmo pedido, deixa claro que a causa de pedir integra o
mérito, e é indissociável do pedido. E ressalte-se, isso ocorre mesmo sob o sacramento
da coisa julgada, que atinge somente o pedido, pois se agrega ao comando judicial que
dispõe sobre ele.
O mérito, nos dizeres do Prof. Arruda Alvim,3 e o conceito que adotará neste breve
trabalho é “a questão principal e quase sempre a última a ser decidida”, é a questão que
põe solução à lide.
Entende-se ser esta a definição mais simples e correta de mérito em direito
processual civil.
3
ARRUDA ALVIM, José Manuel de. Manual de direito processual civil. 8. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004. v. 1, p. 470.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 55-91, abr./jun. 2012
58 Rafael de Oliveira Guimarães
4
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. O agravo e o conceito de sentença. Revista de Processo, São
Paulo, n. 144, p. 256, fev. 2007.
5
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. O dogma da coisa julgada. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 97.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 55-91, abr./jun. 2012
O conceito de sentença no Novo Código de Processo Civil e suas implicações no processo de execução... 59
Da mesma forma, a cognição judicial está presente no desenvolver da execução, na
verificação da validade dos atos executivos, tendo em vista o menor sacrifício do
devedor e a satisfação efetiva do credor. Tais atos também são revestidos de cognição
judicial,6 e sendo a cognição uma resposta à pretensão do exequente posta em juízo,
de mérito se trata, mesmo este mérito na execução não sendo necessariamente jul-
gado na “sentença” do art. 795,7 conforme afirma o Prof. José Miguel Garcia Medina e
Leonardo José Carneiro da Cunha.8
Este último traz exatamente essa dificuldade da doutrina constatar o mérito no
processo de execução, pois “se a ação, na concepção adotada pelo Código de Processo
Civil brasileiro, é o direito a uma sentença de mérito, a doutrina revela uma dificuldade
de enquadrar-se, nesse conceito de ação executiva, pois não se pode concebê-la como
voltada a outra coisa senão a satisfação prática do direito do credor representado em
título executivo, no que consiste, como se sabe, a razão de ser da tutela executiva”.9
Enquanto a concepção de mérito no processo de conhecimento é exatamente a res-
posta judicial ao pedido do jurisdicionado, tendo em vista o silogismo entre petição
inicial e sentença, no processo de execução o mérito é diluído, ocorre com a constata-
ção do título executivo, a verificação da correção de atos executivos como a penhora,
avaliação e alienação, e por consequência, atos que não serão atingidos pela coisa
julgada material, mas sim atos impugnáveis pela via de ação autônoma como a ação
anulatória do art. 486 do CPC.
No processo cautelar, o fenômeno meritório também se impõe, isso pelo fato
de que a auferição de fumus boni iuris e periculum in mora trata-se da resposta judicial à
pretensão do requerente. Há um pronunciamento judicial, mediante cognição sumária,
6
“Em nosso sentir, o mérito da execução é a satisfação do credor (o que foi pedido, no moldes e
nos limites em que foi)” (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. A sentença que extingue a execução.
In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Processo de execução e assuntos afins. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1998. p. 397). “Há cognição judicial no curso do processo de execução,
também quando o juiz verifica a validade dos atos executivos realizados, bem como quando
determina a sua correção” (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. O
dogma da coisa julgada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 97).
7
“Entendo, data maxima venia dos doutos entendimentos transcritos retro, que existe, realmente,
mérito no processo de execução, resultante da delimitação traçada pelo autor da demanda, em
sua peça exordial. Todavia, esse fator não vincula a sentença a ser proferida no processo exe-
cutivo, pois essa sentença não resolve a lide, mas apenas declara extinto o processo executivo”
(MEDINA, José Miguel Garcia. O art. 795 do CPC. Revista de Processo, São Paulo, n. 88, p. 245).
8
“Existe, sim, mérito na execução. O detalhe é que ele é atendido antes da sentença. Satisfeito
o crédito do exeqüente, o juiz irá extinguir a execução por sentença. E tal sentença irá, ape-
nas, declarar que o mérito já foi atendido e que o crédito já foi satisfeito, estando extinta a
execução” (CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Mérito e coisa julgada na execução. In: BRUSCHI,
Gilberto Gomes; SHIMURA, Sérgio. Execução civil e cumprimento de sentença. São Paulo: Método,
2009. v. 3, p. 404).
9
Idem, p. 403.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 55-91, abr./jun. 2012
60 Rafael de Oliveira Guimarães
10
Cf. CARPENA, Márcio Louzada. Do processo cautelar moderno. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2005. p. 145.
11
SILVA, Ovídio Baptista da. Do processo cautelar. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 68 et seq.
12
NERY JUNIOR, Nelson. Ação rescisória em matéria tributária: a dimensão dos juízos rescindente
e rescisório e o creditamento do IPI de insumos isentos, não tributados e tributados à alíquota
zero. Revista de Processo, São Paulo, n. 127, p. 172, set. 2005.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 55-91, abr./jun. 2012
O conceito de sentença no Novo Código de Processo Civil e suas implicações no processo de execução... 61
coisa julgada material, pois, entre as tutelas jurisdicionais, são as únicas que efetivamente
declaram o direito material.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 55-91, abr./jun. 2012
62 Rafael de Oliveira Guimarães
repita-se, considerando-se seus próprios termos), não há porque recusar ter havido
apreciação do mérito e que, portanto, houve declaração, apta a projetar efeitos para
fora do processo e a se revestir da autoridade da coisa julgada material”.13 Amílcar de
Castro14 entende que a coisa julgada material incide no caso por “imposição iniludível
de justiça”. Não pelo mesmo fundamento, mas a ocorrência de coisa julgada material
quando da existência de uma sentença de processo de conhecimento no de execu-
ção é opinião compartilhada por Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia
Medina que entendem que em “ocorrendo declaração judicial reconhecendo que a
dívida foi paga, afirma-se na doutrina que há na referida sentença, pronunciamento
ou iudicium do magistrado, que não deixa de ser de mérito. Semelhantemente, é o que
se dá, por exemplo, quanto à sentença que reconhece a ocorrência de prescrição na
própria ação de execução. Nesse caso, extraordinária e excepcionalmente, acaba o juiz
por manifestar-se acerca da (in)existência do próprio crédito exeqüendo”.15
Em se tratando da formação de coisa julgada das decisões de processo de
conhecimento no processo executivo, entre elas, as do art. 794 do CPC, surge uma
pequena controvérsia doutrinária, justamente em seu inciso I que reza pela extinção
da execução quando o devedor satisfaz a obrigação. Flávio Luiz Yarshell16 e Araken de
Assis17 entendem que em tal pronunciamento não possui carga de cognição suficiente
para ser acobertada pela coisa julgada material. Ocorre que o que há é a satisfação
13
YARSHELL, Flávio Luiz. Ação rescisória e decisões proferidas no processo de execução. In:
LOPES, João Batista; CUNHA, Leonardo José Carneiro da (Coord.). Execução civil: (aspectos
polêmicos). São Paulo: Dialética, 2005. p. 151.
14
CASTRO, Amílcar de. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1976. v. 8, p. 398.
15
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Coisa julgada na execução e na exceção de pré-executividade.
In: BRUSCHI, Gilberto Gomes (Coord.). Processo de execução: temas polêmicos e atuais. São Paulo:
RCS, 2005. p. 203.
16
“Tais considerações, por outro lado, não endossam tese segundo a qual o juiz extingue o
processo de execução, na forma do art. 795, com fundamento nas hipóteses do art. 794,
ambos do CPC, ocorreria sempre coisa julgada de mérito. O que justifica a estabilidade da
declaração expressa no processo de execução não é simplesmente a afirmação formal de
que o devedor satisfez a obrigação (art. 794, I), mas sim o objeto e o grau de cognição
compreendida para que se chegasse a essa declaração. Se, no processo de execução, não
houve cognição adequada e suficiente porque i) aí não foram deduzidas alegações defensi-
vas ou; ii) as alegações aí apresentadas exigiam cognição incompatível com aquela possível
e adequada à estrutura e fins desse processo, então realmente não há que se cogitar de
julgamento do mérito e, nessa medida, descarta-se a ocorrência de coisa julgada material”
(YARSHELL, Flávio Luiz. Ação rescisória e decisões proferidas no processo de execução. In:
LOPES, João Batista; CUNHA, Leonardo José Carneiro da (Coord.). Execução civil: (aspectos
polêmicos). São Paulo: Dialética, 2005. p. 152).
17
“Em realidade, o provimento extintivo da demanda executória, porque o devedor
satisfez a obrigação (art. 794, I), não exibe carga declaratória suficiente para redundar na
indiscutibilidade do art. 467, do CPC” (ASSIS, Araken de. Manual da execução. 9. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2004. p. 382).
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O conceito de sentença no Novo Código de Processo Civil e suas implicações no processo de execução... 63
da obrigação — o pagamento — que por ser uma forma de extinção das obrigações,
torna-o impossibilitado de ser pleiteado em outra demanda. Seria o mesmo que se
afirmar que quando feita uma transação no processo de conhecimento, o mesmo crédito
poderia ser rediscutido posteriormente. Entende-se que tal discussão é impossibilita-
da por ter havido manifestação de vontade do executado concordando com o débito,
e assim ocorrendo uma composição da lide. Deste modo, filia-se ao entendimento de
José Carlos Barbosa Moreira quando afirma que “em todos os incisos do art. 794, há
um denominador comum: trata-se, em qualquer deles, de atos suscetíveis de extin-
guir a relação jurídica material entre as partes”.18
A similitude entre as decisões proferidas nos arts. 269 e 794 é evidente con-
forme expõe Teresa Arruda Alvim Wambier.19 Ou, com mais profundidade analisa
Leonardo José Carneiro da Cunha,20 “os incisos I, II e III do art. 794 do CPC correspon-
dem aos incisos I, III e V do art. 269 do mesmo diploma legal, sendo inegável que há,
em todos esses casos, atendimento do mérito”.
Vê-se que, de acordo com o art. 269, haverá resolução de mérito quando as
partes transigirem, hipótese prevista no art. 794, II, do CPC; quando o autor renunciar
ao direito que se funda a ação, hipótese prevista no art. 794, III; e nas demais hipóte-
ses previstas no art. 269 do CPC, ou seja, se houver uma ação de embargos à execu-
ção, poderá ocorrer a hipótese do inc. I do art. 269, ou se houver uma declaração de
prescrição, a hipótese do inc. IV.
A hipótese do inc. I, do art. 794, seria uma hipótese anômala, mas é caso ocor-
rente quando o devedor realiza o pagamento, independente de expropriação, ou seja,
por sua vontade manifesta, assim se assemelhando à remição ou mesmo à transação,
é hipótese de pagamento, inserindo-se no inc. II do próprio art. 794 do CPC.
Portanto, todas as hipóteses de extinção da execução com base no art. 794 do
CPC são sentenças meritórias, mas de processo de conhecimento, embora seja realizada
no processo de execução.
Desta forma, as decisões (sentenças) de processo de conhecimento no processo
de execução, e somente essas, entre elas as do art. 794, transitam em julgado,21 conforme
18
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Notas sobre a extinção da execução. In: ASSIS, Araken de
(Coord.). O processo de execução. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995. p. 183.
19
“Anote-se, por oportuno, a similitude dos incisos do art. 794 com os do art. 269 do mesmo
Código” (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Nulidades do processo e da sentença. 6. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2007. p. 122).
20
CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Mérito e coisa julgada na execução. In: BRUSCHI, Gilber-
to Gomes; SHIMURA, Sérgio. Execução civil e cumprimento de sentença. São Paulo: Método,
2009. v. 3, p. 405.
21
“A decisão que extingue a execução pelo pagamento, reveste-se de conteúdo material,
sendo, portanto, atacável pela ação rescisória” (STJ, 6ª T., Resp 238.059-RN, 21.03.00, Rel.
Min. Fernando Gonçalves, DJU, p. 144, 10 abr. 00).
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64 Rafael de Oliveira Guimarães
22
Sobre o assunto, impõe-se ceder a palavra a Thereza Alvim, segundo quem a sentença que
extingue o processo de execução (CPC, 795), por qualquer dos motivos elencados no art. 794,
entre eles a satisfação do crédito (inciso I), é abrangida pelos efeitos da coisa julgada material,
somente podendo ser rescindida ou modificada por meio de ação rescisória, sujeita ao prazo
decadencial de dois anos. Eis o teor de sua lição: “Muito se discute sobre a sentença que põe
termo à execução, tida como essencial pelo art. 795 do Código de Processo Civil. Esta pode
ter como conteúdo quer as hipóteses enumeradas no artigo anterior, quer outras. Todavia,
tratando-se de sentença que extingue a execução, porque o devedor satisfez a obrigação, por
o devedor obter, por o devedor obter mediante transação ou qualquer outro meio, a remissão
total da dívida ou por o credor ter renunciado ao crédito inegavelmente, ficará ela abrangida
pela imutabilidade própria da coisa julgada material. Esse o motivo pelo que nos parece só
poderá ser desconstituída através de ação rescisória. (...) Assim, discordamos da afirmação de
que, se a execução não foi embargada, necessariamente inexiste sentença, só cabendo ação
anulatória eis que o seu uso está restrito às hipóteses enquadráveis no art. 486 do Código de
Processo Civil” (ALVIM, Thereza. Notas sobre alguns aspectos controvertidos da ação rescisó-
ria. Revista de Processo, São Paulo, n. 39, p. 15, jul./set. 1985 apud CUNHA, Leonardo José Carneiro
da. Mérito e coisa julgada na execução. In: BRUSCHI, Gilberto Gomes; SHIMURA, Sérgio. Execu-
ção civil e cumprimento de sentença. São Paulo: Método, 2009. v. 3, p. 407).
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O conceito de sentença no Novo Código de Processo Civil e suas implicações no processo de execução... 65
para que se reconheça que, com a inexistência da sentença, faltava título executivo e
se peça cumulativamente o desfazimento do resultado do resultado material do pro-
cesso executivo (por ex., a repetição do montante entregue ao exeqüente)”.23
Agora, chega-se à seguinte questão: se o juiz se manifesta expressamente pela
inexistência de título executivo (falta de assinatura em uma nota promissória, por
exemplo), tal decisão, que é de mérito e expressada mediante sentença não faz coisa
julgada? Como já dito, a grande parte da doutrina entende que não. Ocorre que é deci
são que responde a uma pretensão, mesmo que seja executiva; e é tomada mediante
cognição exauriente, mesmo que parcial. Se tal decisão não for acobertada pela coisa
julgada, o exequente poderia adentrar novamente no judiciário visando à satisfação
do crédito que este supõe ter sem ter tornado exigível o título pela assinatura do título
ou declaração de exigibilidade do mesmo. Tal fato não ocorre, o exequente somente
pode buscar a satisfação do seu crédito se o título for “corrigido”, ou seja, mudar a situ-
ação fática, passar de inexistência do título executivo para existência.
Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina, em posição muito
bem fundamentada, entendem neste sentido, no de formação de coisa julgada material
quanto à pretensão executiva. Entendem tais processualistas que quando “não se está
diante de um título executivo, ante a nulidade do ato jurídico, não fica esta questão —
a nulidade do ato jurídico — sujeita à coisa julgada. Dentre outras razões, pode-se
dizer a resolução da questão figuraria dentre os motivos da decisão, ou, quando muito,
questão prejudicial relativa à inexistência do título executivo, abrindo ensejo à inci-
dência do disposto no art. 469 do CPC.
Além disso, impõe-se seja feita a distinção entre ato e o crédito. O ato pode
ser, por exemplo, o contrato do qual tem início a dívida executada — o documento
será o instrumento particular ou a escritura pública. Quando alguém diz que está ‘exe-
cutando um contrato’, v. g., o objeto da execução é o crédito do contrato. Ou seja, o
crédito está contido no ato — não pode o juiz conhecer, na ação de execução, como
já se firmou antes. Deste modo, o que fica acobertado pela coisa julgada, na hipótese,
é apenas se aquele ato, tal como configurado, significa ou não um título executivo,
mesmo porque outra coisa não foi decidida pelo juiz.
Nada obsta, assim, que a dívida eventualmente existente seja cobrada por outra
via processual, porquanto nada se disse a respeito de sua existência, na sentença pro-
ferida no processo de execução.”24
Portanto há possibilidade de haver coisa julgada nas sentenças de processo de
execução, mas somente quando o juiz se manifesta acerca da existência do título, e
23
TALAMINI, Eduardo. A coisa julgada e a sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 373.
24
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. O dogma da coisa julgada. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 106.
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66 Rafael de Oliveira Guimarães
25
Idem, p. 101.
26
“No tocante à dupla execução provocada pelo credor aventureiro, revela-se inócua a alegação
de coisa julgada proveniente do primeiro processo já extinto. Rejeitar-se-á a tentativa exorbi-
tante com fundamento do princípio ne bis in idem, pois o sistema processual é infenso à reite-
ração inútil e abusiva do que se consumou satisfatoriamente. Este obstáculo não se funda na
coisa julgada, de resto instituto inaplicável à demanda executória” (ASSIS, Araken de. Manual
da Execução. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 384).
27
CARPENA, Márcio Louzada. Do processo cautelar moderno. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
p. 167-168.
28
CARPENA, op. cit., p. 349-350.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 55-91, abr./jun. 2012
O conceito de sentença no Novo Código de Processo Civil e suas implicações no processo de execução... 67
Poderia se imaginar tal possibilidade em virtude do art. 808, parágrafo único,
onde se obsta a propositura de nova ação sem a modificação da causa de pedir, o que
não induz à ideia de formação de coisa julgada material. Tal dispositivo legal apenas
traz uma ideia de coisa julgada secundum eventum litis, fazendo ser lícito à propositura
com a mudança da situação acautelanda, o que não traz a certeza jurídica de uma
coisa julgada material.
O dispositivo do parágrafo único do art. 808 do CPC, que preceitua pela possibi-
lidade de poder-se ajuizar medida cautelar somente com fundamento diferente, pode
levar a erro quanto à formação de coisa julgada material. Isso não ocorre, a situação
de direito substancial de cautela pode mudar constantemente, diferente de uma ação
que seja acobertada pela qualidade de coisa julgada material.
O princípio esculpido no art. 808, parágrafo único, é uma verdadeira disposição
do ne bis in idem,29 que veda a provocação do judiciário para se discutir o mesmo direito,
ainda que o substancial de cautela.
29
CARPENA, op. cit., p. 32.
30
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. O dogma da coisa julgada. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 134.
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68 Rafael de Oliveira Guimarães
31
“[...] em verdade, dentre os atos que o juiz pratica no processo, há muitos outros — alguns de
superlativa importância — que não consistem nem em sentenças, nem em decisões inter
locutórias e nem em despachos: por exemplo, a inquirição de testemunha (art. 416) ou da
parte (art. 344), a inspeção de pessoa ou coisa (art. 440), a tentativa de conciliação das partes
(art. 331 e 448, princípio), a audiência dos cônjuges sobre o motivo da separação consensual
(art. 1.122, caput, com a redação dada pelo art. 39 da Lei n. 6.515), a abertura de testamento
cerrado (art. 1.125), a arrecadação dos bens da herança jacente (art. 1.145), o exame do inter-
ditando (art. 1.181) e assim por diante” (MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código
de Processo Civil. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. v. 5, p. 241).
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 55-91, abr./jun. 2012
O conceito de sentença no Novo Código de Processo Civil e suas implicações no processo de execução... 69
Arruda Alvim define de outra maneira o preceituado pelo art. 162, ainda na
redação anterior a 2005. Esclarece que “ainda, o art. 162, §3º, deve ser considerado em
face do disposto no art. 504, em que se alude a despachos de mero expediente, es-
pécie esta que, desde logo, e pelo menos nominalmente, é diversa da dos despachos
(pois estes albergam conteúdo decisório). E os despachos são realmente decisões, no
plano sistemático do CPC, uma vez que a lei processual só exclui de recorribilidade os
despachos de mero expediente. Os despachos, portanto, são recorríveis por agravo,
assimiláveis que são, neste particular, às decisões interlocutórias. Quanto aos de mero
expediente, todavia, se o CPC procurou torná-los irrecorríveis, é porque não lesam.
Inocorre lesão — afirma-se — porque são eles destituídos de conteúdo decisório,
ainda que mínimo”.32
Assim, constata-se que, em regra, todos os despachos preceituados pelos §§3º e
4º do art. 162 são irrecorríveis. No entanto, mesmo sendo nominadas despachos, existem
decisões propriamente ditas, proferidas durante o processo, que realmente decidem ques-
tões, e aí não seriam mais despachos, mas decisões interlocutórias, segundo José Carlos
Barbosa Moreira.33 Os despachos tidos como de mero expediente, pela redação posterior
a 2005, podem ser proferidos pelo próprio escrivão, não ensejando maiores discussões
acerca da recorribilidade dos despachos proferidos pelo juiz, eventualmente terão
conteúdo decisório.
32
ARRUDA ALVIM, José Manuel de. Notas a respeito dos aspectos gerais e fundamentais da
existência dos recursos: direito brasileiro. Revista de Processo, São Paulo, n. 48, p. 12.
33
“Quanto ao tradicionalmente chamado ‘despacho liminar’ (o art. 285 emprega ‘despachará’),
mesmo quando tenha conteúdo positivo — isto é, deferirá a citação do réu —, já sob o regime
anterior se pusera em relevo, na doutrina, o seu teor decisório, pelo menos em certos processos.
Em resumo: todo e qualquer ‘despacho’ em qualquer órgão judicial que decida questão, no
curso do processo, pura e simplesmente não é despacho, ainda que assim lhe chame o texto:
encaixando-se no conceito de decisão interlocutória (art. 162, par. 2º), ipso facto deixa de
pertencer à outra classe. Absurdo lógico seria conceder-lhe lugar em ambas” (MOREIRA, José
Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
v. 5, p. 245). “Nesse esquema, os ‘despachos’ são unicamente os verdadeiros despachos, isto é,
os aludidos nos arts. 504 (redação antiga), com a expressão ‘despachos de mero expediente’, e
189, n. II, verbis ‘despachos de expediente’: atos de puro e simples impulso processual, como
os que o órgão judicial pratica quando assina prazo a qualquer das partes para falar nos autos,
ordena a remessa destes ao contador, manda proceder à anotação de reconvenção ou de
intervenção de terceiro pelo distribuidor (art. 253, parágrafo único), designa dia, hora e lugar
para ouvir a parte ou a testemunha impossibilitada de comparecer à audiência (art. 336,
parágrafo único) etc. Todos esses atos — despachos em sentido próprio — são irrecorríveis,
ex vi do art. 504 (cf., infra, os comentários a esses dispositivos). A classe, aliás, sofreu sensível
esvaziamento em conseqüência do acréscimo de um parágrafo 4º ao art. 162 (Lei n. 8.952, de
13.12.1994), a cuja luz ‘os atos meramente ordinatórios, como a juntada e a vista obrigatória,
independem de despacho, devendo ser praticados de ofício pelo servidor e revistos pelo juiz
quando necessário’” (Ibidem, p. 246).
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34
ARRUDA ALVIM, José Manuel de. Notas a respeito dos aspectos gerais e fundamentais da
existência dos recursos: direito brasileiro. Revista de Processo, São Paulo, n. 48, p. 12.
35
“Este critério tem sido utilizado de modo profícuo na jurisprudência, para distinguir os despa-
chos que, como tais, não podem ser impugnados por recurso daqueles que, por causar prejuízo à
parte, ou por serem manifestamente errados, são, por isso, agraváveis” (WAMBIER, Teresa Arruda
Alvim. Os agravos no CPC brasileiro. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 142).
36
“O que caracteriza ser determinado pronunciamento uma decisão é o prejuízo jurídico dele
decorrente para uma ou ambas as partes. Os critérios do prejuízo e o topológico orientam o
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 55-91, abr./jun. 2012
O conceito de sentença no Novo Código de Processo Civil e suas implicações no processo de execução... 71
Profa. Teresa Arruda Alvim Wambier, de que objetivo para se detectar quais são os
pronunciamentos judiciais não deve ser verificar o conteúdo decisório ou não em um
despacho para detectar se é despacho ordinário ou de mero expediente, até porque
todos seriam de mero expediente, o enfoque é demonstrar a ocorrência de prejuízo, ou
a sua classificação como “errôneo”, o que seria um prejuízo presumido, e classificá-lo
como decisão interlocutória, e aí sim abrir a via do agravo de instrumento para a
impugnação.37
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72 Rafael de Oliveira Guimarães
39
MARTINS, Renato Castro Teixeira. Apelação por instrumento. In: MEDINA, José Miguel Garcia
et al. (Coord.). Os poderes do juiz e o controle das decisões judiciais: estudos em homenagem à
Professora Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 841.
40
“Cumpre notar, inicialmente, que os arts. 267 e 269 do CPC dizem respeito quer a sentença, quer
o acórdão, quer às decisões interlocutórias proferidas pelo relator, cujo conteúdo seja de uma
sentença” (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Nulidades do processo e da sentença. 6. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2007. p. 32). “E, agora, a Lei n. 11.232 diz que no art. 162, na nova redação
que deu ao art. 162, diz: sentença é ato do juiz que implica uma das situações do art. 267 ou 269.
O que me parece absolutamente correto. Para mim sempre foi assim, embora a lei reduzisse o
intérprete a um raciocínio viciado” (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. O agravo e o conceito de sen-
tença. Revista de Processo, São Paulo, n. 144, p. 255, fev. 2007). No mesmo sentido: “houve, assim,
aparente substituição do critério para definição de sentença: o critério formal (finalístico) teria
sido substituído pelo critério material (conteúdo)” (CORTEZ, Cláudia Helena Poggio. O novo con-
ceito de sentença visto pelos Tribunais. Revista de Processo, São Paulo, n. 171, p. 283, maio 2009).
41
“A nova redação conferida ao art. 162, §1º, alterou o conceito de sentença. Pelo novo conceito, a
sentença é toda e qualquer decisão que, proferida por um juiz de primeiro grau, tenha seu con-
teúdo subsumido a alguma das hipóteses contidas nos arts. 267 e 269” (OLIVEIRA, Breno Silveira
de. Um novo conceito de sentença?. Revista de Processo, São Paulo, n. 149, p. 136, jul. 2007).
42
“Retomada a atual redação do art. 162, §1º, do CPC (Sentença é o ato do juiz que implica alguma das
situações previstas nos arts. 267 e 269 desta Lei), outra não poderá ser a conclusão senão a de que
o ato que afastou um dos litisconsortes, determinando curso ao processo com os remanescentes
sujeitos parciais, é (e sempre foi!) uma sentença sem resolução de mérito” (MILMAN, Fábio. O
novo conceito de sentença e suas repercussões recursais: primeiras experiências com a apelação
por instrumento. Revista de Processo, São Paulo, n. 150, p. 165, ago. 2007).
43
“Ademais, mesmo que se aplicasse à hipótese a regra prevista no art. 191 do CPC, o provimento
jurisdicional ora impugnado pelo agravo de instrumento homologou o acordo entabulado
pelas partes, extinguindo o processo com resolução do mérito, nos termos do disposto
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 55-91, abr./jun. 2012
O conceito de sentença no Novo Código de Processo Civil e suas implicações no processo de execução... 73
O ponto nervoso da aceitação do conceito de sentença pelo critério material
reside justamente na recorribilidade do pronunciamento judicial.
Tome-se como exemplo uma decisão que rejeitava a pretensão de litisconsorte
ativo, por exemplo. Tal decisão era, teoricamente, uma sentença, mas para o Código
continuava uma decisão interlocutória, pois o processo ainda não tinha se encerrado e
a recorribilidade facilmente se encontrava no agravo de instrumento. Hodiernamente,
a dúvida já se encontra presente. É uma decisão que julga com base nos arts. 267 e 269
(267, mais precisamente) do CPC; no entanto, não encerra o processo como um todo,
mas somente uma das relações jurídico-processuais. Pelo Código, restaria a apelação
cível como meio recursal, mas será que os autos do processo “subiriam” ao segundo grau
de jurisdição para a apreciação de tal feito? Haveria então a suspensão do processo? Em
caso negativo, dever-se-ia impugnar pela via da “apelação por instrumento”?
Parte da doutrina adotou justamente essa última hipótese, passou a defender o
cabimento da apelação por instrumento para impugnar os pronunciamentos judiciais que
não colocassem fim ao processo, mas que decidissem com base no art. 267 e 269 do CPC.
O referido posicionamento é defendido por Luiz Guilherme da Costa Wagner Junior44 e
Renato Castro Teixeira Martins,45 sendo que este, inclusive, entende que não se deve fazer
qualquer alteração legislativa para se admitir a apelação por instrumento, mas somente
uma adaptação do art. 525 ao 513 do CPC. O argumento básico para a compreensão do
critério material para a conceituação de sentença é a sua fácil compreensão ante uma
leitura somente do §1º do art. 162 do CPC, e claro, o principal, está-se classificando
o ato judicial pela atividade cognitiva do juiz. Se o juiz decide um pedido, seja com
acolhimento de mérito, seja extinguindo o processo sem resolução de mérito, tal ato
deve ser tido como sentença, independentemente do momento em que é prolatado.
no art. 269, III do CPC. Trata-se, portanto, de sentença, que desafia recurso de apelação e não
agravo de instrumento” (TRF da 4ª Região, AgIn n. 2008.04.00.016722-7, rel. Des. Fed. Maria
Lúcia Luz Leiria, j. 14.04.2010, DJe, 06 maio 2010).
44
“Outro reflexo prático da aceitação da apelação como o recurso cabível diante dessas mani-
festações diz respeito à necessidade da formação de instrumento para este recurso, pois, do
contrário, não haverá meio de a apelação chegar ao conhecimento do tribunal uma vez que,
recorde-se, o feito irá prosseguir em primeiro grau, já que a decisão é apelável, ainda que preen-
chendo o novo conceito de sentença, não haverá colocado fim ao processo” (WAGNER JUNIOR,
Luiz Guilherme da Costa. O novo conceito de sentença e os reflexos na escolha dos meios de
impugnação cabíveis diante dos pronunciamentos judiciais: aplicação do princípio da fungibili-
dade. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; NERY JUNIOR, Nelson (Coord.). Aspectos polêmicos e
atuais dos recursos cíveis e assuntos afins. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. v. 11, p. 245).
45
“Assim, não há que se falar em necessidade de alteração legislativa para admitir-se a interposição
do recurso de apelação por ou na forma de instrumento, já que não se trata de recurso novo, mas
apenas de utilização, por analogia, de regime ou forma já prevista para outro recurso” (MARTINS,
Renato Castro Teixeira. Apelação por instrumento. In: MEDINA, José Miguel Garcia et al. (Coord.).
Os poderes do juiz e o controle das decisões judiciais: estudos em homenagem à Professora Teresa
Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 842).
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 55-91, abr./jun. 2012
74 Rafael de Oliveira Guimarães
O que pode ocorrer num processo de dois autores contra um réu seria a prolação
de uma sentença num momento (declaração de prescrição do pedido contra um dos
autores, por exemplo) e outra no fim do processo (a mesma declaração de prescrição
com relação ao outro autor). Em admitindo ser uma sentença esse primeiro pronun-
ciamento judicial, mas agravável, e o último pronunciamento, indiscutivelmente uma
sentença, e claro, apelável, segundo Fábio Milman46 e Teresa Arruda Alvim Wambier,47
de acordo com interessante fundamentação, atentar-se-ia contra um princípio consti-
tucional: a isonomia.
Isso porque essa primeira sentença, impugnável via agravo de instrumento, teria
um procedimento muito mais criterioso, tendo em vista as peças obrigatórias a serem ane-
xadas (cf. art. 525), a declaração de autenticidade das peças pelo advogado, e a informação
ao juízo a quo acerca da apresentação do recurso perante o tribunal regional (cf. art. 526
do CPC), e em contrapartida, tem um processamento com menos garantias ao devido pro-
cesso legal, como a impossibilidade de conclusão ao revisor (cf. art. 551 do CPC) e de sus-
tentação oral (cf. 554 do CPC). Ainda, no recebimento da apelação cível, em regra, tem-se
o efeito suspensivo ope legis, e no agravo de instrumento, tal ato depende de decisão do
relator (cf. art. 527, III, do CPC) não sujeita a recurso (cf. art. 527, parágrafo único, do CPC).
Desse modo, verifica-se a disparidade e muito maior benefício de o seu direito
reconhecido no caso de apresentação de apelação cível do que quem apresenta o
46
“Ocorre que a própria lei outorga maiores vantagens no uso da apelação do que no manejo do
agravo de instrumento. Assim está no art. 520, caput, do CPC ser regra o recebimento da apela-
ção no efeito suspensivo, enquanto no agravo de instrumento tanto poderá ou não ser alcan-
çado conforme decisão irrecorrível do relator (art. 527, III e parágrafo único, do CPC; art. 558 do
CPC). A possibilidade de sustentação oral das motivações recursais é admitida na apelação e
vedada no agravo de instrumento (art. 554 do CPC). Eventual recurso extraordinário ou recurso
especial que tiver sido interposto ‘contra decisão interlocutória em processo de conhecimento,
(...) ficará retido nos autos’ (art. 542, §3.º, do CPC), enquanto as mesmas espécies, se interpostas
contra acórdãos que tenham julgado apelações, terão tramitação imediata, sem dependência
de atos ou possibilidades futuras. Por fim, no julgamento da apelação prevê o art. 551 do CPC
prévia submissão do feito a revisor, figura excluída em se tratando de agravo” (MILMAN, Fábio.
O novo conceito de sentença e suas repercussões recursais: primeiras experiências com a ape-
lação por instrumento. Revista de Processo, São Paulo, n. 150, p. 166, ago. 2007).
47
“Eu coloquei essa idéia debaixo do travesseiro, pensei melhor, pensei sob essa ótica muito
contemporânea de se analisar o direito processual, a partir de uma perspectiva constitucional,
do Princípio da Isonomia, e realmente cheguei à conclusão de que essa é a melhor solução.
Porque essa realmente é a solução que preserva o princípio da isonomia, o princípio da iso-
nomia no sentido amplíssimo, quer dizer, a parte não pode ter uma solução diferente com
relação ao pedido que foi decidido precocemente e ao pedido que vai ser decidido depois.
Porque se houver um agravo de instrumento com efeito suspensivo, a parte vai ficar privada
de revisão, vai ficar privada de fazer sustentação oral, o recurso não é o mesmo. Tem que ser
também uma apelação, só que, procedimentalmente, a forma da apelação tem que ser por
instrumento” (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. O agravo e o conceito de sentença. Revista de
Processo, São Paulo, n. 144, p. 252, fev. 2007).
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O conceito de sentença no Novo Código de Processo Civil e suas implicações no processo de execução... 75
agravo de instrumento, mesmo se tratando de decisão com mesmíssimo conteúdo.
Por isso ser perfeitamente defensável a utilização da apelação por instrumento o caso.
No entanto, outra problemática surge com a eventual utilização da apelação
por instrumento: está-se criando um recurso inexistente no sistema processual civil.
Por mais que se defenda que a apelação cível já é um recurso previsto nos arts. 496 e
513 do CPC, não necessitando mais de previsão, mas sendo a sua forma de instrumento
somente uma regulamentação procedimental, tal fundamento não se sustenta. Isso
porque o Código de Processo Civil, quando entende ser um caso de apresentação de
um recurso na forma de instrumento o faz expressamente (cf. arts. 522, 525 e antigo 544
do CPC), não deixando isso para arbítrio das partes ou de regimentos internos, também
pelo fato de que a lei processual estabelece regras para o trâmite desses recursos na
forma de instrumento.
O Prof. Nelson Nery Junior traça argumentos interessantes contra a adoção da
apelação por instrumento, além do já trazido. Entende o processualista que “inventar-se
apelação por instrumento, inexistente no direito brasileiro e absolutamente alheia à
tradição do processo civil luso-brasileiro; burla-se o regime jurídico da apelação, dado
pelo CPC 514, que não prevê a possibilidade de sua interposição por instrumento,
sendo, portanto, contra legem mandá-la processar por instrumento; cindir-se o julga-
mento da lide com a ‘sentença parcial’, não prevista no sistema do CPC (poderia, con-
forme alguns, ser prolatada no sistema revogado do CPC/39 287)”.48 Vê-se o acerto da
posição do Prof. Nelson Nery Junior justamente no que tange à compreensão prática
do conceito de sentença e do manejo de uma apelação por instrumento. O eventual
recurso praticamente admite a possibilidade da existência de várias sentenças num
mesmo processo, o que já tinha sido extirpado do ordenamento jurídico processual
com a promulgação do CPC de 1973. Seria um retrocesso naquilo que Alfredo Buzaid
arquitetou e trouxe vários benefícios, principalmente no que tange à recorribilidade
dos pronunciamentos judiciais.
O critério para a classificação dos pronunciamentos deve ser o processo e não a
ação,49 justamente para se admitir somente uma sentença e, consequentemente, uma
apelação cível de cada processo.
48
NERY JUNIOR, Nelson. Conceito sistemático de sentença: considerações sobre a modificação
do CPC 162, §1.º que não alterou o conceito de sentença. In: JAYME, Fernando Gonzaga; FARIA,
Juliana Cordeiro; LUANAR, Maira Terra (Coord.). Processo civil: novas tendências: estudos em
homenagem a Professor Humberto Theodoro Júnior. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 529.
49
“O parâmetro para a classificação do ato judicial é o processo e não a ação” (NERY JUNIOR,
Nelson. Conceito sistemático de sentença: considerações sobre a modificação do CPC 162, §1.º
que não alterou o conceito de sentença. In: JAYME, Fernando Gonzaga; FARIA, Juliana Cordeiro;
LUANAR, Maira Terra (Coord.). Processo civil: novas tendências: estudos em homenagem ao
Professor Humberto Theodoro Júnior. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 523).
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76 Rafael de Oliveira Guimarães
50
FRIAS, Jorge Eustácio da Silva. A multa pelo descumprimento da condenação em quantia
certa e o novo conceito de sentença. In: SANTOS, Ernani Fidélis dos et al. (Coord.) Execução
civil: estudos em homenagem ao Professor Humberto Theodoro Júnior. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2007. p. 167.
51
RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva. A definição dos pronunciamentos judiciais (sentença, deci
sões interlocutórias e despachos) após as últimas alterações legislativas: impacto e efeitos no
plano recursal. In: MEDINA, José Miguel Garcia et al. (Coord.). Os poderes do juiz e o controle
das decisões judiciais: estudos em homenagem à Professora Teresa Arruda Alvim Wambier.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 379.
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O conceito de sentença no Novo Código de Processo Civil e suas implicações no processo de execução... 77
Portanto, uma das razões de ser da mudança trazida pela Lei nº 11.232/05 não
é a simples adaptação ao critério material no que tange ao conceito de sentença, mas
a adaptação do conceito à nova sistemática do processo sincrético ao se afirmar que
sentença é o pronunciamento judicial pelo qual se põe fim à fase cognitiva em primei-
ro grau de jurisdição, e não mais ao processo, porque esse envolve a fase executiva e
eventualmente o processamento no tribunal estadual também.
Outro fator interessante é que o §1º do art. 162 não pode ser interpretado
isoladamente para se conceber o conceito de sentença, mas sim em conjunto com o
§2º, que permaneceu inalterado. Mais uma feliz afirmação é feita por Jorge Eustácio
da Silva Frias ao trazer que “se a lei define como sentença o ato que implica umas das
hipóteses descritas nos arts. 267 e 269 (art. 162, §1º), por outro lado, o §2º do referido
art. 162 (inalterado) continua a dizer que ‘decisão interlocutória é o ato pelo qual o juiz,
no curso do processo, resolve questão incidente’. Ora, ‘questão’ é todo ponto contro-
vertido, de direito ou de fato. Quando decidido no curso do processo, isto é, antes da
solução integral da lide, o ato do juiz será decisão interlocutória; quando tal solução
vier como definição do juiz para a lide, por forma a que, em primeiro grau, o mérito da
causa não poderá mais ser revisto (salvo, naturalmente, por meio de embargos decla-
ratórios, no âmbito que lhe é próprio, ou se o tribunal anular o julgamento), o ato, para
efeito recursal, deverá ser qualificado como sentença. Noutras palavras, sentença será
o ato do juiz, hábil a extinguir o processo e a relação processual, quando proferida na
forma do art. 267 do Código, assim como será o ato que encerra (hábil a encerrar) a
fase de acertamento do direito, a etapa de solução da lide”.52 Por isso, não bastassem
as questões de recorribilidade e adaptação ao sistema que levam a entender sentença
utilizando um critério misto, topológico-finalístico para a definição, a própria leitura do
art. 162, §2º, também deve nortear o intérprete. Ora, se o conceito de decisão interlocutó-
ria permanece inalterado, como sendo uma questão incidente, o §1º deve ser interpretado
sendo utilizado como fonte o segundo, e não ler o §2º somente nas hipóteses em que
não incida o primeiro. A sentença é o ato que decide com base nos arts. 267 e 269, mas
desde que não seja questão incidental, por interpretação do §2º do art. 162, do CPC.
Ainda, pensando numa aplicação pragmática do conceito de sentença, não há
como entendê-lo como o pronunciamento judicial que decide com base nos arts. 267
e 269 do CPC somente. Tendo em vista o já explanado, principalmente com relação à
impossibilidade de existência de um recurso de apelação por instrumento para impugnar
decisões que julgam pedidos, mas não põem fim ao processo. Por mais que se entenda que
52
FRIAS, Jorge Eustácio da Silva. A multa pelo descumprimento da condenação em quantia
certa e o novo conceito de sentença. In: SANTOS, Ernani Fidélis dos et al. (Coord.) Execução
civil: estudos em homenagem ao Professor Humberto Theodoro Júnior. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2007. p. 169.
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78 Rafael de Oliveira Guimarães
53
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. A ciência do direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1980. p. 73-74.
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O conceito de sentença no Novo Código de Processo Civil e suas implicações no processo de execução... 79
sentença, entendendo sentença como o pronunciamento judicial que decide com base
nos arts. 267 e 269, e põe fim à atividade cognitiva em primeiro grau de jurisdição.
Nelson Nery Junior foi um dos primeiros a definir tal conceito. Entende, desde
2006, o processualista que “o pronunciamento do juiz só será sentença se a) contiver
uma das matérias previstas no CPC 267 ou 269 (CPC 162 §1º) e, cumulativamente,
b) extinguir o processo (CPC 162 §2º, a contrario sensu), se o pronunciamento for pro
ferido no curso do processo, isto é, sem que lhe coloque termo, deverá ser definido
como decisão interlocutória, impugnável por agravo (CPC 522), sob pena de instaurar-se
o caos em matéria de recorribilidade desse mesmo pronunciamento. [...] Sentença
é pronunciamento do juiz que contém alguma das circunstâncias descritas no CPC
267 ou 269 e que, ao mesmo tempo, extingue o processo ou procedimento no pri
meiro grau de jurisdição, resolvendo ou não o mérito. A modificação trazida pela Lei
nº 11.232/05 não alterou o ‘sistema’ do CPC no que tange aos pronunciamentos do
juiz e sua recorribilidade”.54 No mesmo sentido defendido pelo Prof. Nelson Nery, se
posicionaram Humberto Theodoro Junior55 e Leonardo Ferres da Silva Ribeiro.56
A jurisprudência brasileira, em sua grande maioria, adotou tal conceito com o crité-
rio misto, justamente para uma adaptação do sistema recursal ante a impossibilidade de se
manejar a apelação cível de decisões que não coloquem fim ao processo como um todo.57
54
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Código de Processo Civil comentado e legislação
extravagante. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 427.
55
“As situações previstas nos arts. 267 e 269 somente serão sentença (e a desafiar apelação)
quando põem fim ao processo ou quando resolvem por inteiro o objeto principal do processo
pendente de acertamento em juízo” (THEODORO JÚNIOR, Humberto. As novas reformas do
Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 45)
56
“Com efeito, deve ser considerada sentença, para fins de apelação, o pronunciamento judi-
cial que encerrar uma das hipóteses do art. 267 ou 269, e cumulativamente, der fim à fase de
conhecimento em primeiro grau de jurisdição” (RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva. A definição
dos pronunciamentos judiciais (sentença, decisões interlocutórias e despachos) após as últi-
mas alterações legislativas: impacto e efeitos no plano recursal. In: MEDINA, José Miguel Garcia et al.
(Coord.). Os poderes do juiz e o controle das decisões judiciais: estudos em homenagem à Profes-
sora Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 380).
57
“Embora a Lei nº 11.232/2005 tenha redefinido o conceito de sentença, no artigo 162, §1º, do
CPC, melhor interpretação, considerando-se toda a sistemática processual civil, aponta para
a atualidade da classificação tradicional, com base no conteúdo e finalidade do ato, a concei-
tuar como decisão interlocutória aquela que resolve questão incidental surgida no curso do
processo, enquanto sentença põe fim à atividade de declaração do direito, encerrando a fase
de conhecimento em primeiro grau de jurisdição. Sustentar, para a hipótese, o cabimento do
recurso de apelação, processado nos próprios autos e remetido à Segunda Instância, acarre-
taria paralisação da marcha processual no tocante às partes legitimadas para agir, ferindo o
princípio da celeridade processual” (TRF3, 8ª T., AgIn n. 317.813, rel. Des. Fed. Terezinha Cazerta,
j. 25.08.2008, DJe, 07 out. 2008). “O ato judicial que homologa a transação quanto a alguns
autores-exeqüentes, mas permite o prosseguimento da execução dos honorários de advo-
gado quanto aos litisconsortes remanescentes, tem a natureza jurídica de decisão interlocu-
tória, impugnável através de agravo de instrumento. 2. Inaplicabilidade, ao caso, do princípio
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O conceito de sentença no Novo Código de Processo Civil e suas implicações no processo de execução... 81
cível por intempestividade ou falta de preparo, poderia muito bem ser uma sentença
por colocar fim ao processo,60 caso não fosse manejado o recurso de agravo de instru-
mento. Ou ainda, a decisão que colocava fim à execução com base exclusivamente no
art. 795, sem ter ocorrido alguma das hipóteses previstas no art. 794 do CPC. Tal ato
seria uma sentença, pois coloca fim ao processo.
Nos dois casos, a alteração do conceito de sentença trouxe mudanças. No pri-
meiro, agora, sem qualquer dúvida, o ato reveste-se de caráter de decisão interlo-
cutória, pois: a) sentença não seria porque não é decisão com base nos arts. 267 e
269 do CPC; b) decisão interlocutória pura não seria, pois não é questão incidental
no processo; c) mas seria uma decisão interlocutória porque mesmo que se admi-
tisse como despacho, a comprovação do mesmo ser errôneo seria condição para
classificá-lo como decisão interlocutória. Portanto, já vê-se a influência da mudança
do conceito de sentença nesse caso.
O caso do art. 795 do CPC é uma das questões centrais do presente estudo. Desde
já, afirma-se que o atual conceito de sentença que se retira de uma interpretação sistêmica
tem substanciais influências na natureza do art. 795 CPC, o que se verá no item seguinte.
60
“Não bastasse, levada a extremos a definição de sentença contida na redação anterior do dispo-
sitivo ora examinado, haver-se-ia de concluir que a decisão do juiz que indeferia apelação seria
sentença” (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Nulidades do processo e da sentença. 6. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2007. p. 31).
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82 Rafael de Oliveira Guimarães
pronunciamento judicial que somente era qualificado como sentença porque antes
das reformas instituídas pela Lei nº 11.232/05, sentença era o ato que colocava fim ao
processo, desta forma sendo sentença o mencionado ato final do processo de execução.
Lembrando que quando ocorre alguma das hipóteses dos arts. 794 ou 269 do CPC,
de sentença se trata, pois há um pronunciamento sobre o crédito exequendo, extinguindo
a obrigação, sendo uma sentença de processo de conhecimento (art. 162, §1º, do CPC),
extinguindo o processo de execução de forma anômala.
Estudiosos do art. 795, como Marcelo Porpino Nunes,61 já se manifestaram sobre
a natureza de sentença de tal pronunciamento judicial, seguindo o preconizado pelo
CPC. Ocorre que várias questões surgem de tal afirmação. A primeira vem com a refle-
xão de que o pedido da execução não é apreciado na “sentença” do art. 795, tampouco
uma prejudicial do mesmo, ou seja, não guarda relação com o objeto da lide executiva;
ainda, se uma sentença é o ato decisório principal, como poderia um ato que não contém
“decisão” nenhuma poder ser classificado como uma sentença?
Certamente, a atribuição de sentença a este pronunciamento judicial ocorria
em virtude da antiga redação do art. 162, §1º, que estabelecia que sentença era o ato
que colocava termo ao processo. Definição esta, que alguns doutrinadores quiseram
trazer do processo de conhecimento para o de execução, o que, segundo o defendido
neste estudo, não é a mais adequada.
A Profa. Teresa Arruda Alvim Wambier trazia para a época a definição mais correta
para a natureza do art. 795 do CPC. Dizia a processualista paulista que “o pronuncia-
mento judicial que declara extinta a execução não é sentença (no sentido técnico em
que a expressão é usada para o processo de conhecimento), não é sentença para fins
de rescindibilidade e o é para o efeito de sua apelabilidade e de produzir coisa julgada
formal, não sendo de mérito (no sentido que a expressão mérito é compreendida no
processo de conhecimento) e não transitando em julgado”.62
Alfredo Rocco,63 ao estudar a natureza da sentença, se pronunciou no sentido
de que não é a característica extrínseca do ato judicial que identifica a sua natureza.
Ou seja, não porque o código de processo determinava ser uma sentença, algo que se
verificada a natureza do decidido em tal decisão (e normalmente não se decide nada)
verifica-se que não o é, que tal ato vai ser sentença. Deve se verificar se o ato decide o
pedido ou prejudicial deste para ser considerado uma sentença.
61
“Que é uma sentença, não temos a menor dúvida” (NUNES, Marcelo Porpino. A sentença do
art. 795 do CPC. Revista de Processo, São Paulo, n. 72, p. 279).
62
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. A sentença que extingue a execução. In: WAMBIER, Teresa
Arruda Alvim (Coord.). Processo de execução e assuntos afins. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1998. p. 401-402.
63
“Nenhuma característica extrínseca caracteriza a sentença” (ROCCO, Alfredo. La sentenza civile.
Milão: Giuffré, 1962. n. 28, p. 65).
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O conceito de sentença no Novo Código de Processo Civil e suas implicações no processo de execução... 83
Desconfianças estas que passam a se tornar certezas com o advento da Lei nº
11.232/05, que mudou o art. 162, §1º, do CPC, passando este a ter a seguinte redação,
verbis: “Sentença é o ato do juiz que implica alguma das situações previstas nos arts.
267 e 269 desta Lei”. Portanto, independentemente do momento processual em que
se decida, só será sentença a decisão final que tiver como base os arts. 267 e 269 do
CPC. Da mesma forma, não é porque um ato judicial é realizado no final do processo é
que tal ato deve ser qualificado como sentença. Assim, o pronunciamento do art. 795
não é sentença, seja por sua natureza, seja pela simples interpretação gramatical da
nova redação do art. 162 do CPC.
A Profa. Teresa Arruda Alvim Wambier mais uma vez acerta ao afirmar que “a
tênue carga declarativa a que se refere Araken de Assis, na sentença que extingue a
execução, é irrelevante. Não tem aptidão para gerar coisa julgada. Não há o que deva se
tornar imutável”.64
Portanto vê-se que o ato final da execução, quando não fundamentado nas
hipóteses anômalas dos arts. 794 e 269 do CPC, de sentença não se trata, pois não
decide qualquer pedido, qualquer relação obrigacional, tampouco possui conteúdo
meritório, pois somente põe fim ao processo executivo sem se pronunciar sobre qual-
quer das matérias dos arts. 267 e 269 do CPC.
Pois bem, se de sentença não se trata, do que se trataria então? De decisão inter
locutória pura, mesmo esta sendo a alternativa mais aparente de ser adotada para se
classificar o pronunciamento do art. 795, com esta, também não há identidade. Isso ante
o fato de a decisão interlocutória ser uma resolução de questão incidente que possa cau-
sar prejuízo à parte, não um ato judicial obrigatório para dar eficácia à execução. Não há
carga declaratória no pronunciamento do art. 795, seja para decidir com base nos arts.
267 e 269, seja para se denominar como ato decisório sem a presença de tais matérias.
Desta forma, também não se encaixa no conceito de decisão interlocutória pura.
Sendo assim, até mesmo por exclusão, parece ser a mais adequada a classifica-
ção do pronunciamento do art. 795 como o de despacho, isso porque é um ato judicial
que é realizado de ofício e por previsão legal, pronunciamento este sem qualquer
conteúdo decisório, como um despacho. E lembre-se, não é pelo fato de ser um
despacho que tal pronunciamento judicial seria irrecorrível, se constatado o pre-
juízo a qualquer das partes no referido despacho, perfeitamente cabível o agravo
de instrumento, seja pela recorribilidade dos despachos “errôneos” ou que possam
causar prejuízos, ou porque nesses casos assume tal pronunciamento o caráter de
decisão interlocutória imprópria.
64
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Nulidades do processo e da sentença. 6. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2007. p. 124.
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O conceito de sentença no Novo Código de Processo Civil e suas implicações no processo de execução... 85
Entende-se pela segunda opção, ou seja, de que o Novo Código de Processo
Civil optou por conceituar dois tipos de sentença, uma que é a genuína tutela juris-
dicional, com uma decisão com base em preliminares ou mérito para decidir a fase
cognitiva no seu total, e outra, por facilidade prática, como sendo o ato que põe fim ao
processo de execução, seja pela extinção típica (art. 795 do CPC),65 sem qualquer con-
teúdo decisório e consequentemente sem a possibilidade de estar acobertada pela
coisa julgada material, ou pela forma anômala, com base nas matérias ventiladas nos
arts. 794 e 795 do CPC, essa última hipótese já com a possibilidade de gerar coisa jul-
gada material pelos motivos já anteriormente expostos no item 4.2, retro.
O Prof. José Miguel Garcia Medina, um dos autores do Anteprojeto que originou o
Projeto nº 8.046/10, parece se posicionar no mesmo sentido ao defender que o Novo CPC
preconiza que do pronunciamento do art. 795 caberá apelação cível. Afirma o proces
sualista paranaense que “são apeláveis as sentenças proferidas em ações proferidas em
ações de conhecimento, seja comum ou especial o procedimento, ou ainda, quer se
trate de procedimento comum ordinário ou sumário. Cabe apelação também contra a
sentença proferida no art. 795 (processo de execução) e 810 (processo cautelar). O NCPC
também atentou ao conteúdo do pronunciamento judicial para proferir a sentença, mas
também agregou a circunstância de tal pronunciamento encerrar a fase cognitiva do
procedimento comum. Ressalvadas as previsões expressas nos procedimentos especiais,
sentença é o pronunciamento por meio do qual o juiz, com fundamento nos arts. 472 e
474, põe fim à fase cognitiva do procedimento comum, bem como o que extingue a
execução (art. 170, §1º, do NCPC).
Se o pronunciamento tiver por fundamento os arts. 472 ou 474 do NCPC (que
correspondem aos arts. 267 e 269 do CPC/73), mas não puser fim à fase cognitiva do
procedimento comum, não se tratará de sentença, mas de decisão interlocutória (cf.
§2º do art. 170 do NCPC). Vê-se que o NCPC definiu os pronunciamentos judiciais sob
a perspectiva da recorribilidade. Assim, por exemplo, se o juiz julgar um dos pedidos
(isto é, proferir decisão que tem conteúdo de sentença de mérito) sem pôr fim à fase
65
No Projeto do Novo CPC, os arts. 794 e 795 estão referidos nos arts. 880 e 881:
“Art. 880. Extingue-se a execução quando:
I - a petição inicial é indeferida;
II - o devedor satisfaz a obrigação;
III - o devedor obtém, por transação ou por qualquer outro meio, a remissão total da dívida;
IV - o credor renuncia ao crédito;
V - ocorrer a prescrição intercorrente;
VI - o processo permanece suspenso, nos termos do art. 877, incisos III e IV, por tempo sufi-
ciente para perfazer a prescrição.
Parágrafo único. Na hipótese de prescrição intercorrente, deverá o juiz, antes de extinguir a
execução, ouvir as partes, no prazo comum de cinco dias.
Art. 881. A extinção só produz efeito quando declarada por sentença.”
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86 Rafael de Oliveira Guimarães
66
MEDINA, José Miguel Garcia. Código de Processo Civil comentado: com remissões e notas
comparativas ao Projeto do Novo CPC. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 551.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 55-91, abr./jun. 2012
O conceito de sentença no Novo Código de Processo Civil e suas implicações no processo de execução... 87
sentença na atual sistemática, porém, passará a ser por um bom motivo: porque a sis-
temática que vigerá tem a nobre preocupação em simplificar o processo, em especial,
sob o aspecto da recorribilidade.
Ou seja, de acordo com os pensamentos aqui trazidos sobre o pronunciamento
final da execução, haverá diferenciação no tocante ao trânsito em julgado somente,
mas não mais com relação à recorribilidade, uma grande preocupação para se evitar
recursos incabíveis. Todos os pronunciamentos finais na execução serão recorríveis via
apelação cível. O Prof. José Miguel Garcia Medina já tinha identificado tal preocupação
no Novo CPC. Entendeu o doutrinador que “o NCPC definiu os pronunciamentos judi-
ciais sob a perspectiva da recorribilidade”67 justamente para dirimir qualquer dúvida
acerca do recurso cabível e mais facilmente aplicável o Código de Processo Civil que
está por vir.
Outro argumento importante para que toda decisão final de processo de exe-
cução seja impugnada via apelação cível é que não há motivo para se formar um
instrumento com um processo findo. Não se justifica que se forme um instrumento
com 200-300 cópias, sendo que o processo (uma execução encerrada) não vai ter
andamento ou mesmo utilidade na instância de origem.
Sendo assim, vê-se o acerto do Projeto nº 8.046/10, que não se preocupou com
tecnicidade ou perfeição dos conceitos. Como é cediço, o pronunciamento que põe fim
à execução não tem características de sentença, mas pra facilitar sua recorribilidade, deve
sim ser qualificada como tal, justamente para a facilidade da aplicação do sistema recursal.
O Novo CPC não se preocupou com a perfeição de suas definições, mas sim
com a sua aplicabilidade, com a busca do direito material, esse sim o objetivo de um
código de processo civil.
8 Conclusões
Após uma revisitada num dos institutos mais polêmicos e importantes do direito
processual civil brasileiro, o do mérito, chegou-se à breve conclusão de que este é
cognição sobre as questões apresentadas ao juiz e decididas como questões de fundo.
Detectou-se facilmente que o mérito existe no processo de conhecimento nas
decisões do art. 269 do CPC, tanto o é que para este Livro do CPC que o instituto do
mérito foi concebido. Mas, há a ressalva de que estas decisões de conhecimento conti-
nuam a ter o caráter meritório, e, por consequência, com a qualidade da imutabilidade
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88 Rafael de Oliveira Guimarães
Abstract: The brief study aims to bring on the concepts about appeal-
able judicial pronouncements, as well as its evolution and development.
The aforementioned concepts are brought based on systematic analysis
previous of the Law n. 11.232/05, going through the actual systematic,
and its exposes the ideas contained in the Project of The New Federal
Rules of Civil Procedure. The judicial pronouncements in question will be
studied from the perspective of conceptualization, appeal possibility and
68
Isso quando não houver uma manifestação acerca da existência do título executivo ou uma
sentença de processo de conhecimento (arts. 794 e 269 do CPC).
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O conceito de sentença no Novo Código de Processo Civil e suas implicações no processo de execução... 89
possibility of being covered by the quality of res judicata. The paper also
brings on the doctrinal and judicial precedents positions on the subject,
and indicates how the judicial pronouncements could be understood in
a systematic future, if approved the Project of The New Federal Rules of
Civil Procedure.
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Aplicabilidade da multa do art. 475-J
do CPC condicionada à espécie de
liquidação exigida pela sentença
condenatória
Maurício Zandoná
Mestrando em Direito Processual e Cidadania pela
Universidade Paranaense (UNIPAR). Especialista
em Direito Civil e Processo Civil pela Faculdade de
Itapiranga (FAI). Graduado em Ciências Jurídicas
e Sociais pela Universidade de Passo Fundo (UPF).
Advogado. E-mail: <itiozandona@hotmail.com>.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 93-107, abr./jun. 2012
94 Maurício Zandoná
1 Introdução
Desde a última reforma processual que introduziu no ordenamento jurídico a
denominada fase de cumprimento de sentença, várias polêmicas foram, e ainda estão
sendo, levantadas nos debates jurídicos, especialmente no que tange à aplicabilidade
da multa de dez por cento do artigo 475-J do Código de Processo Civil. Umas das ques-
tões mais discutidas é a necessidade de nova intimação do devedor, dando-lhe ciência
do valor atualizado da sentença condenatória, a fim de determinar o termo inicial da
contagem do prazo de quinze dias para a incidência da referida multa.
A fim de estudar e compreender a fase de execução do julgado, faz-se necessário
abordar os principais aspectos acerca da exigibilidade da sentença condenatória, ava-
liando os momentos processuais cabíveis para tanto, inclusive nas formas definitivas e
provisórias, tendo em vista a novíssima permissão legal desta última.
Além de abordar o requisito exigibilidade, é imprescindível que a pesquisa
estude as formas de liquidação de sentença, bem como analise o entendimento
doutrinário dado a cada uma delas, para então, delimitar quais as possibilidades
de definição do termo ou condições para a incidência da multa do artigo 475-J do
Código de Processo Civil.
Aproveitando a distinção elaborada pelos processualistas mais atuais acerca
das fases do cumprimento de sentença e da execução da sentença propriamente dita,
deve-se estabelecer, com exatidão, os momentos processuais para cada fase conside-
rada, onde verificar-se-á, inicialmente, a obrigação do devedor em cumprir voluntaria-
mente os mandamentos da sentença condenatória e, após, a obrigação do credor em
promover a execução do julgado através dos requerimentos pertinentes.
Ainda, oportuno trazer ao conhecimento do leitor recente decisão jurispru-
dencial sobre o assunto, em que se pretende informar o posicionamento do Tribunal
Superior competente para enfrentamento do tema, bem como, possibilitar auferir se
o entendimento da Corte atende às expectativas sociais e ao princípio da máxima
efetividade processual.
Os objetivos da presente pesquisa recaem em delimitar os casos de necessidade
de nova intimação do devedor — que não a da sentença condenatória —, para definir
o termo inicial do prazo para pagamento da condenação, bem como estudar e definir
qual a natureza jurídica que a multa do artigo 475-J do Código de Processo Civil corres-
ponde e, ainda, perquirir acerca da obrigação do devedor conhecer o débito do qual foi
condenado, independente de manifestação do credor, quando se tratar de liquidação
de sentença por mero cálculo aritmético.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 93-107, abr./jun. 2012
Aplicabilidade da multa do art. 475-J do CPC condicionada à espécie de liquidação exigida pela sentença... 95
2 Exigibilidade da sentença condenatória e sua liquidação
Como é cediço, o artigo 586 do Código de Processo Civil,1 com redação
determinada pela Lei nº 11.382/06, exige como requisito indispensável para a execu-
ção do crédito a existência de título de obrigação certa, líquida e exigível. Nesse com-
passo, Luiz Rodrigues Wambier (2008, p. 79) explica que tal preceito não se trata de
averiguar a existência do título em si, pois este materialmente existe ou não, porquanto
os requisitos de certeza, liquidez e exigibilidade são atributos de representação do
direito que vem elencado no título.
Sem desprezar a importância do requisito certeza, ciente de que sua compreensão
é de extrema necessidade nos bancos acadêmicos, importa-nos, aqui, compreender pre-
viamente os aspectos dos requisitos exigibilidade e liquidez do título para, então, prosse-
guir com o objetivo da presente pesquisa, com a pretensão de relacionar tais requisitos
diretamente com a sentença condenatória.
Segundo Wambier (2008, p. 79) “estará satisfeito o requisito de exigibilidade se
houver a precisa indicação de que a obrigação já deve ser cumprida”. A exigibilidade
do direito elencado na sentença condenatória se revela por ocasião em que a obrigação
do devedor não se submete mais a nenhuma condição ou termo, ou, no caso de con-
dições ou termos já implementados pelo credor.
No que tange ao segundo requisito ora abordado, Wambier (2008, p. 79) leciona
que haverá liquidez quando se permitir verificar a exata definição da quantia estabele-
cida no título, seja porque venha diretamente indicada, seja porque o valor final possa
ser aritmeticamente apurado mediante critérios constantes do próprio título. Nas pala-
vras de Ernani Fidélis dos Santos (2007, p. 11) “também há liquidez quando o quantum
se apura por mera dedução, ou, tratando-se de acessórios móveis, são apuráveis tam-
bém no momento do pagamento. É o que ocorre com os juros e a correção monetária”.
Verificada a presença da exigibilidade da obrigação constante na sentença, o
passo a seguir é analisar de que forma se apurará o quantum determinado pelo dispo-
sitivo final da decisão judicial, o qual poderá ser feito através das três espécies de liqui-
dação de sentença previstas em nosso ordenamento jurídico, quais sejam: a liquidação
por mero cálculo aritmético, a liquidação por arbitramento e a liquidação por artigos.
Em uma análise histórica superficial, Vicente Greco Filho (2003, p. 44-47) nos
ensina que a liquidação por cálculo aritmético foi substituída pela antiga liquidação
por cálculo do contador judicial, restando por iniciativa do credor apresentar o pedido
juntamente com a memória discriminativa atualizada do cálculo, quando, para isso,
possuir todos os dados inerentes à elaboração. A liquidação por arbitramento se faz
Art. 586. A execução para cobrança de crédito fundar-se-á sempre em título de obrigação
1
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 93-107, abr./jun. 2012
96 Maurício Zandoná
2
Art. 475-J. Caso o devedor, condenado ao pagamento de quantia certa ou já fixada em liqui-
dação, não o efetue no prazo de quinze dias, o montante da condenação será acrescido de
multa no percentual de dez por cento e, a requerimento do credor e observado o disposto
no art. 614, inciso II, desta Lei, expedir-se-á mandado de penhora e avaliação.
§1º Do auto de penhora e de avaliação será de imediato intimado o executado, na pessoa de
seu advogado (arts. 236 e 237), ou, na falta deste, o seu representante legal, ou pessoalmente, por
mandado ou pelo correio, podendo oferecer impugnação, querendo, no prazo de quinze dias.
§2º Caso o oficial de justiça não possa proceder à avaliação, por depender de conhecimen-
tos especializados, o juiz, de imediato, nomeará avaliador, assinando-lhe breve prazo para a
entrega do laudo.
§3º O exeqüente poderá, em seu requerimento, indicar desde logo os bens a serem penhorados.
§4º Efetuado o pagamento parcial no prazo previsto no caput deste artigo, a multa de dez
por cento incidirá sobre o restante.
§5º Não sendo requerida a execução no prazo de seis meses, o juiz mandará arquivar os au-
tos, sem prejuízo de seu desarquivamento a pedido da parte.
3
Art. 475-B. Quando a determinação do valor da condenação depender apenas de cálculo
aritmético, o credor requererá o cumprimento da sentença, na forma do art. 475-J desta Lei,
instruindo o pedido com a memória discriminada e atualizada do cálculo.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 93-107, abr./jun. 2012
Aplicabilidade da multa do art. 475-J do CPC condicionada à espécie de liquidação exigida pela sentença... 97
Contudo, se tratando de mero cálculo aritmético, data venia entendimento
diverso, entende-se que o conhecimento da obrigação deve recair sobre o devedor,
pois é este que possui, na maioria das vezes, todos os dados pertinentes à elabora-
ção do quantum a ser apurado. E essa obrigação de conhecer o valor correto a ser
pago vem expressamente declinada na própria lei processual. Tanto isso é verdade
que o próprio legislador elencou, como matéria de defesa no artigo 475-L, inciso V
do Código de Processo Civil,4 a alegação de excesso de execução, sendo que no §2º
do citado artigo, determinou a obrigação do devedor em “declarar de imediato o
valor que entende correto sob pena de rejeição liminar dessa impugnação”.
O objetivo do legislador ao lançar o dispositivo legal acima citado, sem sombra
de dúvidas, é atribuir ao devedor a obrigação de conhecer imediatamente os valores
que fora condenado, para então, voluntariamente, efetuar o pagamento da dívida. O
prazo de quinze dias estabelecido no artigo 475-J do Código de Processo Civil, para
pagamento voluntário do débito, parece declinar esse mesmo entendimento, de que
o dever de conhecer os valores da condenação é obrigação do próprio devedor.
Note que, no caso em que a elaboração do cálculo depender de documentos
em poder do próprio devedor, razão maior existe para exigir que este efetue o paga-
mento voluntário do valor da condenação, já que possui em mãos todos os dados
necessários para conhecer a quantia devida atualizada, até mesmo porque se coloca
em melhores condições materiais do que o próprio credor.
É nesse sentido que alguns doutrinadores já começam a se posicionar, o que se
pode verificar no texto de Luiz Guilherme Marinoni.
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98 Maurício Zandoná
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 93-107, abr./jun. 2012
Aplicabilidade da multa do art. 475-J do CPC condicionada à espécie de liquidação exigida pela sentença... 99
de execução através de requerimento acostado por memória de cálculo que inclua a
multa do artigo 475-J do Código de Processo Civil, juros e correção monetária.
Data venia tem-se por discordar dos posicionamentos doutrinários acima men-
cionados — isso por uma razão muito simples. Ocorre que a exigibilidade da sentença
condenatória se dá imediatamente com o advento do trânsito em julgado, momento
a partir do qual o credor já pode requerer a execução do julgado promovendo os atos
executórios, desde que o devedor não satisfaça a obrigação consubstanciada no título.
É o que estabelece o artigo 580 do Código de Processo Civil.5 Ainda, há de se levar em
conta a possibilidade de o credor propor a execução provisória da sentença pendente
de recurso, nos termos do artigo 475-O do Código de Processo Civil.6
Como já dito, o credor não necessita aguardar prazo algum para promover a
execução da sentença, porquanto pode não ter interesse na aplicação da multa do
art. 475-J do Código de Processo Civil, razão pela qual a exigibilidade da sentença se
vislumbra imediata, logo após o trânsito em julgado. O prazo quinzenal previsto em
lei não se configura uma espécie de moratória ao devedor, pois durante tal prazo de
pagamento voluntário, ele não pode deixar de cumprir a obrigação determinada no
título sem sofrer os encargos do inadimplemento.
Veja que, no caso em análise, está-se diante de dois direitos estabelecidos pelo
ordenamento jurídico. O primeiro direito está no prazo de quinze dias concedido ao
devedor para pagamento voluntário do débito, direito esse que lhe impõe a sanção de
uma multa de dez por cento sobre o valor atualizado da condenação caso não cumprida
dentro do referido prazo. O segundo direito, o qual nos parece maior, é a faculdade
de o credor aguardar o transcurso do prazo de quinze dias ou promover a execução
imediata da sentença, abrindo mão da incidência da multa do artigo 475-J do Código
de Processo Civil.
Para uma melhor compreensão da questão ora abordada, devemos ressaltar a
distinção que a doutrina moderna faz entre o cumprimento voluntário da sentença
condenatória e a execução de sentença propriamente dita, ensinamentos de relevante
valor jurídico.
5
Art. 580. A execução pode ser instaurada caso o devedor não satisfaça a obrigação certa,
líquida e exigível, consubstanciada no título executivo.
6
Art. 475-O. A execução provisória da sentença far-se-á, no que couber, do mesmo modo que
a definitiva, observadas as seguintes normas:
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100 Maurício Zandoná
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 93-107, abr./jun. 2012
Aplicabilidade da multa do art. 475-J do CPC condicionada à espécie de liquidação exigida pela sentença... 101
Diz-se voluntário, conforme Aurélio Buarque de Holanda (2008, p. 822), “aquele
que age espontaneamente. Derivado da vontade própria, espontâneo”. Assim, pode-se
afirmar que o requisito voluntariedade, exigido pelo artigo de lei, representa o agir do
devedor para a efetivação do pagamento, incluindo aí o conhecimento do quantum
atualizado da dívida e os encargos sucumbenciais do julgado, tratando-se, é lógico, de
liquidação de sentença por mero cálculo aritmético.
Assim, diante da inércia do devedor no prazo de quinze dias, transfere-se, então, a
obrigação para o credor, o qual deverá apresentar requerimento de execução de sentença,
juntamente com a planilha de cálculo e solicitar os atos expropriatórios pertinentes.
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102 Maurício Zandoná
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Aplicabilidade da multa do art. 475-J do CPC condicionada à espécie de liquidação exigida pela sentença... 103
O autor coloca muito bem que a multa do artigo 475-J do Código de Processo
Civil se trata de uma multa legal, cuja incidência independe de qualquer determinação
por parte do juiz, já que provém da própria lei. Importante ressaltar que a referida multa
se refere apenas às sentenças condenatórias que determinam o pagamento de quantia
certa, o que não ocorre com as demais situações jurídicas.
Ao contrário do que afirmam os autores supracitados, afastando o entendimento
de que a multa do artigo 475-J do Código de Processo Civil tem natureza coercitiva,
Luiz Guilherme Marinoni (2008, p. 241) entende que “a multa em exame tem natureza
punitiva, aproximando-se da cláusula penal estabelecida em contrato”.
Adiante o autor explica seu entendimento doutrinário, demonstrando suas razões
em declinar a natureza punitiva para a multa do artigo 475-J do Código de Processo Civil.
Esta multa não tem caráter coercitivo, pois não constitui instrumento
vocacionado a constranger o réu a cumprir a decisão, distanciando-se,
desta forma, da multa prevista no art. 461, §4º, do CPC. O conteúdo coer-
citivo que pode ser vislumbrado na multa do art. 475-J é comum a toda e
qualquer pena, já que o devedor, ao saber que será punido pelo descum-
primento, é estimulado a observar a sentença. (MARINONI, 2008, p. 241)
Nesse desentender doutrinário, parece assistir razão Marinoni, pois viável atribuir
à multa do artigo 475-J do Código de Processo Civil natureza punitiva, isso por vários mo-
tivos. Em primeiro momento, veja-se que a referida multa não é fixada pelo magistrado,
e sim, já vem expressamente prevista em lei. O magistrado não tem a discricionariedade
de afastar a incidência dessa se assim desejar, isso porque sua incidência é instantânea
logo após o transcurso do prazo de quinze dias sem o pagamento voluntário do débito.
O percentual da multa se reverte em favor do credor, e só por este pode ser exigida —
lembre-se que o credor pode não exigir a multa, mas isso é uma faculdade dele. Dessa
forma, entende-se que a multa do artigo 475-J do Código de Processo Civil tem natureza
punitiva, e só não incidirá no caso de pagamento do débito dentro do prazo legal.
por quantia certa. Juízo competente. Art. 475-P, inciso II, e parágrafo único, do CPC. Termo
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 93-107, abr./jun. 2012
104 Maurício Zandoná
inicial para a incidência da multa do artigo 475-J do Código de Processo Civil se dará
com a intimação do devedor, na pessoa de seu advogado, através de publicação pelos
meios oficiais, momento em que o credor já apresentara o requerimento de execução
juntamente com a memória discriminativa de cálculo. O entendimento do Tribunal é
que, a partir de então, o devedor terá o prazo de quinze dias para efetuar o pagamento
sob pena do acréscimo do percentual de dez por cento previsto no dispositivo legal.
Note que a decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, no que diz
respeito à prescindibilidade de intimação pessoal do devedor para cumprimento da
obrigação, vem em contradição à Súmula 4108 da própria Corte Superior, quando, até
então, entendia pela necessidade de intimação pessoal do devedor.
É importante distinguir o momento processual de incidência da referida multa
e o momento oportuno para sua cobrança. Nesse aspecto, aproveitamos os ensina-
mentos de José Miguel Garcia Medina.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 93-107, abr./jun. 2012
Aplicabilidade da multa do art. 475-J do CPC condicionada à espécie de liquidação exigida pela sentença... 105
autor que, na ausência de intimação pessoal do réu para o cumprimento da obrigação,
a multa não poderá ser cobrada.
Corrobora esse entendimento Fredie Didier Jr. (2010, p. 519) dizendo que, “para
que a multa do art. 475-J incida, é preciso que, antes, o executado tenha sido intimado
para cumprir espontaneamente a obrigação”.
Já para Luiz Guilherme Marinoni (2008, p. 361), “se a sentença, no caso em que
o recurso não é recebido com efeito suspensivo, produz efeitos imediatos, o prazo de
quinze dias para o devedor cumpri-la corre a partir do momento em que o advogado
é dela intimado, o que ocorre com a sua publicação no Diário Oficial”. Aqui, o autor
entende que o prazo inicial para a contagem dos quinze dias concedidos ao devedor
se dá a partir da publicação da sentença nos órgãos oficiais, da qual seu advogado,
devidamente constituído, restará ciente dos efeitos condenatórios.
Do mesmo entendimento coaduna Humberto Theodoro Junior (2009, p. 48),
quando explica que a incidência da multa de dez por cento do artigo 475-J do Código
de Processo Civil se dará “sempre que o devedor não proceder ao pagamento volun-
tário nos quinze dias subseqüentes à sentença que fixou o valor da dívida (isto é, a
sentença condenatória líquida, ou a sentença de liquidação da condenação genérica)”.
No que pese o entendimento recente do Supremo Tribunal de Justiça acerca
do tema, diante dos aspectos levantados no presente trabalho, entende-se que, pri-
meiramente, deve-se verificar a necessidade de proceder, ou não, às liquidações por
arbitramento ou por artigos, bem como no caso em que os dados necessários para
a confecção do cálculo estiverem em poder de terceiros, ocasiões em que haverá a
necessidade de nova intimação e abertura do prazo de quinze dias para pagamento,
no momento em que se conhecer o quantum apurado, o que, necessariamente, não
deverá ocorrer quando se tratar de liquidação de sentença condenatória por mero
cálculo aritmético.
6 Conclusão
Diante dos argumentos expostos durante o texto, verificou-se que a exigibi-
lidade da sentença condenatória pode se efetivar com o trânsito em julgado ou até
mesmo na forma provisória, onde a lide ainda restar pendente de recurso. Por esse
motivo, o credor pode imediatamente proceder ao requerimento de execução de
sentença, sem necessidade alguma de aguardar o prazo de quinze dias estabelecido
para pagamento do devedor. Como dito no decorrer do estudo, a exigência do débito
principal pelo credor independe e é autônoma em relação à incidência da multa do
artigo 475-J do Código de Processo Civil. O credor pode ou não aguardar o prazo con-
cedido legalmente, e, por conseguinte, exigir ou não a multa legal de dez por cento
prevista no dispositivo legal.
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106 Maurício Zandoná
Abstract: The incidence and demand the fine provided for in art. 475-J of
the Code of Civil Procedure is subject to various procedural matters perti-
nent. The sentence that imposes a certain amount paid may be required
with the advent of res judicata and is independent of the period granted
to the debtor for payment. The requirement of debt is fine for standalone
procedure, because it can be disregarded by the lender. It has to be the
only way to discharge the debtor of the impact of the fine is to pay the
debt voluntarily, even before any manifestation of the creditor, since this
assignment is uncharacteristic willingness determined by law. Despite
finding themselves doctrinal disagreement, it will see that the punitive
nature of the fine is revealed by its own characteristics. Finally, this paper
will demonstrate that the immediate impact of the fine, regardless of the
new order, seems to be conditioned in the case of liquidation sentence
for mere arithmetic, of which the defendant has an obligation to know
the values that had been ordered to pay.
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Aplicabilidade da multa do art. 475-J do CPC condicionada à espécie de liquidação exigida pela sentença... 107
Key words: Enforceability of settlement and verdict. Voluntary compliance
and enforcement. Legal nature of the fine. Effect of the fine.
Referências
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 93-107, abr./jun. 2012
Repensando a (in)constitucionalidade da
penhora online1
Vanessa Bezerra Maneschy
Mestre em Linguistica (UFPA). Pós-Graduanda em
Direito Processual (UNAMA-PA). Advogada. Perita
Criminal do “Centro de Perícia Científica Renato
Chaves”. E-mail: <vanessamaneschy@globo.com>.
1 Considerações iniciais
O nosso Código de Processo Civil já passou por várias alterações. No ano de
2006, o legislador dedicou-se a inovar o processo de execução, que teve sua estrutu-
ra significativamente modificada. Dentre as várias alterações,2 surge, com o advento
da Lei nº 11.328 de 2006, a figura da penhora por meio eletrônico, mais conhecido
como penhora online.
Classificada como penhora especial por alguns doutrinadores,3 a penhora online
nasce com a finalidade precípua de dar celeridade e efetividade à prestação jurisdicional
e sua aplicação pelo Poder Judiciário tem crescido progressivamente.
1
Por tratar-se de um empréstimo linguístico, optou-se por respeitar a grafia original do termo
online, sendo, portanto, necessário destacá-la por meio de itálico.
2
A principal alteração consiste na criação do sincretismo processual no qual a execução far-se-á
em sede de cumprimento de sentença como segunda fase do processo de conhecimento e
não mais em processo autônomo.
3
Como Wambier (2008) e Abelha (2008).
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110 Vanessa Bezerra Maneschy
4
Como por exemplo: Abelha (2008); Wambier (2008); Puchta (2009); Theodoro Junior (2007);
Didier (2009).
5
Ementa: Agravo de instrumento. Responsabilidade civil. Execução de sentença. Penhora
online. BacenJud. Segundo os princípios que orientam o processo executivo, todos os atos
nele praticados destinam-se a um desfecho único da satisfação do direito material definido
em procedimento cognitivo. No deferimento da penhora, não há ofensa ao princípio da
execução menos gravosa. Consagrando tal entendimento, a Lei 11.382/2006 fez incluir o
art. 655-A, modificando o inciso I do art. 655, trazendo a previsão normativa para a penhora em
dinheiro em instituição financeira, autorizando sua indisponibilidade. Deram parcial provi-
mento ao recurso. Unânime (Agravo de Instrumento nº 70032571937, Sexta Câmara Cível,
Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luís Augusto Coelho Braga, Julgado em 11.3.2010).
Ementa: Agravo de instrumento. Cumprimento de sentença. Pleito de penhora online. Pos-
sibilidade na hipótese. Artigo 655, I do Código de Processo Civil. Possível a constrição de
dinheiro na hipótese. O requerimento se deu em conformidade com a ordem legal prevista
no art. 655 do Código de Processo Civil, após o advento da Lei 11.382/06. Desnecessidade
de esgotamento de diligências. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça. Agravo de ins-
trumento provido (Agravo de Instrumento nº 70033795816, Nona Câmara Cível, Tribunal de
Justiça do RS, Relator: Iris Helena Medeiros Nogueira, Julgado em 16.12.2009).
6
ABELHA, Marcelo. Manual de execução civil. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
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Repensando a (in)constitucionalidade da penhora online 111
Diante desses conceitos, tem-se que a penhora é um ato de identificação, de
apreensão e de guarda de um bem do patrimônio do executado, possuindo, portanto
uma natureza conservativa, e não consistindo na expropriação em si.
O efeito da individualização do bem obtido com a penhora tem por objetivo
evitar que os demais bens do executado respondam pela execução. Assim, a penhora
“genérica”, nos termos do artigo 644 do CPC, consuma-se com a identificação, seguida
da apreensão e do depósito do bem do executado.
Contudo, essa modalidade de penhora não se aplica em todos os casos.
Segundo Abelha (2008, p. 354),
Nessa seara descrita por Abelha (2008) é que se insere a penhora online, uma
modalidade específica de penhora que tem um tratamento diferenciado da penhora
“genérica”.
A penhora online não se limita a apreender certo bem do devedor para deixá-lo
à disposição do credor, como nas clássicas penhoras de bens. O instituto tem um ob-
jetivo diferenciado conforme se pode observar pela leitura do artigo 655-A do CPC, in
verbis:
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112 Vanessa Bezerra Maneschy
7
Oriundo do convênio firmado entre o Poder Judiciário e Banco Central, o BaCen JUD é um
sistema de software que permite aos juízes solicitar informações sobre a movimentação dos
clientes de instituições financeiras e determinar o bloqueio de contas-correntes ou qualquer
conta de investimento.
8
Como Puchta (2009) e Theodoro Junior. (2007).
9
PUCHTA, Anita Caruso. Penhora de dinheiro on-line. Curitiba: Juruá, 2009.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p.109-122, abr./jun. 2012
Repensando a (in)constitucionalidade da penhora online 113
Em seguida, após o bloqueio bancário, o escrivão lavra o termo de penhora
intimando o executado. De acordo com Didier (2009) é neste momento que o arresto
se converte em penhora, visto que ao executado é dado ciência do ato.
Realizada a penhora online, e lavrado o seu respectivo termo, estará indisponível
ao executado, em sua conta bancária, o valor correspondente à execução.
A desconstituição de uma penhora indevida somente poderá ser pleiteada após
lavrado o termo de penhora por meio da impugnação do executado (475-L, III), nos
casos de execução fundada em título executivo judicial, ou por embargos a execução
(art. 745, II do CPC), em caso de execução fundada em título executivo extrajudicial.
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114 Vanessa Bezerra Maneschy
10
Como por exemplo Abelha (2008) e Puchta (2009).
11
WAMBIER. Luis Rodrigues. Curso avançado de processo civil. 18. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008. v. 2.
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Repensando a (in)constitucionalidade da penhora online 115
O entendimento desse ilustre doutrinador se coaduna com a ideia de harmonização
de princípios. Se por um lado as alterações do CPC surgiram para dar mais proteção
ao exequente, por outro, o legislador manteve o artigo 620 do CPC para resguardar
o devedor, evidenciando uma certa preocupação do legislador em equilibrar os inte-
resses no processo executivo.
Contudo, não tem sido essa a interpretação adotada nos juízos de execução.
Pelo contrário. Atualmente a execução tem privilegiado, de modo exacerbado, o credor
e negligenciado os direitos expressamente garantidos ao devedor.
O uso da penhora online com a justificativa de que o dinheiro se encontra ao
topo da ordem de preferência de penhora tem se tornado uma constante.
É sabido que a nova redação dada ao artigo 655 do CPC elenca a ordem pre-
ferencial de bens suscetíveis de penhora, posicionando o dinheiro no cume da lista.
Contudo, ressalta-se que o referido dispositivo traz o termo preferencialmente, não
sendo, portanto, imperativo o atendimento à ordem da lista.
Os juízes se utilizam da penhora online de maneira desmedida sem avaliar o grau
de prejuízo para o devedor, que poderia satisfazer o crédito exequendo por outro meio.
Não é porque o dinheiro encabeça a lista de preferência da penhora que obriga-
toriamente far-se-á a penhora online de valores presentes nas contas do devedor. Esse
ato, tão utilizado nas varas de execução, só ratifica a priorização isolada do princípio da
celeridade e da efetividade.
Não se questiona, no presente trabalho, a aplicação da penhora online para os
casos de cumprimento de sentença quando há um processo de cognição exauriente
acerca da matéria. Nesses casos, o uso da penhora online na fase executiva encontra-se
em perfeita consonância com o princípio da celeridade e da efetividade.
O mesmo, entretanto, não pode ser dito para os casos de execução fundada
nos títulos executivos extrajudiciais. A violação ao princípio da menor onerosidade
ao executado se torna muito mais evidente nas execuções fundada em título executi-
vo extrajudicial. Isso porque, em virtude da natureza dessa modalidade de execução,
tem-se um procedimento muito mais célere.
Com o ajuizamento da demanda, o devedor tem apenas 3 (três) dias para efetuar
o pagamento da dívida (artigo 652). Não efetuado o pagamento, procede-se à penhora,
que pode ser realizada nos moldes do artigo 652 §2º, ou por meio eletrônico, a requeri-
mento do credor. Assim, de maneira célere, o devedor terá seu patrimônio atingido, só
podendo questionar a penhora após sua efetivação.
A utilização reiterada da penhora online nos casos de execução fundada em título
executivo extrajudicial não permite uma discussão aprofundada sobre crédito exequendo.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p.109-122, abr./jun. 2012
116 Vanessa Bezerra Maneschy
[...] se a penhora incide sobre um bem que é capaz de garantir tal satisfação
do crédito e o devedor tem outro, também capaz de garantir tal satisfação,
mas que uma vez apreendido traria a ele menor gravame, deverá a penhora
incidir sobre este bem e não sobre aquele primeiro.
12
CÂMARA, Alexandre. Lições de direito processual civil. 14. ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2007. v. 2.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p.109-122, abr./jun. 2012
Repensando a (in)constitucionalidade da penhora online 117
O instituto da penhora online não viola, de per si, o princípio da legalidade haja
vista sua previsão em lei atendendo devidamente a todo o processo de elaboração
legislativa. A questão jaz na aplicação da penhora online em determinados casos de
execução.
A realização da penhora online muitas vezes ocorre imediatamente com a cons-
tatação de numerários presentes nas contas do executado. Contudo, com esse bloqueio
imediato, não há como o juiz conhecer a natureza ou da origem do dinheiro bloqueado.
Com a indisponibilização imediata de valores nas contas do executado, o juiz
pode vir a apreender “vencimentos, subsídios, remunerações, proventos de aposenta-
doria, pensões pecúlios e montepios: as quantias recebidas por liberalidade de tercei-
ros e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos do trabalhador
autônomo, e os honorários de profissional liberal (...)” todos esses, bens absolutamente
impenhoráveis de acordo com o artigo 649 IV do CPC.
O respeito ao rol de impenhorabilidade não se limita a sua disposição em lei,
encontrando amparo principiológico. Para Abelha (2008, p. 343):
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p.109-122, abr./jun. 2012
118 Vanessa Bezerra Maneschy
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p.109-122, abr./jun. 2012
Repensando a (in)constitucionalidade da penhora online 119
4.4 Princípio da inviolabilidade de dados pessoais
Em princípio, o dispositivo 655-A do CPC aduz que as informações prestadas pelo
sistema BaCen se limitam a indicar a existência ou ausência dos valores da execução nas
contas do executado, para que, havendo os referidos valores, estes possam ser bloquea
dos para garantir-se a satisfação do crédito. Porém essa não é a realidade. De acordo
com o próprio manual do sistema BaCen JUD 2.0, o usuário do sistema pode “solicitar
informações, saldos, extratos, endereços, de pessoas físicas e jurídicas do SFN” (p. 4).
Isso evidencia a quebra do sigilo bancário do executado. Ao permitir acesso ao
extrato de conta corrente e poupança do executado, o sistema age contra legem, vio-
lando o disposto no artigo 655-A do CPC, que prevê somente o conhecimento quanto
à presença ou não de numerário para satisfazer a execução.
O acesso do juiz a extratos bancários de contas em nome do executado con-
figura nítida ofensa ao princípio da inviolabilidade de dados pessoais, prevista no
artigo 5º, X, da Carta Magna: “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra
e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou
moral decorrente de sua violação”.
O BaCen permite o intercâmbio de informações entre o sistema bancário e o
Poder Judiciário para que se preste uma tutela jurisdicional efetiva e célere. Esse fato
não se questiona. Entretanto, a lei (mais precisamente o artigo 655-A) é clara quanto
ao objetivo do sistema.
Ao solicitar informações às instituições financeiras, o juiz tem como objetivo
único conhecer se o executado dispõe de valores para garantir a execução. Havendo
o valor pretendido, procede-se ao bloqueio. Somente. Não há razão nem fundamento
jurídico que justifique a necessidade de o juiz obter informações detalhadas acerca da
vida financeira do executado. O sistema BaCen JUD foi além do que prevê a legislação
infraconstitucional, de forma que poder-se-ia até falar em excesso na execução, nos
casos de obtenção de extratos pela via eletrônica.
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120 Vanessa Bezerra Maneschy
5 Considerações finais
Abelha (2008), defendendo a constitucionalidade da penhora online, aduz que
a mesma representa um “mero incômodo” ao executado. Os doutrinadores que advo-
gam em favor da penhora online aparentemente desconsideram os prejuízos que são
causados pela aplicação de uma medida constritiva agressiva a um indivíduo que se
encontra com dificuldades de honrar seus compromissos.
Vale ressaltar que, em razão de generalizações, todo e qualquer devedor aca-
bou recebendo um tratamento de tendência pouco humanizada. Nesse sentido é que
se assegura ao devedor o princípio da menor onerosidade ao executado, conforme
alerta brilhantemente Câmara (2007, p. 165):
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Repensando a (in)constitucionalidade da penhora online 121
[...] é bom lembrar que nem todo devedor é desidioso, nem deve ser tratado
como vilão. [...] há devedores que chegam à situação de inadimplemento
que normalmente se identifica na execução em razão das ‘dolorosas vicissi-
tudes da vida’ e é principalmente por causa desses devedores que a obser-
vância desse princípio [...]
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122 Vanessa Bezerra Maneschy
Referências
ABELHA, Marcelo. Manual de execução civil. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
BRASIL. Banco Central do Brasil. BACEN JUD 2.0: sistema de atendimento do poder judiciário:
manual básico. Disponível em: <http://www.bcb.gov.br/fis/pedjud/ftp/manualbasico.pdf>.
CÂMARA, Alexandre. Lições de direito processual civil. 14. ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2007. v. 2.
DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil. Salvador: JusPodivm. 2009. v. 5.
DINAMARCO, Candido Rangel. Instituições de direito processual civil. São Paulo: Malheiros, 2005. v. 4.
PUCHTA, Anita Caruso. Penhora de dinheiro on-line. Curitiba: Juruá, 2009.
SILVA, Jose Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 41. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2007. v. 2.
WAMBIER, Luis Rodrigues. Curso avançado de processo civil. 18. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2008. v. 2.
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(Neo)Processualismo e (Neo)CPC –
Reflexões sobre a nova interpretação
processual
Rafael José Nadim de Lazari
Advogado, consultor jurídico e parecerista. Professor
universitário. Mestrando-bolsista (CAPES/PROSUP
Modalidade 1) em Teoria do Estado pelo Centro
Universitário “Eurípides” de Marília/SP. Colaborador
permanente de diversos periódicos especializados de
Direito. E-mail: <rafa_scandurra@hotmail.com>.
1
Cf. CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo. In: DIDIER JUNIOR, Fredie
(Org.). Leituras complementares de processo civil. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2010. p. 251. Já
DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil: teoria geral do processo e processo
de conhecimento. 12. ed. Salvador: JusPodivm, 2010. v. 1, p. 30) prefere a expressão “direito
fundamental ao processo devido”.
2
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Tutela jurisdicional: a relativização do binômio direito-
processo, como meio de acesso à ordem jurídica justa. São Paulo: USP, 1994.
3
Cf. CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo. In: DIDIER JUNIOR, Fredie
(Org.). Leituras complementares de processo civil. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2010. p. 248-249.
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124 Rafael José Nadim de Lazari
seu símile, o “neoconstitucionalismo”, teve início a partir do fim da Segunda Grande Guerra
Mundial,4 com a superação do mero “Estado de Direito” em prol de um “Estado Democrático
de Direito”,5 bem como com a ideia de reagregação de valores às codificações ocidentais.6
Do praxismo (sincretismo) ao processualismo, foram demarcadas as frontei-
ras entre direito material e direito processual, proclamando este sua independência
daquele.7 Do processualismo ao instrumentalismo, desenvolveu-se a “Teoria Circular dos
Planos”, isto é, a noção cooperativista de integração matéria/processo.8 Do instrumen-
talismo ao neoprocessualismo parece haver, enfim, a noção perfeita de materialização
da força normativa da Constituição.9
Isso porque, ao possuírem — o agente público e o particular — a “vontade de
Constituição” (“wille zur Verfassung”) de que tratou Konrad Hesse,10 concretiza-se o
ideal de vinculação a uma Lei Fundamental que norteie não apenas materialmente, mas
também sob enfoque processual. “Trocando em miúdos”, a força normativa também
está presente para as normas procedimentais, e, portanto, devem tais normas observar
a Constituição. O “neoprocessualismo” adjetiva, pois, o direito processual, tal qual o
“neoconstitucionalismo” o faz com os preceitos materiais.
4
Cf. DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil: teoria geral do processo e processo
de conhecimento. 12. ed. Salvador: JusPodivm, 2010. v. 1, p. 29.
5
Oportunas ao contexto as palavras de J. J. Gomes Canotilho (Direito constitucional e teoria da
Constituição. 6. ed. Coimbra, Portugal: Livraria Almedina, 2002. p. 100): “O Estado constitucio-
nal é ‘mais’ do que Estado de direito. O elemento democrático não foi apenas introduzido para
‘travar’ o poder (to check the power); foi também reclamado pela necessidade de legitimação
do mesmo poder (to legitimize State power). Se quisermos um Estado constitucional assente
em fundamentos não metafísicos, temos de distinguir claramente duas coisas: (1) uma é a
da legitimidade do direito, dos direitos fundamentais e do processo de legislação no sistema
jurídico; (2) outra é a da legitimidade de uma ordem de domínio e da legitimação do exercício
do poder político. O Estado ‘impolítico’ do Estado de direito não dá resposta a este último problema:
donde vem o poder. Só o princípio da soberania popular segundo o qual ‘todo poder vem do povo’
assegura e garante o direito à igual participação na formação democrática da vontade popular.
Assim, o princípio da soberania popular concretizado segundo procedimentos juridicamente
regulados serve de ‘charneira’ entre o ‘Estado de direito’ e o ‘Estado democrático’, possibilitando a
compreensão da moderna fórmula Estado de direito democrático. Alguns autores avançam mesmo
a ideia de democracia como valor (e não apenas como processo), irrevisivelmente estruturante de
uma ordem constitucional democrática”. Também, BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado
de direito processual civil: teoria geral do direito processual civil. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 96.
6
Cf. ALVIM, Arruda. Anotações sobre as perplexidades e os caminhos do processo civil con-
temporâneo: sua evolução ao lado do direito material. Revista Jurídica, Sapucaia do Sul/RS,
n. 386, p. 11, dez. 2009.
7
Cf. DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil: teoria geral do processo e processo
de conhecimento. 12. ed. Salvador: JusPodivm, 2010. v. 1, p. 27.
8
Cf. ZANETI JUNIOR, Hermes. A teoria circular dos planos: direito material e direito processual.
In: DIDIER JUNIOR, Fredie (Org.). Leituras complementares de processo civil. 8. ed. Salvador:
JusPodivm, 2010. p. 317.
9
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991.
10
Vide nota explicativa 09.
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(Neo)Processualismo e (Neo)CPC – Reflexões sobre a nova interpretação processual 125
Sem maiores delongas — mesmo porque sobre o “neoprocessualismo” se vai
melhor trabalhar no tópico seguinte —, este trabalho tenciona debater a impor-
tância do fenômeno “neo” para o ordenamento brasileiro. Mais que uma tendência
doutrinária em voga, a iminência de um “Novo” Código de Processo Civil possibilitou
à Comissão de Juristas designada para elaborá-lo11 preenchê-lo com elementos que
transpassam a vulnerabilidade histórica causada pela rápida evolução social a que
sempre esteve sujeito. Assim, aquilo que constitui absoluta natureza de regra (em sua
dicotomia com os princípios12) na Lei Adjetiva vindoura pouco sofrerá influência da
onda neoprocessualista, afinal, como bem lembrado por Humberto Ávila, os princípios
(mais a ponderação) não vêm para substituir-se às regras (mais a subsunção), mas para
complementá-las.13 É isso que garante a relação de segurança jurídica entre cidadãos
pelejantes e as normas puramente procedimentais.
Por sua vez, nos dispositivos principiológicos do “Novo” CPC, bem como nos que
trazem cláusulas abertas/genéricas e conceitos jurídicos indeterminados, é grande a in-
fluência neoprocessual. Isso se pode observar, p. ex., na ampliação da esfera de atuação
do juiz, no dever de colaboração das partes, na boa-fé processual, e numa duração razoá
vel do processo. É com base nessa gama de dispositivos que se preocupa este trabalho.
Se existe a necessidade de um“Novo”CPC,14 ou se a codificação em elaboração —
apelidada “Código de Fux”, em substituição ao atual “Código de Buzaid” — resolve
11
Tal Comissão foi instituída pelo ato do Presidente do Senado Federal nº 379, de 30 de setembro
de 2009. São os seguintes os juristas: Luiz Fux (Presidente), Teresa Arruda Alvim Wambier (Rela-
tora), Adroaldo Furtado Fabrício, Humberto Theodoro Júnior, Paulo Cesar Pinheiro Carneiro,
José Roberto dos Santos Bedaque, José Miguel Garcia Medina, Bruno Dantas, Jansen Fialho de
Almeida, Benedito Cerezzo Pereira Filho, Marcus Vinicius Furtado Coelho, e Elpídio Donizetti
Nunes (Cf. FUX, Luiz. O novo processo civil. In: FUX, Luiz (Coord.). O novo processo civil brasileiro:
direito em expectativa: reflexões acerca do Projeto do Novo Código de Processo Civil. Rio de
Janeiro: Forense, 2011. p. 1).
12
Cf. ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y
Constitucionales, 2002.
13
Afirma Humberto Ávila (Neoconstitucionalismo: entre a ciência do direito e o direito da ciên-
cia. Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, n. 17, p. 5, jan./mar. 2009. Disponível em:
<http://www.direitodoestado.com.br/rede.asp>. Acesso em: 09 set. 2011): “[...] os princípios
não podem ter o condão de afastar as regras imediatamente aplicáveis situadas no mesmo
plano. Isto porque as regras têm a função, precisamente, de resolver um conflito, conhecido
ou antecipável, entre razões pelo Poder Legislativo Ordinário ou Constituinte, funcionando
suas razões (autoritativas) como razões que bloqueiam o uso das razões decorrentes dos prin-
cípios (contributivas). Daí se afirmar que a existência de uma regra constitucional elimina a
ponderação horizontal entre princípios pela existência de uma solução legislativa prévia des-
tinada a eliminar ou diminuir os conflitos de coordenação, conhecimento, custos e controle
de poder. E daí se dizer, por consequência, que, num conflito, efetivo ou aparente, entre uma
regra constitucional e um princípio constitucional, deve vencer a regra”.
14
Quem bem trabalha a questão é Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero (O Projeto do CPC:
críticas e propostas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 55-60).
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126 Rafael José Nadim de Lazari
problemas crônicos do processo pátrio,15 são questões que não se almeja aqui discutir.
Não se trata, pois, de um observar de procedimentos e terminologias, mas de um tra-
balho que busca extrair o que a Lei Adjetiva em feitura objetiva qualitativamente.
Nesse diapasão, a seguir falar-se-á do “neoprocessualismo” no Brasil, bem como
de suas principais características. Após isso, discorrer-se-á sobre a iminência de um
“Novo” Código de Processo Civil neoprocessual. Em seguida, explanar-se-á sobre a
nova interpretação processual e sua importância para o saber jurídico, para, enfim,
poder tomar uma opinião pessoal a ser colocada em nota conclusiva.
2 O neoprocessualismo no Brasil
De grande valia é a contribuição de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira para o
estudo do “neoprocessualismo”. Com efeito, defende o autor que o fenômeno “neo”
criou fase histórica do processo subsequente à instrumentalista, intitulada “formalista-
valorativa”, na qual se destaca a importância dos preceitos constitucionais — funda-
mentais ou não — para o desenvolvimento regular do processo.16
Conforme Oliveira, a fim de combater o formalismo pernicioso, mostra-se
necessária uma mudança de mentalidade,17 algo que não se restrinja à mera obser-
vância de pré-requisitos.18 E, por consequência, se além da observância de preceitos
constitucionais também se faz necessária essa “mudança de mentalidade”, significa
que há uma questão de eticidade, também, implícita nesse “formalismo-valorativo”.19
15
Neste sentido, SOUZA, Gelson Amaro de. O novo CPC (Projeto-Lei nº 8.046/2010) e o amor ao
passado. Revista Síntese Direito Civil e Processual Civil, São Paulo, p. 122-130, jul./ago. 2011.
16
Cf. OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O formalismo-valorativo no confronto com o formalismo
excessivo. In: DIDIER JUNIOR, Fredie (Org.). Leituras complementares de processo civil. 8. ed. Salvador:
JusPodivm, 2010. p. 137-148.
17
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O formalismo-valorativo no confronto com o formalismo
excessivo. In: DIDIER JUNIOR, Fredie (Org.). Leituras complementares de processo civil. 8. ed. Salvador:
JusPodivm, 2010. p. 170.
18
Não que a exigência de pré-requisitos seja algo apenas pernicioso. Nesse sentido, Carlos Alberto
Alvaro de Oliveira (O formalismo-valorativo no confronto com o formalismo excessivo. In: DIDIER
JUNIOR, Fredie (Org.). Leituras complementares de processo civil. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2010.
p. 151) faz a ressalva: “Das considerações até agora realizadas, verifica-se que o formalismo, ao
contrário do que geralmente se pensa, constitui o elemento fundador tanto da efetividade
quanto da segurança do processo. A efetividade decorre, nesse contexto, do seu poder orga-
nizador e ordenador (a desordem, o caos, a confusão decididamente não colaboram para um
processo ágil e eficaz), a segurança decorre do seu poder disciplinador. Sucede, apenas, que ao
longo do tempo o termo sofreu desgaste e passou a simbolizar apenas o formalismo excessivo
de caráter essencialmente negativo”.
19
Cf. OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O formalismo-valorativo no confronto com o forma-
lismo excessivo. In: DIDIER JUNIOR, Fredie (Org.). Leituras complementares de processo civil.
8. ed. Salvador: JusPodivm, 2010. p. 166. Em mesmo sentido, POZZA, Pedro Luiz. O processo
civil como fenômeno cultural na perspectiva do formalismo-valorativo. Revista do Programa
de Pós-graduação em Direito da UFBA, Salvador, n. 15, p. 455, 2007.
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(Neo)Processualismo e (Neo)CPC – Reflexões sobre a nova interpretação processual 127
Ademais, Eduardo Cambi,20 quando traça as principais características do
“neoprocessualismo”, elenca a visão publicística do processo,21 o direito fundamental à
ordem jurídica justa,22 23 o direito fundamental ao processo justo,24 25 o direito fundamen-
tal à tutela jurisdicional, a instrumentalidade do processo, e a construção de técnicas pro-
cessuais adequadas à realização dos direitos materiais.26
Também, o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux,27 ao enquadrar o
estágio atual do sistema jurídico brasileiro dentro da nova fase positivista, destaca os
princípios da dignidade humana, da razoabilidade, da impessoalidade, da eficiência, da
duração razoável dos processos, do devido processo legal, do contraditório, da ampla
defesa, da efetividade, da tutela específica e tempestiva, e do acesso à ordem jurídica
justa, todos aplicáveis ao processo.
20
CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo. In: DIDIER JUNIOR, Fredie
(Org.). Leituras complementares de processo civil. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2010. p. 248-264.
21
“Com efeito, o processo distancia-se de uma conotação privatística, deixando de ser um mecanismo
de exclusiva utilização individual para se tornar um meio à disposição do Estado para a realiza-
ção da justiça, que é um valor eminentemente social” (CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo
e neoprocessualismo. In: DIDIER JUNIOR, Fredie (Org.). Leituras complementares de processo civil.
8. ed. Salvador: JusPodivm, 2010. p. 251). Também, MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel.
O Projeto do CPC: críticas e propostas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 40.
22
Vide nota explicativa 02.
23
Para o autor [CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo. In: DIDIER JUNIOR,
Fredie (Org.). Leituras complementares de processo civil. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2010. p. 251],
o acesso à ordem jurídica justa abrange: “i) o ingresso em juízo; ii) a observância das garantias
compreendidas na cláusula do devido processo legal; iii) a participação dialética na formação
do convencimento do juiz, que irá julgar a causa (efetividade do contraditório); iv) a adequada
e tempestiva análise, pelo juiz, natural e imparcial, das questões discutidas no processo (deci-
são justa e motivada); v) a construção de técnicas processuais adequadas à tutela dos direitos
materiais (instrumentalidade do processo e efetividade dos direitos)”.
24
Vide nota explicativa 01.
25
“Este direito ao processo justo compreende as principais garantias processuais, como as da
ação, da ampla defesa, da igualdade e do contraditório efetivo, do juiz natural, da publicidade
dos atos processuais, da independência e imparcialidade do juiz, da motivação das decisões
judiciais, da possibilidade de controle recursal das decisões etc.” [CAMBI, Eduardo. Neoconsti-
tucionalismo e neoprocessualismo. In: DIDIER JUNIOR, Fredie (Org.). Leituras complementares
de processo civil. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2010. p. 251].
26
Acerca destas três últimas características, explica Cambi [Neoconstitucionalismo e neopro-
cessualismo. In: DIDIER JUNIOR, Fredie (Org.). Leituras complementares de processo civil. 8. ed.
Salvador: JusPodivm, 2010. p. 252]: “A percepção de que a tutela jurisdicional efetiva, célere e
adequada é um direito fundamental (art. 5º, inc. XXXV, CF) vincula o legislador, o administra-
dor e o juiz, isto porque os direitos fundamentais possuem uma dimensão objetiva, ou seja,
constituem um conjunto de valores objetivos básicos e fins diretivos da ação positiva do Estado.
Assim, é possível quebrar a clássica dicotomia entre direito e processo (substance-procedure),
passando-se a falar em instrumentalidade do processo e em técnicas processuais”.
27
FUX, Luiz. O novo processo civil. In: FUX, Luiz (Coord.). O novo processo civil brasileiro: direito
em expectativa: reflexões acerca do Projeto do Novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro:
Forense, 2011. p. 13-14.
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128 Rafael José Nadim de Lazari
28
Cf. HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1991.
p. 19. Também, CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo. In: DIDIER JUNIOR,
Fredie (Org.). Leituras complementares de processo civil. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2010. p. 237.
29
Vide nota explicativa 04.
30
Neste sentido, MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O Projeto do CPC: críticas e pro-
postas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 60: “Para que o direito processual civil possa
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(Neo)Processualismo e (Neo)CPC – Reflexões sobre a nova interpretação processual 129
A terceira, de que a reaproximação entre direito e moral — algo típico da nova fase
positivista —, no processo representado pela eticidade, permite o acesso à ordem
jurídica justa, algo que já deveria, em verdade, ser intrínseco à própria concepção
originária de processo, mas que, por exclusiva preocupação com formas proces
suais, acabou sendo esquecido. A quarta, de que o Princípio da Inafastabilidade do
Poder Judiciário não deve ser interpretado apenas em sua visão tradicional, qual
seja, aquela que preconiza que a função estatal não pode se eximir de dizer o direito,
evitando, assim, o “non liquet”, mas também numa visão contemporânea, de criativi-
dade jurisprudencial consciente e criteriosa.31
Isso posto, colocadas as questões sobre o “neoprocessualismo” no Brasil, passa-se
a falar, no tópico seguinte, sobre a iminência de um “Novo” Código de Processo Civil
neoprocessual.
realmente ter a sua âncora na Constituição e ser compreendido como verdadeiro instrumento
de efetiva proteção dos direitos, é fundamental que todo o processo civil seja orientado pelo
direito material”.
31
“O juiz, antes mero aplicador da lei, dada como pronta e acabada pelo legislador, passa a ser,
hoje, compreendido como elo fundamental na cadeia de produção normativa. É ele, isto não
tem porque ser negado, criador da norma jurídica” (BUENO, Cassio Scarpinella. Curso siste-
matizado de direito processual civil: teoria geral do direito processual civil. 5. ed. São Paulo:
Saraiva, 2011. p. 114).
32
Vide nota explicativa 11.
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(Neo)Processualismo e (Neo)CPC – Reflexões sobre a nova interpretação processual 131
Art. 12. Os juízes deverão proferir sentença e os tribunais deverão decidir
os recursos obedecendo à ordem cronológica de conclusão.
§1º A lista de processos aptos a julgamento deverá ser permanentemente
disponibilizada em cartório, para consulta pública.
§2º Estão excluídos da regra do caput:
I – as sentenças proferidas em audiência, homologatórias de acordo ou
de improcedência liminar do pedido;
II – o julgamento de processos em bloco para aplicação da tese jurídi-
ca firmada em incidente de resolução de demandas repetitivas ou em
recurso repetitivo;
III – a apreciação de pedido de efeito suspensivo ou de antecipação da
tutela recursal;
IV – o julgamento de recursos repetitivos ou de incidente de resolução
de demandas repetitivas;
V – as preferências legais.
33
Cf. TUCCI, José Rogério Cruz e. Garantias constitucionais da duração razoável e da economia
processual no Projeto do Código de Processo Civil. Revista de Processo, São Paulo, v. 36, n. 192,
p. 193-208, fev. 2011. p. 200.
34
Cf. COELHO, Marcus Vinicius Furtado. O Anteprojeto de Código de Processo Civil: a busca por
celeridade e segurança. Revista de Processo, São Paulo, v. 35, n. 185, p. 145-150, jul. 2010.
35
Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero (O Projeto do CPC: críticas e propostas. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2010. p. 72) afirmam que o Projeto “[...] é fértil em normas sobre a colabo-
ração. É possível afirmar sem qualquer dúvida que o modelo de processo civil proposto pelo Projeto
é indubitavelmente um modelo de processo civil cooperativo”. Marcelo José Magalhães Bonício
(Ensaio sobre o dever de colaboração das partes previsto no Projeto do Novo Código de Pro-
cesso Civil Brasileiro. Revista de Processo, São Paulo, n. 190, p. 210-230, dez. 2010. p. 219) entende,
contudo, que “[...] a interpretação da nova regra deve ser restritiva, especialmente porque tem
natureza limitadora do poder de disposição das partes, e porque provoca, ao menos potencial-
mente, sérias restrições à liberdade que as partes possuem no direito processual brasileiro”.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 123-139, abr./jun. 2012
132 Rafael José Nadim de Lazari
36
Sobre a “parcialidade positiva”, oportunas as palavras de Artur César de Souza (A parcialidade
positiva do juiz. Revista de Processo, São Paulo, n. 183, p. 69, maio 2010): “Os princípios jurídicos
fundamentais, na verdade, apresentam uma dupla função: negativa, pois proíbem determinado
comportamento e, outra, positiva, porque informam materialmente os atos dos poderes públi-
cos. Em relação à imparcialidade, o componente negativo está caracterizado pela proibição de
que os juízes atuem no processo de forma a se inclinar em favor de determinada parte por inte
resse pessoal ou outro qualquer fator discriminatório. Por sua vez, a função positiva informa o
agir do magistrado, para que ele leve em consideração no desenvolvimento válido e regular
da relação jurídica processual os aspectos instrumentais necessários para a construção de uma
sociedade mais justa, solidária, erradicando-se a pobreza e as desigualdades sociais, econômicas,
culturais etc.” Em complementação, Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero (O Projeto do
CPC: críticas e propostas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 32): “Imparcialidade, porém,
não se confunde de modo nenhum com neutralidade. O juiz natural não pode ser neutro e
indiferente à sorte do direito material afirmado em juízo. Rigorosamente, o juiz que se omite
quando é o caso de agir é tão parcial quanto aquele que julga propositadamente a favor do
litigante que não tem razão no seu pleito”.
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(Neo)Processualismo e (Neo)CPC – Reflexões sobre a nova interpretação processual 133
Sobre essa atuação ativa do juiz, Gustavo Quintanilha Telles de Menezes afirma
que, assim, o magistrado assume função mais efetiva, abandonando a posição de
mero fiscalizador da observância das normas legais, “[...] passando a ativo participan-
te, a fim de evitar tanto a perda causada pela escassa habilidade da parte ou de seu
representante, quanto o perecimento indevido e involuntário de um direito relevante
do jurisdicionado”.37
Também, a distribuição dinâmica do ônus da prova, de Jorge W. Peyrano (“la regla
de la carga de la prueba”),38 tornada possível no “novo” art. 358, pode ser considerada
elemento neoprocessual. Por tal teoria, sempre que as circunstâncias e as peculiaridades
do caso concreto assim autorizarem, poderá o juiz, observado o contraditório, distribuir o
ônus da prova de maneira diversa daquela prevista no “novo” art. 357 (hoje, o art. 333).39 40
Sendo assim, em que pese as críticas que são feitas à necessidade da nova
codificação,41 ou, sendo necessária, à não-correção de equívocos que vêm desde 1973
(ou de 1939, data do Código anterior ao de Buzaid),42 o fato é que se trata o Código de
Fux de materialização neoprocessual.
É óbvio que os elementos “neo” não se exaurem naqueles que se acabou de
mencionar neste tópico, quais sejam, a principiologia inerente à relação processo/
Constituição, a duração razoável do processo, o dever de cooperação, a economia
processual, a eficiência na prestação jurisdicional, a parcialidade positiva do juiz, e
a distribuição dinâmica do ônus da prova. De toda forma, não se pode negar — ao
menos neste aspecto — o avanço da Lei Adjetiva que está por vir.
Urge a correção do percurso tomado pelo processo na contemporaneidade, de
formalismo excessivo, em favor de um estado coletivo de satisfação processual, alimentado
37
MENEZES, Gustavo Quintanilha Telles de. A atuação do juiz na direção do processo. In: FUX,
Luiz (Coord.). O novo processo civil brasileiro: direito em expectativa: reflexões acerca do Pro-
jeto do Novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 194-195. Em mesmo
sentido, POZZA, Pedro Luiz. O processo civil como fenômeno cultural na perspectiva do for-
malismo-valorativo. Revista do Programa de Pós-graduação em Direito da UFBA, Salvador, n. 15,
p. 456, 2007: “A indesejável passividade do juiz na apreciação da verdade, conforme experiên-
cia evidenciada pela concepção clássica, não se pode manter diante do novo ideário democrá-
tico concernente à reconstitucionalização dos direitos e garantias individuais”.
38
Cf. PEYRANO, Jorge W. La regla de la carga de la prueba enfocada como norma de clausura del
sistema. Revista de Processo, São Paulo, n. 185, p. 107-116, jul. 2010.
39
Em mesmo sentido, MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O Projeto do CPC: críticas e
propostas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 102-104.
40
Sobre a “distribuição dinâmica do ônus da prova”, ver também: SOUZA, Gelson Amaro de;
LAZARI, Rafael José Nadim de. Reflexões sobre a perspectiva de uma distribuição dinâmica
do ônus da prova: análise de viabilidade. Revista Dialética de Direito Processual Civil, São Paulo,
n. 99, p. 99-109, jun. 2011.
41
Vide nota explicativa 14.
42
Vide nota explicativa 15.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 123-139, abr./jun. 2012
134 Rafael José Nadim de Lazari
43
MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O Projeto do CPC: críticas e propostas. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2010. p. 16.
44
MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O Projeto do CPC: críticas e propostas. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2010. p. 19.
45
MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O Projeto do CPC: críticas e propostas. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2010. p. 44.
46
MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O Projeto do CPC: críticas e propostas. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2010. p. 42-43.
47
COUTURE, Eduardo J. Interpretação das leis processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 18.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 123-139, abr./jun. 2012
(Neo)Processualismo e (Neo)CPC – Reflexões sobre a nova interpretação processual 135
não é tecnicamente a apropriada),48 como colisões entre texto e princípios,49 bem como
o silêncio do legislador (um “silêncio cheio de vozes”, segundo Couture).50
Como último argumento antes do desenvolvimento do raciocínio, convém
lembrar que a Lei Adjetiva em feitura preceitua — como já visto — que o processo civil
será ordenado, disciplinado e regido conforme a Constituição (art. 1º), e que, ao aplicar
a lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum,
observando sempre os princípios da dignidade da pessoa humana, da razoabilidade,
da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência (art. 6º).
Posto isso, no começo do trabalho foi dito que se dispensaria especial atenção àquilo
que é principiológico no “Novo” CPC, ou, não sendo, traduz-se em cláusulas genéricas/aber-
tas e conceitos jurídicos indeterminados. Isso porque tais elementos permitem a contínua
atualização das codificações, sem que se faça necessário alterá-las por processo legislativo.
No Código Civil, bem como em outros Diplomas, como o Estatuto da Criança e
do Adolescente (Lei nº 8.069/90), a Lei “Maria da Penha” (Lei nº 11.340/06), e o Código de
Proteção e Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), tais técnicas obtiveram absoluto êxito.
Mas, numa codificação procedimental, afora as Leis que regulam a Ação Civil Pública
(Lei nº 7.347/85) e a Ação Popular (Lei nº 4.717/65) — nas quais o fenômeno ocorreu de
maneira tímida —, é a primeira vez que o Brasil vai adotar esta técnica. E, como se não
bastasse, vai fazê-lo naquele que é o Código mais importante do cotidiano forense, por
regular as relações reais, obrigacionais, sucessórias, de família, dentre outras.
A bem do pleno desenvolvimento do saber jurídico, pois, que se dê “um voto de
confiança” ao Código de Fux — ao menos nesse aspecto, neoprocessual —, a fim de
que a nova interpretação processual possa se traduzir em benefício às partes, ao juiz
e ao processo. A “desregulamentação proposital” — porém controlada — de alguns
elementos procedimentais, como é o caso da distribuição dinâmica do ônus da prova,
p. ex., pode, num futuro não muito distante, revelar-se trágica, mas, por outro lado — e
assim espera-se —, no que é mais provável, pode se revelar muito bem-sucedida.
O advento de um “Novo” Código de Processo Civil é, ao que parece, um caminho
sem volta. Logo, é o caso de desenvolver uma nova interpretação processual o mais pró-
xima possível dos já conhecidos deveres anexos da boa-fé objetiva — como a lealdade,
a eticidade, e a informação —, aqui analisados sob prisma processual (boa-fé processual).
Como se não bastasse, seguindo a tendência dos postulados instrumentais
aplicados à Constituição Federal, bem como o art. 1º do “Novo” CPC, urge que a inter-
pretação conforme a Constituição seja sempre palavra de ordem nesta relação entre o
direito material e o processual.
48
COUTURE, Eduardo J. Interpretação das leis processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 41-43.
49
COUTURE, Eduardo J. Interpretação das leis processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 43-45.
50
COUTURE, Eduardo J. Interpretação das leis processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 45-48.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 123-139, abr./jun. 2012
136 Rafael José Nadim de Lazari
Por fim, a observância do fim social a que se destina a lei é imperiosa ainda que
se trate de demanda individual. Apesar de os tempos atuais serem de coletivização
dos conflitos, há de se lembrar que as pelejas individuais sempre continuarão existindo,
e o fato de a questão não ser plural não significa que o bem comum e o fim social da
lei processual não devam ser observados.
Mais que a aplicação “neoconstitucionalista” ao direito material, portanto, faz-se
mister, também, o “neoprocessualismo” às normas procedimentais.
Se vai dar certo ou não, já é outra história.
5 Linhas derradeiras
Por todo o exposto, as conclusões que se extraem são as seguintes:
1. O “neoprocessualismo” é fenômeno surgido após o fim da Segunda Guerra
Mundial, concomitante ao “neoconstitucionalismo”, seu símile. Se o “neo-
constitucionalismo” consiste em agregar valor às normas de direito material,
o “neoprocessualismo” procura fazer o mesmo com as normas de direito
processual;
2. Este trabalho não tencionou discorrer sobre a necessidade de um “Novo”
Código de Processo Civil, tão menos se, em sendo necessário, corrigiu a Lei
Adjetiva vindoura alguns equívocos históricos que vêm de 1939 e de 1973.
Objetivou-se, apenas, tratar da influência do fenômeno neoprocessual na
codificação em elaboração;
3. Como exemplos de elementos neoprocessuais no “Novo” CPC, pode-se men-
cionar a duração razoável do processo, o dever de colaboração, a eficiência,
a diminuição dos custos processuais, a parcialidade positiva do juiz e a dis-
tribuição dinâmica do ônus da prova;
4. O Código de Fux — assim apelidado em substituição ao atual Código de
Buzaid — consagra grande quantidade de princípios constitucionais, cláusu-
las genéricas/abertas e conceitos jurídicos indeterminados. Estes possibilitam
que a codificação possa se manter atual frente à rápida e constante evolução
da sociedade, sem que se faça necessária alteração legislativa. Nesse diapa-
são, urge que a nova interpretação processual observe os deveres anexos da
boa-fé objetiva — como a lealdade, a eticidade e a informação — aplicados
no campo processual, que todos os dispositivos processuais sejam interpreta-
dos conforme a Constituição (da mesma maneira que preconiza o postulado
instrumental da interpretação conforme a Constituição), e que o bem comum
e o fim social da norma processual sejam observados sempre, ainda que se
trate de demanda individual.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 123-139, abr./jun. 2012
(Neo)Processualismo e (Neo)CPC – Reflexões sobre a nova interpretação processual 137
De qualquer maneira, é óbvio que não se objetiva, aqui, exaurir o debate desde
já proposto. Tudo é sempre uma questão de opinião. Tudo é sempre uma questão de
argumentação. A decisão compete a quem lê. Qualquer semelhança com o processo é
meramente intencional.
Referências
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Constitucionales, 2002.
ALVIM, Arruda. Anotações sobre as perplexidades e os caminhos do processo civil contemporâneo:
sua evolução ao lado do direito material. Revista Jurídica, Sapucaia do Sul/RS, n. 386, p. 11-34,
dez. 2009.
ÁVILA, Humberto. Neoconstitucionalismo: entre a ciência do direito e o direito da ciência. Revista
Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, n. 17, jan./mar. 2009. Disponível em: <http://www.
direitodoestado.com.br/rede.asp>. Acesso em: 09 set. 2011.
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Tutela jurisdicional: a relativização do binômio direito-processo,
como meio de acesso à ordem jurídica justa. São Paulo: USP, 1994.
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brasileiro. In: FUX, Luiz (Coord.). O novo processo civil brasileiro: direito em expectativa: reflexões
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no Projeto do Novo Código de Processo Civil Brasileiro. Revista de Processo, São Paulo, n. 190,
p. 210-230, dez. 2010.
BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: teoria geral do direito
processual civil. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 123-139, abr./jun. 2012
138 Rafael José Nadim de Lazari
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(Neo)Processualismo e (Neo)CPC – Reflexões sobre a nova interpretação processual 139
Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de
Normas Técnicas (ABNT):
LAZARI, Rafael José Nadim de. (Neo)Processualismo e (Neo)CPC: reflexões sobre a nova inter
pretação processual. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 20
n. 78, p. 123-139, abr./jun. 2012.
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Liquidação de títulos executivos
extrajudiciais
Rodrigo Ramina de Lucca
Advogado. Mestrando em Direito Processual Civil
pela USP.
1 Introdução
Dois são os requisitos de validade específicos do processo de execução: o
inadimplemento do devedor e a existência de um título executivo, taxativamente pre-
visto em lei. Os títulos executivos, porém, apenas terão a eficácia que lhes é inerente
quando a obrigação neles contida for certa, líquida e exigível.
O Código de Processo Civil (CPC) permite que, no processo de conhecimen-
to, sejam formulados pedidos genéricos (embora sempre certos e determinados). Em
outras palavras, é possível que se peça a condenação do réu em valor a ser apurado
posteriormente (art. 286). Nesse caso será proferida uma sentença também genérica,
a ser integrada posteriormente pela decisão proferida ao término da liquidação de
sentença (arts. 475-A a 475-H).
Todavia, não apenas a sentença como também os demais títulos executivos
judiciais e extrajudiciais (salvo algumas exceções) podem conter uma obrigação
ilíquida. O CPC nada dispõe a esse respeito.
Doutrina e jurisprudência, então, fazem uma distinção. Autorizam a liquidação
dos demais títulos executivos judiciais, mas negam-na aos extrajudiciais. Nem sempre
são expostas as razões para essa restrição; não raro defende-se que não são títulos
executivos os atos/documentos que contêm obrigações ilíquidas.
A impossibilidade de se liquidar obrigações contidas em títulos executivos ex-
trajudiciais gera um grave problema. Algumas espécies de obrigações, cujos títulos
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142 Rodrigo Ramina de Lucca
são expressamente previstos em lei como executivos, simplesmente não podem ser
executadas, pois naturalmente ilíquidas.
Surgem duas opções. Ignora-se a lei e impõe-se ao credor a instauração de um
processo de conhecimento ou monitório apenas para que seja apurado o valor de seu
crédito; dá-se efetividade ao comando legal, valendo-se dos mecanismos processuais
existentes. Dessa última hipótese é que se tratará neste trabalho.
1
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 3. ed. São Paulo: Malheiros,
2009. v. 4, p. 225.
2
A obrigação também pode ser compreendida como situação jurídica, ou mesmo vínculo.
Ver NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 8 et seq.;
GOMES, Orlando. Obrigações. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992. p. 11 et seq.; VENOSA, Silvio
de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. São Paulo: Atlas,
2006. p. 4 et seq.
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Liquidação de títulos executivos extrajudiciais 143
2.1 Obrigação certa
Defendia-se há algum tempo que a certeza da obrigação estava associada à
sua existência. Carnelutti, por exemplo, sustentou que “o direito resultante do título é
certo quando o título não deixa dúvida a respeito de sua existência”.3 Essa concepção
foi recepcionada pelo Código Civil de 1916 em seu artigo 1.533: “Considera-se líquida
a obrigação certa, quanto à sua existência (...)”.4
Atualmente sabe-se que a certeza está relacionada não à existência, mas à
determinação, forma, objeto, sujeitos e demais contornos da obrigação.5 Obrigação
certa é obrigação precisamente delineada e delimitada de modo que se saiba, desde
logo, qual é a prestação esperada do devedor, como ela será cumprida, quem é este
devedor, quem é o credor etc.; elementos que acabam confundindo-se, muitas vezes,
com os elementos básicos de existência e validade dos negócios jurídicos.
A simples oposição do devedor ao título executivo é insuficiente para retirar a
certeza da obrigação, assim como é irrelevante a controvérsia sobre a dívida para que a
obrigação seja considerada “certa”. A vontade ulterior das partes não tem nenhum valor
neste aspecto.6 O que importa é o convencimento judicial diante do documento que lhe
é apresentado. Deve-se utilizar, aqui, a precisa distinção de Teori Albino Zavascki entre
contestabilidade intrínseca e contestabilidade extrínseca do título executivo (lem-
brando o autor que certeza não é sinônimo de incontestabilidade). Apenas é incerta
a obrigação quando a sua contestabilidade decorre de elementos internos do próprio
título, tais como omissões ou contradições nele verificadas.7
3
CARNELUTTI, Francesco. Istituzioni del processo civile italiano. 5. ed. Roma: Foro Italiano, 1956.
v. 1, p. 164.
4
Esse dispositivo não possui correspondente no Código Civil de 2002.
5
“Quando a lei impõe, como condição para executar, que o título traga a representação de obri-
gação certa, não está exigindo certeza quanto à existência do direito. (...) Se a obrigação existe
ou não, isso é matéria de que não se trata na execução. (...) Certeza da obrigação refere-se
unicamente à exata definição de seus elementos” (WAMBIER, Luiz Rodrigues; ALMEIDA, Flávio
Renato Correa de; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2007. p. 74). Igualmente, DINAMARCO. Instituições de direito processual civil, v. 4,
p. 229. José Miguel Garcia Medina chega à mesma conclusão, embora, corretamente, critique
a utilização do termo ‘certeza’ no âmbito processual (Execução civil: princípios fundamentais.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 132-147). Em sentido diverso, seguindo as lições de
Pontes de Miranda, mas reconhecendo que certeza não se confunde com incontestabilidade
(DIDIER JÚNIOR, Fredie et al. Curso de direito processual civil. Salvador: JusPodivm, 2009. p. 153-
154). V. também THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. Rio de Janeiro:
Forense, 2009. p. 141.
6
“Pouco importa que, particularmente, estejam controvertendo as partes em torno da dívida”
(THEODORO JÚNIOR. Curso de direito processual civil, p. 141).
7
ZAVASCKI, Teori Albino. Título executivo e liquidação. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2001. p. 144.
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144 Rodrigo Ramina de Lucca
8
Diferente era a lição de Francesco Carnelutti: “Così la certezza come la liquidità e in particolar
modo l’esigibilità debbono avverarsi nel momento in cui s’inizia l’esecuzione forzata non in quello in
cui si forma il titolo” (Istituzioni del processo civile italiano, 1956. v. 1, p. 164). Esse posicionamento
possui respaldo ainda hoje para se defender a incerteza das obrigações alternativas. Parece,
todavia, que mesmo em tais hipóteses a certeza está presente desde a formação do título, já que
todas as possíveis prestações fazem parte do objeto da mesma obrigação (objeto plural). Ver
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil. São Paulo: Atlas, 2006. p. 91-93; ZAVASCKI. Título executivo
e liquidação, p. 149 et seq. Orlando Gomes refere-se a “incerteza do objeto da obrigação”, o que
não parece ser o mesmo que incerteza da própria obrigação (Obrigações, 1992, p. 88).
9
Pode-se cogitar de obrigações certas e inexigíveis, certas e ilíquidas, ou mesmo ambas, mas
não existem obrigações incertas e exigíveis ou incertas e líquidas. “A certeza constitui o pré-
requisito dos demais atributos, significando que só há liquidez e exigibilidade, se houver cer-
teza” (DIDIER JÚNIOR et al. Curso de direito processual civil, p. 153).
10
DINAMARCO. Instituições de direito processual civil, v. 4, p. 186. Segundo Francesco Carnelutti, o
direito resultante do título é exigível quando “o título não deixa dúvida em relação à sua atua
lidade” (Istituzioni del processo civile italiano, v. 1, p. 164).O termo atualidade é reproduzido ain-
da hoje pela doutrina, como o faz Araken de Assis: “O implemento do termo, ou da condição,
outorga atualidade ao crédito” (Manual do processo de execução. 8. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002. p. 152).
11
“A rigor, não é o inadimplemento absoluto que permite o ajuizamento da execução, mas sim
a mora no cumprimento da prestação” (MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz.
Execução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 432).
12
SHIMURA, Sérgio. Título executivo. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 143.
13
Embora apoiando-se na ideia de título executivo como condição da ação executiva, essa é a
conclusão de Lucon: “a exigibilidade é elemento estranho ao conteúdo formal do título, pois
apenas afirma que chegou o momento da satisfação da vontade concreta da lei, sem impedi-
mento legal, não tendo qualquer relação com a adequação da via executiva, mas com a neces-
sidade concreta da jurisdição” [LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Título executivo e multa de
10%. In: SANTOS, Ernane Fidélis dos et al. (Coord.). Execução civil: estudos em homenagem ao
Professor Humberto Theodoro Júnior. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 987].
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Liquidação de títulos executivos extrajudiciais 145
3 A liquidez das obrigações contidas nos títulos executivos
extrajudiciais
A liquidez das obrigações confunde-se como quantum debeatur, compreendido
como a “determinação da importância da obrigação”,14 ou “o conhecimento da quantidade
de bens devidos ao credor”.15 Conhecido o quantum debeatur, líquida é a obrigação; des-
conhecido o quantum debeatur, ilíquida é a obrigação.
A necessidade de liquidez se faz presente na execução em dois momentos:
quando são constritos os bens do executado e quando é feita a adjudicação ao exe-
quente daquilo que lhe é devido.16 Apenas as obrigações relativas a coisas “suscetíveis
de quantificação” podem ser líquidas ou ilíquidas. Obrigações de dar coisa certa, de
fazer ou de não fazer prescindem do requisito da liquidez, pois têm seus contornos e
limitações definidos pela certeza.17
Na medida em que os valores monetários alteram-se sensivelmente ao longo
do tempo, além da usual incidência de juros sobre quantias inadimplidas, dificilmente
o montante apresentado pelo título executivo será aquele devido no momento da
execução. Em muitos casos também há elevada diferença entre o quantum debeatur
quando da propositura da execução e, posteriormente, quando da adjudicação de
bens ao exequente.
Diante disso, é pacífico o entendimento de que o valor a ser executado pode ser
corrigido monetariamente, bem como acrescido de juros, comissão de permanência
ou outros índices legais ou contratuais, sem que a obrigação perca a liquidez.18 No caso
dos títulos extrajudiciais, é possível a conversão de moedas estrangeiras à nacional ou
de unidades financeiras variadas ao respectivo valor em dinheiro.19
14
SHIMURA. Título executivo, p. 138.
15
DINAMARCO. Instituições de direito processual civil, 2009, v. 4, p. 231.
16
Ibidem, p. 232.
17
“Não se concebe o predicada da liquidez em relação aos direitos que têm por objeto uma coisa
certa, ou quanto às obrigações de fazer ou não-fazer, simplesmente porque não se conceberia a
iliquidez desses direitos e obrigações. Quanto a estes, o predicado da certeza do direito cumpre
por si só toda a tarefa de fixar com precisão os contornos da execução, indicando o bem a ser
constrito; inexiste quantificação a fazer” (Execução civil. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 513).
Criticando expressamente este posicionamento, por entender que mesmo as obrigações espe-
cíficas podem ser objeto de quantificação, v. MEDINA. Execução Civil..., 2002. p. 141-142.
18
“Não padece de iliqüidez o crédito expresso em uma importância à qual se devam acrescer
juros ou ‘comissão de permanência’; ou quando há correção monetária a fazer sobre o valor
indicado; ou mesmo quando o valor deva ser atualizado mediante certos índices contratuais
ou legais (p. ex., o INPC)” (DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução civil. São Paulo: Malheiros,
2002. p. 514).
19
Contrato de empréstimo em moeda estrangeira. Resolução nº 63 do Banco Central do Brasil.
Nota promissória. Abusividade. TR. Precedentes da Corte. 1. A jurisprudência da Corte “já assen
tou a melhor interpretação do art. 1º do Decreto-lei nº 857/69, admitindo a contratação em
moeda estrangeira, desde que o pagamento seja realizado pela conversão em moeda nacional”
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146 Rodrigo Ramina de Lucca
Também é dispensável que o título contenha, desde sua formação, o valor exato
a ser executado. Basta que forneça os elementos necessários à apuração do quantum
debeatur, de modo que “a quantia seja determinável, isto é, que contenha os indica-
tivos suficientes para que, mediante simples operação aritmética, chegue-se ao valor
correspondente”.20
(REsp nº 194.629/SP, da minha relatoria, DJ, 22 maio 00; no mesmo sentido: REsp nº 90.875/
RJ, da minha relatoria, DJ, 01 dez. 97; REsp nº 86.124/SP, Relator o Senhor Ministro Waldemar
Zveiter, DJ, 21 out. 96; REsp nº 57.581/SC, Relator o Senhor Ministro Barros Monteiro, DJ, 18 out.
99). Exemplar, esta Turma decidiu que quando o título requer, apenas, a elaboração de cálculos
aritméticos, não há falar em falta de liquidez, aí incluída a conversão de moeda estrangeira (REsp
nº 270.674/RS, da minha relatoria, DJ, 20 ago. 01). (...) (REsp 402.071/CE, Rel. Ministro CARLOS
ALBERTO MENEZES DIREITO, TERCEIRA TURMA, julgado em 29/11/2002, DJ, p. 224, 24 fev. 2003).
20
SHIMURA. Título executivo, 1997. p. 140. Originariamente, o Código de Processo Civil previa a
hipótese de liquidação por cálculo do contador quando a condenação abrangesse juros ou ren-
dimento de capital cuja taxa fosse estabelecida em lei ou no contrato. A Lei nº 8.898/94 alterou o
art. 604 para, corrigindo essa temerária opção legislativa, autorizar a execução mediante instru-
ção da petição inicial com memória discriminada e atualizada do cálculo. A Lei nº 11.232/2005
apenas adaptou a redação anterior ao “novo” processo sincrético (art. 475-B).
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Liquidação de títulos executivos extrajudiciais 147
Ora, se é um contrato subscrito pelo devedor e pelas testemunhas, e se
o banco apresenta extratos, cabe ao devedor discutir se esses extratos
estão certos em embargos que eventualmente tenha para fazer. Negar
logo o caráter de título executivo extrajudicial a um contrato com essas
formalidades entendo que ofende a esse dispositivo legal.
21
O entendimento tem amparo histórico, uma vez que os títulos executivos extrajudiciais surgi-
ram do resgate, durante a Idade Média, da máxima romana confessus in iure pro condemnato
habetur. Sob o fundamento de que a confissão do devedor tinha “os mesmo efeitos da feita em
juízo”, atribuiu-se aos “instrumentos de dívida lavrados perante o tabelião”, denominados de
instrumenta guarentigiata, eficácia equivalente à das sentenças judiciais. Ver LIEBMAN, Enrico
Tullio. Processo de execução. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1986. p. 11-12.
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148 Rodrigo Ramina de Lucca
Os extratos emitidos pelo banco são afirmações por ele próprio feitas,
de que houve aquela movimentação. Está se dando valor, na realidade,
não ao contrato, mas sim às declarações do banco. Se assim é, mesmo
sem o contrato, extratos bancários poderiam passar a significar títulos
executivos.
22
Exatamente isso é o que ocorre na execução dos contratos de fornecimento, aos quais
a jurisprudência recorrentemente rejeita a natureza de título executivo (TJPR, Apelação
Cível nº 0512046-7; TJSP, AI nº 990.09.300536-0). Tais contratos são contratos-padrão,
ou contratos-quadro que visam a regular uma multiplicidade de negócios jurídicos dele
decorrentes. Quando se prevê multa compensatória pelo inadimplemento do contrato de
fornecimento (à qual também comumente se nega a eficácia executiva), calculada a partir,
por exemplo, do último fornecimento realizado (o qual consiste em um novo contrato que
integra o contrato de fornecimento e passa a dele fazer parte), fica evidente a liquidez da
obrigação. O contrato de fornecimento, ao se valer dos contratos dele derivados cumpre o
requisito de traçar diretrizes à apuração do quantum debeatur; além disso, utiliza negócio
jurídico de cuja formação participou ativamente o devedor.
23
Note-se que a sentença, em si mesma, não é líquida ou ilíquida, exigível ou inexigível. Tais
atributos dizem respeito à obrigação nela contida, como já se afirmou anteriormente. No
entanto, embora inadequada, a expressão “sentença ilíquida” já foi consagrada nos foros e
tribunais, tendo inclusive respaldo legal (art. 459, parágrafo único, do CPC).
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Liquidação de títulos executivos extrajudiciais 149
crédito, p. ex. Todos eles devem conter, sempre, a indicação precisa dos direitos que
confere (art. 889, do Código Civil), incluindo o valor correspondente (Anexo I, arts. 1º, 2,
e 75, 2, do Dec. nº 57.663/1966; art. 2º, V, da Lei nº 5.474/68; art. 1º, II, da Lei nº 7.357/85,
dentre outros). Nesse caso, a liquidez será indispensável à formação do título de cré-
dito enquanto instituto de direito material e, consequentemente, do título executivo.
Outros títulos, como é o caso do próprio contrato assinado por duas testemu-
nhas e da sentença condenatória genérica, existem e são perfeitamente válidos, ainda
quando omitido o quantum debeatur. Tendo em vista que o atributo da liquidez não
diz respeito aos títulos em si, nada interfere em sua validade, muito menos existência.
A iliquidez da obrigação implica, tal qual a exigibilidade, e enquanto perdurar o estado,
simplesmente a ineficácia do título executivo.24
24
Escreve Cândido Dinamarco sobre o assunto: “A doutrina, discorrendo com freqüência sobre
a integração do título pela liquidação, não esclarece se a sentença genérica não é ainda um
título, ou se é apenas um título hábil a propiciar uma liquidação judicial, não uma execução.
Ela é um título portador de eficácia executiva diferida, condicionada a uma liquidação futura.
Os atos extrajudiciais referentes a obrigações ilíquidas não terão essa eficácia jamais, sequer
diferida” (DINAMARCO. Instituições de direito processual civil, v. 4, p. 233). Como se pode perce-
ber, a conclusão do Mestre é muito parecida com a aqui exposta. A diferença está unicamente
na crença acerca da possibilidade ou impossibilidade de liquidação dos títulos executivos
extrajudiciais.
25
Interessante notar a impropriedade terminológica do nosso Código de Processo Civil, ao
confundir certeza com liquidez. Pedido ‘certo’, ao contrário do que tentam fazer crer os arts.
286 e 459, parágrafo único, é o pedido relativo a uma tutela jurisdicional específica. O pedido
à condenação por danos materiais, por exemplo, deverá ser sempre certo, ainda quando não
se saiba o valor devido pelo réu. Trata-se da valiosa distinção entre an debeatur e quantum
debeatur.
26
DINAMARCO. Instituições de direito processual civil, v. 4, p. 713.
27
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Execução. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2007. p. 125.
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150 Rodrigo Ramina de Lucca
início pela liquidação, quando a sentença exequenda não fixar o valor da condena-
ção ou não lhe individuar o objeto”. Essa opção, porém, não era a mais apropriada.
Primeiramente porque se atribuía eficácia executiva aos títulos mesmo quando não
continham obrigações líquidas. Em segundo lugar, a liquidação tem natureza emi-
nentemente cognitiva, com função integrativa da sentença; inseri-la no processo de
execução era inadequado. Por fim, o conhecimento do quantum debeatur é um direito
tanto do credor, como do devedor.
Com o advento do Código de Processo Civil de 1973, a liquidação transformou-se
em processo autônomo, regido pelos arts. 603 a 611.28 A redação do art. 603 era a
seguinte: “Procede-se à liquidação, quando a sentença não determinar o valor ou não
individuar o objeto da condenação”.29
Após a Terceira Reforma do Código de Processo Civil e a adoção do chamado
“processo sincrético”, a liquidação passou a ser uma fase do processo, entre a fase cog-
nitiva e a fase executiva (arts. 475-A a 475-H). Por isso é que, agora, a parte contrária é
“intimada” do “requerimento de liquidação” (art. 475-A, §1º). É pacífico, no entanto, que
a liquidação serve para todos os títulos executivos judiciais (art. 475-N), de modo que,
em algumas hipóteses, a liquidação desenrolar-se-á em processo autônomo.
28
Nesse sentido, WAMBIER, Luiz Rodrigues. Liquidação da sentença. 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2000. Passim.
29
Note-se que o dispositivo não primava pelo rigor conceitual. O objeto da condenação é a
prestação obrigacional imposta ao réu, a qual deve ser sempre individualizada. O que pode
não ser individualizado é o valor desta prestação.
30
Dentre muitos outros, DINAMARCO. Instituições de direito processual civil, v. 4, p. 714-715;
THEODORO JÚNIOR. Curso de direito processual civil, v. 2, p. 90; ZAVASCKI. Título executivo...,
p. 170; WAMBIER; ALMEIDA; TALAMINI. Curso avançado..., v. 2, p. 97-98; DIDIER JÚNIOR et al.
Curso de direito processual civil..., p. 111-112. Esse posicionamento vem sendo exarado desde
que promulgado o Código, como bem demonstram as lições de LIMA, Alcides de Mendonça.
Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1974. v. 6, t. II, p. 407.
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Liquidação de títulos executivos extrajudiciais 151
O título extrajudicial, para que exista como tal, há de ser sempre líquido.
Ou é ele líquido, e então se caracteriza como título executivo, ou então,
se for ilíquido, não há título algum, ainda que em tese o documento em
questão fosse algum daqueles enumerados no rol dos títulos extrajudi-
ciais. Ou seja, não há liquidação de título extrajudicial.31
31
WAMBIER; ALMEIDA; TALAMINI. Curso avançado..., v. 2, p. 98.
32
THEODORO JÚNIOR. Curso de direito processual civil, v. 2, p. 90.
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152 Rodrigo Ramina de Lucca
33
Citem-se como exemplos deste entendimento dois trechos da obra de Alcides de Mendonça
Lima: “Se houver certeza, e for ilíquida a obrigação, sua liquidação será possível na execução
de título judicial, mediante a fase prévia da ‘liquidação da sentença’, o que não ocorre, aliás,
com os títulos extrajudiciais (...)” (Comentários..., 1974, p. 407); “se, porém, for judicial, a sua
fixação deverá ser procedida por meio de ‘liquidação de sentença’, que é exclusiva daquela
classe, conforme as regras do Capítulo II deste Tít. I do Livro II (arts. 603 a 611); se, entretanto,
for extrajudicial, não permitirá a execução, pois a fixação não pode ser feita por aquela fase
prévia, cabendo ao credor usar, então, do processo de conhecimento” (Ibidem, p. 408-409).
34
Da mesma forma que uma “sentença ilíquida” não tem autoridade inferior à da “sentença
líquida”. A diferença está na eficácia de cada uma delas.
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Liquidação de títulos executivos extrajudiciais 153
credor. Nada impede, porém, que o valor seja apurado anteriormente, seguindo-se
um rito com esse propósito específico.
Exigir do credor que proponha uma demanda condenatória para, unicamente,
apurar o quantum debeatur, discutindo-se um direito garantido por um documento ou
ato de cuja produção participou o próprio devedor, é absolutamente desarrazoado e
injustificável.
35
MARINONI; ARENHART. Execução, p. 433.
36
Ibidem, p. 434.
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154 Rodrigo Ramina de Lucca
A ideia encontra inegável respaldo legal nos artigos 627, §2º, 633, parágrafo
único e 638, parágrafo único do CPC, os quais permitem que seja utilizado o procedi-
mento de liquidação em processo de execução de título executivo extrajudicial. Tais
dispositivos, aliás, permitem a liquidação e posterior execução de obrigação que nem
mesmo consta do título executivo, pois se referem à conversão em perdas e danos de
obrigação específica inadimplida.
Note-se que o art. 643 também prevê a conversão em perdas e danos de obriga-
ção de não fazer inadimplida, mas se omite quanto à liquidação. Naturalmente, a liquida-
ção também é permitida, seja pelo local em que está inserida a norma (Capítulo III – Da
Execução das obrigações de fazer e de não fazer), seja pela vedação ao tratamento desigual
a situações idênticas.
Tudo isso demonstra a irracionalidade de exigir-se do devedor a instauração de um
processo de conhecimento apenas para que seja apurado o quantum debeatur, quando
existe um instrumento em nosso ordenamento jurídico justamente para esta finalidade.
37
Ibidem, p. 433-434.
38
Ibidem, p. 434.
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Liquidação de títulos executivos extrajudiciais 155
executivos. Em segundo lugar, o simples oferecimento de embargos monitórios pelo
devedor, os quais independem de qualquer segurança do juízo e suspendem a eficácia
do mandado de pagamento inicial, gera um verdadeiro processo de conhecimento,
processado pelo procedimento ordinário. Neste caso, que é infelizmente a regra, o
credor tem que partir do zero para receber o que lhe é devido. Daí ser facilmente
compreensível, como o próprio Ministro observara na ocasião, que o procedimento
monitório seja tão pouco utilizado e esteja, atualmente, em vias de extinção.39
39
Excelente a crítica que Carreira Alvim desferiu contra o procedimento monitório brasileiro: “O
credor, na monitória, coloca-se na situação de um passageiro que embarca num avião (rito
especial), para chegar rápido a seu destino (receber o crédito), mas corre o risco de chegar
a pé (rito ordinário), se o devedor vier a opor embargos” (Ação monitória e temas polêmicos
da reforma processual. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 34). José Rogério Cruz e Tucci
há quase uma década previu o insucesso da monitória, assinalando que “à míngua de dados
estatísticos acerca do número de execuções embargadas, e tendo-se em conta a notável am-
pliação do rol de títulos executivos extrajudiciais (art. 585) efetivada pela Lei 8.953/94, o incre-
mento na utilização da demanda de natureza monitória somente será verificado com o passar
do tempo” (Ação monitória: Lei 9.079, de 14.07.1995. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2001. p. 104).
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156 Rodrigo Ramina de Lucca
5 Conclusão
Diante da extinção em Portugal,em 1832, da ação decendiária, presente naquele
país desde as Ordenações Manuelinas, Manuel Antonio Coelho da Rocha escreveu: “hoje
o crédor, que se apresenta em juizo com a certeza na mão, não merece mais attenção, do
que o outro, que se apresenta embrulhado na capa da duvida”.40
Essa brilhante observação é perfeitamente aplicável, nos dias de hoje, ao cre-
dor que possui um título executivo ‘ilíquido’. Possui muito provavelmente um direito
violado pelo devedor, mas, ainda assim, impõe-se-lhe um processo de conhecimento
apenas para que seja apurado o valor que tem a receber. Embora tenha “a certeza na
mão”, é equiparado ao credor “embrulhado na capa da dúvida”.
A lei não exige que o título executivo ‘nasça’ com uma obrigação líquida. Exige
que a execução inicie-se com um título executivo que contenha uma obrigação certa,
líquida e exigível. Nada mais natural, portanto, que a obrigação ilíquida seja liquidada
mediante um procedimento adequado, garantindo-se ao credor a posterior satisfação
de seu direito.
Vários são os títulos executivos extrajudiciais naturalmente ‘ilíquidos’. É preciso
dar efetividade ao comando legal que os instituiu.
Nem o processo monitório nem o processo de conhecimento são alternativas
à liquidação da obrigação contida no título. A tutela condenatória serve para impor
ao devedor a obrigação de pagar em razão da existência e exigibilidade (presente ou
futura) de um direito subjetivo. Nos casos em que o credor possui um ‘título ilíquido’,
nada disso exige análise judicial (ao menos não por sua iniciativa). Quanto ao processo
monitório, reiteram-se as observações feitas no ponto 4.5 deste trabalho. O título exe-
cutivo é mais do que mera prova do crédito.
A liquidação de obrigações derivadas de títulos executivos extrajudiciais não é
estranha ao nosso ordenamento jurídico. Convertida a obrigação de dar, fazer ou não
fazer em perdas e danos, utiliza-se o procedimento de liquidação de sentença para
a apuração do quantum debeatur. O mesmo deve ocorrer quando o título executivo
extrajudicial contém uma obrigação ilíquida.
LUCCA, Rodrigo Ramina de. Liquidação de títulos executivos extrajudiciais. Revista Brasileira de
Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 141-156, abr./jun. 2012.
40
ROCHA, Manuel Antonio Coelho da. Instituições de direito civil portuguez. 5. ed. Coimbra:
Imprensa da Universidade, 1867. t. I, p. 297. Disponível em Google Books.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 141-156, abr./jun. 2012
A aplicabilidade da multa por litigância
de má-fé aos advogados atuantes no
processo
Gabriel Freitas Maciel Garcia de Carvalho
Bacharel em Direito (UFMG). Especialista em Direito
Processual Civil (PUC Minas). Assessor Judiciário (TJMG).
E-mail: <carvalholuz@gmail.com>.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 157-181, abr./jun. 2012
158 Gabriel Freitas Maciel Garcia de Carvalho
1 Introdução
Este trabalho pretende, por meio do estudo do instituto da litigância de má-fé
e dos pressupostos e consequências da aplicação de suas sanções, de acordo com a
abrangência que se lhe confere, analisar a possibilidade e a necessidade da aplicação da
multa por má-fé processual aos advogados. Objetiva-se ampliar a eficácia do instituto,
de acordo com os fins a que se propõe, e, consequentemente, conferir maior efetividade
ao direito material, fim e razão de existência do processo.
Parte-se da verificação das razões de ser do repúdio às práticas de deslealdade
processual e das sanções que buscam coibir a atuação ímproba, com o fim de diag-
nosticar o potencial grau de sua eficácia de acordo com o âmbito de aplicabilidade
que é hoje reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência às sanções previstas no
art. 18 do Código de Processo Civil (CPC) e em outros dispositivos esparsos.
Posteriormente, faz-se necessário o estudo do processo como instrumento de
atuação da jurisdição e, assim, da lealdade processual como questão de ordem pública
a ser tutelada pelo Estado, de modo a garantir que a solução definitiva dos conflitos
que lhe são submetidos seja aquela que melhor efetive o ordenamento jurídico que o
sustenta, o que o legitima como tal.
Por fim, propõe-se o aprofundamento na realidade processual, pela identifica-
ção de hipóteses de condutas de má-fé imputáveis exclusivamente aos advogados
atuantes no processo, o que permitirá verificar a eficácia da abrangência limitada das
sanções previstas no CPC, de acordo com o fim estatal de promover a justiça e preservar
a legitimidade do monopólio da jurisdição.
A partir de considerações doutrinárias e do cotejo com casos já reconhecidos pela
jurisprudência como justificadores da sanção aos advogados, propor-se-á a extensão da
interpretação atualmente conferida ao instituto, para que passe a responsabilizar os reais
agentes da deslealdade processual, como forma de potencializar o grau de realização dos
seus objetivos.
Como lembra Stoco (2002, p. 45):
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 157-181, abr./jun. 2012
A aplicabilidade da multa por litigância de má-fé aos advogados atuantes no processo 159
Dentre os que se dedicaram de modo mais aprofundado à questão, e, em par-
ticular, trataram da (im)possibilidade de responsabilização de advogados dentro do
próprio processo, destaca-se Stoco (2002, p. 92), cujo posicionamento é no sentido de que
“o procurador das partes em juízo (defensor ou advogado) não responde pessoalmente
por má-fé processual”. Em sentido contrário, há autores que defendem a necessidade de
alteração legislativa para que se possa avançar na aplicação das penalidades, como por
exemplo, Leão (1986).
Observa-se que o tratamento dado pela doutrina é bastante conservador e
legalista, evitando, na maioria das vezes, a crítica, que pode ensejar um aprofunda-
mento da discussão.
A partir da concepção de obrigação processual (OCHOA MONZÓ, 1997, p. 35),
buscar-se-á, por meio de fontes doutrinárias e jurisprudenciais, demonstrar os caminhos
para a efetiva utilização do instituto.
2 A litigância de má-fé
A exigência de que a lide se desenvolva baseada na ética e na verdade é princípio
consagrado no direito processual, ainda quando não se encontra positivado, já que se
trata de ordem mais elevada do que o próprio direito positivo.
O repúdio e a repressão às práticas de deslealdade processual são uma constante
em todos os Códigos de Processo Civil dos países mais civilizados, conforme Stoco
(2002). A imposição de que a tutela jurisdicional se construa sobre premissas idôneas e
seguras é consequência da necessidade de preservação do direito — e do Estado que
ele sustenta —, o que se dá pela sua aplicação da forma mais efetiva possível.
Stoco (2002) ensina que, no Brasil, o ordenamento jurídico coíbe a improbidade
processual desde o tempo do império, havendo, posteriormente, o CPC de 1939 (Decreto-
Lei nº 1.608, de 18.09.1939) traçado regras em torno do princípio da probidade e vedado
o “abuso do direito de demandar”.
A má-fé processual nasce da atuação maliciosa do litigante em juízo, em ofensa
ao dever de lealdade, que atualmente se encontra positivado no art. 14 do CPC.1 Referido
dispositivo legal estabelece parâmetros de conduta processual dirigidos a “todos aqueles
que de qualquer forma participam do processo” e orientados pela verdade e pela boa-fé,
“Art. 14. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do
1
processo: I – expor os fatos em juízo conforme a verdade; II – proceder com lealdade e boa-fé;
III – não formular pretensões, nem alegar defesa, cientes de que são destituídas de funda-
mento; IV – não produzir provas, nem praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou
defesa do direito; V – cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar emba-
raços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final” (BRASIL, 1973).
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160 Gabriel Freitas Maciel Garcia de Carvalho
“pueden ser definidas como las prestaciones de dar, hacer o no hacer impuestas a las partes
2
o a terceros dentro del proceso cuya inobservancia lleva aneja una sanción jurídica” (OCHOA
MONZÓ, 1997, p. 35, tradução livre).
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A aplicabilidade da multa por litigância de má-fé aos advogados atuantes no processo 161
da causa e a indenizar a parte contrária dos prejuízos que esta sofreu, mais
os honorários advocatícios e todas as despesas que efetuou.
§1º Quando forem dois ou mais os litigantes de má-fé, o juiz condenará
cada um na proporção do seu respectivo interesse na causa, ou
solidariamente aqueles que se coligaram para lesar a parte contrária.
§2º O valor da indenização será desde logo fixado pelo juiz, em quantia
não superior a 20% (vinte por cento) sobre o valor da causa, ou liquidado
por arbitramento. (BRASIL, 1973)
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162 Gabriel Freitas Maciel Garcia de Carvalho
O conceito, adotado, com poucas variações, pela maior parte da doutrina, com-
põe-se, assim, de duas frações essenciais, que são a conduta típica (procedimentos
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A aplicabilidade da multa por litigância de má-fé aos advogados atuantes no processo 163
maliciosos) e a culpabilidade (dolo ou culpa). Tal elemento subjetivo é reconhecido
amplamente pela doutrina como condição para a imposição da sanção,3 já que o
ordenamento jurídico brasileiro adotou a chamada teoria subjetiva, sendo necessária
a verificação da “intencionalidade”, do “objetivo ilegal”, do “modo temerário” (STOCO,
2002, p. 93).
Segundo Stoco:
3
Esta noção é essencial à configuração do âmbito subjetivo de aplicabilidade das sanções por
litigância de má-fé, conforme se demonstrará adiante.
4
“Art. 16. Responde por perdas e danos aquele que pleitear de má-fé como autor, réu ou
interveniente”.
5
A interpretação restritiva geralmente conferida ao instituto com base neste dispositivo deve
ser analisada de modo crítico, verificando-se se é também consentânea a uma visão sistêmica
e teleológica, o que será feito com maior cuidado mais adiante.
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164 Gabriel Freitas Maciel Garcia de Carvalho
nada mais resta ao juiz do que oficiar ao órgão de classe, à Ordem dos
Advogados do Brasil, comunicando os fatos. Na Ordem, poderá o advogado
ser processado perante a Comissão de Ética, julgado e cominadas as penas.
(...)
Para o processo não há alteração, seja na conduta do advogado ou da
parte, o mau comportamento será sempre imputado à parte e sobre ela
recairão as condenações.
Condenada por litigância de má-fé, deve a parte, em se tratando de ato do
advogado, acionar-lhe regressivamente, nos termos do artigo 14, §4º, do
Código de Defesa do Consumidor. (2000, p. 71)
Como se vê, seja a parte pessoalmente culpada pela conduta desleal no curso do
processo ou não, responderá ela, no entender da doutrina e da jurisprudência majoritá-
rias, sujeitando-se às sanções legais. Caso seja o advogado o real culpado pela conduta de
má-fé processual, somente restará à parte ajuizar ação autônoma, pleiteando a reparação
perante seu procurador. No dizer de Leão, “a parte prejudicada, em ação regressiva,
poderá reaver, do seu procurador, o gasto que teve” (LEÃO, 1986, p. 41).
Tal solução, entretanto, deve ser observada sob um ponto de vista crítico, não
se podendo aceitar ingenuamente que o escopo do instituto da litigância de má-fé, ou
seja, a efetividade do direito discutido no processo, pela prevenção de práticas mali-
ciosas, será alcançado apenas indiretamente, pela ação voluntária de particulares que,
Do mesmo modo: “Responde por litigância de má-fé (arts. 17 e 18) quem causar dano com
6
sua conduta processual. Contudo, nos termos do art. 16, somente as partes, assim entendidas
como autor, réu ou interveniente, em sentido amplo, podem praticar o ato. Com efeito, todos
que de qualquer forma participam do processo têm o dever de agir com lealdade e boa-fé (art.
14, do CPC). Em caso de má-fé, somente os litigantes estarão sujeitos à multa e indenização a
que se refere o art. 18, do CPC” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 1.173.848/RS. Rel.
Min. Luis Felipe Salomão. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, 10 maio 2010).
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A aplicabilidade da multa por litigância de má-fé aos advogados atuantes no processo 165
buscando fim diverso, o de recomposição patrimonial, façam recair sobre os agentes
reais da má-fé a responsabilidade sobre sua conduta.
Mais: é por meio da interpretação sistemática e teleológica do instituto, ou seja,
de sua visualização sob a natureza publicística do processo e do dever do Estado de
levar a cabo com efetividade a função jurisdicional, que se poderá averiguar o grau de
eficácia de sua aplicação e buscar formas de torná-lo mais efetivo.
7
Dentre as diferentes teorias, destacam-se a ideia de processo como garantia, ou procedimento
em contraditório (GONÇALVES, 1992, p. 148-149) e a de instituição legitimadora da jurisdição,
pelo caráter dialógico-democrático da construção do provimento (LEAL, 2004, p. 95).
8
O caráter público do processo já há muito tempo é amplamente reconhecido pela doutrina
(CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2006, p. 296), que apenas referencia sua concepção
privatista no período anterior ao século XIX, em que se desenvolveram as teorias do processo
como contrato e quase-contrato (LEAL, 2004, p. 86-87).
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166 Gabriel Freitas Maciel Garcia de Carvalho
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A aplicabilidade da multa por litigância de má-fé aos advogados atuantes no processo 167
o sistema, quanto mais confiável, por se fundar na atuação leal em juízo, for o provimento
jurisdicional construído em contraditório.
Segundo Costa (2005, p. 196), “do momento em que o conceito público de pro-
cesso superou o conceito contratual, a obrigação de boa-fé da parte, com respeito ao
juiz, descende do vínculo de sujeição que liga o cidadão ao Estado, e que é a base do
sistema de composição coativa dos conflitos”. Assim, todo e qualquer cidadão atuante
no processo, por manter o mesmo vínculo com o Estado, tem a obrigação de agir de
boa-fé, sujeitando-se, portanto — já que à obrigação é ínsita a sanção —, às penalidades
previstas em lei.
Nesse sentido, a atuação dos tribunais deve ser inflexível, pois somente por
meio da efetiva coibição da má-fé processual se poderá otimizar a “utilidade” do pro-
cesso. O Supremo Tribunal Federal (STF), não obstante a ainda limitada interpretação
que confere ao instituto, reconhece este dever:
Mais do que nunca, o processo deve ser informado por princípios éticos.
A relação jurídica processual, estabelecida entre as partes e o juiz, rege-se
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 157-181, abr./jun. 2012
168 Gabriel Freitas Maciel Garcia de Carvalho
Redação anterior: “Art. 18. O litigante de má-fé indenizará à parte contrária os prejuízos que
9
esta sofreu, mais os honorários advocatícios e todas as despesas que efetuou”. Nova redação,
antes da alteração realizada pela Lei nº 9.668, de 23.06.1998: “Art. 18. O juiz, de ofício ou a
requerimento, condenará o litigante de má-fé a indenizar à parte contrária os prejuízos que
esta sofreu, mais os honorários advocatícios e as despesas que efetuou”.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 157-181, abr./jun. 2012
A aplicabilidade da multa por litigância de má-fé aos advogados atuantes no processo 169
Ressalta-se que a parte prejudicada pela má-fé processual continua legitimada a
requerer a punição do ofensor e a reparação dos danos que tenha sofrido,10 sendo este
apenas mais um escopo do instituto da litigância de má-fé, mas que não pode ocultar
o seu fim principal, de preservação da legitimidade da atuação jurisdicional do Estado.
Ora, se não é mais necessário o requerimento da parte contrária para que haja a
repressão da conduta maliciosa, é evidente o reconhecimento pela lei de que não é a
ofensa ao direito de outrem que justifica a punição, mas, sim, a ofensa à ordem jurídica
como um todo e à sociedade em geral. Assim, como “a atitude ímproba é mais ultra-
jante à justiça como entidade do que à parte contrária” (STOCO, 2002, p. 100), cabe ao
Estado atuar da forma mais efetiva possível, não para remediar o dano sofrido pelo
outro litigante, mas para assegurar àquele que desobedeceu ao dever de lealdade que
sua conduta não será tolerada e que futuros desvios serão também coibidos.
Na busca dessa efetividade, faz-se necessário transcender os atuais limites que
geralmente se veem à autoridade do Estado-Juiz para aplicar as sanções por litigância de
má-fé a quem quer que tenha agido em desconformidade ao dever de lealdade, restando
averiguar a posição dos representantes diretos das partes em juízo nesse contexto.
Neste caso, entende-se que não poderá o juiz, de ofício, determinar a indenização à parte
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contrária, sendo necessário o requerimento e a prova dos danos, por se tratar de direito
disponível, o que não é o caso da multa, que tem cunho eminentemente punitivo.
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170 Gabriel Freitas Maciel Garcia de Carvalho
(...) “4. Ademais, houve alteração da realidade fática, o que implica litigância de má-fé, nos
11
termos do art. 17, II, do CPC. 5. O patrono da agravante afirmou em seu Agravo Regimental,
por várias vezes, que a verba honorária foi arbitrada em R$30,00 (trinta reais), o que contraria
a verdade dos fatos e desrespeita a atividade jurisdicional. 6. A atuação do advogado afasta-se
da lealdade processual e abusa do direito de ação, razão pela qual deve ser cominada a multa
prevista no art. 18 do CPC: 1% sobre o valor da causa (atribuído pelo autor em R$889,00 reais).
É indevida a indenização, pois não houve dano evidente causado à impetrante. 7. Ainda que
de pequeno valor, a multa por litigância de má-fé deve ser prescrita por este Tribunal Superior,
dado o efeito pedagógico a ela inerente, evitando futuros recursos como o presente” (BRASIL.
Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1.167.320/RS. Rel. Min. Herman Benjamim. Diário da
Justiça Eletrônico, Brasília, 06 abr. 2010).
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A aplicabilidade da multa por litigância de má-fé aos advogados atuantes no processo 171
somente dentro da ótica defendida neste trabalho, mas mesmo sob o prisma do saber
vigente, já que, segundo a atual concepção conservadora, somente deve ser apurada
a responsabilidade do causídico em ação própria.
Dado o baixo conhecimento jurídico da sociedade em geral, as pessoas não podem
exercer controle efetivo sobre a atuação de seus representantes em juízo, situação que se
agrava pelo distanciamento que se verifica entre a linguagem do Direito e a linguagem da
sociedade. Esse fato impede até mesmo que a parte, condenada em juízo por deslealdade
processual, identifique na sentença que o resultado desfavorável se deveu à atuação do
profissional por ela escolhido, o que inviabiliza, na prática, a sua responsabilização em ação
própria. Segundo Stoco (2002, p. 113), “quase sempre a parte sequer tem conhecimento da
atuação do seu representante judicial e o modo com que está se conduzindo”.
Como resultado, identifica-se a baixa efetividade das sanções aplicadas em
razão de má-fé processual, já que quando são, de fato, impostas, recaem sobre a pró-
pria parte. Prejudica-se, deste modo, tanto a função punitiva, já que não se pune o
real culpado, causando injustiça de fato, como a função preventiva, já que na grande
maioria das vezes são as partes litigantes eventuais, que vão a juízo em situações
excepcionais e, por isso mesmo, o “aprendizado” por elas adquirido não gera as con-
sequências pretendidas.
Ora, se desde logo já se pode saber que somente o advogado poderia urdir o
ato malicioso, dada a sua natureza processual e técnica, não se pode permitir, dentro
da atual concepção de processo, voltada que é para a efetividade e para a realização
da justiça, que a punição recaia sobre quem não praticou, e nem poderia, a conduta
maliciosa. Do contrário, restaria malferido um dos requisitos unanimemente reconhe-
cidos pela doutrina para a aplicação da sanção, que é a culpabilidade.
A culpabilidade em grande parte dos casos de má-fé processual recai sobre o
advogado, não se podendo afirmar que a parte, desconhecedora da técnica processual,
tenha tido a intenção de praticar a conduta contrária à boa-fé. Assim, não pode ser
punida a parte quando seja inequívoca a culpabilidade de seu representante.
Acresça-se o fato de que a limitada interpretação do âmbito de aplicabilidade da
multa constitui fator de enfraquecimento do dever de lealdade, não somente porque
a sanção deixa de atuar sobre o agente real da malícia, mas porque ela deixa, também,
de ser aplicada, já que os tribunais parecem reconhecer a injustiça de se punir a parte
em razão da conduta de seus procuradores e por isso, muitas vezes, não aplicam as
penas do art. 18 do CPC.
Já advertia Pontes de Miranda (1979, p. 392) que “no espírito de juízes estava,
quase sempre, a suspeita de que mais responsáveis eram os advogados, suscitadores
das demandas, do que as partes mesmas, e condenar a essas, e não aqueles, orçaria
por injustiça social”.
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172 Gabriel Freitas Maciel Garcia de Carvalho
Tal situação foi reconhecida também por Oliveira (2000, p. 45), para quem “os
tribunais têm sido omissos quanto à aplicação das sanções dos arts. 16 e 18 do CPC”.
Segundo a autora, são duas as principais razões da omissão:
A não aplicação da multa ao sujeito que efetivamente praticou o ato malicioso torna
inócua a disposição do art. 14 do CPC, que estabelece o dever de lealdade para todos os
que participam do processo, já que faz dela uma obrigação processual sem sanção.
É importante remarcar que o art. 18 do CPC, diferentemente do art. 16 — que
dispõe exclusivamente sobre o dever de indenizar, conforme Alvim (1996) —, não faz
qualquer menção à qualidade das pessoas sujeitas à sanção nele estabelecida, repor-
tando-se somente à expressão “litigante de má-fé”, cuja definição se encontra no art. 17,
que também não limita a amplitude subjetiva. Mais: o §1º do art. 18 do CPC12 prevê
expressamente a condenação proporcional ou solidária daqueles que se coligaram na
conduta desleal, não fazendo distinção entre partes ou demais partícipes do processo.
Assim, tanto os procuradores quanto qualquer outra pessoa coligada (peritos, serven-
tuários, curadores, etc.) devem se sujeitar à sanção.
Não obstante a constatação da inefetividade das sanções por litigância de má-
fé em razão da interpretação restritiva que se lhe dão, persistem os tribunais na resis-
tência a uma visão mais ampla, compreensiva dos modernos anseios da jurisdição, muitas
vezes amparados em concepções conservadoras e que compactuam, por omissão, com as
condutas desleais.
Os obstáculos geralmente entrevistos pela doutrina e pela jurisprudência à
aplicabilidade da multa por litigância de má-fé a advogados se fundam apenas em
interpretações limitadas de dispositivos legais, interpretações estas conservadoras e
que, como se demonstrou, não resistem a uma análise teleológica do instituto.
“§1º Quando forem dois ou mais os litigantes de má-fé, o juiz condenará cada um na
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A aplicabilidade da multa por litigância de má-fé aos advogados atuantes no processo 173
Costuma-se afirmar que o art. 16 do CPC é categórico ao limitar a autor, réu ou
interveniente o conceito de litigante de má-fé. De fato, referido dispositivo exclui de
seus destinatários pessoas outras que não as partes, parecendo não deixar margem à
recondução do instituto à sua ratio legis.
Entretanto, referida regra, interpretada com base nos postulados da efetividade
do processo e da realização da justiça, não constitui óbice intransponível à evolução
do instituto. Ao contrário, reforça afirmação aqui já referida no sentido de que quando
se tratar de reparação de danos causados por má-fé processual está-se na seara do
direito privado, limitando-se a responsabilidade às regras ordinárias do Direito Civil,
de modo que respondem somente as partes.
Isso porque a redação da norma se refere expressamente à responsabilidade
por “perdas e danos”, ou seja, fica excluída da limitação imposta pela lei a hipótese
de condenação ao pagamento de multa, sanção esta, diferentemente da indenização,
destinada à repressão da conduta maliciosa e a desestimular a sua reiteração em outras
ocasiões, seja no curso da mesma relação processual, seja em outros processos. Como
reforço à ideia, observa-se que a expressão litigante de má-fé, utilizada pelo art. 18,
foi expressamente definida pelo art. 17, não pelo art. 16 do CPC. Assim, quando não se
tratar de perdas e danos não se pode utilizar o art. 16 do CPC para excluir a responsa-
bilidade do causídico pela atuação desleal no processo.
Outro óbice geralmente levantado pela doutrina se encontra na regra do art. 32,
parágrafo único, da Lei nº 8.906, de 04.07.1994 (Estatuto da Advocacia): “em caso de lide
temerária, o advogado será solidariamente responsável com seu cliente, desde que coli-
gado com este para lesar a parte contrária, o que será apurado em ação própria” (BRASIL,
1994). Assim, a necessidade de que a responsabilidade do advogado seja apurada em ação
própria é apontada como o grande trunfo da advocacia, incluído em sua lei corporativa,
para tornar inefetiva a regra prevista no caput do dispositivo, segundo a qual o advogado é
responsável pelos atos que, no exercício profissional, praticar com dolo ou culpa.
Entretanto, também esta hipótese não parece ter força suficiente para resistir à
premente necessidade de que o processo seja imbuído de lealdade e efetividade, para
que alcance a promoção da justiça e a pacificação social.
A leitura atenta da norma revela que se destina ela à hipótese em que um
terceiro, estranho à relação cliente/advogado, seja prejudicado pela atuação coligada
de ambos, normalmente a parte contrária ao cliente. Assim, a referida norma não
pode servir à limitação da aplicação da multa por litigância de má-fé diretamente ao
advogado, já que dela não se pode inferir a exigência de que o cliente, condenado no
processo, tenha que mover ação própria para reaver do profissional os prejuízos que
teve por sua conduta desleal, o que seria até mesmo antieconômico.
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174 Gabriel Freitas Maciel Garcia de Carvalho
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A aplicabilidade da multa por litigância de má-fé aos advogados atuantes no processo 175
estatutos da OAB. Essa sujeição exclusiva não ocorre no plano processual,
civil e penal, senão apenas no âmbito administrativo-disciplinar, perante o
Conselho de Ética de sua entidade de classe.
A sujeição exclusiva dos advogados ao seu órgão de classe, como forma de sub-
traí-los ao controle da lealdade processual exercido pelo juiz, não se coaduna com o
dever do Estado de manter um ambiente democrático e confiável de construção do
provimento jurisdicional. Se o Estado deve zelar para que o processo se desenvolva sob
bases éticas, o controle sobre a atividade do advogado não pode ser legado exclusiva-
mente ao órgão classista, corporativista por natureza. Ademais, são distintos os escopos
do controle exercido pelo diretor do processo e aquele exercido pelo órgão de classe.
No primeiro caso, objetiva-se preservar a legitimidade da jurisdição e a justiça da
decisão, enquanto no segundo intenciona-se preservar a ética no exercício da profissão,
como forma de defesa da própria classe, já que sempre haverá outro advogado do lado
contrário e já que se trata de mecanismo de depuração dos desvios que diuturnamente
desacreditam a própria classe.
Assim, partindo-se de uma interpretação sistemática das normas processuais e
materiais, inexiste impedimento a que todos os partícipes do processo, sem exceção,
possam ser sancionados no caso de descumprimento do dever de lealdade, indepen-
dentemente do controle externo exercido por instituições de classe a que pertençam.
Não se pode concordar com a conclusão fatalista de Leão (1986, p. 42) para quem
“não há norma processual a respeito da forma de punir o advogado que agir de má-fé”. Ao
contrário, o intérprete da lei deve se orientar por considerações mais adequadas aos fins
sociais do Direito, como determina o art. 5º da Lei nº 4.657, de 04.09.1942 (Lei de Introdução
às normas do Direito Brasileiro). O próprio autor faz a crítica:
Acrescenta o autor que “é preciso punir o advogado sem ética, sem lei, ao invés
da tolerância e, quiçá, do elogio às suas ‘habilidades’” (LEÃO, 1986, p. 43). Nesse sen-
tido, há já decisões, mais consentâneas aos modernos anseios do Processo Civil, que
reconhecem, no próprio processo em que ocorreu o ato desleal, a responsabilidade
dos advogados nele atuantes. Cita-se, como exemplo, acórdão do Tribunal de Justiça
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176 Gabriel Freitas Maciel Garcia de Carvalho
(...) Ademais, todos têm o dever de agir em juízo com lealdade e boa-fé,
inclusive os advogados. Além disso, o advogado, mais do que simplesmente
defender os interesses do seu cliente a qualquer custo, desempenha função
essencial à Justiça (artigo 133 da Constituição da República). E isso especial-
mente em casos como o presente, no qual o interesse prevalente não é do
autor/apelante ou o da ré/apelada, mas sim o da criança.
No caso, é tão grande a enxurrada de ações e recursos intentados pelo
apelante, e todos baseados em alegações comprovadamente falsas e
inverídicas, em pretensões totalmente infundadas e meramente procras-
tinatórias, que se mostra de rigor concluir pela responsabilidade solidária
do advogado, na conduta processual de má-fé aqui neste processo... (RIO
GRANDE DO SUL. TJRS. Ap. nº 70037053329, Rel. Des. Rui Portanova.
Diário da Justiça, Porto Alegre, 25 nov. 2010)
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A aplicabilidade da multa por litigância de má-fé aos advogados atuantes no processo 177
causa, mas também a indenização de 5 % do mesmo valor — que, conforme já exposto,
deveria ser precedida de prévio requerimento e apuração dos danos efetivamente sofri-
dos, além de dever ser suportada inicialmente pela própria parte.
No mesmo sentido do julgamento citado, outro acórdão relatado pela e. Ministra
Eliana Calmon:
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178 Gabriel Freitas Maciel Garcia de Carvalho
5 Conclusão
A análise do instituto da litigância de má-fé e de seu âmbito subjetivo de incidência
limitado pela interpretação conservadora atualmente vigente permitiu vislumbrar o baixo
grau de efetividade das sanções previstas em lei contra a conduta desleal no processo.
Como se viu, a eficácia da sanção deve ser buscada por meio da interpretação
sistemática e teleológica do instituto, ou seja, de sua visualização sob a natureza publi-
cística do processo e do dever do Estado pós-liberal de desempenhar com efetividade
a função jurisdicional.
A partir do desenvolvimento da concepção de obrigação processual, à qual
é ínsita a ideia de sanção, como mecanismo que garante a observância das normas,
chegou-se à conclusão de que todas as pessoas envolvidas no processo se sujeitam
ao controle do Estado, que deve agir com rigor na preservação da ética no processo.
Somente assim poderá orientar a conduta das partes no sentido de se chegar à solução
mais próxima possível da justiça do caso concreto.
Tal orientação se desempenha como forma de resguardar a dignidade do
Poder Judiciário como agente do monopólio estatal da jurisdição, exercendo função
pedagógica, ao incutir nas partes o valor da lealdade processual.
Assim, não pode o Estado relegar a terceiros, sejam eles a própria parte ou
o órgão de classe, a atuação corretiva contra aqueles que se utilizam de sua função
essencial à Justiça para promover o locupletamento próprio ou alheio à custa do dever
de lealdade processual. Tal conclusão se assenta no reconhecimento de que não é a
ofensa ao direito de outrem que justifica a punição, mas, sim, a ofensa à ordem jurídica
como um todo e à sociedade em geral.
Destarte, a atuação mais correta possível da jurisdição, ou seja, a efetivação
do direito posto pelo Estado, e que lhe sustenta, responde aos modernos anseios do
direito processual para o qual tanto mais útil será o processo, e, portanto, mais legíti-
mo o sistema, quanto mais confiável for. Isso depende de que o Estado desempenhe
peremptoriamente seu dever de garantir um espaço ético de discussão propício à
construção da justiça no caso concreto.
Nesse sentido, como se demonstrou, a boa utilização das ferramentas processuais,
como a efetiva aplicação da multa por litigância de má-fé, possibilita ao magistrado, no
contexto do processo, promover a conscientização dos atores processuais, especialmente
dos advogados, contribuindo para o aprimoramento da distribuição da justiça, seja em seu
aspecto qualitativo, seja no que diz respeito à tempestividade da resposta jurisdicional.
Conclui-se, assim, que o ordenamento jurídico vigente possibilita a aplicação di-
reta, no curso do processo, da multa por litigância de má-fé ao advogado nele atuante
e que tenha agido com culpa na violação da obrigação processual de agir com lealdade.
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A aplicabilidade da multa por litigância de má-fé aos advogados atuantes no processo 179
Diante da constatação de que não são as reformas legislativas do procedimento
e a alteração da sistemática processual que promoverão a tão almejada efetividade do
Direito, mas, sim, a alteração da mentalidade dos atores sociais e processuais, afirma-
se que a evolução do instituto da litigância de má-fé poderá contribuir para o alcance
de uma Justiça adequada e que resolva o conflito a tempo de minorar os impactos da
violação do direito.
Certamente que tal situação está condicionada ao desenvolvimento cultural do
país, aos investimentos em educação e ao aprimoramento das formas de seleção e for-
mação de magistrados, serventuários, advogados e “operadores do direito” em geral.
Somente com o fim da cultura do litígio, com a valorização da resolução extrajudicial
dos litígios, por meio da mediação, e com a construção de uma sociedade mais dialógica
e democrática se poderá alcançar uma justiça que seja plena.
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R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 157-181, abr./jun. 2012
Ius postulandi na Justiça do Trabalho –
Acesso à justiça ou injustiça?
Lícia Bonesi Jardim
Mestranda em Direitos e Garantias Fundamentais
pela FDV. Especialista em Direito e Processo
do Trabalho pela FDV. Professora Universitária.
Servidora Pública Federal do Tribunal Regional do
Trabalho da 1ª Região.
1 Introdução
A efetivação da garantia constitucional de acesso à justiça, constitucionalmente
prevista no art. 5º, XXXV, é bastante discutida na atualidade. Com a criação do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) com a EC nº 45/04 e com as constantes reclamações da sociedade
sobre a morosidade do Poder Judiciário, o que se busca nos dias atuais é muito mais do que
a simples propositura de uma ação, mas sim um processo efetivo e com um resultado justo.
Atualmente, para que tal garantia seja concretizada, não basta tão somente a
“entrada” no Poder Judiciário, mas sim que a saída deve ser de uma forma justa, sob
pena de total desrespeito ao art. art. 5º, XXXV da CF/88. Assim, deve-se buscar meios
para garantir a efetividade e a justiça dos processos.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 183-198, abr./jun. 2012
184 Lícia Bonesi Jardim
Criado como forma de facilitar o acesso à justiça, o ius postulandi, que significa
o direito da parte de requerer sozinha em juízo, sem a contratação de advogado, está
previsto no ordenamento jurídico brasileiro. Na seara trabalhista, por exemplo, tal ins-
tituto se encontra disposto no art. 791 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Entretanto, o que resta, a saber, é que se nos dias atuais o ius postulandi das
partes no processo do trabalho constitui um benefício para as partes no que tange à
garantia do acesso à justiça ou se é uma injustiça pelo modo como o processo se encon-
tra e como as lides são postas. O presente trabalho se propõe construir um raciocínio
que analise, a partir do conceito de acesso à justiça e de sua atual concepção, se o ius
postulandi é uma justiça ou uma injustiça.
Considerando esse pano de fundo, o artigo se desenvolve em três seções, além
desta introdução. Na primeira, faz-se um estudo sobre o ius postulandi, destacando
seu conceito, suas características e os aspectos polêmicos sobre tal instituto. A segunda
seção discorre sobre a garantia de acesso à justiça no que tange ao direito da parte
de postular, e sobre se esta faculdade das partes concretiza aquela garantia ou se, na
verdade, em face da complexidade das lides e do processo em geral, o instituto se
constitui como uma injustiça para as partes. Ao final, são apresentadas as conclusões,
sintetizando os principais argumentos aduzidos no decorrer deste estudo.
1
MARTINS, Sérgio Pinto. Direito processual do trabalho: doutrina e prática forense. 32. ed. São
Paulo: Atlas, 2011. p. 185.
2
Art. 9º da Lei nº 9.099/95: “Nas causas de valor até vinte salários mínimos, as partes compare-
cerão pessoalmente, podendo ser assistidas por advogado; nas de valor superior, a assistên-
cia é obrigatória”.
3
Art. 2º da Lei nº 5.478/68: “O credor, pessoalmente, ou por intermédio de advogado, dirigir-se-á
ao juiz competente, qualificando-se, e exporá suas necessidades, provando, apenas, o paren-
tesco ou a obrigação de alimentar do devedor, indicando seu nome e sobrenome, residência
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Ius postulandi na Justiça do Trabalho – Acesso à justiça ou injustiça? 185
Na esfera penal, de acordo com o art. 654 do CPP,4 o habeas corpus, que poderá
ser impetrado por qualquer pessoa. Ademais, o art. 623 do CPP, também autoriza a
postulação sem profissional legalmente habilitado do pedido de revisão.5
O art. 136 da Lei de Acidentes de Trabalho (Lei nº 6.367/76), por sua vez, traz
mais um exemplo de postulação pelas próprias partes, bem como o art. 1097 da Lei de
Registros Públicos (Lei nº 6.015/73) menciona hipótese de postulação sem advogado.
Outra hipótese do ius postulandi pelas partes é a prevista na Lei nº 818/49, em
seu art. 6º,8 que trata questões acerca da aquisição da nacionalidade brasileira, uma
vez que a própria parte poderá requerer a declaração da mencionada nacionalidade.
O art. 369 do CPC também permite a propositura de ação sem a presença de advogado
quando o próprio profissional estiver postulando em causa própria, na ausência de advo-
gado na localidade ou recusa ou impedimento dos profissionais que existirem na localidade.
O art. 1910 da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06) também permite requerimento
pela própria vítima das medidas protetivas de urgência. Por fim, tem-se outra hipótese
de ius postulandi prevista no processo do trabalho, art. 79111 da CLT, que dispõe do
direito das partes, no processo trabalhista, reclamante e reclamado, postularem e/ou
acompanharem as ações em que são partes, desassistidas por advogado habilitado.
Criado em 1943, com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e previsto no
art. 791 da CLT, como já mencionando, o ius postulandi significa o direito da parte de
postular sozinha em juízo, possibilitando assim um acesso à justiça pela própria parte,
diretamente. Renato Saraiva, corroborando o mesmo entendimento, afirma que “o
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186 Lícia Bonesi Jardim
princípio do ius postulandi da parte está consubstanciado no art. 791 da CLT, o qual
estabelece que os empregados e empregadores poderão reclamar pessoalmente
perante a Justiça do Trabalho”12 e continua, destacando que elas também poderão
“acompanhar as suas reclamações”.
De acordo com Ricardo Damião Areosa, o ius postulandi é a “capacidade postu-
latória da própria parte leiga na ciência jurídica, que tem a faculdade e o poder de agir
em um processo sem a assistência de um advogado”,13 e continua mencionando que
o ius postulandi autoriza ao reclamante “o comparecimento em audiência judicial sem
que esteja representado por um advogado, ou seja, por tal princípio não é necessário
advogado para ajuizar reclamação trabalhista”.14 Nesse sentido, escreve Carlos Henrique
Bezerra Leite que o ius postulandi “é a capacidade conferida por lei às partes, como sujei-
tos da relação de emprego, para postular diretamente em juízo, sem necessidade de serem
representadas por advogado”.15
Portanto, o direito de postular no processo do trabalho não é conferido somente
aos advogados, já que, por previsão expressa na CLT, às partes também é conferido
tal direito, como forma de facilitar o acesso à justiça no seu conceito de acesso ao
Judiciário. Thais Borges da Silva destaca que a inserção do ius postulandi no campo
processual trabalhista resultou “da preocupação do legislador com os entraves que
a situação econômica dos trabalhadores, hipossuficientes da relação trabalhista, e os
altos custos processuais ocasionam ao acesso à justiça”.16
Assim, a criação do instituto no processo do trabalho, no ano de 1943, foi com o
intuito de viabilizar o acesso do trabalhador à justiça, principalmente àquele que não
possui condições de contratar um advogado e não consegue assistência pelo Estado,
além de possibilitar o acesso ao Judiciário daquelas pessoas que não encontram advo-
gados nas localidades que residem ou laboram.
Contudo, a existência do ius postulandi no ordenamento jurídico no que tange ao
processo do trabalho, previsto na CLT desde 1943, vigorou sem qualquer controvérsia
até a Constituição Federal de 1988 (CF/88). Com a promulgação da atual Carta Magna,
passou-se a discutir se o art. 791 da CLT teria sido revogado ou não pelo art. 133 da CF/88
12
SARAIVA, Renato. Curso de direito processual do trabalho. 7. ed. São Paulo: Método, 2010. p. 202.
13
AREOSA, Ricardo Damião. Processo do trabalho: teoria geral do processo trabalhista e
processo de conhecimento. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 76.
14
Ibid., p. 76.
15
LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de direito processual do trabalho. 8. ed. São Paulo:
LTr, 2010. p. 386.
16
SILVA, Thais Borges da. A imprescindibilidade da instituição e o fortalecimento da defensoria
pública trabalhista para o alcance do acesso efetivo à justiça. Labor et Justitia – Revista do
Tribunal Regional do Trabalho da 17ª Região, Vitória, n. 4, p. 221, 2007.
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Ius postulandi na Justiça do Trabalho – Acesso à justiça ou injustiça? 187
e mais tarde, com o surgimento do Estatuto da OAB (Lei nº 8.906/94), a discussão se
tornou ainda maior.
O art. 133 da CF/88 dispõe que “o advogado é indispensável à administração da
justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos
limites da lei”. Já o art. 1º, I do Estatuto da OAB, prescreve que “são atividades privativas
de advocacia: I – a postulação a órgão do Poder Judiciário e aos juizados especiais”.
Desse modo, com o surgimento desses dois novos dispositivos legais mencio-
nando a presença obrigatória de advogado, o ius postulandi passou a ser questionado.
Alguns estudiosos passaram a entender que a possibilidade do ius postulandi teria
sido extinta, já que “o artigo 791 da CLT não teria sido recepcionado pela nova ordem
constitucional”17 e teria sido revogado pelo Estatuto da OAB.18
No entanto, o Supremo Tribunal Federal (STF), ante essa controvérsia, foi provo-
cado, em sede de controle concentrado de constitucionalidade, por meio da Ação Direta
de Inconstitucionalidade (ADI) nº 1.127-8, ajuizada pela Associação dos Magistrados do
Brasil, que tinha, como um de seus objetivos, a solução de tal cizânia. Assim, decidiu o
STF, por maioria dos votos, pela manutenção do ius postulandi em relação aos Juizados
de Pequenas Causas, a Justiça do Trabalho e a Justiça de Paz.19 Assim, o ius postulandi
no processo do trabalho continua em vigor como forma de facilitar o acesso ao Poder
Judiciário pelas partes, já que a contratação de um profissional habilitado para isso é
desnecessária.
Outro ponto que merece destaque é que em 2004, com a EC nº 45, o art. 11420 da
CF/88, que trata da competência da Justiça do Trabalho, foi significativamente modificado.
Ou seja, a Justiça Laboral que antes era competente para processar e julgar lides envol-
vendo somente relação de emprego, isto é, lides entre empregados e empregadores,
passou a ser competente para lides que envolvam relação de trabalho que é gênero,
17
Ibid., p. 386.
18
Ibid., p. 387.
19
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI-MC nº 1.127. Julgamento em 06.10.1994. Disponível
em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=346838>. Acesso
em: 23 out. 2011.
20
Art. 114. “Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: I - as ações oriundas da relação de tra-
balho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta
da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; II - as ações que envolvam exercício
do direito de greve; III - as ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos
e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores; IV - os mandados de segurança, habeas cor-
pus e habeas data, quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição; V - os
conflitos de competência entre órgãos com jurisdição trabalhista, ressalvado o disposto no art.
102, I, o; VI - as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de
trabalho; VII - as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pe-
los órgãos de fiscalização das relações de trabalho; VIII - a execução, de ofício, das contribuições
sociais previstas no art. 195, I, a, e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que
proferir; IX - outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei”.
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188 Lícia Bonesi Jardim
sendo a relação empregatícia somente uma única espécie. Assim, como a competência
dessa justiça especializada foi alargada, questiona-se se o ius postulandi se estende a
todos essas hipóteses de nova competência.
Há quem entenda que, como o art. 791 da CLT é claro ao mencionar empregado e
empregador, a postulação pelas próprias partes só caberia para lides envolvendo relação
de emprego. Deste modo, para tratar das demais matérias incluídas na competência da
Justiça do Trabalho pela EC nº 45, somente com a contratação de profissional habilitado
para postulação em juízo. O art. 791 da CLT é claro ao mencionar empregados e empre-
gadores, não abrangendo, portanto, as relações de trabalho,21 de maneira que “nos casos
que envolvam ação trabalhista ligada à relação de trabalho não subordinado, as partes
deverão estar representadas por seus advogados, não sendo aplicado o art. 791 da CLT,
que fica restrito a empregados e empregadores”.22
Ocorre que essa posição não é unânime. O próprio Tribunal Superior do
Trabalho,23 na 1ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, ocorrida em
2007, admitiu o ius postulandi nas lides decorrentes da relação de trabalho, e não
somente nas lides da espécie relação de emprego.
Apesar de se encontrar presente no ordenamento jurídico, ou seja, de sua admis-
sibilidade pelo TST24 e pela doutrina, este instituto não é muito utilizado. No Tribunal
Regional do Trabalho (TRT) da 17ª Região, especificamente nas Varas do Trabalho
da capital, durante o ano de 2010, o ius postulandi não representou quantidade sig-
nificativa. Analisando os dados fornecidos pelo TRT do Espírito Santo, constata-se
que esse direito que as partes possuem de postularem em juízo sem a presença de
advogados não é muito utilizado. Os gráficos a seguir (após a tabela) demonstram
essa não utilização do ius postulandi nas Varas do Trabalho de Vitória/ES.
A tabela a seguir traz o demonstrativo de reclamações totais (quinta coluna) por
mês no ano de 2010, separando-as por quantidades de reclamações verbais (segunda
coluna), reclamações escritas (terceira coluna) e reclamações redistribuídas (quarta
coluna). Deve-se observar que em relação aos dados do mês de setembro, não há infor-
mações sobre a quantidade de reclamações escritas e redistribuídas (marcou-se com *),
de modo que o total de reclamações ficou prejudicado neste mês (marcou-se com **).
21
SCHIAVI, Mauro. Manual de direito processual do trabalho. 4. ed. São Paulo: LTr, 2011. p. 291.
22
AREOSA, op cit., 2009, p. 288.
23
“JUS POSTULANDI. ART. 791 DA CLT. RELAÇÃO DE TRABALHO. POSSIBILIDADE. A faculdade de
as partes reclamarem, pessoalmente, seus direitos perante a Justiça do Trabalho e de acom-
panharem suas reclamações até o final, contida no artigo 791 da CLT, deve ser aplicada às
lides decorrentes da relação de trabalho”.
24
Súmula nº 425 do TST: “O jus postulandi das partes, estabelecido no art. 791 da CLT, limita-se às
Varas do Trabalho e aos Tribunais Regionais do Trabalho, não alcançando a ação rescisória, a ação
cautelar, o mandado de segurança e os recursos de competência do Tribunal Superior do Trabalho.”
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Ius postulandi na Justiça do Trabalho – Acesso à justiça ou injustiça? 189
Mês (2010) Verbais Escritas Redistribuídas Total
Janeiro 20 1151 0 1171
Fevereiro 25 1156 0 1181
Março 29 1648 0 1677
Abril 26 1478 0 1504
Maio 28 1539 0 1567
Junho 18 1420 0 1438
Julho 30 1509 0 1539
Agosto 24 1558 1 1583
Setembro 18 * * 18**
Outubro 20 1331 1 1352
Novembro 18 1464 1 1483
Dezembro 07 981 0 988
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190 Lícia Bonesi Jardim
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Ius postulandi na Justiça do Trabalho – Acesso à justiça ou injustiça? 191
destacadas as reclamações verbais (aproximadamente 1,69% do total) e as escritas
(aproximadamente 98,28% do total).
Uma análise da tabela e dos quatro gráficos acima apresentados deixa clara a bai-
xíssima utilização do instituto do ius postulandi das partes para ingressar com uma
reclamação trabalhista nas Varas do Trabalho de Vitória/ES. Isso permite a discussão de
se, atualmente, a possibilidade de as partes utilizarem-se do ius postulandi que lhes é
ofertado pelo art. 791 da CLT seria uma forma de acesso à justiça ou de acesso à injustiça
com a parte que vai ao judiciário em busca da obtenção de uma tutela, porém sem a
assistência de profissional legalmente habilitado (conforme previsão do art. 36 do CPC).25
25
Art. 36, do CPC: “A parte será representada em juízo por advogado legalmente habilitado.
Ser-lhe-á lícito, no entanto, postular em causa própria, quando tiver habilitação legal ou, não
a tendo, no caso de falta de advogado no lugar ou recusa ou impedimento dos que houver”.
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192 Lícia Bonesi Jardim
toda pessoa um serviço público essencial: o acesso a justiça”.26 Trata-se de garantia que
não significa somente o efetivo acesso ao Poder Judiciário, mas também uma presta-
ção jurisdicional de forma justa, pois, somente assim se terá realmente um acesso à
justiça, já que “todos têm a garantia constitucional de acesso à ‘justiça’. Não ao Poder
Judiciário, mas ao resultado justo que se espera do processo”.27
Mauro Cappelletti destaca que “o conceito de acesso à justiça tem sofrido uma
transformação importante, correspondente a uma mudança equivalente no estudo
e ensino do processo civil”.28 Assim, não é somente a propositura de uma ação que
garante de forma plena a garantia constitucional acima elencada. Muito mais, a presta-
ção da tutela jurisdicional pelo Estado tem que se dar de forma justa, ou seja, o processo
tem que ter uma duração razoável e um resultado justo para as partes. Deste modo,
acesso à justiça possui “um significado mais amplo, compreensivo de uma prestação
jurisdicional tempestiva (duração razoável do processo), adequada ao caso concreto,
efetiva e justa (acesso à ordem jurídica justa)”.29
26
LEITE, Carlos Henrique Bezerra. O acesso à justiça na perspectiva dos direitos humanos. In:
SIQUEIRA, Julio Pinheiro Faro Homem de; TEIXEIRA, Bruno Costa; MIGUEL, Paula Castello
(Coord.). Uma homenagem aos 20 anos da Constituição Brasileira. Florianópolis: Boiteux,
2008. p. 245.
27
BRASIL JÚNIOR, Samuel. Justiça, direito e processo: a argumentação e o direito processual de
resultados justos. São Paulo: Atlas, 2007. p. 149.
28
GARTH, Bryan; CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris,
1988. p. 9.
29
TESHEINER, José Maria. Sobre o direito fundamental de acesso à justiça. Revista Mestrado em
Direito, Osasco, v. 9, n. 2, p. 200, 2004.
30
ESTEVES, Carolina Bonadiman. Abuso do direito e abuso do processo: existem recursos pro-
telatórios?. In: MAZZEI, Rodrigo (Coord.). Questões processuais do novo Código Civil. São Paulo:
Manole, 2006. p. 89.
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Ius postulandi na Justiça do Trabalho – Acesso à justiça ou injustiça? 193
a justiça é representada como uma virtude dos indivíduos. Como todas
as virtudes, também a virtude da justiça é uma qualidade moral; e, nessa
medida, a justiça pertence ao domínio moral. (...) A justiça é, portanto,
a qualidade de uma conduta humana específica, de uma conduta que
consiste no tratamento dado a outros homens.31
Cláudio Pedrosa Nunes, por sua vez, conceitua justiça como sendo algo que
deveria “incutir no intérprete do Direito não uma mecânica de inserção automática
dos casos concretos à letra nua das normas escritas, a exemplo do que pretendem
alguns, mas sim concentrar essencialmente as virtudes da equidade, da dinâmica, da
justa distribuição de méritos e deméritos”.32
Miguel Reale explica que a justiça surgiu como
...uma modalidade de ordem posta pelos deuses. Themis e Diké eram a per-
sonificação da ordem divina, a que os seres humanos deviam obediência,
não podendo a justiça ser senão um fato, ou melhor, fado, que é o fato
envolto no mistério.33
31
KELSEN, Hans. O problema da justiça. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 3.
32
NUNES, Cláudio Pedrosa. O conceito de justiça em Aristóteles. Revista do Tribunal Regional do
Trabalho da 3ª Região, João Pessoa, v. 8, n. 1, p. 32, 2000.
33
REALE, Miguel. Problemática da justiça. Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª Região,
Brasília, v. 18, n. 4, p. 25, abr. 2006.
34
Ibid., p. 25.
35
Ibid., p. 25-26.
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194 Lícia Bonesi Jardim
Logo, pode-se dizer que tanto a ideia (aspecto objetivo) quanto o ideal (aspecto
subjetivo) de justiça, quando problematizados podem sê-lo em virtude dos mais varia-
dos problemas, sendo o acesso à justiça apenas um deles. Portanto, justiça seria conduta
de cada um de acordo com as normas jurídicas. Assim, hoje, o acesso a esta ordem, à
justiça, não pode ser entendido apenas como propositura de ações perante o Judiciário,
mas sim uma ordem nas suas soluções.
Deste modo, há uma discussão se o ius postulandi das partes seria uma forma
de garantir e facilitar o acesso à justiça ou se contribuiria para uma injustiça. Existem
tanto teorias a favor quanto contrárias ao direito de postular das próprias partes, sem
a contratação de advogado.
No que tange ao processo do trabalho, há quem defenda que o referido instituto
possui o intuito de facilitar o acesso à justiça, ou seja, ampliar esse acesso, já que garante
às partes o acesso mais fácil ao Poder Judiciário, sem a necessidade de advogado, já que
nem todos possuem capacidade financeira para contratação de profissional, e também
existem localidades que não possuem advogados suficientes para atender toda a demanda
da população. Assim, fazendo uso do ius postulandi, há uma verdadeira segurança de que
a garantia constitucional de acesso à justiça será efetivada.
Com base na lição de José Roberto Freire Pimenta, Mauro Schiavi afirma que
36
Ibid., p. 26.
37
SCHIAVI, op cit., 2011, p. 289.
38
LIMA, Enio Galarça. O acesso à justiça sob a ótica da justiça do trabalho. Revista de Processo,
ano 19, n. 73, p. 132-133, jan./mar. 1994.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 183-198, abr./jun. 2012
Ius postulandi na Justiça do Trabalho – Acesso à justiça ou injustiça? 195
Entretanto, tal posicionamento não é unânime. Há teóricos que destacam que o
ius postulandi causa muito mais malefícios que benefícios à parte que faz seu uso, pois,
atualmente, as lides trabalhistas são bem mais complexas do que eram há anos atrás,
quando o instituto foi criado. Assim, a postulação pela parte, por si só, se torna mais
uma injustiça do que realmente garantir um acesso à justiça, na sua atual concepção
de não somente propositura de ação.
Outro ponto que merece realce é que o processo em geral é bastante complexo, uma
vez que existem muitos termos técnicos, prazos, recursos, impugnações etc., e isso se torna
extremamente difícil para um leigo, no caso a parte, quando utiliza o ius postulandi. Até para
o advogado, profissional que estudou para estar ali, há situações extremamente complexas.
Thais Borges da Silva destaca que foi esquecida a
39
CRUZ, Paulo Roberto da. A impossibilidade da utilização do jus postulandi como fundamento
para o indeferimento de honorários de sucumbência nas causas trabalhistas que versem
sobre a relação de emprego. Revista de Direito do Trabalho, São Paulo, n. 132, p. 131, out./dez.
2008.
40
SILVA, op cit., 2007, p. 222.
41
NEGRISOLI, Fabiano. O jus postulandi na justiça do trabalho: irracionalidade que pode impossi-
bilitar a busca da verdade ou correção e impedir a concretização de direitos. Revista de Direitos
Fundamentais & Democracia, n. 4, p. 21-22, 2008.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 183-198, abr./jun. 2012
196 Lícia Bonesi Jardim
4 Conclusão
Diante do exposto, conclui-se que alguma providência tem que ser tomada para
que o acesso à justiça das partes no processo do trabalho seja assegurado de forma
plena, pois o ius postulandi, da forma como é posto no ordenamento, não assegura essa
garantia, mas sim contribui para uma verdadeira injustiça. Previsto no art. 791 da CLT, o
direito de postular sem advogado foi criado em época completamente diversa da atual,
quando as lides e a tramitação processual não eram tão complexas.
Permitir que as partes continuem a utilizar esse instituto causa muito mais
prejuízos que benefícios. Ora, a parte que postula sem o auxílio de um profissional
habilitado já parte de uma desigualdade para com a parte ex adversa, se essa tiver a
assistência de um profissional.
Ademais, em virtude da evolução da sociedade como um todo, os problemas
que originam uma reclamação trabalhista também evoluíram e, atualmente, são muito
mais complexos que de anos atrás. Deste modo, permitir um acesso por si só traz mais
desvantagens que vantagens, já que a garantia plena de acesso à justiça vai muito
além de uma simples “entrada” no Judiciário.
Na atual concepção dessa garantia, não basta garantir o ajuizamento de ações,
mas também uma tramitação processual com uma duração razoável e um resultado
para que o processo seja justo. Partes leigas, sem a assistência de profissionais habili-
tados, têm uma grande chance de não obterem uma justiça nas decisões proferidas,
ante o desconhecimento técnico para com a tramitação processual. É fato que até
advogados, que são detentores do conhecimento jurídico, enfrentam dificuldades,
quem dirá autores ou réus leigos desassistidos.
Assim, permanecer com o ius postulandi não concretiza a garantia constitucional
de acesso à justiça. Portanto, ante a essa realidade, e visando assegurar o acesso à justiça
daqueles que não possuem condições de arcar com os custos da contratação de um
advogado, o Estado deveria investir mais nas defensorias públicas para assistir essa parte
no processo do trabalho, não deixando que esta postule seu direito por si só. Além disso,
existem os sindicatos que também prestam assistência judiciária gratuita.
42
SILVA, op cit., 2007, p. 222.
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Ius postulandi na Justiça do Trabalho – Acesso à justiça ou injustiça? 197
Portanto, o ius postulandi da forma como é posto e aceito nos dias atuais não
pode prevalecer. Somente com a não autorização do ius postulandi é que as partes
poderão ter o início da concretização da garantia constitucional de acesso à justiça na
sua forma plena, já que não basta um acesso ao Judiciário, mas sim que este acesso
seja prestado de forma justa.
Abstract: The aim of this article is analyzing the ius postulandi institute
on the lights of labor procedural law. For this, the article is divided into
four sections. The first and the fourth are, respectively, the introduction
and the conclusion. The second section analyses, generally, the right of
self-litigation. It brings empirical data produced by the Labor Court of
Appeals of the 17th Region over the use by the parties of the ius pos-
tulandi. The third section brings the new conception of the access to
justice for analyzing whether the right of petitioning without a lawyer
would be a way of enlarging the access to justice by the parties or a kind
of injustice, since the parties have no technical knowledge for following
effectively a process proceduring.
Referências
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R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 183-198, abr./jun. 2012
O momento do interrogatório do réu
na Lei de Tóxicos sob a perspectiva da
garantia fundamental da ampla defesa
Alcenir José Demo
Mestrando em Direitos e Garantias Fundamentais pela
FDV. Pós-Graduado em Direito Civil e Direito Processual
Civil pela FADISP (convênio com a CONSULTIME e
EMES). Juiz de Direito no Estado do Espírito Santo.
Ex-professor da UNILINHARES, FANORTE e UNIVC.
Professor de Direito Processual Civil no Curso de
Pós-Graduação na UNISAM e UNIVEN. Integrante do
Grupo de Pesquisa Acesso à Justiça na Perspectiva
dos Direitos Humanos do Programa de Mestrado em
Direitos e Garantias Fundamentais da FDV.
E-mail: <alcenirjdemo@uol.com.br>.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 199-227, abr./jun. 2012
200 Alcenir José Demo, Carlos Henrique Bezerra Leite
1 Introdução
Vem de longa data a preocupação dos juristas para que seja garantido ao acusado,
diante de uma imputação criminal que lhe é feita, o direito ao contraditório e à ampla
defesa. Isto ocorre porque a liberdade afigura-se como um dos bens jurídicos inerentes à
pessoa humana, cabendo a sua proteção ao Estado. Aliás, não foi por outro motivo que o
art. III da Declaração Universal dos Direitos Humanos consagrou, ao lado do direito à vida
e à segurança pessoal, o direito de liberdade no elenco dos principais direitos humanos.
Nesse diapasão, o Estado-Juiz, enquanto detentor da jurisdição, tem o poder-
dever de garantir a todo acusado, diante da deflagração de uma ação penal, o direito
ao contraditório e à ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. É o que está
preconizado na nossa Carta Magna da República, em seu art. 5º, inc. LV, devendo o ma-
gistrado, pois, estar sempre atento à efetiva observância desse preceito constitucional,
sem prejuízo, é óbvio, de outros ali consignados. De resto, a jurisdição deve ser prestada
mediante o devido processo legal, cuja realização demanda, invariavelmente, um olhar
sob a perspectiva do Estado Constitucional Democrático de Direito, tendo este por fun-
damento, dentre outros, o princípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III).
Ante o exposto, pergunta-se: à luz da cláusula do due process of law: o interro-
gatório realizado no início da instrução probatória no processo penal fere (ou não) o
princípio constitucional da ampla defesa?
O presente estudo tem por escopo, portanto, fazer uma análise crítica concernente à
necessária observância, por parte do Poder Judiciário, do princípio constitucional da ampla
defesa — este integrante do Título II, que trata dos “Direitos e Garantias Fundamentais”1 —,
notadamente quando do momento procedimental da realização do interrogatório do réu,
confrontando, assim, a reportada garantia prevista na Carta Magna com a legislação infra-
constitucional, azo em que serão examinadas algumas leis brasileiras, dentre as quais des-
tacam-se: (i) a Lei nº 9.099/95 (especificamente em seu Capítulo III, cuja parte é reservada
aos juizados especiais criminais); (ii) a Lei nº 11.719/08 (esta, alterando alguns dispositivos
do Código de Processo Penal, transferiu o momento do interrogatório do acusado em juízo,
passando tal ato processual a ser realizado, agora, após a colheita da prova testemunhal); e
(iii) a Lei nº 11.343/06 (esta — denominada “Lei Antidrogas” —, prevê o interrogatório para
o início da audiência de instrução e julgamento).
Diante dessa problemática procedimental, mister se faz buscar uma solução ju-
rídica que se apresente mais factível para com o “justo processo”, tendo este por base os
princípios de justiça e os referidos direitos fundamentais. Apresenta-se, pois, o presente
(direitos e deveres individuais e coletivos, art. 5º; direitos sociais, arts. 6º a 11; direitos de nacio-
nalidade, arts. 12 e 13; direitos políticos, arts. 14 a 16).
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O momento do interrogatório do réu na Lei de Tóxicos sob a perspectiva da garantia fundamental da ampla defesa 201
trabalho, indubitavelmente, como de grande relevância jurídica, a par de muito instigante
do ponto de vista teórico e jurisprudencial.
Será utilizado, para o desenvolvimento deste artigo, o método dialético,2 em razão
do tema aqui tratado suscitar debates jurídicos que se mostram antagônicos entre si.
2
Segundo Stalin, “dialética significa um processo dialógico de debates entre posições contrárias”,
com o qual se pretende construir afirmações (STALIN, J. Materialismo histórico e materialismo
dialético. São Paulo: Símbolo, 1982. p. 34).
3
AZAMBUJA, Darcy. Teoria geral do Estado. 19. ed. Porto Alegre: Globo, 1980. p. 84.
4
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel.
Teoria geral do processo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 38.
5
MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 1980. v. 1, p. 7.
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202 Alcenir José Demo, Carlos Henrique Bezerra Leite
Art. 5º (omissis)
LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido
processo legal.
LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados
em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e
recursos a ela inerentes.
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel.
6
Teoria geral do processo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 129.
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O momento do interrogatório do réu na Lei de Tóxicos sob a perspectiva da garantia fundamental da ampla defesa 203
assegurada, nem a separação dos poderes está determinada, não tem Constituição”7
(grifos nossos).
Nessa esteira, Norberto Bobbio assim preleciona: “No Estado de direito, o indi-
víduo tem, em face do Estado, não só direitos privados, mas também direitos políticos.
O Estado de direito é o Estado dos cidadãos”.8
Por isso, fala-se, hoje em dia, em “Estado Constitucional Democrático de
Direito”.9 Com efeito, o Estado só se concebe, atualmente, como Estado Constitucional,
devendo este ser um Estado de Direito Democrático.
Canotilho, comentando a respeito dessas qualidades estatais, explica que elas sur-
gem muitas vezes separadas: Estado de direito e Estado democrático — existem Estados
de direito sem qualquer legitimação em termos democráticos. E conclui, in verbis: “O
Estado constitucional democrático de direito procura estabelecer uma conexão interna
entre democracia e Estado de direito”.10
Assim, o Brasil, desde 1988, com a promulgação de sua Carta Magna, passou a
viver sob a égide do Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º), tendo elegido o prin-
cípio da dignidade da pessoa humana como um dos seus fundamentos (CF, art. 1º, III).
Este tem sido considerado por muitos constitucionalistas como “verdadeiro princípio
conformador de todo o sistema jurídico nacional”, conforme salientado por Carlos
Henrique Bezerra Leite, para quem a pessoa humana deve ser contemplada, sempre,
como o centro e o fim do Direito, sendo factível dizer que a dignidade da pessoa
humana é uma “qualidade intrínseca” do homem, necessitando este, por isso, dos direitos
fundamentais que o protegem.11
Tal princípio, segundo Daury Cesar Fabriz, “manifesta-se como instrumento
abalizador dos demais princípios e direitos compreendidos como superiores”.12 E diz
mais: “Os direitos fundamentais emanados da Constituição e os direitos humanos
prescritos pelas declarações de direito, tratados e convenções internacionais, devem
implicar uma nova arquitetura que possa determinar o devido respeito à dignidade da
pessoa humana”.13
7
Fala-se hoje em dia, parafraseando tal dispositivo legal, que “toda sociedade que não
reconhece e não garante a dignidade da pessoa humana não possui uma Constituição”.
8
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 61.
9
A doutrina traz a seguinte sucessão linear de modelos de Estado: Estado Estamental – Estado
Absoluto – Estado Liberal – Estado Social – Estado Constitucional.
10
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. Coimbra: Almedina,
2002. p. 93.
11
LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 44-46.
12
FABRIZ, Daury Cesar. Bioética e direitos fundamentais: a bioconstituição como paradigma ao
biodireito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003. p. 276.
13
Ibidem, p. 281.
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204 Alcenir José Demo, Carlos Henrique Bezerra Leite
14
WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e sociedade moderna. In: GRINOVER, Ada Pellegrini;
DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo (Coord.). Participação e processo. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1988.
15
A palavra “ação” é aqui empregada no sentido lato sensu, açambarcando, também, a defesa do
réu.
16
MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2008. v. 1, p. 186.
17
Ibidem, p. 213.
18
A doutrina vem denominando o primeiro binômio de “Direito Constitucional Processual” e o
segundo de “Direito Processual Constitucional”. Nesse diapasão, de acordo com o magistério
de Frederico Marques, quando se fala em Direito Constitucional Processual, está se referindo ao
termo que “trata das normas do processo contidas na Constituição”, a exemplo dos princípios
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O momento do interrogatório do réu na Lei de Tóxicos sob a perspectiva da garantia fundamental da ampla defesa 205
trabalho é o binômio “Constituição-processo”, haja vista o seu objetivo de assegurar a
conformação dos institutos do direito processual e o seu funcionamento aos princípios
que decorrem da própria ordem constitucional, sendo aqui enfatizados os princípios
do contraditório e da ampla defesa.
É relevante observar que o contraditório e a ampla defesa devem ser assegu-
rados aos acusados em geral, sendo tais princípios corolários do princípio do devido
processo legal19 (CF, art. 5º, LIV); aliás, este é considerado pela doutrina pátria como
princípio-gênero, do qual os demais são espécies.20
Uma vez feitas tais considerações, cumpre esclarecer, neste ensejo, o que deve ser
entendido com o termo “ampla defesa”, segundo a concepção contida naquele comando
de ordem constitucional.
Para Marinoni,21 por “ampla defesa” deve se entender o conteúdo de defesa
necessário para que o acusado possa se opor à pretensão de tutela de direito (à sen-
tença de procedência). Segundo ainda tal jurista, “não é preciso esforço para concluir
que a defesa ampla é a que não é limitada. A intenção da norma é evitar que a lei ou o
juiz limitem a defesa, restringindo a possibilidade de o réu alegar, provar etc.”
Segundo Carlos Alberto Alvaro de Oliveira e Daniel Mitidiero, a doutrina tende a
vislumbrar o direito fundamental à ampla defesa com vistas não muito largas. Para eles,
o conteúdo da ampla defesa impõe, em regra, direito à cognição plena e exauriente,
a fim de que os interessados possam alegar toda a matéria disponível para tutela de
suas posições jurídicas. E mais: tal garantia constitucional não deve ser confundida
com o direito ao contraditório, nem com o direito à prova, tampouco com o direito à
motivação das decisões.22
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206 Alcenir José Demo, Carlos Henrique Bezerra Leite
Cumpre ressaltar que, se por um lado, não se deve confundir a garantia da ampla
defesa com o direito ao contraditório, conforme sustentado por Alvaro de Oliveira e
Mitidiero, de outro lado, não se pode esquecer que a defesa e o contraditório “estão
indissoluvelmente legados, porquanto é do contraditório (visto em seu primeiro mo-
mento) que brota o exercício da defesa [...]. A defesa, assim, garante o contraditório,
mas também por este se manifesta e é garantida”, tendo ambos os princípios, portanto,
essa “íntima relação e interação”, consoante bem observado por Ada Pellegrini Grinover,
Antonio Scarance Fernandes e Antonio Magalhães Gomes Filho.23
Na concepção de Pinto Ferreira,24 o privilégio da pessoa de não se autoincriminar
(privilege against self-incrimination) também é uma decorrência do direito de plena ou
ampla defesa.
Rogério Lauria Tucci, discorrendo sobre o devido processo penal (designação,
para ele, apropriada), sustenta que este deve contar com as seguintes garantias: a) de
acesso à Justiça Penal; b) do juiz natural em matéria penal; c) de tratamento paritário
dos sujeitos parciais do processo penal; d) da plenitude de defesa do indiciado, acusado
ou condenado, com todos os meios e recursos a ela inerentes; e) da publicidade dos atos
processuais penais; f) da motivação dos atos decisórios penais; g) da fixação de prazo
razoável de duração do processo penal; h) da legalidade da execução penal. Assevera o
aludido processualista, ainda, que a pessoa física integrante da coletividade não pode
ser privada de sua liberdade, ou de outros bens a esta correlatos, sem o devido processo
penal, em que se realize a ação judiciária, atrelada ao vigoroso e incindível relaciona-
mento entre as preceituações constitucionais e as normas penais — de natureza subs-
tancial e instrumental — que as complementam; de forma a tornar efetiva a atuação
da Justiça Criminal, tanto na aplicação da sanção penal respectiva, como na afirmação
do ius libertatis do acusado. Ao cuidar da ampla defesa a que faz jus o réu, diz ele que
a concepção moderna dessa garantia reclama, para a sua verificação, três realidades
procedimentais, genericamente consideradas, a saber: a) direito à informação (nemo
inauditus damnari potest); b) a bilateralidade da audiência (contrariedade); c) o direito à
prova legitimamente obtida ou produzida (comprovação de inculpabilidade). Finalmente,
agora com sustentáculo na doutrina de Alberto Suárez Sánches, salienta que esse direi-
to de defesa deve estar constituído por um conjunto de garantias, direitos e faculdades
suficientes para uma oposição efetiva à pretensão penal.25
Não há, pois, como fazer justiça no caso concreto sem a observância do devido
processo legal, principalmente restringindo a garantia constitucional da ampla defesa. Para
23
GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães.
As nulidades no processo penal. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 77.
24
FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição brasileira. São Paulo: Saraiva, 1989. v. 1, p. 179.
25
TUCCI, Rogério Lauria. Teoria do direito processual penal: jurisdição, ação e processo penal:
estudo sistemático. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 207-213.
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O momento do interrogatório do réu na Lei de Tóxicos sob a perspectiva da garantia fundamental da ampla defesa 207
a configuração do devido processo legal, ainda segundo as lições de Rogério Lauria
Tucci, mister se faz que as partes tenham efetivamente “direito ao processo, materializado
num procedimento regularmente desenvolvido, com a concretização de todos os seus
componentes e corolários, e num prazo razoável”.26
Em sintonia com o acima expendido, propõe-se aqui que o interrogatório do
acusado, como um direito de defesa que é, seja sempre realizado ao final da instrução
probatória, de modo que o processo possa efetivamente tramitar mediante um proce-
dimento em contraditório,27 conferindo-se às partes a oportunidade de comprovação
do que foi alegado por elas em suas tese e antítese — processo dialético. Só assim
poderá o Estado-Juiz cumprir a contento com o querer da Constituição Federal, garan-
tindo a todos os acusados o contraditório e a ampla defesa, ex vido art. 5º, inc. LV.
Trata-se de uma nova perspectiva na atuação do Poder Judiciário, trazida
pelo pós-positivismo e neoconstitucionalismo, impondo-se a força normativa da
Constituição (princípio da supremacia), com a máxima efetividade dos direitos fun-
damentais (princípio da efetividade). Assim, por força do neoconstitucionalismo, que
exige a compreensão crítica da lei em face da Constituição, a tarefa do jurista é de
construção, “conformação da lei”, e não mais de simples revelação, como ocorria no
passado.28
Impende registrar que, com essa mudança paradigmática de interpretar a lei,
implementada pelo neoconstitucionalismo, a hermenêutica jurídica passou a contar
com outros métodos interpretativos, além dos tradicionais (v.g., literal, sistemático,
histórico, teleológico, sociológico).29 Afinal, para que o magistrado possa levar a bom
termo uma interpretação/aplicação da lei neste momento pós-positivista, é imprescin-
dível que ele lance mão da Hermenêutica Constitucional.
Toda lei, portanto, no Estado contemporâneo, deve estar adstrita aos princípios
constitucionais. Portanto, com base nessa nova hermenêutica, cabe ao magistrado
uma tarefa de construção — não mais de simples revelação — da norma legal a ser
aplicada ao caso sub judice, tendo sempre por parâmetro interpretativo os princípios
constitucionais de justiça e os direitos e garantias fundamentais.30
Quadra aqui abrir um parêntese para salientar que o vocábulo princípio é derivado
do latim — principium —, significando o primeiro, o início de alguma coisa. Por isso, ele
26
TUCCI, op. cit., p. 205.
27
FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual. Tradução de Elaine Nassif. Campinas:
Bookseller, 2006. p. 118-121.
28
MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008. v. 1, p. 47-48.
29
Nesse sentido: LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2010. p. 65 et seq.
30
MARINONI, op. cit., p. 47.
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208 Alcenir José Demo, Carlos Henrique Bezerra Leite
31
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 5. ed. São Paulo: Malheiros,
1994. p. 451.
32
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 58.
33
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 259-
264, 289, 293, respectivamente.
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O momento do interrogatório do réu na Lei de Tóxicos sob a perspectiva da garantia fundamental da ampla defesa 209
até falar em “Estado principial”, sendo esta, portanto, uma nova fase caracterizadora do
Estado de Direito.
Dessa forma, os princípios passam a ser o ponto de partida de qualquer inter-
pretação jurídica, e, em se tratando de princípios constitucionais, são eles o coração
da Carta Magna, eis que postos no ponto mais alto da escala normativa (norma nor-
marum). É assim que devem ser os princípios vistos na perspectiva da Hermenêutica
Constitucional.
Nesse diapasão, não há como o jurista quedar-se silente, no ato de interpretar/
aplicar a lei no caso concreto, diante de qualquer norma que afronte preceito positi-
vado na Carta Magna, como, por exemplo, os princípios processuais ali consignados.
Exige-se, pois, do Estado-Juiz, presentemente, que a prestação jurisdicional que dele
emana esteja sempre voltada para o querer da Constituição. Nas palavras de Konrad
Hesse, é preciso atender à vontade de Constituição.34
Ante o exposto, é de se indagar qual deve ser o melhor momento para, à luz
do princípio constitucional da ampla defesa, realizar o interrogatório do réu, en-
quanto meio de defesa que é. Com o propósito de levar a efeito uma análise mais
percuciente acerca dessa quaestio, foi destinado o tópico subsequente.
34
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991. Nesta obra, Hesse apresenta tese antagônica à
desenvolvida por Ferdinand Lassale — este define a Constituição como um “pedaço de
papel”, por perder a sua força diante dos fatores reais de Poder —, defendendo a chamada
“vontade de Constituição”, ao argumento de que a Constituição de um país conta com uma
força normativa que estimula e coordena as relações entre os cidadãos e o Estado.
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210 Alcenir José Demo, Carlos Henrique Bezerra Leite
Getulio Vargas.35 Por isso, inúmeros desses dispositivos processuais já deveriam ter
sido interpretados pelo operador do Direito com certa parcimônia, isto a partir de 05
de outubro de 1988, data do nascimento de uma nova ordem jurídica em nosso País,
iniciada com a promulgação da vigente Constituição Federal, em cuja Carta Política
se encontram amalgamados vários dispositivos de conteúdo jurídico-processual, a
exemplo dos princípios do contraditório e da ampla defesa. Afinal, como sói acontecer
com o advento de uma Constituição num país, toda a legislação infraconstitucional
brasileira permaneceu em vigor, em princípio, por força do fenômeno da recepção,
cabendo ao jurista proceder a uma necessária releitura em nível constitucional de toda
a legislação pátria, com a perda de eficácia da norma legal que porventura não esteja
em consonância com os aludidos preceitos constitucionais.36
Por assim ser, considerando que vige no Brasil o Estado Constitucional
Democrático de Direito (CF, art. 1º), a toda pessoa que for acusada da prática de qualquer
delito, além de ser presumida como inocente até que tenha contra si uma sentença con-
denatória transitada em julgado, é garantida a ampla defesa, com os meios e recursos a
ela inerentes (CF, art. 5º, incs. LVII e LV).
Destarte, com o fito de atender a esses comandos de ordem constitucional, o
legislador brasileiro se viu, então, obrigado a elaborar as reformas na legislação infra-
constitucional, a exemplo dos códigos de processo e legislação extravagante.
No que tange às minirreformas inseridas ao Código de Processo Penal, é inte-
ressante notar que uma das primeiras alterações se deu com o interrogatório do réu,
conforme se depreende da Lei nº 10.792/03, modificando a redação dos arts. 185 et seq.
do CPP, que tratam desse ato processual; isso ocorrendo, a par de outras mudanças pon-
tuais, para adequar o processo penal ao modelo acusatório. De fato, a forma como esse
ato processual era realizado acabava por causar prejuízo ao réu, mormente em relação
à ampla defesa a que este faz jus durante a tramitação de um processo penal. Assim, foi
inserido no art. 185 que o acusado deve ser interrogado, sempre, na presença de seu
defensor, constituído ou nomeado, tendo, inclusive, antes de ser interrogado, o direito
de se entrevistar reservadamente com o seu defensor (CPP, art. 185, §2º); no art. 186,
cuja redação anterior constava que o réu, embora não fosse obrigado a responder às
perguntas, o seu silêncio poderia “ser interpretado em prejuízo da própria defesa” (sic),
foi suprimida esta parte, e acrescentado um parágrafo único, constando deste que o
silêncio do réu não poderá ser interpretado em prejuízo de sua defesa;37 o art. 187, que
35
O Código de Processo Penal foi editado através do Decreto-Lei nº 3.689, de 03 de outubro de
1941, tendo entrado em 1º de janeiro de 1942, conforme estabelecido em seu art. 810.
36
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel.
Teoria geral do processo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 119.
37
Antes mesmo da Lei nº 10.792/2003, o Supremo Tribunal Federal, pela 1ª Turma, ao julgar o
HC 68.929-9/SP, em 22.10.1991, DJ, 28 ago. 1992, figurando como relator o Ministro Celso de
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O momento do interrogatório do réu na Lei de Tóxicos sob a perspectiva da garantia fundamental da ampla defesa 211
antes dispunha que o defensor do acusado não poderia intervir ou influir nas perguntas
e nas respostas, agora prevê que o interrogatório é composto de duas partes: a pri-
meira, com perguntas relacionadas à pessoa do acusado, e a segunda, com perguntas
referentes aos fatos; devendo ser salientado, também, que as partes poderão formular
perguntas objetivando o esclarecimento de alguns pontos, cabendo ao magistrado
avaliar quanto à pertinência e relevância delas (art. 188).
Não obstante tal mudança na forma da realização do interrogatório do réu, o
momento de sua concretização no processo penal continuava a ser no início da instru-
ção probatória, logo após o juiz concluir pelo recebimento da denúncia ou da queixa,38
conforme dispunha o art. 394 do CPP, cuja redação era de seguinte teor: “Art. 394. O juiz,
ao receber a queixa ou denúncia, designará dia e hora para o interrogatório, ordenando a
citação do réu e a notificação do Ministério Público e, se for caso, do querelante ou do
assistente” (grifos nossos).
Frise-se que o processo penal deve ser (sempre) um instrumento para a verifica-
ção da procedência ou não da pretensão acusatória, sendo o interrogatório considerado
como um dos atos processuais mais importantes para a formação do juízo de valor por
parte do magistrado. Eis a lição de Tourinho Filho a respeito, in verbis:
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provocar contradições etc., com o fim de prostrá-lo vencido à sua dialética. Tal combate,
em que todas as vantagens estão, em regra, de um lado, não se coaduna com a majes-
tade da Justiça”. Esse alerta, feito por Magalhães Noronha, quando o interrogatório do
réu ainda era realizado exclusivamente pelo magistrado, sem que as partes pudessem
formular reperguntas, retrata muito bem como deve se portar um juiz garantista,41 à luz
do devido processo penal, durante a realização desse ato processual tão sublime.
Outrossim, impende mencionar que, apesar da discussão travada ao longo
dos anos quanto à natureza jurídica do interrogatório, se é “meio de prova” ou “meio
de defesa”, a doutrina prevalecente tem se inclinado no sentido de ser tal ato pro-
cessual, concomitantemente, meio de prova e de defesa.42 Todavia, vale aqui pontuar
que, para Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Antonio Magalhães
Gomes Filho, o interrogatório pode constituir uma fonte de prova, mas não meio de prova,
isto porque o acusado, enquanto sujeito da defesa, não tem obrigação e nem dever de
fornecer elementos de prova, podendo ele, na verdade, se defender como lhe aprouver,
falando ou calando-se; logo, esse “direito ao silêncio” garante o enfoque do interrogatório
como meio de defesa.43
Infere-se do exposto, que, dada à relevância jurídica desse ato processual, sendo
este, para além de meio de prova, primordialmente meio de defesa, deve o interroga-
tório ser concretizado, para a garantia do devido processo penal, somente depois de
produzidas todas as provas testemunhais. A contrario sensu, não estará o magistrado
cumprindo com o seu dever de juiz garantista, por não ter sido observado o princípio
constitucional da ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. Afinal, é o inter-
rogatório, enquanto meio de defesa, “o instante procedimental da consagração da auto
defesa; é mecanismo para amparar a defesa, vez que, desejando, pode simplesmente
41
Luigi Ferrajoli trata dessa temática, discutindo acerca do sistema penal e processual, em
suas bases filosóficas, políticas e jurídicas, procurando, assim, destruir velhos vícios teóricos
e práticos para, em seguida, construir a sua teoria do garantismo como modelo ideal (um
sistema normativo dotado de garantias que lhe tragam racionalidade), a partir do qual são
analisados os problemas fundamentais do delito e da pena, a par do processo penal. Cf.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer,
Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002.
42
Apenas a título de exemplos: NORONHA, E. Magalhães. Curso de direito processual penal. 19.
ed. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 107; TOURINHO FILHO, op. cit., p. 239; NUCCI, Guilherme de
Souza. Provas no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 73; advogando este
jurista “constituir o interrogatório, primordialmente, um meio de defesa e, secundariamente,
um meio de prova”.
43
GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães.
As nulidades no processo penal. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 81.
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O momento do interrogatório do réu na Lei de Tóxicos sob a perspectiva da garantia fundamental da ampla defesa 213
calar-se, mantendo-se em silêncio, sem que dessa situação se possa extrair qualquer
dedução ou conclusão negativa”.44
Assim, defendemos que, diante de uma norma legal estabelecendo o momento
do interrogatório antes da oitiva testemunhal, deve o magistrado proceder a uma
interpretação conforme a Constituição e, por conseguinte, postergar tal ato proces-
sual ao cabo da audiência de instrução e julgamento, com o que estará o Estado-Juiz
realizando o “justo concreto”, em detrimento do “justo formal”. Mediante a técnica
da interpretação conforme a Constituição, o juiz poderá emitir a única interpreta-
ção da lei que não o obrigue a declarar a sua inconstitucionalidade. A interpretação
conforme a Constituição, segundo Canotilho, é um princípio geral de interpretação,
remontando “ao velho princípio da jurisprudência americana, segundo a qual os
juízes devem interpretar as leis in harmony with the constitucion”.45
Para a consecução desse poder-dever jurisdicional, impondo-se uma solução
constitucionalmente adequada para o problema a ser resolvido, exige-se, então, do
intérprete e aplicador do Direito, hodiernamente, uma postura hermenêutica episte-
mológica diversa da hermenêutica tradicional, conforme já alhures enfatizado. Nesse
ponto, vale transcrever as observações feitas por Marinoni, confrontando a maneira de
interpretação da lei no legalismo formal e no neoconstitucionalismo:
44
NUCCI, Guilherme de Souza. Provas no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
p. 73.
45
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. Coimbra: Almedina,
2002. p. 1225.
46
MARINONI, op. cit., p. 105.
47
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional. 5. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1991. p. 600.
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214 Alcenir José Demo, Carlos Henrique Bezerra Leite
interpretar e aplicar a lei, segundo Luís Roberto Barroso,48 deve especial tributo às
concepções doutrinárias de Ronald Dworkin e Robert Alexy.49
Interessante observar que o legislador brasileiro, no ano de 1995, ao criar o mi-
crossistema dos juizados especiais cíveis e criminais (Lei nº 9.099/95), o fez, quanto a
este último juizado, estabelecendo a realização do interrogatório do infrator para o
momento posterior à inquirição das testemunhas indicadas pelas partes, conforme se
pode ver do disposto no art. 81, in verbis:
Art. 81. Aberta a audiência, será dada a palavra ao defensor para respon-
der à acusação, após o que o juiz receberá, ou não, a denúncia ou queixa;
havendo recebimento, serão ouvidas a vítima e as testemunhas de acusa-
ção e defesa, interrogando-se a seguir o acusado, se presente, passando-se
imediatamente aos debates orais e à prolação da sentença. (grifos nossos)
Essa posição topográfica do interrogatório do réu realça mais ainda o seu cará-
ter de peça de defesa, posto que, falando ele por último, terá a oportunidade de contrariar
tudo quanto afirmaram a vítima e as testemunhas da acusação.50
Lamentavelmente, apesar de o legislador brasileiro ter agido dessa forma no
tocante ao juizado especial criminal, o Congresso Nacional, ao legislar sobre normas
relativas a processo penal, continuou mantendo o mesmo sistema procedimental exis-
tente antes da promulgação da CF/88, isto no que tange ao momento da realização do
interrogatório do réu.51 Para comprovar isso, basta a citação da Lei nº 11.343/06, na qual o
interrogatório do réu foi mantido no limiar da audiência de instrução e julgamento (art. 57).
Ocorre que, agora, mais precisamente a partir do advento da Lei nº 11.719/08,
passou o Código de Processo Penal a prever que esse ato processual (interrogatório)
seja feito ao final da colheita das provas orais, surgindo, então, com isso, um aparente
conflito procedimental existente entre a Lei de Tóxico e aquele Código de Ritos.
48
BARROSO, Luís Roberto. A nova interpretação constitucional: ponderação, argumento e papel
dos princípios. In: LEITE, George Salomão (Coord.). Dos princípios constitucionais: considerações
em torno das normas principiológicas da Constituição. 2. ed. São Paulo: Método, 2008. p. 67.
49
Cf. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo:
Martins Fontes, 2002; ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução de Luís Afonso
Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
50
Pensam assim, por exemplo: TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Comentários à lei dos
juizados especiais criminais. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 124; FERNANDES, Antonio
Scarance. Processo penal constitucional. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 264.
51
Tal fato pode ser verificado, por exemplo, com a edição da Lei nº 340/06, que instituiu o Juizado
de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, conhecido como “Juizado da Lei Maria da
Penha”, prevendo a aplicação, quanto aos crimes nela previstos, do Código de Processo Penal,
conforme se vê da dicção do seu art. 13.
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O momento do interrogatório do réu na Lei de Tóxicos sob a perspectiva da garantia fundamental da ampla defesa 215
Qual deve ser o posicionamento, então, do Estado-Juiz diante desse aparente
conflito de normas? Para responder a essa questão, reservou-se o próximo tópico.
52
Op. cit., p. 24.
53
Cf. MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat. Do espírito das leis. Tradução de Fernando
Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1985. (Os
Pensadores).
54
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
Campus, 1992. p. 30.
55
FLORES, Joaquín Herrera. Teoria crítica dos direitos humanos: os direitos humanos como
produtos culturais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 213.
56
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 1998. p. 31.
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216 Alcenir José Demo, Carlos Henrique Bezerra Leite
dois blocos de direitos equivale a dizer que nem todo direito fundamental pode ser
considerado um direito humano, e vice-versa.57
Não destoou desse viés humanista a vigente Constituição Federal brasileira,
conforme se depreende da inteligência do seu art. 5º, caput, através do qual é garan-
tida aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito
à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, seguindo-se ao indi-
gitado artigo um extenso rol de incisos contendo direitos e garantias fundamentais,
individuais e coletivos.
Ante a positivação desse direito à liberdade, sempre quando houver a deflagração
de uma ação penal, impõe-se que seja conferido ao acusado o direito ao contraditório e à
ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, sem prejuízo, é claro, do atendimento
de outros direitos e garantias ali consignados, como, por exemplo, especificamente
no âmbito do processo judicial penal (processo de conhecimento),58 do princípio da
presunção do estado de inocência (inc. LVII) e da possibilidade de o réu, caso queira,
“permanecer calado” (sic) durante o seu interrogatório (inc. LXIII). De resto, a jurisdi-
ção deve ser prestada mediante o devido processo legal, cuja realização demanda,
invariavelmente, um olhar sob a perspectiva do Estado Constitucional Democrático de
Direito, tendo este por fundamento, dentre outros, o princípio da dignidade da pessoa
humana (CF, art. 1º, III).
Posto isso, pergunta-se: à luz da cláusula do due process of law, o interrogatório
realizado no início da instrução probatória no processo penal fere (ou não) o princípio
constitucional da ampla defesa?
Inicialmente, é preciso considerar que o interrogatório é uma das peças mais
importantes do processo penal; e sendo este (processo) um instrumento para verificação
da procedência (ou não) da pretensão punitiva estatal, e não um meio de se condenar
alguém a qualquer preço, é de todo razoável que aquele ato processual seja realizado ao
cabo da inquirição das testemunhas. Urge, pois, destarte, que seja feita pelo Estado-Juiz
uma interpretação conforme a Constituição das normas insertas no Código de Processo
Penal, bem como, de resto, de toda e qualquer legislação processual que esteja em vigor,
à luz do princípio da ampla defesa.
Segundo Fernando Capez, implica dever do Estado proporcionar a todo acusado
a mais completa defesa, seja de ordem pessoal (autodefesa), seja de ordem técnica
(através de defensor); ressaltando que do princípio da ampla defesa “também decorre
LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 34.
57
O processo penal de execução conta, também, com os direitos e garantias a serem observados
58
ao réu condenado (v. g., CF/88, art. 5º, XLVI, XLVII e XLVIII; e Lei nº 7.210/84, arts. 40 e 41).
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O momento do interrogatório do réu na Lei de Tóxicos sob a perspectiva da garantia fundamental da ampla defesa 217
a obrigatoriedade de se observar a ordem natural do processo, de modo que a defesa
se manifeste sempre em último lugar”.59
Trata-se o interrogatório de um importante meio de defesa, sendo ele, na ver-
dade, um direito subjetivo do acusado; tanto que, mesmo com o transcurso in albis
do prazo para apresentação de resposta escrita (tendo sido realizada validamente
a citação do réu) e, por conseguinte, decretando-se a revelia do denunciado, prevê
o Código de Processo Penal que o acusado, caso queira e compareça em juízo, será
“qualificado e interrogado”. Senão, vejamos:
Importa destacar, nesse ponto, que a redação atual desse artigo é oriunda da
Lei nº 10.792/03, que conferiu maiores garantias ao réu, dando, por conseguinte, har-
monia a todo o arcabouço processual penal, sempre primando pela garantia da ampla
defesa do acusado, uma vez que, agora, passou tal norma a prever, expressamente, a
presença imprescindível do defensor em tal ato processual.
Dessa forma, é nítida a intenção do legislador em conferir aos acusados maiores
direitos e garantias de ordem processual, sendo esta, aliás, a vontade da nossa Carta
Magna, na busca da realização do garantismo penal, conforme se pode inferir, por
exemplo, do princípio da presunção de inocência (CF, art. 5º, LVII).
Vê-se, portanto, quão importante é o direito do réu em ser interrogado “durante
o curso da ação penal”. A propósito, a expressão “‘no curso da ação penal’ indica o perío
do que medeia entre o início da ação penal e o julgamento de primeira instância [...].
Depois deste termo, a critério da superior instância, o interrogatório pode ser realizado,
desde que útil para o esclarecimento dos fatos”.60 Nota-se, com isso, que tal espécie de
prova pode ser produzida ainda que encerrada a instrução criminal e proferida sentença,
desde que pendente a análise de curso de apelação. É o que estabelece o Código de
Processo Penal, em seu art. 616, conforme abaixo transcrito, textualmente:
59
CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 20.
60
JESUS, Damásio Evangelista de. Questões criminais. São Paulo: Saraiva, 1986. p. 320.
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218 Alcenir José Demo, Carlos Henrique Bezerra Leite
Por todo o exposto, cabe à autoridade judicante decidir, quando da abertura dos
trabalhos relativos à audiência de instrução e julgamento, pela realização do interro-
gatório do réu logo após a colheita da prova vocal no procedimento da Lei de Tóxicos.
Indubitavelmente — é imperioso aqui dizer —, a realização do interrogatório no
limiar da instrução probatória no processo penal é resquício de um Estado despótico,
GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 215.
61
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O momento do interrogatório do réu na Lei de Tóxicos sob a perspectiva da garantia fundamental da ampla defesa 219
policialesco, fruto da chamada “Era Vargas”, de cujo Governo surgiu o execrável “Estado
Novo”, de triste memória, durante o qual foi editado o Código de Processo Penal
(Decreto-Lei nº 3.689/41), e, nesse modelo, o interrogatório era visto muito mais como
um meio de prova do que como um meio de defesa.
Tem-se, portanto, como inconcebível, do ponto de vista do “processo justo”,
que, mesmo prevendo o art. 156 do CPP que a prova da alegação incumbirá a quem a
fizer, ainda exista legislação estabelecendo o interrogatório para o início da instrução
probatória (?!). E esse é o caso — repete-se — da Lei nº 11.343/06 (Lei Antidrogas),
devendo registrar que, em virtude do espaço reservado ao presente trabalho cien-
tífico, tal problemática se restringirá à análise apenas dessa indigitada legislação.
Assim, malgrado dispor o art. 57 da mencionada Lei de Tóxicos que, na audiên
cia de instrução e julgamento, o interrogatório do acusado será realizado antes da
inquirição das testemunhas, é preciso que o Estado-Juiz promova a alteração proce-
dimental desse momento do interrogatório, passando-o para o final da colheita da
prova oral, conforme está agora previsto no Código de Processo Penal, por força da
Lei nº 11.719/08,63 que modificou a redação do art. 400, de seguinte teor:
63
Quadra observar que, por força dessa minirreforma processual, o legislador demonstrou o
seu interesse em ampliar substancialmente o direito de defesa do réu, bastando citar, por
exemplo, além do art. 400, os arts. 396-A e 397, com os quais é agora possível ao acusado
“arguir preliminares e alegar tudo o que interesse à sua defesa”, devendo o juiz, por seu turno,
absolver sumariamente o acusado se e quando verificar a ocorrência de alguma das hipóteses
ali especificadas.
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220 Alcenir José Demo, Carlos Henrique Bezerra Leite
64
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal comentado. 13. ed. São Paulo:
Saraiva, 2010. v. 2, p. 23.
65
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal comentado. 9. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2009. p. 405-406.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 199-227, abr./jun. 2012
O momento do interrogatório do réu na Lei de Tóxicos sob a perspectiva da garantia fundamental da ampla defesa 221
dignidade da pessoa humana, cujo princípio-mãe se irradia por todo o ordenamento
jurídico pátrio.
Por essa e outras razões acima alinhavadas, a decisão mais consentânea com o
querer da Carta Política de 1988 é, insofismavelmente, a que está sendo aqui defen-
dida neste trabalho, sendo tal posicionamento uma forma de garantir a efetivação do
princípio da ampla defesa (CF, art. 5º, LV) e, reflexamente, do princípio da dignidade
da pessoa humana, erigido que foi este pelo constituinte como um dos fundamentos
da República Federativa do Brasil, conforme se pode deduzir da simples leitura ao
art. 1º, inc. III, da Lei Maior.
Em contrapartida, eventual não acolhimento da aplicação da reportada mudança
procedimental (art. 400 do CPP) àquela Lei de Tóxicos, resultará, ipso facto, em prejuízo
para com a defesa do acusado, respingando, por conseguinte, na sua própria dignidade
pessoal, isto pelo fato de se estar dando tratamento desigual para iguais. Com efeito,
uma interpretação restritiva da norma contida no art. 400 do CPP importa em um des-
crimen inaceitável na perspectiva dos direitos e garantias fundamentais, haja vista que o
acusado, em sendo interrogado num processo instaurado para apuração do delito tipifi-
cado como crime de tráfico de entorpecentes (art. 33 da Lei de Tóxicos), de acordo com
o procedimento estabelecido pelo art. 57 da Lei nº 11.343/06, terá seu direito de defesa
sobremodo restringido, posto que tal ato será realizado no limiar da audiência de ins-
trução e julgamento; ao passo que em outro processo penal, envolvendo delito diverso
daquele (até mesmo um crime hediondo ou a ele equiparado!),66 terá o réu o direito de
ser interrogado após a colheita da prova oral, ex vi do procedimento estabelecido pelo
art. 400 do CPP.
Ora, um posicionamento desse naipe está a afrontar, inclusive, o princípio da
igualdade substancial67 (CF, art. 5º, caput), além daqueles direitos e garantias funda-
mentais já especificados; sendo este, portanto, mais um móvel para que o Estado-Juiz
se posicione da forma supramencionada. A propósito, Rui Barbosa, ao comentar sobre
o princípio da igualdade, assim sentenciou: “Tratar com desigualdade a iguais, ou a
desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real”.68
Lembra Portanova69 que se costuma atribuir ao filósofo Aristóteles a máxima
segundo a qual “igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os
66
Dispõe sobre os crimes hediondos a Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990. Em seu art. 1º consta
o elenco dos crimes considerados hediondos; devendo ser ressaltado que, a teor do seu art.
2º, o crime de tortura é equiparado ao delito de hediondez, o mesmo ocorrendo com o crime
de tráfico ilícito de entorpecentes.
67
Não há falar-se, hodiernamente, em “igualdade formal”, à moda do Estado Liberal; exigindo-se,
agora, do Poder Judiciário que seja dispensado às partes um tratamento isonômico material.
68
BARBOSA, Rui. Oração aos moços. 18. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 55.
69
PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
p. 36-37.
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222 Alcenir José Demo, Carlos Henrique Bezerra Leite
1. [...]
2. Os crimes tratados pela Lei nº 11.343/06 possuem rito próprio, no qual
o interrogatório inaugura a audiência de instrução e julgamento. Desse
modo, inexiste o sustentado cerceamento de defesa por inobservância
do art. 400 do Código de Processo Penal, que determina que a oitiva do
réu ocorrerá após a inquirição das testemunhas.
Apesar de esse dogma interpretativo, herança da hermenêutica clássica, ser ainda aplicado
70
quando o hermeneuta se depara com uma “lei especial” em confronto com uma “lei geral”, a
temática que está sendo aqui discutida envolve princípios constitucionais (v.g., devido processo
legal, ampla defesa, igualdade substancial, dignidade da pessoa humana), impondo-se, destarte,
uma solução jurídica em um âmbito maior, pertinente com os direitos e garantias fundamentais,
como é o caso da interpretação conforme a Constituição (Hermenêutica Constitucional).
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O momento do interrogatório do réu na Lei de Tóxicos sob a perspectiva da garantia fundamental da ampla defesa 223
3. Correto o acórdão impugnado ao afirmar que é não é possível, na via do
habeas corpus, examinar a alegação de que a sentença condenatória con-
traria as provas coligidas durante a instrução criminal, por demandar apro-
fundado exame do conjunto fático-probatório dos autos. Do mesmo modo,
inviável acolher a tese de que o Paciente é inocente ou mero usuário de
drogas, para absolvê-lo ou diminuir sua reprimenda, até porque as instân-
cias ordinárias afastaram esse argumento com fundamentação coerente.
4. O Tribunal de Justiça a quo considerou, nos exatos termos do art. 42
da Lei nº 11.343/2006, que a quantidade da substância entorpecente
apreendida trouxe maior reprovabilidade à conduta do agente. E, como
não resta comprovada nenhuma ilegalidade ou abuso de poder na
individualização da pena-base, essa via não é adequada para dizer se foi
justa ou não a reprimenda aplicada ao Paciente. 5. Ordem denegada.71
INOBSERVÂNCIA DO ART. 400 DO CPP. PREVALÊNCIA DO PROCEDIMENTO
COMUM E REALIZAÇÃO DO INTERROGATÓRIO COMO ÚLTIMO ATO DE INS-
TRUÇÃO. NULIDADES NÃO CARACTERIZADAS. CONSTRANGIMENTO ILEGAL
NÃO CONFIGURADO.
1. Nos termos do art. 394, §2º, salvo disposições em contrário do Código
de Processo Penal ou de lei especial, o procedimento comum será apli-
cado a todos os processos. Logo, possuindo a Lei 11.343/06 rito próprio,
afastadas estão, destarte, as normas do procedimento comum.
2. In casu, não se verifica a existência de nulidade em face da alegada
inobservância do art. 400 do CPP, pois além do art. 57 da Lei 11.343/06 dis-
por que o interrogatório inaugura a audiência de instrução e julgamento,
ao contrário do rito do Estatuto Processual Penal que o fixou como último
ato da instrução, nos termos do seu art. 400, o juízo monocrático, no caso
concreto, seguindo o rito especial da Lei 11.343/06, aplicou algumas das
disposições estabelecidas no Código de Processo Penal, realizando uma
mescla dos procedimentos, com o escopo de concretizar o ditame consti-
tucional da ampla defesa e do contraditório, não havendo falar, portanto,
em constrangimento ilegal. [...]
2. Ordem parcialmente conhecida e, nessa extensão, denegada.72
71
Habeas Corpus nº 138.876/DF, Quinta Turma, Minª. Relª. Laurita Vaz. Data do Julgamento:
11.10.2011.
72
Habeas Corpus nº 166.728/RS, 5ª Turma, Rel. Min. Jorge Mussi, DJe, 21 set. 2011.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 199-227, abr./jun. 2012
224 Alcenir José Demo, Carlos Henrique Bezerra Leite
6 Considerações finais
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o intérprete do Direito
passou a lidar com um anacronismo na legislação brasileira, quando esta é posta em
confronto com os princípios constitucionais, mormente aqueles constantes do elenco
do art. 5º da Carta Magna.
Nesse viés, cabe ao magistrado analisar, em cada causa que lhe é submetida a jul-
gamento, se é possível (ou não) a aplicação da norma legal em vigor pertinente ao caso
concreto, exigindo-se dele, para a prestação do serviço público jurisdicional, que lance
mão das técnicas interpretativas, a exemplo da interpretação conforme a Constituição.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense,
73
1994. p. 12-13.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 199-227, abr./jun. 2012
O momento do interrogatório do réu na Lei de Tóxicos sob a perspectiva da garantia fundamental da ampla defesa 225
Nesse diapasão, conquanto o Código de Processo Penal (Decreto-Lei nº 3.689/41)
tenha sido recepcionado pela vigente Carta Política, o legislador ordinário vem promo-
vendo alterações pontuais em alguns dos seus institutos jurídicos.
Uma dessas minirreformas se deu com a Lei nº 10.792/03, modificando a redação
dos arts. 185 et seq. do CPP, que tratam do interrogatório do réu, sendo que, por força da
Lei nº 11.719/08, tal ato processual passou a ser realizado no momento imediatamente
posterior à inquirição das testemunhas, conforme se depreende de seu art. 400.
Foi aqui analisado que, em virtude do teor desse dispositivo legal, estabeleceu-se
uma nova ordem procedimental, daí surgindo a problemática que foi objeto desta nos-
sa investigação científica, a saber: se, diante do teor do art. 400 do CPP, deve (ou não)
o juiz sempre interrogar o réu após a colheita da prova oral, não importando o tipo
penal que está sendo imputado a ele. A resposta encontrada foi afirmativa, tendo sido
tomado, como paradigma, o procedimento estabelecido pela Lei nº 11.343/06 (Lei de
Tóxicos); cabendo ao magistrado, in casu, após proceder a uma interpretação conforme
a Constituição, determinar, em decisão fundamentada, logo no início da audiência de
instrução e julgamento, a inversão do momento em que se dará o interrogatório do réu,
com o que restará garantida a amplitude de sua defesa no processo penal.
Eis, pois, a grande missão que cabe a cada um de nós, operadores do Direito:
criar um “novo processo penal”, à luz do modelo acusatório, através do qual seja pos-
sível a concretização, quantum satis, dos direitos e garantias fundamentais a que faz
jus todo aquele que porventura tiver contra si uma ação penal instaurada, de modo
a poder contar o acusado, ao longo do iter procedimental, com um tratamento subs-
tancialmente justo e équo, evitando-se, por via reflexa, eventuais prejuízos no tocante
aos seus bens e valores jurídicos, a exemplo da liberdade, igualdade e dignidade da
pessoa humana, sendo esta, conforme alhures enfatizado, um dos fundamentos da
República Federativa do Brasil.
Decerto o presente trabalho não teve, como não tem, o propósito de esgotar o
tema. Muito longe disso. Objetivamos, na verdade, apenas contribuir para a análise e
estudo de uma temática tão palpitante no mundo jurídico moderno, que é o direito à
ampla defesa no processo penal.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 199-227, abr./jun. 2012
226 Alcenir José Demo, Carlos Henrique Bezerra Leite
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O momento do interrogatório do réu na Lei de Tóxicos sob a perspectiva da garantia fundamental da ampla defesa 227
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R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 199-227, abr./jun. 2012
RESENHAS
FONSECA, João Francisco Naves da. Exame dos
fatos nos recursos extraordinário e especial. São
Paulo: Saraiva, 2012
1
Cf. Capítulo II, §2º.
2
O que torna tais recursos mais importantes do que a apelação e a ideia tradicional de “duplo
grau de jurisdição”. Cf. COMOGLIO, Luigi Paolo. Il doppio grado di giudizio nelle prospettive
di revisione costituzionale. Rivista di Diritto Processualle, 1999, p. 317-334. Aliás, não parece
haver dúvida na doutrina quanto à maior perniciosidade do erro de direito, em comparação
com o erro de fato. CF. Capítulo III, §7º, 21.
3
Obviamente que a parte recorrer mesmo sabendo que o inconformismo se dirige, no fundo,
à matéria de fato, não havendo questão constitucional ou de direito federal a ser apreciada,
sem real perspectiva de que o recurso seja provido, mas semelhante tentativa, ante a existên-
cia dos óbices (legítimos e ilegítimos) ao conhecimento dos recursos excepcionais, revela-se
vã, tornando apenas questão de tempo o trânsito em julgado da decisão recorrida.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 231-235, abr./jun. 2012
232 Eduardo Henrique de Oliveira Yoshikawa
Isso foi bem ressaltado pelo grande advogado e processualista florentino Piero
Calamandrei em seu precioso livro Eles, os juízes, vistos por um advogado,4 ao falar da
“habilidade” de alguns advogados (e às vezes dos juízes) de transformar questões de
fato em questões de direito e vice-versa:
O que nos leva de volta ao livro, no qual o problema é tratado no Capítulo III.
O fenômeno jurídico envolve, necessariamente, fatos. “É sempre um aconteci-
mento da vida, um fato em sentido amplo (fato ou ato jurídico, conforme resulte ou não
da vontade humana), que desencadeia a criação, extinção ou modificação de direitos.
Ex facto oritur ius”.5
Nesse sentido, lembra o autor a lição de Miguel Reale (o direito é constituído de
fato, valor e norma).
Daí não se segue, porém, que não seja possível, em que pese às vezes não seja
fácil, separar no processo as questões de fato das questões de direito.
Não há direito sem fatos, mas, no processo, essa realidade pode sofrer um “recorte”,
por força da qual o objeto da investigação judicial recai apenas sobre o direito (interpre-
tação da norma jurídica ou a subsunção do fato a ela). É o que ocorre, por exemplo, no
4
CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado. Tradução de Eduardo Brandão.
São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 170-171.
5
Cf. Distinção entre questão de fato e questão de direito: reexame e valoração da prova no
recurso especial. Revista Dialética de Direito Processual, n. 43, p. 32, out. 2006, de nossa autoria.
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Resenha 233
6
Demonstra o autor que no julgamento do recurso o Tribunal não pode julgar desde logo a
causa se houver prova a ser produzida e que igualmente deve respeitar as conclusões do
Tribunal a quo a respeito da matéria fática contida no acórdão recorrido (salvo, por exemplo,
se afastar determinada prova por reputá-la ilegal). Cf. Capítulo IV, §8º, 24.
7
Cf. Capítulo III, §5º, 16 e 17.
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234 Eduardo Henrique de Oliveira Yoshikawa
8
A primeira situação pode ocorrer para aqueles que entendem que a indenização por dano
moral deve ter caráter punitivo, inspirada no direito norte-americano (punitive damages). A
segunda, caso tenha sido aplicado o parágrafo único do art. 944 do CC. Em nossa opinião,
ambas são inconstitucionais, como já tivemos a oportunidade de defender. Cf. A incompati-
bilidade do caráter punitivo da indenização do dano moral com o direito positivo brasileiro
(à luz do art. 5º, XXXIX, da CF/88 e do art. 944, caput, do CC/2002). São Paulo, Revista de Direito
Privado, n. 35, p. 77-96, jul./set. 2008.
9
Como reconhece o autor, a má aplicação de regra de experiência não pode ser objeto de
recurso especial. Cf. Capítulo IV, §10, 41.
10
Abstraindo-se, assim, outros fatores que costumam ser utilizados para arbitrar o valor da inde-
nização, como o grau de culpa do agente e o seu patrimônio (com o que não concordamos).
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 231-235, abr./jun. 2012
Resenha 235
segue discorrendo a respeito do controle dos meios de prova em espécie e a sua apli-
cação em situações específicas como a do mandado de segurança e da ação monitó-
ria. Merecem destaque, ainda, as discussões a respeito do exame em recurso especial
das presunções judiciais e regras de experiência, dos fatos notórios, dos fatos confes-
sados, das alegações de fatos não impugnadas e de fatos supervenientes.
Mais não é necessário dizer para demonstrar a utilidade das investigações
desenvolvidas pelo autor.
FONSECA, João Francisco Naves da. Exame dos fatos nos recursos extraordinário e especial. São
Paulo: Saraiva, 2012. Resenha de: YOSHIKAWA, Eduardo Henrique de Oliveira. Revista Brasileira
de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 231-235, abr./jun. 2012.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 231-235, abr./jun. 2012
MARTINS, Sandro Gilbert. Processo, procedimento
e ato processual: o plano da eficácia. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2012
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 237-238, abr./jun. 2012
238 Pedro Henrique Pedrosa Nogueira
MARTINS, Sandro Gilbert. Processo, procedimento e ato processual: o plano da eficácia. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2012. Resenha de: NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Revista Brasileira de Direito
Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 237-238, abr./jun. 2012.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 237-238, abr./jun. 2012
ROQUE, Andre Vasconcelos; DUARTE, Francisco
Carlos. Mandado de segurança: comentários à Lei
12.016/09. Curitiba: Juruá, 2011
No prefácio do livro que ora apresento, os autores utilizam uma singular alegoria
do filme O Curioso Caso de Benjamin Button, adaptação do romance de 1920 do genial
F. Scott Fitzgerald.
No livro, o paralelo estabelecido pelos autores se fixa na constatação de que a
nova Lei do Mandado de Segurança (Lei nº 12.016, de 07 de agosto de 2009) nasceu
velha, eis que repete, em alguma medida, a disciplina esclerosada da Lei nº 1.533, de
31 de dezembro de 1951.
Propugnam então os autores uma hermenêutica, por assim dizer, rejuvenes-
cedora, que atualize, para o presente, a novel lei, a fim de que possa responder aos
anseios e às exigências reinantes, quiçá futuras.
Pois bem, feito o registro, embarco na feliz figuração para dizer, o livro que apre-
sento é daqueles que nasceu velho, pois experimentado, fruto de reflexão aturada,
mas não desgastado e, muito menos, esclerosado.
A obra virtuosamente aproveitou a construção doutrinária e jurisprudencial
edificada ao longo de, pelo menos, três quartéis de século, erigidas na vigência da lei
ab-rogada, sem embolorar suas páginas com citações desnecessárias, desatualizadas
e, assim, contraproducentes.
Demais disso, a obra traz aquele sopro de juventude, inovação, que se espera
daquelas que pretendam dar mais um passo no longo caminho da claridade científica,
não se limitando a compendiar ou fotografar lições doutrinárias cansadas e desgastadas
de tanto serem reproduzidas.
Portanto, merece destaque, pelo menos na minha compreensão, o esforço
empreendido, perpassante por todo o texto, de atualização das disposições legisla-
tivas, só formalmente novas, através de uma interpretação, mais que histórica, atual.
Bem trilhou a obra, ainda que inadvertidamente, as lições de Carnelutti, que no
seu monumental Sistemas posicionou como ideia capital a realidade, eis que o jurista
deve prestar contas a ela.
Pois bem, o livro acerta suas contas com a realidade, sem descurar da análise
científica dos institutos, tal qual o professor milanês, sob o duplo aspecto da estrutura
e da função.
Nesta perspectiva renovadora e compromissada, o livro passa por todos os pre-
ceptivos da atual Lei do Mandado de Segurança, tomando o cuidado de transcrever as
disposições revogadas para devida comparação.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 239-240, abr./jun. 2012
240 Zulmar Duarte de Oliveira Junior
ROQUE, Andre Vasconcelos; DUARTE, Francisco Carlos. Mandado de segurança: comentários à Lei
12.016/09. Curitiba: Juruá, 2011. Resenha de: OLIVEIRA JUNIOR, Zulmar Duarte de. Revista Brasileira
de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 239-240, abr./jun. 2012.
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 239-240, abr./jun. 2012
Índice
página página
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 241-244, abr./jun. 2012
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Índice 243
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244 Índice
página página
N R
NATUREZA JURÍDICA DA MULTA RECORRIBILIDADE
- Ver: Aplicabilidade da multa do art. 475-J - Ver: O conceito de sentença no Novo Código
do CPC condicionada à espécie de liquidação de Processo Civil e suas implicações no pro-
exigida pela sentença condenatória. Artigo cesso de execução – O acerto do Projeto
de: Maurício Zandoná............................................. 93 nº 8.046/10. Artigo de: Rafael de
Oliveira Guimarães.................................................. 55
NEOPROCESSUALISMO
- Ver: (Neo)Processualismo e (Neo)CPC – Refle- S
SISTEMÁTICA VIGENTE
xões sobre a nova interpretação processual.
- Ver: O conceito de sentença no Novo Código
Artigo de: Rafael José Nadim de Lazari...........123
de Processo Civil e suas implicações no pro-
cesso de execução – O acerto do Projeto
O nº 8.046/10. Artigo de: Rafael de
OBRIGAÇÃO PROCESSUAL Oliveira Guimarães.................................................. 55
- Ver: A aplicabilidade da multa por litigância de
má-fé aos advogados atuantes no processo. T
Artigo de: Gabriel Freitas Maciel Garcia de TEORIA DE FALIBILIDADE DO DISCURSO
Carvalho....................................................................157 - Ver: Fórmula de problematização do discurso
em Popper e teoria processual da democracia.
OFENSA A PRINCÍPIOS Artigo de: Andréa Alves de Almeida.................. 29
- Ver: Repensando a (in)constitucionalidade da
penhora online. Artigo de: Vanessa TEORIA NEOINSTITUCIONALISTA
Bezerra Maneschy..................................................109 - Ver: Fórmula de problematização do discurso
em Popper e teoria processual da democracia.
ORDEM JURÍDICA JUSTA Artigo de: Andréa Alves de Almeida.................. 29
- Ver: (Neo)Processualismo e (Neo)CPC – Refle-
xões sobre a nova interpretação processual. TEORIA PROCESSUAL DA DEMOCRACIA
Artigo de: Rafael José Nadim de Lazari...........123 - Ver: Fórmula de problematização do discurso
em Popper e teoria processual da democracia.
P Artigo de: Andréa Alves de Almeida.................. 29
PENHORA ONLINE
- Ver: Repensando a (in)constitucionalidade da TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL
penhora online. Artigo de: Vanessa - Ver: Liquidação de títulos executivos extra
Bezerra Maneschy..................................................109 judiciais. Artigo de: Rodrigo Ramina
de Lucca.....................................................................141
PREJUÍZO
- Ver: Ius postulandi na Justiça do Trabalho – TÍTULO EXECUTIVO JUDICIAL
Acesso à justiça ou injustiça?. Artigo de: - Ver: Liquidação de títulos executivos extra
Lícia Bonesi Jardim................................................183 judiciais. Artigo de: Rodrigo Ramina
de Lucca.....................................................................141
PROCESSO CIVIL
- Ver: A aplicabilidade da multa por litigância de TÍTULO EXECUTIVO JUDICIAL
má-fé aos advogados atuantes no processo. - Ver: Liquidação de títulos executivos extra
Artigo de: Gabriel Freitas Maciel Garcia de judiciais. Artigo de: Rodrigo Ramina
Carvalho....................................................................157 de Lucca.....................................................................141
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 241-244, abr./jun. 2012
Instruções para os autores
R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 245-246, abr./jun. 2012
246 Instruções para os autores
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R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 78, p. 245-246, abr./jun. 2012