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REVISTA BRASILEIRA DE DIREITO PROCESSUAL - RBDPro


Diretores
Lúcio Delfino
Fernando Rossi

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A. João D’Amico Fredie Didier Jr.
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João Delfino Ovídio A. Baptista da Silva (in memoriam)
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Conselho Internacional
Alvaro Pérez Ragone (Chile) Miguel Teixeira de Sousa (Portugal) Juan Montero Aroca (Espanha)
Edoardo Ricci (Itália) Paula Costa e Silva (Portugal)

R454 Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro. ano 15,


n. 59, jul./set. 2007. Belo Horizonte: Fórum, 2007.

Trimestral
ISSN 0100-2589

Publicada do n. 1, jan./mar. 1975 ao n. 14, abr./jun.1978
pela Vitória Artes Gráfica, Uberaba/MG.
Publicada do n. 15, jul./set. 1978 ao n. 58, abr./ jun. 1988
pela Editora Forense, Rio de Janeiro/RJ.
Publicação interrompida em 1988 e retomada pela
Editora Fórum em 2007.

1. Direito processual. I. Fórum.

CDD: 347.8 CDU: 347.9

© 2011 Editora Fórum Ltda.


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Impressa no Brasil / Printed in Brazil


Distribuída em todo o Território Nacional

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Sumário

Editorial.............................................................................................................................. 7

DOUTRINA

Artigos

Impedimento e suspeição no processo administrativo


Alice Ribeiro de Sousa .................................................................................................. 11
1 Introdução............................................................................................................. 11
2 Casuística do impedimento.................................................................................... 12
3 Casuística da suspeição.......................................................................................... 16
4 Procedimento do incidente de impedimento e suspeição........................................ 18
Conclusão ............................................................................................................. 20
Referências............................................................................................................ 21

O Regime Processual Civil Experimental do Decreto-Lei nº. 108/2006,


de 8 de Junho
Carlos Manuel Ferreira da Silva ................................................................................... 23
I Introdução............................................................................................................. 23
II O dever de gestão processual do juiz..................................................................... 24
III Tratamento integrado de acções............................................................................ 26
IV Marcha do processo.............................................................................................. 28
V Apelo à utilização de alguns mecanismos processuais............................................ 31
VI Reforço da utilização dos meios informáticos......................................................... 34
VII Conclusões............................................................................................................ 34
Alguma bibliografia............................................................................................... 38

O sistema recursal e os meios autônomos de impugnação no âmbito


dos juizados especiais cíveis – novos contornos jurisprudenciais
Celso Jorge Fernandes Belmiro ................................................................................... 41
1 Considerações iniciais............................................................................................. 42
2 Apontamentos acerca do sistema recursal nos juizados especiais
cíveis estaduais...................................................................................................... 44
2.1 As formas recursais expressamente previstas na Lei nº 9.099/95:
o recurso “inominado” e os “embargos de declaração”.......................................... 44
2.2 As formas recursais não expressamente previstas na Lei nº 9.099/95:
o trabalho integrativo da doutrina e da jurisprudência............................................ 47
2.2.1 O agravo e as decisões interlocutórias em primeiro grau de jurisdição.................... 48
2.2.2 O agravo e as decisões interlocutórias proferidas pelo relator do
recurso inominado................................................................................................. 49
2.2.3 Os recursos extraordinários: o acórdão da Turma Recursal e sua impugnação......... 52
2.2.4 A inadmissão do recurso extraordinário: o agravo de instrumento do
art. 544................................................................................................................. 56
3 O mandado de segurança: noções gerais e sua utilização no âmbito dos
juizados especiais cíveis.......................................................................................... 59
3.1 O mandado de segurança como instrumento de impugnação de atos do
Poder Público em geral e dos atos judiciais, em particular....................................... 59

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3.2 A possibilidade de impetração de mandado de segurança no âmbito dos
juizados especiais cíveis.......................................................................................... 64
4 O acesso aos Tribunais de Justiça e ao Superior Tribunal de Justiça das
demandas oriundas dos juizados especiais............................................................. 67
4.1 O mandado de segurança impetrado originariamente no Tribunal de Justiça e
o recurso ao Superior Tribunal de Justiça: as questões relativas à competência
dos juizados especiais............................................................................................ 67
4.2 A reclamação constitucional para a garantia da autoridade das decisões do STJ...... 73
5 Conclusão.............................................................................................................. 76
Referências............................................................................................................ 78

Proposições teóricas aos institutos da emendatio libelli e da mutatio libelli


– superação do processo como instrumento de jurisdição
Jânio Oliveira Donato, Leonardo Augusto Marinho Marques .................................. 81
1 Introdução............................................................................................................. 81
2 Análise crítica dos institutos da emendatio libelli e da mutatio libelli:
perpetuação da instrumentalidade processual na reforma de 2008 ....................... 83
3 Das novas teorias do processo e da necessidade de conformação da emendatio
e da mutatio libelli ao modelo processual penal democrático e de bases
discursivas. Proposições teóricas............................................................................. 89
4 Considerações finais............................................................................................... 93
Referências............................................................................................................ 94

Algumas notas sobre o controle jurisdicional da arbitragem


João Bosco Won Held Gonçalves de Freitas Filho, Marcelo Pereira de Almeida ..... 97
1 Introdução............................................................................................................. 97
2 Formas de solução de conflitos no contexto do acesso à justiça.............................. 99
3 A arbitragem no ordenamento jurídico brasileiro.................................................. 104
4 O controle jurisdicional da arbitragem.................................................................. 109
5 Conclusão............................................................................................................ 115
Referências.......................................................................................................... 116

Colaboração na concretização da decisão da causa


Lívio Goellner Goron .................................................................................................. 119
Introdução........................................................................................................... 119
1 Tutela nos planos material e processual................................................................ 120
1.1 Considerações sobre a relação entre direito material e tutela processual............... 120
1.1.1 Primeiro modelo: a “ação de direito material” como polo metodológico............... 122
1.1.2 Segundo modelo: a “tutela” como polo metodológico e a auto­nomia dos
valores do processo............................................................................................. 124
1.2 Tutelas jurídicas no plano do direito material........................................................ 128
1.3 Tutelas jurídicas no plano do direito processual.................................................... 131
2 A atividade de concretização da decisão da causa................................................ 137
2.1 A “pessoalização” dos direitos, a universalização da sentença condenatória e
sua superação...................................................................................................... 137
2.2 Decisões autossuficientes e não autossuficientes.................................................. 139
2.3 A atividade material do juízo: sua “jurisdicionalização” e “cons­titucionalização”... 140
3 Colaboração na concretização da decisão da causa.............................................. 141
3.1 Escopo da colaboração no âmbito da atividade material do juízo......................... 141
3.2 Colaboração na efetivação da tutela mandamental.............................................. 143
3.3 Colaboração na efetivação da tutela executiva lato sensu..................................... 144

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3.4 Colaboração na efetivação da tutela executiva stricto sensu.................................. 146
Conclusão............................................................................................................ 147
Referências.......................................................................................................... 148

Uma aproximação dos fatos jurídicos processuais extraprocedimentais


Pedro Henrique Pedrosa Nogueira ............................................................................ 151
1 Introito................................................................................................................ 151
2 Noção preliminar de fato jurídico......................................................................... 151
3 Delimitação conceitual dos fatos jurídicos processuais.......................................... 154
3.1 Uma avaliação crítica........................................................................................... 157
3.1.1 Insuficiência da noção legal de ato processual...................................................... 158
3.2 A classificação proposta por Fredie Didier Jr.......................................................... 160
4 Fatos jurídicos processuais e situações processuais................................................ 161
5 Conclusão............................................................................................................ 165
Referências.......................................................................................................... 165

A tutela coletiva passiva do Código Modelo de Processos Coletivos para


Ibero-América e sua aplicação no direito brasileiro
Rafael Caselli Pereira .................................................................................................. 169
Introdução........................................................................................................... 169
1 Origem histórica da defendant class action........................................................... 171
2 A tutela coletiva passiva no Brasil......................................................................... 177
3 O Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América e o anteprojeto
do Código Brasileiro de Processo Coletivo............................................................. 185
Conclusão............................................................................................................ 191
Referências.......................................................................................................... 194

A eutanásia na processualidade democrática brasileira


Roberta Beatriz Bernardes da Silva, Roberta Toledo Campos ................................ 197
1 Introdução........................................................................................................... 198
2 Eutanásia, distanásia, mistanásia e ortotanásia: algumas classificações.................. 199
3 A eutanásia perante a Teoria Analítica do Delito................................................... 201
4 Paradigmas jurídicos............................................................................................ 205
4.1 Estado de Direito Liberal e Estado de Direito Social............................................... 207
4.2 A eutanásia sob a ótica de um novo marco teórico: o Estado de Direito
Democrático........................................................................................................ 210
5 O processo como uma instituição constitucionalizada.......................................... 213
5.1 A construção do conteúdo do bem jurídico vida digna......................................... 216
5.1.1 A dignidade da pessoa humana como fundamento da nova ordem democrática.... 217
5.1.2 A liquidez e a certeza do direito à vida digna....................................................... 219
6 Apontamentos sobre o controle de constitucionalidade em face da punição
da prática da eutanásia........................................................................................ 221
6.1 A inexistência de conduta criminosa na prática da eutanásia sob a perspectiva
do marco teórico democrático............................................................................. 222
7 Considerações finais............................................................................................. 223
Referências.......................................................................................................... 225

NOTAS E COMENTÁRIOS

Discurso de abertura do Congresso de Direito Processual de Uberaba – 4ª edição


A. João D’Amico .......................................................................................................... 229

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Introito à Comenda Professor Edson Prata, ofertada na 4ª edição do Congresso
de Direito Processual de Uberaba pelo IAMG, 1ª Seção Uberaba, a expoentes
do cenário jurídico
Luciano Del Duque ..................................................................................................... 232

A propósito de uma homenagem a Ronaldo Cunha Campos


Luiz Carlos de Arruda ................................................................................................. 233

O nosso primeiro Tribunal de Justiça


Aristoteles Atheniense ............................................................................................... 239

RESENHAS

MOREIRA, Alberto Camiña; ALVAREZ, Anselmo Prieto; BRUSCHI, Gilberto Gomes (Coord.).
Panorama atual das tutelas individual e coletiva: estudos em homenagem ao Professor
Sérgio Shimura. São Paulo: Saraiva, 2011.
Marcelo José Magalhães Bonicio .............................................................................. 243

WELSCH, Gisele Mazzoni. O reexame necessário e a efetividade da tutela jurisdicional.


Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2010.
Guilherme Botelho ..................................................................................................... 247

MIRANDA NETTO, Fernando Gama de; ROCHA, Felippe Borring (Org.). Juizados
especiais cíveis: novos desafios. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
Lúcio Delfino ............................................................................................................... 249

Índice ........................................................................................................................... 251

Instruções de publicação para os autores ............................................................... 255

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Editorial

Esta edição pretende congratular.


A nomeação do Ministro Luiz Fux do Superior Tribunal de
Justiça pela Presidente da República, Dilma Rousseff, para o Supremo
Tribunal Federal foi publicada no Diário Oficial da União de 11.02.2011.
O Ministro Luiz Fux é juiz de carreira, exerceu a advocacia por dois anos
e foi promotor de justiça por outros três. Em 1983 passou em primeiro
lugar em concurso público para a magistratura e quatro anos depois
foi promovido a Desembargador do TJRJ. Em 2001 foi nomeado ao
STJ. O Ministro Fux passou pela sabatina da Comissão de Constituição,
Jus­tiça e Cidadania do Senado Federal e, durante a sessão, merece desta­
que a intervenção do Senador Lobão Filho. O parlamentar ressaltou que
raramente viu unanimidades, mas o Ministro era uma delas. E completou:
– “Primeiramente achei que fosse decorrente de seu currículo, que de
tão pesado parece uma arma. Mas me convenci de que a unanimidade
se deve a sua figura humana”. A presença do Ministro Fux no conselho
editorial da Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro sempre foi
motivo de orgulho. A excelência dos seus serviços já prestados à nação
certamente permanecerá incólume junto à Alta Corte.
A Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro vem cumprindo
sua função de oxigenar a ciência processual. Inúmeras teses, argumentos
e temas de alta implicação à sociedade brasileira são debatidos neste
periódico. A transformação, a mudança, o devir são constantes a serem
asseguradas no Estado Democrático de Direito. Os dogmas não estão a
salvo de questionamentos.
Nesse sentido, por exemplo, a relação entre a lide e a evolução social
não está isenta de críticas. Há quem afirme que “a paz que pelo Direito
se almeja não consiste em se abolir a existência dos conflitos, amorda­
çando-se o pensamento, negando-se as diferenças, para se aniquilar as
diver­gências”. Diante desse pensamento o conflito teria papel de desta­
que. Ele seria “acolhido e reconhecido” abrindo-se “o espaço para que
ele se manifeste, e, do jogo do contraditório, forma-se as decisões que
interfe­rem nos direitos individuais e coletivos na vida da sociedade.”1

1
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992. p. 184.

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8 Editorial

Ao contrário do que se acredita, nessa percepção, a lide poderia ser


considerada essencial. Portanto, até mesmo a paz social, como esco­
po magno da jurisdição,2 pode ser criticada e revista. Com o perdão do
trocadilho, a ciência não escolhe suas “vítimas”. Aliás, talvez por isso,
Machado de Assis (1865) teria dito que “a verdade sai do poço, sem
indagar quem se acha à borda.”
Em meio a festejada notícia e algumas divagações, temos a aguardada
edição n. 73. Neste número há o destaque de artigos de juristas de escol,
tais como, João Bosco Won Held, Marcelo Pereira de Almeida, Carlos
Manuel Ferreira da Silva, Alice Ribeiro de Sousa, Celso Jorge Fernandes
Belmiro, Pedro Henrique Pedrosa Nogueira, Lívio Goellner Goron, Jânio
Oliveira Donato, Leonardo Augusto Marinho Marques, Rafael Caselli
Pereira, Roberta Beatriz Bernardes e Roberta Toledo Campos.
Despedimo-nos com pesar, mas na certeza de que não seremos
mais empecilho para o imediato início da leitura. Aliás, cumpre ressaltar
as palavras de Nietzsche (1877): “O autor tem direito ao prefácio; mas
ao leitor pertence o posfácio.”

Os Diretores

2
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do
processo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 24.

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DOUTRINA
Artigos

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Impedimento e suspeição no processo
administrativo
Alice Ribeiro de Sousa
Professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia. Mestranda em Direito
Público pela Universidade Federal de Uberlândia.

Resumo: O processo administrativo brasileiro tem sofrido grande evolução


desde o advento da Constituição Federal, culminando na edição da Lei
nº 9.784/99. Uma das principais características do processo administrativo
contemporâneo é a utilização de instrumentos próprios de outras searas
processuais, no que for aplicável. É o caso da previsão dos institutos do
impedimento e da suspeição, mais conhecidos no âmbito do processo civil
e penal. O presente trabalho busca oferecer ao leitor uma visão panorâmica
dos referidos institutos dentro da dinâmica processual administrativa,
ressaltando as suas particularidades e diferenças e tecendo comentários sobre
sua aplicabilidade e eficiência. Depois da necessária análise da lei, doutrina e
jurisprudência aplicáveis ao assunto, chegou-se à conclusão de que o processo
administrativo federal reflete as garantias constitucionais aplicáveis ao devido
processo legal, e entre elas está a imputação do julgamento a autoridade
imparcial, característica que os institutos do impedimento e da suspeição
visam a proteger.
Palavras-chave: Processo administrativo. Impedimento. Suspeição.
Sumário: 1 Introdução – 2 Casuística do impedimento – 3 Casuística da
suspeição – 4 Procedimento do incidente de impedimento e suspeição
– Conclusão – Referências

1 Introdução
O conceito de impedimento e suspeição no processo administrativo
é o mesmo aplicável ao processo judicial, ou seja, são institutos que visam
a atestar a isenção do julgador, essencial a qualquer atividade processual.
Em se tratando de processos administrativos, mais se avoluma a necessi­
dade de ser garantida a imparcialidade, em face dos princípios da isono­
mia, da moralidade e da impessoalidade que, pela dicção da Carta Magna,
são regedores da atividade administrativa.
A Lei nº 9.784/99 trata do assunto nos arts. 18 a 21 e tem por funda­
mento o princípio constitucional da imparcialidade do julgador, cujas
bases encontram-se nas garantias constitucionais da impessoalidade, do
contraditório e da ampla defesa.
Pelo princípio da impessoalidade, o servidor público deve aten­
der ao interesse público e à finalidade que orienta o exercício de sua
competência. O reflexo desse princípio é a exigência da imparcialidade

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12 Alice Ribeiro de Sousa

e a consequente aplicação das normas sobre impedimento e suspeição


previstas em lei.
Por tal razão, as normas relacionadas ao impedimento e à suspei­
ção somente terão aplicação automática nos processos administrativos
em sentido estrito, isto é, naqueles casos que envolvam litígios e sobre
os quais deverão incidir as garantias constitucionais do contraditório e
da ampla defesa.1
Embora seja facilmente compreendida, a noção de que só pode
haver impedimento e suspeição nos processos administrativos em sentido
estrito não deixa de merecer maiores reflexões. Afinal de contas, mesmo
à míngua de litígios, é possível divisar, na prática, casos em que a atua­
ção do agente pode favorecer ou prejudicar determinadas pessoas, o
que obrigaria à observância do requisito da imparcialidade. Imagine-se,
por exemplo, a liberação de recursos para entidades beneméritas por
intermédio do setor social de qualquer esfera governamental. Inexiste
litígio. Porém, é até intuitivo que o procedimento restará afetado se,
entre os componentes de alguma entidade pretendente, figurar parente
próximo da autoridade com poder decisório.
Certo, pois, é dizer que a aplicabilidade dos institutos do impe­
dimento e suspeição aos processos administrativos despidos de litígios,
ao contrário do que possa parecer à primeira vista, demanda aprofun­
damento e está longe de encontrar pacificação completa.

2 Casuística do impedimento
Conforme determina a Lei nº 9.784/99, em seu art. 18, está impe­
dido de atuar no processo administrativo o servidor ou autoridade que:
a) tenha interesse direto ou indireto no objeto do processo; b) tenha
participado ou venha a participar do processo como perito, testemu­
nha ou representante, ou se tais situações ocorrem quanto ao cônjuge,
companheiro ou parente e afins até o terceiro grau; c) esteja litigando
judicial ou administrativamente com o interessado ou respectivo cônjuge
ou companheiro.
O impedimento ocorre na presença de uma situação de incapaci­
dade absoluta do servidor ou autoridade para atuar em processos admi­
nistrativos, tendo este natureza objetiva, ou seja, não se questiona sobre
1
CARVALHO, Iuri Matos de. Do impedimento e suspeição no processo administrativo (arts. 18 a 21). In:
FIGUEIREDO, Lúcia Valle (Coord.). Comentários à lei federal de processo administrativo: (Lei 9.784/99). Belo
Horizonte: Fórum, 2004. p. 127.

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Impedimento e suspeição no processo administrativo 13

elementos subjetivos do agente. Melhor dizendo, o interesse no processo


torna-se tão evidente que isso por si só denota a incorreta atuação do
servidor ou autoridade.
Todavia, segundo entendimento de José dos Santos Carvalho Filho,
a hipótese do inciso I do art. 18 não teria natureza objetiva, sendo que
a única diferença entre o interesse direto ou indireto está no fato de o
interesse do agente na matéria ser maior ou menor, inexistindo, contudo,
um limite para distingui-los. Para o autor, há interesse direto quando não
existir dúvida sobre a forma que a autoridade desejaria que a matéria
fosse tratada, e o interesse indireto resultaria de indícios de que o agente
receberá vantagem ou terá algum prejuízo conforme seja a solução da
matéria em questão.2
Portanto, para fiel aplicação da norma, as circunstâncias que envol­
vam interesse indireto deverão ser analisadas caso a caso, em virtude da
ausência de objetividade.
Na segunda hipótese, prevista no inciso II, do art. 18, haverá impe­
dimento em quatro situações: se houver atuação da autoridade ocorrida
no passado como perito, testemunha ou representante no mesmo proces­
so; se houver atuação da autoridade ocorrida no presente ou atuação
futura como perito, testemunha ou representante no mesmo processo; se
houver atuação ocorrida no passado do cônjuge, companheiro ou paren­
te como perito, testemunha ou representante no mesmo processo; se
houver participação ocorrida no presente ou atuação futura do cônjuge,
companheiro ou parente como perito, testemunha ou representante no
mesmo processo.
Em todas as hipóteses indicadas, a objetividade é de fácil per­cep­ção.
A intenção do legislador foi impedir que o servidor ou autoridade exer­
çam no processo mais de uma função, o que possibilitaria a ocorrência
de situações que indicassem vontades antagônicas.
A atuação do servidor ou autoridade e de seu cônjuge ou parentes
ocorrida no passado é de fácil comprovação, o que evita maiores ques­
tio­
namentos, posto ser geralmente documentada. Entretanto, quando
se trata de causa de impedimento com possibilidade de ocorrência no
futuro, a lei não esclarece se a expressão venha a participar refere-se
a uma certeza ou mera probabilidade, o que dificulta a solução de casos
concretos.
2
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Processo administrativo federal: comentários à Lei nº 9.784/99. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2001. p. 132.

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14 Alice Ribeiro de Sousa

Assim, melhor será entender que a certeza deverá estar presente


para que se verifique o impedimento, sob pena de ficar subtraída a
com­petência com base em simples ilações.
Quanto aos motivos que dão suporte aos casos dispostos no refe­rido
inciso, são de fácil compreensão.
A razão do impedimento de agente que seja perito no mesmo
pro­cesso consiste no fato de que tal função é técnica e deve guardar
dis­tância de qualquer interesse.
O impedimento de servidor ou autoridade no papel de testemu­nha
no mesmo processo explica-se em virtude do fato de que nessa condição
o agente deverá prestar informações e relatar fatos verídicos. Assim
sendo, de igual forma, deverá estar distante de qualquer interesse.
O representante atua na defesa dos interesses do representado.
Sendo assim, o servidor ou autoridade da Administração Pública não
poderão atuar no mesmo processo em que representarem o interessado.
Na terceira hipótese, descrita pelo inciso III, do art. 18, haverá impe­
dimento quando o servidor ou autoridade estiverem litigando judicial ou
administrativamente com o interessado ou respectivo cônjuge ou compa­
nheiro. Tal situação pressupõe, obviamente, a existência de uma disputa
processual entre o servidor ou autoridade e o interessado, não se incluin­
do no caso processos de jurisdição voluntária ou processos administrativos
desprovidos de conflito.
Havendo uma situação de conflito entre o servidor ou autoridade
e o interessado, aumentará o risco de imparcialidade na condução do
processo administrativo, justificando-se, assim, o impedimento.
A aplicabilidade da terceira hipótese de impedimento estende-se
também ao cônjuge ou companheiro do interessado, tendo em vista que
geraria igualmente risco de imparcialidade no processo administrativo.
Questão interessante relaciona-se ao elenco de impedimentos
constantes da Lei nº 9.784/99 e sua possível exaustividade.
Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari entendem que dito elenco
é acanhado e, por se tratar de matéria que deve ser implementada pelo
princípio da impessoalidade, o intérprete poderá promover uma inte­
gração supletiva, utilizando-se da analogia ao Código de Processo Civil.
Destarte, seriam aplicáveis os casos dos incisos IV e VI, do art. 134 do
referido codex, que prevê causas de impedimento inclusive nos processos
de jurisdição voluntária.3
3
DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio. Processo administrativo. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 111.

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Impedimento e suspeição no processo administrativo 15

Não obstante, há que ser lembrada aqui a doutrina de Celso Antônio


Bandeira de Mello, que, com propriedade, argumenta estar, entre as
características da competência, a obrigatoriedade de seu exercício por
parte do agente.4
Em face da irrenunciabilidade que qualifica a competência admi­
nistrativa, correto afirmar que não se justifica o uso de analogia para
solução dos casos possíveis. Assim, mais apropriado será considerar como
taxativo o elenco das causas de impedimento constantes do art. 18.
A autoridade ou servidor que incorrer em qualquer uma das hipó­
teses de impedimento comunicará o fato à autoridade competente, que
deverá afastá-lo, conforme mandamento do caput do art. 19 da Lei nº
9.784/99. No caso, a autoridade competente para receber a comunicação
será o superior hierárquico imediato. Todavia, pode a lei indicar outra
pessoa para conhecer do fato impeditivo.
Ressalte-se que o ato de comunicação do impedimento há que
ser imediato, formalizado e fundamentado no processo administrativo,
a fim de demonstrar o cumprimento do dever imposto pela lei e ainda
para evitar que autoridades declarem-se impedidas de atuar no processo
apenas para fugir de suas responsabilidades.
Quando a autoridade não proceder à comunicação do impedi­
mento, nada obsta que o próprio interessado o faça, por meio de petição
fundamentada e instruída com os documentos necessários à compro­va­ção
das alegações. Gera-se aí então um incidente processual.
O parágrafo único do art. 19 da Lei nº 9.784/99 prevê que a omissão
do dever de comunicar o impedimento constitui falta grave, para efeitos
disciplinares.
Uma vez que a ausência de comunicação do impedimento carac­
teriza-se como falta grave, não poderá ser punida com pena de mera
advertência, de acordo com o disposto na Lei nº 8.112/90. A sanção míni­
ma para a espécie, nos termos das normas estatutárias, será a suspen­são,
cabendo ainda, em tese, a aplicação da pena de multa e a demissão.
A apuração da falta grave deverá correr em processo específico,
no qual se faz imprescindível ficar provado que o servidor ou autoridade
agiu com malícia.
Caso o interessado argua o impedimento antes de assim fazerem
o servidor ou autoridade, conforme o correto entendimento de José
4
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 111.

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16 Alice Ribeiro de Sousa

dos Santos Carvalho Filho, tal situação não irá se converter em configuração
de falta grave. Assim se dá porque a arguição do impedimento pelo
interessado não provoca automaticamente a responsabilidade funcional
do agente.5
A opinião do mestre põe-se de acordo com a solução adotada pelo
Código de Processo Civil em situação análoga. No citado diploma, acha-se
previsto que o juiz tem o dever de abster-se e que, em caso de julga­mento
de procedência da exceção será condenado às custas, conforme arts. 137
e 314. Contudo, o art. 313 admitiu a possibilidade de ser a exceção
aco­lhida de plano pelo próprio magistrado sem a incidência de qualquer
punição, certamente por entender que, até o instante da arguição formal
pelo interessado, plausível é a suposição de que inexiste malícia por
parte do julgador.

3 Casuística da suspeição
Os casos de suspeição são tratados no art. 20 da Lei nº 9.784/99. O
dispositivo legal estipula que pode ser arguida a suspeição de autoridade
ou servidor que tenha amizade íntima ou inimizade notória com algum
dos interessados ou com os respectivos cônjuges, companheiros, parentes
e afins até o terceiro grau.
No dizer de Francisco Xavier da Silva Guimarães, a suspeição provém
da noção de lealdade e isenção, na instrução e julgamento processual que
repousam na afeição, que é instintiva, e não na razão, que é intelectiva.6
Em sendo assim, o afeto ou o desafeto entre o servidor e os inte­
ressados, ou com seus respectivos cônjuges, companheiros, parentes e
afins, opõem-se à imparcialidade que o julgamento do processo requer.
Percebe-se que as leis e também a doutrina têm tratado os impe­
dimentos com maior rigor do que a suspeição. A diferença reside no
fato de que os impedimentos referem-se a fatos e circunstâncias de natu­
reza objetiva, diretamente relacionados ao processo. Já na suspeição,
as situações externas ao processo podem ser deduzidas pelo interessado
e dependem de avaliações subjetivas, podendo ou não influenciar na
decisão da controvérsia.
A lei fala em amizade íntima e inimizade notória, como se a
amizade, não sendo íntima, ou a inimizade, ainda que não seja notória,

5
CARVALHO FILHO, op. cit., p. 144.
6
GUIMARÃES, op. cit., p. 95.

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Impedimento e suspeição no processo administrativo 17

não pudessem ensejar a imparcialidade e influir no resultado do


processo administrativo. Em razão disso, necessário analisar os termos
amizade íntima e inimizade notória.
José dos Santos Carvalho Filho entende por íntima somente a
amizade notoriamente conhecida por todos ou por grande número de
pessoas, em virtude de permanente contato, de frequência conjunta
aos lugares e, enfim, de aproximação recíproca entre duas pessoas com
ostensividade social.7
A lei fala também de inimizade, que, ao contrário da amizade,
representa um sentimento de desafeto e de oposição duradoura entre
dois indivíduos. A inimizade, nos termos imaginados pelo legislador,
deverá ser notória, ou seja, a relação de oposição duradoura, recíproca
e hostil precisa revestir-se de caráter público.
Outro ponto importante diz respeito à possibilidade de ser decla­
rada a suspeição pelo próprio servidor ou autoridade, por motivo de
foro íntimo, tendo em vista a omissão a respeito que se verifica no texto
da Lei nº 9.784/99.
O Código de Processo Civil prevê a hipótese de suspeição aqui
tratada no parágrafo único de seu art. 135, que permite ao juiz pro­clamar-
se suspeito com fundamento em motivos de natureza íntima, que não
precisam ser informados. A hipótese constitui exceção à necessidade
de motivar decisão judicial, que se acha diretamente exigida pelo art.
94, IX, da Constituição. Todavia, repousa no direito constitucional de
proteção à intimidade, uma das garantias fundamentais do cidadão,
consoante estatui o inciso X, do art. 5º, também da Constituição.
Por se tratar de garantia fundamental, a proteção à intimidade sobre­
põe-se às normas legais relativas ao exercício da competência, mesmo
aquelas dispostas no próprio texto constitucional, como é o caso da moti­
vação das decisões judiciais.
Portanto, é de se concluir pelo cabimento da declaração de suspei­
ção por motivo de foro íntimo, por ato de ofício, também na seara do
processo administrativo.
Por configurar apenas uma presunção relativa de imparcialidade,
ao contrário do que ocorre no caso do impedimento, não necessita a
suspeição de ser declarada de ofício pela autoridade ou servidor.

7
CARVALHO FILHO, op. cit., p. 145.

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18 Alice Ribeiro de Sousa

Acontece, porém, que a suspeição não reconhecida pelo servidor


ou autoridade e não levantada pela parte interessada poderá dar ensejo
à nulidade do processo, se ficar comprovado que o agente atuou sem a
necessária imparcialidade e isenção exigidas pela legislação.
Ademais, não se pode olvidar que o desrespeito aos princípios da
moralidade, da impessoalidade e da imparcialidade pela autoridade que
conduz o processo administrativo enseja a aplicação de sanções adminis­
trativas, até mesmo cumulativamente com a imposição das penas resul­
tantes da configuração de ato de improbidade administrativa, na forma
da Lei nº 8.429/92.
Como sabido, constitui ato de improbidade administrativa que
atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou
omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade
e lealdade às instituições, nos termos do que prescreve o art. 11 da lei
supracitada. Outrossim, quando a autoridade atuar em processo admi­
nistrativo sem atentar para o requisito obrigatório da imparcialidade,
poderá configurar-se a improbidade administrativa.
Neste panorama, mesmo inexistindo previsão de obrigatoriedade
de reconhecimento de ofício, se a suspeição estiver ocorrendo, é de todo
recomendável que a autoridade ou servidor façam a alegação.

4 Procedimento do incidente de impedimento e suspeição


De início, insta salientar que a lei não indica quem tem a legitimi­
dade para propor exceção de suspeição ou mesmo a de impedimento.
Iuri Mattos de Carvalho aponta que deve ser considerado o elenco
constante do art. 58, que trata da legitimidade para interpor recurso.
Portanto, estariam legitimados os titulares de direitos e interesses discu­
tidos no processo administrativo, aqueles cujos direitos ou interesses forem
indi­retamente afetados pela decisão final, as organizações e associações
representativas, no tocante a direitos e interesses coletivos, os cidadãos
ou associações, quanto a direitos ou interesses difusos.8
Os sujeitos passivos da exceção, por seu turno, serão o servidor ou
autoridade, o mesmo valendo para testemunhas, peritos e outros que
estiverem efetivamente participando do processo e em condições de
influir de algum modo em seu resultado.

8
CARVALHO, op. cit., p. 131.

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Impedimento e suspeição no processo administrativo 19

Apesar da importância que tem a matéria, a lei de regência não se


ocupou do incidente a ser instaurado diante da alegação do impedi­mento
ou suspeição no processo administrativo. Sendo assim, o trâmite do inci­
dente ficou remetido à regulamentação própria de cada ente, valendo
lembrar, porém, a obrigatoriedade de serem respeitados os princípios
que sustentam os dois institutos.
À falta de discriminação legislativa, oportuna desde já a indagação
quanto aos possíveis efeitos que o incidente terá para o processo respec­
tivo. Questão assaz intrigante relaciona-se à necessidade de ser ou não
suspenso o processo.
Em princípio, surge a tentação de responder de modo negativo à
indagação. Isso porque o art. 67 da Lei nº 9.784/99 é claro ao estabelecer
que os prazos no processo administrativo só se suspendem por motivo
de força maior.
Todavia, é pertinente ressaltar que suspender um prazo processual
é diferente de suspender o processo propriamente dito. Prazo proces­
sual corresponde a um lapso de tempo dentro do qual deve certo ato
ser praticado no processo. O processo desenvolve-se em etapas conca­
tenadas, caracterizando-se notadamente por uma sequência de atos,
tendendo a uma solução final. Portanto, em várias ocasiões, é perfei­
tamente possível que se considere o processo em regular andamento
sem que, ao mesmo tempo, exista prazo processual em curso. Noutras
palavras, a regra do art. 67 não esgota o tema.
De outra ponta, tendo em vista a relevância da discussão que se
inaugura quando alegada a ausência de imparcialidade, é por demais
aconselhável que cessem por completo os atos decisórios da autoridade
questionada. Incidiria aqui, pois, a mesma regra disposta na lei pro­ces­­sual
civil, qual seja o inciso III, do art. 265, mediante a qual fica o processo
judicial suspenso, sempre que apresentada exceção de impedimento ou
suspeição do magistrado.
Destarte, uma vez intentada a exceção, deve o processo adminis­
trativo ser sobrestado até que dirimida pela autoridade competente a
questão da imparcialidade. A autoridade competente aqui referida deverá
ser sempre superior à que foi excepcionada, para que reste preservada a
hierarquização inerente a qualquer processo judicial ou administrativo.
A alegação de impedimento e a de suspeição, se não acolhidas,
ensejam a interposição de recurso, a ser recebido no efeito devolutivo,

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20 Alice Ribeiro de Sousa

conforme ordena o art. 21 da Lei nº 9.784/99. O rito aplicável ao recurso,


neste caso, deve ser o geral, cujo regramento tem-se nos arts. 56 a 65,
da citada lei.
Ao recorrente caberá apresentar seu recurso no prazo de dez dias,
dirigindo-o à autoridade que decidiu o incidente. Esta poderá reconsi­
derar em cinco dias ou remeter o caso para apreciação da autoridade
superior.
Malgrado a previsão legal seja no sentido de que o recurso terá
apenas efeito devolutivo, não se descarta a possibilidade de ser-lhe confe­
rido duplo efeito. Assim acontece porque, em caso excepcional, se houver
risco de prejuízo de difícil ou incerta reparação decorrente do cumpri­
mento do ato recorrido, o efeito suspensivo poderá ser concedido, na
forma preconizada pelo art. 61, da Lei nº 9.784/99. Em se conside­rando
que a atuação de julgador parcial revela-se capaz de causar danos de
extrema gravidade àquele que alegou a suspeição ou o impedimento, a
adoção do duplo efeito para o recurso configura-se medida não apenas
plausível, mas até mesmo latente.

Conclusão
Em arremate às explanações contidas neste trabalho, conclui-se
que as normas que tratam da competência no processo administrativo
constituem garantia para seus participantes.
A competência é matéria de interesse público e, via de consequên­
cia, a violação às regras legais que lhe são aplicáveis afeta não apenas os
objetivos das partes, mas toda a coletividade. Daí por que o assunto não
deve ser tratado como mera formalidade processual. Neste ponto, então,
há de se entender que a competência administrativa segue a direção
apontada pelas normas processuais aplicáveis à jurisdição, muito embora
não se confunda com a competência jurisdicional.
A Constituição da República a todos assegurou o contraditório e
a ampla defesa, a imparcialidade e isenção, necessários na condução e
julgamento dos processos administrativos. São os mesmos fundamentos
empregados para fixar a competência jurisdicional no processo judicial.
Sem eles, o juiz ou administrador encarregado de decidir fica impedido
ou, no mínimo, é suspeito para exercer a sua função, pois a possibilidade
de que não decida conforme o disposto na lei, ou conforme o que reco­
menda o interesse público, passa a existir.

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Impedimento e suspeição no processo administrativo 21

Levando-se em consideração que, no direito administrativo brasi­


leiro contemporâneo, o princípio da supremacia do interesse público é
pedra fundamental, a possibilidade de o administrador decidir seguindo
seus próprios interesses, em desprezo daqueles patrocinados pela comu­
nidade, deve ser então rechaçada com todas as forças do ordenamento.

Referências

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Processo administrativo federal: comentários à Lei nº
9.784/99. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.
CARVALHO, Iuri Mattos de. Comentários à lei federal do processo administrativo. Belo Horizonte:
Fórum, 2004.
DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio. Processo administrativo. 2. ed. São Paulo:
Malheiros, 2007.
GUIMARÃES, Francisco Xavier da Silva. Direito processual administrativo. Belo Horizonte:
Fórum, 2008.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 13. ed. São Paulo:
Malheiros, 2008.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

SOUSA, Alice Ribeiro de. Impedimento e suspeição no processo administrativo. Revista


Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 19, n. 73, p. 11-21, jan./mar.
2011.

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O Regime Processual Civil
Experimental do Decreto-Lei
nº. 108/2006, de 8 de Junho
Carlos Manuel Ferreira da Silva
Licenciado em Direito pela Universidade Clássica de Lisboa. Assistente da Faculdade de Direito de
Lisboa, encarregado da regência de Direito Processual Civil I (1975-1977). Membro do Instituto
Iberoamericano de Direito Processual. Membro do Conselho Consultivo da Revista Iberoamericana
de Direito Processual. Membro da Associação Internacional de Direito Judiciário. Membro da
Associação de Direito e Economia Europeia. Advogado em Lisboa, Portugal.

Resumo: O presente artigo traz uma análise comparativa entre o Regime


Processual Civil Experimental — no texto referido como RPCE — e o regime
processual comum do processo civil português, ressaltando que muitas
das técnicas procedimentais estabelecidas pelo RPCE, a rigor, já estão pre­
sentes na dinâmica do CPC de Portugal. O escrito também reforça a tendência
da oralidade e do aumento do papel diretivo do juiz no curso do processo
sem que isso sugira eventual rompimento de sua imparcialidade.
Palavras-chave: Regime Processual Civil Experimental português. Técnicas
procedimentais. Oralidade. Celeridade do procedimento. Posição ativa do
juiz na direção do processo.
Sumário: I Introdução – II O dever de gestão processual do juiz – III
Tratamento integrado de acções – IV Marcha do processo – V Apelo à
utilização de alguns mecanismos processuais – VI Reforço da utilização dos
meios informáticos – VII Conclusões – Alguma bibliografia

I Introdução
1 O Decreto-Lei nº. 108/2006, de 8 de Junho, veio estabelecer um
regime processual experimental aplicável às acções declaratórias cíveis
a que não corresponda processo especial e às acções especiais para o
cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos.1
Procura este Decreto-Lei nº. 108/20062 nos termos do seu preâm­
bulo, criar um processo civil mais simples e flexível, visando lutar contra
a morosidade processual.3
Para esse efeito, é criado uma nova forma de processo, com prazos
mais curtos e com a simplificação/supressão de certas formalidades,
cuja bondade apreciaremos mais adiante.
1
Estas são, grosso modo, acções declarativas cíveis particularmente simplificadas na sua marcha.
2
Doravante, indistintamente, Decreto-Lei nº. 108/2006 ou RPCE (Regime Processual Civil Experimental).
3
Integra-se, assim, num rol já largo de medidas de alteração da marcha do processo com o mesmo propósito
que consideramos esgotadas na sua eficácia uma vez que a demora dos processos não se prende já com os
prazos para a prática dos actos processuais ou com certas formalidades mas sim com a orgânica judiciária
e os bloqueios que derivam, p.ex., do recurso a alguns meios de prova – mormente a pericial e a obter no
estrangeiro, por carta rogatória — e da necessidade de citar o Réu para acção.

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24 Carlos Manuel Ferreira da Silva

Simultâneamente, insiste-se no denominado “dever de gestão


processual do juiz”, reforçando ou relembrando o poder de direcção
do juiz sobre o processo já há muito consagrado no direito processual
português e que, como tal, não constitui novidade doutrinária.
Em todo o caso, será este um dos aspectos que conferem algum
interesse comparatístico ao regime experimental.
Finalmente, e aqui nos parece haver alguma inovação, é objecto
de consideração a conexão entre acções, visando-se evitar a repetição de
actos, como acontece na nova figura da “agregação de acções” e na
possibilidade de, no procedimento cautelar, antecipar o juízo sobre a
causa principal.
Sendo este, em traços gerais, o âmbito do diploma, abordaremos
separadamente:
- o dever de gestão processual do juiz;
- a consideração da relação entre acções;
- a nova marcha do processo;
- o apelo reforçado à utilização de algumas figuras processuais de
recente criação;
- o recurso aos meios informáticos.
2 O regime instituido tem caracter experimental, tendo sido posto
apenas em vigor em 4 tribunais (num conjunto de mais de 300), para os
processos intentados após 16 de Outubro de 2006 e estando prevista a
avaliação da sua vigência através de serviços do Ministério da Justiça.
O Decreto-Lei nº. 108/2006 prescreveu, inclusivamente, a sua revi­
são no prazo de dois anos, a qual, porém, não ocorreu ainda.
Actualmente, ao fim de quase 4 anos de vigência, ignora-se se o
regime experimental se vai ou não tornar definitivo e em que medida.

II O dever de gestão processual do juiz


3 Sob a epígrafe “dever de gestão processual”, dispõe o artº. 8º
do Decreto-Lei nº. 108/2006:
“O juiz dirige o processo devendo nomeadamente:
a) Adoptar a tramitação processual adequada às especificidades da
causa e o conteúdo e a forma dos actos processuais aos fins que
visam atingir;
b) Garantir que não são praticados actos inúteis, recusando o que
for impertinente ou meramente dilatório;

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O Regime Processual Civil Experimental do Decreto-Lei nº. 108/2006, de 8 de Junho 25

c) Adoptar os mecanismos de agilização processual previstos na lei”.


Já dissemos que esta disposição não inova no direito processual
português, como resulta claramente das disposições legais do Código de
Processo Civil4 Português que passamos a transcrever
- Artº. 137º:
“Não é lícito realizar no processo actos inúteis”.
- Artº. 265º, nº. 1:
“Iniciada a instância, cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de
impulso especialmente imposto pela lei às partes, providenciar pelo
andamento regular e célere do processo, promovendo oficiosamente as
diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção e recusando
o que for impertinente ou meramente dilatório”
- Artº. 265º-A:
“Quando a tramitação processual prevista na lei não se adequar
às especificidades da causa, deve o juiz oficiosamente, ouvidas as partes,
determinar a prática dos actos que melhor se ajustem ao fim do processo,
bem como as necessárias adaptações”
Como vemos, o poder de direcção do juiz sobre o processo é um
dado adquirido na legislação portuguesa.
Há, porém, que reconhecer que, na prática, os juízes raramente
farão uso dele o que nem sequer acontecerá por inércia mas porque não
se alcança facilmente como poderá o juiz alterar a marcha do processo a
qual já está bastante simplificada e apurada.
De resto, a própria lei já prevê situações — que, assim, não se
integram no dever geral de gestão — em que o juiz poderá alterar a
marcha do processo: é o caso, p.ex., do nº. 1, alínea a) do artº. 508º-B
do CPC que prevê que o juiz possa dispensar a audiência preliminar
quando a simplicidade da causa o justifique.
A chamada de atenção, mais uma vez, para os poderes de direcção
do juiz no processo — que, indubitavelmente, não podem deixar de
existir ainda que como “válvula de escape” para eventuais casos de
manifesta inadequação da tramitação tipo — não passa de nova tentativa
para chamar a atenção do juiz para a sua co-responsabilidade no sentido
de que o processo alcance de forma expedita o seu propósito que é, no
essencial, a descoberta da verdade material, mas que tem muito mais
significado no que concerne ao princípio do inquisitório e à sanação da
4
Doravante, CPC.

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26 Carlos Manuel Ferreira da Silva

falta de pressupostos processuais5 do que no que diz respeito à eventual


alteração da marcha do processo.
Na verdade, nos últimos anos, a tramitação do processo comum
declarativo não cessa de simplificar-se, obedecendo a um esquema que
pode sintetizar-se assim:
• fase dos articulados: petição inicial, contestação e eventual
resposta (no caso de a contestação envolver excepções ou um
pedido reconvencional);
• fase de saneamento e condensação, através de um despacho
escrito ou uma audiência preparatória, visando a eventual sana­
ção da falta de pressupostos processuais, a fixação dos factos
assentes e a dos factos a provar;
• fase de instrução: produção da prova que deva ter lugar antes da
audiência (prova pericial, eventuais inquirições no estrangeiro...);
• audiência de discussão e julgamento;
• sentença.
Veremos adiante que o RPCE criou um processo ainda mais sim­
plificado, de resto, tão simplificado que se configura como clara­mente
inadequado para os casos mais complicados.
Neste contexto, a efectivação do poder de direcção do juiz há-de
ter muito mais cabimento, não no sentido de simplificar o processo, como
tradicionalmente se desejaria até agora, mas, ironicamente, no sentido
de salvaguardar a sua eficácia na decisão acertada de processos em que
se debatam questões mais complexas.

III Tratamento integrado de acções


4 No sentido de simplificar e agilizar processos, o RPCE cria três
novas figuras que iremos analisar de seguida, a saber:
- agregação de acções;
- prática de actos em separado;
- decisão da causa principal no procedimento cautelar.
Vejamos:

5
Artº. 265 do CPC, nºs. 2 e 3, que se trancrevem:
“2 – O juiz providenciará, mesmo oficiosamente, pelo suprimento da falta de pressupostos processuais
susceptíveis de sanação , determinando a realização dos actos necessários à regularização da instância ou,
quando estiver em causa alguma modificação subjectiva da instância, convidando as partes a praticá-los.
3 – Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento
da verdade e à justa composição do litígio quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”.

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O Regime Processual Civil Experimental do Decreto-Lei nº. 108/2006, de 8 de Junho 27

A) Agregação de acções
5 Nos termos do nº. 1 do artº. 6º do Decreto-Lei nº. 108/2006:
“Quando forem propostas separadamente no mesmo tribunal
acções que, por se verificar os pressupostos de admissibilidade do litis­
consórcio, da coligação, da oposição ou da reconvenção, pudessem ser
reunidas num único processo, pode ser determinada, a requerimento
de qualquer das partes e em alternativa à apensação, a sua associação
transitória para a prática conjunta de um ou mais actos processuais,
nomeadamente actos da secretaria, audiência preliminar, audiência final,
despachos interlocutórios e sentenças.”
Parece-nos esta disposição de sentido positivo, ainda que a opor­
tunidade da sua aplicação não seja frequente.
Mas, quando a situação se coloca, parece-nos adequado, p.ex.,
que se não realizem várias audiências com as mesmas testemunhas, ou
parte delas, a repetirem os seus depoimentos sobre os mesmos factos,
sendo preferível que as testemunhas deponham uma única vez e que
esse depoimento seja aproveitado nos vários processos para que pode
ser pertinente.
A agregação é, nomeadamente, susceptível de evitar contradição de
julgados que é um dos factores que acarretam desprestígio para a justiça.
Apenas nos parece que a previsão da lei podia ser muito mais
ampla, admitindo sem qualquer restrição a prática conjunta de actos
processuais concernentes a acções diversas desde que tal se configurasse
como conveniente, independentemente de as acções poderem estar reu­
nidas num único processo por ocorrerem os pressupostos do litiscon­sór­
cio, da coligação, da oposição ou da reconvenção.
6 Merece menção que a agregação de acções possa ocorrer não
só a requerimento de qualquer das partes como, nos processos que
pendem perante o mesmo juiz, possa ser determinada oficiosamente, sem
audição das partes (nº. 3 do mesmo artº. 6º).
E está ainda previsto que a secretaria — a hipótese configura-se para
os tribunais de maior movimento, com mais do que um juiz — informe
mensalmente o presidente do tribunal e os magistrados dos processos
que se encontrem em condições de ser agendados ou apensados (nº. 7 do
artº. 6º).
A decisão de agregação é susceptível de ser impugnada mas apenas
no recurso que venha a ser interposto da decisão final (nº. 6 do artº. 6º).

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B) Prática de actos em separado


7 O artº. 7º do RPCE prevê, situação que é inversa da da agregação,
que, ocorrendo coligação inicial ou sucessiva de acções ou quando, por
força da dedução de reconvenção tenham sido chamados a intervir no
processo outros sujeitos processuais para além dos iniciais, o Tribunal
pode determinar, ouvidas as partes, que a prática de certos actos se realize
em separado, designadamente quando:
a) Haja inconveniente em que as causas ou pedidos sejam ins­truí­
dos, discutidos e julgados conjuntamente;
b) A prática de actos em separado contribua para um andamento
da causa mais célere ou menos oneroso para as partes ou para o
tribunal.

C) Decisão da causa principal no procedimento cautelar


8 Nos termos do artº. 16º do Decreto-Lei nº. 108/2006, “quando
tenham sido trazidos ao procedimento cautelar os elementos necessários
à resolução definitiva do caso, o tribunal pode, ouvidas as partes, ante­
cipar o juízo sobre a causa principal”.
Trata-se de previsão de aplaudir.
Na verdade, como é da experiência comum, muitas vezes as acções
definitivas repetem os procedimentos cautelares quer nos seus funda­
mentos de facto e de direito quer mesmo nos meios de prova utilizados.
Quando assim é, não há razão para que o procedimento cautelar
não decida definitivamente a causa, pondo-se termo à situação actual em
que a causa é obrigatóriamente repetida6 com as perdas desnecessárias
de tempo e as incongruências que daí podem resultar, nomeadamente
decisões diversas7 por, p.ex., não vir a ser possivel ouvir na acção definitiva
todas as testemunhas ouvidas no procedimento cautelar ou até por, ainda
que as testemunhas sejam as mesmas, depôrem, por qualquer motivo, de
forma diversa no procedimento cautelar a na acção definitiva.

IV Marcha do processo
9 Já vimos acima (nº. 3, in fine) o esquema da marcha do processo
comum ordinário de declaração, utilizada hoje para as acções de valor
superior a €14.963,94.
6
Nos termos do nº. 1 do artº. 383º do CPC “o procedimento cautelar é sempre dependência da causa que
tenha por fundamnento o direito acautelado e pode ser instaurado como preliminar ou como incidente de
acção declarativa ou executiva”.
7
De acordo com o nº. 4 do artº. 383º do CPC “nem o julgamento da matéria de facto, nem a decisão final
proferida no procedimento cautelar, têm qualquer influência no julgamento da acção principal”.

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Ao lado desta forma mais nobre de processo, existem outras duas


formas, a sumária e a sumarissima, sucessivamente mais simplificadas
e aplicáveis a acções de menor valor (até €14.963,94 e até €3.740,98,
respectivamente).
O RPCE criou uma quarta nova marcha de processo muito sim­
plificada, fundindo as três formas de processo existentes e que, como já
vimos (supra nº. 3, in fine) é manifestamente inadequada a acções de
maior complexidade.
Parece-nos que a simplificação tentada não apresenta qualquer
mais valia pois que os ganhos em matéria de prazos são da ordem dos
dias quando o actual atrazo dos processos é de muitos meses ou anos e
não resulta dos prazos estabelecidos.
Que interessa, p.ex., suprimir o terceiro articulado, para cuja
apresentação a parte disporia de 15 dias, se o processo vai estar parado
um ou dois anos por não haver juiz que o despache?
E nunca se deve esquecer que as condutas no processo devem ser
reflectidas e não precipitadas pelo que a mera redução de prazos — p.ex.,
de 20 para 10 dias — é susceptível de prejudicar o direito de defesa
das partes, sem contrapartidas evidentes em termos de celeridade.
Vejamos, numa prespectiva crítica, algumas das principais alte­ra­
ções feitas:

A) Supressão do terceiro articulado


10 O terceiro articulado destina-se, no CPC, fundamentalmente,
à resposta às excepções deduzidas na contestação.8
Não se vê vantagem em suprimir este articulado — relegando o
contraditório quanto às excepções para a audiência preliminar ou obri­
gando o juiz a, no uso do seu poder de gestão, suscitar a sua apresen­
tação (com o que se perderá tempo, em vez de o ganhar!) — quando
as excepções podem obrigar a arrolar extensa matéria de facto e o seu
conheci­mento pode envolver desenvolvido debate jurídico.

B) Redução de número de testemunhas


11 O número total de testemunhas é reduzido, em relação ao
processo ordinário vigente, de 20 para 10 e o número de testemunhas
que podem depôr a cada facto de 5 para 3.

8
E também para resposta à reconvenção, caso em que se mantem (artº. 8º, nº, 3 do RPCE).

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30 Carlos Manuel Ferreira da Silva

Trata-se de mais uma tentativa de simplificação em que se não


vê qualquer vantagem, antes pode conduzir a decisões precipitadas e
infundamentadas.
O número de depoimentos há-de resultar das circunstâncias
da causa — se um acidente de viação só foi visto por uma pessoa, não
haverá nem 20 nem 10 testemunhas do mesmo mas apenas uma — e a
sua pertinência da evolução da audiência. Na verdade, se 3 testemunhas
depuzeram já no mesmo sentido, sem serem contraditadas, talvez se
possa dispensar ouvir mais, mas se, prestados três depoimentos, a reali­dade
dos factos ainda fôr controversa, parece impôr-se que mais testemunhas
sejam ouvidas (na verdade, justifica-se que sejam ouvidas as necessárias
para uma decisão conscenciosa e não um número pré-definido, sem
atenção às particularidades de cada caso!).

C) Concentração da discussão da matéria de facto e do aspecto jurídico


da causa
12 No actual processo ordinário, a discussão da matéria de facto
é oral e imediatamente subsequente à produção de prova e a discussão do
aspecto jurídico da causa, se as partes dela não prescindirem, é posterior
e escrita.
No RPCE a discussão do aspecto jurídico da causa e da matéria de
facto realiza-se em simultâneo, é apenas oral e segue-se imediatamente
à produção de prova (artº. 14º, nº. 3).
Aqui, sim, estamos perante uma simplificação (e maior celeridade).
Sendo a matéria de direito já objecto de discussão escrita nos articulados
e sendo que o vai ser ainda nos recursos para a 2ª. Instância e Supremo
Tribunal de Justiça, que é tradicional interpôr, parece-nos supérflua
uma outra discussão escrita — de que, aliás, é comum prescindir — antes
da sentença.

D) Proferimento imediato da sentença


13 Para além de algumas prescrições no sentido de facilitar a
redacção da sentença — fundamentação por remissão para as peças
processuais das partes, etc. — o nº. 3 do artº. 15º do RPCE dispõe que,
salvo em casos de manifesta complexidade, a sentença é de imediato
ditada para a acta, querendo aqui o imediato dizer que é logo após a
produção da prova, em acto seguido.

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Obviamente, a norma contém a sua própria válvula de escape pois


o juiz, alegando que a sentença é complexa, pode sempre relegá-la para
mais tarde, após adequada ponderação.
Em todo o caso, não pode deixar de dizer-se que a regra do profe­
rimento imediato da sentença9 é, mais uma vez, um convite à leviandade
da decisão, parecendo priveligiar-se a celeridade e a simplificação face
ao acerto da sentença que sempre será o valor maior a salvaguardar.

V Apelo à utilização de alguns mecanismos processuais


14 Tendo em atenção que o presente trabalho visa fins comparatís­
ticos, tem interesse abordar ainda dois mecanismos processuais re­centes
para que o RPCE expressamente remete, a saber:
• Apresentação conjunta da acção pelas partes;
• Prestação de depoimento por escrito e inquirição por acordo
das partes.
Vejamos.

A) Apresentação conjunta da acção pelas partes


15 O artº. 9º do Decreto-Lei nº. 108/2006, de 8 de Junho, dispõe
que as partes podem apresentar a acção para saneamento devendo,
para o efeito, juntar petição conjunta em que terão que:
a) Identificar os factos admitidos por acordo e os factos contro­
vertidos;
b) Tomar posição sobre as questões de direito relevantes;
c) Formular as respectivas pretensões;
d) Requerer as respectivas provas, indicando de forma discrimi­nada
os factos sobre os quais recaem a inquirição de cada uma das
testemunhas e a restante produção de prova; e
e) Requerer a gravação da audiência final ou a intervenção do
colectivo.
E, o nº. 3 do mesmo artº. 9º prevê um mecanismo específico ten­
dente a conseguir-se esta apresentação conjunta da acção, nos seguintes
termos: “O réu que, notificado pelo autor antes de instaurada a acção
com vista à apresentação de petição conjunta, recuse essa apresentação
ou não responda no prazo de 15 dias renuncia ao direito à compensação,

9
Ao arrepio, aliás, de arreigada tradição portuguesa.

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32 Carlos Manuel Ferreira da Silva

pela parte vencida, das custas de parte e, se o autor for a parte vencedora,
a procuradoria é fixada no máximo legal”.
A apresentação conjunta implica que o processo tem carácter
urgente, precedendo os respectivos actos qualquer outro serviço judicial
não urgente, sempre que as partes não tenham requerido a produção
de prova testemunhal ou a partir do momento em que apresentem a acta
de inquirição por acordo de todas as testemunhas arroladas (nº. 5 do
artº. 9º citado).
Em acréscimo, nos termos do artº. 18º do RPCE, a apresentação
conjunta acarreta também que a taxa de justiça (despesas judiciais) seja
reduzida a metade.
Certo é, porém, que, não obstante estes estímulos, não se alcança
que a apresentação conjunta, que já estava em vigor10 sem qualquer
tipo de sucesso, o venha a ter agora.11

B) Depoimento apresentado por escrito e inquirição por acordo


das partes
16 Nos termos do nº. 1 do artº. 12º do Dec.-Lei nº. 108/2006, o
depoimento de uma testemunha “pode ser prestado através de docu­mento
escrito, datado e assinado pelo seu autor, com indicação da acção a que
respeita e do qual conste a relação discriminada dos factos a que assistiu
ou que verificou pessoalmente e das razões de ciência invocadas”.
Também aqui se não trata de uma inovação pois a possibilidade
deste depoimento apresentado por escrito vigoram já desde 1-1-2001
(arts. 639º e 639ºA do CPC, na redacção do Decreto-Lei nº. 183/2000,
de 10 de Agosto).
Em todo o caso, a criação deste depoimento escrito e a sua reno­
vação no RPCE são absolutamente perplexizantes pois, sem mais,
põem em crise princípios sempre vigentes no processo civil português
como os da imediação, da oralidade, da concentração e até o de um
contraditório pleno.
Ora, perdendo-se o norte dos princípios, o processo civil, sob a
pressão da celeridade, torna-se incongruente e desconexo, alienando
o caracter científico que tardou a ser-lhe reconhecido para regressar à
velha sequência desenquadrada de actos.
10
Criada pelo Decreto-Lei nº. 211/91, de 14 de Junho.
11
O próprio suposto estímulo do processamento urgente é controverso uma vez que o desejo de um andamento
célere raramente é comum a ambas as partes!

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Em todo o caso, o nº. 2 do artº. 12º. citado prescreve que, face


ao depoimento escrito, o juiz pode, quando o entenda necessário,
oficiosamente ou a requerimento das partes, determinar a renovação
do depoimento na sua presença, o que permite contrariar os efeitos
nefastos associados ao “escrito” unilateralmente produzido.
Diríamos que a não renovação oral do depoimento escrito devia
ser uma excepção, apenas para o caso esse depoimento surgir incontro­
verso no confronto com as outras provas recolhidas. Decidir uma causa
com base num depoimento escrito, mormente quando contradiz outras
provas, parece-nos uma aberração, um indesejável regresso ao processo
escrito que a oralidade afastou, tanto mais criticável quando estão hoje
disponíveis instrumentos que permitem de forma expedita a recolha de
depoimentos orais como é o caso da videoconferência de que os tribunais
portugueses se socorrem diariamente em substituição das “velhas”
cartas precatórias.
17 O artº. 13º do RPCE estabelece que: “se as partes apresenta­
rem a acta de inquirição por acordo de todas as testemunhas arroladas,
o processo passa a ter carácter urgente”.
Trata-se de estímulo igual ao conferido à apresentação conjunta
da acção sendo que, do mesmo modo, a taxa de justiça do processo é
reduzida a metade (artº. 18º do RPCE).
Também esta inquirição por acordo das partes não é uma
novi­dade, tendo sido criada pelo já citado Dec-Lei nº. 183/2000, de 10
de Agosto, na aparência com inspiração no direito processual americano
o qual, diga-se de passsagem, é de família substancialmente diferente
da do português.
Com este tipo de inquirição, fora do tribunal, no escritório do
mandatário de uma das partes, mais uma vez são postergados vários
princípios processuais nacionais, violação neste caso mitigada em função
do acordo prévio das partes.
Restará perguntar porque, se as partes conformam quase intei­
ramente o processo, apresentando um articulado conjunto e/ou ouvindo
as testemunhas, não são relegadas pelo Estado para um tribunal
arbitral, instituição muito mais adequada a essas circunstâncias que um
tribunal comum.
O que não se compreende é que o Estado aceite que os seus
tribu­nais funcionem como meros tribunais arbitrais e ainda por cima a
preços reduzidos!

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34 Carlos Manuel Ferreira da Silva

Esperemos que, com a desculpa da celeridade, se não acabe por


destruir, involuntaria ou até voluntariamente, o processo construido como
instrumento público destinado a fazer a justiça decorrente da verdade
material, substituindo-o por uma mera prestação de serviço, segundo
encomenda do cliente, ou seja, com o juiz a limitar-se a decidir uma causa
tal como as partes a conformam (quiçá, então, uma causa meramente
hipotética!) e não a administrar justiça em nome do povo como a
Constituição (artº. 202º., nº. 1) lhe ordena.

VI Reforço da utilização dos meios informáticos


18 No RPCE amplia-se o uso dos meios informáticos.
Nos termos do artº. 3º, “todos os actos processuais, incluindo os
actos das partes, que devem ser praticados por escrito, são praticados
electronicamente”.
Torna-se, assim, obrigatório no processo declarativo o recurso aos
meios informáticos à semelhança do que já hoje sucede no processo
executivo.
Também, no caso de citação edital, se estabelece agora (artº. 5º,
nº. 1) que a mesma é feita pela publicação de anúncios em página infor­
mática especifica de acesso público, regulamentada pelo Ministério
da Justiça.
Considerando que, no actual contexto de aglomeração de cidadãos
em grandes cidades, a publicação de anúncios em jornais ou a sua
afi­xação no tribunal é já substancialmente ineficaz, não parece que venha
grande mal ao mundo por os anúncios serem publicados em página
informática que ninguém lerá!

VII Conclusões
Vimos, ao longo do texto, que o Decreto-Lei nº. 108/2006, como
acto legislativo, é passível de críticas substanciais, a saber:
• limitado caracter inovador, face à lei vigente (CPC): p.ex., o
agora denominado “dever de gestão processual” existe desde há
muito,12 a marcha do processo agora estipulada também nada
inova em relação às formas de processo existentes (na verdade
limita-se a simplificar o pro­cesso comum) e a utilização dos meios
informáticos é já uma realidade.

12
Com a designação de “poder de direcção do processo”, terminologia que, aliás, nos parece claramente preferível
à de “gestão”, conceito que, a importar-se da economia, faria mais sentido aplicado a conjuntos de processos
e não a um só.

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Neste contexto, não faz qualquer sentido falar-se de um novo


paradigma de processo resultante do Decreto-Lei nº. 108/2006.13
A nova referência ao “dever de gestão processual” bem como a
figuras processuais que, embora criadas há anos, não tiveram até hoje
utilização significativa — apresentação conjunta de accção, inquirição
por acordo das partes... — apenas pode ser entendida como um apelo a
que venham agora a sê-lo, ainda que se não entenda o que possa entre­
tanto ter mudado para que tal venha a acontecer.
• excessiva simplificação da marcha do processo que o torna clara­
mente inadequado para processos mais complexos,14 sendo que
os ganhos que permite obter são apenas de dias e, portanto,
irrelevantes.
Assim, quase se poderia dizer, com ironia, que, se há um novo
paradigma, é o de um processo que se resolva apressadamente, mesmo
à custa da ponderada reflexão que é um requisito da justiça!
De positivo, no RPCE, a consideração da conexão entre processos,
através da criação das figuras da agregação de acções, da prática de
actos em separado e da possibilidade de antecipar, no procedimento
cautelar, o juizo sobre a causa principal.
A gestão das questões suscitadas por processos com afinidades
merece, de resto, uma ponderação mais aprofundada para o futuro.
Mas, se o Decreto-Lei nº. 108/2006, como acto legislativo, suscita
reservas, não poderá escamotear-se que motivou, quiçá injustificada­
mente, um significativo debate — sempre salutar — entre a comunidade
dos processualistas, teóricos e práticos.
Por nós e para além do que fica dito, vamos aproveitar a referência
ao dever de gestão processual para tecer algumas considerações sobre
o papel do juiz no processo civil.
Sempre que a lei confere alguns poderes de intervenção ao juiz ou
na conformação da marcha do processo ou, o que é mais significativo,
ainda que não esteja em causa no RPCE, na pesquisa da verdade, surgem
sempre vozes sustentando que por essa via se afectam as garantias das
partes, até direitos fundamentais (?!).

13
Sendo que a última alteração de paradigma, digna desse nome, é a resultante da Reforma de 1995/96.
14
Prevê-se, até, que o juiz tenha, nestes casos, que intervir ao abrigo do seu dever de gestão, no sentido de
repôr a antiga marcha do processo comum ordinário, intervenção que, paradoxalmente, acarretará, por si só,
perdas significativas de tempo!

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Esta posição carece de sustentabilidade e apenas pode aceitar-se


pelo humano apego à simetria — duas partes iguais e o juiz como mera
linha divisória entre as mesmas — ou alguma influência do direito
processual americano que, na espécie, não tem similitude com o da
civil law. De facto, no direito americano a questão não é decidida pelo
juiz mas sim pelo júri; neste contexto, nomeadamente tendo em vista
a natural impreparação do júri em questões jurídicas (pelo menos!),
permitir uma intervenção alargada do juiz poderia, de facto, conduzir ao
condicionamento do júri, limitando-lhe a independência da decisão.
Mas na civil law quem decide é o juiz.
E, quando decide, o conteúdo da decisão é sempre, em alguma
medida, favorável a uma das partes e desfavorável à outra.
Quando se defende um juiz-buda, passivo e impassível, parece que
a garantia das partes que pode estar em causa é a da igualdade, o que se
teme é que o juiz não seja independente.
É certo que as partes têm direito inalienável a serem tratados
de modo igual e a que o juiz seja imparcial.
Ora, ninguém pondo em causa que quem decide, quem elabora a
sentença é o juiz, não se percebe que se não tema que o juiz seja parcial
na sentença para se temer que o juiz possa ser parcial na definição da
marcha do processo ou, o que é mais relevante, quando tenha uma
qualquer iniciativa probatória.
Se se aceita que o juiz sentencia a final, é incompreensivel que se
lhe restrinjam poderes no caminho para essa decisão (desde logo, quem
pode o mais, pode o menos).
A eventual parcialidade do juiz na sentença tem como remédio
os recursos.
Mas, do mesmo modo, a sua eventual parcialidade na “gestão
do processo” ou em eventual iniciativa probatória é também recorrível
pelo que por esta via se pode também remediar. E tanto mais quanto
o processo equitativo, a que é inerente a imparcialidade do juiz, goza
de cobertura constitucional (arts. 13º, nº. 1 e 20º, nº. 4 da Constituição,
entre outros) pelo que, inclusivamente, a possibilidade de um recurso de
constitucionalidade — a acrescer aos recursos ordinários, da jurisdição
civil — está sempre salvaguardada.
A questão central do processo estatal é a de decidir se o mesmo se
destina a averiguar a verdade material até onde possível, esgotando todos

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O Regime Processual Civil Experimental do Decreto-Lei nº. 108/2006, de 8 de Junho 37

os meios para isso disponíveis e garantindo às partes uma decisão com base
nessa verdade, ou se, porventura, o Estado/juiz se deve limitar a decidir
a causa como ela resulte da iniciativa das partes e da observância estrita
das formas pré-estabelecidas, ainda que a incompetência ou limitações
de uma e a rigidez das outras determinem uma situação final que cla­
ramente afronta a desejada verdade.
Sendo inquestionável que os cidadãos, quando recorrem a tri­bunal,
querem que a causa seja decidida conforme a verdade material, é obvio
que o Estado se tem que preocupar em que a decisão seja sentida pelas
partes e pela comunidade como justa e não como aleatória. Haverá
situação mais desprestigiante para as instituições judiciárias do que
o sentimento geral de que a justiça não foi feita — vide, p.ex., caso O. J.
Simpson?
De resto, é óbvio que, quem pretende que se julgue sem que se
esgotem todos os meios para descobrir a verdade, aí se incluindo a
intervenção do juiz, é quem sabe não ter razão e por isso vê na possibili­
dade de não se apurar a verdade real, uma via de ganhar indevidamente
a causa.15
Uma última observação:
Os defensores da não co-responsabilização do juiz no iter condu­
cente à decisão acabam sempre por socorrer-se de paralelismos fute­
bolísticos, querendo assimilar o juiz ao árbitro de um jogo de futebol.
É uma comparação que demonstra o contrário do que pretendem. Na
verdade, entre um jogo de futebol e um processo, a similitude acaba
na existência circunstancial de duas partes em confronto e de um árbitro/
juiz, uma vez que o que é decisivo é que, no futebol, qualquer resultado,
por mais aleatório que seja, satisfaz os fins do jogo, enquanto que num
processo judicial só um resultado é aceitável: a descoberta de uma verda­
de que o precede (e não a que das suas regras possa resultar).
De facto, a descoberta da verdade é o fim do processo e é-lhe tão
fundamental que todos os meios devem ser alocados para esse efeito, aí
se incluindo a competência do juiz, sem prejuízo do seu posiciona­mento
imparcial, imparcialidade que não é nem por aparência posta em causa,
antes sobressai, no exercício de iniciativa na procura da verdade. Manter

15
Não é, por isso, surpreendente ver os advogados que se consideram competentes sustentar a passividade
do juiz como meio de, com ou sem razão quanto ao fundo, retirarem vantagem da menor competência do
advogado da parte contrária (que eventual intervenção do juiz poderia suprir).

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38 Carlos Manuel Ferreira da Silva

o juiz alheio a esta procura, limitando-o ao estrito resultado da iniciativa


das partes, pode impedir o achamento da verdade, conduzindo a uma
decisão errada e com ela ao descrédito da justiça aos olhos dos cidadãos
e à lesão dos legítimos direitos da parte indevidamente vencida.
A co-responsabilização do juiz na prossecução dos fins do processo,
se não é uma panaceia universal, se infelizmente não pode conduzir por
si só ao acerto da decisão final, pode contribuir relevantemente para
esse efeito, colmatando lacunas na conduta das partes, ultrapassando
ocorrências anormais no processo ou corrigindo distorções induzidas
pela observância cega de formas.
E não se alcança como pode o papel activo do juiz traduzir-se em
violação de direitos das partes.
Vejamos um exemplo.
Sou parte num processo. Esgotada a prova produzida pelas partes,
não se apura como ocorreram os factos. Pertencendo o ónus da prova
à outra parte, em princípio, ganharia o processo. Entretanto, o juiz
constata em documentos juntos que há duas pessoas que podiam ter
sido indicadas como testemunhas e não o foram e decide ouvi-las. Ter­
minada a audição destas testemunhas e sendo o depoimento conforme,
coerente, fundamentado e exaustivo e não contrariado por outras provas,
conclui-se que os factos ocorreram como a outra parte os referiu e esta
ganha a causa. Assim, perdi uma causa que, não fora a intervenção do
juiz, talvez tivesse ganho. Foi, por isso, afectado algum direito funda­
mental meu? Obviamente não, pois não tenho qualquer direito a ganhar
uma causa que não devia ganhar, de acordo com os factos. A intervenção
do juiz, no caso concreto, acarretou que se fizesse justiça — ao contrário
do que aconteceria se se mantivesse passivo — e, ademais, contribuiu
para o prestígio dos tribunais, a convicção geral de que estes decidem
acertadamente e não de forma aleatória.16

Alguma bibliografia

Brito, Rita. Colectânea de decisões e práticas judiciais ao abrigo do regime processual civil
experimental. CEJUR (2009).
Faria, Paulo Ramos de. Regime processual civil experimental comentado. Almedina
(2010).

16
Assim contribuindo, nomeadamente, para evitar que, no futuro, alguém se permita recorrer aos Tribunais sem
ter razão, procurando uma decisão que, por mero acaso, lhe seja favorável uma vez que conhece precedentes
em que esse resultado perverso ocorreu!

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O Regime Processual Civil Experimental do Decreto-Lei nº. 108/2006, de 8 de Junho 39

Mendonça, Luis Correia de. ”Processo civil líquido e garantias (o regime processual
experimental português)”, em Revista de Processo (IBDP), n. 170, ano 34, Abril 2009,
p. 215-250.
Ricardo, Luis Manuel de Carvalho. Regime processual experimental anotado e comentado.
CEJUR (2007).
Silva, Paula Costa e. “A ordem do Juízo de D. João III e o regime processual experimental”,
em Revista da Ordem dos Advogados, ano 68, vol I (2008), p. 255-273.
Sousa, Miguel Teixeira de, “Um novo processo civil português: a la recherche du temps
perdu”, em Revista de Processo (IBDP), n. 161, ano 33, Julho 2008, p. 204-220.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

SILVA, Carlos Manuel Ferreira da. O regime processual civil experimental do Decreto-Lei
nº. 108/2006, de 8 de Junho. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo
Horizonte, ano 19, n. 73, p. 23-39, jan./mar. 2011.

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O sistema recursal e os meios
autônomos de impugnação no âmbito
dos juizados especiais cíveis – novos
contornos jurisprudenciais
Celso Jorge Fernandes Belmiro
Mestrando em Direito Processual pela Universidade Estácio de Sá/RJ. Pós-graduado em Direito
Público e Privado pela Escola da Magistratura (EMERJ). Notário no Rio de Janeiro e ex-Procurador
da Fazenda Nacional. Professor de Direito Processual Civil da EMERJ, ESA/OAB e dos cursos CEJ
e Masterjuris.

Resumo: O presente estudo tem por finalidade a análise do sistema de


impugnação das decisões proferidas nos juizados especiais cíveis estaduais,
traçando-se, num primeiro momento, um quadro geral acerca dos recursos
passíveis de interposição no âmbito daquele microssistema para, em momento
posterior, investigar-se acerca da possibilidade de utilização de outros meios
de impugnação previstos no ordenamento jurídico, em especial o mandado
de segurança e a reclamação constitucional. Com base nestas premissas,
aponta-se para a efetiva possibilidade de revisão, pelos Tribunais de Justiça
dos Estados e pelo Superior Tribunal de Justiça, em casos excepcionais, das
decisões proferidas naqueles órgãos especializados.
Palavras-chave: Juizados especiais. Impugnação. Recursos. Mandado de
segurança. Reclamação.

Sumário: 1 Considerações iniciais – 2 Apontamentos acerca do sistema recursal


nos juizados especiais cíveis estaduais – 2.1 As formas recursais expressamente
previstas na Lei nº 9.099/95: o recurso “inominado” e os “embargos de
declaração” – 2.2 As formas recursais não expressamente previstas na Lei nº
9.099/95: o trabalho integrativo da doutrina e da jurisprudência – 2.2.1 O
agravo e as decisões interlocutórias em primeiro grau de jurisdição – 2.2.2
O agravo e as decisões interlocutórias proferidas pelo relator do recurso
inominado – 2.2.3 Os recursos extraordinários: o acórdão da Turma Recursal
e sua impugnação – 2.2.4 A inadmissão do recurso extraordinário: o agravo
de instrumento do art. 544 – 3 O mandado de segurança: noções gerais e
sua utilização no âmbito dos juizados especiais cíveis – 3.1 O mandado de
segurança como instrumento de impugnação de atos do Poder Público em
geral e dos atos judiciais, em particular – 3.2 A possibilidade de impetração
de mandado de segurança no âmbito dos juizados especiais cíveis – 4 O acesso
aos Tribunais de Justiça e ao Superior Tribunal de Justiça das demandas
oriundas dos juizados especiais – 4.1 O mandado de segurança impetrado
originariamente no Tribunal de Justiça e o recurso ao Superior Tribunal de
Justiça: as questões relativas à competência dos juizados especiais – 4.2 A
reclamação constitucional para a garantia da autoridade das decisões do STJ
– 5 Conclusão – Referências

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42 Celso Jorge Fernandes Belmiro

1 Considerações iniciais
Em sede de juizados especiais cíveis estaduais, a questão envolvendo
os recursos — e os outros meios de impugnação dos provimentos judi­ciais
— demanda especial atenção dos operadores do Direito, tendo em vista
a clara incompletude na regulamentação do tema pela Lei nº 9.099/95,
somente se podendo falar em um sistema minimamente estruturado
de impugnação por conta da atividade desenvolvida pela doutrina e,
principalmente, pela jurisprudência ao longo dos tantos anos de vigência
da lei.
Em verdade, pode-se afirmar que com a edição da Lei nº 9.099/95,
procurou o legislador federal regulamentar o art. 98, I da Constituição
da República, através da criação de um órgão especializado no julga­
mento de causas de menor complexidade, por meio de um procedimento
a que denominou “sumariíssimo”. A estruturação deste procedimento,
porém, seguiu velha regra observada no nosso direito quando da criação
de procedimentos especiais, vale dizer, a utilização do procedimento
ordinário como base/estrutura mestra e a simples alteração de um ou
outro dispositivo, pretendendo-se, com esta técnica, a veiculação de um
novo procedimento, resolvendo-se eventuais omissões pela aplicação
subsidiária do Código de Processo Civil.1 Ocorre, porém, que a atividade
nem sempre se revela exitosa...
Especificamente em relação aos juizados especiais, a maior dificul­
dade parece ter sido a ausência de percepção, por parte do legislador,
de que não se cuidava tão somente da criação de um novo procedimento,
mas sim de toda uma nova modalidade de prestação jurisdicional,
revelando-se a prática muito mais fecunda e inovadora do que a tímida
previsão legislativa previra. Um novo “microssistema” era assim forjado,
com prin­cípios próprios e estrutura bastante diferenciada do que até
então se encontrava em termos de jurisdição civil, não tendo sido, os
59 (cinquenta e nove) artigos da parte cível da Lei nº 9.099/95, capazes
de regulamentá-lo em sua inteireza, especialmente em relação ao tema
dos recursos e dos meios de impugnação das decisões ali proferidas.
Com efeito, em relação ao sistema recursal que pretendeu instituir,
a lei limitou-se a dedicar ao tema duas únicas seções, a saber: a seção
1
Observe-se que a lei dos juizados especiais fez tal previsão ao final da disciplina dos juizados especiais criminas,
sem seu art. 92, mas não o fez em relação aos juizados especiais cíveis e o Código de Processo Civil (art.
92. Aplicam-se subsidiariamente as disposições dos Códigos Penal e de Processo Penal, no que não forem
incompatíveis com esta Lei.

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O sistema recursal e os meios autônomos de impugnação no âmbito dos juizados especiais cíveis: ... 43

XII, tratando da sentença (e dentro desta seção o recurso “inominado”


cabível contra tal provimento) e a seção XIII, tratando dos embargos
de declaração.
Nada tratou, portanto, acerca do cabimento de recurso contra
decisões interlocutórias eventualmente proferidas pelo juiz em atuação
no primeiro grau de jurisdição ou de decisões deste tipo proferidas
monocraticamente pelo relator do recurso na Turma/Conselho Recursal
e menos ainda sobre os recursos eventualmente cabíveis contra o acórdão
proferido pelas Turmas/Conselhos Recursais. Quanto a estas questões e
a diversos outros questionamentos e dificuldades surgidas na praxis
diária, a lei simplesmente se omitiu.
Todos os contornos do sistema recursal estruturado para os juizados
especiais, tiveram, então, de ser traçados pela atuação pontual e específica
da jurisprudência, em especial aquela oriunda das turmas recursais,
dos enunciados do FONAJE (Fórum Nacional dos Juizados Especiais),2
além dos enunciados da súmula da jurisprudência dos Tribunais Supe­
riores (STJ e STF), compondo-se com isso um conjunto razoavelmente
coeso de regras que visam a suprir as lacunas da legislação e a disciplinar
a impugnação das decisões ali proferidas.
Ocorre, porém, que a despeito do trabalho de integração levado
a efeito ao longo dos mais de 15 anos de vigência da Lei nº 9.099/95,
algumas questões ainda restavam não inteiramente resolvidas, em espe­
cial a possibilidade de exercício de poder revisional pelos Tribunais
de Justiça estaduais e pelo Superior Tribunal de Justiça sobre os provi­
mentos emanados dos juizados especiais, havendo forte tendência a se
afirmar, de forma categórica, que tais decisões seriam insuscetíveis de
qualquer tipo de controle por parte daqueles tribunais.
A finalidade do presente estudo é assim, num primeiro momen­
to, traçar um quadro geral acerca do sistema recursal aplicável aos jui­­
zados especiais cíveis estaduais, que tem sua fonte na Lei nº 9.099/95
e no tra­balho de integração levado a efeito pela jurisprudência e, em
momento posterior, investigar a possibilidade de utilização de outros
meios de impug­ nação no âmbito daqueles órgãos jurisdicionais, em

2
Todos os enunciados do FONAJE são extraídos de reuniões sistemáticas e programadas de juízes em atuação
nos juizados especiais cíveis estaduais por todo o Brasil e disponibilizados no sítio <www.fonaje.org.br>.
Apesar de não serem vinculativos (podendo haver turmas recursais de determinados estados que em um ou
outro aspecto não os sigam), valem como orientação segura diante das omissões legislativas.

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44 Celso Jorge Fernandes Belmiro

especial o man­­ dado de segurança e a reclamação constitucional. Ao


final, pretende-se a demonstração de que, em hipóteses absolutamente
excepcionais, é possível a revisão da decisão ali proferida pelos Tribu­
nais de Justiça dos Estados, via mandado de segurança (em caso de não
observância da competência dos juizados para o julgamento de determi­
nada causa), com recurso ordinário constitucional contra esta decisão ao
Superior Tribu­nal de Justiça, além da possibilidade, em outro flanco, de
revisão direta pelo próprio STJ, através da reclamação constitucional de sua
competência originária, na hipótese em que sua jurisprudência reitera­
da não tenha sido observada no âmbito daquele microssistema. Os con­
tornos, os instrumentos e o caminho para esta revisão “extramuros” das
decisões dos juizados especiais constituem o objeto da investigação levada
a efeito no presente ensaio.

2 Apontamentos acerca do sistema recursal nos juizados especiais


cíveis estaduais
Assentada a premissa de que o sistema de impugnação das decisões
proferidas no âmbito dos juizados especiais não se esgota na previsão
levada a efeito pela Lei nº 9.099/95, torna-se imperioso, para o correto
enquadramento do tema que se pretende enfrentar, traçar um painel
sobre o sistema estruturado para a interposição de recursos no âmbito
daqueles órgãos jurisdicionais, cuidando-se, em um primeiro momento,
dos recursos expressamente regulados pela lei de regência para que,
num segundo momento, sejam abordados os recursos que o trabalho
integrativo da jurisprudência reconheceu como passíveis de interpo­sição
contra as decisões proferidas naqueles procedimentos especiais.

2.1 As formas recursais expressamente previstas na Lei nº 9.099/95: o


recurso “inominado” e os “embargos de declaração”
Ocupou-se a Lei nº 9.099/95 de tratar tão somente de duas moda­
lidades recursais: o “recurso” contra a sentença e os embargos de decla­
ração, nos exatos termos dos artigos 41 a 46 e 48 a 50, respectivamente.
O primeiro dos recursos tem por finalidade precípua a garantia do
duplo grau de jurisdição, possibilitando à parte prejudicada a revisão,
em novo julgamento, da decisão que lhe causa prejuízos. Trata-se, em
tudo e por tudo, de verdadeira “apelação” contra a sentença ali proferida,

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O sistema recursal e os meios autônomos de impugnação no âmbito dos juizados especiais cíveis: ... 45

optando o legislador, sem qualquer motivo aparente, por não lhe atribuir
esta nomenclatura.3
Nos limites a que se destina o presente trabalho, porém, será man­
tida a nomenclatura observada pela maioria dos autores e, em especial,
pela jurisprudência de nossos tribunais, a saber: “recurso inominado”,
sendo características gerais desta modalidade recursal:
a) prazo de 10 dias, contados da ciência da sentença, devendo ser
interposto através de petição escrita (art. 42 da lei);
b) não são dotados de efeito suspensivo, havendo apenas a possi­
bilidade de o juiz sentenciante, a fim de evitar dano irreparável
à parte, reconhecer-lhe tal característica, evitando a produção
imediata dos efeitos da sentença (art. 44 da lei);
c) são julgados por órgão colegiado também de primeira instân­
cia, a exemplo do juiz sentenciante, composto de 3 (três) juízes
togados;
d) seu preparo, independentemente de quem tenha sucumbido,
deverá ser feito no prazo de 48 (quarenta e oito) horas após a
interposição do recurso e inclui todas as despesas4 que foram dis­
pensadas da parte autora quando do ajuizamento da demanda.5
Como segunda das modalidades de recurso prevista na Lei nº
9.099/95 encontram-se os embargos de declaração, que possuem, em
essência, as mesmas finalidades de seu correlato regulado no art. 535
do Código de Processo Civil, com algumas peculiaridades adiante
analisadas.
Com efeito, a primeira das diferenças refere-se à presença da
“dúvida” como causa/fundamento para oposição dos embargos de decla­
ração. Trata-se de figura já prevista na redação original do CPC e que já
tivera sido objeto de severas críticas por parte da doutrina proces­sual,
resumidas em uma consideração absolutamente simples: a dúvida não é
um vício propriamente da decisão judicial, mas sim a consequência

3
Há autores que, diante da inexistência de motivos razoáveis para a distinção, chamam também a este recurso
“inominado” de apelação. Por todos, Alexandre Câmara (CÂMARA, Alexandre Freitas. Juizados especiais cíveis
estaduais e federais: uma abordagem crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 142).
4
Art. 54, parágrafo único. “O preparo do recurso, na forma do § 1º. do art. 42 desta Lei, compreenderá todas
as despesas processuais, inclusive aquelas dispensadas em primeiro grau de jurisdição, ressalvada a hipótese
de assistência judiciária.”
5
Consideração absolutamente relevante faz Alexandre Câmara, sobre o preparo do recurso inominado como
forma de desestimular sua interposição e as pessoas a quem atinge o dispositivo: “O grande inibido, porém,
é o sujeito de classe média (já que as pessoas das classes economicamente inferiores serão beneficiárias da
assistência judiciária gratuita, o que as dispensará do preparo, enquanto as pessoas das classes economicamente
superiores não são inibidas pela necessidade de gastar dinheiro).”

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46 Celso Jorge Fernandes Belmiro

— interna ao intérprete — de algum outro vício presente, tanto que na


primeira das grandes reformas porque passou o CPC (93/94/95) eliminou-
se, através da edição da Lei nº 8.950/94, a expressão “dúvida” da redação
do art. 535,6 permanecendo nele a obscuridade, a contradição e a omis­
são como fundamentos para oposição desta modalidade recursal. Resta a
indagação acerca do que efetivamente pretendeu o legislador na redação
da Lei nº 9.099/95 ao prever novamente a figura da dúvida.
Não há, portanto, qualquer motivo jurídico para que a dúvida
tenha ressurgido como fundamento para a oposição dos embargos de
decla­ração, devendo-se o fato tão somente à falha de sistematização na
elaboração da lei, uma vez que o projeto inicial tomava por base a redação
original do CPC, sendo certo que, quando do momento de sua aprovação,
outra já era a redação do art. 535, sem a previsão da “dúvida” como
motivação para os embargos de declaração.
A segunda das diferenças reside nos efeitos da interposição dos
embargos sobre o prazo para a interposição de outros recursos even­
tualmente cabíveis. Assim é que, na sistemática original do Código de
Processo Civil, os embargos de declaração suspendiam o prazo para a
interposição de outros recursos o que, vale dizer, uma vez julgados, o
prazo recomeçaria pelo tempo ainda restante, computando-se, para todos
os efeitos, os dias decorridos até a oposição dos embargos.
Pelas mesmas razões já expostas na análise da “dúvida” como
fundamento para os embargos, também em relação à “suspensão” do
prazo, observa-se que a Lei nº 8.950/94 fez alterar os termos do artigo
538 do CPC,7 criando o chamado efeito interruptivo do prazo para outros
recursos, o que significa dizer que, após o julgamento dos embargos,
a parte terá a integralidade do prazo para a interposição do recurso
eventualmente cabível, não sendo computados os dias que se passaram
até a oposição dos embargos.8 Esta, portanto, a lógica que se pretendeu
aplicar a todo o procedimento recursal no processo civil brasileiro
quanto aos efeitos da oposição dos embargos, vale dizer, interrompe-se
o prazo para outros recursos por força da oposição de tal modalidade
recursal. Porém, nos juizados especiais cíveis, a questão iria adquirir

6
Art. 535. “Cabem embargos de declaração quando: I – houver, na sentença ou no acórdão, obscuridade ou
contradição; II – for omitido ponto sobre o qual devia pronunciar-se o juiz ou o tribunal.”
7
“Art. 538. Os embargos de declaração interrompem o prazo para a interposição de outros recursos, por
qualquer das partes.”
8
Trata-se, à evidência, da clássica distinção entre suspensão e interrupção de prazos, aqui tratada apenas para
efeito de encadeamento dos temas tratados.

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O sistema recursal e os meios autônomos de impugnação no âmbito dos juizados especiais cíveis: ... 47

outros contornos, especialmente porque a Lei nº 9.099/95 estabeleceu,


em seu art. 50, que a oposição dos embargos de declaração tem como
consequência a suspensão do prazo para recurso.9 Assim — e a título
meramente ilustrativo — se a parte prejudicada interpôs embargos de
declaração contra a sentença no quarto dia de ciência da mesma, uma vez
julgados os embargos, terá então, a contar da ciência deste julgamento,
o prazo de 6 (seis) dias para a interposição do recurso inominado. Em
outras palavras, no conflito entre a norma geral do Código de Processo
e a norma específica da Lei nº 9.099/95, prevalece esta última, ainda
que a previsão de suspensão do prazo decorra de eventual falha de siste­
matização na aprovação do projeto.10 Em relação aos demais aspectos,
os embargos de declaração, no âmbito dos juizados especiais, em tudo
se assemelham àqueles regidos pelo Código de Processo Civil.
Encerrada a abordagem do recurso inominado e dos embargos de
declaração, encerrada se encontra a regulamentação legal do sistema
recursal dos juizados especiais, já que, conforme salientado, a Lei nº
9.099/95 não tratou, em seu bojo, de qualquer outra modalidade recursal.
Porém, é certo que este sistema recursal não está reduzido a estes dois
recursos, mas sim configura uma estrutura mais complexa, que vai
depender da atuação de outras fontes do direito, em especial, para efeito
do que aqui se pretende demonstrar, da atuação da jurisprudência das
Turmas Recursais, do STF e do STJ e, em especial, dos enunciados do
FONAJE, já aqui mencionados.

2.2 As formas recursais não expressamente previstas na Lei nº 9.099/95:


o trabalho integrativo da doutrina e da jurisprudência
Conforme já afirmado, a Lei nº 9.099/95 é bastante comedida ao
regular o sistema recursal no âmbito dos juizados especiais, dedicando
poucos artigos ao trato do tema. Cuida, assim, à evidência, de uma lacuna
na estruturação legal daquele microssistema, a depender da atividade
integrativa de outras fontes do Direito Processual.
Assim é que em inúmeras situações concretas, a hipótese recursal
não veio a ser regulamentada pela lei, que não se descurou de prever se
era ou não cabível algum recurso para impugnar determinada decisão

9
“Art. 50. Quando interpostos contra sentença, os embargos de declaração suspenderão o prazo para
recurso.”
10
E assim deve ser porque não há qualquer interpretação histórica ou sistemática que autorize o recorrente a
não observar que o prazo está efetivamente suspenso e não interrompido.

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48 Celso Jorge Fernandes Belmiro

e, em caso positivo, qual o recurso efetivamente cabível para a hipótese,


citando-se a título ilustrativo estas lacunas, presentes em casos como:
a) decisão interlocutória proferida pelo juiz nos juizados especiais,
atuando em primeiro grau de jurisdição;
b) decisão interlocutória proferida pelo relator do recurso inomi­
nado na turma recursal, que, liminarmente e com base no art. 557
do CPC, nega seguimento ou dá provimento ao recurso (aliás, a
Lei nº 9.099/95 não trata sequer da possibilidade de aplicação
do art. 557 aos juizados especiais);
c) acórdão proferido pelas turmas recursais, que viole a lei federal
e/ou a Constituição Federal;
d) possibilidade de interposição de recurso para que os Tribunais
de Justiça façam a revisão da decisão proferida pelos juízes ou
pelas turmas recursais;
e) possibilidade de o STJ ou STF, no âmbito de sua competência
constitucional, participar do processo de revisão das decisões ali
proferidas, em hipóteses para além dos recursos extraordinários.
Tais indagações tiveram historicamente de ser solucionadas pela
doutrina e, principalmente, pela jurisprudência consolidada no âmbito
dos juizados especiais, culminando com o papel absolutamente relevante
desempenhado pelos “enunciados” do FONAJE já aqui mencionados.
Diante das dificuldades expostas, busca-se, a partir do tópico
seguinte, o estabelecimento de uma análise sistemática das hipóteses não
reguladas pela Lei nº 9.099/95.

2.2.1 O agravo e as decisões interlocutórias em primeiro grau de


jurisdição
Silenciou a Lei nº 9.099/95 quanto à possibilidade de impugnação
das decisões interlocutórias proferidas pelo juiz nos juizados especiais,
que eventualmente causem dano à parte, sendo certo que a aplicação sub­
sidiária — ainda que não expressa — das normas do Código de Pro­cesso
Civil naquilo em que a lei for omissa, levaria a conclusão — precipitada
e equivocada — acerca do efetivo cabimento do agravo previsto nos
art. 522 e seguintes, nas modalidades retida ou de instrumento.
Ocorre, porém, que os princípios informadores dos juizados
especiais levam a raciocínio diverso, sendo certo que a celeridade, a eco­
nomia processual e a simplicidade, orientadoras daquele procedimento,

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O sistema recursal e os meios autônomos de impugnação no âmbito dos juizados especiais cíveis: ... 49

apontam para a adoção do princípio da irrecorribilidade das decisões


interlocutórias, em situação tal que eventual injustiça cometida em um
provimento deste tipo somente seria passível de revisão no momento
em que proferida a sentença e eventual questionamento somente seria
possível no recurso contra ela interposto.
Desta forma, uma vez proferida decisão interlocutória pelo magis­
trado em atuação nos juizados especiais, não é cabível a interposição do
recurso de agravo, seja na modalidade retida, seja na de instrumento.
Neste sentido, foi aprovado, pelo FONAJE, enunciado com o teor,
em sua redação original é “Enunciado 15 – Nos juizados especiais cíveis
não é cabível o recurso de agravo.”11
Tal enunciado, por força de sua própria estrutura textual acabou
por sepultar qualquer tentativa de interposição de agravo de instrumento
para julgamento pela turma recursal (ainda que se reconheça que tais
enunciados não possuem caráter vinculante).
Assim, assenta-se a premissa de que para impugnação de decisão
interlocutória proferida em primeiro grau de jurisdição pelos jui­zados
especiais, não cabe o recurso de agravo, retido ou de instrumento,
podendo a parte se valer, em hipóteses excepcionais, do mandado de
segu­rança, con­forme será analisado em tópico posterior (item 3.2) a ser
dirigido diretamente para a turma recursal à qual esteja vinculado o
juiz em atuação nos juizados (e não ao Tribunal de Justiça ou ao Tribunal
Regional Federal).
Observe-se, porém, que é falsa (ou, quando menos, incompleta)
a afirmativa de que não é cabível o “agravo” no âmbito dos juizados
especiais, sendo certo que o agravo que tem sua interposição afastada é
aquele que visa a impugnar a decisão proferida pelo juízo de primeiro
grau, não estando descartadas, em absoluto, outras hipóteses de agravo,
como será adiante demonstrado.

2.2.2 O agravo e as decisões interlocutórias proferidas pelo relator do


recurso inominado
Interposto o recurso inominado e distribuído à Turma Recursal
competente para julgamento, é possível ao relator do recurso inominado
proferir decisões interlocutórias em situações determinadas (na mesma

11
O teor do Enunciado nº 15 acabou sendo alterado, para que fossem acrescentadas as hipóteses previstas no
tópico seguinte.

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50 Celso Jorge Fernandes Belmiro

e exata medida do que é possibilitado ao relator de uma apelação),


naturalmente em momento anterior ao julgamento do próprio recurso
pelo órgão colegiado.
Traçando-se um paralelo, uma vez mais, com o que ocorre no
julgamento de uma apelação, observa-se que o seu relator pode valer-se
do disposto no art. 557 do Código de Processo Civil12 e, de forma isolada,
negar seguimento ao recurso interposto (como é possível, outrossim, em
qualquer outro recurso). Da mesma forma, a lei faculta ao relator a
possibilidade de, sem remeter o recurso ao órgão colegiado, dar provimento
ao recurso, nos exatos termos do art. 557, §1º. A daquele diploma
legislativo.13
A par das críticas que o artigo 557 costuma receber da doutrina
(por estar supostamente limitando o duplo grau de jurisdição, ao facultar
ao relator a possibilidade de, unilateralmente, proferir o julgamento
que seria, em princípio, do órgão colegiado), cabe a investigação acerca
da possibilidade de sua utilização no âmbito dos juizados especiais
cíveis, especialmente porque a Lei nº 9.099/95 sequer passa perto do que
aqui se pretende abordar.
Assim, o principal argumento para a defesa da efetiva aplicação do
art. 557 e seus consectários no âmbito dos juizados especiais é o fato de
que não faz a norma qualquer especificação sobre a qual recurso teria
ele incidência, não fazendo distinção alguma entre este ou aquele meio
de impugnação, restando clara a impossibilidade de o intérprete preten­
der restringir a utilização do art. 557 quando este, categoricamente, se
refere a “recurso”, sem que do texto legal se possa verificar qualquer
tipo de limitação de seu alcance.
Com efeito, e com vistas a sanar eventuais questionamentos sobre
a efetiva aplicação do art. 557, caput e §1º.A aos juizados especiais,
foram editados dois enunciados do FONAJE sobre o tema. Ambos são
abaixo transcritos:

Enunciado 102 – O relator, nas Turmas Recursais Cíveis, em decisão mono­


crática, poderá negar seguimento a recurso manifestamente inadmissível,

12
Art. 557. “O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado
ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal
Federal, ou de Tribunal Superior.”
13
Art. 557, §1º-A: “Se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência
dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, o relator poderá dar provimento ao
recurso.”

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O sistema recursal e os meios autônomos de impugnação no âmbito dos juizados especiais cíveis: ... 51

improcedente, prejudicado ou em desacordo com Súmula ou jurisprudência


dominante das Turmas Recursais ou de Tribunal Superior, cabendo recurso
interno para a Turma Recursal, no prazo de cinco dias. (aprovado no XIX
Encontro – Aracaju/SE)
Enunciado 103 – O relator, nas Turmas Recursais Cíveis, em decisão mono­
crática, poderá dar provimento a recurso se a decisão estiver em manifesto
confronto com Súmula do Tribunal Superior ou Jurisprudência dominante
do próprio juizado, cabendo recurso interno para a Turma Recursal, no prazo
de cinco dias. (aprovado no XIX Encontro – Aracaju/SE)

Desta forma, dúvidas não restam quanto à possibilidade de utili­


zação, pelo relator do recurso inominado em turma/conselho recursal,
da faculdade que lhe é conferida pelo art. 557 do CPC, podendo, em
decisão isolada, negar seguimento ao recurso ou dar-lhe provimento,
em caráter liminar, nas situações elencadas no dispositivo.
Cumpre então, fixadas estas premissas, indagar acerca do recurso
disponibilizado à parte que se sentir prejudicada pela decisão monocrática
proferida pelo relator do recurso, vale dizer, se teria ela a possibilidade
de interpor, de acordo com o próprio CPC, o chamado “agravo interno”
ou “agravo por petição”, também com previsão expressa no art. 557,
§1º do CPC.14
Uma vez mais, eventual restrição à aplicação do dispositivo não
encontra razão de ser. Assim, se se afirma ser aplicável aos juizados
especiais o Código de Processo Civil na previsão da possibilidade de o
relator negar seguimento ou dar provimento ao recurso antes de sub­me­ter
o recurso ao julgamento pelo órgão colegiado, também o recurso cabível
contra uma tal decisão deve ser disponibilizado à parte prejudicada em
tais hipóteses.
Por este motivo, modificou-se o teor no mencionado Enunciado
nº 15 do FONAJE, que previa o não cabimento de agravos no âmbito
dos juizados especiais, de forma a que se passasse a contemplar o recurso
contra a decisão do relator do recurso inominado que viesse a aplicar o
art. 557, passando a ser esta a sua redação:

Enunciado 15 – “Nos Juizados Especiais, não é cabível o recurso de agravo,


exceto nas hipóteses dos artigos 544 e 557 do CPC.” (Modificado no XXI
Encontro – Vitória/ES)

14
Art. 557, §1º “Da decisão caberá agravo, no prazo de 5 (cinco) dias, ao órgão competente para o julgamento
do recurso e, se não houver retratação, o relator apresentará o processo em mesa, proferindo voto; provido
o agravo, o recurso terá seguimento.”

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52 Celso Jorge Fernandes Belmiro

A modificação perpetrada decorre de uma natural evolução da


jurisprudência. Isto porque com o surgimento de novos questiona­­mentos
quanto ao cabimento de outros recursos com o mesmo nomem juris, a
saber, o agravo interno ora sob análise (art. 557, §1º) e o agravo contra a
decisão que inadmite o recurso extraordinário (art. 544 — que será visto
adiante), houve a necessidade de alteração do teor do referido enunciado,
tendo em vista que já não era capaz de atender a todas as situações
reguladas pelo seu conteúdo original, que revelou-se incompleto.
Assim, dúvidas não restam, diante dos Enunciados nºs 102, 103
e 15 (em sua nova redação), acerca da efetiva aplicação do art. 557 do
CPC, em sua inteireza, aos juizados especiais cíveis, tendo o relator nas
turmas recursais, ao julgar um recurso inominado, a efetiva possibilidade
de, isoladamente, negar seguimento ao recurso ou dar-lhe provimento,
sem submeter sua decisão ao órgão colegiado, cabendo, desta decisão,
o agravo “interno”, a ser julgado pela turma recursal, órgão colegiado
do qual faz parte o relator.

2.2.3 Os recursos extraordinários: o acórdão da Turma Recursal e sua


impugnação
Conforme salientado em passagem anterior, não tratou a Lei
nº 9.099/95 do(s) recurso(s) cabível(is) contra o acórdão proferido
pela turma recursal, limitando-se o texto legal a se referir apenas — e
indiretamente — aos embargos de declaração contra tal provimento.
Por isso, outras haverão de ser as fontes normativas utilizadas para esta
análise, em especial a Constituição da República, em seus artigos 103, III
e 105, III, traçando-se um paralelo com o sistema recursal do processo
civil em geral.
Assim é que, como é consabido, contra o acórdão proferido
pelas turmas ou câmaras cíveis dos Tribunais de Justiça (em análise
absolutamente singela), será cabível, em caso de violação de lei federal,
o recurso especial dirigido ao Superior Tribunal de Justiça, por força
do art. 105, III da CR e, em caso de violação da Constituição Federal,
poderá ser interposto o recurso extraordinário dirigido ao Supremo Tri­
bunal Federal, na conformidade de seu art. 102, III. Resta, porém, que
seja analisada a possibilidade de aplicação deste esquema lógico-recursal
aos juizados especiais cíveis, sendo certo que a conclusão inequívoca é
a de que a disciplina legal da impugnação de acórdãos das turmas
recursais é um tanto diversa.

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O sistema recursal e os meios autônomos de impugnação no âmbito dos juizados especiais cíveis: ... 53

E assim se processa porque a Constituição da República, ao


tratar dos recursos extraordinários (categoria à qual pertencem o recurso
extraordinário e o recurso especial) parece ter pecado pela incoerência.
Com efeito, ao invés de resguardar o papel de guardião da Constituição
ao Supremo Tribunal Federal e ser extremamente criteriosa e limitativa
na regulamentação do acesso àquele tribunal, a disciplina da matéria
pela Constituição se deu de forma diferente, sendo mais restritiva com
relação ao acesso ao STJ do que propriamente ao STF, permitindo assim
que, em tese, até mesmo causas de menor complexidade possam alçar
ao pretório excelso.
A afirmação apresentada decorre, pois, da análise dos termos em
que veiculados os arts. 102, III e 105, III da CF, tratando, respectiva­
mente, do cabimento do recurso extraordinário e do recurso especial.
Comparem-se as redações e será observado que a Constituição Federal
é mais exigente em relação ao recurso especial do que em relação ao
recurso extraordinário.

Neste sentido, observa-se que pode o provimento jurisdicional


ser impugnado através de recurso especial; deve o mesmo ser proferido
necessariamente por Tribunal de Justiça ou por Tribunal Regional Fede­
ral Esta mesma exigência, curiosamente, não é feita para a impugnação
através de recurso extraordinário. Por certo que a intenção da Consti­
tui­ção é a de que qualquer violação a seu texto seja dotada, por si só,
de gravidade extrema, o que autorizaria, por este motivo, o acesso ao
Supremo Tribunal Federal. Mas é patente a incoerência apontada,
preservando-se mais o Superior Tribunal de Justiça do que o próprio
Supremo Tribunal Federal.
Seja como for, este é o suporte legal para que se analise o recurso
cabível contra o acórdão proferido pelas turmas recursais. Com efeito,
se nos acórdãos proferidos pelos TJs ou TRFs há a possibilidade de
acesso tanto ao STJ através do recurso especial, quanto ao STF através
do recurso extraordinário, o mesmo não se passa em relação aos juizados
especiais.

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54 Celso Jorge Fernandes Belmiro

Isto porque, ao exigir a Constituição Federal que o recurso especial


esteja impugnando decisão proferida por Tribunal (de Justiça ou Regional
Federal), fecham-se as portas do STJ, via recurso especial, para a apre­
ciação de causas afetas aos juizados especiais, o mesmo não acontecendo
em relação ao recurso extraordinário, tendo em vista, repita-se, não
haver a exigência mencionada, de que a decisão, seja oriunda de tribunal.
Assim, proferido acórdão pelas turmas recursais e verificando-se neste
a violação da Constituição da República (em qualquer das hipóteses do
art. 102, III) e atendidos todos os demais requisitos de admissibilidade,
é plenamente cabível a interposição de recurso extraordinário.
Em relação a esta questão, expediram-se os seguintes verbetes
sumulares:

Enunciado FONAJE 63 – Contra decisões das Turmas Recursais são cabíveis


somente os embargos declaratórios e o Recurso Extraordinário.
Súmula 640 do STF – É cabível recurso extraordinário contra decisão proferida
por juiz de primeiro grau nas causas de alçada, ou por turma recursal de juizado
especial cível e criminal.
Súmula 203 do STJ – Não cabe recurso especial contra decisão proferida por
órgão de segundo grau dos Juizados Especiais.

Claro está, portanto, que as modalidades de recurso cabíveis contra


o acórdão proferido pela turma recursal são, os embargos de declaração
(nos casos de omissão, obscuridade ou contradição no acórdão) e o recurso
extraordinário, nos casos previstos na Constituição da República para
sua interposição, atendidos todos os pressupostos recursais para tanto,
inclusive o prequestionamento.
Em relação a este pressuposto de admissibilidade, há que se fazer
ainda uma última observação, em se tratando de juizados especiais cíveis,
por força de enunciado lançado sobre o tema e adiante analisado.
Assim, afirma-se que o prequestionamento, em linhas gerais, exige
que a questão constitucional tenha sido efetivamente decidida pelo
órgão a quo, antes que seja apreciada pelo STF, não podendo ser apre­sen­
tada questão inédita através do recurso extraordinário.15 Em outra palavras
(e adotando-se aqui entendimento restritivo quanto ao prequestiona­
mento implícito), não basta que tenha havido violação da Constituição
Federal, sendo necessário que tenha havido efetiva manifestação do órgão
15
O mesmo se diga em relação ao recurso especial dirigido ao STJ.

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O sistema recursal e os meios autônomos de impugnação no âmbito dos juizados especiais cíveis: ... 55

inferior sobre esta alegada violação, podendo referida violação ocorrer,


muitas vezes, apenas no momento em que é proferido o acórdão pelo
órgão colegiado.
Com vistas ao atendimento deste pressuposto recursal, admite a
jurisprudência, em tais casos, a utilização dos embargos de declaração
para fins de prequestionamento. Trata-se, assim, de embargos de declaração
que tem uma finalidade específica, que é permitir o atendimento do
requisito recursal, com vistas a tornar a matéria inequivocamente pre­
questionada, através da provocação da manifestação efetiva do tribunal
sobre a matéria constitucional.16
Neste sentido, a jurisprudência do próprio STF reconhece como
válida a utilização dos embargos de declaração para fins de prequestio­
namento, conforme estampado nas Súmulas (que se complementam) nºs
282 e 356, abaixo transcritas:

Súmula 282 – “É inadmissível o recurso extraordinário quando não ventilada,


na decisão recorrida, a questão federal suscitada.”
Súmula 356 – “O ponto omisso da decisão, sobre o qual não foram opostos
embargos declaratórios, não pode ser objeto de recurso extraordinário, por
faltar o requisito do prequestionamento.”

Verifica-se, portanto, que o sistema processual, via integração da


jurisprudência, prevê o caminho para que se atenda ao requisito do
prequestionamento da questão constitucional quando esta não tenha sido
ainda efetivamente apreciada pelo órgão de origem, sendo os embargos
de declaração o instrumento para este desiderato.
O problema surge, porém, quando se está a tratar dos embargos
de declaração, com fins de prequestionamento, na hipótese de acórdãos
proferidos pelas turmas recursais dos juizados especiais cíveis. Isto
porque a matéria já foi apreciada em recente encontro do FONAJE,
sendo certo que a conclusão apresentada é, inexplicavelmente, no sentido
da inaplicabilidade, aos juizados especiais, do sistema criado nos Tri­bu­
nais de Justiça e TRFs para atendimento ao requisito do prequestio­na­
mento. Este o teor do Enunciado nº 125:

16
Afirme-se, por oportuno, que a utilização dos embargos pressupõe a existência de efetiva omissão do tribunal,
o que exige a alegação prévia da parte acerca da questão constitucional que entende violada, somente não
se exigindo este requisito de alegação anterior ao acórdão quando a violação da Constituição somente vem a
ocorrer no momento em que é proferido o acórdão.

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56 Celso Jorge Fernandes Belmiro

Enunciado 125 – “Nos juizados especiais, não são cabíveis embargos declara­
tórios contra acórdão ou súmula na hipótese do art. 46 da Lei 9.099/95, com
finalidade exclusiva de prequestionamento, para fins de interposição de recurso
extraordinário.” (Aprovado no XXI Encontro – Vitória/ES)

Cria-se, assim, situação de absoluta iniquidade, tendo em vista que


o requisito do prequestionamento continua a ser exigido normalmente
do recurso extraordinário em sede de juizados especiais e não poderá a
parte prejudicada valer-se do instrumento legítimo que a jurisprudência
reconhece como válido para estas hipóteses. Em outras palavras, não há
qualquer fundamento lógico ou jurídico para a restrição, cuidando-se,
assim, em primeira impressão, de situação que pode vir a caracterizar
eventual negativa de jurisdição quando a essência da questão levada aos
juizados especiais for efetivamente de índole constitucional e não houver
a manifestação daquele órgão sobre esta matéria.

2.2.4 A inadmissão do recurso extraordinário: o agravo de instrumento


do art. 544
Fixado o cabimento do recurso extraordinário como via única
recursal para a impugnação do acórdão proferido pelas turmas recursais,
deve-se indicar, uma vez mais, que se trata de recurso que deve atender
aos mesmíssimos requisitos de admissibilidade do recurso extraor­­ di­
nário interposto, para insurgência contra um acórdão proferido por uma
câmara cível de Tribunal de Justiça. Vale dizer: o fato de ser oriundo de
juizados especiais cíveis e de se tratar de causa cível de menor comple­
xid­ade, em nada altera a necessidade de se observarem os pressupostos
recursais exigidos para a admissão do recurso extraordinário.
O que se pretende analisar no presente tópico é, num primeiro
momento, a competência para o juízo de admissibilidade do recurso
extraordinário interposto contra o acórdão da Turma Recursal e, pos­
teriormente, o recurso a ser interposto diante de uma eventual inad­
missão do recurso extraordinário. Assim, afirme-se de início que o
Código de Processo Civil estabelece, em seu art. 541,17 que o juízo de
admissibilidade será exercido pelo presidente ou pelo vice-presidente do
tribunal de origem, conforme dispuser o regimento interno do tribunal18

17
Art. 541. “O recurso extraordinário e o recurso especial, nos casos previstos na Constituição Federal, serão
interpostos perante o presidente ou vice-presidente do tribunal recorrido (...)”
18
Trata-se de competência que os regimentos internos, em regra, atribuem ao(s) vice-presidente(s).

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O sistema recursal e os meios autônomos de impugnação no âmbito dos juizados especiais cíveis: ... 57

e eventualmente as normas locais de organização judiciária, surgindo,


quanto aos juizados especiais, algumas questões específicas, em função
de que: a) o art. 541 fala de presidente ou vice-presidente do tribunal
recorrido e, em se tratando de juizados especiais, não se trata propria­
mente de um tribunal; e 2) já foi dito, em passagem anterior, que o Tribunal
de Justiça (ou o TRF) não faz qualquer revisão de decisões proferidas
no âmbito dos juizados especiais, o que vale dizer, mais amplamente,
que tais ações simplesmente não passam19 pelos Tribunais de Justiça, que
não têm — a princípio — qualquer ingerência ou participação sobre
demandas oriundas dos juizados especiais.20
Diante de tais questionamentos, foi editado o Enunciado nº 84 do
FONAJE, com a redação seguinte:

Enunciado 84 (nova redação) – Compete ao Presidente da Turma Recursal o juízo


de admissibilidade do Recurso Extraordinário, salvo disposição em contrário.

Assim, claro está que tal competência é do Presidente da Turma


Recursal (e não, a princípio, o Presidente do Tribunal) que exercerá o
respectivo juízo de admissibilidade, admitindo ou inadmitindo o recurso
extraordinário interposto.21
Uma vez que seja admitido o recurso extraordinário, os autos do
processo serão enviados ao Supremo Tribunal Federal para julga­mento.
Caso seja inadmitido, dispõe o art. 544 do CPC, de aplicação imediata
para recursos especiais ou extraordinários inadmitidos nos Tribunais
de Justiça (ou TRFs) que será cabível o agravo de instrumento para o STJ
ou STF conforme o caso.22
Trata-se do agravo de instrumento que, apesar do nomem juris, não
se confunde com o agravo interposto contra a decisão interlocutória
proferida pelo juiz em primeiro grau de jurisdição e previsto no art. 522
do Código de Processo Civil.
19
Salvo a hipótese que será adiante analisada, em tópico apartado.
20
Conforme já reconhecido pela jurisprudência, inclusive do STJ, a vinculação eventualmente existente entre os
juizados especiais e o Tribunal de Justiça é de índole eminentemente administrativa.
21
De se registrar que, a exemplo de outros enunciados, que não são, em absoluto, vinculantes, este especificamente
se preocupa em encerrar seus termos com o “salvo disposição em contrário”. E de fato as há, como no Estado
do Rio de Janeiro, onde compete ao 3º Vice-presidente, por força de norma interna, o exercício de tal juízo de
admissibilidade. O Poder Judiciário dos Estados, no uso de sua competência organizacional, é que regulamentará
a questão.
22
“Art. 544. Não admitido o recurso extraordinário ou o recurso especial, caberá agravo de instrumento, no
prazo de 10 (dez) dias, para o Supremo Tribunal Federal ou para o Superior Tribunal de Justiça, conforme o
caso.”

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58 Celso Jorge Fernandes Belmiro

Resta, portanto, investigar a aplicação do art. 544 também em sede


de juizados especiais, diante do caso de inadmissão do recurso extraor­
dinário pelo presidente da Turma Recursal, ou de quem seja competente
para este exame de admissibilidade, de acordo com as normas de
organização judiciária de cada estado.
Neste sentido, uma vez mais, o já abordado Enunciado nº 15 do
FONAJE esclarece que, no âmbito dos juizados especiais, não é cabível
o recurso de agravo, exceto nas hipóteses do art. 557 (já aqui analisado)
e do art. 544 do CPC.
Verifica-se, portanto, o efetivo cabimento do agravo de instrumento,
dirigido ao Supremo Tribunal Federal, diante da inadmissibilidade do
recurso extraordinário interposto contra o acórdão da Turma Recursal
que, em sede de juizados especiais cíveis, se enquadre em qualquer das
situações previstas no art. 102, III da Constituição Federal.
Quanto à questão envolvendo o juízo de admissibilidade e a par­
ticipação do órgão a quo na remessa do agravo de instrumento ao Supremo
Tribunal Federal, reitere-se, também em relação aos juizados especiais,
o que já foi aqui sustentado em relação aos agravos de instrumento em
geral, ou seja, a impossibilidade de a Turma Recursal (ou a quem competir
referido juízo de admissibilidade) deixar de enviar o recurso ao STF para
julgamento, sob pena de violação da competência privativa deste e o
cabimento de eventual reclamação para sanar o vício. Neste sentido, os
exatos termos da Súmula nº 727 do STF, abaixo transcrita:

Súmula 727 – Não pode o magistrado deixar de encaminhar ao Supremo


Tribunal Federal o agravo de instrumento interposto da decisão que não admite
recurso extraordinário, ainda que referente a causa instaurada no âmbito dos
juizados especiais.

Uma vez analisados, em sua inteireza, os recursos23 que podem ser


interpostos em sede de juizados especiais cíveis, especialmente aqueles
de que não trata especificamente a Lei nº 9.099/95, cumpre que seja
abordada a possibilidade de utilização de outros meios de impugnação
de atos judiciais no âmbito do microssistema, em especial o mandamus
constitucional, tendo em vista a impossibilidade, por expressa disposição
legal (art. 59 da lei), do ajuizamento de ação rescisória nas causas afetas
aos juizados especiais.
23
Não são cabíveis, tendo em vista a celeridade que se busca no procedimento especial dos juizados, os embargos
infiringentes e o recurso adesivo (Enunciado nº 88 do FONAJE).

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O sistema recursal e os meios autônomos de impugnação no âmbito dos juizados especiais cíveis: ... 59

3. O mandado de segurança: noções gerais e sua utilização no âmbito


dos juizados especiais cíveis
3.1 O mandado de segurança como instrumento de impugnação de atos
do Poder Público em geral e dos atos judiciais, em particular
Nos estreitos limites do que se pretende demonstrar através do
presente estudo, não se revela indispensável uma análise minuciosa de
todos os contornos do mandado de segurança, tampouco as diversas
questões controvertidas que sobre ele se instauraram ao longo dos vários
anos de sua aplicação. Porém, para efeito de introdução às investigações
levadas a efeito nos tópicos seguintes, algumas noções introdutórias se
fazem necessárias, em especial aquelas acerca de seu objeto como um
todo e do cabimento do mandado de segurança contra atos judiciais,
especificamente.
Assim é que, positivado nas Constituições da República desde
1934,24 quando não possuía qualquer instrumento idêntico no direito
estrangeiro, constitui o mandado de segurança ação/remédio constitu­
cional de natureza civil25 e processual,26 tendo sido suas regras gerais
regulamentadas originariamente pela Lei nº 1.533/51 e mais recentemente
pela Lei nº 12.106/09. A título ilustrativo e como forma de homenagem
ao grande jurista que foi, relembra-se aqui clássica definição doutrinária
dada ao instrumento por Hely Lopes Meirelles, que perpassou toda a
doutrina processual e constitucional e que, a despeito de sua longevidade,
permanece atual:

Mandado de segurança é o meio constitucional posto à disposição de toda


pessoa física ou jurídica, órgão com capacidade processual, ou universalidade
reconhecida por lei, para a proteção de direito individual ou coletivo, líquido
e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, lesado ou ameaçado
de lesão, por ato de autoridade, seja de que categoria for e sejam quais forem
as funções que exerça.27

24
Na Constituição de 1988, o mandado de segurança é previsto no capítulo dos direitos e garantias fundamentais,
no art. 5º LXIX, cuja redação é a seguinte: “Conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido
e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso
de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do poder público”.
25
Pouco importando, sob esse aspecto, a natureza que ostente o ato impugnado (penal, trabalhista, eleitoral
etc.).
26
Sobre a natureza eminentemente processual do mandado de segurança, os ensinamentos de Moreira, para
quem “O mandado de segurança, embora consagrado na Constituição, como se consagra na Constituição a
ação popular, hoje a ação civil pública, e vários outros institutos, de cuja natureza jurídica ninguém até agora
teve a ousadia de duvidar, embora seja um instituto de assento constitucional, de base constitucional, é um
remédio processual, um instituto evidentemente processual. Trata-se de um processo” (MOREIRA, José Carlos
Barbosa. Mandado de segurança: uma apresentação. In: GONÇALVES, Aroldo Plínio (Coord.). Mandado de
segurança. Belo Horizonte: Del Rey, 1995. p. 83).
27
MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 21.

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60 Celso Jorge Fernandes Belmiro

Apresentado o conceito consagrado pela doutrina — e na linha


da restrição temática já aqui anunciada — cumpre que sejam ana­ li­
sados, de forma mais detida, os atos de autoridade que estão efetivamente
sujeitos à impetração, vale dizer, o objeto do mandado de segurança,
inves­tigando-se não só que categorias de autoridades têm seus atos
sujeitos ao ques­ tionamento judicial através deste instrumento, mas
também que espécie de atos podem ser questionados. Pretende-se, por­
tanto, uma breve abor­dagem acerca da noção de “autoridade coatora”
e de “ato coator”.
Com efeito, em função da própria redação da Constituição da Repú­
blica, o mandado de segurança deverá ser impetrado para impugnação
de ato de autoridade acoimado de ilegalidade ou abuso de poder, deven­
do ser considerada “autoridade”, para fins de impetração, todo agente
público que detenha o “poder de decidir”, pouco importando a categoria
ou as funções exercidas, sendo igualmente desimportante a esfera em
que atua, se federal, estadual ou municipal ou ainda se administração
direta ou indireta (autarquias e fundações, por excelência), admitindo-se
até mesmo que seja pessoa privada, mas desde que esteja investido de
atribuições próprias do Poder Público.28 A noção de autoridade coatora
é, pois, bastante ampla.
Quanto ao tema do ato coator, é ele um ato praticado ou omitido
por pessoa investida de uma parcela do poder público29 sendo certo que,
embora inicialmente houvesse tendência para só aceitar o mandado de
segurança quando o ato coator proviesse de autoridade administrativa
(integrante do Poder Executivo), houve significativa evolução no sentido
de admitir-se a sua impetração também quando o ato coator fosse
praticado por integrantes dos Poderes Legislativos e Judiciário, embora
com maiores restrições quanto aos atos típicos desses poderes, que são
a lei e o ato jurisdicional.
Observa-se, assim, que a noção de ato coator era originariamente
associada ao ato administrativo praticado de forma ativa ou de forma
omissiva pelo agente do Poder Executivo. Somente com o desenvolvimento
das investigações doutrinárias e da atuação jurisprudencial é que passou-
se a entender que o ato administrativo coator poderia provir de qualquer

28
Como é o caso sempre citado dos reitores de universidades ou diretores de faculdades privadas.
29
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Mandado de segurança: ato coator e autoridade coatora. In: GONÇALVES,
Aroldo Plínio (Coord.). Mandado de segurança. Belo Horizonte: Del Rey, 1995. p. 147.

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O sistema recursal e os meios autônomos de impugnação no âmbito dos juizados especiais cíveis: ... 61

dos Poderes estatais, bem como de agentes a quem se houvesse delegado


a execução das atribuições próprias e típicas do Poder Público.30
A questão adquire contornos mais relevantes quando se procede à
análise sob o ponto de vista da impetração do mandamus contra ato judi­
cial típico, vale dizer, para impugnação de uma decisão proferida em um
processo judicial, por força de restrições que vieram a ser estabelecidas
pela legislação infraconstitucional regulamentadora da matéria (espe­
cialmente a existência de um sistema de recursos stricto sensu, estabele­cido
em lei para impugnação dos atos judiciais).
Assim é que, apesar de a epígrafe do item enfocado mencionar o
estudo da impetração contra atos judiciais, mais adequada a encabeçar o
tema seria a nomenclatura “A impetração de mandado de segurança contra
atos jurisdicionais”, uma vez que o que se está a investigar é o cabimento
do mandamus contra o ato jurisdicional típico, vale dizer, aquele através
do qual o Estado exerce jurisdição, aplicando a lei ao caso concreto e, no
mais das vezes (ainda que não exclusivamente), solucionando conflitos
de interesse. Atos jurisdicionais que pertencem ao gênero mais amplo
dos atos judiciais, mas com os quais não se confundem, uma vez que, a
título ilustrativo, também ostentam a classificação de judiciais os atos
administrativos praticados pelo Poder Judiciário31 e contra os quais não
resta qualquer dúvida quanto ao cabimento de mandado de segurança. O
que se vai analisar, portanto, é a possibilidade de impetração do remé­dio
constitucional contra o ato jurisdicional, mantendo-se o título apenas em
homenagem à tradição da doutrina e da jurisprudência sobre o tema.
Sobre a questão — acerca da qual já se travou intenso debate no
Direito brasileiro, mas que hoje parece superado, tendo em vista a matu­
ridade adquirida pela utilização exaustiva do instrumento ao longo dos
anos — é possível a afirmação de que viola os mais comezinhos prin­cí­­pios
de direito processual e constitucional a eventual proibição de impetra­
ção de mandado de segurança contra o ato judicial, pretendendo-se uma
suposta limitação do mesmo aos atos administrativos (típicos ou atípicos)
violadores de direitos líquidos e certos, tendo em vista que a lesão
pode-se dar tão ou mais intensamente no processo estatal de prestação

30
FERRAZ, Sérgio. Mandado de segurança: (individual e coletivo): aspectos polêmicos. São Paulo: Malheiros,
1992. p. 68.
31
Dos quais são exemplos a licitação para a realização de obras na edificação em que sediado ou tribunal,
ou mesmo a simples nomeação de servidor ou sua apenação através de procedimento administrativo
disciplinar.

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jurisdicional, se feita a comparação com um simples ato administrativo


sujeito que é, em última análise, ao próprio controle jurisdicional poste­
rior. Válidas e definitivas, neste sentido, as palavras sempre esclarecedoras
de Sérgio Ferraz:

A possibilidade de arrasadora ofensa ou ameaça a direito líquido e certo é muito


mais aguda no ato jurisdicional que no ato legislativo típico ou até mesmo no
ato administrativo. As características e os efeitos dos atos jurisdicionais são de
tal natureza que a ilegalidade ou o arbítrio, neles eventualmente manifestados,
são suscetíveis de gerar teratologias permanentes e irreversíveis — o que
raramente se dá, p.ex., com o ato administrativo. Só por aí já se teria justifi­
cação suficiente para uma postura intensamente liberal quanto à admissão do
mandado de segurança contra ato jurisdicional.32

Assim, admitida em tese a impetração do mandamus contra o ato


judicial,33 o que pode eventualmente variar são os pressupostos a serem
observados para a efetiva utilização do remédio constitucional em tais
casos, tornando-se necessária a investigação acerca da velha noção
limitadora segundo a qual o mandado de segurança não se presta a ser
substitutivo de recurso (vale dizer, não é possível a utilização do mandamus
quando a lei prevê determinado recurso para atacar o ato judicial),
interpretação esta decorrente da antiga redação do art. 5º, II da revo­­gada
Lei nº 1.533/51,34 ou ainda da impossibilidade de sua utilização quando
a lei preveja recurso com efeito suspensivo, nos exatos termos da vedação
hoje contida no art. 5º, II da Lei nº 12.016/09, segundo o qual “não se
dará mandado de segurança quando se tratar (...) decisão judicial da
qual caiba recurso com efeito suspensivo”.35 Há que se investigar, por­tanto,
em um primeiro momento, a constitucionalidade da norma restritiva da
garantia constitucional.
Sobre a questão proposta, traz-se à colação a posição apresen­
tada pelo eminente jurista baiano Calmon de Passos que, em trabalho

32
FERRAZ, op.cit., p. 85.
33
A bem da verdade, o ato impugnável pode provir de autoridade de qualquer dos três poderes, só não sendo
admissível, em princípio e na esteira dos ensinamentos de Helly Lopes Meirelles, contra atos meramente
normativos (lei em tese), contra a coisa julgada e contra os atos interna corporis de órgãos colegiados (MEIRELLES,
op. cit., p. 37).
34
A redação do dispositivo revogado e tantas vezes analisadas pela doutrina era a seguinte (art. 5º, II da Lei nº
1.533/51): “Art. 5º. Não se dará mandado de segurança quando se tratar (...) II – de despacho ou decisão
judicial, quando haja recurso previsto nas leis processuais ou possa ser modificado por via de correição.”
35
De se observar que a restrição legal é hoje bem menor do que na redação anterior. Nos estritos limites do texto
legal revogado, não se daria mandado de segurança se houvesse recurso previsto em lei (a restrição por certo
foi mitigada pela jurisprudência), ao passo que a restrição da lei em vigor é limitada à hipótese em que haja
recurso e tenha este recurso efeito suspensivo.

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magistral, sustentou, de forma fundamentada e sistematizada, que a


existência de recurso não impede a impetração da segurança, tenha ele
ou não efeito suspensivo (além do que a parte não está obrigada a interpor
o mesmo como requisito prévio à impetração do MS).36 Trata-se de
entendimento defendido à luz da redação original contida no art. 5º,
II da Lei nº 1.533/51, mas que não se tornou em nada prejudicado ou
obsoleto pela revogação da antiga lei do mandado de segurança, pois o
conteúdo atual do dispositivo também cria condicionamento, de forma
aparentemente inconstitucional, à impetração do mandado de segu­rança,
estabelecendo restrição (a inexistência de recurso com efeito suspen­
sivo) não expressamente prevista em sede constitucional. Adota o ilustre
pro­­
cessualista baiano, entre outros fundamentos, tradicional regra de
hermenêutica segundo a qual não pode o legislador infraconstitucional
estabelecer condições ao exercício de um direito constitucionalmente
assegurado.37
Ocorre, porém, que ainda que sedutora e juridicamente bem estru­
turada a tese, não é esta a posição reconhecida pela doutrina majoritá­
ria e, em especial, pela jurisprudência dos tribunais superiores38 no que
tange à possibilidade (ao menos em tese) de limitação infraconstitucio­
nal de um tal direito, entendendo-se como plenamente constitucional a
restrição em questão, especialmente quando se tem em mente que o con­
dicionamento previsto na nova lei do mandado de segurança é significa­
tivamente menor que aquele outro da disciplina anterior.
Com efeito, superando-se a questão e considerando-se como válida
e de acordo com a lex legum o dispositivo contido no art. 5º, II da Lei
nº 12.016/09, de forma a impedir-se efetivamente a impetração nos ca­
sos em que há previsão expressa de recurso ao qual a lei atribua efeito
suspensivo, pode-se afirmar que, em tentativa inicial de sistematização
da matéria, que três serão as hipóteses em que restará efetivamente cabí­
vel a impetração do mandado de segurança contra ato judicial, a saber:

36
PASSOS, J. J. Calmon de. O mandado de segurança contra atos judiciais. In: GONÇALVES, Aroldo Plínio (Coord.).
Mandado de segurança. Belo Horizonte: Del Rey, 1995.
37
Na doutrina de Sérgio Ferraz, “cabe mandado de segurança contra o ato jurisdicional que, praticado com
ilegalidade ou abuso de poder, ameace ou viole direito líquido e certo. E só! A irreparabilidade do dano ou da
inexistência de recurso com efeito suspensivo não são critérios de admissão em tese do mandamus” (op. cit.,
p. 86).
38
Cita-se, como exemplo de restrição infraconstitucional hígida, a questão do prazo limite para impetração
(120 dias), também regulado na legislação de regência a despeito de qualquer previsão constitucional neste
sentido. O Supremo Tribunal Federal, através do Enunciado nº 632 da súmula de sua jurisprudência, entendeu
como plenamente constitucional a limitação prevista na Lei nº 1.533/51. Este o teor do Enunciado nº 632: “É
constitucional a lei que fixa o prazo de decadência para a impetração de mandado de segurança.”

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a) quando a lei expressamente dispuser que contra o ato não cabe


nenhum recurso, vale dizer, o ato é considerado pela lei como irrecorrível;39
b) quando a lei silenciar quanto ao recurso a ser eventualmente inter­
posto para atacar o ato, ou seja, a lei não prevê qualquer recurso para
a im­pugnação do ato (o que é diferente de expressamente determinar
sua irrecorribilidade, como na hipótese anterior); e c) quando a lei disci­
plina o recurso adequado para a impugnação do ato, porém retira-lhe
o efeito suspensivo, quando então a impetração do MS terá como fim
exclu­sivo a atribuição de tal efeito ao recurso.40
Para a aplicação do remédio constitucional mandado de segurança
no âmbito dos juizados especiais torna-se relevante a segunda das hipó­
teses aqui mencionadas, como será visto no tópico seguinte.

3.2 A possibilidade de impetração de mandado de segurança no âmbito


dos juizados especiais cíveis
Nas considerações iniciais ao presente ensaio, fez-se alusão à pre­
cariedade do sistema de impugnação das decisões proferidas no âmbito
dos juizados especiais, especialmente pelo fato de a Lei nº 9.099/95 ter sido
bastante tímida na regulamentação de sua estrutura recursal, prevendo
tão somente o recurso inominado, cabível contra a sentença ali profe­rida
e os embargos de declaração, oponíveis contra a sentença e o acórdão
proferido pelas turmas recursais. Por conta desta incompletude sistêmica
(ao menos no que se refere à previsão legal), várias indagações surgiram
quando da implementação daquela nova via de prestação jurisdicional,
grande parte delas solucionadas pela jurisprudência, seja através dos
enunciados do FONAJE (Fórum Nacional dos Juizados Especiais Cíveis),
seja através dos julgados das próprias turmas recursais e dos tribunais
superiores.
Com efeito, um dos tantos questionamentos levantados sobre os
recursos no âmbito dos juizados especiais foi a ausência de previsão, na
Lei nº 9.099/95, acerca da recorribilidade das decisões interlocutórias
e, em caso positivo, qual o instrumento efetivamente utilizável para esta
39
Como de fato acontece com os “despachos” judiciais ou ainda em situações outras em que, a despeito de
se tratar de decisão judicial stricto sensu, a lei veicula a sua irrecorribilidade, citando-se para tanto os artigos
519, parágrafo único, 527, parágrafo único, e 543, §2º e §3º, todos do CPC.
40
Apesar de reconhecida pela tradição jurisprudencial brasileira, a impetração do mandado de segurança
apenas para dar efeito suspensivo a recurso dele desprovido é, para Calmon de Passos, no trabalho citado (no
que é seguido por autores como Celso Agrícola Barbi e Lúcia Vallle Figueiredo) atentatória à lei e à técnica
processual.

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O sistema recursal e os meios autônomos de impugnação no âmbito dos juizados especiais cíveis: ... 65

impugnação, sendo certo que, diante da ausência de previsão acerca


da possibilidade de interposição de agravo de instrumento, passou-se a
vislumbrar a impetração do mandado de segurança para a impugnação
de decisões que viessem a causar graves prejuízos a uma das partes.
Para tanto, porém, os requisitos constitucionais e legais haveriam de ser
observados.
Assim é que, repisando sistematicamente a análise feita no tópico
anterior, três são as hipóteses práticas em que se admite a impetração
de mandado de segurança contra ato judicial: a) a lei expressamente
determina que o ato judicial é irrecorrível; b) a lei silencia quanto à
recorribilidade do ato judicial ou quanto ao recurso que deva ser utili­
zado; e c) a lei estabelece que o recurso é desprovido de efeito suspensivo
e o mandado de segurança é utilizado especificamente para este fim.
Como exemplo da primeira das hipóteses de cabimento de man­
dado de segurança, tem-se o despacho judicial que, na conformidade do
art. 504 do CPC, não desafia qualquer recurso. Desta forma, provando a
parte estar sofrendo algum prejuízo com o despacho proferido e diante
de sua irrecorribilidade, abrem-se as portas para a impetração do man­
dado de segurança.
Outrossim, como exemplo da segunda das hipóteses indicadas de
utilização do writ, surge a questão envolvendo as decisões interlocutórias
proferidas no âmbito dos juizados especiais, tendo em vista que a lei é
absolutamente silente quanto ao cabimento do agravo de instrumento,
entendendo-se que, de tal silêncio, deve-se extrair a conclusão de que
o agravo (retido ou de instrumento) contra a decisão interlocutória
proferida em primeiro grau de jurisdição não é recurso passível de
interposição no âmbito daquele microssistema. Com este fundamento,
editou-se o Enunciado nº 15 do FONAJE, cujo teor original é o seguinte:
“Enunciado 15 – Nos juizados especiais cíveis não é cabível o recurso de
agravo”.41 Trata-se, portanto, de vedação peremptória de utilização do
agravo contra a decisão interlocutória proferida pelo juiz em primeiro
grau de jurisdição.42
41
A redação do enunciado foi posteriormente alterada para possibilitar a acomodação do art. 557 do CPC,
permitindo-se ao relator do recurso inominado negar seguimento ou dar provimento ao recurso sem submeter
a decisão ao órgão colegiado, nas hipóteses reguladas ali versadas (e o agravo interno a ser interposto contra
esta decisão monocrática), e também para que fosse contemplado o agravo de instrumento contra a inadmissão
do recurso extraordinário, de que trata o art. 544. Essa a nova redação do Enunciado nº 15 do FONAJE: “Nos
Juizados Especiais, não é cabível o recurso de agravo, exceto nas hipóteses dos artigos 544 e 557 do CPC.”
42
Seja mencionada, porém, a posição em sentido contrário do Colégio Recursal da capital do Estado de São
Paulo, que igualmente editou enunciados de interpretação, sendo certo que, no Enunciado de nº 2, assim

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Com efeito, é fora de dúvida que despachos — e, no caso dos juizados


especiais, as decisões interlocutórias — podem, concretamente, causar
dano irreparável a um dos sujeitos do processo, configurando situação
inequivocamente antijurídica impedir-se, de forma absoluta, a revisão
do ato judicial em tais casos. Em outras palavras, percebeu-se a necessidade
premente de se colocar à disposição da parte, em situações excepcionais,
um instrumento jurídico adequado para que a decisão pudesse ser objeto
de efetiva impugnação e de modificação em novo julgamento, ainda
que não fosse pela via recursal tradicional.
Diante disso, para hipóteses que — ao menos em tese — são
excepcionais, passou-se a admitir a utilização de mandado de segurança
contra a decisão interlocutória proferida nos juizados especiais. E tal
possibilidade de impetração do remédio constitucional somente é possí­
vel, reafirme-se, tendo em vista o fato de que a Lei nº 9.099/95 não previu
qual o recurso cabível para a impugnação da decisão, ao que se soma
a posição jurisprudencial firmada quanto ao não cabimento do agravo
em tais hipóteses.
Outrossim, uma vez abertas as portas do microssistema para a utili­
zação do mandamus, uma questão ainda restava por ser analisada. Tratava-
se da competência para julgamento do mandado de segurança interpos­
to contra a decisão proferida nos juizados especiais, especial­mente em
função da regra geral fixada para os casos de sua utilização contra ato
judicial, ou seja, a competência originária que detém os tribunais para o
julgamento do writ impetrado contra ato de magistrado ao qual o mesmo
se encontra vinculado (Tribunais de Justiça ou Tribunal Regional Federal
em se tratando de juízes federais), regra esta acabou sendo excepcionada
pela jurisprudência dos próprios juizados especiais e do STJ.
Assim, sufragando o entendimento de que não cabe ao Tribunal
de Justiça (ou ao TRF) se imiscuir nas decisões tomadas no âmbito dos
juizados especiais, não sendo possível inicialmente a estes órgãos fazer
a revisão de qualquer provimento (sentença, decisão interlocutória ou
mesmo acórdão, como será visto) oriundo daquele microssistema, foi
pacificado o entendimento de que o mandado de segurança contra o ato
praticado nos juizados especiais, em primeiro grau de jurisdição, é da
competência, também originária, das turmas recursais.

estabeleceu: “É admissível, no caso de lesão grave e difícil reparação, o recurso de agravo de instrumento no
juizado especial cível”.

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O sistema recursal e os meios autônomos de impugnação no âmbito dos juizados especiais cíveis: ... 67

Neste sentido, os exatos termos do Enunciado nº 62 do FONAJE,


abaixo transcrito, posteriormente corroborado pela Súmula nº 376
do STJ:

Enunciado 62 – Cabe exclusivamente às Turmas Recursais conhecer e julgar o


mandado de segurança e o habeas corpus impetrados em face de atos judiciais
oriundos dos Juizados Especiais.
Súmula 376 do STJ – Compete à turma recursal processar e julgar o mandado
de segurança contra ato de juizado especial.

Em conclusão quanto a este tópico, a impetração do writ é admis­


sível no âmbito dos juizados especiais contra as decisões interlocutórias
ali proferidas, sendo certo que a competência para julgamento é origi­
nária das Turmas Recursais, revelando-se assim o mandado de segurança
como instrumento de grande valia no sistema de impugnação das de­
cisões judiciais dos juizados especiais, não só pela sua utilização mais
elementar (contra a decisão do juiz de primeiro grau contra a qual o
sistema não admite o agravo), mas principalmente por sua utilização,
em hipótese específica, como via de acesso aos Tribunais de Justiça que
passam a atuar, pontualmente, na revisão das decisões sobre a competência
daqueles órgãos, como será visto no tópico seguinte, onde se pretende
abordar os novos caminhos que se abrem na jurisprudência para a revisão
judicial daqueles atos, principalmente a atuação dos Tribunais de Justiça
e do Superior Tribunal de Justiça em tais hipóteses.

4 O acesso aos Tribunais de Justiça e ao Superior Tribunal de Justiça das


demandas oriundas dos juizados especiais
4.1 O mandado de segurança impetrado originariamente no Tribunal
de Justiça e o recurso ao Superior Tribunal de Justiça: as questões
relativas à competência dos juizados especiais
Fixadas que foram as premissas acerca da não ingerência dos
Tribunais de Justiça sobre o que restou decidido nos juizados especiais
cíveis, tendo em vista que todo o sistema recursal é voltado para a
revisão pelas turmas recursais e que também o mandado de segurança é
impetrado para julgamento pelas turmas/conselhos recursais, cumpre que
seja analisada a hipótese específica de violação de lei federal no âmbito
dos juizados especiais.

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Com efeito, adquire importância a questão quando se tem em


mente que, no sistema recursal previsto em lei para os juizados especiais
— e integrado pela jurisprudência — o único recurso admissível contra
o acórdão proferido pelas turmas recursais é o recurso extraordinário,43
que é cabível, como cediço, quando se está diante de violação de norma
ou dispositivo constitucional. Porém, se for o caso de violação de disposi­tivo
de lei federal, quais as alternativas que se apresentam à parte prejudi­­cada?
A resposta a este questionamento é estruturalmente frustrante, tendo
em vista que o sistema recursal dos juizados especiais, ao não autorizar
o manejo de recurso especial ao Superior Tribunal de Justiça, esgota a
questão na esfera solipsista daquele microssistema, independentemente
de ter ou não havido violação de lei federal, ainda que flagrante.44
Contudo, um problema ainda maior surge quando se trata de
decisão proferida no âmbito dos juizados especiais que transborde da
competência prevista em lei para aquela modalidade de procedimento.
Uma eventual demanda que, de acordo com a legislação federal e com as
normas de organização judiciária, devesse ser ajuizada perante uma vara
cível, seja porque o valor pretendido não se enquadra na competência dos
juizados, seja porque esta incompetência decorre da incompatibilidade
em razão da matéria ali veiculada, ou mesmo por força de uma prova
técnica de maior complexidade impossível de ser produzida nos estreitos
limites dos juizados especiais. Estar-se-ia, então, diante de um absurdo
fechamento do sistema de impugnação da decisão quando não haveria
sequer competência para a sua prolação.
Se houver a sustentação da posição de que em hipótese alguma
será possível a ingerência do Tribunal de Justiça ou do Superior Tribunal
de Justiça sobre esta decisão — repita-se: decisão que trata da própria
competência dos juizados especiais — estar-se-á criando um sistema
“blindado”, impermeável, inexpugnável, que será soberano no julga­
mento das causas para as quais se afirmar competente, em função de que
esta declaração de competência não poderá ser objeto de qualquer tipo
de revisão ou questionamento fora do âmbito dos próprios juizados

43
A Constituição da República exige, em seu art. 105, III, para o cabimento do recurso especial, que a decisão
atacada tenha sido proferida por Tribunal (de Justiça dos Estados ou Regional Federal), o que impede a revisão
de acórdãos proferidos pelas turmas recursais dos juizados especiais cíveis, já que, apesar de serem órgãos
colegiados, não ostentam esta qualificação.
44
De se observar, ainda, que a parte não poderá nem mesmo ajuizar ação rescisória, já que esta é incabível no
âmbito dos juizados especiais, conforme expressamente dispõe o art. 59 da Lei nº 9.099/95, in verbis: “não
se admitirá ação rescisória nas causas sujeitas ao procedimento instituído por esta Lei”.

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O sistema recursal e os meios autônomos de impugnação no âmbito dos juizados especiais cíveis: ... 69

especiais, especialmente porque a matéria competência costuma se


esgotar na seara infraconstitucional (a própria competência dos juizados
é pre­vista na Lei Federal nº 9.099/95), impossibilitando o acesso
— único, ainda possível — ao Supremo Tribunal Federal, via recurso
extraordinário.
Referida preocupação foi refletida no julgamento, pela Segunda
Turma do E. Superior Tribunal de Justiça, do Recurso em Mandado de
Segurança nº 26.665/DF, relatoria do Min. Herman Benjamin, onde
aquele tribunal superior, reiterando posição já sedimentada na Corte
Especial no julgamento no RMS nº 17.524/BA, relatoria da Min. Nancy
Andrighi, sufragou o entendimento de que, apesar de ser da competência
das Turmas Recursais o julgamento dos mandados de segurança impe­
trados contra atos dos juízes em atuação nos juizados especiais, ou mesmo
contra atos dos membros daquele órgão colegiado, se excepcionalmente
o writ versar sobre a competência dos próprios juizados especiais para o
conhecimento da lide, o mandado será impetrado diretamente nos
Tribunais de Justiça ou aos Tribunais Regionais Federais, já que referidas
decisões não podem ficar absolutamente desprovidas de controle externo
ao microssistema.
Do voto condutor do acórdão da Corte Especial, colhem-se as
seguintes passagens:

– Não se admite, consoante remansosa jurisprudência do STJ, o controle, pela justiça


comum, sobre o mérito das decisões proferidas pelos juizados especiais. Exceção é feita
apenas em relação ao controle de constitucionalidade dessas decisões, passível de ser
promovido mediante a interposição de recurso extraordinário.
– A autonomia dos juizados especiais, todavia, não pode prevalecer para a decisão
acerca de sua própria competência para conhecer de causas que lhe são submetidas. É
necessário estabelecer um mecanismo de controle da competência dos Juizados, sob pena
de lhes conferir um poder desproporcional: o de decidir, em caráter definitivo, inclusive
as causas para as quais são absolutamente incompetentes, nos termos da lei civil.
– Não está previsto, de maneira expressa, na Lei 9.099/95, um mecanismo de controle
da competência das decisões proferidas pelos Juizados Especiais. É, portanto, necessário
estabelecer esse mecanismo por construção jurisprudencial.
– Embora haja outras formas de promover referido controle, a forma mais adequada é a do
mandado de segurança, por dois motivos: em primeiro lugar, porque haveria dificuldade
de utilização, em alguns casos, da Reclamação ou da Querela Nullitatis; em segundo
lugar, porque o mandado de segurança tem historicamente sido utilizado nas hipóteses
em que não existe, no ordenamento jurídico, outra forma de reparar lesão ou prevenir
ameaça de lesão a direito. (grifos na transcrição)

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70 Celso Jorge Fernandes Belmiro

Desta forma, assentada na jurisprudência do Superior Tribunal


de Justiça a possibilidade de revisão por parte dos Tribunais de Justiça,
de decisão dos juizados especiais que envolva a fixação de sua própria
competência, torna-se imprescindível a análise do mecanismo através do
qual é feito este controle e, a partir daí, como é possível o acesso ao
Superior Tribunal de Justiça em tais casos.
Com esta finalidade, exsurge o “Recurso em Mandado de Segu­
rança” (denominação dada a uma das espécies de Recurso Ordinário de
que trata a Constituição da República em seus art. 102, II e 105, II, quando
dirigidos ao STF ou ao STJ, respectivamente) como forma de permitir
esta revisão por parte do STJ. Assim, no âmbito do presente trabalho,
importa a abordagem da modalidade recursal prevista especificamente
no art. 105, II, b, da lex legum,45 que veicula espécie de recurso que
demanda: a) mandado de segurança impetrado originariamente nos
Tribunais Regionais Federais ou nos Tribunais de Justiça dos Estados; e
b) decisão denegatória da segurança.46
Assim, para que se possa aventar, no caso concreto sob análise,
a possibilidade de acesso ao Superior Tribunal de Justiça, através de
Recurso em Mandado de Segurança, há necessidade — como parece
elementar — de um mandado de segurança impetrado originariamente
no Tribunal de Justiça Estadual. Sobre o tema, as lições sempre precisas
de Moreira:

A expressão “em única instância” evidencia que se trata de causas de competência


originária dos tribunais mencionados. (...) Precisa a decisão ser “denegatória”.
Está consolidado na jurisprudência o entendimento de que a palavra assume
aqui sentido amplo, compreensivo não só das decisões que julgam improce­
dente o pedido, mas também das que extinguem o processo sem apreciação
do mérito.47

Assim, a interposição de Recurso Ordinário em Mandado de


Segurança é capaz de alçar ao STJ questões que, na concepção originária
dos juizados especiais cíveis, jamais chegariam àquele tribunal superior.
45
“Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
II – julgar, em recurso ordinário:
b) os mandados de segurança decididos em única instância pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais
dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando denegatória a decisão;”
46
Por “decisão” aqui entenda-se o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça, e não eventual decisão monocrática
proferida pelo relator do mandamus.
47
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil: volume V: arts. 476 a 565. Rio de
Janeiro: Forense, 2008.

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O sistema recursal e os meios autônomos de impugnação no âmbito dos juizados especiais cíveis: ... 71

Reitere-se, porém, que este caminho somente é possível quando se está


diante de questionamento acerca da competência dos próprios jui­zados
especiais, matéria única passível de enfrentamento pelo Tribunal de
Justiça no mandado de segurança e, via de consequência, pelo Recurso
em mandado de segurança no STJ.
Afirmando-se a necessidade de um mandado de segurança impe­
trado no Tribunal de Justiça contra o ato praticado nos juizados especiais,
torna-se imperiosa a definição de qual provimento oriundo daquele
microssistema estará efetivamente sujeito a esta impetração. Vale dizer,
é possível a impetração contra uma decisão interlocutória dos juizados
que trate de competência? Seria necessária, quando menos, a prolação
da sentença nos juizados especiais? Ou ainda, somente contra o acórdão
das turmas recursais é que poderia vislumbrar a impetração do MS no
Tribunal de Justiça?
O tema não é de todo elementar, dando azo a algumas concepções
equivocadas, como a que se depreende da notícia veiculada no sítio do
STJ que, noticiando a edição da Súmula nº 376, fez publicar a seguinte
passagem, citando inclusive o mencionado RMS nº 17.524/BA:

Corte Especial aprova súmula referente aos juizados especiais


(...)
A nova súmula, relatada pelo ministro Nilson Naves, é resultado de entendi­
mento já consolidado na Corte sobre a competência de processar e julgar
mandado de segurança contra ato de juizado especial. O novo enunciado define
que compete à turma recursal esse procedimento.
Entre os vários precedentes legais utilizados, estão os CC 40.199-MG, 39.950-BS,
41.190-MG, 38.020-RJ e também os RMS 17.524-BA, RMS 17.254-BA e RMS
18.949. No mandado de segurança 17.524, relatado pela ministra Nancy Andrighi,
entendeu-se ser possível a impetração de mandado de segurança no Tribunal de
Justiça contra sentença de Juizados Especiais Cíveis. A exceção foi autorizada para
casos em que a ação ataca a competência do Juizado Especial para processar
e julgar caso que envolva valores acima dos atribuídos por lei a esses juizados,
e não o mérito da decisão. O entendimento não conflita com a jurisprudência
pacífica do Tribunal em relação à impossibilidade de revisão do mérito das
decisões dos Juizados Especiais.

Observe-se, portanto, que é anunciada a possibilidade de impe­


tração do mandado de segurança contra sentença proferida nos juizados
especiais, o que é absolutamente equivocado. Em verdade, a impetração
de mandado de segurança contra a sentença (e com mais razão ainda,

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contra eventual decisão interlocutória) revela-se como uma impetração


per saltum, já que ignora a possibilidade de revisão do julgamento pela
própria Turma Recursal a quem compete julgar o recurso inominado
interposto (ou a ser interposto) contra a sentença. Em tais hipóteses,
estaria sendo utilizado o acesso ao Tribunal de Justiça para uma questão
que ainda poderia ser solucionada no âmbito dos próprios juizados
especiais, o que não parece ser a intenção da jurisprudência do STJ.
Com efeito, sustenta-se aqui a necessidade de prévio esgotamento da
matéria no âmbito dos juizados especiais para que se possa — e ainda
assim excepcionalmente — acessar o Tribunal de Justiça e, a partir daí,
ao Superior Tribunal de Justiça, através do recurso em mandado de
segurança. Assim, o caminho aberto para a impetração de mandado de
segurança não é contra a sentença proferida nos juizados especiais (ou
contra uma eventual decisão interlocutória, repita-se), mas sim contra
o acórdão do recurso inominado proferido pelas turmas recursais. Esta a
condição.
Referida questão restou assentada no Recurso em Mandado de Segu­
rança nº 27.609/MG, relator o Min. Teori Zavascki, assim ementado:

Processo civil. Mandado de segurança. Ato de juiz singular de juizado especial


federal. Controle de competência.
1. No julgamento do RMS 17.524-BA, de relatoria da Min. Nancy Andrighi,
a Corte Especial decidiu pela competência de Tribunal de Justiça para o
processamento de mandado de segurança impetrado contra decisão de turma
recursal de Juizado Especial Estadual que não reconheceu a competência da
justiça comum. No caso concreto, entretanto, a impetração foi contra decisão
de juiz singular. Aplicar o precedente da Corte Especial também a essa hipó­tese
seria transformar em ordinário um mecanismo que foi admitido para situações
absolutamente extraordinárias.
2. Recurso ordinário a que se nega provimento.

Mais adiante, em seu voto, o relator Min. Teori Zavascki, citando o


RMS nº 17.524-BA, deixa clara a tese aqui defendida:

O mandado de segurança que lhe deu origem foi impetrado contra decisão de
Turma Recursal de Juizado Especial, e não contra decisão de juiz singular. Foi
justamente porque estavam esgotadas todas as vias ordinárias no âmbito do
Juizado Especial que se abriu a excepcional via do mandado de segurança. Não
fosse assim, estar-se-ia permitindo que qualquer decisão de juiz singular, sobre
competência, fosse atacada diretamente por mandado de segurança perante o
Tribunal de Justiça. Isso importaria transformar o mandado de segurança em

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O sistema recursal e os meios autônomos de impugnação no âmbito dos juizados especiais cíveis: ... 73

via recursal ordinária, substitutiva do recurso próprio, previsto na lei, para a


Turma Recursal. Seria transformar em ordinário um mecanismo que a Corte
Especial admitiu para situações absolutamente extraordinárias. No caso, convém
ressaltar, a impetração foi contra ato de juiz singular de Juizado.
Diante do exposto, nego provimento ao recurso. É o voto.

Por todo o exposto e em síntese, pode-se aqui estabelecer, quanto


ao procedimento para o acesso ao STJ de demandas que são proces­
sadas originariamente nos juizados especiais, algumas observações
fundamentais:
a) A única matéria passível de verificação pelo Tribunal de Justiça
via mandado de segurança ali impetrado é a relativa à competên-
cia dos juizados especiais para o processo e julgamento daquela
demanda especificamente considerada, não havendo a possibili­
dade de se questionar qualquer outra matéria perante aquele ór­
gão revisor, especialmente as que se refiram ao mérito da decisão
proferida nos juizados especiais.
b) Referido mandado de segurança pressupõe o prévio esgotamento
das “vias ordinárias” no âmbito dos juizados especiais. Significa
isto que o mandado de segurança é impetrado perante o Tribunal
de Justiça dos Estados, para atacar o acórdão proferido pelas
turmas recursais, sendo absolutamente inviável a sua impe­tração
contra a sentença ou eventuais decisões interlocutórias profe­
ridas pelo juiz naquele procedimento especial, ainda que tratem
especificamente da competência dos juizados especiais cíveis.
c) Nestes casos, o instrumento para o acesso ao STJ é o recurso em
mandado de segurança previsto no art. 105, II, b da Constituição
Federal. Assim, não se chega ao STJ, via Tribunal de Justiça,
através de recurso especial, não havendo que se exigir qualquer
suposta e eventual violação de lei federal com vistas a uma possí­
vel revisão da decisão. Esta se revela impossível em tais hipóte­
ses, esgotando-se a questão no julgamento das turmas recursais.
Eventuais violações da legislação federal continuam sem instru­
mento adequado para revisão pelos tribunais superiores.

4.2 A reclamação constitucional para a garantia da autoridade das


decisões do STJ
Como caminho alternativo de acesso ao STJ de demandas oriundas
dos juizados especiais cíveis, surge a reclamação constitucional para a

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garantia da autoridade das decisões proferidas por aquele tribunal superior


e que tem previsão no art. 105, I, f, da Constituição da República.48
A utilização da reclamação constitucional em demandas originá­
rias dos juizados especiais representa, em essência, uma solução juris­
prudencial para um grave problema que se apresentava em termos de
administração judiciária e de uniformização de entendimentos acerca da
interpretação da legislação federal, função precípua entregue pela Carta
Magna ao Superior Tribunal de Justiça.49 Em outras palavras, uma vez
fechadas as portas a esta revisão por força da impossibilidade de inter­
posição de recurso especial, a jurisprudência daquele tribunal superior
passa a não alcançar as decisões proferidas no âmbito daquele microssis­
tema, uma vez que não é facultada à parte prejudicada pela decisão a uti­
lização de qualquer instrumento para fazer prevalecer o posicionamento
diversas vezes reiterado pelo tribunal que, por força de dispositivo consti­
tucional, tem a missão de uniformizar a interpretação da lei federal.
Desta forma, os entendimentos reiterados e até mesmo sumulados
por aquele tribunal superior acabam, em análise extrema, não tendo
aplicação no âmbito dos juizados especiais.
Diante da constatação de tal perplexidade é que foi necessária
a criação de entendimento segundo o qual rompido o isolamento dos
juizados especiais e possibilitada a revisão da decisão em casos absolu­
ta­mente específicos e diferenciados. Assim, em decisão proferida nos
autos de Embargos de Declaração opostos no Recurso Extraordinário
nº 571.572/BA, sob a relatoria da Min. Ellen Gracie, o E. Supremo Tri­
bu­nal Federal entendeu que, enquanto não criado por lei o órgão unifor­
mizador das decisões dos juizados especiais cíveis estaduais,50 é cabível,
em caráter excepcional, a reclamação prevista no art. 105, I, f, da Consti­
tuição da República para que prevaleça a jurisprudência do STJ na interpre­
tação da legislação federal também em relação aos juizados especiais
cíveis estaduais. Do voto condutor do acórdão e de sua ementa extraem-se
as seguintes passagens elucidativas:

48
Art. 105. “Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
I – processar e julgar, originariamente
f) a reclamação para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões;”
49
Sob a natureza jurídica da reclamação constitucional, verifique-se a conclusão a que chegou o Supremo Tribunal
Federal no julgamento da ADI nº2212/CE, relatora a Min. Ellen Gracie, assim sintetizada: “A natureza jurídica
da reclamação não é a de um recurso, de uma ação e nem de um incidente processual. Situa-se ela no âmbito
do direito constitucional de petição previsto no artigo 5º, inciso XXXIV da Constituição Federal.”
50
À semelhança do que ocorre com as Turmas de Uniformização da Jurisprudência, previstas na Lei nº 10.259/01
para os juizados especiais federais.

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O sistema recursal e os meios autônomos de impugnação no âmbito dos juizados especiais cíveis: ... 75

(...) 2. Quanto ao pedido de aplicação da jurisprudência do Superior Tribunal


de Justiça, observe-se que aquela egrégia Corte foi incumbida pela Carta Magna
da missão de uniformizar a interpretação da legislação infraconstitucio­nal,
embora seja inadmissível a interposição de recurso especial contra as decisões
proferidas pelas turmas recursais dos juizados especiais.
3. No âmbito federal, a Lei 10.259/2001 criou a Turma de Uniformização da
Jurisprudência, que pode ser acionada quando a decisão da turma recursal
contrariar a jurisprudência do STJ. É possível, ainda, a provocação dessa Corte
Superior após o julgamento da matéria pela citada Turma de Uniformização.
4. Inexistência de órgão uniformizador no âmbito dos juizados estaduais,
circunstância que inviabiliza a aplicação da jurisprudência do STJ. Risco de
manutenção de decisões divergentes quanto à interpretação da legislação fede­
ral, gerando insegurança jurídica e uma prestação jurisdicional incompleta,
em decorrência da inexistência de outro meio eficaz para resolvê-la.
5. Embargos declaratórios acolhidos apenas para declarar o cabimento, em
caráter excepcional, da reclamação prevista no art. 105, I, f, da Constituição
Federal, para fazer prevalecer, até a criação da turma de uniformização dos
juizados especiais estaduais, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça
na interpretação da legislação infraconstitucional.

Nestes termos, observa-se que o E. Supremo Tribunal Federal, no


julgamento acima transcrito, passou a admitir a utilização da reclamação
constitucional a ser dirigida ao STJ quando sua jurisprudência não for
observada no julgamento proferido pelas turmas recursais no âmbito
dos juizados especiais.
De sua parte, o E. Superior Tribunal de Justiça, com vistas a imple­
mentar o que restou decidido pelo pretório excelso, fez editar a Reso­lução
nº 12, de 14 de dezembro de 2009, cuja ementa determina que a mesma
“dispõe sobre o processamento, no Superior Tribunal de Justiça, das recla­
mações destinadas a dirimir divergência entre acórdão prolatado por
turma recursal estadual e a jurisprudência desta corte”.
Em linhas gerais, o procedimento então criado prevê o prazo de
15 (quinze) dias para o ajuizamento da reclamação, que será possível
nas hipóteses de contrariedade entre o julgamento da turma recursal
e a jurisprudência do STJ, suas súmulas ou orientações decorrentes do
julgamento de recursos repetitivos, na forma do art. 543-C do CPC.
A competência para julgamento da reclamação é da seção, sendo
inicialmente dirigida ao Min. relator que exercerá o juízo de admissibi­
lidade e poderá, em caso positivo, conceder liminar comunicando aos
Tribunais de Justiça a decisão e determinando a paralisação dos processos

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76 Celso Jorge Fernandes Belmiro

em que tenha sido estabelecida a mesma controvérsia. Após a abertura


facultativa de vistas ao MP, o processo será incluído em pauta, tendo
preferência sobre os demais, à exceção de habeas corpus, mandados de
segurança e os recursos repetitivos a que alude o art. 543-C do CPC.
Prevê ainda a Resolução nº 12/2009 a irrecorribilidade das decisões pro­
feridas pelo relator e a edição de súmula contendo o resultado do acórdão
proferido, além da comunicação aos presidentes e corregedores-gerais
da justiça de cada estado membro.
Cuida-se, assim, de instrumento salutar estabelecido pela juris­
prudência para a omissão contida na Lei nº 9.099/95 para os casos de
decisões discrepantes da posição reiterada do STJ em seus julgamentos.
Trata-se, porém, de instrumento que demanda uma prévia manifes­tação
do STJ sobre a matéria, que terá chegado àquele tribunal por outros
meios, fundamentalmente por recursos especiais interpostos contra
acórdãos dos Tribunais de Justiça ou Tribunais Regionais Federais em
matérias que sejam correlatas ou tenham mesmo suporte fático ou jurídico
daquelas demandas que se processam perante os juizados especiais.
Importa observar, porém, que não se trata de instrumento que
venha a suprir a lacuna criada pela Constituição da República ao não
permitir o acesso de demandas oriundas dos juizados especiais ao STJ
via recurso especial, nos casos de violação de dispositivo de lei federal.
Em tais casos, continua lamentavelmente presente a impossibilidade de
questionamento perante o STJ de uma tal decisão, tendo em vista os exatos
termos do art. 105, III da lex legum, ainda que a violação seja evidente e
a situação concretamente criada seja de profunda injustiça. Seja como
for, a possibilidade de reclamação constitucional para as hipóteses em que
a decisão viola jurisprudência já consolidada naquele tribunal superior
é um alento para diversas situações iníquas observadas na prática coti­
diana dos juizados especiais.

5 Conclusão
À guisa de conclusão, pode-se afirmar que o objetivo do presente
ensaio foi proceder a uma análise — tão minuciosa quanto possível — do
sistema de impugnação das decisões proferidas no âmbito dos jui­zados
especiais cíveis, traçando-se, num primeiro momento, os contornos regu­
ladores da estrutura recursal prevista na Lei nº 9.099/95 e integrada, em
suas omissões, pela jurisprudência das turmas recursais e dos tribunais

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O sistema recursal e os meios autônomos de impugnação no âmbito dos juizados especiais cíveis: ... 77

superiores, apontando-se a estrutura prevista no ordenamento jurídico


para os recursos interponíveis no âmbito daquele microssistema.
Em outro flanco de investigação, buscou-se o estudo dos outros
meios de impugnação passíveis de utilização em sede de juizados especiais,
em especial o mandado de segurança e a reclamação constitucional.
Quanto ao primeiro, analisou-se, em breves linhas, a impetração
do mandamus como instrumento geral de impugnação de atos do “Poder
Público”, depois como instrumento de impugnação de atos jurisdicionais
especificamente para, ao fim, tratar-se da possibilidade de seu ajuiza­
mento contra as decisões proferidas por aqueles órgãos jurisdicionais.
Concluiu-se no sentido da possibilidade efetiva de sua utilização, seja
na hipótese mais simples, em que se busca a revisão da decisão interlo­
cu­tória proferida em primeiro grau de jurisdição (tendo em vista a
reconhecida impossibilidade — na esmagadora maioria das turmas
recursais — de interposição de agravo de instrumento), seja em hipótese
mais elaborada, quando se está a discutir a competência dos próprios
juizados para o julgamento das causas que lhe são submetidas, situação
que decorreu da percepção da jurisprudência quanto à necessidade de
se possibilitar a revisão, pelos Tribunais de Justiça e pelo Superior Tri­
bunal de Justiça, das decisões proferidas naquele microssistema, sob
pena de criar-se situação de verdadeira “blindagem” do provimento,
a autorizar que fosse eventualmente invadida a competência de outros
órgãos do Poder Judiciário, até mesmo de Tribunais, sem que se auto­
rizasse qualquer espécie de modificação de uma decisão eventualmente
teratológica.
Conforme analisado, passou-se, em tais situações, a admitir a
possibilidade de impetração de mandado de segurança nos Tribunais
de Justiça para o questionamento de acórdãos das turmas/conselhos
recursais que tratem da competência dos juizados especiais para o julga­
mento da causa e, por certo, afirmem indevidamente esta competência.
Desta decisão do tribunal estadual, também na conformidade do estudo
apresentado, é possível a interposição do Recurso Ordinário de que
trata o art. 105, II, b, da Constituição da República.
Em outra senda, verificando-se a necessidade de se fazer aplicar aos
juizados especiais a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e, em
especial, por força do não cabimento de recurso especial para a impugna­
ção de decisões oriundas daquele microssistema, passou-se a reconhecer

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78 Celso Jorge Fernandes Belmiro

e possibilitar à parte prejudicada a utilização de um instrumento efetivo


de impugnação de decisões que contrariem entendimento pacificado
sobre determinada matéria no âmbito daquele tribunal superior, através
da reclamação constitucional, prevista no art. 105, I, f, da Carta Magna,
sendo certo que esta possibilidade, conforme demonstrado, veio a ser
expressamente reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal no julga­
mento do RE nº 571.572, que resultou na edição da Resolução nº 12,
de dezembro de 2009, pelo STJ.
Procurou-se assim a análise dos contornos legais e jurispruden­
ciais acerca dos recursos e dos outros meios de impugnação das decisões
proferidas no âmbito dos juizados especiais cíveis, sendo certo que o
trabalho integrativo levado a efeito pela jurisprudência ao longo dos
mais de 15 anos de vigência da Lei nº 9.099/95 parece longe de chegar
ao fim, haja vista os novos entendimentos (ou antigos “realimentados”)
que surgem diuturnamente acerca do tema ora investigado.

Abstract: The present study aims to analyze the system of impugnment of


judgements rendered by the “juizados especiais cíveis estaduais” in Brazil,
being firstly outlined a general scenario of the permitted resorts under such
microsystem in order to in a second moment investigate the possibility of
using other means of impugnment under the brazilian legal system, specially
the writ of mandamus and the “reclamação constitucional”. Based on those
premises it is to point up the effective possibility of review of the judgements
rendered by said specialized court by “Tribunais de Justiça” of the states and
by “Superior Tribunal de Justiça”, in exceptional cases
Key words: Juizados especiais. Impugnment. Resorts. Writ of Mandamus.
Reclamação.

Referências

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O sistema recursal e os meios autônomos de impugnação no âmbito dos juizados especiais cíveis: ... 79

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GAULIA, Cristina Tereza. Juizados especiais cíveis: o espaço do cidadão no Poder Judiciário.
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MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 1999.
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

BELMIRO, Celso Jorge Fernandes. O sistema recursal e os meios autônomos de impugnação


no âmbito dos juizados especiais cíveis: novos contornos jurisprudenciais. Revista Brasileira
de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 19, n. 73, p. 41-79, jan./mar. 2011.

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Proposições teóricas aos institutos
da emendatio libelli e da mutatio libelli
– superação do processo como
instrumento de jurisdição
Jânio Oliveira Donato
Especialista em Ciências Penais pelo IEC-PUC Minas. Professor convidado da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais.

Leonardo Augusto Marinho Marques


Doutor em Ciências Penais pela UFMG. Professor da PUC Minas (Graduação e do Programa de
Pós-Graduação stricto sensu) e da UFMG (Graduação).

Resumo: O artigo promove nova leitura dos institutos da emendatio libelli


e da mutatio libelli, em superação à lógica do processo como instrumento
de jurisdição, que fundamenta a legitimidade decisória na consciência do
julgador, permitindo-lhe, no momento do julgamento, alterar a tipicidade
do fato ou forçar a modificação do conteúdo fático da acusação, em prejuízo
do contraditório, da ampla argumentação e da exclusividade da iniciativa
acusatória. Tendo como referência o modelo constitucional de processo,
no qual a legitimidade decisória se afere pela efetiva participação dos
interessados na construção do provimento, combate-se o solipsismo judicial,
buscando solução no direito processual civil e no direito comparado.
Palavras-chave: Instrumentalidade. Emendatio libelli. Mutatio libelli.
Sumário: 1 Introdução – 2 Análise crítica dos institutos da emendatio libelli e
da mutatio libelli: perpetuação da instrumentalidade processual na reforma de
2008 – 3 Das novas teorias do processo e da necessidade de conformação da
emendatio e da mutatio libelli ao modelo processual penal democrático e de bases
discursivas. Proposições teóricas – 4 Considerações finais – Referências

1 Introdução
A superação da hermenêutica jurídica clássica, o ganho teórico
proporcionado pelo giro linguístico e o movimento de constitucionali­
zação do direito são fatores que contribuíram para a derrocada da visão
instrumentalista de processo e a inovação da teoria processual.
A lógica idealizada por Bullow no final do século XIX, que trans­
formou o processo em instrumento de jurisdição, limitando assim a
atividade decisória à consciência do julgador ou à forma como ele supos­
tamente interpreta o fato, apreende os valores sociais e passa a adequar
o direito à realidade (LEAL, 2008, p. 25), já não encontra guarida na
atualidade. Na segunda metade do século XX, a instrumentalidade
processual perdeu espaço para o modelo constitucional de processo.

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82 Jânio Oliveira Donato, Leonardo Augusto Marinho Marques

O novo modelo, fundado no caráter discursivo e na efetiva


participação dos interessados na construção dos provimentos judiciais,
organiza-se em torno do ideal democrático de efetivação dos direitos
fundamentais.
Nesse modelo, o contraditório, a ampla argumentação e a funda­
mentação das decisões judiciais formam uma base principiológica
comum, aplicável às diversas espécies de procedimentos — legislativo,
admi­nistrativo e judicial — e criam condições de participação cidadã
na construção da norma. Em suma, os próprios destinatários se tornam
coconstrutores do provimento estatal.
No campo penal, especificamente, havia a necessidade de se aban­
donar aquela concepção de que o processo era um simples instrumento a
serviço do “direito de punir” do Estado, que se fazia representar, naquele
momento, pela autoridade do julgador. Esvaziado de qualquer sentido
constitucional, a visão instrumental acabou perpetuando os resquícios de
inquisitoriedade. O juiz passou a ser retratado como órgão suprapartes,
imparcial, detentor soberano das noções de justiça e de verdade.
Como intérprete privilegiado do mundo e o único ser capaz de
realizar o Direito, ainda hoje lhe é permitido reclassificar juridicamente
o fato, dando-lhe nova tipicidade, obviamente ignorando o contradi­tório
e a ampla argumentação (emendatio libelli). Sua consciência e a futura fun­
damentação legitimam a decisão final, dispensando a participação das
partes na redefinição da tipicidade.
Igualmente, é-lhe permitido discordar do conteúdo fático da acu­
sação deduzida em juízo, quando a prova judicial revela a existência de
circunstância elementar não descrita na denúncia ou na queixa. Nesse
caso, mesmo diante da evidência da prova, se não houver aditamento por
parte do órgão de acusação, ele tem a faculdade de remeter o processo
ao Procurador-Geral de Justiça para que este reexamine a possibilidade
de reconstrução da acusação. Essa realidade mantém a lógica de um
procedimento centrado na pessoa do julgador.
Rompendo com a visão instrumental, pretende-se, neste artigo,
revisitar os institutos da emendatio libelli e mutatio libelli, com o objetivo
de conformá-los à matriz do processo penal constitucionalizado que pres­
supõe, acima de tudo, a institucionalização das condições do discurso
em cada ato processual praticado.
Em abandono àquela atividade soberana e solitária de decidir, a
proposta de construção compartilhada das decisões judiciais permitirá

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apontar soluções para os antigos problemas da correção de tipicidade


e de possibilidade de alteração do conteúdo fático da acusação para
adequá-lo à compreensão do juiz, em perfeita sintonia com as garantias
constitucionais do processo.

2 Análise crítica dos institutos da emendatio libelli e da mutatio


libelli: perpetuação da instrumentalidade processual na reforma
de 2008
Na redação originária do Código de Processo Penal de 1941, o Juiz
podia dar ao fato definição jurídica diversa da que constava na denúncia
ou na queixa, ainda que, em consequência, viesse a aplicar pena mais grave
(artigo 383, sobre a emendatio libelli). Encerrada a instrução e apresentadas
as alegações finais, o ato decisório se caracterizava como ato de poder
conformado pela consciência do julgador, sem nenhum vínculo com a
argumentação jurídica desenvolvida pelas partes.
A situação se complicava quando a prova judicial evidenciava a
existência de circunstância elementar que não estava descrita na denúncia
ou na queixa, indicando a necessidade de alteração da imputação fática
(artigo 384 e parágrafo único, sobre a mutatio libelli). Desconsiderando a
participação do Ministério Público ou do Querelante na fase de instrução
e a possibilidade de aditamento por iniciativa própria de quem promove
a acusação, o Código previa duas situações distintas.
Na primeira delas, quando a modificação do conteúdo fático da
acusação não gerasse aumento de pena, o Juiz deveria baixar o processo
e abrir vista imediatamente à defesa, sem nenhuma manifestação do
órgão acusador e, sem ao menos, pontuar sua nova interpretação. Se
entendesse necessário, a defesa que se manifestasse e produzisse novas
provas. Do contrário, prevalecia a visão soberana que o juiz tinha formado
sobre o direito e a realidade. Revelada somente na sentença, essa visão se
imunizava contra a crítica e o controle, que são elementos indissociáveis
da democracia (artigo 384, caput).
Na segunda situação, quando a modificação do conteúdo fático da
acusação proporcionasse aumento de pena, o Juiz era obrigado a submeter
o processo ao aditamento do Ministério Público ou do Querelante, não
podendo proceder a nenhuma alteração de ofício. Em todo caso, sua
interpretação privilegiada continuava prevalecendo sobre a livre iniciativa
da acusação. O aditamento partia de uma deliberação judicial, antes de

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haver qualquer manifestação de quem exerce a função acusatória (artigo


384, parágrafo único).
No ano de 2008, a Lei nº 11.719 alterou a redação dos artigos 383
e 384 do Código de Processo Penal. Essas alterações, todavia, não rom­
peram com a proposta de Bullow de adoção de um modelo processual
monológico e subsuntivo de aplicação de regras jurídicas, no qual os Magis­
trados figuram como oráculos no exercício de interpretação das leis.
Definitivamente, a reclassificação jurídica do fato continua sendo
ato de deliberação exclusiva do juiz, de inquestionável validade, no
momento em que se profere a sentença. O aplicador da lei exerce o juízo
pleno de adequação típica. Consequentemente, o contraditório e a ampla
argumentação cedem a vez à livre convicção motivada, inclusive quando
a subsunção típica proporciona pena mais grave. A consciência privile­
giada do julgador se sobrepõe ao debate em torno do enquadramento
típico e da nova pena.
Em tais situações, o processo é esvaziado do seu verdadeiro sen­
tido democrático e as técnicas procedimentais previstas na lei se prestam
apenas a formalizar a atuação isolada do Estado-Juiz de dizer o direito.
Todo o conjunto probatório passa a ser condicionado, desde o início, para
um único fim, o de dar suporte à motivação das decisões, fazendo dela
a via de endosso de concepções veladas e apriorísticas do magistrado,
subtraindo-se, como consequência, do acusado o poder de influenciar
e/ou modificar o pré-juízo que lhe fora atribuído com a propositura da
ação penal.
Historicamente, a emendatio libelli vem sendo incorporada pelo senso
comum teórico como medida absolutamente legítima, o que impede uma
revisão crítica de seus fundamentos. Muito contribui para a formação
desse senso comum, a crença de que o juiz (“boca da lei”) é uma espécie
de conhecedor infalível do direito (jura novit curia) e que, por esse motivo,
cabe tão somente às partes, apresentar-lhe os fatos, para que então seja
pronunciada “a verdade” ao caso concreto.
É a aplicação exata do brocardo romano naha mihi factum dabo tibi
ius, que fora cunhado para justificar a concepção privatística do processo
numa época em que as partes compareciam perante árbitros e pretores
para fazerem valer suas pretensões de natureza patrimonial (visto que,
durante quase todo o império romano, ainda se admitia, para muitos
crimes, a vingança privada como retribuição ao acusado e a sua família
pelo mal impingido à vítima).

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Proposições teóricas aos institutos da emendatio libelli e da mutatio libelli – superação do processo como... 85

A lógica dos citados brocardos romanos dá suporte, assim, à


instrumentalidade processual, reforçando a ideia de que a interpretação
do fato e do direito seria prerrogativa do magistrado, simplesmente
porque ele seria o único sujeito processual capaz de adaptar o direito
à realidade. Ao juiz, desse modo, caberia, de modo intuitivo e a partir
do seu suposto senso inato de justiça sintetizar, em cada caso concreto,
todos os valores hipoteticamente comuns à coletividade, atuando como
vetor das virtudes e dos interesses sociais discutidos.
Há também um outro argumento invocado pelo senso comum teó­
rico, em favor da legitimidade da emendatio libelli, que obviamente precisa
ser enfrentado. Trata-se do entendimento de que o acusado se defende
dos fatos e não da capitulação dada na exordial acusatória. Defendendo-
se do fato, inexistiria prejuízo com o reenquadramento típico promovido
unilateralmente na sentença. Nessa perspectiva, o “conhecedor da lei”
estaria novamente autorizado a modificar, a seu bel alvedrio, a definição
jurídica do fato penal sugerida pelo titular da pretensão acusatória, sem
a prévia oitiva das partes, ainda que dessa modificação adviesse a impo­
sição de uma pena superior àquela que seria prevista para o primeiro
fato típico narrado.
Ocorre, no entanto, que no artigo 383 do Código de Processo Penal,
ao fazer referência ao “fato” que eventualmente pode vir a receber nova
definição jurídica na sentença, não cuidou o legislador de estabelecer
qualquer critério distintivo entre as circunstâncias fáticas relacionadas
ao delito e os fatos típicos, previstos abstratamente na lei penal. Por
conseguinte, não é legítimo sustentar que a parte se defende somente das
circunstâncias fáticas e que a classificação jurídica do fato não se submete
ao debate em contraditório.
Ora, deve-se levar em conta o fato de que os tipos penais, da
forma como estão previstos na lei, encontram-se desvinculados de uma
realidade concreta. Por meio da interpretação jurídica é que se afere se
o fato realmente se ajusta ao tipo. Concebendo a sociedade democrá­tica
como uma sociedade aberta de intérpretes (HÄBERLE, 1997) a ampla
argumentação desenvolvida por todos os envolvidos se torna, então,
indispensável.
Distanciando-se do senso comum, Aury Lopes Jr. (2007, p. 387)
demonstra como, em muitos casos, a correção na tipificação legal ope­
rada pelo juiz no momento de elaboração da sentença decorre, às mais

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das vezes, do desvelamento de uma nova situação fática, ocasião em que


o prejuízo para a defesa se torna irrefutável. Seria o caso, por exemplo,
da descaracterização de um crime doloso para sua modalidade culposa.
Antônio Scarance Fernandes (2008, p. 6) e Diogo Malan (2003,
p. 178) manifestando uma idêntica compreensão acerca da matéria,
subli­nharam que o réu no processo penal não se defende apenas de (ou
de quaisquer) fatos, mas sim de fatos juridicamente qualificados. Estes,
por uma inescusável obviedade, serão sempre mais amplos e mais
complexos que uma simples descrição de um tipo penal, mas guardarão
com o fato típico uma estreita relação de dependência, enquanto também
forem asseguradas as bases circunstanciais de sustentação do referido
liame.
Compartilhando do mesmo pensamento, Keity Mara de Souza e
Saboya (2006, p. 88) faz menção ao magistério de Werber Martins Batista,
ao também concluir que de uma “simples” “correção” da classificação
mencionada na peça acusatória podem advir prejuízos imensuráveis a
defesa, ilustrando o entendimento comum com as seguintes situações:

A inicial — por exemplo — diz expressamente que o réu, depois de ameaçar a


vítima com uma arma, subtraiu-lhe o carro e fugiu, sem ser perseguido, sendo
detido cerca de meia hora depois, quando os componentes de uma patrulha,
avisados pelo rádio, surpreendem-no no interior do veículo roubado. Ainda
que o Ministério Público (por equívoco) classifique o fato como roubo ten­
tado, mas desde que descreveu um crime de roubo consumado — não houve
perseguição, o agente foi detido quando o objeto já saíra da esfera de vigilância
ou custódia do dono — o juiz pode condenar o réu por este último crime,
sem necessidade de qualquer providência.
O mesmo pode ocorrer — outro exemplo — na hipótese de o Ministério Público
imputar aos réus, três trombadinhas, o fato de terem dado um tranco na vítima,
uma pessoa de idade, jogando-a no chão e disso se aproveitando para subtrair
seu dinheiro. Ainda que aquele classifique o crime como furto, pode o juiz,
por entender que o fato descrito e provado caracteriza roubo, condenar os
réus por este último, sem necessidade de baixar os autos ao Ministério Público
ou à defesa.
Analisando a hipótese, afirma Espínola Filho que não há em falar em sur­presa
para a defesa, pois o fato continua a ser o mesmo inicialmente descrito (...).
Nos exemplos dados, se o juiz alertasse o réu para a possibilidade de condenação
por roubo consumado, e não apenas tentado — no primeiro exemplo — ou
por roubo, não por furto — no segundo — poderia aquele discutir o problema
da consumação, no primeiro caso, ou o da caracterização da violência, no
segundo, e, quem sabe, obter êxito.

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Não há dúvida de que o réu se defende de fatos, não de números, mas a verdade
é que a classificação incorreta dada aos fatos pode acabar prejudicando a defesa,
que no processo penal — não se pode esquecer — não é apenas defesa, simples
defesa, mas ampla defesa.

Além dos exemplos sugeridos, situações ainda mais graves poderiam


ser mencionadas, como aquelas em que, em decorrência da “correção”
da capitulação fornecida na inicial acusatória, o juiz acaba privando a
defesa de um expediente que poderia ter sido utilizado em favor do
acusado desde o início do processo, se de antemão já conhecesse por
qual artigo viria a ser condenado. É a hipótese apontada por Benedito
Pozzer, também relacionada por Souza e Saboya (2006, p. 89), acerca dos
crimes contra a honra:

Assim ocorrerá, quando alguém é acusado do cometimento de injúria (art. 140


do Código Penal), segundo a classificação acusatória; para, depois da ins­tru­
ção, ser condenado pelo crime de calúnia ou difamação (artigos 138 e 139, do
Código Penal), tanto que narrados.
Ninguém poderá negar os danos causados pelas simples corrigenda do magis­
trado na sentença. Ora, se correta fosse a classificação da denúncia ou queixa,
imputando-se calúnia ou difamação, o acusado poderia valer-se da exceção
da verdade, ou da retratação, previstas no Código Penal (...). E, demonstrada a
ver­dade dos fatos imputados à vítima, resultaria na absolvição, ou, com a retra­
tação, poderia ser alcançada a isenção de pena, que lhe foram pela capitulação
equivocada, restando nulo o processo, por não permitir a ampla defesa.

Não é difícil, portanto, perceber que a defesa se esforça para


pro­duzir os significantes probatórios (ROSA, 2006), com os olhos sempre
voltados para a ampla argumentação. Nesse sentido, o trinômio fato-
prova-argumento rompe com a perspectiva dualística da filosofia carte­
siana, que vem exercendo enorme influência no pensamento ocidental.
Desde que Descartes promoveu a separação entre corpo e alma,
a ciência vem decompondo os diversos fenômenos em dois elementos,
seguindo o suposto rito do método científico. Essa técnica não passou
despercebida no mundo jurídico, que passou a distinguir, por exemplo, o
fato do direito, o interesse público do interesse privado, a sociedade civil
da sociedade política.
Com efeito, não é razoável decompor o fenômeno jurídico entre
fato e direito. Todo fato se apresenta repleto de juridicidade, assim
como toda norma jurídica se apresenta minimamente vinculada a um

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contexto de faticidade. Essa é uma realidade indissociável que corrobora a


amplitude da argumentação e impede que o Poder Judiciário se aproprie
da interpretação do Direito.
Com segurança conclui-se que a alteração, ex officio, da tipicidade,
na sentença, gera um prejuízo significativo para a defesa, que se vê
impedida de se manifestar sobre a reclassificação jurídica do fato. Nereu
Giacomolli (2008, p. 107) chega a afirmar, de modo peremptório, que
o artigo 383 do Código de Processo Penal não encontra mais suporte
constitucional nos moldes do devido processo legal, constatação que nos
revela ao menos a necessidade premente de conformar o instituto da
mutatio libelli ao modelo constitucional de processo, fundado na lingua­­gem
e na ação comunicativa no momento de decidibilidade dos conflitos.
Não se pode mais desconhecer o dano proporcionado pela emendatio
libelli. No processo constitucional, não pode haver surpresa na decisão
final (BADARÓ, 2001, p. 34).
Esse prejuízo é retratado por Aury Lopes Jr. (2010, p. 387):

A maior abrangência conceitual faz com que mudanças fáticas, irrelevantes


para o Direito Penal, sejam totalmente relevantes para a definição do fato
processual, exigindo cuidados para que se produza a mutação sem gerar uma
sentença incongruente. A costumeiramente tratada como “mera correção da
tipificação legal” não é tão inofensiva assim, pois modifica o fato penal e, por
conseguinte, o fato processual.

O procedimento da mutatio libeli impõe reflexões semelhantes.


A nova redação do artigo 384 do Código de Processo Penal, conferida
pela Lei nº 11.719 de 2008, retira do Magistrado a iniciativa de sugerir
a modificação do conteúdo fático da acusação, quando verificada, pela
prova judicial, a existência de “circunstâncias elementares”, não contidas
na denúncia ou na queixa.
Sem a provocação prévia do juiz, incumbe agora ao Ministério
Público, exclusivo titular da ação penal pública, proceder a mutatio libelli.
A modificação no texto normativo, em consonância com o sistema acusa­
tório, preserva o contraditório e a ampla argumentação no processo.
É de se lamentar, no entanto, que o parágrafo primeiro do referido
dispositivo mantenha viva a idéia do processo como instrumento de
jurisdição, ao prever a possibilidade do Juiz requerer ao Procurador de
Justiça que reexamine a possibilidade de aditamento, quando o Promotor

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responsável pelo caso não o faz. Havendo pontos de vista discordantes


sobre a modificação da acusação, inaceitável a solução proposta de
suprimir a parte acusadora originária e a argumentação jurídica por
ela desenvolvida, abrindo a oportunidade para que outro membro do
Parquet endosse a forma pela qual o Juiz compreende a realidade.
O texto normativo segue a matriz bülowiana. Opta por mutilar o
processo e negar sua essência como garantia de dialogicidade das partes
em marcha à construção do provimento judicial. Na preleção de Denilson
Feitoza (2009, p. 985):

O juiz desequilibra o processo ao agir de ofício em favor da acusação, antevendo


que, provavelmente, aplicará uma pena mais grave em razão de uma elementar
que sequer está descrita na petição inicial (denúncia), ou, então, agindo para
obter a descrição da elementar na inicial, quando somente poderá condenar
a uma pena igual se houver essa outra elementar. Não se pode dizer que o
princípio do juiz natural esteja sendo cumprido, uma vez que sua imparcia­li­
dade é afetada pela sua atitude acusatória.

Importante combater a atuação de ofício do juiz, em qualquer fase


do processo, e demarcar a exclusividade da função acusatória. O processo
constitucional obsta a interferência unilateral do Estado-Juiz como órgão
superior na construção do Direito. É preciso superar a instrumentali­
dade e enaltecer a importância do debate na preparação do provimento,
abandonando-se de vez o pensamento de Oskar von Bülow.

3 Das novas teorias do processo e da necessidade de conformação da


emendatio e da mutatio libelli ao modelo processual penal democrático
e de bases discursivas. Proposições teóricas
Os ganhos teóricos alcançados na Ciência do Processo, desde
Fazzalari aos constitucionalistas da pós-modernidade, não autorizam
mais a concepção de normas ou “ritos” segundo os superados para­dig­mas
do Estado Liberal e Social, que tinham o Juiz como o alvo de convergên­
cia de toda a atividade processual e o processo como palco de garantias
formais.
Na atual conjuntura do Estado Democrático de Direito, o Processo
figura como “conquista teórica da cidadania” (LEAL, 2010, p. 37),
pressupondo a legitimidade dos provimentos nele produzidos a partir do
grau de participação dos sujeitos processuais interessados, como também
pelo exercício constante e multiforme do contraditório entre as partes.
Nesse sentido afirmara Habermas (1997a, p. 145):

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Qualquer decisão que não encontre amparo no consenso de todos os sujeitos


envolvidos será carecedora de legitimidade, por não conter o melhor argumento
(aquele capaz de convencer a minoria dissidente), muito possivelmente por
não encontrar amparo entre os direitos fundamentais, mas sim entre as dire­
trizes políticas, que representam questões axiológico-teleológicas de bem-estar
coletivo, e, portanto, não podem persistir em um debate com os princípios.

O modelo constitucional de processo que deve orientar o intérprete


do direito no campo do processo penal se assenta, portanto, sobre a
premissa da discursividade. O solilóquio da “livre” atividade de motivação
dos provimentos judiciais cede espaço ao exercício conjunto de realiza­
ção dos ideais democráticos, tornando o processo o lugar privilegiado
de respeito à cidadania, segundo os ditames do due process of law.
Pelo exercício da livre argumentação e por meio da fiscalização
conjunta do ato de elaboração dos provimentos judiciais, os sujeitos
processuais, antes vistos como “partes-delinquentes” (LEAL, 2008, p. 37),
inaptas a contribuírem de modo inteligente na formação do decisum,
deixam de ser também instrumentalizados para assumirem a posição
de agentes cooperadores da função jurisdicional. Mais ainda. Os homens
se redescobrem, no processo, como autores e destinatários das normas,
dos direitos e dos fins por eles almejados na vida civil.

A ação e o discurso são os modos pelos quais os homens se manifestam uns


aos outros, não como meros objetos físicos, mas enquanto homens. Buscamos
resposta não para o que somos, sim para quem somos. Se eliminamos no outro
a capacidade de revelar-se, desestruturamos o discurso e a ação, eliminamos o
único modo de ser que nos humaniza. (PASSOS, 2000)

Na esteira desse raciocínio, o “pensar, o querer e o julgar” — como


assim vislumbrou José Joaquim Calmon de Passos, inspirado em Hannah
Arendt (2000) — tornam-se “servos da linguagem” e o ato decisório
(o “dizer o direito”), culminação dos esforços mútuos desprendidos,
reassume o status de “algo não dado aos homens pela natureza, mas por
eles produzido” (PASSOS, 2000).
Pela institucionalização do discurso, segundo o modelo constitucio­
nal do processo, as decisões tendem a se tornar impessoais e previsíveis,
evitando-se, desse modo, as indesejáveis e inevitáveis surpresas que são
próprias do instrumentalismo, visto que, por força do contraditório,
a sub­jetividade e a racionalidade dos julgados passam a ser mitigadas

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pelo exercício de autofiscalização dos sujeitos processuais. A validade


dos provimentos não fica confiada apenas à “bondade” dos (“bons”)
magis­trados (LOPES JR., 2010, p. 389) e os sujeitos se apresentam, uns
para com os outros, como coautores do conteúdo processual (re)cons­
truído na sentença.
Tal realidade somente se torna possível de ser concretizada no
cenário almejado pela teoria constitucional do processo. Despida de
quaisquer condicionamentos prévios, as propostas constitucionalistas radi­
cam seus pressupostos em bases discursivas e autorizam o legislador a
criar expedientes de controle da atividade judicial.
No que tange ao tema em análise, como demonstrado, o artigo. 383
do Código de Processo Penal, que faz previsão da emendatio libelli, quando
aplicado ao caso concreto, pode causar prejuízos imensuráveis à defesa,
especialmente nos casos em que, como consequência de sua utilização,
o resultado obtido revele considerável discrepância entre os fatos penais
e os fatos processuais penais descritos nos autos do processo.
Gustavo Henrique Badaró e Diogo Malan, citados por Aury Lopes
Jr. (2010, p. 387), ao tentarem viabilizar essa atividade discursiva de
pre­paração conjunta do provimento judicial, sugerem que o juiz dê
opor­tunidade às partes, ainda que o artigo 383 do Código de Processo
Penal não o exija, de se manifestarem sobre a possibilidade (ou não) de
uma modificação na qualificação jurídica dos fatos. A adoção da medida
observaria o princípio do contraditório e ainda estaria em consonância
com tendências do direito comparado, como, por exemplo, informa-nos
Aury Lopes Jr. (2010, p. 387) acerca do que dispõe a legislação espanhola.
Segundo soa o texto do artigo 788.3 do “procedimento abreviado”
da Lei Espanhola Criminal, o Tribunal pode se servir de um expediente
denominado planteamiento de la tesis para que as partes lhe evidenciem
a possibilidade de o fato descrito vir a constituir outro delito, diverso
daquele mencionado na exordial acusatória. Note-se que, por meio do
mencionado recurso jurídico, não há como alegar a quebra da imparcia­
lidade do juiz, nem prejulgamento do pedido. Há, isso sim, quando
muito, uma consulta, ou um questionamento sobre a possibilidade de
alteração da definição jurídica apresentada, “um horizonte decisório
desvelado e compartilhado honestamente com as partes através do
contraditório” (LOPES JR., 2010, p. 387).
Disposições semelhantes às previstas na lei espanhola, de adoção
de um contraditório mais amplo no momento decisório, são apontadas

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92 Jânio Oliveira Donato, Leonardo Augusto Marinho Marques

por Souza e Saboya (2006, p. 89) em outras legislações estrangeiras.


Tem-se notícia de que, na França, o juiz não pode fundamentar sua
decisão sobre questões de direito, ainda que de ordem pública, que ele
haja suscitado de ofício, sem ter previamente chamado as partes a apre­
sentar suas alegações. De igual modo, a StPo estabelece, no §265, que
o acusado não pode ser condenado em virtude de outro preceito penal
que o citado na acusação jurisdicionalmente admitida, sem que previa­
mente tenha sido advertido, especialmente, da modificação do ponto
de vista jurídico, dando-lhe oportunidade de defesa. Também o Código
de Processo Penal Modelo Iberoamérica, em seu art. 322, prevê que o
acusado não pode ser condenado em virtude de preceito penal distinto
do invocado na acusação, se previamente não tenha sido advertido sobre
a possibilidade de modificação da qualificação jurídica. Da mesma forma,
no art. 358, nº 3, do Código de Processo Penal português, foi disciplinada
a necessidade de o juiz, antes de sentenciar, dar oportunidade às partes
sobre a alteração da qualificação.
Ainda na seara do direito comparado, no processo penal italiano,
conforme preleciona José Boanerges Meira (2008, p. 67), o juiz é obrigado
a se ater aos fatos discutidos ao longo da instrução e, na sentença, não
lhe é dado apreciar fatos que não tenham sido objeto da discussão, sob
pena de nulidade. Não haveria, portanto, na referida legislação, a inci­
dência de qualquer norma que se assemelhasse ao previsto no art. 383
do Código de Processo Penal brasileiro.
Deve-se ressaltar ainda que a adoção no Brasil de um contraditório
prévio na emendatio libelli sequer exigiria modificações legislativas. A
faculdade de manifestação poderia ser concedida, desde o início do
processo, logo após o recebimento da peça acusatória, em uma fase inter­
mediária assemelhada à fase de fixação dos pontos controvertidos, tal
como ocorre no processo civil, aplicando-se por analogia o artigo 331,
§2º do Código de Processo Civil.
Denilson Feitoza (2010, p. 986), por sua vez, afirma que o recurso
da analogia pode sim ser utilizado, mas deve o legislador ter o critério
de reportar-se ao Código de Processo Penal Militar, mais precisamente
ao artigo 437, a, para tanto, e não ao citado dispositivo do Código de
Processo Civil. Neste sentido, dispõe a legislação militar que o Conselho
de Justiça poderá:

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Proposições teóricas aos institutos da emendatio libelli e da mutatio libelli – superação do processo como... 93

Artigo 437. O Conselho de Justiça poderá:


a) dar ao fato definição jurídica diversa da que constar na denúncia, ainda que,
em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave, desde que aquela definição
haja sido formulada pelo Ministério Público em alegações escritas e a outra
parte tenha tido a oportunidade de respondê-la. (BRASIL, 2010)

Tal como prevista, a norma do Código de Processo Penal Militar


mitiga os resquícios do “juízo de instrução”, conferindo, desse modo, um
valor novo à separação das funções dos sujeitos processuais, facilitando
a realização do instituto do contraditório permanente na fase instrutiva
do processual penal.

4 Considerações finais
Em vista da crescente influência exercida pelas novas teorias do
processo na pós-modernidade, o processo penal tem sido revisitado
para que nele também se opere o giro linguístico e filosófico que trouxe
a lume a fragilidade dos fundamentos que justificaram o culto à instru­
mentalidade há mais de um século no ordenamento jurídico brasileiro.
As novas percepções teóricas de processo impelem o operador do
direito a rever na seara criminal os conceitos de instituições arcaicas, não
mais ajustáveis ao cenário constitucional e democratizante do presente
estágio de evolução e efetivação dos direitos fundamentais dos cidadãos.
Neste contexto, o complexo ato de julgar, antes confundido como
um privilegiado momento de inspiração sobrenatural, submete-se à con­
formação de um processo constitucionalizado que tenderia a reco­­nhecer
como legítimas, tão somente, aquelas decisões que fossem decorrentes
da efetiva participação discursiva dos sujeitos processuais.
É precisamente com base na premissa da dialogicidade das partes
que os fenômenos da emendatio libelli e da mutatio libelli também devem
ser reapreciados para que, desta feita, sejam de igual modo adequados
às novas perspectivas da Ciência processual e do Direito Processual.
Somente por meio da adoção de critérios estritamente objetivos de satis­
fação e realização do contraditório, poder-se-á assegurar às partes a cer­
teza mínima de que o resultado colimado pela atividade jurisdicional,
especialmente nas hipóteses mitigadoras do princípio da congruência,
não se viu atrelado a predicados ou a qualidades pessoais do juiz ad causam,
independentemente, por melhores que sejam, de quais possam vir a ser
as suas intenções.

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94 Jânio Oliveira Donato, Leonardo Augusto Marinho Marques

Theoretical Considerations about the Legal Concepts of Emendatio Libelli


and Mutatio Libelli – Overcoming the Idea of Legal Process as a Mere
Instrument of Jurisdiction
Abstract: This article proposes a new interpretation of the concepts of
emendatio libelli and mutatio libelli. It seeks to overcome a representation of
legal procedures as instruments that justify the legitimacy of legal decisions
in the mind of the magistrate. In the act of adjudicating, following only his
consciousness, the judge can alter the ways in which the law characterizes
a crime or simply change the content of the accusation. These changes
compromise the adversarial system and the prosecutor’s exclusive role of
presenting cases to the courts. Based on a constitutional model of process
in which the legitimacy of the decision lies in the effective participation of
the parties in the construction of the legal decision, this article challenges
judicial solipsism. The proposed solution for this problem finds support in
principles of civil procedure and in comparative law.
Key words: Instruments. Emendatio libelli. Mutatio libelli.

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Proposições teóricas aos institutos da emendatio libelli e da mutatio libelli – superação do processo como... 95

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

DONATO, Jânio Oliveira; MARQUES, Leonardo Augusto Marinho. Proposições teóricas aos
institutos da emendatio libelli e da mutatio libelli: superação do processo como instrumento
de jurisdição. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 19,
n. 73, p. 81-95, jan./mar. 2011.

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Algumas notas sobre o controle
jurisdicional da arbitragem
João Bosco Won Held Gonçalves de Freitas Filho
Mestre em Direito. Advogado no Rio de Janeiro. Ex-Procurador do Município de Mesquita no
Estado do Rio de Janeiro. Professor de Direito Processual Civil na UNESA. Professor Visitante dos
Programas de Pós-Graduação em Direito na Universidade Candido Mendes. Professor na Escola
Superior de Advocacia (OAB/RJ – 24ª Subseção). Professor no Centro de Estudos Jurídicos 11 de
Agosto (CEJ). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP).

Marcelo Pereira de Almeida


Mestre em Direito. Aluno especial do curso de Doutorado em Sociologia e Direito da UFF. Advogado
no Rio de Janeiro. Professor de Direito Processual Civil na UNESA. Professor de Direito Processual
Civil e Direito Constitucional na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ).
Professor do curso de Pós-Graduação na UNESA. Professor convidado do curso de Pós-Graduação
de Direito Processual Civil na UFF. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP).
Membro do Laboratório Fluminense de Estudos Processuais (LAFEP).

Resumo: Esta exposição visa a apresentar os estreitos limites do controle da


arbitragem pelo Poder Judiciário, no intuito de demonstrar que a efetividade
deste modelo de tutela dos direitos depende do respeito das suas decisões
pelas partes que instituíram e pelo próprio Estado, sob pena de esvaziar por
completo o sistema.
Palavras-chave: Arbitragem. Controle. Poder Judiciário.
Sumário: 1 Introdução – 2 Formas de solução de conflitos no contexto do
acesso à justiça – 3 A arbitragem no ordenamento jurídico brasileiro – 4 O
controle jurisdicional da arbitragem – 5 Conclusão – Referências

1 Introdução
É uniforme o sentimento de que o funcionamento do Poder Judiciário
brasileiro, por diversas razões, não tem atendido plenamente aos anseios
que a sociedade dele espera. De uma maneira geral, os processos têm
trâmites morosos1 e os feitos alcançam o seu término em tempo superior
àquele que seria socialmente esperado, tornando a tutela jurisdicional
inapta a produzir efeitos no plano prático e a possibilitar a fruição do
bem jurídico pela parte vitoriosa.
Essa ineficiência, não raro, obstaculiza ou, quiçá, dificulta o acesso
ao consumidor da Justiça ao Poder Judiciário, constituindo em verdadeira

1
A propósito, o problema não é apenas brasileiro, sendo certo que inúmeros outros países, até mesmo os
chamados de “primeiro mundo”, se encontram em situações calamitosas quanto ao problema da duração
dos feitos. A esse respeito, Barbosa Moreira chama de mito (rectius: submito, segundo o autor) a crença
materializada em pensar que este problema seja exclusivamente brasileiro (MOREIRA, José Carlos Barbosa. O
futuro da justiça: alguns mitos. In: MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de direito processual: oitava série.
São Paulo: Saraiva, 2004. p. 2).

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98 João Bosco Won Held Gonçalves de Freitas Filho, Marcelo Pereira de Almeida

má prestação no serviço jurisdicional,2 advém de vários fatores, entre eles


a enxurrada de processos individuais repetitivos, resultante da baixa
racionalidade do Poder Judiciário, que desestimula o tratamento coletivo
dos conflitos de massa, o que dá azo à explosão de demandas indivi­
duais desnecessárias; o formalismo exacerbado do sistema processual que
gera uma demora desproporcional na solução do conflito; a tímida
utilização dos meios extrajudiciais de solução de conflitos, incentivado
por uma cultura judicialista, plasmada em escoar qualquer demanda ao
Poder Judiciário.
A esse respeito, é discutível, em paralelo, que a problemática
subjacente ao acesso à Justiça não seja, hodiernamente, apenas a questão
do ingresso no Poder Judiciário, como também o seu egresso, pois a
demora tem sido um dos seus estorvos mais acentuados.
Superar todo esse quadro impróprio é indispensável para o
redimensionamento da Justiça, de sorte a criar condições para a tutela
adequada dos interesses e propiciar, eficazmente, o acesso à ordem jurídica
justa, na conhecida expressão difundida por Kazuo Watanabe.3
A busca da superação desses entraves teve seu marco inicial no
início da década de setenta do século passado, em Florença, na Itália,
no Congresso Internacional de Direito Processual, cuja proposta foi
identificar os pontos de estrangulamento do sistema jurídico vigente
que impediam ou dificultavam a tutela adequada dos interesses, entre os
quais a necessidade de incentivar e criar condições para a utilização de
“meios alternativos de solução de conflitos”,4 entre eles a arbitragem.
A arbitragem, verdadeiro meio de heterocomposição de litígios,
tem como alicerce a autonomia da vontade das partes,5 as quais livre­
mente escolhem um terceiro para decidir a controvérsia. Cuida-se de uma

2
Nesse particular, é de se cogitar se existe ou não uma relação de consumo entre o jurisdicionado (consumidor)
e o Estado-juiz (fornecedor), na medida em que há um serviço a ser prestado (Jurisdição). A se adotar a tese
de relação de consumo, há consequências interessantes no que diz respeito à falha na prestação, diante dos
eventuais danos causados aos consumidores da Justiça. O tema, a despeito de sua relevância, não pode ser
enfrentado nesta oportunidade, por fugir do escopo deste trabalho. Mas, de todo modo, é um incentivo à
reflexão.
3
WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e sociedade moderna. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO,
Candido Rangel; WATANABE, Kazuo (Coord.). Participação e processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988.
p. 128.
4
A moderna doutrina propõe a mutação da consagrada expressão, proveniente do sistema norte-americano
da ADR (alterative dispute resolution), para “meios propícios a solução de conflitos” (TEIXEIRA, Sálvio de
Figueiredo. A arbitragem no sistema jurídico brasileiro. Revista de Processo, São Paulo, v. 22, n. 85, p. 194,
jan./mar. 1997).
5
Carmona assevera que a autonomia da vontade é a “(...) bandeira maior da Lei 9.03/1996 (...)” (CARMONA,
Carlos Alberto. A arbitragem no Brasil no terceiro ano de vigência da Lei 9.307/96. Revista de Processo, São
Paulo, v. 25, n. 99, p. 86, jul./set. 2000).

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Algumas notas sobre o controle jurisdicional da arbitragem 99

opção dos sujeitos litigantes (ou potencialmente litigantes) que, ao invés


de buscarem a proteção da jurisdição-estatal, resolvem optar pela via
parajurisdicional,6 assumindo o encargo de suportar a decisão arbitral,
pondo fim à controvérsia.

2 Formas de solução de conflitos no contexto do acesso à justiça


Desde há muito o homem busca formas profícuas de solução de
conflitos. Esses mecanismos de resolução de controvérsias, como se sabe,
constituem objeto de estudo do Direito Processual, embora possam ser
examinados por outras ciências, como, por exemplo, a sociologia.
O processo, um desses métodos de resolução de controvérsias e
que pode ser descortinado como instrumento que materializa a atividade
jurisdicional, esta entendida como função do Estado de composição de
controvérsia objetivando a aplicação do direito no caso concreto, ganhou
novos contornos a partir do final do século retrasado, quando o Direito
Processual começou a ser visto como um ramo autônomo da ciência
jurídica, em superação à fase imanentista (ou clássica ou ainda sincrética),
que entendia o processo como mero apêndice do direito material.
O selo de independência do direito processual em relação ao
direito substancial, isto é, sua autonomia, se deu em 1868, através da
publicação do clássico “A Teoria das Exceções Processuais e os Pressupostos
Processuais”, de lavra do jurista alemão Oskar von Bülow,7 obra que
evidenciou o processo como relação jurídica.
A partir de então, começou a chamada fase científica do Direito
Processual, assim denominada diante do predomínio de estudos
voltados para a fixação dos conceitos essenciais que compõem a ciência
processual.
Os principais alicerces e diretrizes desta nova ciência foram
construídos sob o manto desta fase, tais como o estudo da autonomia
do direito de ação, os conceitos de processo e coisa julgada, daí a sua
relevância.
Sob os auspícios desta fase (científica) é que surgem os maiores
nomes do Direito Processual Civil de todos os tempos como Giuseppe
Chiovenda, Francesco Carnelutti, Piero Calamandrei, Adof Wach,
6
Desde já, a despeito de entendimentos em contrário, defende-se aqui a natureza parajurisdicional da arbitragem.
O tema será enfrentado na terceira parte deste artigo.
7
BÜLOW, Oskar von. La teoría de las excepciones procesales y los presupuestos procesales. Buenos Aires: Juridicas
Europa-America, 1964.

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100 João Bosco Won Held Gonçalves de Freitas Filho, Marcelo Pereira de Almeida

James Goldschimidt, Enrico Tullio Liebman, e no Brasil, Alfredo Buzaid,


Lopes da Costa, Moacyr Amaral Santos, dentre tantos outros, os quais
desenvolveram teorias e estudos essenciais para a afirmação da auto­no­
mia científica deste ramo do direito.
Contudo, a cientificidade surreal, a autonomia descontextualizada
e a dogmatização irrestrita do direito processual acarretaram um dis­
tanciamento deste instrumento estatal com o seu objetivo de servir de
mecanismo social para a solução de controvérsias, notadamente para a
defesa do direito substancial em crise.
Para a superação desse modelo em declínio, direcionou-se, então,
o estudo do Direito Processual para a realidade, não como uma ciência
construída e pensada numa redoma, mas sim canalizada para a efeti­
vidade do processo, com vistas a entregar ao consumidor da Justiça,
de forma satisfatória, o que, concretamente, lhe é de direito. Assim, se
inaugurou a fase denominada instrumentalista do Direito Processual,
na qual os estudiosos voltaram seus esforços para descobrir mecanismos
que melhorem a prestação jurisdicional, tornando-a mais segura e célere,
ou seja, mais justa possível. O processo deixa de ser visto como mero
instrumento de atuação do direto material, e passa a ser encarado como
um instrumento de que se serve o Estado a fim de alcançar seus escopos
sociais, jurídicos e políticos,8 de modo a privilegiar o consumidor da
Justiça, buscando-se meios de administração da justiça que sejam capazes
de assegurar ao titular de uma posição jurídica de vantagem uma tutela
adequada e efetiva.
Desta sorte, os pensadores do Direito Processual apontaram suas
baterias para o problema do acesso à justiça. É conveniente esclarecer
que este acesso não pode ser entendido como mero acesso formal, em
que se afirma a possibilidade de chegar ao Judiciário através do direito
de ação, bastando para isso a contratação de um advogado. Absoluta­
mente, esta garantia deve ser vista como penhor de acesso a uma ordem
jurídica justa.
Com o desiderato de buscar esta garantia do acesso, a doutrina,
influenciada pelo jurista italiano Mauro Cappelletti,9 reconhece três
grandes fases de desenvolvimento deste tema que foi denominado de
8
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 193-
272.
9
Sobre o tema cf. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris,
2002.

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Algumas notas sobre o controle jurisdicional da arbitragem 101

“as três ondas renovatórias do acesso à justiça”, que são soluções práticas
para os problemas do acesso à Justiça.10
Inicialmente, fez-se necessário lutar pela assistência judiciária
gratuita, pois é notório que a prestação desta atividade é dispendiosa,
o que dificulta o acesso a este serviço dos economicamente necessitados.
Este obstáculo sempre dificultou à maioria da população a buscar a
prestação jurisdicional, o que lhes retirava ou criava estorvos concretos
de qualquer expectativa de acesso à Justiça. Então, o primeiro obstáculo
a ser ultrapassado na busca do pleno acesso à ordem jurídica justa era,
justamente, permitir que todos, tenham ou não condições econômicas,
possam demandar perante os órgãos do Poder Judiciário.
Constatou-se, ainda, que, apesar da possibilidade de todos pode­
rem levar suas demandas ao Poder Judiciário, independentemente da
sua situação econômica, nem todos os interesses e posições jurídicas
de vantagem eram ainda passíveis de proteção através da prestação
jurisdicional, em virtude de o Direito Processual ter sido construído com
base em um sistema filosófico, político e jurídico dominante na Europa
dos séculos antecedentes, no qual se instituiu um culto ao individualismo.
Por este motivo é que, pela estrutura tradicional do Direito Proces­
sual europeu, só se permitia que alguém fosse a juízo na defesa de seus
próprios interesses.
Pareceria que pelo fato de todos terem acesso ao Poder Judiciário
independentemente da sua situação econômica, o objetivo alcançado pela
primeira onda do acesso à justiça poderia ter resolvido este problema.
Mas não foi bem assim, pois persistia o problema com os denominados
interesses supraindividuais, já que estes, por estarem acima dos indivíduos,
não são próprios de ninguém, o que impedia que qualquer pessoa levasse
a juízo demanda em que manifestasse a pretensão de defendê-los.
Assim sendo, permaneciam desprotegidos os denominados inte­
resses coletivos e difusos, os quais não podem ser adequadamente tute­
lados por intermédio dos mesmos instrumentos de tutela dos interesses
individuais. Desta sorte, a proteção dos interesses transindividuais foi o

10
Resumidamente assim se manifesta Cappelletti sobre as três ondas renovatórias: “(...) a primeira ‘onda’ desse
movimento novo — foi a assistência judiciária; a segunda dizia respeito às reformas tendentes a proporcionar
representação jurídica para os interesses ‘difusos’, especialmente nas áreas de proteção ambiental e do
consumidor; e o terceiro — e mais recente — é o que nos propomos a chamar simplesmente ‘enfoque de
acesso à justiça’, porque inclui os posicionamentos anteriores, mas vai muito além deles, representando, dessa
forma, uma tentativa de atacar as barreiras ao acesso de modo mais articulado e compreensivo” (CAPPELLETTI,
op. cit., p. 31).

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102 João Bosco Won Held Gonçalves de Freitas Filho, Marcelo Pereira de Almeida

escopo da segunda onda de acesso à justiça, com a tentativa de descobrir


mecanismos de proteção dos interesses difusos e coletivos.
Este anteparo dos interesses transindividuais se torna fundamental
para a adequada garantia de acesso à ordem jurídica justa numa época
como a que se vive hoje, quando surgem novos direitos, sem caracteres
patrimoniais. Podem ser citados como exemplos destes a preservação do
meio ambiente, do patrimônio cultural, histórico e artístico, a garantia
da moralidade administrativa etc.
Ultrapassados estes pontos, foi indagado pelos estudiosos do
Direito Processual se o consumidor da atividade jurisdicional estava
satisfeito com a prestação deste serviço. A pergunta obriga o jurista a
examinar a questão do acesso à justiça sob um novo enfoque, não mais
do Estado, mas o do jurisdicionado, o que fez surgir a “Terceira Onda”,
a qual Mauro Cappelletti chamou de “enfoque de acesso à Justiça”,
descortinado não só na questão de solução dos mecanismos alternativos
de solução de controvérsias, como também no florescer de uma tutela
jurídica diferenciada.
Sob este aspecto, o processualista deve se ater a encontrar instru­
mentos capazes de assegurar uma prestação jurisdicional satisfatória ao
cidadão, o que requer um longo caminho a ser percorrido.
A reforma do Poder Judiciário se coloca como um primeiro ponto
a ser abordado. Aspectos controvertidos como a do controle externo
da magistratura e a criação das súmulas vinculantes são temas bem
debatidos, e devem ser mais amadurecidos para que se possa atingir um
modelo de estrutura do Poder Judiciário mais democrático e mais justo.
É relevante, também, buscar-se uma maior informalidade nos pro­
cedimentos em juízo, uma vez que o exagero formalista impede uma
prestação jurisdicional tempestiva. Deve ficar consignado que a forma
não deve ser abolida totalmente, não é esta a proposta, pois o processo
judicial é formal, para que não se percam as garantias pelas quais as
formas processuais são responsáveis. O que deve ser abolido é o forma­
lismo exacerbado que frustra uma prestação jurisdicional efetiva.
O bom exemplo, no nosso ordenamento da busca de procedi­
mentos mais simples e céleres, é a criação dos Juizados Especiais Cíveis
no âmbito estadual pela Lei nº 9.099/1995, e no âmbito federal pela Lei
nº 10.259/2001. Recentemente foi editada a Lei nº 12.153, de 22 de dezem­
bro de 2009, que instituiu, em âmbito estadual, os juizados de Fazen­­­da
Pública. Não se pode esquecer, ainda, do esforço do legislador processual,

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Algumas notas sobre o controle jurisdicional da arbitragem 103

nas constantes reformas do Código de Processo Civil, insti­ tuídas,


principalmente, a partir de 1994, com o escopo de proporcionar maior
efetividade no processo. Atualmente, tramita no Senado Federal o Projeto
de Lei nº 166/2010, instituindo o Novo Código de Processo Civil.
Questão de grande relevância a ser abordada neste novo enfoque
do acesso à justiça é o prestígio aos mecanismos alternativos de solução de
conflitos, como a negociação, a mediação, a conciliação e a arbitragem,11
em que a utilização destes métodos é indispensável para que se torne
possível à completa satisfação do jurisdicionado.
Verifica-se, assim, que os processualistas de todo o mundo têm se
preocupado em encontrar soluções para possibilitar a maior satisfação
do consumidor da prestação jurisdicional, na qual deve ser efetiva e
adequada a garantir verdadeira proteção às posições jurídicas de van­
tagem lesadas ou ameaçadas de lesão.
Este árduo trabalho dos estudiosos do Direito Processual depen­
de necessariamente da apresentação de propostas que contenham ele­­
mentos a informar as novas bases do Processo Civil a possibilitar um pleno
acesso a uma ordem jurídica justa.12
Apesar das últimas alterações processuais, ainda existem pontos no
sistema processual que precisam ser modificados, além da necessidade
11
Em linhas gerais, na negociação, os próprios sujeitos litigantes, ou através de seus representantes legais, tentam
diretamente pôr fim ao litígio, independente da intervenção de qualquer terceiro imparcial. A mediação se
caracteriza por ser um mecanismo em que existe a figura de um terceiro, o mediador, que é um mero facilitador
das controvérsias. A postura do mediador não é uma posição ativa na condução das sessões de mediação,
sendo certo que o seu papel é de um mero catalizador, cujo objetivo é deixar que as próprias partes cheguem
ao consenso. Já a conciliação é uma forma de solução de conflitos em que o conciliador não é um mero
expectador, tendo uma postura ativa, instando os sujeitos litigantes para chegar ao consenso. É comum o
entendimento doutrinário em enquadrar a conciliação como termo genérico, de modo que são suas espécies
a transação, a desistência e a renúncia.
12
Neste contexto, pode-se considerar que as várias reformas efetivadas no CPC de iniciativa da Escola Nacional
de Magistratura e do Instituto Brasileiro de Direito Processual, ao que tudo indica, já trouxeram resultados
satisfatórios. Podem ser citados como exemplos a sistematização da tutela antecipada, o novo procedimento para
o agravo de instrumento, a maior eficiência dada à ação de consignação em pagamento, a introdução da ação
monitória, a ampliação do elenco dos títulos executivos extrajudiciais e o início do sincretismo entre processo
de conhecimento e de execução com a nova redação dada ao artigo 461, estabelecendo novos contornos para
tutela específica das obrigações de fazer e não fazer. Nos anos de 2001e 2002, com a entrada em vigor das
Leis nºs 10.352/2001, 10.358/2001 e 10.444/2002, concretizou-se a segunda grande reforma do Código de
Processo Civil, que teve como pontos mais relevantes a limitação dos casos de reexame necessário; a permissão
à fungibilidade entre as providências antecipatórias e as medidas cautelares incidentais; o reforço à execução
provisória com a permissão de alienação de bens sob caução idônea, atribuída a força executiva a sentença
condenatória de entrega de bens com a criação do artigo 461-A; permissão ao relator à conversão do agravo
de instrumento em agravo retido; limitação dos casos de cabimento de embargos infringentes; nova disciplina
da audiência preliminar etc. Após o advento da Emenda Constitucional nº 45/04, o legislador continuou o
seu intento em reformar o ordenamento processual para tornar a tutela jurídica mais eficiente, agora sob a
influência dos novos comandos constitucionais, principalmente o da razoável duração do processo (artigo
5º, LXXVIII). Destaca-se, neste momento, o novo regime do agravo (Lei nº 11.187/2005), a sistemática mais
efetiva da execução (Lei nº 11.232/2005 e Lei nº 11.382/2006); as formas de se obstar demandas repetitivas
(Lei nº 11.276/2006, Lei nº 11.277/2006 e Lei nº 11.417/2006) e as normas de processamento dos recursos
excepcionais de matérias semelhantes (Lei nº 11.418/2006 e Lei nº 11.672/2008).

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104 João Bosco Won Held Gonçalves de Freitas Filho, Marcelo Pereira de Almeida

de incentivar as soluções alternativas de conflito, tendo em vista que


determinados tipos de litígio, pelas características que apresenta a juris­
dição estatal, esta não se mostra apta a resolver com efetividade tais
lides. Assim, por exemplo, em um conflito envolvendo duas empresas
transnacionais, com representação em diversos países, em que se dis­
cute a abrangência de cláusula contratual.13 Os aspectos de litígios desta
natureza, principalmente em relação às regras de competência, podem
criar embaraços para se definir qual o órgão jurisdicional teria essa
atribuição para julgar a causa, bem como a jurisdição de qual país teria
essa competência. Além de se verificar qual seria a legislação aplicável
ao caso. A experiência demonstra que em casos como esse, a arbitragem
representa um instrumento mais adequado para solucioná-lo, principal­
mente a arbitragem institucional, em que se tem uma organização dotada
de representação em vários países.14
Pense-se também na hipótese do litígio versar sobre matérias
que envolvam aspectos técnicos de complexidade, em que o juiz, para
solucionar o conflito tenha que recorrer a um perito. Nestes casos, o
árbitro sendo técnico nesta área de conhecimento poderá solucionar
com mais precisão a controvérsia.
Em outros casos, em que fica configurado o envolvimento emo­­
cional das partes, tais como os conflitos de família, métodos de negociação
e mediação surtirão um maior efeito do que a utilização da jurisdição
nos seus moldes tradicionais.15
Sem dúvida, o fomento a utilização dos meios alternativos de
solução de conflitos pode contribuir de forma sensível para se alcançar a
tão almejada satisfação dos interesses.

3 A arbitragem no ordenamento jurídico brasileiro


A arbitragem não é instituto recente no direito processual bra­
sileiro, aliás sequer no cenário jurídico mundial, na medida em que, como
reconhece a doutrina especializada, antecedeu a forma jurisdicional-
estatal de solução de conflitos no direito romano.16

13
PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Mecanismos de solução alternativa de conflitos: algumas considerações
introdutórias. Revista Dialética de Direito Processual, São Paulo, v. 17, p. 10, 2004.
14
PINHO, op. cit., p. 10.
15
Idem.
16
TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. A arbitragem no sistema jurídico brasileiro. Revista de Processo, São Paulo,
v. 22, n. 85, p. 193, jan./mar. 1997; SANTOS, Francisco Cláudio de Almeida. Considerações gerais sobre a
arbitragem e seu reordenamento. Revista de Processo, São Paulo, v. 22, n. 85, p. 200, jan./mar. 1997.

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Algumas notas sobre o controle jurisdicional da arbitragem 105

Nesse particular, no Brasil, a primeira previsão da arbitragem se


deu na Constituição de 1824,17 contemplando a facultatividade em sua
instituição, conforme referia o art. 160 da Carta.18
Ainda sob o manto da Carta Imperial de 1824, mas no plano
infraconstitucional, precisamente em 1850, a arbitragem foi prevista no
vetusto Código Comercial, ainda parcialmente em vigor, e no Regula­
mento nº 737, este reconhecidamente o primeiro Código de Processo
Civil no sistema jurídico brasileiro.
Contudo, à dessemelhança da arbitragem da Constituição de 1824,
o mecanismo utilizado pela legislação “codificada” previa uma arbitra­
gem obrigatória,19 regime este que não perdurou por muito tempo, sendo
extirpado do ordenamento em 1866, por força da Lei nº 1.350.20
O Código Civil de 1916 também cuidava da arbitragem (facultativa)
pontualmente, nos arts. 1037 usque 1048, disciplina que veio a ser revo­
gada expressamente21 em 1996 e não mais contemplada pelo Código
Civil de 2002.
Os Códigos de Processo Civil subsequentes22 passaram a prever
também um regime facultativo de arbitragem. Com efeito, o Código de
1939 disciplinava a matéria em livro próprio, o de nº IX (arts. 1031 a
1052), ao passo que o Código de 1973 contemplou o instituto no capítulo
XIV (arts. 1072 a 1102), dentro do Livro IV, que cuida dos procedimentos

17
TIBÚRCIO, Carmen. A arbitragem no direito brasileiro: histórico e Lei 9.307/96. Revista de Processo, São Paulo,
v. 26, n. 104, p. 80, out./dez. 2001. Não obstante, a jurista reconhece que as Ordenações Filipinas já previam
a arbitragem (Ibidem, loc. cit., nota 1).
18
“Art. 160. Nas civeis, e nas penaes civilmente intentadas, poderão as Partes nomear Juizes Arbitros. Suas
Sentenças serão executadas sem recurso, se assim o convencionarem as mesmas Partes” (sic).
19
Assim, “todas as questões que resultassem de contratos de locação mercantil (CCo, art. 245), que envolvessem
matéria societária (CCo, art. 294), ou em casos de naufrágios (CCo, art. 739), avarias (CCo, art. 783) e quebras
(CCo, art. 846) eram solucionadas obrigatoriamente pela via arbitral” (TIBÚRCIO, op. cit., p. 81). No tocante
ao Regulamento nº 737, o art. 411 previa o juízo arbitral compulsório se a causa fosse comercial (TEIXEIRA,
op. cit., p. 195).
20
TIBÚRCIO, op. cit., p. 81; TEIXEIRA, op. cit., p. 195. A respeito desta Lei de 1866, Roberto Rosas escreve que
“a Lei 1.350, de 14.09.1866 (art. 14), foi o primeiro diploma legal que dispôs sobre o arbitramento; texto
repetido pela Lei 221, de 20.11.1894 (art. 87), organizadora da Justiça Federal pelo Dec. 3.084, de 05.11.1898”
(ROSAS, Roberto. Arbitragem: importância do seu aperfeiçoamento: o papel do advogado. Revista dos
Tribunais, São Paulo, ano 86, v. 746, p. 79, dez. 1997). Por fim, logo após a disciplina da Lei nº 1.350/1866,
que aboliu a arbitragem obrigatória, foi editado o Decreto nº 3.900, de 1867 (Lei Processual Mercantil), que
contemplou o juízo arbitral facultativo do comércio, conforme menciona a doutrina especializada (LIMA, Cláudio
Vianna de. Notícia da arbitragem no direito positivo. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 92, n. 334, p. 44-45,
abr./jun. 1996).
21
Lima, se baseando nos posicionamentos de José Carlos Barbosa Moreira e Carlos Alberto Carmona, entretanto,
já reconhecia a revogação da disciplina da arbitragem no Código Civil quando da entrada em vigor do Código
de Processo Civil de 1973, que cuidou inteiramente da matéria (LIMA, op. cit., p. 44).
22
À época da possibilidade de competência de edição de codificação processual pelas unidades da federação, isto
é, até a Constituição de 1937, a legislação de São Paulo voltou a tornar obrigatória a arbitragem em algumas
causas (TIBÚRCIO, op. cit., p. 81, nota 2).

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106 João Bosco Won Held Gonçalves de Freitas Filho, Marcelo Pereira de Almeida

especiais de jurisdição contenciosa.23 Tanto no Código de 1939, quanto


no atual Código de 1973, havia um regime semelhante, com a nota
peculiar da necessidade de homologação em juízo do “laudo arbitral”.
A Lei nº 9.307/1996, fruto do Projeto de Lei do Senado nº 78/1992,
de autoria do Senador Marco Maciel,24 deu nova roupagem à arbi­tra­
gem, alterando substancialmente o sistema anterior instituído no Código
de Processo Civil.
Além de criar uma disciplina em lei específica ao invés de altera­
ção da norma codificada,25 trouxe duas substanciais mutações em relação
ao sistema antanho: concedeu eficácia concreta e coercitiva ao pacto
arbitral e tornou despicienda a chancela judicial da decisão arbitral, ver­
dadeiros estorvos ao manejo da arbitragem no Brasil.26
A nova lei, entretanto, à época de sua vacatio legis e, depois, no limiar
de sua vigência, sofreu questionamento quanto à sua (in)constitu­­ cio­
na­lidade no Supremo Tribunal Federal, em controle difuso de constitu­
cionalidade, no âmbito de um processo de homologação de sentença
arbitral estrangeira, questionamento esse que, posteriormente, restou
superado,27 sobretudo diante do princípio da autonomia da vontade, ine­
xorável esteio sagrado da arbitragem.28 Com efeito, através da conven­
ção de arbitragem as partes, sinalagmaticamente, renunciam a via estatal

23
Quando da vigência do regime arbitral na norma codificada, Lima escreveu: “causa acentuada espécie o
posicionamento da arbitragem entre os procedimentos especiais de jurisdição contenciosa do CPC (arts.
1.072 a 1.102). Isto sem relevar a impropriedade, igualmente visível, da sua disciplina no CPC, notoriamente
destinado ao processo estatal, público” (LIMA, op. cit., p. 43).
24
Segundo informação de Almeida Santos, “o Projeto de Lei foi fruto da operação denominada Arbiter desenvolvida
pelo Instituto Liberal de Pernambuco, sob a coordenação do Dr. Petrônio R. G. Muniz, com o apoio do Instituto
Brasileiro de Direito Processual, e de debate no Seminário Nacional sobre Arbitragem, realizado em Curitiba
(PR), em abril de 1992, sendo a Comissão Relatora do Anteprojeto constituída pelos Profs. Selma M. Ferreira
Lemes, Carlos Alberto Carmona e Pedro Batista Martins” (SANTOS, Francisco Cláudio de Almeida. Considerações
gerais sobre a arbitragem e seu reordenamento. Revista de Processo, São Paulo, v. 22, n. 85, p. 203, nota 12,
jan./mar. 1997).
25
A Lei de Arbitragem revogou expressamente os dispositivos do CPC que cuidavam do juízo arbitral (arts. 1072
a 1102), embora tenha realizado, em menor escala, alguma alteração pontual no texto do CPC, com o objetivo
de adaptar a norma codificada à nova lei. Por exemplo: a Lei de Arbitragem (art. 41) deu nova redação aos
arts. 267, VII e 301, IX, ambos do CPC.
26
A esse respeito, Santos reconhece que “pelo menos dois entraves se apresentavam inafastáveis na legislação
revogada, a dificultar a adoção da arbitragem: a ausência de reconhecimento de efeitos coercitivos na chamada
‘cláusula compromissória’ e a necessidade de homologação da sentença arbitral pela jurisprudência” (SANTOS,
Francisco Cláudio de Almeida. Considerações gerais sobre a arbitragem e seu reordenamento. Revista de
Processo, São Paulo, v. 22, n. 85, p. 206, jan./mar. 1997). Em relação à cláusula compromissória, Teixeira
salienta que esta se constituía mera promessa de contratar, não ensejando execução específica com o objetivo
de alcançar o resultado pretendido, mas apenas a resolução em perdas e danos. Percebe-se, assim, que o
regime antigo era, inequivocamente, inoperante.
27
STF. SE-AgR nº 5.206/EP – Espanha, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, julgado em 12.12.2001,
DJ, p. 29, 30 abr. 2004.
28
Sobre o tema da constitucionalidade da arbitragem, cf. PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Teoria geral
do processo civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 381-383; TIBÚRCIO, op. cit., p. 97-99;
TEIXEIRA, op. cit., p. 197-198.

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Algumas notas sobre o controle jurisdicional da arbitragem 107

da jurisdição e buscam a solução da controvérsia ou de futuro litígio por


meio dessa forma de heterocomposição. Ora, como já se escreveu, “se
o titular de um direito disponível pode renunciá-lo, por que não, então,
admitir-se possa ele escolher a forma de solver controvérsia em torno
desse mesmo direito?”29
Ademais, como se verá, o controle dos aspectos formais da sentença
arbitral poderá ser realizado perante o Poder Judiciário, caso em que a
tese de violação do art. 5º, XXXV, da CRFB, cai por terra.
De qualquer forma, não se pode deixar de mencionar que a arbi­
tragem ganhou, atualmente, status constitucional ao ser contemplada
na seara trabalhista (art. 114, §2º, da CRFB/1988). Nesse contexto, é
possível inferir até mesmo que o texto constitucional acicata o uso dos
equivalentes jurisdicionais, quando em seu preâmbulo assevera que há
um compromisso com a solução pacífica de controvérsias.
Discute-se a natureza jurídica da arbitragem. Atualmente o debate
cinge-se em saber se a arbitragem tem natureza jurisdicional30 ou
para­jurisdicional. Sob o manto da nova lei, não mais se discute a tese
dos privatistas, os quais exigiam a homologação da sentença arbitral.
Parece que o melhor posicionamento é o que defende a ideia de natu­
reza parajurisdicional da arbitragem,31 na medida em que algumas
características da Jurisdição não estão presentes na atividade arbitral,32
como, por exemplo, a possibilidade de execução dos próprios provi­
mentos arbitrais.
A arbitragem há de ser instituída através da convenção da arbi­
tragem, seja por força da cláusula compromissória ou pelo compro­
misso arbitral. Grosso modo, a distinção entre a cláusula compromissória
e o compromisso arbitral é temporal, na medida em que este é regulado
para o presente, diante de um litígio já em foco, ao passo que aquela é
contemplada pro futuro, com efeito prospectivo, sem que ainda exista um
litígio entre as partes.

29
REINALDO FILHO, Demócrito Ramos. Aspectos do instituto da arbitragem. Revista dos Tribunais, São Paulo, v.
86, n. 743, p. 69, set. 1997.
30
Nesse sentido: RICCI, Edoardo F. Reflexões sobre o art. 33 da Lei de Arbitragem. Revista de Processo, São
Paulo, v. 24, n. 93, p. 49, jan./mar. 1999; ALVIM, José Eduardo Carreira. Teoria geral do processo. 10. ed. Rio
de Janeiro: Forense, 2005. p. 79.
31
DINAMARCO, Cândido Rangel. Limites da sentença arbitral e de seu controle jurisdicional. In: DINAMARCO,
Cândido Rangel. Nova era do processo civil. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 28. Pinho sustenta a natureza
paraestatal da arbitragem (PINHO, op. cit., 2007, p. 377).
32
Luiz Guilherme Marinoni escreve que “(...) a atividade arbitral não pode, ao menos segundo as teorias de
jurisdição que se costuma adotar atualmente, ser tida como jurisdicional” (MARINONI, Luiz Guilherme;
ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
p. 764).

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Nos termos do art. 21 da Lei nº 9.307/1996, o procedimento a


ser utilizado na arbitragem é o estabelecido na respectiva convenção.
Se for o caso de arbitragem institucional será possível a utilização das
regras estabelecidas pela própria entidade.
Como se percebe, a Lei de Arbitragem confere uma plena discri­
cionariedade aos (potenciais) sujeitos litigantes na instituição do pro­
cedimento a ser seguido. Não obstante, a despeito desta liberdade
procedimental, será imprescindível a observância dos princípios do con­
traditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e de
seu livre convencimento (art. 21, §2º), corolários do postulado do devido
processo legal (art. 5º, LIV, da CRFB/1988).
Após o desenvolvimento válido e regular do processo, haverá a
prolação da sentença arbitral, que será escrita e com os elementos apre­
sentados no art. 26, os quais são semelhantes aos previstos no art. 458
do CPC para as sentenças judiciais. O prazo para que seja profe­rida a
sentença arbitral poderá ser estabelecido na convenção de arbitragem
(art. 11). Caso não seja estipulado pelas partes, o árbitro terá o prazo de
seis meses para a prolação de sentença (art. 23).
Discute-se o cabimento ou não de recurso contra a sentença arbi­
tral. A Lei de Arbitragem, em seu art. 30, contempla apenas uma espécie
de embargos de declaração, cujo objetivo é instar o julgador para que
reexprima ou integre a sentença prolatada, nos casos erro material,
obscuridade, contradição ou omissão.
Há tendência doutrinária em não admitir a interposição de recurso
contra a sentença arbitral. Os defensores desta tese invocam o art. 18 da
Lei de Arbitragem para subsidiar o entendimento.
Sem embargo, não parece acertada a visão. Com efeito, o que o
mencionado dispositivo evidencia é a impossibilidade de interposição
de recurso perante o Poder Judiciário, nada dispondo sobre a vedação à
interposição de recurso contra sentença arbitral. Não se pode pretender
alargar a interpretação do dispositivo para restringir o acesso de uma das
partes a um “duplo grau” arbitral. A premissa é simples: considerando
que o procedimento arbitral é instituído pelas partes, por força de con­
venção, e não por força da lei, inexiste mácula ao sistema arbitral a
previsão de recurso(s) na convenção de arbitragem ou, eventualmente,
no regimento ou estatuto de alguma entidade.33
33
Também admite a possibilidade de interposição de recurso: CARNEIRO, op. cit., p. 137; SANTOS, op. cit.,
p. 209. Veja-se de Santos: “Recurso da sentença, no procedimento arbitral, pode existir, dependendo, apenas,

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Algumas notas sobre o controle jurisdicional da arbitragem 109

4 O controle jurisdicional da arbitragem


A perspectiva da Lei de Arbitragem foi a de conferir uma auto­
nomia ao poder decisório do árbitro na solução da controvérsia que lhe
é submetida, de sorte que, em regra, não há intervenção do Poder
Judiciário na condução do procedimento arbitral, tampouco no conteúdo
do decisum imposto pelo árbitro.
Nesse contexto, malgrado não seja necessária a homologação da
sentença arbitral perante o Estado-juiz (art. 18 da Lei de Arbitragem),
até porque o árbitro é o juiz de fato e de direito da controvérsia que lhe
é submetida, não é ela incólume ao controle jurisdicional em alguns
casos. Em outros, há intervenção do Poder Judiciário para que a atividade
arbitral seja profícua.
Assim é que, nestes casos, a Lei de Arbitragem contemplou um
cooperativismo entre o juízo estatal e o arbitral, isto é, para que o árbitro
possa, efetivamente, realizar a sua atividade de julgar as causas que
lhe são postas, precisará do auxílio do Poder Judiciário. Aqui, a rigor,
não se pode falar em controle da atividade arbitral, mas sim em verda­
deira colaboração à arbitragem.
Na relutância, por exemplo, quanto à instituição da arbitragem,
seja pela recusa em firmar o compromisso arbitral ou pela resistência
quanto ao estabelecimento da cláusula compromissória, será possível,
se for desejo do interessado, a intervenção do Poder Judiciário. Com
efeito, nessa hipótese, após a tentativa frustrada de firmar o compromis­so
arbitral, mediante comunicação à parte contrária com comprovação de
recebimento traduzindo interesse em iniciar a arbitragem,34 é facultada a
propositura de ação com o objetivo de fixar por sentença o compromisso
arbitral, nos termos dos arts. 6º e 7º da Lei de Arbitragem. Na verdade,
cuida-se de uma tutela jurisdicional de obrigação de emitir declara­
ção de vontade (art. 466-A do CPC), consubstanciado num processo
de conhecimento.35 Na ação prevista na Lei de Arbitragem, além de a

da vontade das partes em determinar o duplo grau de jurisdição arbitral, a fim de que a sentença seja por outro
árbitro revista ou por um colégio de árbitros. O órgão estatal é que não intervirá no procedimento enquanto
não encerrado” (SANTOS, op. cit., p. 209).
34
Paulo Cezar Pinheiro Carneiro recomenda “(...) que esta manifestação contenha a) o objeto do litígio; b)
proposta para indicação de árbitros; c) lugar onde se desenvolverá a arbitragem e será proferida a respectiva
sentença e o prazo para tanto; d) o procedimento a ser adotado; e) modo de fixar os honorários dos árbitros,
além da responsabilidade pelo pagamento dos mesmos e das despesas e, se for o caso, propor o julgamento
por eqüidade ou outras alternativas já examinadas constantes do artigo 2º, §§1º e 2º, da nova lei” (CARNEIRO,
Paulo Cezar Pinheiro. Aspectos processuais da lei de arbitragem. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 339,
p. 129, 1991).
35
“Trata-se, na realidade, de um processo de conhecimento com rito próprio fixado na nova lei (art. 7º), aplicando-
se, no que couber, subsidiariamente, as regras do Código de Processo Civil” (CARNEIRO, op. cit., p. 130). Aliter,

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sentença que acolher o pedido autoral valer como compromisso arbitral


(§7º, do art. 7º), incumbirá ao juiz, após ouvir as partes, nomear o(s)
árbitro(s), se o compromisso não tiver qualquer previsão sobre a indi­cação
do(s) julgador(es). Desta sentença caberá apelação, sem efeito sus­pen­­sivo,
nos termos do art. 520, VI, do CPC.
A Lei também exige a intervenção do Estado-juiz se não houver
estipulação quanto aos honorários arbitrais, caso em que será possível
ao árbitro requerer ao órgão judicial que os determine por sentença,
consoante o parágrafo único do art. 11 da Lei de Arbitragem. Frise-se
que se houver disciplina sobre os honorários dos árbitros no compro­
misso arbitral, este, sob o ponto de vista jurídico, é um título executivo
extrajudicial (art. 585, VIII, do CPC), o qual propicia o manejo do processo
de execução em juízo, em caso de inadimplemento. Em paralelo, se os
honorários forem pactuados de forma verbal, evidentemente que não há
de se falar em título executivo extrajudicial, caso em que o árbitro deverá
fazer uso do procedimento sumário no âmbito de um processo cognitivo,
nos termos da inteligência do art. 275, II, f, do CPC.
Ainda em relação ao árbitro, o art. 13, §2º, da Lei de Arbitragem,
prescreve que se não houver consenso quanto à sua nomeação, as partes
postularão ao órgão jurisdicional para que o magistrado o nomeie,
aplicando, no que for compatível, o procedimento previsto no art. 7º.
Em sentido semelhante, o art. 16, §2º, da Lei de Arbitragem, dispõe
ser possível que a parte interessada busque a via jurisdicional para
a nomeação do árbitro substituto, isto é, daquele que se escusou antes
da aceitação da nomeação ou, uma vez aceita, tiver falecido. Nessas
duas hipóteses de nomeação do árbitro também são medidas de apoio
bus­cadas ao Poder Judiciário.
Na condução do procedimento arbitral, o árbitro, em respeito ao
princípio do livre convencimento (§2º, do art. 21), pode, inclusive de
ofício, colher toda a sorte de provas, desde que legítimas. Destarte, é pos­
sível que o árbitro tome o depoimento pessoal das partes, inquira testemu­
nhas, ordene a produção de prova pericial, faça a “inspeção arbitral” etc.
Não obstante, para a condução da testemunha renitente, é im­
prescindível que o árbitro requeira ao Poder Judiciário que a conduza,
nos termos do §2º, do art. 22. Isso porque, sem embargo tenham os

Gajardoni defende cabalmente que o rito desta ação é o da Lei nº 9.099/1995 (GAJARDONI, Fernando da
Fonseca. Aspectos fundamentais de processo arbitral e pontos de contato com a jurisdição estatal. Revista de
Processo, São Paulo, v. 106, n. 27, p. 213, abr./jun. 2002).

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Algumas notas sobre o controle jurisdicional da arbitragem 111

árbitros alguns atributos dos juízes togados, outros poderes jurisdicionais


não foram contemplados aos juízes arbitrais, como a coertio e a executio.
A Lei de Arbitragem exige, ainda, a intervenção do Poder Judiciário
para concessão de medidas coercitivas e cautelares, consoante a previsão
do art. 22, §4º. Sendo assim, da análise literal do dispositivo, parece que a
concessão de medidas cautelares pelos próprios árbitros sem a necessária
intervenção do juiz togado está vedada pela Lei de Arbitragem.36 Sequer
poderia a convenção de arbitragem permitir tal atribuição aos árbitros.
Como se sabe, o manejo da arbitragem é canalizado para a solução
de direitos patrimoniais disponíveis (art. 1º). Sem embargo, não raro,
pode surgir, como questão prejudicial, controvérsia no tocante a direitos
indisponíveis, caso em que o eventual ingresso do árbitro nesta seara
acarretaria a nulidade da sentença arbitral, eis que prolatada fora dos
limites de atribuição do juízo arbitral.
Atento a essa realidade, o legislador criou, mais uma vez, um
mecanismo de cooperação entre o juízo arbitral e o Poder Judiciário, pois
o surgimento de uma questão prévia prejudicial de caráter indisponível
acarretará a suspensão do procedimento arbitral para que esta questão
seja conhecida e julgada perante o competente órgão do Poder Judiciário
e, após a solução da controvérsia, o retorno ao procedimento arbitral,
“(...) tomando-se a decisão judicial como pressuposto para o exame do
litígio sujeito ao juízo arbitral (art. 25 da Lei nº 9.307/96)”.37
Por fim, o art. 20, §1º, da Lei de Arbitragem menciona que o
reconhecimento da incompetência do juízo arbitral, bem como dos
vícios da convenção de arbitragem, acarretam o deslocamento do feito
ao Poder Judiciário.38

36
Nesse sentido: THEODORO JR., Humberto. Curso de direito processual civil. 39. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2008. v. 3, p. 352. O autor mineiro escreve que “essas medidas, porém, não podem nascer de deliberação ex
officio do árbitro. Cabe à parte requerê-las e, sendo julgadas cabíveis e necessárias, seu deferimento ocorrerá,
ainda, no âmbito do juízo arbitral, sendo a execução solicitada, em seguida, ao juízo ordinário. Por outro lado,
não é dado à parte dirigir-se diretamente ao juiz togado para requerer-lhe medida preventiva a ser aplicada
sobre os bens e direitos disputados no procedimento extrajudicial” (THEODORO JR., op. cit., p. 352). Pinho
também não admite a postulação direta pelas partes ao juiz togado para a concessão de medidas cautelares
(PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Teoria geral do processo civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2007. p. 389). Ademais, Luiz Guilherme Marinoni escreve que a arbitragem não tem por objetivo trabalhar
com situações de urgência, caso em que não se pode admitir a concessão de medidas cautelares (MARINONI,
op. cit., p. 773). Em sentido contrário, em posicionamento isolado, é o entendimento de Paulo Cezar Pinheiro
Carneiro, para quem, diferente do sistema anterior, a nova lei, segundo o jurista, não tem dispositivo expresso
vedando a concessão de medidas de urgência pelo árbitro. O Professor Titular da UERJ entende até mesmo
que é possível que as próprias partes postulem diretamente ao magistrado togado a concessão de medidas
urgentes, se a convenção de arbitragem não dispuser sobre o tema (CARNEIRO, op. cit., p. 138-139).
37
MARINONI, op. cit., p. 777.
38
A Lei de Arbitragem, ao invés de mencionar a expressão deslocamento do feito ou correlata, menciona que
“serão as partes remetidas ao órgão do Poder Judiciário competente para julgar a causa”.

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112 João Bosco Won Held Gonçalves de Freitas Filho, Marcelo Pereira de Almeida

Em todas essas hipóteses há colaboração do Poder Judiciário na


concretização da arbitragem, seja pela impossibilidade de realização de
determinados atos concretos pelos árbitros, seja pela falta de atributos
dos julgadores ou, afinal, do próprio limite estabelecido pela Lei para
o julgamento por intermédio dos árbitros em relação a determinadas
matérias.
Por outro lado, apesar de a sentença arbitral brasileira dispensar
atualmente homologação estatal,39 à semelhança de outros sistemas jurí­
dicos estrangeiros,40 não é ela infensa ao controle jurisdicional. Não se
pode negar que tal controle jurisdicional da arbitragem seja canalizado
aos aspectos formais,41 jamais em relação à justiça ou ao conteúdo subs­
tantivo da decisão prolatada, eis que a premissa geral da lei é a não inter­
venção do Judiciário e a ausência, em regra, de controle jurisdicio­nal
da arbitragem. Isto é, o controle jurisdicional sobre a sentença arbitral
será por error in procedendo e não por error in judicando.
A respeito desta impossibilidade de o Judiciário se imiscuir no
“mérito” da sentença arbitral,42 é que alguns autores chegam a ponto
de falar em uma verdadeira coisa julgada material,43 na medida em que a
decisão do árbitro opera efeitos tanto no próprio procedimento arbitral,
como fora dele, obstaculizando assim a possibilidade de propositura da
ação perante o Estado-juiz para (re)discutir o que foi objeto de sentença
arbitral. Sem embargo, parece que não se cuida, a rigor, de coisa julgada

39
No sistema do Juizado Especial Cível, a arbitragem não prescinde de homologação, a teor do disposto no art.
26 da Lei nº 9.099/1995. Sobre o tema, cf. CÂMARA, Alexandre Freitas. Juizado especiais cíveis estaduais e
federais: uma abordagem crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 102-105; e ROCHA, Felippe Borring.
Juizados especias cíveis. 4 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 129-131.
40
VIGORITI, Vicenzo. Em busca de um direito comum arbitral: notas sobre o laudo arbitral e sua impugnação.
Revista de Processo, São Paulo, v. 23, n. 91, p. 25, jul./set. 2002.
41
Em sentido semelhante, escreve Didier Jr. que “há possibilidade de controle judicial da sentença arbitral, mas
apenas em relação à sua validade (arts. 32 e 33, caput, Larb). Não se trata de revogar ou modificar a sentença
arbitral quanto ao seu mérito, por entendê-la injusta ou por errônea apreciação da prova pelos árbitros, senão
de pedir sua anulação por vícios formais” (DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. 6. ed. Salvador:
JusPodivm, 2006. v. 1, p. 91).
42
Com idêntica conclusão: Dinamarco, para quem “(...) no sistema brasileiro as decisões arbitrais jamais se
sujeitam ao controle jurisdicional estatal no que se refere à substância do julgamento, ou seja, ao meritum
casae e possíveis errores in judicando; não comportam censura no tocante ao modo como apreciam fatos e
provas, ou quanto à interpretação do direito material ou aos pormenores de sua motivação” (DINAMARCO,
op. cit., 2004, p. 33).
43
“A sentença arbitral, que não se sujeita à homologação judicial, produz os mesmos efeitos da sentença proferida
por órgãos do Poder Judiciário (art. 31), dentre eles: coisa julgada material, salvo a previsão de recurso no
próprio âmbito do procedimento arbitral, só podendo ser desconstituída pela ação anulatória de que trata
o art. 33, da nova lei (...)” (CARNEIRO, op. cit., p. 137). Também defendendo a existência de coisa julgada
material na arbitragem: TIBÚRCIO, op. cit., p. 91; GAJARDONI, op. cit., p. 205. Em sentido contrário, não
admitindo coisa julgada na arbitragem: MARINONI, op. cit., p. 762.

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Algumas notas sobre o controle jurisdicional da arbitragem 113

material, mas sim uma espécie de preclusão máxima da decisão do


árbitro, pois que a res iudicata é atributo exclusivo da função jurisdicional.44
Verdadeiro controle jurisdicional da arbitragem, nomeadamente
da sentença arbitral, na qual será obrigatória a interferência estatal não
como meio de colaboração, mas sim de aferição da legalidade do seu ato
de império, está na chamada “ação declaratória de nulidade da sentença
arbitral”45 (art. 33, caput, da Lei de Arbitragem).46 Ademais, existe efetivo
controle jurisdicional da arbitragem através dos embargos do executado
(rectius: impugnação), apenas quando se tratar de sentença condenatória
arbitral a ser executada perante o Poder Judiciário, segundo a previsão
do artigo 33, §3º, da Lei de Arbitragem.
No caso da ação cujo escopo seja a “declaração de nulidade da
sentença arbitral” o seu rito será o comum (§1º, do art. 33, da Lei de
Arbitragem), seja o ordinário ou o sumário, a depender do valor da causa
e deve ser proposta, peremptoriamente, no prazo (decadencial) de 90
dias após a comunicação da prolação da sentença. A procedência do
pedido nesta ação, em regra, “decretará a nulidade da sentença arbitral”,
mas pode, excepcionalmente, ter como consequência a necessidade de
que o árbitro prolate uma nova sentença arbitral (§2º, do art. 33, da Lei
de Arbitragem).
Discute-se a possibilidade de propositura ou não de ação rescisória
objetivando a desconstituição da sentença arbitral. Não há previsão na
Lei de Arbitragem. Afigura-se que o melhor entendimento seja o que
nega a possibilidade de ação rescisória.47 Com efeito, a ação anulatória
44
Aliás, a definição legal de coisa julgada prevista no art. 6º, §3º, da Lei de Introdução ao Código Civil, é
descortinada na ideia de que o fenômeno é relacionado às decisões judiciais, fruto, portanto, de um processo
judicial perante o Estado-juiz, isto é, no exercício da função jurisdicional.
45
Há quem entenda que, a rigor, esta ação não tem por objeto a declaração de nulidade da sentença arbitral,
mas sim sua anulação, na medida em que o julgamento da procedência do pedido acarreta a desconstituição
da sentença arbitral. Nesse sentido, posicionam-se CARNEIRO, op. cit., p. 139; e MOREIRA, José Carlos Barbosa.
Estrutura da sentença arbitral. Revista de Processo, São Paulo, v. 107, n. 27, p. 11, jul./set. 2002.
46
Paulo Cezar Pinheiro Carneiro sustenta que a ação anulatória pode ser ajuizada ainda que não tenha havido
prolação de sentença, de modo a ser possível o seu manejo durante o curso do procedimento arbitral para
atacar eventual decisão interlocutória viciada prolatada pelo árbitro (CARNEIRO, op. cit., p. 137).
47
Aliter, VERSIANI, Nelmo. Ação rescisória de sentença arbitral. Revista de Processo, São Paulo, v. 31, n. 135, p.
95, maio 2006. Versiani entende que o art. 485 do CPC (hipóteses de cabimento da ação rescisória) é mais
amplo do que o art. 32 da Lei de Arbitragem (casos de “nulidade” da sentença arbitral) e, sendo assim, nem
todas as proposições de desconstituição da sentença arbitral estão contempladas neste dispositivo, de modo
que apenas não se admite a rescisória nos casos do art. 485 do CPC que já foram previstos no dispositivo da Lei
de Arbitragem. Para o articulista, “o art. 32 da Lei 9.307/1996 não prevê a hipótese de ocorrência de dolo e de
colusão das partes a fim de fraudar a lei; de violação de literal disposição de lei; do fundamento em prova cuja
falsidade tenha sido apurada em processo criminal; do autor obtiver documento novo depois da sentença, cuja
existência ignorava; e a hipótese da sentença ter sido fundada em erro de fato” (Ibidem, loc. cit.). Por fim, Versiani
argumenta que considerando que “(...) não há disposição sobre o aviamento de qualquer recurso, dúvida não
resta sobre a admissibilidade da propositura da Ação Rescisória contra julgamento arbitral” (Ibidem, loc. cit.).

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do art. 33 da Lei de Arbitragem faz as vezes da rescisória do art. 485 do


CPC, cujo objetivo daquela é justamente a desconstituição da sentença
arbitral, sendo certo que não há interesse de agir à propositura de
even­tual rescisória, com idêntico efeito. Ademais, há disciplina especí­
fica na Lei de Arbitragem, caso em que as hipóteses de anulação já estão
estabelecidas em seu art. 32.48
Além do uso da ação anulatória, é possível, como visto, que haja
um efetivo controle judicial da arbitragem, no âmbito do processo de
execução perante o Poder Judiciário, quando a sentença arbitral for
condenatória.
De efeito, é cediço que a sentença arbitral tem eficácia de título
executivo judicial (art. 31 da Lei de Arbitragem).49 A propósito, a equipa­
ração da sentença arbitral aos títulos executivos judiciais foi salutar
para se evitar a condução ao Poder Judiciário do mérito ali definido, o
que fatalmente esvaziaria toda proposta do legislador de se incentivar
essa forma de solução de conflito.
De qualquer forma, o eventual não cumprimento da obrigação
consagrada no título propicia o manejo do processo executivo. De se
ressaltar que, por força da nova sistemática do cumprimento de sentença
(arts. 475-I et. seq. do CPC), a execução da sentença arbitral se dará em
uma nova relação processual, em um processo autônomo, mas são
aplicadas as regras do cumprimento de sentença, inclusive a incidência
da multa de 10% pelo não pagamento no prazo de 15 dias.
Quanto ao meio de resistência ao cumprimento da sentença
arbitral, parece haver um consenso doutrinário sobre o meio de defesa
a ser utilizado na execução de sentença arbitral: a impugnação,50 na
medida em que após a edição da Lei nº 11.232/05, a forma de se obstar
a execução fundada em título judicial passou a ser a impugnação. Assim,
as causas de nulidades previstas na Lei de Arbitragem devem ser
apontadas por este novo instrumento, pois os embargos à execução de
sentença ficaram apenas direcionados à execução em face da Fazenda

48
Gajardoni sustenta que o rol do art. 32 da Lei de Arbitragem não é taxativo, mas meramente exemplificativo
(GAJARDONI, op. cit., p. 211).
49
Luiz Guilherme Marinoni, em curiosa construção acadêmica, defende que melhor fortuna teria o legislador se
colocasse a sentença arbitral em categoria apartada, eis que não se cuida de título executivo judicial, tampouco
extrajudicial. Sendo assim, o autor defende que melhor seria enquadrá-la em “(...) categoria exclusiva, à qual
se poderia denominar de título semi-judicial” (MARINONI, op. cit., p. 783).
50
THEODORO JR., op. cit., p. 355, nota 21; MARINONI, op. cit., p. 782.

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Algumas notas sobre o controle jurisdicional da arbitragem 115

Pública, conforme prevê o art. 741 do CPC, com redação atribuída pela
referida lei.51 52
Em outro aspecto, saliente-se a possibilidade de homologação
de sentença arbitral estrangeira, perante o Superior Tribunal de
Justiça (art. 34). No tocante à sua execução, processar-se-á perante a
Justiça Federal (art. 109, X, da CRFB) e, evidentemente, será possível,
também, a decretação de nulidade por meio da impugnação, conforme
salientado acima.
Por fim, não se pode deixar de mencionar que a existência da
convenção de arbitragem é obstáculo processual para que a matéria seja
discutida em juízo. Cuida-se, segundo Didier Jr.,53 de um pressuposto
processual negativo, de modo que para o desenvolvimento válido e regular
do processo rumo a um provimento de mérito é imprescindível que não
esteja presente tal causa impeditiva da análise do objeto litigioso em juízo.
Assim, alegando o réu em preliminar de contestação a existência
de convenção de arbitragem (art. 301, IX, do CPC),54 o reconhecimento
do pacto arbitral pelo órgão jurisdicional acarreta a extinção do processo
sem resolução do mérito, nos termos do art. 267, VII, do CPC.55

5 Conclusão
A arbitragem se apresenta como excelente método de solução de
conflitos. A despeito da timidez e desconfiança em seu uso diuturno no

51
ALMEIDA, Marcelo Pereira. A tutela coletiva e o fenômeno do acesso à justiça. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,
2007. p. 28.
52
Antes da reforma de 2005, o meio de resistência à execução então vigente eram os embargos do executado.
E neste instrumento o devedor deveria formular sua defesa de forma mais ampla ou limitada, dependendo da
natureza do título, se judicial ou extrajudicial. Os embargos à execução, fundados em título judicial, só poderiam
versar sobre as matérias elencadas no art. 741 do CPC, que, basicamente, se referiam às questões atinentes
às nulidades ou causas de extinção da execução, ao passo que na execução fundada em título extrajudicial
os embargos poderiam apontar qualquer matéria que seria lícito deduzir em processo de conhecimento,
justamente por não ter sido antecedida de processo de cognitivo. Assim, com o advento da Lei nº 11.232/05,
a execução fundada em sentença quando a obrigação é por quantia passou a ser resistida por um instrumento
denominado pelo legislador de impugnação, conforme prevê o artigo 475-J, §1º do CPC, mas permaneceu a
limitação das matérias que poderiam ser veiculadas.
53
DIDIER JR., op. cit., p. 219.
54
O art. 301, §4º, do CPC, dispõe que o magistrado não pode conhecer de ofício do compromisso arbitral,
dependendo sempre, pois, de alegação da parte. Contudo, a legislação é omissa quanto à possibilidade (ou
não) de o magistrado conhecer de ofício da cláusula compromissória em juízo, sendo certo que há tendência
doutrinária em ampliar a impossibilidade de conhecimento de ofício pelo magistrado também relação à cláusula
compromissória. Nesse sentido: GAJARDONI, op. cit., p. 194.
55
A extinção do processo sem resolução do mérito por parte do magistrado diante da convenção de arbitragem
não se dá por ser ele (rectius: o juízo) supostamente incompetente para causa, como pensa Fernando da
Fonseca Gajardoni (op. cit., p. 194). A questão de impossibilidade de julgamento da causa pelo juiz togado
liga-se com maior precisão à via eleita (ou como pensa Didier Jr. a um pressuposto processual negativo). Isto
é, considerando que as partes renunciaram à via judicial e buscam solucionar a controvérsia pelo método
paraestatal, não há sequer interesse jurídico para a apreciação da matéria pelo Poder Judiciário, embora, em
tese, seja o juízo competente.

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116 João Bosco Won Held Gonçalves de Freitas Filho, Marcelo Pereira de Almeida

âmbito do direito interno, a técnica se mostra proveitosa em inúmeros


casos. Não se pode admitir que um determinado método, estatal ou não,
seja mais proveitoso do que o outro, sendo certo que a visão atualmente
defendida é a da aplicabilidade casual das técnicas a depender da pecu­
liaridade do caso concreto.
Nesse contexto, em algumas matérias, é extremamente acon­­se­­­lhá­­vel
a utilização da arbitragem, diante de suas utilidades, como a cele­ri­­dade,
a especialidade do árbitro — pela complexidade da causa —, o sigilo
do procedimento arbitral etc. Em outras hipóteses, afigura-se inte­­res­sante
o uso de outros meios, como a mediação ou a conciliação.
A autonomia da vontade é o arcabouço principiológico da arbi­
tragem, na medida em que não apenas diante da escolha da via arbitral
em renúncia à via judicial, como também pela escolha do(s) árbitro(s),
do procedimento a ser aplicado, do prazo da conclusão da atividade
arbitral etc.
A visão da nova Lei de Arbitragem foi a de fazer uma verdadeira
reformulação no sistema arbitral, tornando despicienda a chancela
judicial da sentença arbitral, até porque o árbitro é o juiz de fato e de
direito da causa que lhe é submetida.
O objetivo pretendido pela nova lei foi o de evitar, ao máximo, um
contato da arbitragem com o Poder Judiciário. Não obstante, em algumas
hipóteses, isso se torna imprescindível para o sucesso no procedimento
arbitral, na medida em que há um cooperativismo entre o juízo estatal
e o juízo arbitral, ou seja, diante da necessidade de o árbitro exercer
com plenitude a sua função, precisará da intervenção do Poder Judiciário
para tanto.
De qualquer forma, a arbitragem não é intacta ao eventual controle
judicial. Assim, por exemplo, é que a sentença arbitral pode ficar sujeita
à ação estabelecida no art. 33 da Lei de Arbitragem ou, se condenatória
for a sentença arbitral, ao uso da impugnação como meio de resistência.
Tal controle jurisdicional da arbitragem, evidentemente, será canalizado
apenas aos aspectos formas do procedimento arbitral, não em relação à
justiça ou no tocante ao conteúdo substantivo da decisão, o que se mostra
proveitoso para o incentivo do uso da arbitragem.

Referências

ALMEIDA, Marcelo Pereira. A tutela coletiva e o fenômeno do acesso à justiça. Rio de Janeiro:
Freitas Bastos, 2007.

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TIBÚRCIO, Carmen. A arbitragem no direito brasileiro: histórico e Lei 9.307/96. Revista


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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

FREITAS FILHO, João Bosco Won Held Gonçalves de; ALMEIDA, Marcelo Pereira de. Algumas
notas sobre o controle jurisdicional da arbitragem. Revista Brasileira de Direito Processual
– RBDPro, Belo Horizonte, ano 19, n. 73, p. 97-118, jan./mar. 2011.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 19, n. 73, p. 97-118, jan./mar. 2011

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Colaboração na concretização da decisão
da causa
Lívio Goellner Goron
Procurador da Fazenda Nacional. Especialista em Direito Público. Mestrando em Direito
– PUCRS.

Resumo: A relação entre direito e processo é justificada a partir de diferentes


posturas metodológicas, cada qual com sua ênfase específica, como as da ação
material e da tutela material. A tutela material representa, na atualidade, o polo
metodológico mais adequado para explicitar esse vínculo. Embora inegável a
influência do direito material sobre o processo, a escolha da tutela processual
também é definida por valores processuais. Superada a generalização da
tutela processual condenatória está reconhecida pela doutrina a autonomia
das tutelas mandamental e executiva lato sensu. A atividade jurisdicional/
material do juízo está plenamente constitucionalizada, recebendo um forte
sentido cooperativo, que ilumina o impulso dos atos materiais e o controle
da correção e da legitimidade da atividade jurisdicional. Essa concepção
acarreta exigências específicas de colaboração das partes na efetivação das
tutelas mandamental, executiva lato sensu e executiva stricto sensu.
Palavras-chave: Ação de direito material. Tutela material. Tutela processual.
Pessoalização dos direitos. Concretização da decisão. Colaboração no
processo. Processo cooperativo.
Sumário: Introdução – 1 Tutela nos planos material e processual – 1.1
Considerações sobre a relação entre direito material e tutela processual – 1.1.1
Primeiro modelo: a “ação de direito material” como polo metodológico – 1.1.2
Segundo modelo: a “tutela” como polo metodológico e a autonomia dos valores
do processo – 1.2 Tutelas jurídicas no plano do direito material – 1.3 Tutelas
jurídicas no plano do direito processual – 2 A atividade de concretização da
decisão da causa – 2.1 A “pessoalização” dos direitos, a universalização da
sentença condenatória e sua superação – 2.2 Decisões autossuficientes e não
autossuficientes – 2.3 A atividade material do juízo: sua “jurisdicionalização”
e “constitucionalização” – 3 Colaboração na concretização da decisão da
causa – 3.1 Escopo da colaboração no âmbito da atividade material do juízo
– 3.2 Colaboração na efetivação da tutela mandamental – 3.3 Colaboração
na efetivação da tutela executiva lato sensu – 3.4 Colaboração na efetivação
da tutela executiva stricto sensu – Conclusão – Referências

Introdução
A ideia de uma concepção cooperativa do processo civil — tema que
começa a inspirar relevante produção científica na doutrina brasileira1
— suscita um olhar renovado sobre os institutos processuais, um ponto
1
Indica-se, por todas, a obra de Daniel Mitidiero — Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos
e éticos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009 —, que, a par do exame aprofundado da cooperação em todo
o procedimento processual civil, apoia-se em farta bibliografia sobre o tema.

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de vista que considere os aportes teóricos da fase metodológica atual


da ciência processual. O presente artigo pretende dar conta de alguns
aspectos da cooperação na concretização da decisão da causa, isto é, na ativi­
dade material que se segue, ex intervallo, aos provimentos mandamentais
e executivos (lato sensu) e, em fase subsequente do processo, às decisões
condenatórias. Para tanto serão inicialmente dispostas noções sobre a
relação entre direito material e tutela processual, expondo-se dois modelos
teóricos distintos que pretendem iluminar essa vinculação (centrados,
respectivamente, nos núcleos da “ação material” e da “tutela”). A seguir
serão examinadas sucintamente as existentes formas de tutela material
e processual, e explicitado o persistente fenômeno da universalização
das sentenças condenatórias, que denota compromisso com alguns
pressupostos ideológicos largamente superados.
Estabelecidas essas premissas, tratar-se-á da atividade material
propriamente dita da concretização da decisão da causa, apontando sua
relação com o modelo constitucional do processo civil e abordando as formas
de tutela que implicam na prática de atos materiais. O objeto é investigar
as consequências de uma visão cooperativa de tal atividade — tanto no
que respeita à efetividade da tutela dispensada no processo, como no que
se refere ao controle da legítima atuação do órgão judiciário.

1 Tutela nos planos material e processual


1.1 Considerações sobre a relação entre direito material e tutela
processual
Se a escola processual italiana do início do século XX teve um
mérito inegável, este foi o de buscar reconstruir o processo em bases
publicísticas, emprestando-lhe autonomia e dignidade científica. No
entanto, tal desiderato afastou perigosamente os processualistas de seus
compromissos com as necessidades do direito material.2 A elaboração
teórica da ação abstrata, paradigma desse projeto autonomista, criou
uma perigosa cisão entre direito material e processo, colaborando para
formar a convicção — hoje sabidamente equivocada — de que a tutela
jurisdicional pode assumir uma forma única e neutra, indiferente aos
interesses substanciais.3 A fórmula da ação processual uma e abstrata

2
MARINONI, Luiz Guilherme. Da ação abstrata e uniforme à ação adequada à tutela dos direitos. In: MACHADO,
Fábio Cardoso; AMARAL, Guilherme Rizzo (Org.). Polêmica sobre a ação: a tutela jurisdicional na perspectiva
das relações entre direito e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 209.
3
OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Teoria e prática da tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 76.

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representou um traumático rompimento com a diferenciação e adequação


das tutelas ao direito material.4 No procedimento ordinário, caracterizado
pela cognição plenária (no plano horizontal) e exauriente (no plano
vertical), encontra-se o modelo dessa tutela indiferenciada, supostamente
apta a enfrentar todas as possíveis crises do direito substancial.
Boa parte do esforço da ciência processual civil nos últimos 50
anos dirigiu-se à desconstrução desse “paradigma da ordinariedade” e
do mito da unidade dos procedimentos judiciais. Na tônica contemporâ­
nea a proposta é a edificação de procedimentos informados pelo direito
material,5 capacitados para assegurar a tutela efetiva dos direitos. Esse
novo modelo envolve a compreensão de que o processo não se limita a
receber influência do direito material, mas interfere no campo normativo
substancial de maneira por vezes decisiva. É o que se verifica, por exem­
plo, quando o processo por deficiência de seu instrumental não permite a
realização plena da tutela prometida pelo direito material, “amputando”,
por assim dizer, o próprio direito substancial. A consideração não é
puramente teórica,6 bastando recordar a inexistência, no processo civil
brasileiro, até época recente, de técnicas adequadas para concretizar a
tutela mandamental, o que resultou no virtual apagamento das tutelas
(de direito material) inibitórias do horizonte do direito material.
Respondendo à necessidade de uma reelaboração do vínculo entre
o direito material e as tutelas fornecidas pelo processo, a teoria pro­
cessual, na sua etapa metodológica contemporânea, preocupada com
a atuação dos direitos fundamentais no âmbito do processo — fase que
recebeu da doutrina denominações diversas, como “neoprocessualismo”
e “formalismo-valorativo”7 — propõe diferentes abordagens para o
problema, cumprindo pois na sequência identificá-las e caracterizá-las.

4
Ovídio Baptista da Silva sublinha a contradição inerente ao discurso dos cultores dessa fase metodológica
da ciência processual: “ninguém se questiona como a ‘ação’ processual, que eles concebem como sendo
uma e abstrata, poderia ter conteúdo declaratório, ou constitutivo ou condenatório, sem tornar-se ‘azioni della
tradizione civilistica’. O prodígio de alguma coisa que, não tendo substância, por ser igual a si mesma, e a todos
indistintamente concedida, possa ser declaratória, constitutiva ou condenatória é uma contradição lógica que
não chega a ofender a racionalidade dos juristas que lidam com processo” (SILVA, Ovídio Araújo Baptista da.
Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 179).
5
MITIDIERO, Daniel Francisco. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Memória Jurídica, 2004. t.
I, p. 47.
6
MACHADO, Fábio Cardoso. Jurisdição, condenação e tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
p. 122.
7
O formalismo-valorativo coincide em muitos de seus pontos com a visão instrumentalista, que o antecedeu, mas sua
especificidade, além de uma consideração acentuada pelo valor dos direitos fundamentais, está em ver no núcleo
do fenômeno processual o conflito entre efetividade e segurança, sem que a nenhum destes caiba, isoladamente,
a posição de “sol que ilumina todo o sistema processual” (AMARAL, Guilherme Rizzo. Cumprimento e execução
da sentença sob a ótica do formalismo-valorativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 21).

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1.1.1 Primeiro modelo: a “ação de direito material” como polo


metodológico
A teoria da “ação de direito material” remonta a uma concepção
da ciência jurídica que pretendia fundar a ação no direito subjetivo:
vincula-se à escola da Zivilprozesstheorie (1800-1850) e projetou seus efeitos
sobre a Escola Histórica, encontrando em Savigny (1841) um teórico
exponencial da noção de ação de direito material.8 No Brasil, a concepção
de que ora se trata, defendendo que a construção do procedimento pro­
cessual deve como norte a noção da “ação de direito material”, pode
ser reconduzida, claramente, a Pontes de Miranda.9 Para a teoria em
questão a ação de direito material está inserida numa cadeia lógica causal,
que se inicia com o direito subjetivo, transita pela pretensão e deságua
na ação (material).10
A pretensão material é concebida a partir da noção de direito
subjetivo. Quando a vantagem encerrada pelo direito deixa de ser
atendida, seu titular investe-se do poder de exigi-la, residindo justa­mente
nesse poder, ou faculdade, a pretensão material. A pretensão não cons­titui
um novo direito subjetivo, porém um estado especial, uma virtualidade
da qual passa a se revestir aquele direito.11 O exercício da pretensão
reclama do titular o desempenho de um certo comportamento ativo
— exigir de alguém uma determinada pretensão —, mas que ainda não
representa o agir para satisfação.12
Uma vez frustrada a tentativa de exercer a pretensão, nasce do
direito outra potencialidade: a ação. A ação, no plano do direito material,
consiste na faculdade do titular de reagir contra sua violação ou ameaça
de violação.13 Trata-se, então, do “agir para a realização do direito”,
inde­pendentemente da vontade ou do comportamento do devedor.14

8
OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Direito material, processo e tutela jurisdicional. In: MACHADO, Fábio
Cardoso; AMARAL, Guilherme Rizzo (Org.). Polêmica sobre a ação: a tutela jurisdicional na perspectiva das
relações entre direito e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 295.
9
MITIDIERO, Daniel Francisco. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Memória Jurídica, 2004. t.
I, p. 110.
10
MITIDIERO, Daniel Francisco. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Memória Jurídica, 2004. t.
I, p. 96.
11
MITIDIERO, Daniel Francisco. Elementos para uma teoria contemporânea do processo civil brasileiro. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 112.
12
MITIDIERO, Daniel Francisco. Elementos para uma teoria contemporânea do processo civil brasileiro. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 113.
13
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Direito material e processo. In: MACHADO, Fábio Cardoso; AMARAL, Guilherme
Rizzo (Org.). Polêmica sobre a ação: a tutela jurisdicional na perspectiva das relações entre direito e processo.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 61.
14
MITIDIERO, Daniel Francisco. Elementos para uma teoria contemporânea do processo civil brasileiro. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 113.

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A teoria da ação de direito material, cumpre assinalar, reconhece a


existência de situações jurídicas subjetivas que não obedecem à estrutura
da referida cadeia lógica. Os direitos potestativos, por exemplo, não ori­
ginam pretensão, embora deles possa nascer ação de direito material.
Também inexistiria, segundo a correspondente doutrina, ação de direito
material à condenação.15
Segundo essa teoria dualista da ação, a teoria civilista não estava
errada, pois aquilo que se compreende por teoria civilista da ação cons­
tituiria uma correta representação da ação de direito material, em lugar de uma
compreensão equivocada da ação processual.16 Assim, a teoria dualista
reconhece valia à noção da ação de direito material, vislum­brando nessa
“ação” — entre aspas, para distingui-la da abstrata ação processual —
um elemento prévio e indispensável, no plano do direito material, para
que seja proferida uma sentença de procedência. Concebe, portanto,
duas ações, uma de direito material e outra de direito processual,
justificando, assim, o adjetivo “dualista” que lhe é aposto.17 Segundo essa
concepção a ação de direito material não se confunde com o direito à
tutela processual. Um e outro operam em planos distintos.18 Na atuali­
dade, com a proibição quase completa da autotutela, exerce-se ação de
direito material, segundo tais autores, invocando essa ação em juízo, ou
seja, na ação processual.19
A doutrina da teoria dualista concebe uma ligação entre as eficácias
expressas nas sentenças de procedência e as ações de direito material
que o processo recebe como um pressuposto. A pretensa autonomia
do direito processual não lhe permite transformar a seu bel prazer as
realidades do direito material, como se fosse possível, por exemplo,
transformar uma ação de divórcio — de notória natureza constitutiva —
em ação executiva ou mandamental.20 O processo, ao receber os direitos

15
MITIDIERO, Daniel Francisco. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Memória Jurídica, 2004. t.
I, p. 102.
16
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Direito material e processo. In: MACHADO, Fábio Cardoso; AMARAL, Guilherme
Rizzo (Org.). Polêmica sobre a ação: a tutela jurisdicional na perspectiva das relações entre direito e processo.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 70.
17
ZANETI JÚNIOR, Hermes. Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2007. p. 210.
18
MITIDIERO, Daniel Francisco. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Memória Jurídica, 2004. t.
I, p. 93.
19
MITIDIERO, Daniel Francisco. Elementos para uma teoria contemporânea do processo civil brasileiro. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 113.
20
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Direito material e processo. In: MACHADO, Fábio Cardoso; AMARAL, Guilherme
Rizzo (Org.). Polêmica sobre a ação: a tutela jurisdicional na perspectiva das relações entre direito e processo.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 68.

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subjetivos, as pretensões e as ações de direito material, está obrigado a


tratar essas posições segundo as eficácias específicas dadas pelo direito
material.21
A teoria dualista, criticando a concepção contrária que nega toda
utilidade à ideia da ação de direito material, acusa-a de não poder explicar
como nascem as diferentes eficácias das sentenças e como elas se distin­
guem entre si. Enfim: as tutelas processuais não poderiam se diferenciar
por outro elemento que não uma faculdade do direito material.22 Daí
a defesa do caráter indispensável da ação material.

1.1.2 Segundo modelo: a “tutela” como polo metodológico e a auto­


nomia dos valores do processo
A doutrina que nega a formulação baseada na ação de direito
material considera que ela não identifica adequadamente a relação entre
o direito material e o processo. Essa doutrina observa que somente existe
ação de direito material naqueles raros casos remanescentes no sistema
em que o titular pode agir para a satisfação do direito sem a necessidade
do processo.23 Fora daí a ação de direito material seria inteiramente
supérflua, já que não poderia ser exercida de maneira autônoma. Sob
outro ângulo a crítica endereçada à teoria da ação de direito material
entende-a fadada ao fracasso por não levar em consideração a natureza
incerta do direito litigioso discutido no processo. A ação de direito
material, como parte do direito material deduzido em juízo, estaria
submetida a essa mesma incerteza, não podendo assim condicionar por
si só o futuro conteúdo da sentença. Aponta-se, além disso, que a teoria
dualista tem feição privatística, uma vez que coloca acento demasiado
no plano do direito material, desconsiderando os valores próprios do
plano processual e a força imperativa da sentença judicial.24 Indica-se,
por fim, a inadequação do conceito de ação de direito material para
explicitar o que ocorre quando interesses difusos são discutidos em juízo,
eis que a própria categoria do direito subjetivo parece pouco apropriada

21
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2. ed. rev. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1998. p. 180.
22
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Direito material e processo. In: MACHADO, Fábio Cardoso; AMARAL, Guilherme
Rizzo (Org.). Polêmica sobre a ação: a tutela jurisdicional na perspectiva das relações entre direito e processo.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 73.
23
AMARAL, Guilherme Rizzo. Cumprimento e execução da sentença sob a ótica do formalismo-valorativo. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 106.
24
OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Teoria e prática da tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
p. 50.

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Colaboração na concretização da decisão da causa 125

ao tratamento da questão. Enquanto se pode afirmar que todos têm


direito à tutela de interesses difusos, ninguém individualmente conside­
rado teria pretensão ou ação de direito material contra o ofensor.25
Em síntese, não haveria como conceber uma vinculação prévia da
tutela processual a uma tutela material anterior. Uma das razões para
tanto é que o direito material ingressa no processo como uma hipótese
(in status assertionis). Frente à incerteza desse direito afirmado, não faria
sentido, notadamente em sociedades complexas, pressupor uma ação
material determinada antes do início do processo. Aliás, afirma-se também
que de uma mesma situação de direito material podem surgir, plas­
ticamente, várias tutelas processuais possíveis, traduzindo-se em diversas
eficácias voltadas para a efetividade da tutela.
A crítica à teoria dualista, acima desenhada, aborda aspectos
bastante relevantes sobre a relação entre direito e processo. Embora seja
verdade que a tutela prestada pelo juiz está apoiada no plano do direito
material, é preciso admitir que seus efeitos em bom número de casos
são diversos dos contidos no plano substancial, pois a decisão judicial
é marcada pelos atributos da soberania, que corresponde à própria
auto­nomia do direito processual em face do direito material.26 Evidente­
mente, o direito material exerce grande influência sobre a forma de tutela
processual. Existe, invariavelmente, uma relação de adequação entre
o modo como é (ou pode ser) efetivado o direito material e os meios
empregados pelo processo.27 Todavia, a escolha da tutela processual não
é definida, exclusivamente, pelo conteúdo do direito material, havendo
fatores próprios do plano processual que interferem na questão.28
Assim, além dos valores em jogo, do direito material envolvido e do caso
concreto, outros elementos — a exemplo dos princípios da efetividade
e da segurança e do princípio da demanda, ou dispositivo em sentido

25
MARINONI, Luiz Guilherme. Da ação abstrata e uniforme à ação adequada à tutela dos direitos. In: MACHADO,
Fábio Cardoso; AMARAL, Guilherme Rizzo (Org.). Polêmica sobre a ação: a tutela jurisdicional na perspectiva
das relações entre direito e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 248.
26
OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Teoria e prática da tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p.
89-90.
27
OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Direito material, processo e tutela jurisdicional. In: MACHADO, Fábio
Cardoso; AMARAL, Guilherme Rizzo (Org.). Polêmica sobre a ação: a tutela jurisdicional na perspectiva das
relações entre direito e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 310. Conforme acentua Michele
Taruffo, a conexão entre situações de direito material e técnicas de tutela está na base de um princípio de
adequação, que vincula a atuação executiva do Poder Judiciário às necessidades específicas do caso concreto
(A atuação executiva dos direitos: perfis comparatísticos. Tradução de Teresa Celina de Arruda Alvim Pinto.
Revista de Processo, São Paulo, v. 15, n. 59, p. 78, jul./set. 1990).
28
OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Teoria e prática da tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
p. 137.

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material — incidem na escolha das diferentes formas e técnicas de tutela


no plano processual.29
O processo apresenta caráter publicístico e força própria na
conformação das tutelas jurisdicionais. A situação de direito material
afir­mada no processo é um dado relevante para a solução jurisdicional,
porém não a condiciona inteiramente. Aceitar de forma incondicional a
teoria da ação de direito material, como principal núcleo metodológico
da questão, significa, sob certo aspecto, colocar em segundo plano o valor
inerente do processo, que projeta seus efeitos sobre as situações jurí­­dicas
materiais, por força da soberania do Estado e da legitimação dada pelo
procedi­ mento em contraditório.30 Um exemplo claro reside na tutela
con­­denatória, que propicia a realização, ex intervallo, da atividade de
con­­cretização da decisão. Tal espécie de tutela relacionada às obrigações
pecuniárias nasce de um valor caracteristicamente processual, o prin­cí­pio
da segurança, que inspira a adoção dessa solução em virtude do fato de
que a expropriação incide sobre bens que estão colocados legitimamente
no patrimônio do devedor. Desta forma, o princípio da segurança reclama
a estrutu­ração do processo em bases que revistam de maior formalidade
a atividade expropriatória, em atenção ao direito fundamental de defesa
do executado. Poderia o emprego da tutela executiva lato sensu justificar-
se, nesse cenário, por considerações restritas ao plano do direito material,
mas cede passo pela consideração dos valores do processo.31 Mesmo um
autor firmemente comprometido com a teoria dualista, como Ovídio
Baptista da Silva, ao negar a existência da ação de direito material con­
denatória, ao mesmo tempo que admite a sentença condenatória como
categoria própria, debitando-a a uma criação puramente processual,32 acaba
por reconhecer em alguma medida essa realidade.
Em síntese, parece correto afirmar que a ação e a pretensão de
direito material, conceitos outrora relevantes e de considerável valia,
não são mais suficientes para explicar a relação entre direito e processo,
mostrando-se mais adequado trabalhar com o conceito de “tutela”, que
melhor se ajusta aos tempos atuais de constitucionalização do processo
29
AMARAL, Guilherme Rizzo. Cumprimento e execução da sentença sob a ótica do formalismo-valorativo. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 111.
30
ZANETI JÚNIOR, Hermes. Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2007. p. 216.
31
OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Teoria e prática da tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p.
172.
32
MACHADO, Fábio Cardoso. Jurisdição, condenação e tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
p. 172.

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civil e de atuação dos direitos fundamentais.33 Verifica-se, na realidade,


uma confluência de fatores materiais e processuais no processo. A tutela
dispensada no processo leva em conta tanto os aspectos processuais,
que convergem no pedido imediato, como os aspectos substanciais, con­
densados no pedido mediato (bem da vida), podendo-se daí concluir que
a decisão judicial que aprecia o mérito une o direito processual e o material.
Nessa decisão — na sentença ou no provimento antecipatório da tutela
— reside a vinculação mais próxima entre esses planos que interagem
entre si, vinculação que “possibilita a transição do processo no domínio
da vida, do direito material”.34
A despeito da controvérsia existente sobre o valor da ação de
direito material para explicitar as relações entre direito e processo,
uma compreensão que se generaliza é a de que o direito material também
contempla formas de tutela.35 As tutelas prestadas pelas normas de direito
material compõem, neste sentido, “tutelas normativas”, e assim sucedem
à inobservância das normas que protegem direitos subjetivos.36 A ideia
de tutela parece consistir, portanto, num valor capaz de permitir, ao menos
num certo nível, o diálogo entre as duas concepções teóricas referenciadas neste
capítulo. A diferença que persiste entre essas teorias localiza-se, sobre­
tudo, na ênfase dada a cada um dos planos (material e processual). Os autores
contrários à ideia da ação material atribuem às tutelas materiais um
caráter abstrato, negando que elas integrem o “núcleo fisionômico” dos
direitos subjetivos, por serem elementos exteriores à sua estrutura.37 Tais
processualistas reconhecem, no entanto, a utilidade da identificação
das tutelas de direitos no plano substancial, vendo nessa formulação
uma “valiosa contribuição”. E admitem que essa teoria dá um passo im­
portante ao preservar a autonomia das tutelas processuais e distingui-las
como técnicas ou instrumentos para concretizar as tutelas dos direitos.
Faltaria, unicamente, reconhecer a “potencialidade criativa” do processo,

33
OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Teoria e prática da tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 61.
Em sua crítica à teoria que prestigia a noção da “tutela”, Ovídio Baptista da Silva acentua o caráter “perigoso
de tal concepção, que reduziria o processo a pira técnica, “instrumento vazio constituída por ‘formas’ de
tutela” (Curso de processo civil. 6. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Forense, 2008. v. 1, t. II, p. 46-47).
34
OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Teoria e prática da tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
p. 95-96.
35
OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Teoria e prática da tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
p. 113.
36
OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Direito material, processo e tutela jurisdicional. In: MACHADO, Fábio
Cardoso; AMARAL, Guilherme Rizzo (Org.). Polêmica sobre a ação: a tutela jurisdicional na perspectiva das
relações entre direito e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 288.
37
Idem, ibidem.

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consubstanciada na eficácia substancial do processo, que o transforma


em instrumento “potencializador do direito material”.38 De todo modo,
para essa doutrina a tônica continuaria residindo, como já era sua concepção
anterior, no plano do processo, haja vista que a tutela de direito material
estaria pre­vista em abstrato no plano material e apenas seria con­cre­­­ti­
zada depois de exer­ cida a função jurisdicional, retornando então de
forma qualificada à esfera do direito material como uma autêntica tutela
de direitos.39

1.2 Tutelas jurídicas no plano do direito material


A organização das tutelas existentes no plano do direito material
e do direito processual não tem caráter excludente. Trata-se de classi­
ficações essencialmente complementares, na medida em que as formas
de tutela consideradas nesses dois planos interagem entre si.40 Mostra-se
conveniente, portanto, apresentar uma exposição sucinta das tutelas que
podem ser identificadas no plano do direito material.
A tutela certificatória, como denota sua denominação, relaciona-se
à instituição de um estado de certeza sobre uma determinada relação
ou situação jurídica. A tutela modificatória diz respeito à modificação de
uma dada relação jurídica. Tal tutela está associada, geralmente, à titula­­
ri­dade de direitos potestativos (formativos). À guisa de exemplo, o art. 138
do Código Civil prevê a possibilidade de anular os negócios jurídicos,
quando as declarações de vontade emanarem de erro. Ao investir o
sujeito de um direito potestativo de anulação, a lei civil estrutura no plano
material tutela modificativa de situação jurídica.41
A tutela inibitória é a tutela de natureza preventiva destinada a
impedir a prática, a repetição ou a continuação do ilícito.42 Seu pressuposto

38
ZANETI JÚNIOR, Hermes. Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2007. p. 217.
39
OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Teoria e prática da tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 106.
Para os adeptos da teoria dualista, por outro lado, a convivência com as tutelas substanciais é relativamente
confortável, pois sempre defenderam a associação das eficácias processuais a elementos do direito material.
A contribuição das tutelas materiais estaria na maior flexibilidade e atualidade do conceito, que permite
estruturar uma relação menos esquemática entre direito e processo do que ocorre com a ação material. Para
quem defende a teoria dualista da ação, o acento metodológico permanece sempre mais no plano material
do que no processual.
40
MITIDIERO, Daniel Francisco. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2009. p. 144.
41
OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Direito material, processo e tutela jurisdicional. In: MACHADO, Fábio
Cardoso; AMARAL, Guilherme Rizzo (Org.). Polêmica sobre a ação: a tutela jurisdicional na perspectiva das
relações entre direito e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 289.
42
MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 2. ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008. p. 192.

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Colaboração na concretização da decisão da causa 129

é a probabilidade do ilícito, não do dano, do qual, aliás, sequer se merece


cogitar no âmbito das providências de natureza inibitória.43 Essa espécie
de tutela encontrou pronunciadas dificuldades na sua afirmação no
plano do direito material. O obstáculo ao seu reconhecimento deveu-se,
fundamentalmente, à associação historicamente registrada entre ilícito
civil e dano, por força da qual só haveria tutela destinada a reparar o
dano, não para inibir ou remover o ilícito que (ainda) não o causou.44 A
ação inibitória é uma consequência do novo perfil do Estado e das novas
situações de direito material presentes na vida cotidiana. Percebe-se
a necessidade de oferecer uma real proteção preventiva aos direitos e,
sobretudo, aos direitos de conteúdo não patrimonial.45 São expressivos
os exemplos de tutela inibitória, inclusive no plano constitucional. A
Constituição, no art. 5º, inc. X, ao dispor serem invioláveis a intimidade,
a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, concebe tutela inibitória
aos titulares desses direitos;46 o art. 12 do Código Civil, ao investir a pessoa
natural do poder de exigir que cesse a ameaça ou a lesão a direito de per­
sonalidade, institui típica tutela inibitória no plano do direito material.47
A tutela do adimplemento é voltada a proporcionar ao titular do direito
obrigacional o bem ou a utilidade econômica que constitui objeto da
obrigação. Tem lugar, na forma específica, quando a obrigação, embora
inadimplida, ainda pode ser cumprida, sendo tal cumprimento do inte­
resse do titular do direito. Assim, o inadimplemento ou adimplemento
imperfeito são pressupostos da tutela específica. Atua igualmente no
caso de cumprimento imperfeito ou defeituoso, caso em que o credor
pode exigir que o dever atue no sentido da correção da imperfeição ou
do feito.48 Quando a obrigação não puder mais ser cumprida a tutela
pode ser prestada pelo equivalente ao valor da prestação. Não se confunde,
todavia, a tutela aqui mencionada com a tutela do equivalente ao valor

43
MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 2. ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008. p. 195.
44
MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 2. ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008. p. 123.
45
MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 2. ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008. p. 193.
46
MARINONI, Luiz Guilherme. Da ação abstrata e uniforme à ação adequada à tutela dos direitos. In: MACHADO,
Fábio Cardoso; AMARAL, Guilherme Rizzo (Org.). Polêmica sobre a ação: a tutela jurisdicional na perspectiva
das relações entre direito e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 213.
47
OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Direito material, processo e tutela jurisdicional. In: MACHADO, Fábio
Cardoso; AMARAL, Guilherme Rizzo (Org.). Polêmica sobre a ação: a tutela jurisdicional na perspectiva das
relações entre direito e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 288.
48
MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 2. ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008. p. 283.

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130 Lívio Goellner Goron

do dano, já que a primeira atende à expressão econômica da obrigação


inadimplida, não do prejuízo eventualmente decorrente do inadimple­
mento (que poderá ser objeto, em sendo o caso, de tutela ressarcitória).49
A tutela específica do adimplemento prescinde do requisito culpa. O
credor tem direito à entrega do bem ou ao cumprimento da prestação
devida quer tenha ocorrido culpa ou não do inadimplente. Enquanto
possível e pretendida a prestação obrigacional, a valoração da conduta
mostra-se irrelevante para efeitos de proteção do credor.50
A tutela de remoção do ilícito tem por objetivo afastar uma situação
de contrariedade ao direito ou remover os efeitos concretos dela decor­
rentes. Aparta-se, nesse sentido, da tutela inibitória, que, tendo natu­
reza genuinamente preventiva, visa a inibir a prática, a repetição ou a
continuação de um ilícito.51 Trata-se de uma tutela repressiva em relação
ao ilícito, tendo como pressuposto um ilícito capaz de deixar efeitos
concretos permanentes. Não se dirige contra um agir continuado, e
sim contra uma ação já exaurida cujos efeitos se prolongam no tempo,
deixando aberta a possibilidade de provocar danos.52 Ao remover os
efeitos do ilícito, afasta-se a probabilidade de que os mesmos venham
futuramente a causar dano.
A tutela ressarcitória supõe dano causado por ato contrário a direito,
e sua função consiste em restabelecer a situação de fato que deveria existir
caso o dano não houvesse ocorrido. Essa modalidade de tutela considera
a presença do dano e também da responsabilidade de seu causador.53 O
ressarcimento pode dar-se na forma específica ou em pecúnia. A tutela
de ressarcimento deve operar, preferencialmente, na forma específica.
Na prática a tutela ressarcitória específica sempre cedeu lugar à inde­
nização pecuniária. Isto se deveu, em primeiro lugar, a uma persistente
tendência de “monetarização” dos direitos, em função da qual se passou
a considerar a reparação monetária como suficiente para compensar
a lesão (tal afirmação, diga-se de passagem, passou de contestável a

49
MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil: comentado artigo por artigo. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 426.
50
MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 2. ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008. p. 288.
51
MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil: comentado artigo por artigo. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 425.
52
MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 2. ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008. p. 205.
53
MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 2. ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008. p. 310, 323.

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Colaboração na concretização da decisão da causa 131

inadmissível com a emergência de novos direitos inteiramente destituídos


de patrimonialidade). Por outro lado, a legislação processual concebeu
uma forma de execução inteiramente inadequada à prestação de tutela
no plano do processo, determinando que o direito à reparação, quando
trazido para o interior do processo, fosse transfigurado em direito à
indenização em dinheiro.54 Em realidade, a tutela ressarcitória específica
já era concebida pelo direito material;55 faltava-lhe técnica adequada e
dotada de real efetividade para sua concretização, atualmente encontrada
no âmbito do art. 461 do CPC.

1.3 Tutelas jurídicas no plano do direito processual


As tutelas existentes no plano do direito processual56 têm feição
própria. Nenhum dos verbos característicos da tutela jurisdicional
— declarar, constituir, mandar e executar — apresenta relevância no
plano do direito material, sendo inerentes ao processo e ao império
da atividade jurisdicional.57 O exame das diferentes tutelas processuais
permite reconhecer, em cada uma, um princípio/valor preponderante,
dado o binômio entre efetividade e segurança que subjaz à dinâmica do
sistema processual. Assim, as tutelas declaratória, constitutiva e condenatória
correspondem à predominância do princípio da segurança, ao passo que
as tutelas mandamental e executiva (lato sensu) remetem a um predomínio do
princípio da efetividade.58
A tutela declaratória visa à obtenção de certeza jurídica.59 Sua função
consiste em tornar certa, como eficácia principal, uma determinada
54
MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 2. ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008. p. 310.
55
A Constituição, no art. 5º, inc. X, ao prever o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de
sua violação, estrutura a tutela ressarcitória pelo equivalente. Da mesma forma, assegurando no mesmo art.
5º, inc. X, o direito de resposta, proporcional ao agravo, a Constituição está a instituir a tutela ressarcitória
na forma específica (MARINONI, Luiz Guilherme. Da ação abstrata e uniforme à ação adequada à tutela dos
direitos. In: MACHADO, Fábio Cardoso; AMARAL, Guilherme Rizzo (Org.). Polêmica sobre a ação: a tutela
jurisdicional na perspectiva das relações entre direito e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
p. 213).
56
Importa registrar a inadequação da denominação de “técnicas” às eficácias das decisões processuais. Com
efeito, a expressão “tutela” é a mais apropriada para representar o fenômeno, permitindo assim, distinguir
entre as diferentes tutelas de direito processual — declaratória, mandamental, executiva, etc.. Reserva-se a
designação de “técnicas” aos instrumentos — aprioristicamente neutros — de que se serve o sistema processual
para alcançar os fins dessas tutelas.
57
OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Direito material, processo e tutela jurisdicional. In: MACHADO, Fábio
Cardoso; AMARAL, Guilherme Rizzo (Org.). Polêmica sobre a ação: a tutela jurisdicional na perspectiva das
relações entre direito e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 293.
58
OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Teoria e prática da tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
p. 140.
59
AMARAL, Guilherme Rizzo. Cumprimento e execução da sentença sob a ótica do formalismo-valorativo. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 115.

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132 Lívio Goellner Goron

situação jurídica de direito material, sem condenar, mandar, constituir


ou executar, ainda que desse preceito declaratório também emane,
secundariamente, uma eficácia mandamental que determina o respeito
à situação declarada.60 A tutela declaratória não se presta para declarar
a invalidade de ato ou de negócio jurídico, eis que tal questão não con­
cerne ao plano da existência (própria da declaração), e sim da validade.
As sentenças que decretam invalidades, não obstante dotadas de efeitos
retroativos, são nitidamente constitutivas. A tutela constitutiva opera no
plano jurídico a modificação de uma situação jurídica, compreendendo-
se “modificação” em sentido lato, isto é, como a criação, extinção ou alte­
ração de situações jurídicas.61 É tradicional seu atrelamento à categoria
dos direitos potestativos ou formativos,62 definindo-se como constitutiva a
tutela que atua, processualmente, os efeitos dessas posições.
A tutela condenatória opera, além da declaração da existência de uma
relação jurídica, a aplicação de uma sanção,63 decorrente de um juízo de
valor que coloca o devedor em posição de desvantagem, investindo o
autor do poder de submetê-lo a uma execução forçada perante o juízo.64
A subsistência da tutela condenatória no sistema reflete um fenômeno
tipicamente processual, gerando perplexidade para aquela parcela da
doutrina que acolhe a ação de direito material como elemento de conexão
entre direito material e processo.
Para aqueles que, seguindo Pontes de Miranda, pressupõem a
noção da ação de direito material, a sentença condenatória, embora
constitua uma realidade processual, não corresponde, no plano do
direito material, a nenhuma ação “condenatória” do autor da demanda;
seria uma pretensão que não chega a se “inflamar em ação”.65 Estar-se-
ia, em resumo, diante de uma ação de direito material preponderan­te­
mente executiva, porém “mutilada”, tendo em vista que não proporciona
o exercício direto da atividade executiva em seguimento à sentença.66
60
OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Teoria e prática da tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
p. 146.
61
OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Teoria e prática da tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
p. 167.
62
AMARAL, Guilherme Rizzo. Cumprimento e execução da sentença sob a ótica do formalismo-valorativo. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 124.
63
Esta a definição de Liebman (MACHADO, Fábio Cardoso. Jurisdição, condenação e tutela jurisdicional. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 155).
64
AMARAL, Guilherme Rizzo. Cumprimento e execução da sentença sob a ótica do formalismo-valorativo. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 126.
65
MITIDIERO, Daniel Francisco. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Memória Jurídica, 2004.
t. I, p. 102.
66
MITIDIERO, Daniel Francisco. Por uma nova teoria geral da ação: as orientações unitárias e a orientação dualista
da ação. Revista de Direito Processual Civil Gênesis, Curitiba, v. 7, n. 26, p. 711-734, out./dez. 2002. p. 685.

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Colaboração na concretização da decisão da causa 133

Para Ovídio Baptista da Silva, a sentença condenatória consiste numa


sentença parcial de mérito inserida no caminho procedimental de uma
ação de direito material executiva.67 A tutela condenatória caracteriza-se
por conservar uma “linha discriminativa” entre os patrimônios do autor
e do réu, determinando, assim, que o autor ainda encontre o “direito
real do condenado” a interpor-se entre ele e a satisfação de seu direito
judicialmente reconhecido.68 Tal pressuposto, aliado à prevalência, no
caso, do valor segurança, justifica do ponto de vista procedimental a
segre­gação da atividade executiva num processo autônomo ou numa fase
subsequente do procedimento. Não é possível dar execução imediata à
sentença, na medida em que ela não torna ilegítima, por si só, a presença
dos bens do patrimônio do réu.69
Por força das recentes reformas do CPC (Lei nº 11.232/2005)
o campo da tutela condenatória foi diminuído, tornando-se próprio
e exclusivo das chamadas obrigações pecuniárias. Essa limitação da
tutela condenatória ao âmbito indicado, para além do valor segurança,
atende ao valor da efetividade, por mostrar-se, em linha de princípio, a
mais adequada para extrair dinheiro do patrimônio do demandado.70
As alterações procedimentais do CPC, especialmente as contidas no
art. 475-J do Código, não eliminaram o binômio condenação-execução:
apenas simplificaram-no do ponto de vista formal. Foi eliminada a neces­
sidade de um novo processo, porém continuou dedicada à execução uma
fase própria e preservada, nessa seara, a tipicidade dos meios executivos.71
A tutela, em resumo, continua sendo condenatória,72 a despeito das
simplificações formais inseridas, mantendo-se prestigiado o princípio
processual da segurança.73 Assim, mais do que permitir a superação da
técnica de condenação,74 pode-se afirmar que as reformas reconduziram-
na ao seu espaço adequado dentro do sistema processual.

67
Direito material e processo. In: MACHADO, Fábio Cardoso; AMARAL, Guilherme Rizzo (Org.). Polêmica sobre
a ação: a tutela jurisdicional na perspectiva das relações entre direito e processo. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2006. p. 80.
68
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2. ed. rev. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1998. p. 17.
69
MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 2. ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008. p. 72.
70
OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Teoria e prática da tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 171.
71
AMARAL, Guilherme Rizzo. Cumprimento e execução da sentença sob a ótica do formalismo-valorativo. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 138.
72
Neste sentido MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 2. ed. rev. atual. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2008. p. 101.
73
OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Teoria e prática da tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 173.
74
MACHADO, Fábio Cardoso. Jurisdição, condenação e tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
p. 124.

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134 Lívio Goellner Goron

A doutrina, presa aos conceitos de uma jurisdição meramente


certificadora de direitos, tem dificuldade em clarificar as tutelas com
base na atividade que se realiza depois da sentença de procedência (ativi­
dade que fora considerada, por largo tempo, como “não jurisdicional”).75
Eis um dos fatores que explicam a dificuldade de visualização da tutela
mandamental pela doutrina majoritária do processo civil, dificuldade que
recém agora começa a ser transposta. A tutela mandamental define-se
pela ordem que é expedida pelo juiz, dirigindo-se em geral ao deman­
dado, para que cumpra voluntariamente o provimento judicial.76 Sua nota
essencial reside no caráter imperativo do mandamento contido na deci­
são.77 A tutela mandamental tem seu campo natural de incidência quan­
do o escopo é agir sobre a vontade da parte, e não sobre seu patri­­­mônio;
a essa forma de tutela corresponde o emprego de técnicas ou medidas
coercitivas, capazes de atuar sobre a vontade do réu, coagindo-o a cumprir
a decisão.78 O campo de abrangência dos provimentos mandamentais,
ao contrário do que supunham seus primeiros teóricos, ultrapassou o das
ordens dirigidas a órgãos estatais, incluindo-se entre seus destinatários
os particulares.79
A categoria das sentenças mandamentais foi buscada por Pontes
de Miranda na obra pioneira de Georg Kuttner (Urteilswirkungen
assuerhalb des Zivilprozesses), que concebeu, no princípio do século pas­
sado, as chamadas decisões ordenadoras (Anordnungsurteile), com o
sentido restrito de ordens que não eram dirigidas ao réu vencido, mas
a órgão ou autoridade estatal estranha ao processo, como efeito secun­
dário da sentença. A despeito da adesão da Golsdchmidt, a doutrina
das Anordnungsurteile teve vida efêmera e desapareceu das considerações
dos doutrinadores alemães contemporâneos. O conceito ressurgiu do
outro lado do Atlântico, trabalhado por Pontes de Miranda na 1ª edição
de seus Comentários ao Código de Processo Civil de 1939. Ali a ação

75
ZANETI JÚNIOR, Hermes. Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2007. p. 218-219; SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Jurisdição e execução na tradição romano-
canônica. 2. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 171.
76
AMARAL, Guilherme Rizzo. Cumprimento e execução da sentença sob a ótica do formalismo-valorativo. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 132.
77
MITIDIERO, Daniel Francisco. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Memória Jurídica, 2004.
t. I, p. 104-105.
78
OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Teoria e prática da tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
p. 183.
79
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de processo civil. 6. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Forense, 2008. v. 1,
t. II, p. 253-254.

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Colaboração na concretização da decisão da causa 135

mandamental recebeu acepção mais elástica, tendo como destinatários


quaisquer órgãos do Estado, pessoas físicas ou jurídicas.80
Embora superado o dogma da intangibilidade da vontade humana
associado ao Estado Liberal, que invalidou por longo tempo a tutela
específica das obrigações de fazer e de não fazer — sendo acolhidas,
na atualidade, as medidas coativas que incidem sobre a vontade do
indivíduo —, a tutela mandamental ainda encontra certos limites.
Seguem tidas por incoercíveis, v.g., as obrigações que envolvem atividade
cria­tiva do devedor, caso em que a ausência de cumprimento voluntário
da decisão determina a conversão em perdas e danos.81
Por fim, a abordagem da tutela executiva lato sensu demanda um
exame inicial do que sejam atos executórios. A atividade executiva é de­
senvolvida por meio de sub-rogação. Nos atos sub-rogatórios o Estado-juiz
substitui-se à vontade do réu, assegurando a satisfação do deman­dante de
maneira forçada. Essencial ao conceito é que tal satisfação opera-se sem a
participação do réu, que seria originalmente necessária.82 A tônica da distinção
entre a tutela mandamental e a executiva reside na constatação de que a
execução é ato privado da parte, sendo empreendida substitutivamente
pelo juízo, em lugar da parte que deveria tê-lo realizado. A tutela man­
damental corresponde à atuação do juiz naquilo que somente ele, na sua
estatalidade, está capacitado a realizar.83
Realiza-se atividade executiva tanto na execução autônoma, cuja
instauração é propiciada pela sentença condenatória, quando na execu­
ção que se segue diretamente às sentenças ditas executivas lato sensu,
na mesma fase procedimental. Evidentemente, há diferença entre a
ati­
vidade executiva desenvolvida na execução relativa às obrigações
pecuniárias e aquela relativa à tutela dos deveres de fazer e não fazer e
dos deveres de entregar ou restituir coisa. Segundo bem adverte Daniel
Mitidiero, entre as “ações” condenatórias e as executivas lato sensu a dis­
tinção não é meramente procedimental. Na primeira, o órgão judicial
autoriza a intromissão no patrimônio alheio, dele retirando o que se
encontrava de forma legítima, para satisfação do requerente; na execução
80
MOREIRA, José Carlos Barbosa. A sentença mandamental: da Alemanha ao Brasil. In: MOREIRA, José Carlos
Barbosa. Temas de direito processual: sétima série. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 54-59.
81
AMARAL, Guilherme Rizzo. Cumprimento e execução da sentença sob a ótica do formalismo-valorativo. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 146-147.
82
AMARAL, Guilherme Rizzo. Cumprimento e execução da sentença sob a ótica do formalismo-valorativo. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 133-134.
83
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de processo civil. 6. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Forense, 2008. v. 1,
t. II, p. 232.

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136 Lívio Goellner Goron

“real” o Estado busca no patrimônio do réu bem que ali se encontra em


contrariedade ao direito.84 Nos dois casos, todavia, verifica-se sub-rogação
e, portanto, execução.
A locução tutela executiva lato sensu, compreendida como modal­i­
dade de tutela processual emanada da decisão jurisdicional, corresponde
apenas à proteção proporcionada pelas sentenças executivas previstas
pelos arts. 461 e 461-A do Código de Processo Civil,85 que integram um
processo misto ou sincrético, a reunir conhecimento e execução sem a
necessidade de instauração de uma fase posterior para sua realização
prática. Como fruto das recentes reformas do CPC, tem-se que, por força
do art. 475-N, inciso I do Código, a tutela executiva lato sensu pode ser
proporcionada por uma sentença declaratória (embora não meramente
declaratória). Tal sentença, para constituir-se em “título” hábil para
desencadear a atividade sub-rogativa, deve conter todos os elementos
característicos da obrigação e do inadimplemento, devendo a matéria
ter sido suscitada e discutida pelas partes (contraditória). Não se admite a
tal eficácia no caso da declaração ex officio pelo juiz.86
A disciplina oferecida pelos arts. 461 e 461-A do CPC foi respon­
sável por modificar o sistema processual brasileiro no que tange à rela­
ção entre pedido e provimento jurisdicional, a ponto de falar-se numa
instabilidade (virtuosa) da decisão que corresponde a tais tutelas.87 Com
efeito, a premissa segundo a qual as sentenças podem ser rigidamente
classificadas quanto a suas eficácias de maneira imutável, cede terre­
no diante da constatação de que, com base no art. 461 do CPC, está o
juiz desvinculado da forma e das técnicas de tutela eventualmente reque­
ridas pelo autor, podendo variá-las, inclusive, quando da concretização
da decisão.
Tal circunstância leva a pensar que, especialmente no campo das
tutelas executiva e mandamental — especialmente abrangido pelos arts.
461 e 461-A — o princípio de adstrição da sentença ao pedido merece
ser repensado, liberando-se de sua adesão ao pedido imediato (i. é, ao
provimento jurisdicional) para reivindicar uma congruência da decisão

84
Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Memória Jurídica, 2004. t. I, p. 106.
85
Em sentido diverso, restringindo a tutela executiva lato sensu às obrigações de dar coisa e deveres de restituir
coisa, cf. OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Teoria e prática da tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Forense,
2008. p. 191.
86
OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Teoria e prática da tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
p. 152.
87
AMARAL, Guilherme Rizzo. Cumprimento e execução da sentença sob a ótica do formalismo-valorativo. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 127-128.

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Colaboração na concretização da decisão da causa 137

com o pedido mediato do autor, ou seja, com o bem da vida por ele buscado
no processo. Desta forma, “se o autor postula a entrega de um objeto,
um fazer ou um não fazer por parte do réu, desinteressa se pediu man­
damento ou execução, pois a técnica de tutela empregada será aquela
mais adequada para o alcance do bem da vida — objeto, ou fazer ou
um não fazer — ao demandante. O juiz estará adstrito, assim, ao pedido
mediato, mas não à técnica de tutela jurisdicional, que, como manifes­tação
do poder estatal, encontra limites nas normas aplicáveis ao processo (…)
e não no pedido imediato — ou, diríamos mais coerentemente, nas
sugestões de técnicas de tutela — feitas pelo autor.”88 Acrescente-se, de
forma oportuna, que o sistema admite, eventualmente, o desligamento
da tutela até mesmo do próprio pedido mediato do autor, como ocorre, por
exemplo, na hipótese de conversão do pedido de tutela específica em
perdas e danos.

2 A atividade de concretização da decisão da causa


2.1 A “pessoalização” dos direitos, a universalização da sentença
condenatória e sua superação
A “pessoalização” dos direitos reais representa uma alteração de
paradigma no âmbito da ciência jurídica.89 Trata-se de um fenômeno
de enorme repercussão que, apesar de vinculado a certas circunstâncias
históricas e ideológicas, já inteiramente desaparecidas, ainda imprime
seus efeitos sobre o direito processual civil contemporâneo. Esse fenô­
meno da “pessoalização” dos direitos subjetivos liga-se, ademais, à uni­
versalização da sentença condenatória, que passou a ser concebida como
forma de tutela por excelência oferecida pelo sistema processual civil
a todos os direitos cuja satisfação reclama uma atividade material do
órgão judiciário, não se contentando com a produção de efeitos
simplesmente “jurídicos”.
Segundo faz notar Ovídio Baptista da Silva, a universalização da
sentença condenatória é obra do processo comum medieval,90 resultante
do trabalho dos compiladores que, desde o plano do direito material,

88
AMARAL, Guilherme Rizzo. Cumprimento e execução da sentença sob a ótica do formalismo-valorativo. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 137.
89
Paradigmas, na acepção de Thomas Kuhn — referenciada por Ovídio Baptista da Silva — constituem-se em
pressupostos ou premissas de construção de uma concepção científica, permitindo-a estruturar-se como ciência
“normal”, em oposição a uma “ciência revolucionária” (Processo e ideologia: o paradigma racionalista. Rio de
Janeiro: Forense, 2004. p. 30).
90
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Processo e ideologia: o paradigma racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
p. 132-133.

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dando curso a tendência que já se esboçava no direito romano tardio,91


agregaram às tradicionais fontes romanas das obrigações — o delito e o
contrato — a classe das “obrigações legais”, nascendo daí a concepção
de que os vínculos obrigacionais podem ser diretamente emanados da
lei. Tal fenômeno de “privatização” reduziu todas as relações jurídicas
das quais decorrem deveres a relações de “débito-crédito”. Ampliado
o âmbito das obrigações, operou-se o correspondente alargamento, no
âmbito processual, da actio romana, com a consequência de que a pro­
teção jurisdicional assegurada a todo dever jurídico devesse conduzir,
necessariamente, a uma condenação. Generalizou-se, assim, desde o
período medieval, a equação obligatio-actio-condemnatio; o procedimento
da actio, que no ordo judiorum privatorum fora direcionado para a tutela
das relações obrigacionais, de natureza estritamente privada,92 acabou
transportado ao moderno direito processual com um escopo mais amplo,
disso resultando a universalização da sentença condenatória e a supres­
são da tutela interdital93 (efeitos amplamente vísíveis no processo civil
brasileiro contemporâneo).
Como a actio não compreendida no seu interior a atividade exe­
cutiva, limitando-se ao escopo da cognição dos fatos e do direito,94 o
procedimento que haveria de resultar desse “resgate” outro não poderia
ser que um processo puramente cognitivo, reservando-se as atividades
de execução para outro processo, dotado de autonomia; em outras pala­
vras, aí estava lançada a base do “Processo de Conhecimento”, tal como
concebido pelo movimento processualista. Em Bernhard Winsdscheid
teve-se a sistematização e decisiva inserção, no período moderno, dessa
doutrina da “pessoalização dos direitos reais”, advinda do processo
medieval.
A compreensão destes fatos poderia ter levado os processualistas
a identificar o anacronismo da generalização da tutela condenatória,
propiciando sua superação. A tardança em assim proceder — no Brasil,

91
MITIDIERO, Daniel. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Memória Jurídica, 2004. t. I, p. 34.
92
Ovídio Baptista da Silva assim distingue entre a actio e os interdicta: “havia em direito romano dois institutos
de proteção e defesa dos direitos, capazes de ser invocados perante os magistrados: a actio e os interdicta
(…) tidos estes, porém, especialmente os interditos, como providências de natureza administrativa, exercidos
pelo praetor romano, distintas da verdadeira jurisdição” (Jurisdição e execução na tradição romano-canônica.
2. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 25).
93
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Processo e ideologia: o paradigma racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
p. 132-133.
94
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2. ed. rev. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1998. p. 24.

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a tendência só começou a ser revertida com as reformas processuais


dos anos 1990 — deveu-se, em boa medida, ao domínio do paradigma
iluminista na ciência processual, que levou à perda do sentido histórico
dos institutos do processo.95 Com a adoção do dogma da neutralidade
da ciência processual e da atemporalidade de suas instituições, os insti­
tutos passaram a ser pensados como exclusivas criações da lógica, sem
tempo e lugar próprios.

2.2 Decisões autossuficientes e não autossuficientes


Uma útil classificação das decisões (ou tutelas) reside na sua
forma de cumprimento. Certas decisões são suficientes para satisfazer
o interesse do autor, sem a necessidade de atividade ulterior do órgão
judicial; são denominadas autossuficientes. Decisões outras reclamam
uma “concretização”, ou seja, uma atuação judicial de intervenção na
reali­dade sensível, mediante a prática de atos materiais. No primeiro
grupo inscrevem-se as sentenças preponderantemente declaratórias e
constitutivas; no segundo, as decisões preponderantemente condenató­
rias, mandamentais e executivas.96 Similar é a classificação proposta por
Carlos Alberto Álvaro de Oliveira, que distingue as tutelas prescritivas ou
autossatisfativas, que satisfazem por si mesmas, sem necessidade de qual­
quer ato material futuro, exigindo simplesmente uma conduta passiva
das partes (declaratória e constitutiva);97 e as tutelas heterossatisfativas, que
reclamam um comportamento ativo do vencido: condenatória (pagar a
dívida), mandamental (cumprir a obrigação ou o dever de fazer ou de
não fazer) e executiva lato sensu (entregar o bem).98
Em realidade, as espécies de sentenças classificadas como não
autossuficientes dependem, em última análise, da concepção adotada
95
Mostra-se oportuna, neste contexto, a advertência de Ovídio Baptista da Silva: “Falta-se-nos capacidade de
perquirir, ou mesmo interessar-nos, pelas origens de nossas instituições processuais. Supomos que os fenômenos
jurídicos não tenham origem cultura, nem história. Como bons descendentes do platonismo renascentista,
cremos que os conceitos jurídicos sejam da mesma natureza que as categorias geométricas. Eles estariam
inscritos na natureza, ou seriam um produto da lógica pura. Neste particular, a submissão do Direito aos
pressupostos da ‘ciência’ do medir, pesar e contar é absoluta” (Processo e ideologia: o paradigma racionalista.
Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 299).
96
MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2009. p. 145; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil: comentado
artigo por artigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 269.
97
Conforme sublinha Carlos Alberto Álvaro de Oliveira, “o cumprimento da tutela constitutiva emana da própria
prolação da sentença, a determinar em si mesma a modificação jurídica. Portanto, o comportamento esperado
da contraparte é passivo: unicamente agir em conformidade com a nova situação jurídica estabelecida no ato
sentencial” (Teoria e prática da tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 169).
98
Teoria e prática da tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 140-141.

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pelo estudioso do processo civil em face da categoria das decisões


condenatórias. Para aqueles autores — ainda numerosos na processua­
lística brasileira — que identificam a tutela condenatória com a atuação
do juiz sobre a realidade dos fatos, toda decisão carente de concre­tiza­
ção (não autossuficiente) haverá de ser, necessariamente, condena­tória.
Essa postura que circunscreve à categoria condenatória todas as sen­­­te­­n­-
ças que ensejam a realização de atos materiais posteriores — a qual
­­
segue defendida, aliás, por praticamente toda a doutrina europeia —
demonstra seu compromisso ideológico com o já abordado paradigma
da “pessoalização” dos direitos. Subjacente a ela está a ideia de que os
direitos controvertidos, tão logo adentram o processo, convertem-se em
direitos obrigacionais.99 Trata-se, portanto, de mais um reflexo das opções
ideológicas da ciência processual, o qual certamente nada apresenta
de “neutro”, por mais que se busque qualificá-lo como uma questão
meramente técnica.

2.3 A atividade material do juízo: sua “jurisdicionalização” e “cons­


titucionalização”
A doutrina processualista do início do século XX, plenamente
identificada com os parâmetros da ordinariedade e com a função essen­
cialmente declaratória da jurisdição, não concebia a atividade material
realizada para concretizar a decisão da causa como sendo jurisdicional.
Francesco Carnelutti, em sua obra Sistema del diritto processuale civile,
de 1936, ainda considerava jurisdicional somente o processo declarativo,
por ele intitulado “processo de conhecimento.”100 Também para Piero
Calamandrei, aquilo que realizasse o juiz do domínio dos fatos, faria
como administrador, não mais como juiz.101 A atividade material seria
então administrativa, concepção que se identifica inteiramente com a
classifi­cação trinária das ações. As repercussões fáticas das decisões —
isto é, executivas e mandamentais — seriam meras consequências do ato
jurisdicional, não tendo o mesmo status jurídico da atividade até então
desenvolvida para alcançar a certificação dos direitos.102 Ainda que se

99
MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2009. p. 146.
100
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2. ed. rev. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1998. p. 44.
101
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Processo e ideologia: o paradigma racionalista. Rio de Janeiro: Forense,
2004. p. 189.
102
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2. ed. rev. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1998. p. 157.

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Colaboração na concretização da decisão da causa 141

percebam, aqui e lá, reminiscências dessa visão, a ciência processual,


com advento da compreensão instrumental do processo, compraz-se
no reconhecimento da natureza plenamente jurisdicional da atividade
voltada à prática de atos materiais. É reconhecida a submissão do pro­
cedimento executivo, embora dotado de uma disciplina específica, à
ciência geral do processo civil, superando-se o antigo vício metodológico
de emprestar à “execução” (= atividade de concretização) menor digni­­dade
científica.103 Esse tratamento dita profundas consequências, que envolvem
a submissão da atividade executiva aos direitos fundamentais e ao modelo
constitucional do processo civil. O processo judicial tornou-se um espaço
fortemente influenciado pela atuação dos princípios fundamentais. Sobre
os órgãos judiciais recai o dever de atribuir a máxima eficácia possível
a tais preceitos, respeitando-os na condução do procedimento e na defi­
nição do conteúdo material das decisões, bem como negando aplicação à
lei que lhes seja contrária.104 A organização dos tribunais e o procedimento
jurisdicional estão largamente constitucionalizados, atribuindo uma compre­
ensão constitucionalmente referenciada do direito processual,105 de modo que
a organização e o procedimento devem ser interpretados na ótica dos
direitos fundamentais.106 A atividade “executiva” do juízo, não poderia
deixar de ser, está plenamente inserida nesse contexto. Com efeito, a
concretização da decisão judicial é permeada pelos valores constitucio­
nais que informam a jurisdição no Estado Constitucional, retirando-se
dessa concepção os efeitos que estão alinhados à visão metodológica do
formalismo-valorativo. Um destes efeitos refere-se à colaboração das
partes e do juízo no desenvolvimento do processo.

3 Colaboração na concretização da decisão da causa


3.1 Escopo da colaboração no âmbito da atividade material do juízo
A noticiada constitucionalização da atividade de concretização
das decisões, enunciada no tópico anterior, demanda uma atuação

103
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. v. 4,
p. 56.
104
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito
constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 240.
105
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 2. ed. Coimbra: Almedina, 1998.
p. 408.
106
Como faz recordar Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, “a conformação e a organização do processo e do
procedimento nada mais representam do que o equacionamento de conflitos de princípios constitucionais
em tensão” (O processo civil na perspectiva dos direitos fundamentais. Revista de Processo, São Paulo, ano
29, n. 113, p. 9-21, jan./fev. 2004).

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142 Lívio Goellner Goron

cooperativa entre as partes e o juízo, como forma de alcançar-se a


efetiva tutela dos direitos. Dada a natureza dos atos praticados nesse
âmbito, a colaboração também deve apresentar, obrigatoriamente,
suas particularidades; essas notas características, contudo — é bom ter
presente — não se põem em dúvida a existência de colaboração nesse
âmbito (o que é indiscutível), mas referem-se à forma como ela opera
no procedimento.
Um primeiro sentido de colaboração prende-se, nesse âmbito, ao
valor da efetividade, e remete à participação do réu nos atos destinados
a efetivar as medidas materiais (coativas ou sub-rogatórias). A neces­
sidade de colaboração na concretização da decisão ocorre, seja porque
determinados tipos de tutela não prescindem da atividade do deman­
dado (coativa), seja porque mesmo na tutela sub-rogatória essa colabo­
ração impulsiona a efetiva atuação dos meios executórios. O valor dessa
colaboração é sentido frequentemente na experiência forense, quando
o réu não colabora, ou quando conspira ativamente contra o êxito do
procedimento. Neste sentido, entende-se que o processo deve criar con­
dições para que o sujeito recalcitrante sinta-se disposto a prestar. A deci­
são não pode apenas sugerir o cumprimento: deve utilizar, sempre que
necessário, o peso da autoridade estatal para coagir o réu a cumprir,
auxiliar ou não interferir na atuação dos meios sub-rogatórios.107 Já se
afirmou que a colaboração neutra e desinteressada do réu na atuação dos
meios executivos, a exemplo daquela que reclama a indicação ao juiz do
local dos bens sujeitos à execução (CPC, art. 600, IV), é algo improvável,
quase ao ponto de ser negligenciável.108 A alegação só pode ser aceita
se devidamente enfatizado o adjetivo “neutra”. É verdade que o sistema
processual não deve esperar, como regra, a atuação espontânea do réu
submetido à atuação material do juízo. É precisamente por esse motivo,
entretanto, que o processo estrutura-se para estimular a colaboração,
estabelecendo deveres e ônus, tal como o da nomeação de bens pelo
devedor, que constava do texto original do CPC (art. 652).
Como afirma Michele Taruffo, a “melhor” execução forçada é
a execução que não se mostra necessária. Realmente, a forma ideal de
atuação dos direitos é aquela que conta com o adimplemento volun­tário
pelo devedor. Daí nasce a necessidade de construir um sistema eficaz e
107
MACHADO, Fábio Cardoso. Jurisdição, condenação e tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
p. 218-220.
108
ASSIS, Araken de. Cumprimento da sentença. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 31.

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Colaboração na concretização da decisão da causa 143

completo, caracterizado por mecanismos de coação e execução direta,


que maximizem o efeito compulsório da atuação jurisdicional.109 Não é
inteiramente verdadeira, por exemplo, ao contrário do que afirma Sérgio
Cruz Arenhart, a assertiva de que as técnicas sub-rogatórias dispensem
a colaboração do executado.110 Poder-se-ia pensar, à primeira análise, que
a efetivação da tutela executiva lato sensu prescinde da colaboração do réu,
já que tal tutela, por definição, atua através de medidas sub-rogatórias, que
independem da vontade da parte que a elas está sujeita. Essa afirmativa
é correta considerando-se uma visão geral da tutela respectiva, porém a
necessidade de colaboração mostra-se patente em vista dos atos executivos,
considerados individualmente.111
Um segundo plano de colaboração liga-se ao valor da segurança,
e tem relação com o controle e a correção da atividade judicial de con­
cretização da decisão. Tem relação com os princípios de contraditório e
ampla defesa que, embora mitigados, intervêm nos procedimentos de
realização concreta das decisões não autossuficientes. Cada um destes
planos será considerado na análise específica que se segue.

3.2 Colaboração na efetivação da tutela mandamental


Na tutela mandamental a colaboração apresenta-se indispensá­
vel. Para satisfazer o interesse do autor, o destinatário da ordem deve
cumpri-la.112 Cabe desde já a ressalva de que a ideia de colaboração não
pressupõe espontaneidade. É possível — aliás, é altamente desejável — que
o sistema processual adote mecanismos de pressão que induzam a parte
à colaboração e ao cumprimento voluntário da conduta preordenada
pelo juízo, pelo emprego de medidas coercitivas adequadas.113
Há situações, como na presença de obrigação de fazer infungível,
em que a colaboração do réu é a única solução compatível com o deside­
rato da tutela específica. Aí, a indução da parte a participar ativamente
do procedimento, por meio de técnicas próprias da tutela mandamental,

109
Note sul diritto alla condenna e all’esecuzione. Revista de Processo, São Paulo, ano 32, n. 144, p. 83-84, fev.
2009.
110
A intervenção judicial e o cumprimento da tutela específica. Revista Jurídica, Porto Alegre, v. 57, n. 385, p.
47, nov. 2009.
111
MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2009. p. 147.
112
MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2009. p. 147.
113
AMARAL, Guilherme Rizzo. Cumprimento e execução da sentença sob a ótica do formalismo-valorativo. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 132.

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reveste-se de importância fundamental.114 Neste sentido, aliás, o primeiro


ato do procedimento de efetivação das sentenças dotadas de eficácia
mandamental deve ser a intimação — pessoal — do réu para que cumpra
a decisão em prazo assinalado.115 Neste sentido, aliás, o inciso V do art.
14 do CPC, introduzido pela L. nº 10.358/2001, serve de importante
parâmetro para estruturar a colaboração das partes na efetivação das
tutelas processuais que repercutem sobre a realidade factual. Contempla
ele o dever das partes de cumprirem “com exatidão os provimentos man­
damentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais,
de natureza antecipatória ou final”.116
A conversão em perdas e danos ditada pelo par. 1º do art. 461,
CPC, é procedimento que envolve a colaboração do réu e do autor, pois
as circunstâncias que motivam dita conversão, situadas que estão no
plano do direito material, serão usualmente conhecidas pelo juiz por
intermédio das partes. Não pode o juiz deixar de admitir sua participação,
ouvindo-as sobre a impossibilidade de atuação da tutela específica.

3.3 Colaboração na efetivação da tutela executiva lato sensu


Quando é outorgada no processo uma tutela executiva em sentido
lato, a colaboração do réu é instada antes mesmo do início das ativi­
dades executivas. É nisso que consiste a intimação da parte, dando-lhe a
oportunidade de cumprir espontaneamente o julgado, a exemplo do que
ocorre nas ações de despejo e de reintegração de posse.117 Essa intimação
é expressamente prevista pelo CPC no tocante à tutela relacionada a
obrigação de entregar coisa, na qual, antes da emissão do mandado de
busca e apreensão ou imissão na posse, o devedor deve ser pessoalmente
intimado (art. 461-A, par. 2º), fixando-se-lhe prazo para o cumprimento

114
ASSIS, Araken de. Cumprimento da sentença. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 33.
115
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. v. 4,
p. 524-525.
116
Em relação ao dispositivo mencionado, comenta Daniel Mitidiero que “cumprir com exatidão” e “não criar
embaraços à efetivação”, para além da distinção evidente de contemplarem uma conduta positiva e a uma
negativa, não apresentam entre si qualquer diferença que permita ligá-las à atuação da eficácia mandamental
ou executiva da decisão (Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Memória Jurídica, 2004. t. I, p.
176). Não obstante, parece defensável a ideia de que a noção de cumprimento remete à atuação da tutela
mandamental (como, aliás, está expresso no texto); enquanto que a vedação de criar embaraços mais se
afeiçoa ao cumprimento da tutela executiva, a qual atua por meios sub-rogatórios, em relação aos quais a
posição do réu certamente não é a de cumprir, mas sim de abster-se, deixando que os mecanismos judiciais
aperfeiçoem-se completamente.
117
MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2009. p. 149.

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Colaboração na concretização da decisão da causa 145

(art. 461-A, caput).118 Uma visão essencialmente cooperativa do processo


conduz a que, apesar do silêncio do art. 461, a efetivação da tutela espe­
cífica das obrigações de fazer e de não fazer também deve ser precedida da
intimação pessoal da parte, oportunizando-lhe o cumprimento espontâneo
do dever reconhecido pela decisão.
Em determinados casos, pelo seu elevado potencial de interferência
na esfera jurídica do réu, a própria estruturação das técnicas sub-
rogatórias deverá contar com a colaboração das partes, e especialmente
daquela que suportará os efeitos da medida. Tome-se como exemplo
a técnica sub-rogatória denominada intervenção judicial — que permite
ao juiz intervir, por interposta pessoa, na administração da empresa ou
entidade, ou designar agente fiscalizador de suas atividades —, a qual,
em razão de sua gravidade, merece ser precedida da oitiva das partes,
a quem deve ser assegurado conhecer a identidade do interventor e
verificar sua idoneidade para praticar os atos necessários, bem como
participar deles, acompanhando as diligências.119
A ideia de colaboração também está ínsita à participação da parte
mediante a impugnação da atividade executiva, sua retificação e correção.
Cabe realçar a necessidade, como corolário de um processo equilibrado e
justo, de assegurar meios de reação da parte sujeita ao cumprimento injusto ou
ilegal de medidas executivas ou mandamentais. Não é necessário insistir
no fato: a negativa da possibilidade de defesa do réu no procedimento
voltado à efetivação da decisão afrontaria as garantias constitucionais do
devido processual legal e do contraditório.120
Araken de Assis arrola entre os meios de reação da parte o agravo
de instrumento e, no caso de exceções supervenientes à sentença, a
dedução de uma oposição, que, à falta de regulação específica, segundo
defende tal autor, deveria seguir o procedimento dos arts. 475-L e 475-M
(impugnação ao cumprimento da sentença), com a possibilidade de
eventual atribuição de efeito suspensivo pelo juízo.121 Mais adequada,
contudo, ao sentido cooperativo do processo é a posição de Cândido
Dinamarco, admitindo a postulação de defesas por simples petição sem

118
ARENHART, Sérgio Cruz. A intervenção judicial e o cumprimento da tutela específica. Revista Jurídica, Porto
Alegre, v. 57, n. 385, p. 49, nov. 2009.
119
ARENHART, Sérgio Cruz. A intervenção judicial e o cumprimento da tutela específica. Revista Jurídica, Porto
Alegre, v. 57, n. 385, p. 55, nov. 2009.
120
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. v. 4,
p. 529-530.
121
Cumprimento da sentença. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 230-231.

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146 Lívio Goellner Goron

suspensão do processo, e, em caráter excepcionalíssimo, ou quando


alegada matéria de ordem pública, o manejo de impugnação, nos moldes
do art. 475-M do CPC.122
Na execução para entrega de coisa permanece vigente o ônus pre­visto
pelos arts. 1.642-1.643 do CC, referente à escolha dos bens determinados
pelo gênero e quantidade.123

3.4 Colaboração na efetivação da tutela executiva stricto sensu


A colaboração ocupa papel igualmente relevante na execução que
visa a extrair valor do patrimônio do executado, identificando-se com a
chamada tutela executiva stricto sensu.
Aspecto relevante concerne à indicação de bens para serem
penhorados, âmbito no qual o juiz, por sua posição, depende da efetiva
colaboração das partes para poder imprimir eficácia ao desenvolvi­­mento
da atividade executiva. A Lei nº 11.232, alterando o CPC, facultou ao
exequente nomear, desde logo, quando do requerimento da expedição
do mandado de penhora, bens do executado passíveis de constrição.
Possibilitou, desta forma, que o próprio autor, atuando na defesa de seus
interesses, efetue pesquisa prévia de bens e indique aqueles que foram
localizados, de modo a tornar frutífera a diligência do Oficial. Trata-se
de claro exemplo da cooperação da parte com o bom desenvolvimento da
execução; com efeito, sendo do maior interesse do exequente encontrar
bens penhoráveis,124 a sistemática tende a ser mais eficaz do que a da
prévia nomeação de bens pelo executado, quando a tendência favorecia
indicações procrastinatórias e de pouca seriedade.
Conforme o art. 600, inciso IV do CPC, na redação da Lei nº
11.232, a colaboração do devedor é incentivada mediante a instituição do
dever de apontar onde estão os seus bens sujeitos à penhora. Referida
previsão busca retirar dos ombros do exequente e do Judiciário a loca­
lização física dos bens, adotando a lógica mais simples de suscitar a
colaboração da parte conhecedora da situação dos bens.125 Naturalmente,
a colaboração da qual se cogita, porque presumivelmente contrária aos

122
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. v. 4,
p. 529-530.
123
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. v. 4,
p. 550.
124
AMARAL, Guilherme Rizzo. Cumprimento e execução da sentença sob a ótica do formalismo-valorativo. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 204.
125
AMARAL, Guilherme Rizzo. Cumprimento e execução da sentença sob a ótica do formalismo-valorativo. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 205-206.

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Colaboração na concretização da decisão da causa 147

interesses do executado, mereceu o necessário reforço legal, tendo-se o


não cumprimento do mencionado dever como ato atentatório à dignidade
da justiça. O exame comparativo da legislação processual civil evidencia
outros exemplos característicos de institutos cooperativos na execução
por expropriação. A Ley de Enjuiciamento Civil espanhola prevê, no seu
art. 640, a possibilidade de exequente e executado convencionarem o
meio mais eficaz de transformação dos bens penhorados em dinheiro.
A cooperação do executado no sentido da efetivação da penhora é igual­
mente prevista no art. 848-A do Código de Processo Civil português.126
Ainda no âmbito da colaboração das partes, porém sob o prisma
específico do valor da segurança, deve-se ter em conta a figura da exceção
— ou melhor, objeção — de pré-executividade, de criação jurisprudencial,
que funciona com eficaz mecanismo cooperativo. O instituto em questão
possibilita seja instaurado um efetivo e sumário contraditório sobre os
pressupostos processuais e as condições da ação executiva, podendo
auxiliar o órgão jurisdicional a sanar defeitos do procedimento e a
extinguir ações que tenham sido propostas indevidamente.

Conclusão
Sabe-se hoje que a ciência processual do início do séc. XX afastou-
se do compromisso com o direito material. A elaboração teórica da ação
abstrata levou à concepção de uma tutela jurisdicional única, neutra e
indiferenciada, informada pelo paradigma da ordinariedade. A ciência
contemporânea busca resgatar a construção de procedimentos informa­
dos pelo direito material, colocando ênfase em institutos como a “ação
de direito material” e a “tutela material”. Para além de reconhecer a
grande influência do direito material sobre o processo, o que importa
ter presente é que a escolha da tutela não é definida exclusivamente pelo
direito substancial. A decisão judicial é marcada pela soberania e por
princípios próprios do processo como efetividade e segurança, que
interferem na escolha das formas e técnicas do plano processual.
Tutelas materiais e processuais são conceitos importantes e com­
plementares, que interagem entre si. A exploração do tema lança luzes
sobre as decisões judiciais não autossuficientes e sobre a atividade
judicial que as segue, voltada para a adequação da realidade sensível ao

126
MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2009. p. 147.

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148 Lívio Goellner Goron

pronunciamento judicial. A compreensão de sua natureza jurisdicional


determina que atividade material do juiz fique submetida ao regime
constitucional do processo civil, integrando-a num modelo de processo
essencialmente cooperativo. A colaboração das partes na concretização
da decisão da causa é polarizada pelos valores da efetividade e da segu­
rança, conferindo impulso, por um lado, aos atos destinados a efetivar
as medidas materiais (coercitivas ou sub-rogatórias), e permitindo, por
outro, o controle da legitimidade dos atos judiciais que atuam sobre a
esfera jurídica do réu. A cooperação das partes, à luz do contraditório,
mais do que condição de uma tutela efetiva dos direitos, constitui-se em
pressuposto para o justo desenvolvimento da atividade material do juízo.

Collaboration in the Enforcement of the Judicial Decision


Abstract: The relation between substantive law and process is explained
from different methodological points of view. Each has its own emphasis,
such as the “action in the substantive law” and the “substantive protection”
The idea of a “substantive protection” represents the most appropriate
methodological point of view to explain such relation. Although the influence
of the substantive law in the judicial process is undebiable, the choice of the
form of procedural protection is also defined by procedural values. Process
Law has overcome the universalization of condemnatory judicial decisions
(condemnatio) and recognized the autonomy of injunctional and executive (lato
sensu) decisions. The jurisdictional/material activity of the courts is entirely
submitted to the Constitution, as has therefore assumed a strong cooperative
sense, which illuminates the practice of material acts and the control of
their correction and legitimacy. This requires the specific collaboration of
the parties in the enforcement of injunctional and executive (lato sensu and
stricto sensu) decisions.
Key words: Action in the substantive law. Substantive protection. Procedural
protection. Personalization of rights. Enforcemente of the decision.
Collaboration in the judicial process. Cooperative process.

Referências

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Colaboração na concretização da decisão da causa 149

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150 Lívio Goellner Goron

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

GORON, Lívio Goellner. Colaboração na concretização da decisão da causa. Revista


Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 19, n. 73, p. 119-150,
jan./mar. 2011.

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Uma aproximação dos fatos jurídicos
processuais extraprocedimentais
Pedro Henrique Pedrosa Nogueira*
Doutorando em Direito (UFBA). Mestre em Direito (UFAL). Professor de Direito Processual Civil
na Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Professor de Direito Processual Civil na Sociedade de
Ensino Universitário do Nordeste (SEUNE). Professor de Direito Processual Civil no curso de Pós-
Graduação do Centro de Estudos Superiores de Maceió (CESMAC). Advogado.

Resumo: Este ensaio analisa, em linhas gerais, o problema da classificação


dos fatos processuais e a importância para o processo de fatos jurídicos não
inseridos no procedimento.
Palavras-chave: Fato processual. Classificação. Atos processuais.
Sumário: 1 Introito – 2 Noção preliminar de fato jurídico – 3 Delimitação
conceitual dos fatos jurídicos processuais – 3.1 Uma avaliação crítica – 3.1.1
Insuficiência da noção legal de ato processual – 3.2 A classificação proposta
por Fredie Didier Jr. – 4 Fatos jurídicos processuais e situações processuais
– 5 Conclusão – Referências

1 Introito
O conceito de fato processual é tema que tem despertado discussões
doutrinárias. Sua análise exige digressão ao plano da Teoria Geral do
Direito e um cotejo com a teoria dos fatos jurídicos. Os atos processuais
ganham posição de destaque nesse debate, embora não esgotem os tipos
de fatos processuais.
Nosso objeto aqui é fornecer um esboço de solução para dois
problemas importantes: i) o da amplitude da noção de fato processual,
para saber se realmente seria possível cogitar de outras espécies além
dos atos processuais, o que exige a adoção de uma classificação dos
diferentes tipos; ii) o da delimitação da abrangência do conceito de fato
processual, para saber se seria relevante, do ponto de vista teórico e
prático, considerar a existência de fatos jurídicos processuais localizados
fora do processo enquanto procedimento.

2 Noção preliminar de fato jurídico


As normas jurídicas apresentam, invariavelmente, em sua estru­
tura lógica, a descrição hipotética de um fato, ou conjunto de fatos, ao
que se denomina suporte fático, hipótese, descritor etc., e a imputação
de consequências, denominadas preceito, consequente, prescritor etc.,

* E-mail: <pedro.henrique@ofm.com.br>.

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152 Pedro Henrique Pedrosa Nogueira

para quando vier(em) a se concretizar aquele(s) fato(s) abstratamente


contemplado(s), estando a hipótese e a consequência ligadas pelo functor
deôntico interproposicional (operador) “deve-ser”, formalizando a relação
de implicação entre a proposição-hipótese e a proposição-tese: deve-ser
se A, então B; ou a ocorrência da hipótese implica a tese, assim deve-ser;
ou, ainda, em notação simbólica: D(HC),1 em que “D” é operador
dever-ser, “H” é a proposição hipótese, “C” a proposição consequente
e ““ simboliza a implicação (se..., então...).
Por meio das normas jurídicas, a comunidade valora aqueles dados
de fato por ela mesma considerados relevantes, atribuindo-lhes, já que
os eventos da realidade empírica não entram em sua integridade factual
na composição do suporte fático,2 um modo de referência deôntico,
de tal forma que, sempre quando ocorridos, no plano da experiência,
os fatos inseridos na hipótese normativa, a conduta humana prevista
no consequente deva ser considerada prescrita, em qualquer de suas
modalidades (permitido, proibido e obrigatório).3
As normas pertencem ao ordenamento jurídico e se impõem como
obrigatórias perante a comunidade por força da técnica, especifica­
mente jurídica, da incidência; através dela o direito disciplina comporta­
mentos, regula condutas humanas, ainda que os sujeitos destinatários das
normas ignorem o seu conteúdo.4 Por essa técnica, o direito pode se fazer
presente na regulação dos fatos que foram escolhidos (valorados) pela
comunidade e erigidos ao nível de hipótese normativa, de tal forma que
sempre quando acontecerem, no tempo e no espaço, aquilo que abstrata­
mente fora tido por relevante, a conduta humana, também abstratamente
prevista, passe a ser tida como prescrita.5
O fato jurídico é resultado da incidência, que, por sua vez,
pressupõe a realização, no plano da experiência, dos fatos abstratamente

1
VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Max Limonad, 1997.
p. 103-104.
2
Segundo Lourival Vilanova (Cf. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Max Limonad,
1997. p. 89), o suporte fático “é construção valorativamente tecida”. Por isso, o fato em sua inteireza não
entra na composição da hipótese normativa, mas apenas aquela porção “recortada” da realidade empírica.
3
VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Max Limonad, 1997.
p. 71-72.
4
MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsói, 1955. v. 1, p. 11.
5
A incidência da norma jurídica, sem a qual a conduta prevista no seu consequente não poderá ser considerada
como prescrita, pressupõe (i) a vigência da norma e (ii) a concretização dos fatos previstos na hipótese
normativa. Portanto, é perfeitamente possível haver norma com força de incidência (pertencente a um dado
ordenamento jurídico-positivo), sem, ainda, incidir (v.g. norma em vacatio legis), mesmo porque essa não
incidência provisória é resultado da incidência de outra norma jurídica, pertencente ao mesmo ordenamento
jurídico, que pré-exclui o incidir imediato da primeira norma.

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Uma aproximação dos fatos jurídicos processuais extraprocedimentais 153

previstos na hipótese normativa (suporte fático). Apenas desse modo


ocorre a juridicização do fático; os fatos, à medida que são valorados
pela comunidade, são postos na hipótese normativa para sempre quando
resultarem consequências.6
Através dessa ideia de fato jurídico como produto da incidência
da norma jurídica sobre seu suporte fático, concebida originalmente por
Pontes de Miranda,7 é possível separar-se o mundo dos fatos do mundo
jurídico. Nessa concepção, mundo é o conjunto formado pela totali­dade
dos fatos: o nascer, o morrer, o chover, o dormir etc. O direito selecio­
na fatos e estabelece a causalidade jurídica, não necessariamente coinci­­
dente com a causalidade dos fatos naturais; através da juridicização do
fático o direito adjetiva os fatos para serem considerados jurídicos e assim
tecerem o mundo jurídico.8
Há, portanto, uma relação de causalidade jurídica entre incidência/
fato jurídico, assim como também existe um relacionamento entre fato
jurídico e eficácia jurídica. Pela compreensão de tal relação é permitido
afirmar que toda eficácia jurídica (relação jurídica, direitos, deveres,
ônus, pretensões, obrigações etc.) pressupõe um fato jurídico.
Disso resulta que só se poderá falar de eficácia jurídica depois
de ocorrido o fato jurídico. E mais: de todo fato jurídico surgirão,
necessariamente, consequências jurídicas,9 dentre as quais se destacam,
pela abrangência, as situações jurídicas (lato sensu).10
A noção de fato jurídico se insere no âmbito dos conceitos
fundamentais, também chamados conceitos lógico-jurídicos, situada ao
nível da Teoria Geral do Direito.11 Por isso, sua utilização é comum em
todos os subdomínios do conhecimento jurídico-dogmático. Logo, é
possível falar em fatos jurídicos civis, tributários, penais, processuais etc.

6
Alguns autores têm proposto uma noção mais restrita de incidência, concedendo-a como produto da ação
humana no ato da positivação do direito. Para eles, a incidência não ocorreria abstratamente, no plano
conceptual, como entende Pontes de Miranda, mas seria decorrência direta da intervenção humana ao
relatar em linguagem competente a ocorrência dos eventos descritos na hipótese normativa. Sem esse relato
linguístico, não haveria incidência, nem, por conseguinte, fato jurídico. Sobre o assunto, conferir: IVO, Gabriel.
Norma jurídica: produção e controle. São Paulo: Noeses, 2006. p. 42-62; CARVALHO, Paulo de Barros. Direito
tributário: fundamentos jurídicos da incidência. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 96-100 passim, dentre outros.
7
MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsói, 1955. v. 1, p. 74 passim.
8
MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsói, 1955. v. 1, p. 5-6.
9
Sobre o assunto, mais amplamente: NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Teoria da ação de direito material.
Salvador: JusPodivm, 2008. p. 40-42.
10
Segundo Marcos Bernardes de Mello, as situações jurídicas podem ser assim classificadas: a) básicas; b) simples
(ou unissubjetivas); c) complexas, estas subdivididas em c.1) unilaterais e c.2) relações jurídicas (MELLO, Marcos
Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da eficácia. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 78 et seq.).
11
VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no direito. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 238.

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154 Pedro Henrique Pedrosa Nogueira

3 Delimitação conceitual dos fatos jurídicos processuais


Como já visto, as situações jurídicas são efeitos de fatos jurídicos.
No plano do Direito Processual, é possível afirmar que as situações jurí­
dicas processuais decorrem de fatos jurídicos processuais.
Sempre houve, e ainda existe, uma tendência doutrinária de tratar
os fatos processuais no âmbito restrito dos atos processuais.12 Eis então
o ponto de reflexão.
O “processo”, embora a utilização desse signo em textos legais e
doutrinários não seja uníssona, tem sido, principalmente, tratado ora
como sinônimo de relação jurídica processual, ora como sinônimo de
procedimento.13 Interessa-nos, por ora, o último significado.14
Enquanto procedimento, o processo se apresenta como um fato
jurídico complexo de formação sucessiva, integrado, portanto, por outros
fatos jurídicos, que surgem sucessivamente até o advento do ato final,
formando assim uma sequência de fatos. Nesse sentido, é a clássica
lição de Giovanni Conso,15 adotada entre nós por Calmon de Passos16 e
Fredie Didier Jr.17 Esse modo de ver o processo enseja questionamentos
de duas ordens: em primeiro lugar, a indagação sobre a possibilidade
de considerar ou não o próprio procedimento, na condição unidade
autônoma, também como um fato jurídico e, em segundo lugar, a dúvida
sobre o enquadramento do processo como ato-complexo, ou como
ato-procedimento.18

12
Assim: SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. v.
1, p. 285; GONÇALVES, Marcus Vinícius Rios. Novo curso de direito processual civil. 5. ed. São Paulo: Saraiva,
2008. v. 1, p. 228; THEODORO JR., Humberto. Curso de direito processual civil. 48. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2008. v. 1, p. 250, dentre outros.
13
ROSENBERG, Leo. Tratado de derecho procesal civil. Tradução Angela Vera. Buenos Aires: Ed. Juridicas Europa-
América, 1955. v. 1, p. 8.
14
Tratar o processo como procedimento não significa afirmar que o processo não possa ser encarado como uma
relação jurídica. A concepção tradicional de relação jurídica processual, sistematizada na segunda metade do
século passado por Bülow (BÜLOW, Oskar von. Teoria das exceções e dos pressupostos processuais. Tradução
e notas de Ricardo Rodrigues Gama. 2. ed. Campinas: LZN, 2005. p. 5-12) não é incompatível com a ideia
de processo como fato jurídico. São enfoques distintos. A confusão é apenas semântica: usa-se o mesmo
signo (processo) para designar realidades distintas. Assim, pertinente a constatação de Foschini: “la nostra
conclusione è che il processo: a) da un punto di vista (astratto) normativo è un rapporto giuridico complesso;
b) da un punto di vista (concreto) statico è una situazione giuridica complessa; c) da un punto di vista (pur
esso concreto ma) dinamico è un atto giuridico complesso” (FOSCHINI, Gaetano. Natura giuridica del processo.
Rivista di Diritto Processuale, Padova, v. 3, parte 1, p. 110, 1948).
15
CONSO, Giovanni. I fatti giuridici processuali penali. Milano: A. Giuffrè, 1955. p. 124.
16
PASSOS, J. J. Calmon de. Esboço de uma teoria das nulidades aplicadas às nulidades processuais. Rio de Janeiro:
Forense, 2005. p. 83.
17
DIDIER JR., Fredie. Pressupostos processuais e condições da ação: o juízo de admissibilidade do processo. São
Paulo: Saraiva, 2005. p. 18.
18
Sobre essa problemática, conferir: SILVA, Paula Costa e. Acto e processo: o dogma da irrelevância da vontade
na interpretação e nos vícios do acto postulativo. Coimbra: Coimbra Ed., 2003. p. 123 et seq.

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Uma aproximação dos fatos jurídicos processuais extraprocedimentais 155

O certo é que o processo é integrado por fatos jurídicos interligados


entre si; as unidades que o compõem são, portanto, designadas de
fatos jurídicos (lato sensu) processuais, ou, como mais comumente se diz,
“atos processuais”.
Os atos processuais são espécies de fatos jurídicos e fazem parte
do processo. Nisso nada há de novo. O que se quer salientar aqui,
contudo, é a existência (a) de fatos jurídicos processuais não reconduzí­
veis à catego­ria de ato processual, assim como (b) a existência de fatos
jurídicos que, apesar de adjetivados como “processuais”, não compõem
o procedimento.
Alguns autores se preocuparam em extremar os atos processuais
de outras espécies com o mesmo gênero próximo, isto é, em encontrar
fatos jurídicos processuais (em sentido amplo) não identificados como
“atos” processuais. Chiovenda, em lição clássica, já preconizava: “Dizem-
se atos jurídicos processuais os que têm importância jurídica em respeito
à relação processual, isto é, atos que têm por conseqüência imediata
a constituição, a conservação, o desenvolvimento, a modificação ou a
definição de uma relação processual”.19 20 Em sentido próximo, era o
pensamento de Redenti: “[...] si possono qualificare e classificare come
processuali quegli atti o fattiche spiegano effetti primarii, diretti e specifici,
legalmente preveduti, sulla instituzione, sullo svolgimento e sulla fine
(chiusura od estinzione) del processo-raporto giuridico processuale.”21
Também Zanzucchi22 deixava de considerar como atos processuais
aqueles que sobre o processo não seriam capazes de produzir efeitos
imediatos, a exemplo como se aconteceria com o compromisso.
Liebman, por sua vez, restringiu a noção de Chiovenda e passou
a considerar como atos processuais as manifestações de pensamento
feitas por um dos sujeitos processuais, pertencentes a um procedimento,
e com eficácia constitutiva, modificativa ou extintiva sobre a relação
processual correspondente.23 Deu-se relevância, portanto, nessa definição,

19
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Tradução de Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller,
1998. v. 3, p. 20.
20
Embora o próprio Chiovenda admitisse a existência de fatos jurídicos processuais em sentido estrito (CHIOVENDA,
Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Tradução de Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller, 1998. v.
3, p. 22), não houve de sua parte uma preocupação classificatória de tratar as variantes de fatos processuais
em relação de gênero e espécie.
21
REDENTI, Enrico. Diritto processuale civile. Milano: A. Giuffrè, 1957. v. 1, p. 198.
22
ZANZUCCHI, Marco Tullio. Diritto processuale civile. Milano: G. Giuffrè, 1964. v. 1, p. 401.
23
LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil. Tradução e notas de Cândido Rangel Dinamarco.
3. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. v. 1, p. 286. No mesmo sentido, dentre outros: SILVA, Ovídio Baptista da.
Curso de processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. v. 1, p. 195.

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156 Pedro Henrique Pedrosa Nogueira

ao sujeito (só é ato processual aquele praticado por quem integra a relação
processual) e à sede (só é ato processual o ato do procedimento).
Calmon de Passos foi além e passou a considerar outro dado
adicional como relevante para caracterizar um ato como “processual”:
a necessidade de que o ato apenas no processo possa ser praticado.
Define o ato processual, assim, como “aquele que é praticado no pro­
cesso, pelos sujeitos da relação processual ou do processo, com eficácia
no processo e que somente no processo pode ser praticado”.24
Da mesma forma, Pontes de Miranda restringe a noção de ato
processual para abranger apenas aqueles que integram o procedimento
como sequência sucessiva de atos.25
Interessante também se mostra a concepção de Paula Costa e
Silva, para quem o ato processual (“acto de processo”) seria todo o
26

ato integrante da sequência destinada ao proferimento de uma decisão


capaz de pôr termo ao litígio. Os atos processuais, em última análise,
se confundiriam com o próprio processo, enquadrado na categoria do
ato-procedimento.
Para ela, o grande problema dessa noção “procedimental” de ato
processual se apresenta com aqueles atos que, tendo repercussão sobre
o processo, não integram a cadeia procedimental descrita pelo legis­
lador. Tais atos seriam, em sua abordagem, justamente os negócios
processuais.27
Paula Costa e Silva, então, procura solucionar o problema sem
relegar os negócios processuais, partindo da premissa de que, embora
situados fora do procedimento tal como previsto pelo legislador, os negó­
cios processuais terminariam por se integrar na cadeia (procedimento),
de forma concreta, no momento de se fazer valê-los no processo: “A
concepção do processo enquanto acto procedimento permite, desse modo,

24
PASSOS, J. J. Calmon de. Esboço de uma teoria das nulidades aplicadas às nulidades processuais. Rio de Janeiro:
Forense, 2005. p. 43.
25
Análoga é a posição de Satta, que, embora reconheça a relevância e os efeitos de certos fatos jurídicos para o
processo, não os adjetiva de “processuais”: “não se pode negar existirem atos indubitavelmente não processuais,
que têm importantíssimos efeitos processuais e firmam lances indispensáveis ao exercício da jurisdição, tanto
que a própria lei processual o considera para firmar as condições e as raias de sua eficácia. Tais, p. e., a eleição
de domicílio, a anuência, expressa ou tácita, à sentença, a derrogação consensual à competência” (SATTA,
Salvatore. Direito processual civil. Tradução e notas de Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: LZN, 2003. v. 1,
p. 278).
26
SILVA, Paula Costa e. Acto e processo: o dogma da irrelevância da vontade na interpretação e nos vícios do
acto postulativo. Coimbra: Coimbra Ed., 2003. p. 171.
27
SILVA, Paula Costa e. Acto e processo: o dogma da irrelevância da vontade na interpretação e nos vícios do
acto postulativo. Coimbra: Coimbra Ed., 2003. p. 172.

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Uma aproximação dos fatos jurídicos processuais extraprocedimentais 157

incluir os negócios concretamente celebrados entre os actos preparatórios


do acto final, ao qual aderirão os efeitos típicos que o acto produz.”28

3.1 Uma avaliação crítica


Parece-nos que essas restrições ao âmbito de abrangência da
noção de fato jurídico processual levam inexoravelmente a uma dimi­
nuição do espectro de especulação do processualista, o que não nos parece
interessante científica ou praticamente. Há vários fatos, processualmente
relevantes, de possível ocorrência fora do processo, mas com inegáveis
interferências no desenrolar do procedimento e na própria relação
jurídica processual.
A morte de uma das partes, a transação, capaz inclusive de ensejar
a extinção do processo, a alienação do bem penhorado pelo executado,
apta a gerar a responsabilidade patrimonial do terceiro adquirente,
são exemplos de acontecimentos que inegavelmente repercutem de
forma direta tanto no processo-relação jurídica, como no processo-
procedimento.
Por isso, é preciso pensar em uma definição mais abrangente, que
evite o inconveniente de tratar vários fatos de inegável relevância para
o processo como marginais ao fenômeno processual.29 Giovanni Verde
também inclui no âmbito dos atos processuais aqueles praticados fora
do processo, ao considerar ato processual “Non solo quello compiuto
nel corso del processo, ma pure quello que contribuisce al suo concreto
svolgimento, qualunque sia la sede in cui è compiuto”.30
Carnelutti, a propósito, assevera com propriedade: “É quase
supérfluo destacar que, quando a eficácia jurídica processual de um ato se
manifesta na alteração de uma situação jurídica processual, é independente
de sua coincidência com o processo”.31
Embora, como ressaltado por Paula Costa e Silva, haja uma inte­
gração dos negócios processuais ao procedimento no instante em que
as partes pretendem nele fazer valer as estipulações negociais, não se

28
SILVA, Paula Costa e. Acto e processo: o dogma da irrelevância da vontade na interpretação e nos vícios do
acto postulativo. Coimbra: Coimbra Ed., 2003. p. 173.
29
Apresenta-se, assim, com toda pertinência a advertência feita por Fredie Didier Jr.: “é preciso identificar e
agrupar os fatos que possam ter relevância para o direito processual, pois esses é que compõem o objeto do
excerto da ciência jurídica dedicada ao estudo do processo” (DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual
civil. 9. ed. Salvador: JusPodivm, 2008. v. 1, p. 244).
30
VERDE, Giovanni. Profili del processo civile. Napoli: Jovene, 2002. v. 1, p. 306.
31
CARNELUTTI, Francesco. Sistema de direito processual civil. Tradução de Hiltomar Martins Oliveira. São Paulo:
Classic Book, 2000. v. 3, p. 102.

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158 Pedro Henrique Pedrosa Nogueira

pode perder de vista que as situações jurídicas geradas pelos negócios


processuais, às vezes, independem de sua inserção no processo (assim,
v.g., o negócio jurídico processual de convenção de arbitragem produz,
por si só, na esfera jurídica da parte, o direito subjetivo e a pretensão
à extinção do processo sem resolução de mérito, como prevê o art. 267,
VII do CPC).32
Dessa maneira, optamos por definir fato jurídico processual em
função da natureza da norma jurídica que o prevê, como o faz Paula Sarno
Braga33 e de sua aptidão para gerar uma situação jurídica processual.
A adjetivação “processual” decorre da circunstância de que uma norma
jurídica atribui consequências de índole processual ao fato, sendo a “sede”
do ato, como salienta Fredie Didier Jr.,34 irrelevante para qualificá-lo.
Cabe também mencionar que o fato jurídico processual é o único
capaz de produzir situações jurídicas processuais. Como obtempera
Carnelutti, “um fato jurídico é processual não porque se realize no pro­cesso,
mas porque seja transcendente para uma situação jurídica processual”.35
A partir dessa definição, podemos agrupar os fatos processuais,
segundo o critério do local de sua ocorrência, da seguinte forma: a) fatos
jurídicos processuais procedimentais — aqueles que geram situações jurídicas
processuais e integram o procedimento (cadeia de fatos interligados a
que também se chama “processo”), tal como se dá, v.g., com a propositura
da demanda, a prolação de uma decisão pelo juiz etc.; e b) fatos jurídicos
processuais extraprocedimentais — aqueles geradores de situações jurídicas
processuais, mas situados fora do procedimento (v.g. transação, morte
das partes, dos procuradores, convenção sobre arbitragem etc.).

3.1.1 Insuficiência da noção legal de ato processual


No sistema do Código de Processo Civil brasileiro, a disciplina
dos atos processuais ganhou lugar no Título V (“Dos Atos Processuais”).
Ali não se encontra uma preocupação de defini-lo com exatidão, o que é,
de certo modo, elogiável, pois se trata de tarefa própria da doutrina.

32
Não se quer sustentar, obviamente, que a extinção do processo possa decorrer pura e simplesmente da convenção
arbitral, mas sim que o direito de exigir a extinção (situação jurídica processual) é um efeito jurídico-processual
da convenção de arbitragem.
33
BRAGA, Paula Sarno. Primeiras reflexões sobre uma teoria do fato jurídico processual: plano de existência.
Revista de Processo, São Paulo, v. 32, n. 148, jun. 2007. p. 309.
34
DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. 9. ed. Salvador: JusPodivm, 2008. v. 1, p. 243.
35
CARNELUTTI, Francesco. Sistema de direito processual civil. Tradução de Hiltomar Martins Oliveira. São Paulo:
Classic Book, 2000. v. 3, p. 102.

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Uma aproximação dos fatos jurídicos processuais extraprocedimentais 159

Não obstante, o art. 158 do CPC enuncia: “Os atos das partes,
consistentes em declarações unilaterais ou bilaterais de vontade, produ­
zem imediatamente a constituição, a modificação ou a extinção de
direitos processuais”.
Trata-se de enunciado que esclarece ser a criação, modificação ou
extinção de direitos de natureza processual uma consequência da prática
de atos processuais praticados pelas partes. A proposição, como se vê,
é incompleta, pois permite sugestionar a interpretação segundo a qual
os atos do juiz (que também são manifestações de vontade) não teriam
a mesma propriedade dos atos das partes, o que, por óbvio, estaria em
pleno desacordo com a realidade.
A incompletude também resulta de uma falsa relação de necessi­
dade entre os atos processuais das partes e a extinção de direitos proces­
suais, pois a eliminação de poderes processuais do mundo jurídico,
não raro, tem por causa uma simples conduta omissiva da parte para
cuja prática a vontade é absolutamente irrelevante, como se dá com a
pre­clusão temporal, enquadrada como um ato-fato jurídico.36 A criação,
modifi­cação ou extinção de situações jurídicas processuais (e não apenas
de “direitos processuais” como está dito no art. 158 do CPC)37 pode se
originar de fatos jurídicos não volitivos, como bem percebeu Moniz de
Aragão, porquanto “a inatividade ou a morte podem implicar modi­fi­ca­
ção ou extinção de situações processuais”.38
É possível perceber no enunciado do art. 158 do CPC a influência
da definição encontrada no art. 81 do Código Civil de 1916,39 que tomava
o ato jurídico em função das consequências por ele produzidas, conceito
esse criticado por Marcos Bernardes de Mello.40
Visível também no dispositivo a influência do pensamento de
Chiovenda, que aparentemente buscou transpor para o Direito Processual

36
Para Pontes de Miranda, os atos-fatos são a classe de fatos jurídicos em cujo suporte fático está uma
conduta humana, com abstração da vontade. A conduta é um ato, mas recepcionada como um fato, por ser
desconsiderada pelo direito a relação entre ato e vontade (MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado.
4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1974. v. 2, p. 373).
37
“Direitos processuais, no art. 158, são quaisquer situações jurídicas processuais em que estejam as partes,
sejam direitos, poderes ou faculdades” (MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. 4.
ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997. v. 3, p. 61).
38
ARAGÃO, E. D. Moniz de. Comentários ao Código de Processo Civil. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. v.
2, p. 25.
39
Art. 81. Todo ato lícito, que tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar ou extinguir
direitos, se denomina ato jurídico.
40
MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.
p. 92.

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160 Pedro Henrique Pedrosa Nogueira

a noção de ato jurídico à época já presente e consolidada (embora não


sem críticas) no Direito Privado.

3.2 A classificação proposta por Fredie Didier Jr.


Partindo da premissa de que existem fatos processuais extra­
procedimentais — isto é, fatos processuais não integrantes do procedi­
mento, mas que nem por isso deixam de criar ou extinguir situações
jurídicas processuais —, torna-se necessário classificá-los.
O norte a presidir qualquer classificação é a utilidade. Adotando-se
aqui também a premissa de que os atos processuais não esgotam o fenô­
meno processual, é possível aplicar, no plano do processo, a classificação
de Pontes de Miranda41 dos fatos jurídicos, desenvolvida por Marcos
Bernardes de Mello,42 que toma como critério os elementos nucleares
(essenciais) do suporte fático (hipótese abstrata da norma jurídica),
dividindo os fatos jurídicos em ilícitos e lícitos, e estes últimos em: (a)
fatos jurídicos stricto sensu, (b) atos-fatos jurídicos, (c) atos jurídicos stricto
sensu, (d) negócios jurídicos.
Útil se revela, assim, a classificação proposta por Fredie Didier Jr.,43
que, partindo dos critérios acima, dividiu os fatos processuais lícitos44
da seguinte maneira:

fatos processuais em sentido estrito


atos-fatos processuais
Fatos jurídicos processuais lícitos
(lato sensu)
atos processuais em sentido estrito
negócios jurídicos processuais

Os fatos processuais em sentido estrito são acontecimentos naturais


(não humanos); deles resultam o surgimento de situações jurídicas
processuais, como se dá com a morte das partes (CPC, art. 73), a força
maior (CPC, art. 265, V) etc. Os atos-fatos processuais são condutas
recebidas pelo direito como simples fato. A revelia é um exemplo dessa
espécie. Os atos processuais em sentido estrito são atos jurídicos em que a
41
MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1974. v. 2, p. 184
passim.
42
MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.
p. 104 passim.
43
DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. 9. ed. Salvador: JusPodivm, 2008. v. 1, p. 238-241.
44
Aqui não cogitaremos da classificação dos fatos processuais ilícitos.

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Uma aproximação dos fatos jurídicos processuais extraprocedimentais 161

vontade é relevante, mas sem liberdade de escolha da categoria eficacial,


tal como se dá com a citação, penhora, intimação etc. Os negócios jurídicos
processuais, ou os “atos processuais negociais”, como quer Fazzalari,45 são
atos para cuja prática as normas jurídicas deixam às partes a escolha,
com variada amplitude, das categorias eficaciais e de estruturação das
relações jurídicas respectivas.46 Isso se dá, v.g., com o acordo para dilação
de prazo, o acordo para a suspensão do processo, a eleição negocial
do foro etc.47
Note-se que essa classificação permite contemplar a classe de
fatos jurídicos que denominamos fatos processuais extraprocedimentais. Ao
mesmo tempo, permite agrupar os fatos jurídicos que verdadeira­mente
inte­gram o procedimento (fatos processuais procedimentais), sem des­
consi­derar aqueles localizados fora da sequência.
Além disso, a divisão dos fatos processuais a partir do elemento
nuclear de seu suporte fático, possui a virtude de permitir identificar
os tipos de fatos sujeitos à invalidação, mais precisamente os atos pro­
cessuais em sentido estrito e os negócios jurídicos processuais e aqueles
aos quais o regime jurídico de nulidades não se aplica (fatos processuais
em sentido estrito e atos-fatos processuais). Sem essa análise, a tarefa
seria impossível, ao menos que o conceito de ato processual fosse alar­gado
para abranger os fatos humanos não volitivos e os não humanos, algo
pouco recomendável por gerar um problema semântico.

4 Fatos jurídicos processuais e situações processuais


Convém ainda advertir que os fatos jurídicos processuais não
somente criam, modificam ou extinguem a relação jurídica processual,
mas geram situações jurídicas processuais (gênero do qual a relação
jurídica processual é espécie). Existem muitos fatos dos quais decorrem
situações jurídicas processuais, mas que em nada interferem na relação
jurídica processual enquanto tal. Assim, v.g., a prolação de uma decisão

45
FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual. Tradução de Elanie Nassif. Campinas: Bookseller, 2006.
p. 416.
46
Admitem também a existência de negócios processuais, embora com algumas variações conceituais: MICHELI,
Gian Antonio. Curso de derecho procesal civil. Tradução Santiago Sentís de Melendo. Buenos Aires: Ed. Juridicas
Europa-América, 1970. v. 1, p. 293-294; ECHANDÍA, Devis. Teoría general del proceso. 3. ed. Buenos Aires:
Universidad, 2004. p. 379, dentre outros. Negam-na: DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito
processual civil. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. v. 2, p. 481; GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil
brasileiro. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 2, p. 6; CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual
civil. 16. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. v. 1, p. 248.
47
DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. 9. ed. Salvador: JusPodivm, 2008. v. 1, p. 238-241.

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162 Pedro Henrique Pedrosa Nogueira

interlocutória, a prática de atos postulatórios como a apresentação de


uma contestação, a perda da capacidade processual de uma das partes
são fatos processuais (em sentido amplo) que geram efeitos processuais,
produzem situações jurídicas processuais, mas não interferem na estru­
tura da relação jurídica processual.
Se partirmos da premissa de que nem todos os efeitos advindos
dos fatos processuais repercutem na relação jurídica processual, somos
forçados a considerar que os fatos jurídicos processuais são aqueles que
geram situações jurídicas processuais (conceito mais abrangente).
A noção que se tem hoje de situação jurídica processual tem raízes
no pensamento de Goldschmidt, quando de seu ataque à noção de relação
jurídica processual ao defender o processo como uma situação jurídica.
Goldschmidt48 partiu da premissa de que o processo não poderia
ser considerado uma série de atos isolados, mas um complexo de atos
encaminhados a um fim e, mesmo possuindo vários sujeitos, não poderia
ser considerado uma relação jurídica processual.
Na sua concepção, os nexos jurídicos entre os indivíduos no
processo seriam expectativas de uma sentença favorável ou perspectivas de
uma sentença desfavorável. A parte que se encontra em situação de se
proporcionar mediante um ato uma vantagem processual e, em defini­
tivo, uma sentença favorável, tem uma possibilidade ou ocasião processual.
Por outro lado, quando a parte precisa praticar um ato para prevenir
um prejuízo processual e, em definitivo, uma sentença desfavorável, tem
sobre si um ônus processual.49
A expectativa de uma vantagem processual, a dispensa de um
ônus e a possibilidade de se chegar a tal situação pela realização de
um ato processual correspondem a direitos (no sentido processual do
termo). Contrariamente, havendo a necessidade de se praticar um ato
para prevenir um prejuízo processual (ônus) tal situação corresponde ao
conceito de dever ou obrigação.50
Essas categorias, para Goldschmidt, não se amoldariam ao conceito
tradicional de relação jurídica. Sendo expectativas ou perspectivas de
uma decisão judicial futura, representam, em verdade, situações jurídicas,

48
GOLDSCHMIDT, James. Principios generales del proceso. Buenos Aires: Ed. Juridicas Europa-América, 1961. t.
I, p. 25.
49
GOLDSCHMIDT, James. Principios generales del proceso. Buenos Aires: Ed. Juridicas Europa-América, 1961. t.
I, p. 57-58.
50
GOLDSCHMIDT, James. Principios generales del proceso. Buenos Aires: Ed. Juridicas Europa-América, 1961. t.
I, p. 60.

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Uma aproximação dos fatos jurídicos processuais extraprocedimentais 163

isto é, o “estado de una persona desde el punto de vista de la sentencia


judicial que se espera con arreglo en las normas jurídicas”.51
O modo de ver e considerar o direito, que converte todas as relações
jurídicas em expectativas ou perspectivas de uma decisão judicial de
conteúdo determinado, pode se denominar de concepção “dinâmica” do
direito em contraposição à concepção corrente, estática, que enfoca as
relações jurídicas como consequências necessárias dos fatos pressu­postos
como realizados.52
Em síntese, as situações jurídicas processuais, segundo Goldschmidt,
tendo a natureza de um simples estado da parte em relação à espera da
decisão judicial, poderiam ser simplificadas em: a) ocasiões processuais
(relacionadas a direitos absolutos, direitos relativos e direitos potestativos
processuais) e b) ônus processuais (relacionados aos deveres e obrigações
jurídicas).
A noção de situação jurídica tal como proposta por Goldschmidt,
apresenta alguns inconvenientes. Em primeiro lugar, porque as expec­
tativas ou perspectivas significam um estado psicológico do sujeito em
relação à decisão judicial que advirá, convertendo-se assim em uma
noção metajurídica.
Em segundo lugar é preciso considerar que se os direitos substan­
ciais discutidos em juízos podem estar afetados por uma situação de
incerteza, o certo é que o processo (seja encarado como uma relação
jurídica, situação jurídica ou como procedimento) não poderia se sujeitar
a tal contingência. Em outros termos, o que até poderia ter a existên­
cia questionada ou posta em dúvida seria a situação substancial deduzida
em juízo, a res in iudicium deducta, e não o processo em si. Essa crítica foi
bem colocada por Cintra, Grinover e Dinamarco: “toda aquela situação
de incerteza, expressa nos ônus, perspectivas, expectativas, possibili­dades,
refere-se à res in judicium deducta, não ao judicium em si mesmo: o que está
posto em dúvida, e talvez exista ou não, é o direito subjetivo material,
não o processo”.53 54

51
GOLDSCHMIDT, James. Principios generales del proceso. Buenos Aires: Ed. Juridicas Europa-América, 1961.
t. I, p. 62.
52
GOLDSCHMIDT, James. Principios generales del proceso. Buenos Aires: Ed. Juridicas Europa-América, 1961.
t. I, p. 65.
53
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do
processo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 1994. p. 280.
54
No mesmo sentido argumenta Araken de Assis: “parece curial que a relação substantiva — às vezes, por
hipótese, inexistente —, se diferencia daquele vínculo patente no processo” (ASSIS, Araken de. Cumulação de
ações. 4. ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 47).

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164 Pedro Henrique Pedrosa Nogueira

Em terceiro lugar, deve ser realçado que a concepção de situação


jurídica, proposta por Goldschmidt, parece carecer de completude.
Trata-se de uma tentativa de descrição do fenômeno jurídico processual
insusceptível de abranger a posição do órgão jurisdicional.
Vale dizer, busca o autor descrever e reduzir o fenômeno processual
à noção de situação jurídica (sua proposta é de superar o conceito de rela­
ção jurídica processual pelo conceito de processo enquanto situação jurí­
dica), mas na qual o juiz não ocupa e nem titulariza nenhuma posição.
Parece-nos mais útil descrever as situações jurídicas processuais,
a partir da divisão proposta por Marcos Bernardes de Mello.55 Trans­
portando a noção de situação jurídica do plano da Teoria Geral do
Direito para o Direito Processual, identificamos as seguintes situações
jurídicas processuais: i) qualidades processuais (situações jurídicas simples
unisubjetivas geradoras de qualificação de alguém em relação ao
processo, v.g., legitimidade processual ativa);56 ii) poderes processuais
(situação jurídica ativa que supõe o envolvimento de mais de um sujeito,
mas cujos efeitos se produzem apenas em um deles, v.g., os diversos
ônus no processo,57 tais como o ônus da prova, o ônus de contestar58 etc.);
iii) relações jurídicas processuais59 60 (vínculo entre dois sujeitos de direito
55
MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da eficácia. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 78 et
seq.
56
GOUVEIA FILHO, Roberto P. Campos. Existem legitimações puramente processuais?. Revista Dialética de Direito
Processual, São Paulo, n. 65, p. 113, ago. 2008.
57
Como salienta Paula Costa e Silva, “O titular de um poder processual, que lhe permite praticar actos, não
tem uma posição que se afira por contraposição à situação da parte contrária” (SILVA, Paula Costa e. Acto
e processo: o dogma da irrelevância da vontade na interpretação e nos vícios do acto postulativo. Coimbra:
Coimbra Ed., 2003. p. 155).
58
Tradicionalmente, a doutrina classifica o ônus como uma situação jurídica passiva, sem correspondente ativo,
pois o agente pratica o ato, desincumbindo-se do ônus, no interesse próprio e se o fizesse no interesse alheio,
estaria diante de um dever jurídico. Para nós, contudo, o ônus é uma situação jurídica ativa. Trata-se de um
poder atribuído para a prática de determinado ato no processo, sem uma situação de sujeição correlata (se
houvesse não seria situação jurídica complexa unilateral, mas relação jurídica). O que irá diferenciar o ônus
dos demais poderes processuais é a circunstância de que outra norma comina para a hipótese do não exercício
do poder uma consequência jurídica para o titular do ônus. Todavia, o que se considera como ônus não é
aquilo que o titular da situação jurídica sofre, mas aquilo que lhe é lícito fazer. Em sentido análogo, vendo o
ônus como uma situação jurídica ativa: TESHEINER, José Maria Rosa. Sobre o ônus da prova. In: MARINONI,
Luiz Guilherme (Coord.). Estudos de direito processual civil: homenagem ao Professor Egas Dirceu Moniz de
Aragão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 355 et seq.
59
A ideia de processo como relação jurídica vem sendo criticada por se constituir uma noção estática, insuficiente
para refletir toda a complexidade do fenômeno processual. Assim: MANDRIOLI, Crisanto. Diritto processuale
civile. Torino: G. Giappichelli, 2002. v. 1, p. 40; FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual. Tradução de
Elanie Nassif. Campinas: Bookseller, 2006. p. 140-141. O próprio Goldschmidt já atacava a noção de relação
jurídica processual, propondo sua concepção de processo como situação jurídica (GOLDSCHMIDT, James.
Principios generales del proceso. Buenos Aires: Ed. Juridicas Europa-América, 1961. t. I, p. 15, 25, 57-63).
Mais recentemente, no Brasil, endossam as críticas ao conceito de relação jurídica processual: MARINONI, Luiz
Guilherme. Curso de direito processual civil: teoria geral do processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
v. 1, p. 396-398; MITIDIERO, Daniel Francisco. Elementos para uma teoria contemporânea do processo civil
brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 140-141.
60
As críticas dirigidas ao conceito de relação jurídica processual, a nosso ver, devem ser recebidas com reservas.
Não se pode perder de vista que o conceito de relação jurídica representa uma noção estrutural, um conceito

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Uma aproximação dos fatos jurídicos processuais extraprocedimentais 165

a respeito de um objeto, tendo como conteúdo mínimo o direito subjetivo


e o correlativo dever processual). Em qualquer caso, elas decorrem de
fatos processuais (procedimentais ou extraprocedimentais).

5 Conclusão
Ao final do exposto, podemos concluir que o processo, entendido
como fato jurídico complexo de formação sucessiva, supõe a existência de
fatos que, integrados entre si, formam o procedimento.
Os fatos processuais (lícitos), procedimentais ou não, podem ser
classificados em: a) fatos processuais em sentido estrito; b) atos-fatos
processuais; c) atos processuais em sentido estrito; d) negócios jurídicos
processuais.
Há fatos jurídicos processuais pertencentes ao procedimento e
outros que, a despeito de se qualificarem como extraprocedimentais,
criam, modificam ou extinguem situações jurídicas processuais.

Referências

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assentado que o fenômeno processual também não pode ser reduzido à noção de relação jurídica processual.
Sob o ângulo da dinamicidade, a concepção que se revela mais adequada é a que vê o processo como um
fato jurídico. Admitir a existência de relações jurídicas processuais não implica abandonar a noção de processo
como fato jurídico (ato jurídico complexo de formação sucessiva), nem relegar a utilização da categoria do
ônus processual. Essas noções são todas úteis e não excludentes.

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Uma aproximação dos fatos jurídicos processuais extraprocedimentais 167

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Uma aproximação dos fatos jurídicos processuais
extraprocedimentais. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte,
ano 19, n. 73, p. 151-167, jan./mar. 2011.

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A tutela coletiva passiva do Código
Modelo de Processos Coletivos
para Ibero-América e sua aplicação
no direito brasileiro
Rafael Caselli Pereira
Mestre pela PUCRS (Pontifícia Universidade Católica do Estado do Rio Grande do Sul). Membro
e Especialista da ABDCP (Academia Brasileira de Direito Processual Civil). Curso de Extensão em
Direito Processual Constitucional pela Universidade de Lisboa. Autor de diversos artigos jurídicos.
Advogado.

Resumo: O presente artigo busca examinar a receptividade pelo ordenamento


jurídico brasileiro da denominada ação coletiva passiva (defendant class
action), de origem norte-americana. O referido instrumento processual
possibilita a demanda coletiva contra o grupo, categoria ou classe, desde
que adequadamente representado, e que a ação verse sobre direitos difusos
e coletivos, presente o interesse social. Num primeiro momento, analisar-se-á
o surgimento do instituto no direito comparado, passando pela proposta da
tutela coletiva passiva existente no Código Modelo de Processos Coletivos
para Ibero-América e pelo anteprojeto do Código Brasileiro de Processo
Coletivo.
Palavras-chave: Tutela coletiva passiva. Defendant class action. Código Modelo
de Processos Coletivos para Ibero-América. Código Brasileiro de Processos
Coletivos.
Sumário: Introdução – 1 Origem histórica da defendant class action – 2 A tutela
coletiva passiva no Brasil – 3 O Código Modelo de Processos Coletivos para
Ibero-América e o anteprojeto do Código Brasileiro de Processo Coletivo
– Conclusão – Referências

Introdução
É de conhecimento da comunidade jurídica a necessidade de um
microssistema que permita a adequação e o aperfeiçoamento das normas
processuais vigentes, a fim de que sejam razoavelmente aplicadas aos
litígios em que seja parte, ativa ou passiva, a coletividade.
A tutela jurisdicional coletiva despertou um especial interesse em
todos aqueles que estudam ou necessitam do Direito Processual Civil
para o desempenho de suas atividades profissionais.
Ainda que pouco explorada no ordenamento jurídico brasileiro, a
ação coletiva passiva não é novidade. Os dissídios coletivos na Justiça do
Trabalho e as convenções coletivas de consumo demonstram a necessidade

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170 Rafael Caselli Pereira

da criação de um sistema que permita a vinculação de todos os membros


da categoria, econômica ou profissional, a decisão judicial.
A ação coletiva originária passiva tem origem no sistema norte-
americano e, de lege ferenda, no ordenamento jurídico brasileiro, no
Anteprojeto de Código de Processos Coletivos.
O desenvolvimento e a importância da tutela coletiva estão eviden­
ciados pela usucapião coletiva, previstos no Estatuto da Cidade, além
da necessidade de possibilitar a defesa da sociedade perante grupos e
movimentos fortalecidos ao longo dos anos, tais como o Movimento Sem
Terra (MST), as torcidas organizadas, grêmios recreativos, associações
de moradores, consumidores, fornecedores, entre outros.
Em outubro de 2004, nas Jornadas de Estudos do Instituto Ibero-
Americano de Direito Processual (na Venezuela), foi apresentado o
Código Modelo de Processos Coletivos. A elaboração deste Código contou
com a colaboração especial dos professores Ada Pellegrini Grinover,
Kazuo Watanabe, Antonio Gibi e Aluisio Gonçalves de Castro Mendes.
O Código Modelo prevê expressamente a possibilidade do ajui­
zamento da ação coletiva perante uma coletividade organizada, sendo
restrito ao dispor sobre a coisa julgada.
As últimas Jornadas Brasileiras de Direito Processual Civil, evento
do Instituto Brasileiro de Direito Processual demonstrou, de forma
inequívoca, o aumento no interesse sobre o tema. Coincidindo com o
aniversário de 20 anos da denominada Lei da Ação Civil Pública (a Lei
nº 7.347/85), e com o aniversário de 15 anos do Código Brasileiro de
Defesa do Consumidor (a Lei nº 8.078/90), as Jornadas receberam um
novo desafio: o “Código Brasileiro de Processos Coletivos”.
O anteprojeto foi submetido a várias discussões de diversos grupos
de estudos, tendo sido ampliado os efeitos da coisa julgada com relação
aqueles previstos no Código Modelo. A versão final foi acrescida de
sugestões apresentadas pela Casa Civil, pela Secretaria de Assuntos
Legislativos, pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, pelos Minis­
térios Públicos de Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul e São Paulo,
além das sugestões de outros grupos de estudos.
O anteprojeto foi apresentado e entregue ao Ministério da Justiça,
em janeiro de 2007, e ainda está sendo analisado.
O presente estudo está divido em três seção, sendo o primeiro
uma abordagem histórica do instituto-espécie da class action com a

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A tutela coletiva passiva do Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América e sua aplicação... 171

consequente referência aos leading cases das denominadas defendant


class action, explicitando as razões que facilitaram o desenvolvimento
do direito norte-americano em comparação ao direito brasileiro.
No segundo seção tratamos da hipótese de cabimento da ação
coletiva originária no ordenamento jurídico brasileiro através da análise
de aspectos que podem impedir ou limitar a aplicação do instituto, como
a ausência de previsão legal para aplicação da ação coletiva, limites da
legitimidade e análise da jurisprudência brasileira.
Ao encerrar o presente estudo analisaremos as condições espe­­­cí­-
fi­­
­­­­ cas para o exercício da ação coletiva passiva originária no Código
Brasileiro de Processos Coletivos, bem como no já vigente Código Modelo
de Processos Coletivos para Ibero-América.

1 Origem histórica da defendant class action


Um dos primeiros relatos de ação coletiva passiva1 de que se tem
notícia ocorreu no ano de 1199, onde o Pároco (Rector) Martin, de Barkway,
ajuizou ação na Corte Eclesiástica de Canterbury em face dos paroquia­
nos (parishioners) de Nuthampstead. O objeto da demanda se demonstra
obscuro, tendo em vista que o único documento que sobreviveu aos efeitos
do tempo foi o termo do depoimento das testemunhas indicadas pelas
partes. Pode-se concluir, ainda assim, que a ação versava sobre os direitos
a certas oferendas religiosas e a necessidade de se colocar diariamente
um pastor para celebrar missas, casamentos, batismos, etc. na capela
Nuthampestead, recém-adjudicada a paróquia Barkway.2
No século seguinte, três aldeões, em nome próprio e de toda comu­
nidade de Helpingham, ajuizaram ação em face das comunidades de
Donington e Bykere, identificando no polo passivo como “representantes”
da coletividade apenas alguns habitantes das respectivas comunidades.
A ação versava sobre a omissão dos aldeões de Bykere em auxiliar os
habitantes de Helpingham na reparação de diques locais.3
Ambos os casos possuem semelhanças interessantes, uma vez
que as ações coletivas não foram ajuizadas em razão dos indivíduos

1
Master Martin Rector of Barkway c. Parishioners of Nuthampstead, 1199. In: DONAHUE JR., Charles; ADAMS,
Norma. Select Cases from the Ecclesiastical Courts of the Province of Cantebury c. 1200-1301. London: Selden
Society, 1981.
2
DONAHUE JR., Charles; ADAMS, Norma. Select Cases from the Ecclesiastical Courts of the Province of Cantebury
c. 1200-1301. London: Selden Society, 1981. cap. A, p. 8.
3
YAZELL, Stephen C. From Medieval Group Litigantion to the Modern Class Action. New Haven and London:
Yale University Press, 1987. p. 38.

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172 Rafael Caselli Pereira

pertencentes a coletividade, mas sim em face do grupo, na situação em


que alguns representavam a coletividade em nome dos demais. Já naquela
época observamos a existência da representatividade da coletividade
por determinados indivíduos, tais como na atualidade representam o
MST (Movimento Sem Terra).
No final do século XVII começa a emergir a questão da represen­
tação na esfera judicial coletiva.
No entendimento do autor Antonio Gidi,4 “quando se fala em
‘representação’ não se refere a ‘representação’ no sentido técnico-jurídico
da palavra no sentido processual civil brasileiro. Refere-as àqueles
legitimados pelo direito positivo de um país a propor uma ação coletiva
em benefício do grupo titular do direito difuso, coletivo ou individual
homogêneo. ‘Representante’ aqui se deve ser considerado como sinô­ni­
mo de ‘porta-voz’: o autor da ação coletiva é um porta-voz dos interesses
do grupo, sendo seu portador em juízo”.
Mudanças também começaram a ser engendradas na ciência do
direito, que até então reunia em um só instituto o direito substancial
e processual. Até o início do período moderno vigorava a visão plana do
ordenamento jurídico, em que o direito processual era visto como mero
capítulo do direito privado.
Sob influência das relações sociais da época, começou a se disse­mi­
nar a teoria autonomista do processo, na qual foi racionalizada e desen­­vol­
vida a ideia de relação jurídica processual.
Em sua tese de doutorado,5 Daniel Mitidiero6 ressalta o marco
histórico do estudo do direito processual como ciência autônoma através
da famosa obra de Oskar von Bülow, publicada em 1868, parcial­mente
sistematizado ainda àquele tempo por Adolf Wach, desvinculando o
direito processual do material, abrindo campo para a formação do que
conhecemos hoje como teoria geral do processo.
Diante disso, podemos compreender que parte do desinteresse
pelas ações coletivas no final do período moderno também se deveu à
estrutura processual individualista moldada à época.

4
GIDI, Antonio. A representação adequada nas ações coletivas brasileiras: uma proposta. Revista de Processo,
v. 108, p. 61-62, out./dez. 2002.
5
Conforme salientado pelo próprio professor Daniel Mitidiero, o marco teórico para sua obra foi o formalismo-
valorativo, cuja expressão surgiu na obra de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira, Do formalismo no processo civil.
2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
6
MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 23.

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A tutela coletiva passiva do Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América e sua aplicação... 173

Ante a aflição e insatisfação coletiva das precárias condições de


trabalho na primeira fase da revolução industrial, a classe trabalhadora
foi pioneira em se transformar em um movimento de classe organizado.
Em dissertação de mestrado recentemente publicada, Diogo Campos
Medina Maia7 aborda com muita sabedoria o tema das ações coletivas
passivas, trazendo em detalhes o desenvolvimento histórico do assunto,
salientando que “No Brasil, o sistema de defesa de direitos coletivos foi
estabelecido como o surgimento dos métodos de solução de conflitos
coletivos do trabalho (conselhos Mistos e Permanentes de Conciliação,
1931), que evoluíram para os dissídios coletivos. A ação popular também
se apresentou como forte peça na engrenagem de defesa dos direitos
coletivos. No entanto, comente com o advento da Lei da Ação Civil
Pública, em 1985, foi inaugurada a maciça tendência de proteção aos
direitos transindividuais, seguida pela constituição Federal de 1988 e pelo
código de Defesa do Consumidor, de 1990, que mantiveram a tendência
protecionista dos movimentos processuais coletivos”.
Os conflitos da classe operária no Brasil merecem destaque no
presente trabalho, pois, além de inaugurarem a tutela coletiva de direitos
brasileira, apresentam as primeiras ações coletivas passivas pátrias.
A nota característica desses novos direitos reconhecidos é que seu
titular não mais é considerado o indivíduo, mas sim a coletividade. O
apego extremado às forças mostrou-se não só inadequado a satisfazer
a evolução natural da necessidades humanas, como capaz de legitimar
a injustiça.
O Processo Civil passou por uma reformulação completa e começou
a ser tratado, sobremaneira, como instrumento para o alcance da Justiça,
em detrimento das formalidades procedimentais.8
Inexiste um marco preciso sobre o início do desenvolvimento dos
estudos da tutela coletiva da idade contemporânea; contudo, não há
como deixar de ressaltar a importância da clássica obra Acesso à Justiça
do professor italiano Mauro Cappelletti como forma de apresentar
soluções para as mazelas processuais individualistas.
A tutela coletiva passiva, como era de se esperar, não se desenvolveu
com a mesma intensidade do processo coletivo em geral.

7
MAIA, Diego Campos Medina. Ação coletiva passiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 21.
8
Não podemos deixar de referir as quatro grandes fases metodológicas do direito processual civil referidas com
muita sabedoria por Daniel Mitidiero na obra Colaboração no processo civil: o praxismo, o processualismo, o
instrumentalismo e o formalismo-valorativo.

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174 Rafael Caselli Pereira

A estrutura do sistema de legitimidade adotado no Brasil para a


defesa de direitos coletivos foi, sem dúvida, um dos principais óbices
ao desenvolvimento da ação coletiva passiva.
Ainda que a doutrina não se tenha ocupado significativamente
do tema sob a ótica da legitimidade passiva da coletividade, os conflitos
de interesses em que a coletividade deve se encontrar no polo passivo
da demanda existem e, mais do que nunca, estão evidentes na socie­
dade, já estando expressados inclusive na jurisprudência brasileira, o
que oportunamente abordaremos.
As ações “contra classes” desenvolveram-se no sistema norte-
americano em razão da homogeneidade de tratamento dispensada ao
autor e ao réu no que concerne à legitimidade para figurar no processo.
Em geral, a estrutura da regra 23 do Código de Processo Civil norte-
americano (Federal Rules of Civil Procedure), que trata das class actions na
Justiça Federal9 é simétrica, não fazendo distinção entre o autor e o réu
no litígio coletivo.10
Ao tratar da questão histórica das class actions, Diego Campos
Medina Maia11 aponta como responsável pela inserção das ações cole­tivas
nos EUA o juiz Joseph Story,12 da Suprema Corte norte-americana, com
seus estudos sobre a representação coletiva em juízo.13 Curiosamente,
o magistrado teve o interesse despertado sobre os litígios coletivos
analisando uma demanda individual (West v. Randall, 1820), que o fez
refletir sobre a real necessidade de reunião em litígios judiciais de todas
as partes interessadas.
A notoriedade dos estudos de Story repercutiu na Suprema Corte
norte-americana que, em 1842, promulgou uma equity rule, admitindo
expressamente o litígio de grupo.
Conhecida como Equity Rule 48, a disposição não fazia distinção
entre a existência de coletividade no polo ativo ou passivo da demanda.

9
Através do Class Action Fairness ACT, de 18 de fevereiro de 2005, as possibilidades de ajuizamento de class
action estatais foram reduzidas, aumentando-se significativamente a competência federal, que passou a
ficar determinada para as ações onde a classe ultrapassar 100 pessoas ou o valor da demanda for superior
a US$5.000.000,00 (cinco milhões de dólares americanos), entre outros vários requisitos que tornam a
competência federal quase absoluta para o julgamento das class action.
10
FISS, Owen; BRONSTEEN, John. The Class Actions Rule. Notre Dame Law Review, n. 78, p. 1422.
11
MAIA, Diego Campos Medina. Ação coletiva passiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 33.
12
O objetivo das lides de classe, para o citado jurista, era evitar as demandas inúteis e prevenir a multiplicidade
de processos.
13
Em especial nos dois tratados sobre equidade: Commentaries on equity jurisprudence (1836) e Mommentaries
on equity pleadings (1838).

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A tutela coletiva passiva do Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América e sua aplicação... 175

Em 25 de abril de 1854, a Suprema Corte do EUA decidiu de


forma contrária à Equity Rule 48, permitindo, em um leading case14 (Smith
v. Swormstedt),15 a vinculação integral de uma coletividade aos termos da
sua decisão, incluindo os membros ausentes.
Em 1898, outra ação coletiva, em que a coletividade se encontrava
no polo passivo, foi julgada pela Suprema Corte norte-americana, com
efeito vinculante à integralidade do grupo. Em American Steel & Wire
Co. v. Wire Drawers’ & Die Makers’ Unions o autor, uma empresa privada,
ajuizou ação em face de trabalhadores que, em abuso de direito de
greve, perturbavam o exercício regular de suas atividades.
Em seu voto, o MR. Justice J. Hammond mencionou que uma
das características da tutela pretendida pelo autor (injunction) era o
seu alcance a todo o grupo, independente de haver citação pessoas
ou participação no processo e, principalmente, que o seu resultado, de
forma natural deveria vincular a todos, indistintamente.16
No mesmo tom, garantiu o magistrado Hammond a apreciação
do mérito da demanda, explicando que o fato de não haver personali­
dade de sua inclusão no polo passivo, na medida em que, tecnicamente,
o processo não era em face da entidade, mas de seus membros, por
ela representados. Finalmente, reconheceu o julgador o que seria mais
importante em termos de tutela coletiva passiva: a coletividade se fazia
representar de forma adequada pelas partes trazidas a juízo (pelos
líderes no movimento paredista), o que daria legitimidade ao caso para
prosse­guir e vincular a todos de forma coletiva, de acordo com o caso
concreto.17

14
Semelhante ao Brasil, onde temos as Revistas de jurisprudências do Superior Tribunal de Justiça, nos Estados
Unidos não e diferente, sendo as decisões da Suprema Corte norte-americana publicadas em livros periódicos
chamados United States Reports.
15
No notório julgamento, a coletividade vinculada figurava justamente no polo passivo de uma ação duplamente
coletiva: seis pessoas, entre as quais figurava Smith (muito embora Smith tenha sido o nome dado ao caso, na
verdade, William A. Smith não foi autor original da ação, havendo ingressado no lugar de Henry B. Bascom,
após seu falecimento), representando aproximadamente 1.500 pastores da Igreja Metodista Episcopal do
Sul (originada da cisão da Igreja Metodista Episcopal nacional), exerceram seu direito de ação em face dos
pastores que restaram na igreja originária da cisão (Igreja Metodista Episcopal nacional), em nome de apenas
três pessoas, entre eles Swoemstedt, que representavam outros mais de 3.000 pastores. O objeto da ação
era a recuperação da propriedade de porção de um fundo, originariamente instituído pela Igreja Metodista
Episcopal nacional antes da cisão e que após a separação, foi negado aos pastores da Igreja do Sul sob o
fundamento de que, se a cisão havia sido voluntária, nada seria devido aos pastores da nova igreja sulista.
16
It is one of the features of an interlocutory injunction that it reaches all Who are parties, whether they have
been served with process of subpoena or not, whether they have appeared or not, whether they have answered
or not; and it binds all Who have notice of it, whether they are parties or not” 90 F. * 598, p. 604, in: 1898
U.S. App. Lexix 2515, p. 16* (Circuit Court, N. D. Ohio, E.D).
17
MAIA, Diego Campos Medina. Ação coletiva passiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 36-37.

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176 Rafael Caselli Pereira

Alguns anos após, em 1938, surgem nos EUA as Federal Rules of


Civil Procedure (equivalente ao Código de Processo Civil Brasileiro),
prevendo na Rule 2318 as class actions, que viriam a ganhar notoriedade
como principal forma de defesa de direitos transindividuais na América
do Norte, prevendo que um ou mais membros de uma classe podem
demandar ou ser demandados.
Na Equity Rule 48 consta expresso que as partes, em qualquer polo
da relação processual, podiam fazer-se substituir por representante
adequado, garantida a vinculação da coletividade, mesmo os ausentes.
Convém mencionar que o procedimento adotado nos Estados
Unidos para as defendant class actions não difere, substancialmente,
daquele reservado para as plaintiff class actions19 (as ações coletivas em
que a coletividade se encontra no polo ativo). Ambas são reguladas pela
Rule 23, das Federal Rules of Civil Procedure.
Segundo um dos relatores do Código, o professor James W. Moore,
na Rule 23 foram discriminados três tipos de ações coletivas, a saber,
verdadeira, híbrida e espúria, onde a diferença entre elas dependia da relação
jurídica entre os membros da classe e o direito objeto da ação. Contudo,
tinha como pressuposto fundamental, para todas, o fato da ação envolver
uma classe de pessoas tão numerosas que fazia ser impraticável trazer
todos os seus membros em juízo, de modo que uma ação contra ou por ela
pudesse ser proposta, garantida a representação adequada da classe.20

18
Regra 23 (a): Pressupostos para uma Class Action. Um ou mais membros de uma classe podem demandar ou
ser demandados, como partes representantes, em nome de todos, apenas se (1) a classe for tão numerosa
que a reunião de todos os membros seja impraticável, (2) houver questões de direito ou de fato comuns à
classe, (3) os pedidos ou defesas das partes representantes forem típicos pedidos ou defesas da classe, e (4)
as partes representantes protegerem eficaz e adequadamente os interesses da classe.
19
Há algumas peculiaridades importantes, relacionadas ao tema que conhecemos como “legitimidade passiva”:
a) exige-se, para que ocorra a certification — ou seja, a admissibilidade da demanda como class action —,
que o autor comprove tratar-se de ação coletiva, que será ajuizada em face de um dos class members (nas
plaintiff class actions essa incumbência é do representante adequado da coletividade); b) como decorrência
desse ônus, ao autor incumbirá demonstrar a denominada adequacy of representation, ou seja, que o class
member, efetivamente é um representante da classe, apto a representar o grupo na qualidade de demandado
(class representative); nas plaintiff class actions, portanto, a caracterização da representatividade adequada é
ônus do demandante, que dele se desincumbe sob pena de não receber a certification; nas defendant class
actions, o autor da demanda deverá demonstrar que há interesses da classe, contrários ao seu e que o class
member tem condições de representá-la.
Alertam os estudiosos que os tribunais devem cuidar, de forma especial, para que não ocorram eventuais
conluios entre o suposto class representative e o autor da demanda coletiva passiva. Acrescente-se que o
class member demandado pode — e há notícias jurisprudenciais que o confirmam — negar a sua condição
de representante do grupo demandado, surgindo diversas consequências que deverão ser solucionadas pelo
juízo competente (desde a determinação da indicação de outro class member, passando pela denegação da
certification, chegando à determinação da manutenção do class member por entender que há sim, no caso
concreto, a presença da representação adequada).
20
James Morre apud RODRIGUES NETTO, Nelson. Subsídios para a ação coletiva passiva brasileira. Revista de
Processo. v. 32, n. 149, p. 79-103, 2007.

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A tutela coletiva passiva do Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América e sua aplicação... 177

Tal regramento foi reescrito em 1966, por intermédio das Advisory


Committee Notes, o qual traz quatro prerrequisitos para o exercício de
qualquer ação coletiva, quais sejam, a numerosidade, questões comuns,
tipicidade e representação adequada (adequacy of representation), perma­
necendo até os dias de hoje.
A questão de maior revelo no desenvolvimento da ação coletiva
passiva nos EUA foi, e sem dúvida ainda é, a formal aceitação pela Corte
da representatividade adequada daquele que litiga pelo grupo. Com
essa aceitação formal, o direito norte-americano permite a existência da
ação coletiva passiva em seu ordenamento jurídico.
No Brasil, apesar de inexistir previsão legal expressa para o
ajuizamento de ação coletiva passiva, o simples desenvolvimento da
sociedade gerou a necessidade de um maior controle do Movimento Sem
Terra (MST), das torcidas organizadas, grêmios recreativos, associações
de moradores, consumidores, fornecedores, dentre outros, fato que já
pode ser verificado estar ocorrendo, como demonstram alguns julgados
que serão oportunamente analisados.
No direito material, algumas previsões refletem esta realidade
social, tais como as hipóteses de aquisição de direito e obrigações de forma
coletiva, por meio das convenções e dos acordos coletivos trabalhistas
(art. 611, caput e parágrafo 1º, da CLT), das convenções coletivas de
con­sumo (art. 107, do CDC) e da usucapião coletiva (art. 10 da Lei nº
10.257/01 – Estatuto da Cidade), entre outros.
Para fins de legislação aplicável à ação coletiva podemos citar a Lei
da Ação Civil Pública (a Lei nº 7.347/85), o Código Brasileiro de Defesa
do Consumidor (a Lei nº 8.078/90), o Código Modelo de Processos
Coletivos, apresentado no ano de 2004, além do “Código Brasileiro
de Processos Coletivos”, cuja aprovação é aguardada por nosso orde­
namento jurídico.

2 A tutela coletiva passiva no Brasil


Antes de adentrar ao tema deste segundo capítulo, alertamos para
existência de dois pontos de vista da doutrina acerca da existência ou
não da ação coletiva passiva, antes mesmo da vigência do “Código
das Ações Coletivas”. Assim, iremos tratar somente da corrente que
vislumbrou, tal como fizemos a preexistência da defendant class action no
direito brasileiro.

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Mesmo inexistindo atualmente previsão expressa acerca da


possibilidade das ações coletivas passivas no ordenamento jurídico
brasileiro, localizamos na jurisprudências casos em que o problema da
representatividade foi tranquilamente superado.
José Maria Rosa Tesheiner21 leciona que “no campo do processo,
cunhou-se a expressão ‘personalidade judiciária’, definida como aptidão
para ser parte, independentemente da existência ou não de personali­
dade jurídica, nos termos do Direito Civil. Assim, não são pessoas, mas
têm aptidão para serem sujeitos do processo, a massa falida, a herança
jacente ou vacante, o espólio, o condomínio e as sociedades sem perso­
nalidade jurídica (CPC, art. 12)”.
De um ponto de vista estritamente lógico, o reconhecimento
da capacidade de ser parte (personalidade judiciária) importa no reco­
nhecimento da personalidade jurídica do ente havido como possível
sujeito do processo, isto é, como centro de imputação de direitos e obri­
gações processuais.
O Código do Consumidor prossegue nessa trilha. Entidades sem
personalidade jurídica podem ser autoras (art. 82, III) ou rés (art. 3º),
havendo ainda uma seção dedicada à desconsideração da personali­dade
jurídica (art. 28).
A legitimidade passiva do MST (Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra) foi claramente aceita pelo Poder Judiciário em inú­
meros julgados, tais como os três arestos abaixo colacionados:

Apelação cível. Ação civil pública. Meio ambiente. Invasão de terras promovida
pelo MST. Resíduos sólidos deixados na propriedade. Responsabilidade por sua remoção.
Tratando-se apenas de limpar os resíduos sólidos existentes na propriedade do
requerido, deixados pelos integrantes dos movimentos sociais que a ocupa­ram,
por cerca de quarenta dias, mostra-se viável que ele realize a limpeza da área, pois
a omissão pode levar à perenização da poluição em sua fazenda, representada
por restos de barracas, garrafas pet, latas de óleo e pilhas, fundamentalmente.
Da sentença deve ser excluída apenas a ordem de apresentar laudo técnico,
porque disso o Ministério Público desistiu no curso da lide. Apelação provida
em parte. Voto vencido. (Apelação Cível nº 70025682154, Vigésima Segunda
Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rejane Maria Dias de Castro
Bins, julgado em 11.12.2008)

Agravo de instrumento. Movimento dos trabalhadores rurais sem terra. MST.


Falta de personalidade jurídica. Legitimidade passiva. Possibilidade. Personalidade

21
TESHEINER, Jose Maria Rosa. Ações coletivas pró-consumidor. Disponível em: <http://www.tex.pro.br/wwwroot/
artigosproftesheiner/coletivs.htm>. Acesso em: 09 set. 2010.

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A tutela coletiva passiva do Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América e sua aplicação... 179

judiciária. Agravo provido. (Agravo de Instrumento nº 70005527601, Décima


Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Alexandre Mussoi
Moreira, julgado em 11.02.2003)

Processual civil. Personalidade judiciária. Comunidade de fato. Inexistência. Falta de


interesse de agir.
1. O direito à tutela jurídica do estado compete a todos, pessoas naturais e jurídicas,
nacionais e estrangeiros, cidadãos ou não, e inclusive a entes sem personalidade jurídica,
a exemplo da comunidade de fato designada de ‘Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra’ – MST, que ostenta, portanto, personalidade judiciária. No entanto, só lhe
compete, nos termos do art. 1º, parágrafo único, do Decreto nº 2.250/97, indicar imóvel
para fins de reforma agrária, não lhe reconhecendo a ordem jurídica direito a pleitear
vistoria judicial de imóveis para tal efeito.
2. Agravo de Instrumento provido. (Agravo de Instrumento nº 70.000.186.833,
4ª Câmara Cível, relator Desembargador Araken de Assis, julgado em
29.12.1999)

Vejamos que não obstante o movimento ter alegado (como sempre


o faz) ser parte ilegítima para figurar no polo passivo dos processos,
por ser desprovido de personalidade jurídica, em ambos os casos acima
referidos, foi considerada a legitimidade do MST ante a representati­­vi­
dade política e social exercida na busca da reforma agrária, bem como
pelo fato de que são reconhecidas as diversas ocupações e assenta­
mentos criados por força de suas ações, sendo suas lideranças facilmente
identificadas pelas declarações prestadas com certa frequência à mídia.
O próprio Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Espe­­
cial nº 1.551/MG22 já se posicionou no sentido de que podem litigar em
juízo as pessoas formais, as sociedades de fato, ainda sem personalidade
jurídica.
Noutra oportunidade, o mesmo Superior Tribunal de Justiça23
consagrou que “o legislador de 1973, ao atribuir, no art. 12 – VII do
CPC, capacidade para ser parte às sociedades sem personalidade jurí­
dica, colimou, embora com desapego com o rigor científico, tornar menos
gra­vosa a situação processual dos que com tais sociedades irregulares
litigam”.
Assim, utilizando-se do exemplo do MST, o qual é considerado
parte legítima para figurar no polo passivo das ações que lhe são movidas,
sendo a sociedade de fato usualmente citada na pessoa de quem lá

22
Resp. nº 1.551-MG, relator Ministro Athos Gusmão Carneiro, DJU, p. 2743, 09 abr. 90.
23
Resp. nº 14.180-0/SP, 4ª Turma, relator Ministro Sálvio de Figueiredo, DJU, p. 12895, 28 jun. 93.

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180 Rafael Caselli Pereira

estiver administrando seus interesses (artigo 12, inciso VII, do CPC),


eis que, a despeito da ausência de personalidade, responde pelos atos
que vem praticar frente a terceiros, encontrando supedâneo, também,
a legitimatio ad causam em debate, no “princípio da responsabilidade
inci­dente sobre a massa patrimonial e sua repercussão no acervo dos
indivíduos componentes”.24
Na cidade de São Paulo, podemos relatar casos de extinção de
determinadas torcidas organizadas, por conta do desvio de sua finalidade,
que era, inicialmente, de incentivo ao esporte, tendo-se transformado
em verdadeiros grupos de estímulos à violência e à barbárie.
O movimento de ações judiciais iniciado pelo Ministério Público
paulistano contra as torcidas organizadas, resultou na extinção, entre
outras, das famosas torcidas Mancha Verde do Palmeiras, Tricolor Inde­
pendente do São Paulo e Gaviões da Fiel do Corinthians.
Na cidade do Rio de Janeiro podemos citar o exemplo da ação
civil pública ajuizada pelo Estado do Rio de Janeiro em face da Asso­
ciação dos Defensores Públicos daquele Estado, por conta de greve
deflagrada pelos citados servidores. Na petição inicial, o Estado alegava
a necessidade de preservação de direito difusos, que consistiam em
mates a possibilidade de acesso à justiça pelos hipossuficientes e a con­
tinuidade do serviço público, reputados essenciais à manutenção do ente
federativo. O processo, no entanto, foi extinto, sem resolução de mérito,
por ausência de legitimidade da parte ré.25
Outras ações similares que podemos citar são as movidas pelo
Estado de Minas Gerais, em face de várias associações e do sindicato do
Policiais Militares26 e a ação ajuizada pelo Estado do Rio de Janeiro em
face do Sindicado dos Servidores da Secretaria de Justiça,27 em razão
de greves reputadas ilegais e abusivas. Nestes dois casos, diferente da
hipótese da associação dos defensores públicos, os pedidos prosperaram
e a coletividade foi afetada pela decisão contrária aos seus interesses.
Antonio Gidi28 traz outros exemplos: “...a ação coletiva poderá ser
utilizada quando todos os estudantes de uma cidade ou de um Estado
24
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980. v. 1, p. 296,
297.
25
Decisão publicada no DOU, fls. 162-163, 11 jul. 2005.
26
Processo nº 1.0024.04.378812-4.
27
Processo nº 2004.001071875-4.
28
GIDI. A Class Action como instrumento de tutela coletiva dos direitos, cit., p. 392. Ver, ainda, a respeito do
tema, GIDI, Antonio “Notas críticas al anteproyecto de Código Modelo de Procesos Colectivos del Instituto
Iberoamericano de Derecho Procesal” (GIDI, Antonio; MAC-GREGOR, Eduardo Ferrer (Coord.). La tutela de los

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tiverem uma pretensão contra todas as escolas, cada um desses grupos


sendo representado por uma associação que os reúna. Igualmente, ações
coletivas poderão ser propostas contra lojas, cartórios, órgãos públicos,
planos de seguro-saúde, prisões, fábricas, cidades etc., em benefício de
consumidores, prisioneiros, empregados, contribuintes de impostos ou
taxas ou mesmo em benefício do meio ambiente”.
De todos os exemplos dados, nenhum chama mais a atenção a do
que o julgado proveniente do Pleno do Tribunal de Justiça do Estado do
Espírito Santo, ao ilustrar no corpo da ementa a preexistência da ação
coletiva passiva mesmo inexistindo previsão normativa explícita, vejamos:

Constitucional e processual civil. Ação coletiva passiva (Defendant class action).


Ilegitimidade passiva. Ausência de interesse de agir. Precatório da “trimestralidade” (Lei nº
3.935/87). Inconstitucionalidade. Precedentes vinculantes do Supremo Tribunal Federal.
Relativização da coisa julgada. Procedência. 1. A classe tem legitimidade para figurar no
pólo passivo de demanda coletiva, desde que observado o requisito da representatividade
adequada, mesmo que não exista previsão normativa explícita. O ativismo judicial permite
seja a admissibilidade inferida das garantias constitucionais do acesso à justiça, da vedação
do non liquet, do due process of law e outras, pois “não se deve excluir a priori, de lege lata,
a via do acesso à justiça contra a classe, porquanto a defining function do juiz, própria
das ações coletivas (ativas ou passivas), autoriza a solução judicial de situações justapostas
às previstas em lei (...)” (ADA PELLEGRINI GRINOVER, O Processo, São Paulo:
Perfil, 2005, pp. 219-221). 2. A procedência da demanda coletiva passiva (defendant
class action) afeta a esfera individual dos associados independentemente do exercício
pessoal do contraditório. Com maior razão se participam, em polos invertidos, exatamente
aqueles que figuraram na demanda geradora do ato objurgado. 3. A inexigibilidade da
obrigação, por ineficácia do título judicial (sentença ou acórdão) fundado em lei
ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal
ou em aplicação ou interpretação tidas por incompatíveis com a Constituição
da República, pode ser reconhecida quando a declaração ocorreu “[...] em
controle concentrado ou difuso (independentemente de resolução do Senado)
[...]” (REsp 803099/SP, Relator Ministro TEORI ZAVASCKI, DJ 6.3.2006, p.
253). 4. “A irrecorribilidade de uma sentença não apaga a inconstitucionalidade
daqueles resultados substanciais política e socialmente ilegítimos, que a
Constituição repudia. Daí a propriedade e a legitimidade sistemática da
locução, aparentemente paradoxal, coisa julgada inconstitucional”. (Dinamarco.
Relativizar a coisa julgada material, REPRO 109/28, 2003, p.28) 5. O art. 6º da
Lei Estadual nº 3.935/87 é inconstitucional, pois vincula o reajuste de vencimento
dos servidores estaduais ao IPC, índice federal de correção monetária.
Precedentes do STF (RE 166.581/ES e RE 204.882/ES), inclusive em Ações
Diretas de Inconstitucionalidade (ADI-MC 437/SC, ADI 303/RS, ADI 1064/MS

derechos difusos, colectivos e individuales homogêneos: hacia un código modelo para Iberoamérica. Mexico:
Porrúa, 2003. p. 411; GIDI, Antonio. Coisa julgada e litispendência nas ações coletivas. São Paulo: Saraiva,
1995. p. 51-52, nota 128.

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182 Rafael Caselli Pereira

e ADI 464/GO), que têm efeito vinculante, nos termos do art. 28, p.u., da Lei
nº 9.868/99 e do §2º do art. 102 da Constituição da República, com a redação
dada pela EC 45/2004. 6. O efeito vinculante das decisões do STF encontra-se
na ratio decidendi (UK), também chamada holding (USA), isto é, nas razões
constantes na fundamentação. Não há como falar em precedente vinculante
sem compreender qual é a parte da decisão que vincula. “A ratio decidendi,
como já observado, constitui a essência da tese jurídica suficiente para decidir
o caso concreto (rule of law). É essa regra de direito (e, jamais, de fato) que
vincula os julgamentos futuros inter alia” (JOSÉ ROGÉRIO CRUZ E TUCCI,
cf. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: RT, 2004, p. 175). 7. A
indicação específica da lei declarada inconstitucional é mero obiter dictum, pois
quando suprimida não altera o resultado do julgamento. O STF já reconheceu
ser cabível reclamação para preservar o efeito vinculante de suas decisões,
mesmo quando a norma declarada inconstitucional for diversa (obiter dictum),
desde que — é óbvio — as razões da decisão (isto é, a ratio decidendi) sejam
idênticas (Rcl 4906/PA, Relator Ministro JOAQUIM BARBOSA). 8. Demanda
procedente. (TJES, Classe: Ação Declaratória Incidental nº 100070019698,
Relator : Samuel Meira Brasil Junior, Órgão julgador: Tribunal Pleno, Data de
Julgamento: 12.06.2008, Data da Publicação no Diário: 14.07.2008)

Há notícia de ação coletiva proposta contra o sindicato de reven­


dedores de combustível, em que se pediu uma adequação dos preços a
limites máximos de lucro, como forma de proteção da concorrência e
dos consumidores.29
Assim, não obstante as críticas acerca da ausência de previsão legal
que legitime a existência da ação coletiva passiva, nossa jurisprudência
demonstra recepcionar o instituto originado do direito norte-americano.
A pedra de toque para o cabimento dessas ações é a representa­ti­
vidade adequada do legitimado passivo, acompanhada pelo requisito
do interesse social.
Nas palavras de Diogo Campos Medina Maia,30 “a ação coletiva
passiva insere-se no ordenamento jurídico, alargando o rol de direitos
indi­viduais que podem ser defendidos coletivamente. Com efeito, a ação
contra a coletividade também permite a defesa de direitos individuais
homogeneamente lesionados ou homogeneamente ameaçados de lesão, que
nada mais são do que direitos essencialmente individuais lesionados
ou ameaçados de lesão por uma coletividade organizada. Este é o prin­
cipal ponto de diferenciação entre os dois tipos de ação coletiva —
passiva e ativa”.

29
VIOLIN, Jordão. Ação coletiva passiva: fundamentos e perfis. Salvador: JusPodivm, 2008. p. 79-80.
30
MAIA, Diogo Campos Medina. Ação coletiva passiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 51.

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A tutela coletiva passiva do Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América e sua aplicação... 183

Ademais, consoante outrora defendia a Professora Ada Pellegrini


Grinover,31 o §2º do art. 5º da Lei da Ação Civil Pública possibilita a
habilitação dos colegitimados como litisconsorte de qualquer das partes,
autor ou réu, de modo que a demanda também possa ser proposta
contra o representante da classe. Lembra ainda, que o art. 107,32 do
CDC, contempla a chamada convenção coletiva de consumo, acordo
escrito estabelecido entre representantes de consumidores e fornecedores
para regular relação de consumo, bem como composição de conflito de
consumo, entre outros pontos.
Seguindo o regime jurídico de toda ação coletiva, exige-se para a
admissibilidade da ação coletiva passiva que a demanda seja proposta
contra um “representante adequado” (legitimado extraordinário para
a defesa de uma situação jurídica coletiva) e que a causa se revista de
“interesse social”. Neste aspecto, portanto, nada há de peculiar na ação
coletiva passiva.
O que torna a ação coletiva passiva digna de um tratamento
dife­
renciado é a circunstância de a situação jurídica titularizada pela
coletividade ser uma situação jurídica passiva. A demanda é dirigida
contra uma coletividade, tal como no exemplo do MST, que é o sujeito
de uma situação jurídica passiva (um dever ou um estado de sujeição,
por exemplo).
Haverá uma ação coletiva passiva, portanto, em toda demanda
onde estiver em discussão uma situação coletiva passiva. Seja como corre­
lata a um direito individual, seja como correlata a um direito coletivo.
Com relação ao conceito para ação coletiva passiva, utilizaremo-
nos novamente das lições da recente obra de Diogo Campos Medina
Maia,33 que partindo do conceito do professor Aluisio Mendes as define
como “o direito apto a ser legítima e autonomamente exercido, de modo
ordinário ou extraordinário, por pessoas naturais, jurídicas ou formais,
em face de um ente coletivo com legitimidade extraordinária, con­
forme possibilidade inferida no ordenamento jurídico, a fim de exigir
a prestação jurisdicional, com o objetivo de tutelar interesses ou direitos

31
GRINOVER, Ada Pellegrini. Ações coletivas Ibero-Americanas: novas questões sobre a legitimação e a coisa
julgada. Revista Forense, Rio de Janeiro, n. 361, p. 03-12, 2002. (a)
32
Art. 107 – As entidades civis de consumidores e as associações de fornecedores ou sindicatos de categoria
econômica podem regular, por convenção escrita, relações de consumo que tenham por objeto estabelecer
condições relativas ao preço, à qualidade, à quantidade, à garantia e características de produtos e serviços,
bem como à reclamação e composição do conflito de consumo.
33
MAIA, Diogo Campos Medina. Ação coletiva passiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 53.

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184 Rafael Caselli Pereira

homogeneamente lesionados, ou ameaçados de lesão, independente


de seu caráter individual ou coletivo”.
O representante adequado da coletividade, mais ou menos iden­
tificável (dependendo dos interesses defendidos caso concreto: difusos,
coletivos ou individuais homogêneos), tradicionalmente, na prática brasi­
leira, autor das demandas coletivas poderá, a partir da vigência do futuro
“Código de Processos Coletivos”, também se ver na injunção de responder,
como réu, às demandas ajuizadas em face da classe de interessados que
ele representa.
A exemplo da convenção coletiva de consumo, no dissídio cole­
tivo, diante de determinada controvérsia a respeito de seus termos, em
even­tual demanda para solucioná-la deverá constar em seus polos os
membros representantes das categorias trabalhadora e profissional,
“sendo que os efeitos da decisão atingirão a todos os membros da classe
representada”.34
Quanto as espécies de ação coletiva, Fredie Didier Jr.35 refere que
“ação coletiva passiva original é a que dá início a um processo coletivo,
sem qualquer vinculação a um processo anterior. Ação coletiva passiva
derivada é aquela que decorre de um processo coletivo “ativo” anterior
e é proposta pelo réu desse processo, como a ação de rescisão da sen­
tença coletiva e a ação cautelar incidental a um processo coletivo. A classi­
fi­
cação é importante, pois nas ações coletivas passivas derivadas não
haverá problema na identificação do ‘representante adequado’, que será
aquele legitimado que propôs a ação coletiva de onde ela se originou”.
Nas ações coletivas tidas como originais, podemos utilizar o
exemplo de ação de reintegração de posse ajuizada em face dos membros
do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Nas ações derivadas pode­
mos citar o exemplo de ação rescisória de ação coletiva ativa, ajui­zada
pelo réu originário, em que os polos da relação processual se invertem,
formando uma nova ação.

34
SANTOS, Ronaldo Lima dos. “Defendant Class Actions”: o grupo como legitimado passivo no direito Norte-
Americano e no Brasil. Boletim Científico da Escola Superior do Ministério Público da União, ano 3, n. 10, p.
139-154, jan./mar. 2004.
35
DIDIER JUNIOR, Fredie. Situações jurídicas coletivas passivas. Disponível em: <http://www.processoscoletivos.
net/artigos/091011_didier_jr_situacoes_juridicas_coletivas_passivas.php>. Acesso em: 13 ago. 2010. Proposta
de classificação aceita pelo Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos, formulado pelo Instituto
Brasileiro de Direito Processual (cap. III). Diogo Maia também se utiliza desta classificação, com outra designação,
porém: ações coletivas independentes e ações coletivas derivadas ou incidentes (MAIA, Diogo. Ação coletiva
passiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 54).

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A tutela coletiva passiva do Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América e sua aplicação... 185

3 O Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América e o


anteprojeto do Código Brasileiro de Processo Coletivo
Como vimos acima, nos sistemas do common law a tutela dos inte­
resses ou direitos transindividuais é tradicional: o instituto das class actions
do sistema norte-americano, baseado na equity e com antecedentes no
Bill of Peace do século XVII, foi sendo ampliado de modo a adquirir aos
poucos papel central do ordenamento. As Federal Rules of Civil Procedure
de 1938 fixaram, na regra 23, as normas fundamentais retoras das
class actions. As dificuldades práticas, quanto à configuração e requisitos de
uma ou outra de suas categorias, com tratamento processual próprio,
levaram o Advisory Committee on Civil Rules a modificar a disciplina da
matéria na revisão feita pela Federal Rules de 1966, as quais estão sendo
novamente trabalhadas para eventuais modificações.36
Os Estados Unidos, desde 1938, e, mais recentemente, o Canadá,
a Austrália, Portugal e Inglaterra compõem, junto com poucos outros
países, a exceção. No Brasil, embora haja previsão legal no sentido de
aplicar as normas previstas no Código de Defesa do Consumidor para
todas as ações civis públicas, há vários julgados que acabam firmando
posição em torno da incidência restrita às relações de consumo para as
regras ali previstas.
Nos sistemas do civil law, coube ao Brasil a primazia de introduzir
no ordenamento a tutela dos interesses difusos e coletivos, de natureza
indivisível, antes de tudo pela reforma de 1977 da Lei da Ação Popular;
depois, mediante lei específica de 1985 sobre a denominada “ação civil
pública”; a seguir, em 1988, elevando a nível constitucional a proteção
dos referidos interesses; e finalmente, em 1990, pelo Código de Defesa
do Consumidor (cujas disposições processuais são aplicáveis à tutela de
todo e qualquer interesse ou direito transindividual).
Importante ressaltar o trâmite da nova Lei da Ação Civil Pública
(Projeto de Lei nº 5.139/2009) no Congresso Nacional, a qual tramita
em caráter conclusivo e em regime de prioridade; contudo, a proposta
infelizmente nada refere acerca da tutela coletiva passiva.
O Código foi além da dicotomia dos interesses difusos e coletivos,
criando a categoria dos chamados interesses individuais homogêneos, que
abriram caminho às ações reparatórias dos prejuízos individualmente

36
Exposição de motivos que levaram à criação do Código Modelo de Processo Civil para Ibero-América.

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sofridos (correspondendo, no sistema norte-americano, às class actions


for damages).
O item 3 da exposição de motivos que levaram a criação do Código
Modelo de Processo Civil para Ibero-América consta que o código recep­
cionou a ideia brasileira da tutela jurisdicional dos interesses difusos,
com algumas modificações em relação à legitimação (que inclui qual­quer
interessado) e ao controle sobre a representatividade adequada (que no
Brasil não é expresso). Com relação à coisa julgada, o regime brasileiro
do julgado erga omnes, salvo insuficiência de provas, foi igualmente ado­
tado. No Uruguai, o Código Geral de Processo de 1989 repetiu as regras
do Código Modelo de Processo Civil.
Na Argentina, primeiro a jurisprudência e depois o Código de
Código Civil e Comercial da Nação, de 1993, seguiram o Código Modelo
Ibero-Americano, até que a Constituição de 1994 contemplou, no art. 43,
os chamados “direitos de incidência coletiva”, para cuja tutela prevê o
“amparo” e a legitimação ampla para o exercício de sua defesa. Mas a
doutrina preconiza a introdução, no ordenamento, de ações específicas, à
semelhança das existentes no modelo brasileiro. A jurisprudência, mesmo
sem textos legais, tem avançado com criatividade para assegurar a tutela
concreta dos direitos e interesses coletivos. Em 1995, Portugal deu um
passo à frente, com a Lei da Ação Popular, da qual também se extrai a
defesa dos direitos individuais homogêneos. Em 1996, Portugal também
criou ações inibitórias para a defesa dos interesses dos consumidores.
E, desde 1985, o sistema já conhecia ações relativas às cláusulas gerais,
com legitimação conferida ao Ministério Público, e, portanto, diversa da
prevista para a ação popular, que é limitada ao cidadão, às associações
e fundações com personalidade jurídica e às autarquias locais. A seguir,
outros ordenamentos ibero-americanos introduziram, de alguma forma,
a tutela dos interesses difusos e coletivos em seus sistemas. No Chile, foi
ampliada a abrangência da ação popular, com regulamentação em várias
leis especiais e no art. 2.333 do Código Civil. No Paraguai, a Consti­tuição
consagra o direito individual ou coletivo de reclamar da autoridade
pública a defesa do ambiente, da saúde pública, do consumidor e outros
que por sua natureza pertençam à coletividade, mas não contempla expres­
sa­mente instrumentos processuais para esse fim. No Peru, há alguma
legislação esparsa e específica para a tutela de certos direitos coletivos, no
campo das organizações sindicais e das associações dos consumidores.

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A tutela coletiva passiva do Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América e sua aplicação... 187

Na Venezuela,37 a nova Constituição prevê a possibilidade de


qualquer pessoa entrar em juízo para a tutela de seus direitos ou inte­
resses, inclusive coletivos ou difusos, mas não há lei específica que regule
a matéria. A jurisprudência venezuelana reconhece legitimação para
os mesmos fins ao Ministério Público, com base na legitimação geral
que lhe confere a Constituição. Na Colômbia, a Constituição de 1991,
no art. 88, atribuiu nível constitucional às ações populares e de grupo
e autorizou o legislador a definir os casos de responsabilidade objetiva
pelo dano causado a interesses e direitos coletivos. A Lei nº 472 de 1998,
que entrou em vigor a 5 de agosto de 1999, regulamentou o referido art.
88 da Constituição, definindo o regime das ações populares e de grupo.
O art. 70 cria o Fundo para a Defesa dos Direitos e Interesses Coletivos
e o art. 80 cria um registro público das ações populares e de grupo, a
ser gerido pela Defensoria do Povo de forma centralizada. É importante
ressaltar que a ação popular destina-se à tutela dos direitos difusos e
as ações de grupo à defesa dos que o Código Modelo chama “direitos
individuais homogêneos”.
Na Espanha, a reforma processual civil de 2000 contempla a
defesa de interesses transindividuais mas, segundo parte da doutrina,
de maneira incompleta e insuficiente.
Na própria União Europeia, as diretrizes pertinentes às ações cole­
tivas associativas estão relacionadas a determinadas matérias específicas,
como o meio ambiente ou o direito dos consumidores.
Tomando como base a experiência constitucional dos países da
comunidade ibero-americana, bem como do instituto norte-americano
da defendat class actions, procurou-se através do Código Modelo a criação
de um sistema original, adequado à realidade social dos países ibero-
americanos.
O Projeto de Código Modelo está estruturado em quarenta e
um artigos, reunidos em sete capítulos: I – Disposições gerais; II – Dos
provimentos jurisdicionais; III – Dos processos coletivos em geral; IV
– Da ação coletiva para a defesa de interesses ou direitos individuais
homogêneos; V – Da conexão, da litispendência e da coisa julgada; VI
– Da ação coletiva passiva; e VII – Disposições finais.
O Projeto introduz significativa novidade ao dispor expressa­mente
sobre a ação coletiva passiva. Para tanto, destinou o capítulo sexto,
37
GUZMAN, Ramiro Bejarano. Processos declarativos. Ed. Temis, 2001. p. 159-219, especialmente p. 160-163.

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contendo quatro artigos. Previu, assim, que qualquer espécie de ação


pode ser proposta contra uma coletividade organizada ou que tenha
representante adequado.
O Código efetuou distinção, na ação coletiva passiva, quanto à
vinculação dos interessados, a partir da divisibilidade ou não da natureza
do bem jurídico tutelado. Sendo indivisível, haverá vinculação dos
membros do grupo, categoria ou classe, com coisa julgada erga omnes.
Entretanto, se divisível for, a coisa julgada não vinculará os membros do
grupo, categoria ou classe, que poderão mover ações próprias para afastar
a eficácia da sentença em sua esfera jurídica individual.
Ao tratar da ação coletiva passiva, o Capítulo VI do Código Modelo
assim dispõe:

Capítulo VI – Da ação coletiva passiva

Art. 35. Ações contra o grupo, categoria ou classe – Qualquer espécie de


ação pode ser proposta contra uma coletividade organizada ou que tenha
representante adequado, nos termos do parágrafo 2º do artigo 2º deste código,
e desde que o bem jurídico a ser tutelado seja transindividual (artigo 1º) e se
revista de interesse social.
Art. 36. Coisa julgada passiva: interesses ou direitos difusos – Quando se tratar
de interesses ou direitos difusos, a coisa julgada atuará erga omnes, vinculando
os membros do grupo, categoria ou classe.
Art. 37. Coisa julgada passiva: interesses ou direitos individuais homogê­neos
– Quando se tratar de interesses ou direitos individuais homogêneos, a coisa
julgada atuará erga omnes no plano coletivo, mas a sentença de procedência
não vinculará os membros do grupo, categoria ou classe, que poderão mover
ações próprias ou defender-se no processo de execução para afastar a eficácia
da decisão na sua esfera jurídica individual.
Parágrafo único – Quando a ação coletiva passiva for promovida contra o
sindicato, como substituto processual da categoria, a coisa julgada terá eficácia
erga omnes, vinculando individualmente todos os membros, mesmo em caso de
procedência do pedido.
Art. 38. Aplicação complementar às ações passivas – Aplica-se complementaria­
mente às ações coletivas passivas o disposto neste Código quanto às ações
coletivas ativas, no que não for incompatível.

A ação, nesses casos, é proposta não pela classe, mas contra ela. O
Código exige que se trate de (a) uma coletividade organizada de pessoas,
ou que o grupo tenha representante adequado, e que o (b) bem jurídico a
ser tutelado seja transindividual e (c) seja de relevância social.

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A tutela coletiva passiva do Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América e sua aplicação... 189

Após a apresentação do Código Modelo em outubro de 2004,


sobreveio o anteprojeto do Código Brasileiro de Processos Coletivos.
A evolução doutrinária brasileira a respeito dos processos coletivos
autorizou a elaboração de um verdadeiro Direito Processual Coletivo,
como ramo do direito processual civil, que tem seus próprios princípios
e institutos fundamentais, diversos dos do Direito Processual Individual.
Os institutos da legitimação, competência, poderes e deveres do
juiz e do Ministério Público, conexão, litispendência, liquidação e exe­
cução da sentença, coisa julgada, entre outros, têm feição própria nas
ações coletivas que, por isso mesmo, se enquadram numa Teoria Geral
dos Processos Coletivos.
Assim, na constante busca da efetividade processual, em sintonia
com o desencadeamento paulatino da constitucionalização das leis pro­
cessuais, pode-se dizer, com segurança, que a ação coletiva passiva
origi­nária terá campo fértil no microssistema que será inaugurado no
ordenamento pátrio, superando a resistência doutrinária existente e
adequando-se o instrumento ao direito material posto em causa.
Portanto, a realidade contemporânea reclama uma necessária ade­
quação das normas processuais vigentes aos novos direitos que se fazem
presentes no cotidiano da sociedade. Não cabe mais a aplicação pura e
seca do Código de Processo Civil, visto que elaborado sob uma ótica de
cunho individualista.
Diversas obras, no Brasil, já tratam do assunto. E o país, pioneiro
no tratamento dos interesses e direitos transindividuais e dos indivi­duais
homogêneos, por intermédio da Lei da Ação Civil Pública e do Código
de Defesa do Consumidor, tem plena capacidade para elaborar um verda­
deiro Código de Processos Coletivos, que mais uma vez o colocará numa
posição de vanguarda, revisitando os princípios processuais e a técnica
processual por intermédio de normas mais abertas e flexíveis, que propi­
ciem a efetividade do processo coletivo.
Deveu-se a Ada Pellegrini Grinover, Kazuo Watanabe e Antonio
Gidi a elaboração da primeira proposta de um Código Modelo, proposta
essa que aperfeiçoou as regras do microssistema brasileiro de processos
coletivos, sem desprezar a experiência das class actions norte-americanas.
Muitas dessas primeiras regras, que foram aperfeiçoadas com a partici­
pação ativa de outros especialistas ibero-americanos (e de mais um
brasileiro, Aluísio de Castro Mendes), passaram depois do Código Modelo
para o Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos.

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A Parte III foi destinada à ação coletiva passiva, que passaria a ser
mencionada expressamente na nova legislação.
A redação prevista no Anteprojeto inicialmente formulado na USP
(Universidade de São Paulo) estabelecia expressamente, em termos de
direitos e interesses individuais homogêneos, que “a coisa julgada atuará
erga omnes no plano coletivo, mas a sentença de procedência não vincu­
lará os membros do grupo, categoria ou classe, que poderão mover ações
próprias ou defender-se no processo de execução para afastar a eficácia
da decisão na sua esfera jurídica individual”.
No referido texto, resta consignada, de forma expressa, o que se
denominou “ação coletiva passiva”, senão vejamos:

Parte III – Da ação coletiva passiva38

Art. 42 Ação contra o grupo, categoria ou classe Qualquer espécie de ação pode
ser proposta contra uma coletividade organizada ou que tenha representante
adequado, nos termos do parágrafo 1º do artigo 8º, e desde que o bem jurídico
a ser tutelado seja transindividual (art. 2º) e se revista de interesse social.
Art. 43 Coisa julgada passiva A coisa julgada atuará erga omnes, vinculando os
membros do grupo, categoria ou classe.
Art. 44 Aplicação complementar à ação coletiva passiva Aplica-se comple­
mentarmente à ação coletiva passiva o disposto neste código quanto à ação
coletiva ativa, no que não for incompatível.

A representação adequada dos membros da coletividade nos polos


da demanda, além de ser galgada à condição de princípio fundamental
da jurisdição coletiva, não é apenas condição específica da ação coletiva
passiva originária, mas de qualquer ação coletiva intentada. E o mencio­
nado anteprojeto de Código de Processos Coletivos faz menção expressa
destes atributos.
Ademais, o texto proposto cataloga um rol exemplificativo de
critérios para que o juiz, de ofício e em qualquer grau de jurisdição,
possa auferir a presença da adequada representação.
A adequação da representação contém dois elementos, a ausência de
antagonismo ou conflito de interesses entre o representante e o grupo e a
possibilidade de assegurar efetivamente a tutela dos interesses do grupo.
Nos ensinamentos de Antonio Gidi39 “Ambos os elementos devem
ser avaliados, tanto com relação ao representante, quanto com relação
38
<www.direitouerj.org.br/2005/download/outros/cbpc.doc>. (12.08.2010).
39
GIDI, Antonio. A representação adequada nas ações coletivas brasileiras: uma proposta. Revista de Processo,
v. 108, p. 69, out./dez. 2002.

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A tutela coletiva passiva do Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América e sua aplicação... 191

ao advogado do grupo. Todavia, como o advogado é o verdadeiro dominus


litis no processo americano, na verdade, o juiz controla com muito mais
rigor a adequação do advogado do que a representante”.
Não obstante o Projeto de Lei nº 5.139/2009, que moderniza a
Ação Civil Pública não prever em seu texto a tutela coletiva passiva, o
Código de Processos Coletivos Brasileiro não só prevê a ação coletiva
passiva, mas busca sistematizá-la.

Conclusão
Podemos concluir que as ações “contra classes” desenvolveram-se
no sistema norte-americano em razão da homogeneidade de tratamento
dispensada ao autor e ao réu no que concerne à legitimidade para figurar
no processo. Em geral, a estrutura da regra 23 do Código de Processo
Civil norte-americano (Federal Rules of Civil Procedure), que trata das
class actions na Justiça Federal é simétrica, não fazendo distinção entre o
autor e o réu no litígio coletivo.
Convém mencionar que o procedimento adotado nos Estados
Unidos para a defendant class action não difere, substancialmente, daquele
reservado para as plaintiff class actions (as ações coletivas em que a
coletividade se encontra no polo ativo). Ambas são reguladas pela Rule
23, das Federal Rules of Civil Procedure.
No Brasil, o sistema de defesa de direitos coletivos foi estabele­
cido como o surgimento dos métodos de solução de conflitos coletivos
do trabalho (conselhos Mistos e Permanentes de Conciliação, 1931), que
evoluíram para os dissídios coletivos. A ação popular também se apre­
sentou como forte peça na engrenagem de defesa dos direito coletivos.
No entanto, comente com o advento da Lei da Ação Civil Pública, em
1985, foi inaugurada a maciça tendência de proteção aos direitos transin­
dividuais, seguida pela Constituição Federal de 1988 e pelo código de
Defesa do Consumidor, de 1990, que mantiveram a tendência protecio­
nista dos movimentos processuais coletivos.
No Brasil, um dos principais argumentos contra a ação coletiva pas­
siva é a inexistência de texto legislativo expresso, fato que pelo Projeto de
Lei nº 5.139/2009 (Modernização da Ação Civil Pública) permane­­ceria
infelizmente inalterado.
A ausência de personificação jurídica não pode impedir o acesso à
justiça, o que é garantido pelo reconhecimento de capacidade de entes

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sem personalidade jurídica para figurarem em juízo de forma expressa


no artigo 12 do Código de Processo Civil.
O desenvolvimento e importância da tutela coletiva está eviden­
ciada pela usucapião coletiva, prevista no Estatuto da Cidade, além
da necessidade de possibilitar a defesa da sociedade perante grupos
e movimentos fortalecidos ao longo dos anos, tais como o Movimento
Sem Terra (MST), as torcidas organizadas, grêmios recreativos, associa­
ções de moradores, consumidores, fornecedores, dentre outros.
Ainda que a doutrina não tenha se ocupado significativamente com
o tema sob a ótica da legitimidade passiva da coletividade, os conflitos
de interesses em que a coletividade deve se encontrar no polo passivo da
demanda existem e, mais do que nunca, estão evidentes na sociedade,
já estando expressados inclusive na jurisprudência pátria em inúmeros
julgados que foram abordados.
Podemos dividir em duas espécies as ações coletivas passivas:
as ordinárias (num polo da ação consta um ente individual e noutro a
coletividade) e as ações duplamente coletivas (presentes duas coletivi­
dades na relação jurídica processual).
Ainda, podemos classificá-las como: originais ou independentes
(ações que decorrem de relação de direito material comum, sem qualquer
vinculação anterior) e incidentes ou derivadas (ação decorrente de ação
coletiva ativa anterior).
No que diz respeito a legitimidade, nos deparamos com dois sis­
temas: um ope legis (sistema brasileiro possui avaliação da representa­
tividade presumida) e um ope judicis (possui legitimidade real), sendo que
em ambos os sistemas, apenas terá legitimidade para defender interesses
e direitos coletivos aquele que tiverem potencial para defendê-los como
se fossem os próprios titulares destes interesses e direitos.
O Código Modelo de Processo Civil para Ibero-América intro­duz
significativa novidade ao dispor expressamente sobre a ação coletiva
passiva. Para tanto, destinou o capítulo sexto, prevendo, assim, que
qualquer espécie de ação pode ser proposta contra uma coletividade
organizada ou que tenha representante adequado.
Elaborado sem desprezar as experiências de tutela jurisdicio­ nal
dos direitos e interesses transindividuais de diversos países, cria-se em
outubro de 2004 um modelo original, aderente às regras preexistentes
nos ordenamentos ibero-americanos, que aperfeiçoa e complementa.

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A tutela coletiva passiva do Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América e sua aplicação... 193

Desse modo, acaba perdendo qualquer característica nacional e se


constitui num verdadeiro sistema ibero-americano de processos coletivos,
harmonioso e completo, que poderá ser tomado como modelo pelos
países de nossa comunidade, empenhados na transformação de um
processo individualista num processo social.
Em janeiro de 2007 foi encaminhado ao Ministério da Justiça a
última versão do Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos,
com o objetivo de melhorar a prestação jurisdicional e na busca pela
tão almejada efetividade do processo.
O referido projeto traz expressamente a possibilidade da tutela
coletiva passiva contra uma coletividade organizada ou que tenha
representante adequado, e desde que o bem jurídico a ser tutelado seja
transindividual e se revista de interesse social.
Quanto à formação da coisa julgada na ação coletiva passiva, o
Código Modelo prevê que quando se tratar de interesses ou direitos
difusos, a coisa julgada atuará erga omnes, vinculando os membros do
grupo, categoria ou classe. Tratando-se de interesses ou direitos indivi­
duais homogêneos, a coisa julgada atuará erga omnes no plano coletivo,
mas a sentença de procedência não vinculará os membros do grupo,
categoria ou classe, que poderão mover ações próprias ou defender-se
no processo de execução para afastar a eficácia da decisão na esfera
jurídica individual.
Quando o sindicato constar no polo passivo de ação coletiva, a
coisa julgada terá eficácia erga omnes, vinculando individualmente todos
os membros, mesmo em caso de procedência do pedido.
O Código Brasileiro de Processos Coletivos, por sua vez, prevê a
vinculação erga omnes para os membros do grupo, categoria ou classe,
sem maiores especificações.
Podemos concluir referindo que antes mesmo da vigência do Código
Modelo e do Código Brasileiro de Processos Coletivos — ainda não
aprovado, verificamos que o ordenamento jurídico brasileiro já acei­tava
ações com entes coletivos despersonalizados no polo passivo de ações,
conforme jurisprudências analisadas ano longo do estudo.
Na realidade, a ação coletiva passiva é garantia de acesso à justi­
ça para ações envolvendo conflitos de interesses de cunho particular e
de massa, bem como garantia de economia judicial e processual, dimi­
nuindo o número de demandas ajuizadas provenientes de fatos comuns

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194 Rafael Caselli Pereira

que acabam provocando o acúmulo do Poder Judiciário e, com certeza,


influenciando negativamente na qualidade e efetividade da prestação
jurisdicional.

Abstract: This article aims to examine the receptivity by the Brazilian legal system
called the class action (defendant class action), of U.S. origin. This procedural
tool allows class action against the group, category or class, provided they are
adequately represented, and that action silent on diffuse and collective rights,
this social interest. At first, it will analyze the emergence of the institute in
comparative law, through the collective protection of the proposal on existing
passive Code Collective Process Model for Latin-America and the blueprint
of the Brazilian Code of Procedure Collective.
Key words: Collective Protection Passive. Defendant class action. Modelo Code of
Collective Latin American. Brazilian Code of Collective Processes.

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A tutela coletiva passiva do Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América e sua aplicação... 195

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de Normas Técnicas (ABNT):

PEREIRA, Rafael Caselli. A tutela coletiva passiva do Código Modelo de Processos Coletivos
para Ibero-América e sua aplicação no direito brasileiro. Revista Brasileira de Direito
Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 19, n. 73, p. 169-195, jan./mar. 2011.

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A eutanásia na processualidade
democrática brasileira
Roberta Beatriz Bernardes da Silva
Acadêmica do Curso de Direito da UNIUBE – Uberaba/MG, devidamente matriculada no 9º
período.

Roberta Toledo Campos


Orientadora, Professora Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e
graduada em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho.

Resumo: A presente pesquisa inicia-se com uma abordagem de seu objeto,


ou seja, menciona conceito e formas de execução da prática da eutanásia,
além de expor o desenvolvimento dos paradigmas de Estado a fim de se
entender a constitucionalidade democrática. Dessa forma, a partir do método
científico hipotético-dedutivo-crítico, buscou-se uma análise crítica sobre a
eutanásia no Estado de Direito Democrático, atual paradigma jurídico-político
adotado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em
seu artigo 1º, caput. Têm-se como objetivos abordar a prática da eutanásia
como decorrência do princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º,
inciso III, CRFB/88) e efetuar uma análise sobre a liquidez e certeza dos
direitos fundamentais à vida digna e à liberdade de autodeterminação do
ser humano (artigo 5º, caput, CRFB/88). O foco principal detse trabalho
é mostrar que a prática da eutanásia torna-se possível e legítima a partir
do momento em que o Processo deixa de ser um mero instrumento da
jurisdição do juiz e passa a ser uma instituição constitucionalizada. Assim,
o paciente terminal e em terrível sofrimento tem o direito de participar, via
Devido Processo Constitucional (artigo 5º, inciso LV, CRFB/88), da construção
de uma decisão judicial legítima, autorizadora ou não da eutanásia. É
nesse recinto teórico discursivo, também, que esse paciente construirá
o conteúdo do significante vida digna. A eutanásia envolve debates polê­micos
e a sua complexidade revela a imprescindibilidade de uma pesquisa
científica que busque novas respostas aos anseios da sociedade pluralista
democrática.
Palavras-chave: Eutanásia. Dignidade da pessoa humana. Estado de Direito
Democrático.
Sumário: 1 Introdução – 2 Eutanásia, distanásia, mistanásia e ortotanásia:
algumas classificações – 3 A eutanásia perante a Teoria Analítica do Delito – 4
Paradigmas jurídicos – 4.1 Estado de Direito Liberal e Estado de Direito Social
– 4.2 A eutanásia sob a ótica de um novo marco teórico: o Estado de Direito
Democrático – 5 O processo como uma instituição constitucionalizada – 5.1
A construção do conteúdo do bem jurídico vida digna – 5.1.1 A dignidade
da pessoa humana como fundamento da nova ordem democrática – 5.1.2 A
liquidez e a certeza do direito à vida digna – 6 Apontamentos sobre o controle
de constitucionalidade em face da punição da prática da eutanásia – 6.1 A
inexistência de conduta criminosa na prática da eutanásia sob a perspectiva
do marco teórico democrático – 7 Considerações finais – Referências

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1 Introdução
A eutanásia no Estado de Direito Democrático (paradigma jurídico-
político instituído pela CRFB/1988, em seu artigo 1º, caput) é um tema
de extrema complexidade, que gera polêmicas discussões no âmbito
da medicina, do direito, da religião e da filosofia. No contexto jurídico
atual, tal assunto ainda é interpretado sob a ótica do Estado de Direito
Social — marco teórico que considera a vida como um direito absoluto e
inviolável. No atual paradigma jurídico-político, contudo, há a garantia
não só do direito à vida, mas sim do direito à vida digna (artigo 1º, inciso
III, CRFB/88). Portanto, é a partir desse projeto constitucional de cons­
trução de uma sociedade jurídico-política de direito democrático que a
eutanásia deve ser (re)interpretada.
Antes de se buscar a compreensão sobre o atual contexto demo­
crático, faz-se imperioso conceituar e diferenciar a prática da eutanásia,
distanásia e ortotanásia, pois cada uma delas tem as suas peculiaridades.
A partir daí, então, é possível verificar o tratamento penal que tais prá­
ticas recebem pelo ordenamento jurídico brasileiro e analisar criticamente
se esse tratamento condiz com as expectativas da sociedade pluralista
democrática.
Após esses apontamentos, urge analisar todo o desenvolvimento
dos paradigmas de Estado a fim de se alcançar um entendimento claro
sobre o atual paradigma jurídico-político. Nesse sentido, torna-se impres­
cindível testificar a teoria que interpreta o bem jurídico vida como um
dever, e não um direito. Essa testabilidade buscará, também, uma nova
abordagem sobre a titularidade e o conteúdo do direito à vida digna.
Cabe ressaltar que ainda existem pontos de vista nos quais o direito
à vida é interpretado como absoluto e qualquer tentativa de legalização
da prática da eutanásia é tida como inconstitucional. Muitos argumentam
que a regulamentação dessa prática pode dar abertura para atitudes
abusivas que visem somente a jogos de interesse, banalizando, assim, as
condições vivenciadas por pacientes incuráveis e em profunda agonia,
especialmente pelos que já não podem mais expressar a sua vontade.
Esses argumentos, contudo, não podem dar ao Estado o poder
discricionário de impor a um paciente incurável um longo e doloroso
processo de morte. Isso se explica pelo fato de que o enfermo, cujo óbito é
algo inevitável e iminente, sendo o legítimo titular do direito à vida digna,
tem, também, o direito de reinvindicar a prática da eutanásia, via Devido

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Processo Constitucional, ou seja, via devido processo legal, com direito-


de-ação (direito incondicionado de ação) coextenso a um procedimento
que acate em seu bojo os princípios do contraditório, da ampla defesa
e da isonomia (artigo 5º, inciso LV, CRFB/88), buscando, para tanto,
uma decisão judicial legítima, seja ela autorizadora ou não da eutanásia
(LEAL, 2005, p. 100).
Na lição de André Del Negri (2009, p. 337), tem-se que:

A compreensão da vida, na Ciência do Direito (estudo de um Direito não-estático),


passa pela compreensão da linguagem, da argumentação e da reivindicação
de direitos. É a implementação desses princípios que garantirão o direito à
vida digna das pessoas (dignidade humana – art. 1º, inciso III, CB/88).

O tema da presente pesquisa justifica-se pela sua complexidade, pela


falta de regulamentação legal específica da prática da eutanásia no Brasil,
e, sobretudo, pela insegurança jurídica vivenciada pela atual sociedade
pluralista democrática. A busca por novas respostas revela, também, a
necessidade de uma abordagem não só da validade e eficácia do Direito,
mas, principalmente, da sua legitimidade.

2 Eutanásia, distanásia, mistanásia e ortotanásia: algumas classificações


O significado de eutanásia diversificou-se ao longo do tempo,
abrangendo novas situações. Atualmente, ela não se limita mais apenas
aos casos de pacientes terminais. Recém-nascidos com má-formação con­
gênita e pacientes em estado vegetativo irreversível são, também, casos
em que a prática de eutanásia é muito discutida.
Eutanásia, por definição, significa a “boa morte” ou “morte piedosa”.
É um termo de origem grega (eu: “boa” e thanatos: “morte”) que passou
por uma evolução semântica ao longo dos séculos. Ela possui várias clas­
sificações, como: eutanásia natural e provocada; eutanásia autônoma
e heterônoma; eutanásia eugênica ou selecionadora; eutanásia econô­
mica; eutanásia libertadora ou terapêutica (CARVALHO, 2001, p. 18).
No entanto, cabe abordar apenas as que têm maior relevância para o
presente trabalho.
A eutanásia natural significa morte que sobrevém sem artifícios e
padecimentos e a eutanásia provocada, por sua vez, implica o emprego
de meios, por terceiros ou pelo próprio enfermo, com o objetivo de dar
cabo à agonia e ao sofrimento do paciente, abreviando-lhe a vida, ativa

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ou passivamente. A eutanásia provocada distingue-se entre eutanásia


autônoma, que é a provocação da própria “boa morte”, sem a intervenção
de terceiros, e eutanásia heterônoma, que é resultante da atuação ou
participação de terceiros (CARVALHO, 2001, p. 17).
Na eutanásia libertadora ou terapêutica busca-se eliminar o sofri­
mento e a agonia do doente; sua prática se dá por razões solidárias,
altruístas ou de compaixão para com o paciente. Existe, nesse caso, uma
forte tensão emocional no autor da ação, que se libera dela, provocando a
“boa morte” do paciente terminal.
Apenas a eutanásia libertadora ou terapêutica configura hipótese
legítima de eutanásia, pois a maioria dos pesquisadores consideram como
verdadeira eutanásia somente aquela que tem a finalidade de aliviar o
sofrimento do paciente que já não tem mais vida digna (CARVALHO,
2001, p. 22). Sendo assim, as outras classificações, como, por exemplo,
eutanásia eugênica e eutanásia econômica, não se amoldam ao conceito
de “boa morte”, identificando-se com as condutas homicidas qualifi­cadas
por motivo torpe (art. 121, §2º, inciso I, do Código Penal Brasileiro).
Quanto ao modo de execução, a eutanásia é classificada em euta­
násia ativa e eutanásia passiva (CARVALHO, 2001, p. 23); classificação de
maior relevância para a pesquisa. A eutanásia ativa é aquela que se efetiva
através de atos que buscam a morte do paciente terminal e em terrível
sofrimento. Já a eutanásia passiva pode ser conceituada como a omissão
de tratamento ou de qualquer outro meio que contribua para a prolon­
gação da vida humana que apresente alguma deterioração irreversível ou
uma enfermidade incurável e se encontre em fase terminal, acelerando-
se, assim, o desenlace mortal (CARVALHO, 2001, p. 24).
A distanásia (do grego dis: afastamento e thanatos: morte), ao con­
trário da eutanásia, consiste no emprego de meios extraordinários e
desproporcionais com o intuito de prolongar a vida humana. O paciente,
nesse caso, é submetido a tratamentos inúteis e a grande sofrimento;
isso significa que, o que verdadeiramente ocorre, é um prolongamento
do processo de morrer (CARVALHO, 2001, p. 25).
A mistanásia, também conhecida como eutanásia social, “é a morte
miserável, fora e antes da hora” (SÁ, 2005, p. 40). Ela ocorre quando há
a omissão de socorro estrutural, ou seja, quando a ausência ou a pre­
cariedade dos serviços públicos de saúde faz com que um cidadão com
deficiência física ou mental ou acometido por doença que pode ser

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tratada de forma eficaz morra antes da hora. Isso se dá pelo fato de


que esse cidadão não tem acesso a atendimento médico ou, quando o
tem, não recebe o devido tratamento. Nesse último aspecto, o paciente
torna-se vítima de erro médico, que pode ser causado por imprudência,
negligência ou imperícia (MARTIN, 2009).
Nesse sentido, há o seguinte exemplo:

Outra forma de imprudência que pode levar a resultados mistanásicos é o


profissional de saúde efetuar qualquer procedimento médico sem o esclare­
cimento e o consentimento prévios do paciente, só porque é crônico ou terminal.
Deixando de lado os casos previstos nos artigos 46 e 56 do Código (apelo ao
responsável legal e iminente perigo de vida), a imprudência em desconsiderar
a autonomia do paciente crônico e terminal pode provocar um mal-estar mental
e espiritual devido à perda sensível de controle sobre sua vida, tornando mise­
rável e mistanásico o processo de morrer. (MARTIN, 2009)

Fatores geográficos, sociais, políticos e econômicos podem fazer


com que a mistanásia seja algo frequente e comum em determinada
sociedade jurídico-política. A ausência de implementação de direitos
fundamentais básicos, assim como a saúde, a educação, a alimentação,
a moradia e o trabalho dignos, viola a vida digna do cidadão que, se
acometido por alguma deficiência ou doença, pode não conseguir ingres­
sar no sistema de atendimento médico ou ser vítima de erro médico,
vindo, portanto, a óbito de forma miserável e desumana.
Já na ortotanásia, “não se lança mão de procedimentos consi­de­­
rados extraordinários ou inúteis ou excessivamente danosos para o doente
em relação ao benefício esperado” (GARCIA, 2007, p. 260). Cabe ressal­
tar que, nessa prática, contudo, os meios ordinários de manutenção da
vida do paciente, assim como, por exemplo, a aplicação de medica­mentos
que aliviem as suas dores, não deixam de ser aplicados. A prática da
ortotanásia faz com que o processo de morte desse paciente inicie-se de
forma natural.
A partir de todas essas classificações e diferenciações, urge abordar
qual o tratamento penal que essas práticas recebem pelo direito brasileiro.

3 A eutanásia perante a Teoria Analítica do Delito


No âmbito do atual Direito Penal Brasileiro, a eutanásia é reco­
nhecida como um tema de grande relevância cuja complexidade e falta de
regulamentação legal causam à sociedade profunda insegurança jurídica.

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Assim como menciona Iberê Anselmo Garcia, “à luz da legislação


penal brasileira, essa prática pode, à primeira vista, parecer ilícita”
(2007, p. 253). Diante disso, faz-se imprescindível uma análise criminal
dos institutos jurídicos e legais sobre a eutanásia e suas diversas formas
de execução.
Mas antes de se fazer o enquadramento da eutanásia na Teoria
Analítica do Delito (BITENCOURT, 2006, p. 262), é preciso ressaltar
que a presente pesquisa considera como elementos essenciais e caracte­
riza­dores da prática da eutanásia as seguintes circunstâncias: o consen­
timento do paciente terminal ou em estado vegetativo, seja por vontade
expressa ou presumida, que está acometido por doença grave, crônica
e incurável, corretamente diagnosticada, e que a prática da abreviação
de sua vida seja feita pelo profissional de saúde que lhe assiste. Casos
que não se amoldam a essas condições devem ser analisados de forma
diversa da eutanásia propriamente dita.
Nesse sentido, tem-se que:

A morte de indivíduos que sofrem intensamente, provocada por leigos movidos


de compaixão não deveria ser denominada eutanásia, mas sim homicídio
piedoso. É, por exemplo, o caso de agonizantes sem possibilidade de resgate,
vítimas de desastres, e que são abatidos por testemunhas de seu drama. O
homicídio piedoso admitiria como móvel o sofrimento físico ou o psíquico do
indivíduo sem consideração das chances reais de tratamento, já que o leigo
não pode realizar essa avaliação. (GARCIA, 2007, p. 256)

Desse modo, serão abordados por este trabalho a eutanásia ativa,


a eutanásia passiva e a ortotanásia, a fim de se buscar a subsunção da
conduta do agente à norma jurídica.
Assim como já mencionado, a eutanásia ativa é aquela que se efetiva
através de atos que buscam a morte do paciente terminal e em terrível
agonia, a fim de aliviá-lo de todo sofrimento. Já a eutanásia passiva
pode ser conceituada como a omissão de tratamento ou de qualquer outro
meio que contribua para a prolongação da vida humana que apresente
alguma deterioração irreversível ou uma enfermidade incurável e se
encontre em fase terminal, acelerando-se, assim, o desenlace mortal
(CARVALHO, 2001, p. 24).
A ortotanásia, por sua vez, não se confunde com a eutanásia pas­
siva, pois a sua prática não impede que o paciente terminal ainda receba
cuidados que aliviem seu sofrimento. Isso quer dizer que, nessa prática,

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não há a aplicação de procedimentos considerados extraordinários ou


inúteis, posto que eles apenas prolongam o processo de morte do paciente,
contudo os meios ordinários de tratamento, assim como os que evitam
as dores, não são interrompidos.
O tratamento jurídico-penal dado à eutanásia, no Brasil, se
diversifica de acordo com cada tipo de execução de tal prática, ou seja,
a partir das modalidades de eutanásia acima mencionadas, é possível
analisar o enquadramento de cada uma delas na Teoria Analítica do
Delito (GARCIA, 2007, p. 263).
Cabe, primeiramente, ressaltar que para referida Teoria os ele­
mentos essenciais do conceito de crime são: ação típica, antijurídica e
culpável (BITENCOURT, 2006, p. 263).
Assim, a prática da eutanásia ativa é punida como crime de homi­
cídio tipificado pelo artigo 121 do Código Penal Brasileiro (CPB); esse
crime é classificado como comissivo, pois consiste na realização de
uma ação positiva visando um resultado tipicamente ilícito, havendo,
por­tanto, o dolo específico de matar (BITENCOURT, 2006, p. 265).
A eutanásia passiva e a ortotanásia, por sua vez, podem ser
classificadas como crimes comissivos por omissão, ou seja, a omissão por
parte do profissional de saúde é o meio pelo qual ele produz o resultado
morte. Desse modo, ele não será responsabilizado pela simples omissão,
mas sim pelo resultado morte, pois ele assume a posição de garante da
vida de seu paciente nos termos do artigo 13, §2º, do CPB, o que torna
a não evitação da morte uma ação comissiva por omissão (GARCIA,
2007, p. 263).
Para a literatura jurídica brasileira, a eutanásia ativa é considerada
ação típica, ilícita e culpável. Quanto à culpabilidade, essa prática não
admite que o profissional de saúde responsável pelo paciente terminal
alegue que não tinha consciência da ilicitude de seu ato, e nem mesmo
que a lei não exija dele conduta diversa.
Iberê Anselmo Garcia (2007, p. 264) menciona que a literatura
jurídica e a jurisprudência nacionais consideram que se o agente da
eutanásia ativa, movido pela piedade ou pelo desespero, for parente ou
alguém muito próximo ao doente, não há que se falar em inexigibi­lidade
de conduta diversa, mas sim em homicídio privilegiado, artigo 121,
§1º, do CPB.
É, ainda, relevante ressaltar que a ortotanásia recebe um tratamento
médico e jurídico diverso do que ocorre com a eutanásia passiva, pois

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naquela o profissional da saúde responsável pelo paciente incurável e


em profunda agonia não provoca a sua morte, ele apenas suspende ou
limita o tratamento desse paciente quando os procedimentos a serem
utilizados são extraordinários, ou seja, quando buscam somente a
protelação da morte do indivíduo.
Assim, no âmbito das discussões sobre a prática da eutanásia, há
diversos pontos de vista que defendem a ortotanásia como uma conduta
atípica, posto que nela não há omissão de tratamento. Além disso, as
formas terapêuticas protelatórias não são aplicadas, pois não têm indi­
cação médica por serem inúteis, e não são, necessariamente, evitadoras
do resultado morte (GARCIA, 2007, p. 265).
Para Gelson Amaro de Souza Filho, “a ortotanásia é conduta
atípica para o Direito Penal, pois não é causa de morte da pessoa, uma
vez que o processo de morte já está instalado” (2008, p. 134). Há ainda
posicionamentos que não consideram a omissão do profissional de saúde
como uma omissão relevante, pois se o paciente está acometido por uma
doença grave, crônica e corretamente diagnosticada como incurável, o
médico não pode impedir o resultado morte, assim, ele fica excluído
da posição de garante, conforme preceitua o §2º do artigo 13 do CPB
(GARCIA, 2007, p. 265).
Nesse sentido, o Conselho Federal de Medicina teve motivações
para baixar a Resolução nº 1.805/2006, autorizando a ortotanásia. Cabe
ressaltar que:

Os conselheiros do Conselho Federal de Medicina, no entanto, reconhecem


que a resolução não tem força jurídica para impedir a responsabilização penal
dos médicos que praticarem a ortotanásia, considerada juridicamente uma
forma de eutanásia. (GARCIA, 2007, p. 255)

No contexto brasileiro, portanto, a prática da eutanásia ativa, da


eutanásia passiva e da ortotanásia são punidas como crime de homicídio.
Isso significa que o direito à vida ainda recebe uma interpretação advinda
do Estado de Direito Social, para o qual tal bem jurídico é tido como
um direito absoluto e inviolável.
Nesse paradigma jurídico, o Estado, com sua discricionariedade,
se porta como o titular do direito à vida, impondo, assim, aos cidadãos, o
dever de viver, pura e simplesmente. É daí que surge o grande paradoxo,
no qual um paciente terminal e em profunda agonia, em nome do direito

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A eutanásia na processualidade democrática brasileira 205

sagrado à vida, não pode ter uma morte de acordo com o seu conceito de
dignidade humana, mas deve sujeitar-se a uma condição de morto-vivo.
Ronald Dworkin (2003, p. 259) também comenta sobre esse
paradoxo:

[...] as leis de todos os países ocidentais (com exceção, na prática, da Holanda)


ainda proíbem que médicos, ou outros, matem diretamente pessoas que lhes
peçam para fazê-lo, injetando-lhes um veneno letal, por exemplo. Assim, o
direito produz o resultado aparentemente irracional: por um lado, as pessoas
podem optar por morrer lentamente, recusando-se a comer, recusando-se a
receber um tratamento capaz de mantê-las vivas ou pedindo para ser desli­gadas
de aparelhos de respiração artificial; por outro, não podem optar pela morte
rápida e indolor que seus médicos poderiam facilmente conseguir-lhes.

É óbvio, contudo, que o profissional da saúde tem o dever de


garantir a vida, mas esse dever passa a ter suas limitações a partir do
momento em que o paciente enfermo encontra-se na posição de um
objeto à disposição da tecnologia.
Para finalizar a abordagem sobre o enquadramento da eutanásia
na teoria do delito, é importante também analisar a eutanásia em face
do crime de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio, tipificado pelo
artigo 122 do Código Penal Brasileiro.
O suicídio assistido, previsto pelo artigo 122, CPB, não se confunde
com a prática da eutanásia, pois aquele pode envolver situações mais
abrangentes que esta, como, por exemplo, pessoas que por problemas
afetivos e psicológicos, independentemente de doença grave, terminal
e incurável, decidem pôr fim à sua vida.
Além disso, no suicídio assistido, qualquer pessoa pode fornecer
os meios ou emprestar colaboração ao que sofre para que este abrevie
a sua própria vida. A diferença entre essa prática e a eutanásia é que no
suicídio assistido o controle total do ato pertence ao suicida, ou seja, é
ele quem decide e quem coloca fim a sua vida (GARCIA, 2007, p. 262).
Já na eutanásia, o ato se dá pela conduta de um profissional da saúde
que acompanha o caso clínico do paciente em profunda agonia.

4 Paradigmas jurídicos
A interpretação do Direito está intimamente ligada com os para­
digmas jurídicos, pois eles refletem a forma pela qual a linguagem se
estrutura num dado contexto (LEAL, 2002, p. 25). Além disso, eles são

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referenciais normativos que testificam teorias, buscando-se, assim, verdades


provisórias, ou seja, verdades passíveis de uma nova problematização.
A fim de delimitar o emprego da expressão paradigma, Walter
(2008, p. 24) esclarece o seguinte:

Uma incursão interdisciplinar pelos estudos de Kuhn a partir da teoria do método


popperiano (hipotético-dedutivo, crítico-eliminacionista) desinflacionaria
a sobrecarga sígnica de paradigma por restrição de seu emprego à “propo­
sição normatizada do exercício crítico” de um dado discurso conformador
das bases investigativas da “importância, funções e conceito do Estado e dos
direitos fundamentais nos processos de integração social” das sociedades não-
democráticas e “jurídico-políticas de direito democrático”.

Pode-se dizer que paradigmas jurídicos são marcos teóricos, ou


seja, são referenciais jurídico-políticos com modos peculiares de produção
e aplicação dos direitos fundamentais. Nesse sentido, existem três rele­
vantes paradigmas jurídicos, cada um com uma concepção própria de
cidadania: o Estado de Direito Liberal, o Estado de Direito Social e o
Estado de Direito Democrático instituído pela Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988 em seu artigo 1º, caput.
Para Carlos Walter (2008, p. 93-94), no atual paradigma demo­­
crático, não basta que haja uma interpretação conforme a Constituição, ou
seja, não basta que se tome o texto constitucional como “locus herme­
nêutico” (hermenêutica constitucional). Mencionado autor ainda explica
que:

Ao se falar em paradigma teórico como delimitação hermenêutica, está-se


ponderando sobre a demarcação crítico-investigativa do discurso jurídico
implementável pelo paradigma lingüístico regencial e inscrito na constitu­
cionalidade. Resta dizer — o discurso jurídico nas democracias há de ser
demarcado por uma teoria processual democrática de conteúdos lógicos
constitucionalizados. (2008, p. 93)

Assim, a presente pesquisa é desenvolvida a partir do atual marco


teórico democrático, com o escopo de se produzir uma testabilidade
dos resquícios teóricos do Estado de Direito Social e de se alcançar uma
(re)interpretação da prática da eutanásia que seja condizente com a
constitucionalidade democrática.
Antes de se compreender o atual paradigma jurídico-político,
o Estado de Direito Democrático (artigo 1º, caput, CRFB/88), urge

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A eutanásia na processualidade democrática brasileira 207

analisar, primeiramente, todo o desenvolvimento do Estado de Direito,


tornando-se possível, então, alcançar o objetivo da pesquisa.

4.1 Estado de Direito Liberal e Estado de Direito Social


Para se obter um entendimento pleno e um discurso eficaz sobre
o novo paradigma jurídico-político, faz-se necessário abordar as caract­e­
rísticas e peculiaridades dos Estados de Direito Liberal e Social.
Inicialmente, deve-se lembrar que o Estado de Direito não pode
ser entendido como um mero conceito, pois ele possui um complexo
desenvolvimento cuja forma atual é o Estado de Direito Democrático.
Tal entendimento é, também, mencionado por Canotilho (1991, p. 353),
que afirma que o desenvolvimento do Estado de Direito está enquadrado
na “história geral das idéias e das instituições”.
Para elucidar ainda mais tal posicionamento, assim entende
André Copetti (2000, p. 52):

A instituição do Estado de Direito, inobstante estar ligada conceitualmente ao


pensamento germânico dos séculos XVII e XVIII, tem suas raízes em tempo
muito anterior a estes. Num lapso temporal de mais ou menos mil anos, observa-
se a construção de uma série de idéias que desaguaram na concepção única do
Estado de Direito. Assim, temos na filosofia grega as idéias de dike (processo),
themis (direito) e nomos (lei); na antiguidade a idéia de uma constituição mista
carregava consigo a pretensão de um poder regulado, moderado, em contra­
posição à tirania ilimitada; a idéia de vinculação do soberano às leis funda­men­
tais do reino; as doutrinas de resistência contra tiranos e do contrato social; e,
por fim, o pensamento medieval da liberdade no Direito, ou seja, a liberdade a
partir de um determinado estatuto que conduziria à idéia de liberdade natural
do homem.

Foi na França, final do século XVIII, que em reação ao Absolutismo


Monárquico e aos ordenamentos medievais se estruturou de forma
mais completa a primeira versão do Estado Moderno: o Estado de Direito
Liberal. Esse momento histórico foi caracterizado, basicamente, pela
busca do direito à liberdade e à propriedade, pela centralização da pro­
dução normativa e pela divisão dos poderes. Tem-se, também, a ascensão
da burguesia; classe social que desencadeou essa luta política contra
os absolutistas.
Com a instituição do Estado Liberal, a atuação estatal passou a
ser limitada por um ordenamento jurídico que garantia e reconhecia os
direitos individuais. O conceito de lei, nesse período, foi entendido como

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o eixo de concretização constitucional do Estado de Direito (COPETTI,


2000, p. 54). Além disso, o Estado deixou de ser visto como uma ordem
divina e, como consequência dessa intervenção estatal mínima, surgiu
uma noção individualista de cidadania. Para Canotilho (1999, p. 93), o
Estado Liberal:

Limita-se à defesa da ordem e segurança públicas (“Estado de polícia”, “Estado


gendarme”, “Estado guarda-nocturno”), remetendo-se os domínios econô­
micos e sociais para os mecanismos da liberdade individual e da liberdade de
concorrência. Neste contexto, os direitos fundamentais liberais decorriam não
tanto de uma declaração revolucionária de direitos mas do respeito de uma
esfera de liberdade individual.

A burguesia, contudo, não cumpriu os ideais defendidos em sua luta


contra a Monarquia Absolutista. A igualdade defendida por essa classe
social era apenas formal, e não substancial. Dessa forma, a sociedade
da época viveu em profunda miséria, pois os cidadãos não tiveram seus
direitos fundamentais implementados. Com isso, a massa proletária,
totalmente insatisfeita, deu início ao processo de instituição do Estado
de Direito Social.
Carlos Walter (2008, p. 28) elucida que:

Elaborando leis como “fontes supremas” e observando as “limitações de não-


fazer, presentes na Declaração de Direitos”, “os parlamentares transformaram-se
na representação homogênea dos interesses da classe burguesa” historica­mente
destinada “à aquisição das luzes” sob a ceguidão incorrigível dos governados
— cidadãos isotopicamente igualados por constrição da isocrítica (“igualdade
de fazer, alterar ou substituir a lei”) e privação da isomenia (“igualdade de
interpretar a lei”).

Tem-se, portanto, que no Estado Liberal os direitos fundamentais


eram produzidos e aplicados conforme a vontade suprema da burguesia,
classe dominante que detinha o poder de impor a ordem de acordo com
seus próprios interesses.
Assim, no que se refere ao tratamento jurídico dado à prática da
eutanásia nesse paradigma, há de se refletir na hipótese de que essa prática
era regulamentada a partir de critérios de conveniência econômica, ou
seja, a sua autorização poderia depender dos interesses da classe econô­
mica dominante. Se essa prática fosse economicamente viável para a
ordem imposta, ela poderia, então, ser efetivada.

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A eutanásia na processualidade democrática brasileira 209

A eutanásia econômica tem o objetivo de provocar a morte de


pessoas tidas como economicamente inúteis para a sociedade, como, por
exemplo, os doentes mentais e os inválidos. A justificativa para tal caso
consiste na inutilidade do emprego de meios adicionais e extraordiná­­
rios para a manutenção da vida de tais enfermos, aplicando-os, então,
em pacientes que têm maiores chances de recuperação (CARVALHO,
2001, p. 18). Cabe ressaltar, contudo, que a eutanásia econômica viola
o con­teúdo protetivo dado ao bem jurídico vida digna no atual contexto
democrático.
A primeira grande guerra mundial (1914-1918), resultado da tardia
contenção da crise socioeconômica vivenciada no início do século XX,
foi o grande divisor de águas entre o emergente Estado Social e o deca­
dente Estado Liberal (WALTER, 2008, p. 32).
É nesse momento histórico que o Estado liberal-burguês, para sua
sobrevivência diante do caos social, passou a atender às exigências dos
trabalhadores. Assim, foram garantidos constitucionalmente os direitos
sociais, tais como: direitos do trabalho, da educação, da previdência, da
saúde, da assistência social, entre outros. O Estado passou a intervir na
economia para distribuir, de forma equânime, os recursos públicos e os
direitos do cidadão.
Diante da insuficiência do paradigma liberal-burguês, foi insti­tuído,
então, o Estado de Direito Social (Welfare State), que deixou de ser formal
e individualista para transformar-se em Estado material de Direito. A
partir daí, os direitos sociais não poderiam mais ser interpretados como
meros mandamentos políticos carentes de conteúdo, mas sim como
imperativos jurídicos constitucionais que deveriam ser implementados.
O Estado Social foi adotado inicialmente pela Constituição Mexi­
cana de 1917 e pela Constituição de Weimar de 1919, as quais buscavam
dar respostas aos problemas sociais da época por via de uma releitura
do papel de um Estado que passava a ter que intervir na economia e nas
relações privadas (LEAL, 2002, p. 27). No Brasil, esse paradigma teve
início com a Constituição de 1934 (DEL NEGRI, 2009, p. 69).
É importante ressaltar, ainda, que nesse marco teórico marcado
por um Estado fortemente interventor e paternalista, os cidadãos, ao
invés de agirem como coautores de sua própria vida, comportavam-se
como meros espectadores das imposições estatais (DEL NEGRI, 2009,
p. 71). Carlos Walter (2008, p. 43) ainda esclarece que:

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Prescindindo a soberaneidade do legislador liberal, a Jurisdição do Estado


Providência avultou-se como gestora da aplicabilidade de normas pro­gra­má­­ticas
segundo a vidência do julgador protagonista de um povo coadjuvante desti­­nado
à “relação processual em situação de sujeição ao juiz”.

No paradigma do Estado Social, o julgador “passou a adotar um


critério dúplice de aplicação da norma escrita conforme princípios do
ethos jurídico (consciência coletiva) para estruturação de uma jurispru­
dência de conceitos e valores”, perenizada por um decisionismo imune
à falibilidade do Estado-Juiz (WALTER, 2008, p. 44).
Nesse contexto, a prática da eutanásia era punida como crime
de homicídio (artigo 121 do Código Penal Brasileiro de 1940, ainda
vigente), razão pela qual todo e qualquer cidadão encontrava-se proibido
de discutir o seu conceito de vida, posto que tal direito era tido como
um direito absoluto e inviolável, mesmo que em situações nem um
pouco dignas.
Tem-se, também, que na busca pela “paz social” e pelo “bem-estar
coletivo”, o juiz agia com discricionariedade e com inobservância dos
textos legais, proferindo decisões com conteúdo metajurídico e carentes
de legitimidade.
Os direitos sociais não foram concretizados de forma plena, pois
vários teóricos e operadores jurídicos os qualificaram como normas progra­
máticas carentes de substantividade; a falta de interesse político também
contribuiu para a não efetivação desses enunciados constitucionais.
Diante da ineficácia do Estado Social e dos novos desafios impostos
pelas sociedades pós-modernas, foi instituído, então, o paradigma do
Estado de Direito Democrático (artigo 1º, caput, CRFB/88). A complexi­dade
das sociedades culturalmente multifacetadas refletiu a necessidade de se
discutir o Direito não só no seu âmbito de validade e eficácia (KELSEN,
2000, p. 309), mas principalmente no seu âmbito de legitimidade (DEL
NEGRI, 2009, p. 173).
Por fim, depreende-se da lição de Carlos Walter (2008, p. 56)
que “os paradigmas dos Estados Social e Liberal obstam a autoinclusão
dos governados como autores do direito que lhes foi destinado”.

4.2 A eutanásia sob a ótica de um novo marco teórico: o Estado de Direito


Democrático
A presente pesquisa desenvolveu-se a partir do novo marco teórico
implementado pela Constituição da República Federativa do Brasil de

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A eutanásia na processualidade democrática brasileira 211

1988, qual seja: o paradigma do Estado de Direito Democrático (artigo 1º,


caput, CRFB/88). Nesse trabalho não foi adotada a terminologia inscrita
no texto constitucional, “Estado Democrático de Direito”, pois todo
Estado democrático é um Estado de Direito e nem todo Direito é demo­
crático. Assim o termo democrático configura-se como um predicado do
termo Direito, o qual institui todo e qualquer Estado.
Na lição do Professor André Del Negri (2009, p. 73), há o seguinte
esclarecimento:

Vemos, portanto, nisso tudo, uma imensa obviedade, pois todo Estado, dito
democrático ou não, só poderá ser de Direito. Daí que não se torna interes­
sante a utilização da redação do art. 1º da Constituição (Estado Democrático
de Direito), porque referida terminologia apresenta conotação pleonástica. Por
outro lado, é bom lembrar que a democracia deve aparecer como uma espécie
de qua­lidade, de característica, de paradigma jurídico, de eixo teórico adotado
pela Constituição, pois democrático não é o Estado, mas sim o Direito que rege o
Estado. Quando falamos, na contemporaneidade, em Estado, queremos saber se
esse Estado é regido por um Direito social, liberal ou por um Direito democrático,
pois, de maneira indubitável, há uma acentuada diferença.

No Brasil, esse novo paradigma, que colocou fim ao período


ditatorial, possui como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa
humana (artigo 1º, inciso III, CRFB/88). Com essa mudança de marco
teórico jurídico-político, surge, então, um projeto de democracia traçado
por normas constitucionais que garantem os direitos fundamentais do
cidadão.
Para Carlos Walter (2008, p. 57):

O esvaziamento da sobrecarga ética e a radicalização pluralística das dife­renças


como marcos de falibilidade das “tentativas de explicação tradicionais” (do
modelo liberal e do Estado social) suscitaram nas sociedades complexas um
paradigma teoricamente explicável por um direito democrático constitucio­
nalizado e discursivamente legitimado pelo processo.

A legitimidade do direito democrático consiste, basicamente, na


garantia que o cidadão tem de ser autor e destinatário de toda e qualquer
decisão que possa afetar a sua vida, seja ela proferida no âmbito do judi­
ciário, do executivo ou do legislativo, efetivando-se, assim, a sua inclusão
na sociedade (MOREIRA, 2004, p. 110).
Na lição de Wolkmer (2003, p. 418), essa questão da legitimidade
do direito também foi fonte de preocupação para Habermas:

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Para Habermas, não se pode mais buscar a fundamentação do moderno


direito positivo no ideal platônico, tampouco na eticidade Kantiana, mas no
procedimento democrático calcado num acordo comunicativo entre sujeitos
participantes.

Esses sujeitos participantes alcançam a legitimidade do direito


quando se portam como coautores de decisões e isso só se faz possível
a partir do momento em que há a implementação do “direito ao debate
aberto e institucionalizado e o respeito à divergência” (DEL NEGRI,
2009, p. 170). Desse modo, a democracia passa a ser observada e efetivada,
sendo imperioso ressaltar que seu exercício é assegurado pela instituição
do Processo (artigo 5º, inciso LV, CF/88), uma vez que é por meio dele
que os cidadãos, enquanto coautores e destinatários do direito, dirigem,
constroem e reconstroem o ordenamento jurídico posto (DEL NEGRI,
2009, p. 171).
No contexto da democracia constitucionalizada, faz-se imprescin­
dível o abandono do discurso unilateral de autoridade, dos dogmas e do
insubstituível, pois esse contexto democrático é por excelência o regime
do discurso, ou seja, é o espaço procedimental de discursividade que se
ampara nos princípios processuais do contraditório, da ampla defesa e da
isonomia (artigo 5º, inciso LV, CRFB/88). É nesse espaço que o cidadão
buscará a implementação de seus direitos fundamentais e a potencia­
lização da sua dignidade de vida.
Pode-se dizer que no atual marco teórico democrático o titular
do direito à vida digna (artigo 5º, caput, c/c artigo 1º inciso III, ambos
da CF/88) é o cidadão e não mais o Estado. Por esse motivo, o paciente
incurável e em terrível sofrimento tem um amplo espaço procedimental
de discursividade (art. 5º, inciso LIV, CRFB/88), que lhe garante a cons­
trução do conceito de sua vida digna e de uma consequente decisão judi­
cial legítima que lhe possibilite o reconhecimento do direito à eutanásia
como decorrência da efetivação do princípio da dignidade humana
(artigo 1º, inciso III, CRFB/88).
A legitimidade dos atos decisionais no Estado de Direito Demo­
crático só é alcançada pelo Devido Processo Constitucional (artigo 5º,
inciso LV, CRFB/88), pois a instituição constitucionalizada do processo
é o “pressuposto democratizante e jurídico-discursivo regente da reali­
zação, recriação e a aplicação dos direitos assegurados no discurso cons­
ti­
tu­
cional” (LEAL, 2005, p. 103). Dessa forma, o Processo deixa de

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A eutanásia na processualidade democrática brasileira 213

ser um mero instrumento da jurisdição e passa a ser uma instituição


constitucionalizada, cujos princípios institutivos são o contraditório, a
ampla defesa e a isonomia (LEAL, 2005, p. 100).
A aplicação desses princípios processuais constitucionais é, também,
o meio de operacionalização do projeto democrático constitucio­na­lizado
e de inclusão do cidadão nos direitos e garantias fundamentais.
Esses fundamentos teóricos dão ao paciente terminal e em terrí­
vel sofrimento a possibilidade de questionar o conteúdo do significante
vida digna e de criticar o tratamento dado pelo Direito Penal, constru­
ído no marco teórico do Estado Social, à prática da eutanásia. Há vida
digna ou um prolongamento do processo de morte desse paciente? Se a
digni­dade da pessoa humana e a discursividade procedimental são funda­
mentos do Estado de Direito Democrático, a vontade e a liberdade desse
pa­ciente devem ser consideradas e respeitadas para fins de garantir a
cons­trução de uma decisão judicial legítima autorizadora da eutanásia.
O Estado de Direito Democrático é o atual referencial de testabi­
lidade de teorias, que possibilita a refutação de erros e ideologias no
discurso do esclarecimento científico. É a partir dele que serão testificados
os resquícios teóricos do Estado de Direito Social, nos quais a vida é
tida como um direito absoluto e indisponível e a prática da eutanásia é
interpretada como ilegal.
Na lição de Rosemiro Pereira Leal (2003, p. 335), o Estado de
Direito Democrático conceitua-se como “espaço jurídico-hermenêutico
de difusa e irrestrita fiscalidade, correição e executividade processuais
dos conteúdos constitucionalizados e indeturpáveis da normatividade
de aplicação imediata à realização da integração social”.
Nesse sentido, é possível concluir que o foco do atual paradigma
jurídico-político é o cidadão enquanto ser humano repleto de complexi­
dades e anseios, que tem o direito a uma vida plena e digna e que, portanto,
não pode mais se sujeitar ao dever de sobreviver pura e simplesmente.

5 O processo como uma instituição constitucionalizada


A democracia, em toda sua complexidade, proporciona ao paciente
terminal e em terrível agonia um amplo espaço de discursividade para
que ele possa participar, via Devido Processo Constitucional, da constru­
ção de uma decisão legítima sobre o que seja vida digna. Dessa forma, o
Processo deve ser trabalhado como uma instituição constitucionalizada,

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conforme prevê o art. 5º, inciso LV da CRFB/88; ele não busca “soluções
justas”, mas assegura às partes construírem, de forma isonômica e em
contraditório, o provimento final.
Esse posicionamento encontra respaldo na Teoria Neoinstitucio­
nalista do Processo, elaborada por Rosemiro Pereira Leal (2005, p. 103):

A instituição constitucionalizada do Processo, por sua eidética principiológica,


há de ser referencial de decisibilidade desde a criação da lei até sua inci­
dência, aplicação, extinção ou transformação. A teoria neo-institucionalista do
processo é uma Teoria da processualização testificante da validade normativo-
democrática, porque propõe e atua um pensar jurídico na racionalidade
sempre problematizável, por falibilidades revisíveis, da produção e aplicação
do direito.

Nessa teoria, a palavra instituição recebe a “acepção de conjunto


de princípios e institutos jurídicos reunidos ou aproximados pelo Texto
Constitucional com a denominação jurídica de Processo” (LEAL, 2005,
p. 100). Os princípios institutivos do Processo são a ampla defesa, a iso­
nomia, o contraditório e o direito ao advogado.
Com o novo paradigma e a consequente redefinição da Ciência do
Direito, torna-se imprescindível o redimensionamento da atividade juris­
dicional para a efetivação dos direitos constitucionalmente asse­gu­­rados.
O Processo não pode mais ser considerado como um mero instrumento
da jurisdição, em que as partes estão sujeitas à discricionariedade e sub­
jetividade do juiz. Isso significa dizer também que decisões metajurídicas
(com conteúdo buscado fora do ordenamento jurídico) são totalmente
ilegítimas no Estado de Direito Democrático, posto que todas as decisões
judiciais devem ser juridicamente fundamentadas, sob pena de nulidade,
conforme preceitua o inciso IX do artigo 93, CRFB/88.
A teoria do processo como relação jurídica, desenvolvida por Bülow
em 1868, trabalha os pressupostos de existência e desenvolvimento do
processo pela relação juiz, autor e réu, definindo o processo enquanto ato
desses três personagens, ou seja, como um instrumento da jurisdição
(LEAL, 2005, p. 93). Esses fundamentos teóricos, no entanto, não condi­
zem com o atual paradigma democrático, pois o Processo não é tido
como instrumento da jurisdição, mas sim como instituição constitucio­
nalizada disciplinadora e legitimadora da jurisdição. Portanto, o “direito-
de-ação instaura o procedimento e não a jurisdição, logo, é este instru­
mento do Processo e não vice-versa” (LEAL, 2005, p. 93).

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A eutanásia na processualidade democrática brasileira 215

O Processo como instituição constitucionalizada proporciona ao


caso concreto um espaço de discursividade no qual o juiz deve construir
uma teoria com base nas teorias apresentadas e construídas pelas partes
processuais.
O Devido Processo Constitucional engloba o Devido Processo
Legal, que consiste na aplicação do Direito, e o Devido Processo Legis­
lativo, que consiste na produção do Direito. Para que as decisões,
tanto no âmbito de criação como no âmbito de produção do Direito,
sejam legítimas, os procedimentos legais devem atender aos princípios
processuais constitucionais da ampla defesa, da isonomia, do contradi­
tório e do direito ao advogado (LEAL, 2005, p. 100).
O princípio do contraditório consiste na liberdade jurídica de
contradizer limitada por um prazo legal. Ele é a necessária dialeticidade
entre as partes processuais que buscam a defesa de seus direitos alegados.
O princípio da isonomia, por sua vez, é a igualdade temporal de dizer
e contradizer, ou seja, o provimento final deve ser construído pelas
partes em simétrica paridade, independente da situação econômica de
cada uma delas. O princípio da ampla defesa faz com que a defesa seja
plena e legítima nos limites temporais do Processo e, por isso, ela não
pode, dentro do prazo legal, ser prejudicada pela busca da celeridade
processual (LEAL, 2005, p. 109).
Diante de tais princípios, torna-se imprescindível a atuação do
advogado, que é indispensável à administração da justiça e à efetivação
da cidadania. Assim preceitua o artigo 133 da CRFB/1988: “O advogado
é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus
atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.”
É através do processo constitucionalizado que o projeto de demo­
cracia estabelecido pela CRFB/1988 será operacionalizado. Isso quer
dizer que, somente assim, o cidadão será incluído no sistema jurídico
para que todos os seus direitos fundamentais sejam implementados.
Entretanto, muitos teóricos, juristas e operadores do Direito ainda não
compreenderam a complexidade de uma democracia, estando, ainda,
presos aos resquícios teóricos do paradigma do Estado de Direito Social.
O argumento de que a vida é um direito absoluto e inviolável não
considera o ser humano em sua complexidade e nem condiz com o atual
paradigma estatal; viver não pode ser o mesmo que um simples respirar
biológico (NEGRI, 2009, p. 337). Viver dignamente é ter todos os direitos

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216 Roberta Beatriz Bernardes da Silva, Roberta Toledo Campos

fundamentais efetivados pelo Devido Processo Constitucional (artigo


5º, inciso LV, CRFB/88), assim como a liberdade, a saúde, a educação,
a privacidade, a intimidade, o lazer, o meio ambiente preservado e é a
partir da efetivação de tais direitos que se pode falar, então, na existência
do direito de não se sujeitar a viver indignamente.
É de suma relevância, porém, lembrar que o paciente terminal só
poderá discutir a disponibilidade do direito à vida se o mesmo possuir
todos os seus direitos fundamentais implementados. Isso se explica com
o seguinte esclarecimento: a sua decisão pela prática da eutanásia não
pode estar condicionada à falta de tais direitos.

5.1 A construção do conteúdo do bem jurídico vida digna


Com o método da pesquisa científica hipotético-dedutivo-crítico,
também conhecido como método crítico-eliminacionista (POPPER,
1999, p. 122), busca-se testificar a teoria que tutela a vida como um bem
jurídico absoluto e inviolável a fim de se demonstrar a ilegitimidade dos
resquícios teóricos do Estado de Direito Social e da consequente punição
da prática da eutanásia.
O Código Penal brasileiro, em vigor desde o ano de 1940 e carac­
terizado por relevos normativos fascistas e inquisitivos, tutela, na sua
Parte Especial, Capítulo I do Título I, o bem jurídico vida. Como conse­
quência jurídica, a prática da eutanásia no Brasil é punida como crime de
homicídio (artigo 121, CPB) e a discussão sobre a sua descriminalização
é taxada como inconstitucional.
Cabe ressaltar que referido diploma legal foi produzido sob a égide
do Estado de Direito Social — marco teórico no qual os cidadãos são
meros espectadores de decisões. Assim, nesse contexto, o direito à vida,
por si só, pode ser interpretado como um simples respirar biológico e
pulsar de órgãos, e, em decorrência disso, o Estado passa a atuar com
maior discricionariedade, a fim de manter a ordem pública conforme
seus próprios interesses. Desse modo, o direito de viver transforma-se
em dever de sobreviver.
No entendimento da professora Scarlett Marton (2009, p. 19)
esse dever decorre de uma forma dualista de encarar o debate sobre a
eutanásia, pois ao se defender “a vida a qualquer custo”, opõe-se a vida
à morte e, assim, ao se fazer tudo pela vida contra a morte, o direito de
viver converte-se em dever.

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A eutanásia na processualidade democrática brasileira 217

No entanto, faz-se imperioso compreender que a morte decorre da


vida e, sendo o paciente terminal e em terrível sofrimento o titular da
sua existência, cabe a ele e não ao Estado definir o conteúdo do direito
à vida digna e, consequentemente, o conteúdo do direito de encerrar a
indignidade de sua vida.
Tutelar o bem jurídico vida, numa acepção puramente biológica
e nos moldes do Código Penal de 1940, significa ignorar a nova ordem
constitucionalizada que dá um novo conteúdo protetivo ao bem jurídico
vida digna, consistente na construção do seu alcance e da sua definição
pelo seu titular. Isso se explica pelo fato de que, no Estado de Direito
Democrático, a Constituição possui um texto aberto, democrático, passível
de reconstrução e de fiscalização por todos os cidadãos (DEL NEGRI,
2009, p. 74).
Assim, no novo marco teórico democrático, tem o paciente termi­
nal e em profunda agonia o direito de participar, via devido Processo
Constitucional (artigo 5º, inciso LV, CRFB/88), da construção do con­teúdo
de sua vida digna e o direito de requerer a autorização da prática da
eutanásia.

5.1.1 A dignidade da pessoa humana como fundamento da nova


ordem democrática
O Estado de Direito Democrático (artigo 1º, caput, CRFB/88) traduz
uma nova ordem jurídica constitucionalizada, na qual a dignidade da
pessoa humana é um de seus fundamentos (artigo 1º, inciso III, CRFB/88).
Daí surge a grande necessidade de se discutir a prática da eutanásia
à luz de novos contornos teóricos, pois na ciência contemporânea faz-
se imprescindível buscar não só a validade e eficácia do Direito, mas,
principalmente, a sua legitimidade (HABERMAS, 1997, p. 210).
Para se falar, então, na prática da eutanásia no Estado de Direito
Democrático, deve-se buscar qual o conteúdo e o alcance do princípio
constitucional da dignidade da pessoa humana, já que o conteúdo do
direito à vida tutelado pelo Estado de Direito Social não condiz, defini­
tivamente, com os novos anseios da sociedade jurídico-pluralista.
Historicamente, tem-se que:

É com o fim da II Guerra Mundial e suas consequências terríveis para a huma­


nidade que a dignidade passa a ser reivindicada como princípio e como cerne
dos ordenamentos jurídicos propensos à construção de um Estado Democrático

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218 Roberta Beatriz Bernardes da Silva, Roberta Toledo Campos

de Direito. Com o advento da Declaração da ONU de 1948, pela primeira


vez, ocorreu a positivação da dignidade da pessoa humana, fato que inspirou
vários textos constitucionais posteriores: “Todos os homens nascem livres e
iguais em dignidade e direitos”. (DUARTE, p. 295)

O primeiro texto constitucional que declarou a dignidade da


pessoa humana como princípio fundante de todo o ordenamento jurí­
dico foi a da República Alemã de 1949. No Brasil, referido princípio foi
positivado com força normativa plena somente na Constituição da Repú­
blica Federativa do Brasil de 1988 (artigo 1º, inciso III).
A dignidade da pessoa humana é uma qualidade intrínseca, inse­
parável de todo e qualquer ser humano e é a partir dela que ele tem a
sua existência em plenitude. Nesse sentido, todo cidadão é titular não só
do direito à vida, mas sim do direito à vida digna.
Na democracia constitucionalizada brasileira, ter vida digna é ter
todos os direitos fundamentais efetivados, ou seja, é estar incluído na
nova ordem de direitos e garantias fundamentais (artigo 5º e incisos,
CRFB/88). Para tanto, o ser humano deve ser respeitado em sua comple­
xidade, de modo que sua liberdade de religião, de expressão, de locomo­
ção, de autodeterminação seja respeitada pela comunidade jurídica e
efetivados pelo Estado. Isso significa dizer que os direitos fundamentais
dão forma ao conteúdo mínimo da dignidade humana.
No entendimento de Maria Elisa Villas-Bôas (2005, p. 138), tem-se
o seguinte:

De fato, conquanto se trate, como já foi dito, de um aspecto imprescindível


no contexto constitucional, a dignidade é conceito mais fluido e de difícil
definição que o próprio dimensionamento da expressão vida, a qual guarda
ao menos, critérios mais objetivos, em que pese a variedade de situações
fisiopatológicas envolvidas.

No contexto de uma democracia constitucionalizada, o conteúdo


do significante dignidade humana é aquele construído pelo seu titular,
qual seja, o próprio paciente terminal e em profunda agonia. É indis­
pensável esclarecer que essa construção somente é legítima e apenas
deve ser levada em consideração se for realizada num amplo espaço de
discursividade, em ampla defesa, isonomia e contraditório pelas partes
processuais. Daí a extrema relevância da Teoria Neoinstitucionalista do
Processo, na qual o Processo é uma instituição constitucionalizada, e não
um mero instrumento da jurisdição do Estado-Juiz (LEAL, 2005, p. 100).

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A eutanásia na processualidade democrática brasileira 219

O paciente terminal e em terrível sofrimento tem o direito de traçar


o seu próprio destino; cabe a ele, e não ao Estado, definir se possui ou não
vida digna. É nesse momento de profunda agonia vivenciada pelo enfermo
incurável que se pode falar, então, na possibilidade de reconhecimento,
via Devido Processo Constitucional (artigo 5º, inciso LV, CRFB/88), do
direito à eutanásia.

5.1.2 A liquidez e a certeza do direito à vida digna


A abordagem científica sobre a liquidez e certeza dos direitos funda­
mentais à vida digna e à liberdade de autodeterminação do ser humano
(LEAL, 2005, p. 26) fundamenta e justifica o cabimento do Mandado
de Segurança — ação constitucional garantida pelo artigo 5º, inciso
LXIX, da CRFB/88 — para requerimento da autorização da prática da
eutanásia, quando for esta a vontade do paciente terminal.
Tal fato é juridicamente possível ao se alegar que os direitos
líquidos e certos à vida digna (artigo 1º, inciso III, CF/88) e à liberdade
de autodeterminação (artigo 5º, caput, CRFB/88) do paciente incurável
estão sendo lesados pelo fato de tal prática ser punida como crime de
homicídio pelo ordenamento jurídico brasileiro.
A liquidez (normatividade fundamental econômica) e a certeza
(infungibilidade) de tais direitos fazem com que o Estado tenha o dever
de implementá-los, pois são direitos já acertados no plano constituinte
originário (LEAL, 2005, p. 34). Direitos líquidos são direitos autoexe­
cutivos, que exigem aplicação imediata, e direitos certos são direitos
infungíveis, cujo cumprimento é insuscetível de novas reconfigurações
provimentais (LEAL, 2003, p. 338).
Para complementar esse posicionamento, assim entende André
Del Negri (2009, p. 336):

Evidentemente que esses aspectos da possibilidade do argumentar e contra-


argumentar só é possível pela instituição do Processo (núcleo discursivo nas
democracias), o qual possibilita à pessoa ingressar em juízo e reivindicar os
direitos líquidos e certos (direitos fundamentais), construídos em Devido Processo
Legislativo, no Parlamento brasileiro, para que sejam reconhecidos.

Os direitos fundamentais econômicos assegurados constitucional­


mente não devem ser discutidos e avaliados de acordo com o livre con­
vencimento do juiz, pois eles são imperativos jurídicos que devem ser

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220 Roberta Beatriz Bernardes da Silva, Roberta Toledo Campos

imediatamente aplicados e concretizados. Assim preceitua o §1º, do


artigo 5º, CRFB/88: “As normas definidoras dos direitos e garantias
fundamentais têm aplicação imediata”. Em decorrência disso, o paciente
terminal não pode ser obrigado a passar por procedimentos médicos
inúteis que aumentem o seu sofrimento.
Os direitos fundamentais à vida digna e à liberdade de autodeter­
minação do ser humano são acertados por uma liquidez e certeza já pro­
ces­sualmente decididas em bases constituintes que legitimam a executivi­
dade incondicionada desses direitos fundamentais (LEAL, 2005, p. 24).
Na lição de Rosemiro Pereira Leal (2005, p. 27):

Afiguram-se de importância significativa a liquidez e certeza dos direitos


fun­damentais da vida, liberdade e dignidade, na linha constituinte de sua
construção, porque a lei constitucional, nesse passo, é provimento de mérito não
rescindível ou afastável por juízos cognitivos ou de conveniência ou equidade
da decidibilidade judicial, cabendo a esta tão-somente cumprir e conduzir
a execução dessa fundamentalidade jurídica titularizada ou protegê-la de
ilegalidades supervenientes.

Se, portanto, a direção de um hospital se recusa a levar em consi­


deração a vontade de um paciente terminal e incurável, impondo a ele,
mesmo que de forma dolorosa e sob a iminência de sua morte, o dever
de viver, tem-se nesse caso a violação dos direitos líquidos e certos à vida
digna e à autonomia do paciente. Diante disso, o Mandado de Segu­rança
impetrado em desfavor do hospital, enquanto pessoa jurídica de direito
público ou privado, é uma das medidas judiciais cabíveis, a fim de se
buscar a autorização da prática da eutanásia, posto que a sua proibição é
ato violador do direito de colocar fim à indignidade de vida que decorre
do direito à vida digna.
A base de validade dos direitos fundamentais à vida, liberdade e
dignidade se instala no processo constituinte e sua legitimidade se revela
na autopermissão normativa de sua fiscalidade processual (LEAL, 2005,
p. 29). Isso significa dizer que o paciente incurável, e qualquer outro
cidadão, têm o direito de fiscalizar os direitos assegurados no plano
constituinte e o direito de reivindicá-los quando houver inadimplência
por parte da Administração Pública.
A busca por uma decisão judicial que autorize a prática da eutanásia
decorre do direito que todo paciente terminal e incurável tem a uma vida
digna, desde o seu nascimento até o seu último suspiro.

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A eutanásia na processualidade democrática brasileira 221

6 Apontamentos sobre o controle de constitucionalidade em face da


punição da prática da eutanásia
Como já mencionado, o Código Penal brasileiro, criado sob a
égide do Estado de Direito Social e ainda vigente, pune a prática da
eutanásia em face do crime de homicídio, tipificado pelo artigo 121 do
referido diploma. No entanto, no atual marco teórico jurídico-político
(artigo 1º, caput, CRFB/88), essa proibição e consequente punição, con­
substanciadas no binômio prescrição/interdição, são passíveis de um controle
de constitucionalidade que demonstre a sua inconstitucionalidade e
ilegitimidade.
Pode-se dizer que o paciente terminal e incurável, ao requerer a
autorização judicial da prática da eutanásia na nova ordem constitu­
cionalizada, está exercendo o controle de constitucionalidade difuso
(aberto) dos resquícios teóricos desse Estado de Direito Social, que enqua­
dram a eutanásia, de forma acrítica, como conduta ilegal. Isso é possível
pelo fato de que esse paciente está sob a incidência direta de um caso
concreto e, em virtude disso, ele tem o poder de fiscalizar a aplicação
dos direitos fundamentais já acertados no plano constituinte originário
(DEL NEGRI, 2009, p. 227).
É por esse controle de constitucionalidade que se busca a legitimi­
dade do direito, pois, conforme esclarece a lição de André Del Negri
(2009, p. 228), “a legitimidade do Direito só se torna possível pelo diálogo
produzido pelos destinatários das normas (Processo Constitucional) de
forma mais ampla possível”. Nesse sentido, o enfermo incurável, sub­
metido a uma vida indigna, irá problematizar a constitucionalidade da
punição da prática da eutanásia.
Assim, busca-se a declaração de inconstitucionalidade da punição
dessa prática, seja por Mandado de Segurança (artigo 5º, inciso LXIX,
CRFB/88), seja por Ação Declaratória ou qualquer outro procedimento
que atenda aos princípios da isonomia, ampla defesa e contraditório
(artigo 5º, inciso LV, CF/88), posto que da liquidez e certeza do direito à
vida digna (LEAL, 2005, p. 27) decorre o direito que o paciente terminal
tem de colocar fim à sua indignidade de vida. Cabe ainda ressaltar que
o binômio prescrição/interdição referente à prática da eutanásia e sua
punição não pode ser recepcionado na democracia brasileira, devendo,
portanto, ser revogado.

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222 Roberta Beatriz Bernardes da Silva, Roberta Toledo Campos

6.1 A inexistência de conduta criminosa na prática da eutanásia sob a


perspectiva do marco teórico democrático
Feito todos esses apontamentos quanto ao controle de constitucio­
nalidade e a busca por uma decisão judicial legítima autorizadora da
prática da eutanásia, torna-se imperioso ressaltar que a declaração de
inconstitucionalidade da proibição dessa prática terá como consequência
a modificação do binômio prescrição/interdição para o binômio prescrição/
faculdade.
O binômio prescrição/faculdade consiste na não punição da prática
da eutanásia e na liberdade de autodeterminação do paciente terminal
e incurável que opta por colocar fim a sua indignidade de vida. Sendo
assim, esse paciente tem o direito de buscar uma autorização judicial legí­
tima da efetivação da eutanásia, via Devido Processo Constitucional (artigo
5º, inciso LV, CRFB/88), condizente com o seu conceito de vida digna.
Isso não significa dizer que a eutanásia será permitida a todos,
mas sim que a vontade do paciente terminal e em profunda agonia deve
ser levada em consideração. É imprescindível, portanto, analisar cada
caso concreto a fim de se verificar se esse paciente está inserido numa
ordem de direitos e garantias fundamentais implementados, posto que
a sua vontade não pode estar condicionada à falta dessa implementação.
Eis, então, a relevância da efetivação do projeto de democracia traçado
pela Constituição da República Federativa do Brasil (DEL NEGRI, 2009,
p. 162).
A possibilidade de uma decisão judicial legítima autorizadora da
“boa morte” de um paciente terminal decorre da inexistência de conduta
criminosa na prática da eutanásia no atual contexto democrático.
Como já dito, o Código Penal brasileiro pune a prática da eutanásia
em face do crime de homicídio com o intuito de tutelar o bem jurídico
vida. No entanto, com a instituição do Estado de Direito Democrático
(artigo 1º, caput, CRFB/88), o direito à vida ganhou um predicado, qual
seja, a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III, CRFB/88).
Sendo assim, o bem jurídico a ser tutelado no marco teórico democrático
é a vida digna.
Pode-se dizer, então, que a prática da eutanásia, enquanto efeti­
vação da vontade do paciente terminal e em profunda agonia, não lesa
nenhum bem jurídico, ao contrário, ela decorre do direito de colocar
fim à indignidade da vida que, por sua vez, decorre do direito à vida
digna em sua plenitude.

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A eutanásia na processualidade democrática brasileira 223

Se a esse paciente que sofre profundamente em virtude de uma


doença terminal é dada a oportunidade de construir o seu conceito de
vida digna do qual decorre a autorização da eutanásia, está ele poten­
cializando e implementando a sua dignidade humana. Portanto, a ante­
cipação do fim de sua indignidade de vida não constitui crime, ou seja,
não há a configuração de uma conduta típica, ilícita e culpável, posto
que não há lesão a bem jurídico.
Diante da (re)interpretação dada à eutanásia no atual marco teórico
democrático, é possível concluir que não há conduta criminosa em sua
prática, pois a sua proibição e consequente punição são flagrante­mente
inconstitucionais, não podendo mais serem recepcionadas pelo Estado
de Direito Democrático (artigo 1º, caput, CRFB/88).

7 Considerações finais
Do direito à vida decorrem inúmeras reflexões teóricas, filosóficas,
morais e religiosas. Muitos consideram a existência humana como um
bem supremo, inviolável, absoluto e sagrado, mas existem também os
posicionamentos que defendem o aborto, o uso de células embrionárias
para pesquisa e a prática da eutanásia, com o intuito de se alcançar a
liberdade de escolha da mulher, a evolução científica e a autonomia do
ser humano em escolher o momento de sua morte. Todos esses apon­
tamentos e divergências refletem a complexidade de uma sociedade
culturalmente multifacetada.
Conforme a lição de André Del Negri (2009, p. 170), “na demo­
cracia contemporânea existe a ausência de um ponto de equilíbrio,
uma harmonia definitiva, o que deixa a instituição sempre aberta a rei­
vindicações e possibilidades ainda a realizar”. Nesse contexto democrá­
tico, o enfrentamento das questões advindas do debate sobre a eutanásia
na busca de novas respostas condizentes com os anseios da sociedade
pluralista torna-se inevitável.
No Estado de Direito Democrático toda a produção e aplicação do
direito não podem ser fundamentadas em valores religiosos e morais, mas
sim em normas jurídicas que passaram pelo Devido Processo Legislativo.
Como aponta Rosemiro Pereira Leal (2005, p. 101):

A partir do momento histórico em que a Constituição se proclama condutora


de uma Sociedade Jurídico-Política sob a denominação de Estado Democrático
de Direito, como se lê no art. 1º da CR/88 do Brasil, é inarredável que, pouco

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224 Roberta Beatriz Bernardes da Silva, Roberta Toledo Campos

importando o que seja o existir brasileiro, o mundo jurídico institucionalizado


do Brasil é o contido no ordenamento constitucional e não mais das estruturas
morais, éticas e econômicas do quotidiano nacional.

No novo marco teórico democrático (artigo 1º, caput, CRFB/88),


a legitimidade das decisões jurídicas se dá pelo Devido Processo Cons­
titucional (artigo 5º, inciso LV, CRFB/88). Isso significa dizer que as
partes processuais têm o direito de participar da construção de qualquer
decisão que afete a sua vida, estando elas amparadas pelos princípios da
ampla defesa, da isonomia e do contraditório. Todo ato discricionário,
que não tenha a observância dos princípios institutivos do Processo e que
não seja juridicamente fundamentado é ilegítimo e, portanto, nulo de
pleno direito (inciso IX, artigo 93, CRFB/88).
A partir desses fundamentos teóricos pode-se dizer que a prática
da eutanásia é juridicamente possível no contexto democrático consti­
tucionalizado, pois ela decorre do direito à vida digna do paciente terminal
e em profunda agonia. A dignidade de vida desse paciente engloba a
sua liberdade de autodeterminação, de autoconsciência, de crença, de
expressão, de escolha e todos os demais direitos fundamentais assegu­
rados pela Constituição. Assim, a sua opção pelo fim de sua indignidade
de vida decorre do seu direito líquido e certo à vida digna.
Se um paciente terminal, mesmo com todos os seus direitos funda­
mentais garantidos, não mais os usufrui em decorrência do sofrimento
causado por uma doença incurável, tem ele o direito a buscar, então, o fim
da indignidade de sua vida. Cabe ressaltar, no entanto, que a sua decisão
não pode estar condicionada à falta da implementação de seus direitos
fundamentais, pois, se assim o fosse, ela seria ilegítima.
A decisão judicial autorizadora da prática da eutanásia deve ser
legítima, ou seja, deve ser construída em observância aos princípios
institutivos do Processo: a ampla defesa, a isonomia, o contraditório e
o direito ao advogado. A legalidade dessa decisão também decorre da
inexistência de conduta criminosa na efetivação da eutanásia, posto que
nesta situação não há conduta típica, ilícita e culpável que viole o bem
jurídico vida digna.
No atual paradigma jurídico, a proibição e punição da prática da
eutanásia em face do crime de homicídio (artigo 121, do CPB) se con­
substanciam no binômio prescrição/interdição, cuja inconstitucionalidade
impede a sua recepção na constitucionalidade democrática.

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A eutanásia na processualidade democrática brasileira 225

Deve haver, portanto, a modificação do binômio prescrição/interdição


para o binômio prescrição/faculdade, pois o Estado não pode mais agir
como se titular único fosse do direito à vida digna. Essa titularidade é
do paciente terminal e em profundo sofrimento e, por isso, a prática da
eutanásia não pode ser proibida, nem permitida; ela é uma liberalidade
do cidadão na democracia.

Euthanasia in Brazilian Democratic Processuality


Abstract: This research begins with the approach of its purpose by mentioning
the concept and the forms of the practice of euthanasia. Besides, it exposes
the development of the State paradigm in order to understand the democratic
constitution. This way, starting from the hypothetical-deductive-critical
scientific method, a critical analysis was searched about euthanasia in the
Rule of Democratic Law, current juridical-political paradigm adopted by the
Constitution of the Federative Republic of Brazil in 1988, in article 1º, caput.
It is had as objectives to approach the euthanasia practice as consequence of
the beginning of the human person’s dignity (article 1º, section III, CRFB/88)
and to make an analysis on the liquidity and certainty of the fundamental
rights to the worthy life and the freedom of the human being’s self-
determination (article 5º, caput, CRFB/88 ). The main focus of this project is
to show that the practice of the euthanasia becomes possible and legitimate
starting from the moment in which the process stops being a mere instrument
of the judge’s jurisdiction and becomes a constitutionalized institution. So, the
terminal patient and in terrible suffering has the right to participate, through
Constitutional Process (article 5º, section LV, CRFB/88), of the construction
of a legitimate, authorized, or not, judicial decision of the euthanasia. It is in
this discursive theoretical field, also, that the patient will build the significant
content of worthy life. The euthanasia involves controversial debates and its
complexity reveals the indispensability of a scientific research that searches
new answers to the longings of the democratic pluralist society.
Key words: Euthanasia. Human person dignity. Rule of Democratic Law.

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de Normas Técnicas (ABNT):

SILVA, Roberta Beatriz Bernardes da; CAMPOS, Roberta Toledo. A eutanásia na proces-
sualidade democrática brasileira. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo
Horizonte, ano 19, n. 73, p. 197-226, jan./mar. 2011.

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NOTAS E COMENTÁRIOS

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Discurso de abertura do Congresso de
Direito Processual de Uberaba –
4ª edição
A. João D’Amico
Advogado. Presidente do IAMG 1ª Seção Uberaba. Coordenador do Congresso de Direito Pro-
cessual de Uberaba.

Quando se quer algo, deve-se querê-lo com pureza de alma, e, para isso,
é necessário manter puro o pensamento que guia esse querer. Com frequência,
observa-se que, quando alguém quer uma coisa ou quer a um ser, é influenciado
até o delírio pelas paixões do instinto. Desse modo, o querer torna-se impuro, sendo
finalmente rechaçado pela própria natureza do objeto que é motivo desse querer.
Com isto quero dizer que não é bom nem belo nem nobre querer para satisfação
da vaidade ou do egoísmo, ou para alcançar objetivos mesquinhos. Quando estiver
em vias de querer algo, deve consultar sua própria consciência para saber se é
digno desse querer.1
É com este espírito que o Instituto dos Advogados de Minas Gerais,
1ª Seção, e o Centro de Estudos e Promoção ao acesso à Justiça têm a
satisfação de dar início ao Congresso de Direito Processual de Uberaba,
em sua 4ª edição.
Neste momento em que todo o país discute o novo Código de
Processo Civil, e a comunidade jurídica brasileira espera e deseja que
o processo, além de mais rápido e eficiente, seja seguro e portador das
soluções que as variadas demandas reclamam, Uberaba, capital da Escola
de Direito Processual do Triângulo Mineiro, traz a todos este evento,
que, seja pelos juristas que dele têm participado, seja pelos grandes
temas nele tratados, já é considerado um dos mais importantes congressos
do país.
Nesta 4ª (quarta) edição, em homenagem ao Dr. Ernane Fidélis
dos Santos, um dos grandes pensadores da Escola de Direito Processual
do Triângulo Mineiro, estaremos mais uma vez contando com grandes
nomes do Direito nacional. Entre os temas importantes teremos, amanhã,
um fórum especial voltado à discussão do novo Código de Processo Civil.
Temas importantes serão tratados no decorrer deste evento, sempre
com a intenção de prestar serviço e colaboração ao processo em geral.

1
PECOTCHE, Carlos Bernardo González. Concepção do querer – forma de lograr um propósito e comportamento
posterior, diálogo 16. Diálogos.

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230 A. João D’Amico

Lançaremos a Revista Brasileira de Direito Processual de n. 70 (setenta),


em nova edição a partir de 2007, quando se lançou, pela Editora Fórum,
o n. 59 (cinquenta e nove).
Aqui presente o Dr. Luís Cláudio Rodrigues Ferreira, editor e presi­
dente da Editora Fórum, fará uma surpresa agradável e também lançará
a Revista Brasileira de Direito Processual de n. 71 (setenta e um).
Teremos, também, o lançamento de obras jurídicas dos autores
Alexandre Atheniense, Jeferson Guedes, Thaísa Faleiros e Ronaldo
Bretas de Carvalho Dias.
Para nossa alegria, o Dr. Lúcio Eduardo de Brito, Juiz de Direito
da primeira (1ª) Vara Cível desta Comarca, logo após o intervalo para
almoço, irá também lançar a sua obra, intitulada A ação popular como
instrumento de invalidação de sentença lesiva ao patrimônio público.
Como nas edições anteriores, o Congresso cederá espaço para
a outorga da Comenda Professor Edson Prata, o grande pensador do
Processo Civil e um dos fundadores da Escola de Direito Processual Civil
do Triângulo Mineiro. Um evento como este carece da presença deste
grande homem, que nos deixou há exatos vinte (20) anos. Seus ensi­
namentos, entretanto, têm sido utilizados pelos operadores do processo
como referência de pesquisa e estudos.
Assim como ocorre nos grandes congressos do país, teremos a
apresentação de trabalhos científicos de Acadêmicos de Direito de
Uberaba.
O Professor e Doutor Lúcio Delfino, que tem proferido palestras
por todo o país, falará neste congresso sobre a flexibilização proce­di­men­
tal no novo Código de Processo Civil. Professor Lúcio é autêntico herdeiro
da Escola de Direito Processual do Triângulo Mineiro e, assim como os
grandes nomes que o precederam, tem alcançado, no cenário nacional,
o reconhecimento de que é merecedor, seja por sua gestão, em conjunto
com o Doutor Fernando Fonseca Rossi, à frente da Revista Brasileira de
Direito Processual, seja por seus variados trabalhos científicos, publicados
nos diversos cadernos especializados do Brasil.
A 4ª (quarta) edição do Congresso de Direito Processual de Uberaba
só se realiza por conta da bondade e do desprendimento dos grandes
nomes do mundo jurídico, que estão e estarão aqui presentes. Homens
e mulheres que se deslocaram de suas casas, de diversos Estados do
país, para nos trazer as luzes do novo Processo Civil. Nossos sinceros
agradecimentos a todos.

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Discurso de abertura do Congresso de Direito Processual de Uberaba – 4ª edição 231

Registro aqui também o esforço de toda a coordenação do evento.


Como disse no início, este evento representa um querer puro. É
fruto do trabalho de uma equipe que não mediu esforços para a con­cre­
tização deste querer.
Esta 4ª (quarta) edição inova, ainda, ao resgatar o Congresso de
Direito Processual de Uberaba como um evento de caráter eminente­mente
cultural, isento de paixões e interesses políticos.
Registramos nossos agradecimentos, também, à UNIUBE, UNIPAC
e FACTHUS, pela receptividade que deram ao evento.
Nosso desejo é que todos possam usufruir ao máximo das palestras
que se seguirão, hoje e amanhã.
Nossos agradecimentos, também, aos apoiadores cujas marcas
estão estampadas no material publicitário deste evento.
Agradecimento especial ao Doutor Públio Emílio Rocha e à Doutora
Lídia Prata Ciabotti, pelo incondicional apoio.
Nossos agradecimentos, ainda, à Associação Brasileira dos Cria­
dores de Zebu.
Fica, por fim, o nosso compromisso de que o Congresso de Direito
Processual de Uberaba, sendo hoje uma realidade nacional, continue
com suas edições futuras, sempre com a realização do Centro de Estudos
e Promoção ao Acesso à Justiça e do Instituto dos Advogados de Minas
Gerais, 1ª Seção, com o apoio imprescindível da comunidade ubera­bense,
sempre sensível aos eventos culturais.
Tenhamos, pois, um belo e proveitoso congresso! Sejam bem-vindos!
Bom trabalho a todos e que Deus nos ilumine.
Bom dia a todos e obrigado!

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Introito à Comenda Professor Edson
Prata, ofertada na 4ª edição do
Congresso de Direito Processual de
Uberaba pelo IAMG, 1ª Seção Uberaba,
a expoentes do cenário jurídico
Luciano Del Duque
Membro do IAMG. Apresentador da Solenidade.

A Comenda Professor Edson Prata foi criada no ano de 2002 pelo


Instituto dos Advogados de Minas Gerais, 1ª Seção Uberaba, e o objetivo
visado teve e continua tendo dois enfoques principais:
- ad perpetuam rei memorian, ou seja, para perpetuar a memória do
nosso saudoso Professor Edson Prata, grande expoente da cultura
jurídica do Triângulo Mineiro, de Minas, do Brasil e do mundo;
- distinguir, no cenário jurídico, aqueles profissionais que, de
ma­neira abnegada, contribuíram e contribuem para o fortaleci­
mento da pesquisa jurídica, legando verdadeiros ensinamentos
que servirão para orientar os juristas que lhes seguirão.
Com esta pequena introdução damos início à solenidade de entrega
de medalhas, que simbolizam a Comenda Professor Edson Prata.

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A propósito de uma homenagem a
Ronaldo Cunha Campos
Luiz Carlos de Arruda
Advogado.

No dia 1º.02.2011 foi inaugurado em Uberlândia o Fórum Regional


Eleitoral Dr. Ronaldo Cunha Campos, como sede da Região Eleitoral
do Triângulo Mineiro.
Discursaram autoridades. Falaram políticos. Disseram do futuro e
do presente. Falas antigas foram reafirmadas, da melhoria de prestação
de serviços do Estado, da maior proximidade do cidadão-eleitor com o
cidadão-cidadão.
Ouvimos e nos regozijamos. Alvíssaras! Êxito para a Administração!
Tudo se fez sob o pálio de uma homenagem a Ronaldo Cunha
Campos. Advogado, Autor, Professor, Juiz, um filósofo do Direito, na
realidade.
Nada mais justo que os encômios ao uberabense cumpridos
em Uberlândia. Uberlândia que lhe deve tanto por tão bons serviços
prestados.
Juntou-se a Edson Prata (o professor de todos nós), a Humberto
Theodoro Junior (o jurisconsulto), a Jacy de Assis (o pensador do Direito),
a Ernane Fidelis dos Santos (exemplo de desembargador) para formar
a Escola Processualista do Triângulo Mineiro ao tempo da implantação
do Código de Processo Civil de 1973. Alteraram eles a compreensão do
CPC de 1939 que surgira a pretexto de harmonização do direito pro­
cessual no território nacional.
Abandonara-se com o CPC/39 a colcha de retalhos de que se
constituía na existência de inúmeros códigos de processo, distribuídos
por diversos Estados e que tanto danos causavam à prestação jurisdi­cio­
nal. O Código de Processo Civil de 1973 aperfeiçoou aquele Estatuto.
Ronaldo Cunha Campos com a percuciência de sempre registrou
em seu Comentários ao Código de Processo Civil de 1973 quando raciocinava
acerca da norma processual e o mundo fático:

Encontramo-nos diante de uma concepção do real, onde já se destacam os


seguintes elementos:

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234 Luiz Carlos de Arruda

a) tudo que existe, existe em movimento;


b) parte do que existe, a humanidade tem consciência do caráter inevitável
do movimento e da transformação dele resultante;
c) diante desta constatação, a espécie humana busca obter benefício da
transformação;
d) a sociedade e os indivíduos apresentam carências constantes, surgem como
seres necessitados;
e) as carências, a que denominaremos necessidades, suprem-se através de
coisas;
f) a coisa idônea para suprir uma necessidade chamaremos bem;
g) o benefício que a sociedade humana procura obter das transformações da
realidade física e social consiste num aumento na quantidade e na qualidade de
bens, porque estes são as coisas idôneas à satisfação de suas necessidades;
h) se o homem procura alterar a transformação, ele o faz com um propósito
e, portanto, a atividade humana se distingue como intencional;
i) o propósito da atuação da espécie humana é a obtenção de bens.1

Reafirmava aí toda a dificuldade da prestação jurisdicional pelo


Estado. Filosofava no comentário aos primeiros artigos do Código:

Uma codificação pretende representar um sistema e não apenas um conjunto


de disposições legais.
As partes que a integram se articulam segundo determinadas normas, e nestas
reside a definição de um corpo sistemático de leis.
As normas informadoras de um Código emprestam-lhe um específico
sentido, e este se transmite às disposições particulares onde se desdobra uma
codificação.
A exegese do todo, como de suas partes, não prescinde do domínio destas
normas, a partir das quais se estrutura um sistema.
Ademais, dada a multiplicidade de formas assumidas pelos fatos sociais,
dificilmente as disposições de lei prevêem, com precisão, a realidade social cuja
disciplina perseguem. Uma satisfatória tipificação dos fenômenos sociais não
se mostrou, até hoje, tarefa exeqüível.
Um estatuto não alcança, portanto, sua meta ideal, o regulamento completo de
determinado setor da atividade humana.
As lacunas da lei são figuras conhecidas. Há que se valer das normas informadoras
de um sistema para, completando-o, formular o dispositivo ainda inexpresso.
Cuida-se de identificar as normas que definem o sistema legal onde o processo
encontra sua disciplina não apenas no sentido de possibilitar a apreensão do

1
Volume I: teoria geral do processo civil, tomo I: a norma processual. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 4.

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A propósito de uma homenagem a Ronaldo Cunha Campos 235

todo, como de permitir uma correta exegese dos inúmeros dispositivos legais
que o formam.
Certamente não abrigamos a ilusão de trazer soluções definitivas Con­
tu­d o, entendemos que determinados temas reclamam um contínuo
questionamento.
As normas reitoras do direito processual, onde sua estrutura repousa, é matéria
de difícil manejo, a exigir preciso instrumental em seu tratamento.
As normas de onde provêm os institutos processuais demandam pesquisa
ininterrupta.
O primeiro objetivo de nosso esforço reside em comunicar continuidade
ao estudo destas normas.
Ademais, a análise de uma codificação, onde se procederá ao exame de cada
um dos seus dispositivos, requer, como passo inicial, o estudo de suas normas
reitoras, indispensáveis à exegese de disposições particulares.
Carnelutti, ainda que se referindo aos princípios, precisa a natureza
desta pesquisa ao denominá-la “ricerca del perchè il processo civile è quello
che è”.
Assinala o mestre, ainda, os riscos deste trabalho, ao lembrar: “È anche un
rischio, scavare; rischi che ti crolli adosso quello che hai già costruito”.
Este, esquematicamente, o propósito deste estudo e suas limitações.

Aí está o aviso do Mestre do Código de 1973, para os pretensos


criadores do Novo Código de Processo Civil, ora “em gestação”. Urgem
cuidados para que não se destrua o que já está construído!
Todo seu escrito compôs soma de inarredáveis conceitos que
se perpetuaram no dia a dia do Juiz, do advogado e do operário do
Direito.
Já não temos Ronaldo entre nós. Mas fez-se Desembargador antes
de sua migração para outra esfera. Cada acórdão de relato seu é uma
lição de sutileza técnica e de amor ao próximo e ao direito.
De suas amizades já nem digo. Foram muitas e todas ímpares.
Um deles Lauri Cardoso, professor, estudioso, claro e simples como
a verdadeira amizade.
Outro Dr. Cláudio Costa fez-se Presidente do Tribunal de Justiça
de Minas Gerais com elogios, aí, para o Tribunal.
Aristóteles Dutra de Araújo Atheniense, seu colega de banca advoca­
tícia, é e será o eterno Aristóteles da advocacia escorreita, nobre e eficaz.
Claudiovir Delfino advogado das comarcas mineiras e em especial
do Triângulo Mineiro, do qual não se relata nada pelo muito que já diz

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236 Luiz Carlos de Arruda

seu exemplo na forma de advogar, de conduzir-se na vida, amigo que


fora de Ronaldo.
Do estudioso Gustavo Capanema de Almeida todos sabem da
amizade por Ronaldo.
E outros tantos insignes nomes que não são aqui mencionados.
Ronaldo Cunha Campos deixou sua forma de raciocinar o direito
em seus escritos, em seus trabalhos e sua obra.
Espera-se sua biografia para melhor aproveitamento de seus regis­
tros. Espera-se o biógrafo com a mesma ânsia que se deseja tivés­semos
ainda Ronaldo para analisar artigo por artigo do Código de Processo
Civil que se anuncia para breve.
Temos certeza que estaríamos hoje ouvindo o Dr. Ronaldo afirmar:
Atenção! O primeiro artigo do Código de Processo Civil novel traz em si todos as
metas de mudanças que se efetua na prestação de Justiça. Diz o referido artigo: “O
processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado, conforme os
valores e os princípios fundamentais estabelecidos na Constituição Fede­
rativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código”. Vale dizer, ...
Justo e liberal, afirmava em alto e bom som: o direito de defesa é
garantia constitucional!
A tentativa de obstar recursos é uma bobagem que só se prestará
para deslustrar o novo CPC. O processo, a despeito de sua indepen­dência,
é regra e instrumento da valorização e respeito ao direito e à prestação
jurisdicional.
Faltando recursos no Código, valer-se-á o cidadão da força da
Constituição para sua proteção. O Estado não pode cevar-se na desgraça
e conflitos de seus cidadãos. O Juiz há de ser sempre preparado para
exercer seu mister, apto para seu ofício.
Faleceu Ronaldo antes de ouvir o Juiz Nalini dizer que o julgador
que sabe apenas a língua pátria é uma pobre e infeliz criatura. O Juiz
paulista em consonância com o Juiz mineiro. O filósofo de São Paulo
falando pensamentos do filósofo mineiro. O jurisconsulto vivo racio­
cinando no mesmo sentido daquele que não está mais entre nós.
A homenagem se faz ao ser concedido o nome do mestre à Sede
Regional do Tribunal Eleitoral.
A homenagem fez-nos lembrar do Professor, do estudioso e daquele
que nunca se deixou embair por raciocínios montados sobre maus
argumentos.

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A propósito de uma homenagem a Ronaldo Cunha Campos 237

Independentemente da homenagem, Ronaldo Cunha Campos


vive entre nós. Vive em seus escritos. Em seus familiares. Na Ana Maria
de seus encantos. Em seus amigos. Vive a cada instante em que um juiz,
laborioso, estudioso, desempenha seu sacerdócio no ato de julgar.
Simples como um espírito de luz. Simples como as almas aben­çoadas
pelos ensinamentos Daquele Ser Supremo que também habitou entre
nós. Sem maldade. Sem malícia. Sua alma sua palma.
Assim era Ronaldo.
Valeu a homenagem! Cultive-se o exemplo!

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O nosso primeiro Tribunal de Justiça
Aristoteles Atheniense
Advogado e Conselheiro Nato da OAB.

Foi na administração do Governador-Geral Diogo Botelho que a


Coroa portuguesa instituiu, em 7 de março de 1609, o primeiro Tribunal
de Justiça do Brasil.
Em 1587 tentou-se implantar a Justiça na Colônia por iniciativa
do rei Felipe II da Espanha e I de Portugal. Foi, então, elaborado um
Regimento destinado a disciplinar a atuação da Corte. O projeto não
vingou nas duas vezes em que foi posto em prática.
Somente no reinado de Felipe III, também espanhol, deu-se a
criação da Justiça no Brasil, sendo estabelecido o Tribunal de Relação.
Não se tratava da primeira forma de organização da Justiça no
chamado Novo Mundo. Em 1511, os colonizadores espanhóis haviam
criado em São Domingos a primeira Audiência Real, com características
semelhantes a de um tribunal de segunda instância.
Segundo o historiador e jornalista baiano Jorge Calmon, o Tribunal
de Relação tinha jurisdição civil e penal por todas as capitanias distri­
buídas ao longo da costa. Era de sua competência apreciar as causas cíveis
de valor reduzido, enquanto que as de maior importância comportavam
recurso à Corte de Suplicação.
O Regimento de 1609 promoveu a criação do Chanceler, de
três desembargadores de Agravos, do Juiz de Fora, do Procurador dos
Feitos da Coroa, Fazenda e Fisco, do Promotor de Justiça, do Provedor
dos Defuntos e Ausentes e de outros dois desembargadores denominados
Extravagantes.
A dificuldade maior no funcionamento do novel Tribunal consistia
na vinda dos magistrados de Portugal para a cidade da Bahia, hoje
Salvador. Por se tratar de uma cidade reconhecidamente precária, a
escolha dos sobrejuízes importava num autêntico castigo.
Assim, a formação moral dos julgadores que aqui arribaram era
discutível. Alguns exerceram o comércio, chegando ao desplante de
patrocinar causas de sua alçada, vindo com o tempo a cair no descrédito
público devido aos excessos cometidos.
Com a invasão holandesa o Judiciário foi desinstalado do prédio
onde funcionava que serviu de apoio aos militares portugueses na
reconquista da capital. Só foi restabelecido em 1652, com a edição de
um novo Regimento e nova sede na administração do Governador-Geral
João de Lancastre.

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240 Aristoteles Atheniense

Durante esse recesso, a administração da Justiça ficou a cargo dos


Ouvidores-Gerais do cível e do crime. O Estatuto recém-criado conferiu
ao Tribunal de Relação o encargo de empossar os governadores da
Colônia, tendo sido reduzido o número de membros da Corte.
O Tribunal de Relação importava em peça fundamental para a
permanência dos portugueses na América do Sul, pois Salvador era o
mais expressivo porto do mundo ao sul do Equador.
Os magistrados aplicavam em suas decisões o direito positivo
contido no Código Sebastiânico (1569), além das Ordenações Manuelinas
e também Filipinas (1603).
Os desembargadores vestiam-se sobriamente, sendo obrigados a
assistir missa antes de entrarem na sessão de julgamento.
O Governador-Geral intervinha na Justiça, exercendo a função
de regedor da Casa de Suplicação e consultava a Relação em assuntos
políticos e administrativos.
Ainda, na avaliação de Jorge Calmon, os julgadores frequente­mente
entravam em atrito com as várias esferas do poder colonial: “O nível da
magistratura só melhorou com a introdução no Brasil dos cursos jurídicos,
em 1828”.
Em 1718, um bando de piratas, que atemorizava a população
costeira, naufragou na capitania do Rio de Janeiro. Foram presos e enviados
a julgamento no Tribunal baiano, onde vinte e sete deles receberam a
pena máxima — morte na forca.
No cadafalso afirmaram que haviam se convertido ao catolicismo,
valendo-se dessa brecha prevista no Código Filipino, na tentativa de se
livrar da pena capital. A excludente foi recusada, sobrevindo o enforca­
mento que, segundo o Tribunal, teria finalidade exemplar.
O Tribunal baiano teve sua extensa jurisdição reduzida com a criação
do Tribunal de Relação do Rio de Janeiro, pelo Marquês de Pombal, cuja
competência partiu de Minas e compreendia as capitanias do Sul.
Em 1763, devido ao fluxo do ouro e do diamante, a sede do Governo-
Geral foi transferida de Salvador para o Rio de Janeiro, até que, em 1808,
com a chegada de D. João VI, a nova capital passou a abrigar também a
Casa da Suplicação, existente em Lisboa.
Após a Independência (1822), com a promulgação da Constituição
de 1824, as antigas províncias passaram a contar com suas próprias
Cortes, o que importou na perda de importância que a Relação da Bahia
conservara desde a sua criação.

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RESENHAS

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MOREIRA, Alberto Camiña; ALVAREZ, Anselmo Prieto; BRUSCHI,
Gilberto Gomes (Coord.). Panorama atual das tutelas individual e coletiva:
estudos em homenagem ao Professor Sérgio Shimura. São Paulo:
Saraiva, 2011.1

O pluralismo de ideias que pode ser encontrado nos diversos


artigos reunidos neste livro, que é dedicado ao Professor e Desembargador
Sérgio Shimura, espelha bem o estágio de transição pelo qual o direito
processual civil brasileiro está passando atualmente.
O próprio título da obra (Temas atuais das tutelas individuais e
coletivas: estudos em homenagem ao Professor Sérgio Shimura) já indica a
necessidade de uma atenta leitura de todos os textos nela inseridos.
Foram reunidos trabalhos de um seleto grupo de estudiosos do
processo civil, abordando temas preponderantemente de processo de
conhecimento, divididos em 56 magníficos artigos, dispostos em ordem
alfabética pelo nome dos autores, da seguinte maneira: 1. Alberto Camiña
Moreira – A dúvida registrária e o recurso especial. 2. Alexandre David
Malfatti – Ônus da prova no âmbito da publicidade – disciplina no código
de defesa do consumidor. 3. André Gustavo Salvador Kauffman – Panorama
da prova na jurisprudência do TJSP. 4. Anselmo Prieto Alvarez e César
Cipriano de Fazio – Causas de pedir nas ações de despejo e seus aspectos
processuais. 5. Antonio Carlos Matteis de Arruda – Ação de prestação de
contas. 6. Antonio Notariano Junior – Da irregularidade de representação e
seus efeitos em face do terceiro. 7. Arlete Inês Aurelli – Legitimidade como
condição para o exercício da ação de mandado de segurança, conforme
a Lei 12.016/2009. 8. Arruda Alvim – Instrumentos constitucionais
direcionados à proteção dos direitos coletivos – ação civil pública e ação
popular. 9. Arthur Luis Mendonça Rollo – Inquérito Civil e Termo de Ajuste
de Conduta. Limites à atuação do Ministério Público. 10. Bruno Freire e
Silva – A Lei 12.016/09 e a utilização da ação anulatória diante da nova
sistemática do mandado de segurança coletivo. 11. Bruno Garcia Redondo
– Ônus da prova e distribuição dinâmica: lineamentos atuais. 12. Cassio
Scarpinella Bueno – O mandado de segurança coletivo na Lei 12.016/2009.
13. Celso Antonio Pacheco Fiorillo – Mandado de segurança coletivo
ambiental e a Lei 12.016/09. 14. Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida –

1
Resenha republicada em razão de equívoco em seu texto anterior, constante da edição nº 72 da RBDPro. Houve,
naquela oportunidade, imprecisão no que tange à descrição do título da obra e ao ano de sua publicação.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 19, n. 73, p. 243-246, jan./mar. 2011

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244 Marcelo José Magalhães Bonicio

Tutela específica antecipatória, pedidos incontroversos e efetividade do


processo coletivo ambiental. 15. Denis Donoso – Juízo de admissibilidade
da petição inicial – aspectos práticos e polêmicos do nascedouro da
relação processual. 16. Eduardo Arruda Alvim e Angélica Arruda Alvim
– Coisa julgada no mandado de segurança coletivo e a Lei 12.016/09.
17. Eduardo de Avelar Lamy – Definindo a jurisdição e o foro competentes
nos contratos de transporte marítimo. 18. Eduardo Talamini – Ações
autônomas de defesa do executado. 19. Eurico Ferraresi – Carga valorativa
da prova produzida no inquérito civil. 20. Fabiano Carvalho – Prescrição,
decadência, sentença de mérito e coisa julgada. 21. Fátima Nancy Andrighi
– Reflexões acerca da representatividade adequada nas ações coletivas
passivas. 22. Felice Balzano e Welder Queiroz dos Santos – A legitimidade
ativa e os limites subjetivos da coisa julgada na ação reivindicatória de
bem em condomínio: uma análise processual do artigo 1.314 do Código
Civil. 23. Fernando da Fonseca Gajardoni – A competência constitucional
dos Estados em matéria de procedimento (art. 24, XI, da CF): ponto de
partida para a releitura de alguns problemas do processo civil brasileiro.
24. Flávio Cheim Jorge e Marcelo Abelha Rodrigues – Apontamentos sobre a
tempestividade recursal: Fluência e ciência inequívoca; recurso interposto
antes da intimação; interrupção do prazo por força da interposição de
embargos de declaração. 25. Flávio Luiz Yarshell – Brevíssimas considerações
acerca da extensão da cláusula compromissória. 26. Fredie Didier Jr.
– Litisconsórcio necessário ativo (?). 27. Gelson Amaro de Souza – Coisa
julgada e execução individual na ação coletiva. 28. Gilberto Gomes Bruschi
– O princípio da congruência entre o pedido e a sentença e os vícios
decorrentes de sua não observância. 29. Glauco Gumerato Ramos e Denise de
Paula Andrade – Arresto (ou embargo) cautelar na perspectiva do processo
sincrético em grau máximo. 30. Gustavo Santana Nogueira – O controle
de legalidade das decisões dos Juizados Especiais Cíveis pelo Superior
Tribunal de Justiça. 31. João Batista Lopes e Maria Elizabeth de Castro Lopes
– O juiz, as regras sobre o ônus da prova e a teoria das cargas dinâmicas.
32. João Batista Amorim de Vilhena Nunes – Cumulação de demandas, tutela
antecipada, decisão parcial de mérito e sua execução. 33. José Horácio
Cintra Gonçalves Pereira – Ação de despejo por falta de pagamento. 34. José
Roberto Neves Amorim – Estabilização da coisa julgada na tutela antecipada.
35. Leonardo José Carneiro da Cunha – Anotações sobre o mandado de
segurança na Lei 12.016/2009. 36. Luis Guilherme Aidar Bondioli – Breves

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Resenha 245

notas sobre a litigância de má-fé no processo civil brasileiro. 37. Luiz


Manoel Gomes Junior e Rogério Favreto – Anotações sobre o projeto da nova
lei da ação civil pública – análise histórica e as suas principais inovações.
38. Luiz Rodrigues Wambier e Rita de Cássia Corrêa de Vasconcelos – Recursos
especiais repetitivos: a disciplina proposta no Projeto de Lei 166 de
2010 (novo CPC). 39. Márcia Conceição Alves Dinamarco – O princípio da
proporcionalidade como meio para solucionar as questões do litisconsórcio
necessário ativo. 40. Marcos Destefenni – Ativismo judicial e ações coletivas.
A suspensão de segurança e o ativismo negativo. 41. Mirna Cianci e Rita
Quartieri – A tutela antecipada exauriente – uma leitura constitucional. 42.
Mônica Bonetti Couto – Embargos declaratórios e o prazo para interposição
dos recursos excepcionais: o problema do efeito interruptivo (art. 538,
CPC) e a Súmula 418/STJ. 43. Nathaly Campitelli Roque – As diretrizes da
proteção jurídica da criança e do adolescente. 44. Nelson Finotti Silva – A
Fazenda Pública como autora nos Juizados Especiais da Fazenda Pública.
45. Olavo de Oliveira Neto e Patrícia Elias Cozzolino de Oliveira – O processo
como instituição constitucional. 46. Pedro Miranda de Oliveira – A natureza
jurídica da reclamação: Ação constitucional de conhecimento originária
dos tribunais superiores. 47. Renata Giovanoni Di Mauro – O princípio
da fungibilidade na cognição dos embargos de declaração interpostos
perante os tribunais superiores. 48. Ricardo de Barros Leonel – Ação
res­cisória e improbidade administrativa. 49. Rita Dias Nolasco – Os esforços
para alcançar a efetividade no processo de conhecimento – processo
sincrético. 50. Rizzatto Nunes – Acesso à Justiça: a assistência judiciária e
a assis­tência jurídica – uma confusão a ser solvida. 51. Rodolpho Vannucci
e Geraldo Fonseca de Barros Neto – A não obrigatoriedade da denunciação
da lide. 52. Rodrigo D’Orio D. de Oliveira – Da indispensabilidade e
inviolabilidade do advogado e sua penalização na litigância de má-fé. 53.
Rogério Licastro Torres de Mello – Apelação de sentença de improcedência
e de rejeição de embargos de terceiro: duplo efeito ou apenas efeito
devolutivo? 54. Teresa Arruda Alvim Wambier – Anotações sobre o Projeto de
Lei nº 166/2010, para um novo Código de Processo Civil. 55. Vítor José de
Mello Monteiro – O princípio constitucional do contraditório e a concessão
de liminares “inaudita altera parte”. 56. William Santos Ferreira – O ônus
da prova na fraude à execução: a boa-fé objetiva e as premissas de uma
sociedade justa e solidária.

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246 Marcelo José Magalhães Bonicio

Com o elenco de autores e temas abordados fica claro ao leitor,


mesmo àquele que não se dedica exclusivamente ao estudo do direito
processual civil, que se trata de uma leitura bastante enriquecedora.
Além disso, é fato que todos os autores são processualistas reco­
nhecidos e respeitados, o que, por si só, já indica que a obra não passará
despercebida aos olhos dos estudiosos em geral.
Não poderia ser diferente, pois a missão de prestar uma justa
homenagem a um dos mais admirados e respeitados juristas da atuali­
dade exigia, sem sombra de dúvida, uma obra como esta, coordenada
pelos ilustres processualistas Gilberto Gomes Bruschi, Alberto Camiña
Moreira e Anselmo Prieto Alvarez, que a Editora Saraiva apresenta ao
exigente público.

Marcelo José Magalhães Bonicio


Professor doutor da Universidade de São Paulo. Membro do IBDP. Procurador do Estado de
São Paulo.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

MOREIRA, Alberto Camiña; ALVAREZ, Anselmo Prieto; BRUSCHI, Gilberto Gomes


(Coord.). Panorama atual das tutelas individual e coletiva: estudos em homenagem ao
Professor Sérgio Shimura. São Paulo: Saraiva, 2011. Resenha de: BONICIO, Marcelo José
Magalhães. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 19, n. 73,
p. 243-246, jan./mar. 2011.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 19, n. 73, p. 243-246, jan./mar. 2011

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WELSCH, Gisele Mazzoni. O reexame necessário e a efetividade da tutela
jurisdicional. Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2010.

O livro O reexame necessário e a efetividade da tutela jurisdicional trata


do instituto do Reexame Necessário, previsto no art. 475 do CPC e sua
influência para a efetividade da Tutela Jurisdicional. Como é cediço,
o processo civil reclama por maior efetividade e celeridade, por isso
é necessário que se analisem institutos relacionados com tal questão.
A fim de tornar possível uma ponderação acerca da razoabilidade da
manu­tenção do dispositivo no ordenamento processual, primeiramente,
analisa-se sua origem histórica e o direito estrangeiro. Após, discorre-se
sobre a natureza jurídica do instituto, dialogando as diversas correntes
doutrinárias sobre o assunto. Em um terceiro momento, aborda-se acerca
do cabimento da remessa necessária, tratando das mudanças promo­vi­das
pela Lei nº 10.352/01. A seguir, são analisados os pontos relativos aos
efeitos e procedimento, bem como seu tratamento na atual configuração
legislativa. Tal estudo se baseia em pesquisa bibliográfica e jurispruden­cial,
procurando cotejar as duas fontes, para traçar um panorama completo e
crítico do instituto. Assim, a expectativa é a de que o leitor encontre no
livro as informações e fundamentos necessários para sua análise a respeito
do reexame necessário, bem como que a leitura da obra possibilite ao ope­
rador do direito ponderar o verdadeiro papel e relevância do instituto
no atual contexto do processo civil brasileiro.
A obra da autora vem a preencher um vazio na doutrina nacional
que se ressente de maiores estudos sobre o tema. Aqueles que decidirem
verticalizar o estudo do reexame necessário devem necessariamente
passar pelo livro da autora, sob pena de elaborarem uma pesquisa insu­
ficiente. Trata-se de trabalho sério e dedicado que qualifica a doutrina
processual brasileira.

Guilherme Botelho
Mestre em Direito pela PUCRS. Especialista em Direito processual civil pela PUCRS. Professor da
Universidade Feevale. Professor convidado em cursos de pós-graduação. Advogado.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

WELSCH, Gisele Mazzoni. O reexame necessário e a efetividade da tutela jurisdicional. Livraria


do Advogado: Porto Alegre, 2010. Resenha de: BOTELHO, Guilherme. Revista Brasileira
de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 19, n. 73, p. 247, jan./mar. 2011.

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MIRANDA NETTO, Fernando Gama de; ROCHA, Felippe Borring (Org.).
Juizados especiais cíveis: novos desafios. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

Com alguma frequência se leem elogios, na mídia e até em


doutrina, concernentes aos Juizados Especiais Cíveis. Afirma-se tratarem
de órgãos que, pautados numa legislação de regência especializada, pro­
porcionam o acesso amplo à ordem jurídica justa, abrindo possibilidades
especialmente aos mais carentes, vale dizer, órgãos responsáveis pela
prestação de uma tutela jurisdicional sempre célere e efetiva, pois orien­
tados por critérios como a oralidade, a simplicidade, a informalidade
e a economia processual. Frente a tais relatos, engendra-se uma (falsa)
percepção, ao menos na mente daqueles que não labutam o dia a dia
forense: a de que se estaria diante de uma Justiça singular, rápida, de
baixo custo, desburocratizada e eficiente, e que finalmente o homem teve
sucesso na empresa de elaborar um sistema processual ideal.
A verdade, contudo, é que tal reverência velada escamoteia uma
infeliz realidade vivida e constatada por aqueles que operam com os
Juizados Especiais Cíveis. Aquilo que no projeto apresentava-se como
algo inovador e até perfeito mostrou-se, na prática, um risco concreto aos
caros valores constitucionais conquistados a duras penas pelos cidadãos,
sobretudo aos direitos fundamentais processuais. Bem ilustra esta afir­
mação o relato do conceituadíssimo processualista Alexandre Freitas
Câmara, já no início da “Apresentação” que abre a obra ora prefaciada:

Sempre tive uma relação complicada com os Juizados Especiais Cíveis. Como
jurista, dedicado ao estudo do direito processual civil, a idéia de um sistema
processual rápido, barato, informal, oral e eficiente sempre foi motivo de
encantamento. Como advogado — que fui por quase vinte anos — sempre
tive verdadeiro horror do que via na prática. Afinal, nos Juizados Especiais da
vida real encontrei demandantes aventureiros, conciliadores sem treinamento
adequado, juízes que “interpretavam” as normas de regência do sistema sem
qualquer embasamento teórico, fazendo com que cada Juizado tivesse uma
“lei” própria.

A obra coordenada pelos talentosos professores Fernando Gama de


Miranda Netto e Felippe Borring Rocha, intitulada Juizados especiais cíveis:
novos desafios, segue rumo diametralmente diverso daqueles informes
superficiais e desconectados à praxe forense, denunciados no primeiro
parágrafo desta resenha. Com induvidoso caráter científico, a coletânea

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250 Dnieper Chagas de Assis

reúne ensaios elaborados por prestigiados estudiosos1 na intenção única


e centrada de retratar, fidedignamente, a realidade problemática dos
Juizados Especiais Cíveis (e também algumas benesses deles oriunda),
apontar os mais diversos problemas e, sobretudo, sugerir respostas que
possam aperfeiçoar o quadro cinzento que hoje ali se verifica.
Felicito os coordenadores, coautores e também a Editora Lumen
Juris por mais esta significativa contribuição às letras jurídicas.

Lúcio Delfino
Advogado. Doutor em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Membro do Instituto dos Advogados de
Minas Gerais. Diretor da Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPRo.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

MIRANDA NETTO, Fernando Gama de; ROCHA, Felippe Borring (Org.). Juizados espe-
ciais cíveis: novos desafios. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. Resenha de: DELFINO,
Lúcio. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 19, n. 73,
p. 249-250, jan./mar. 2011.

1
Escrevem na coletânea: Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, André da Silva Ordacgy, Bruno Garcia Redondo,
Delton Ricardo Soares Meirelles, Erick Linhares, Felippe Borring Rocha, Fernando Gama de Miranda Netto,
Gustavo Quintanilha Telles de Menezes, Gustavo Santana Nogueira, Humberto Dalla Bernardina de Pinho,
João Bosco Won Held Gonçalves de Freitas Filho, José Guilherme Vasi Werner, Marcelo Pereira de Mello,
Marcia Cristina Xavier de Souza, Márcia Michele Garcia Duarte, Mario Cunha Olinto Filho, Roberta Barcellos
Danemberg.

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Índice

Doutrina e Resenha página página

Autor DELFINO, Lúcio


- Resenha: MIRANDA NETTO, Fernando Gama
ALMEIDA, Marcelo Pereira de de; ROCHA, Felippe Borring (Org.). Juizados
- Artigo: Algumas notas sobre o controle juris- especiais cíveis: novos desafios. Rio de Janeiro:
dicional da arbitragem............................... 97 Lumen Juris, 2010................................... 249
ARRUDA, Luiz Carlos de DONATO, Jânio Oliveira
- Notas e comentários: A propósito de uma
- Artigo: Proposições teóricas aos institutos
homenagem a Ronaldo Cunha Campos.... 233
da emendatio libelli e da mutatio libelli –
supe­ração do processo como instrumento de
ATHENIENSE, Aristoteles
- Notas e comentários: O nosso primeiro Tribu- jurisdição................................................... 81
nal de Justiça........................................... 239
FREITAS FILHO, João Bosco Won Held
Gonçalves de
BELMIRO, Celso Jorge Fernandes
­ Artigo: O sistema recursal e os meios autôno- - Artigo: Algumas notas sobre o controle juris-
mos de impugnação no âmbito dos juizados dicional da arbitragem............................... 97
especiais cíveis – novos contornos jurispru-
GORON, Lívio Goellner
denciais..................................................... 41
- Artigo: Colaboração na concretização da
BONICIO, Marcelo José Magalhães decisão da causa..................................... 119
- Resenha: MOREIRA, Alberto Camiña; ALVAREZ,
Anselmo Prieto; BRUSCHI, Gilberto Gomes MARQUES, Leonardo Augusto Marinho
(Coord.). Panorama atual das tutelas indivi­ - Artigo: Proposições teóricas aos institutos
dual e coletiva: estudos em homenagem ao da emendatio libelli e da mutatio libelli –
Professor Sérgio Shimura. São Paulo: Saraiva, supe­ração do processo como instrumento de
2011....................................................... 243 jurisdição................................................... 81

BOTELHO, Guilherme NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa


- Resenha: WELSCH, Gisele Mazzoni. O reexa- - Artigo: Uma aproximação dos fatos jurídicos
me necessário e a efetividade da tutela juris- processuais extraprocedimentais.............. 151
dicional. Livraria do Advogado: Porto Alegre,
2010....................................................... 247 PEREIRA, Rafael Caselli
- Artigo: A tutela coletiva passiva do Código Mo-
CAMPOS, Roberta Toledo delo de Processos Coletivos para Ibero-América
- Artigo: A eutanásia na processualidade demo- e sua aplicação no direito brasileiro........... 169
crática brasileira....................................... 197
SILVA, Carlos Manuel Ferreira da
D’AMICO, A. João - Artigo: O Regime Processual Civil Experi­
- Notas e comentários: Discurso de abertura do mental do Decreto-Lei nº. 108/2006, de 8 de
Congresso de Direito Processual de Uberaba – Junho........................................................ 23
4ª edição................................................. 229
SILVA, Roberta Beatriz Bernardes da
DEL DUQUE, Luciano - Artigo: A eutanásia na processualidade demo-
- Notas e comentários: Introito à Comenda Pro- crática brasileira....................................... 197
fessor Edson Prata, ofertada na 4ª edição do
Congresso de Direito Processual de Uberaba SOUSA, Alice Ribeiro de
pelo IAMG, 1ª Seção Uberaba, a expoentes - Artigo: Impedimento e suspeição no processo
do cenário jurídico................................... 232 administrativo............................................ 11

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252 Índice

página página

Título PROPOSIÇÕES teóricas aos institutos da emen-


datio libelli e da mutatio libelli – superação do
ALGUMAS notas sobre o controle jurisdicional processo como instrumento de jurisdição
da arbitragem - Artigo de: Jânio Oliveira Donato; Leonardo
- Artigo de: João Bosco Won Held Gonçalves de Augusto Marinho Marques........................ 81
Freitas Filho; Marcelo Pereira de Almeida.... 97
PROPÓSITO de uma homenagem a Ronaldo
APROXIMAÇÃO dos fatos jurídicos processuais Cunha Campos, A
extraprocedimentais, Uma - Notas e comentários de: Luiz Carlos de
- Artigo de: Pedro Henrique Pedrosa Arruda .................................................... 233
Nogueira................................................. 151
REGIME Processual Civil Experimental do Decre-
COLABORAÇÃO na concretização da decisão to-Lei nº. 108/2006, de 8 de Junho, O
da causa - Artigo de: Carlos Manuel Ferreira da Silva.... 23
- Artigo de: Lívio Goellner Goron................ 119
SISTEMA recursal e os meios autônomos de
DISCURSO de abertura do Congresso de Direito impugnação no âmbito dos juizados especiais
Processual de Uberaba – 4ª edição cíveis – novos contornos jurisprudenciais, O
- Notas e comentários de: A. João - Artigo de: Celso Jorge Fernandes Belmiro... 41
D’Amico.................................................. 229
TUTELA coletiva passiva do Código Modelo de
EUTANÁSIA na processualidade democrática Processos Coletivos para Ibero-América e sua
brasileira, A aplicação no direito brasileiro, A
- Artigo de: Roberta Beatriz Bernardes da Silva; - Artigo de: Rafael Caselli Pereira................ 169
Roberta Toledo Campos........................... 197
WELSCH, Gisele Mazzoni. O reexame neces­
IMPEDIMENTO e suspeição no processo admi- sário e a efetividade da tutela jurisdicional.
nistrativo
Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2010
- Artigo de: Alice Ribeiro de Sousa................ 11
- Resenha de: Guilherme Botelho............... 247
INTROITO à Comenda Professor Edson Prata,
Assunto
ofertada na 4ª edição do Congresso de Direito
Processual de Uberaba pelo IAMG, 1ª Seção
A
Uberaba, a expoentes do cenário jurídico
AÇÃO DE DIREITO MATERIAL
- Notas e comentários de: Luciano Del
- Ver: Colaboração na concretização da decisão
Duque..................................................... 232
da causa. Artigo de: Lívio Goellner Goron... 119
MIRANDA NETTO, Fernando Gama de; RO-
CHA, Felippe Borring (Org.). Juizados especiais ARBITRAGEM
cíveis: novos desafios. Rio de Janeiro: Lumen - Ver: Algumas notas sobre o controle jurisdi-
Juris, 2010 cional da arbitragem. Artigo de: João Bosco
- Resenha de: Lúcio Delfino........................ 249 Won Held Gonçalves de Freitas Filho; Marcelo
Pereira de Almeida..................................... 97
MOREIRA, Alberto Camiña; ALVAREZ, Anselmo
Prieto; BRUSCHI, Gilberto Gomes (Coord.). Pano­­ ATOS PROCESSUAIS
rama atual das tutelas individual e cole­ tiva: - Ver: Uma aproximação dos fatos jurídicos
estudos em homenagem ao Professor Sérgio processuais extraprocedimentais. Artigo de:
Shimura. São Paulo: Saraiva, 2011 Pedro Henrique Pedrosa Nogueira............ 151
- Resenha de: Marcelo José Magalhães
Bonicio.................................................... 243 C
CELERIDADE DO PROCEDIMENTO
NOSSO primeiro Tribunal de Justiça, O - Ver: O regime Processual Civil Experimental
- Notas e comentários de: Aristoteles do Decreto-Lei nº. 108/2006, de 8 de junho.
Atheniense ............................................. 239 Artigo de: Carlos Manuel Ferreira da Silva.. 23

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Índice 253

página página

CLASSIFICAÇÃO ESTADO DE DIREITO DEMOCRÁTICO


- Ver: Uma aproximação dos fatos jurídicos - Ver: A eutanásia na processualidade de­
processuais extraprocedimentais. Artigo de: mocrática brasileira. Artigo de: Roberta
Pedro Henrique Pedrosa Nogueira............ 151 Beatriz Bernardes da Silva; Roberta Toledo
Campos.................................................... 197
CÓDIGO BRASILEIRO DE PROCESSOS COLETIVOS
- Ver: A tutela coletiva passiva do Código EUTANÁSIA
Modelo de Processos Coletivos para Ibero- - Ver: A eutanásia na processualidade de­
-América e sua aplicação no direito brasi­leiro. mocrática brasileira. Artigo de: Roberta
Artigo de: Rafael Caselli Pereira................ 169 Beatriz Bernardes da Silva; Roberta Toledo
Campos.................................................... 197
CÓDIGO MODELO DE PROCESSOS COLETIVOS
IBERO-AMÉRICA F
- Ver: A tutela coletiva passiva do Código FATO PROCESSUAL
Modelo de Processos Coletivos para Ibero- - Ver: Uma aproximação dos fatos jurídicos
-América e sua aplicação no direito brasileiro. processuais extraprocedimentais. Artigo de:
Artigo de: Rafael Caselli Pereira................ 169 Pedro Henrique Pedrosa Nogueira............ 151

COLABORAÇÃO NO PROCESSO I
- Ver: Colaboração na concretização da IMPEDIMENTO
deci­­­são da causa. Artigo de: Lívio Goellner - Ver: Impedimento e suspeição no processo
Goron..................................................... 119 administrativo. Artigo de: Alice Ribeiro de
Sousa........................................................ 11
CONCRETIZAÇÃO DA DECISÃO
- Ver: Colaboração na concretização da decisão IMPUGNAÇÃO
da causa. Artigo de: Lívio Goellner Goron... 119 - Ver: O sistema recursal e os meios autô­
nomos de impugnação no âmbito dos
CONTROLE juizados especiais cíveis – novos contornos
- Ver: Algumas notas sobre o controle jurisdi- jurisprudenciais. Artigo de: Celso Jorge
cional da arbitragem. Artigo de: João Bosco Fernandes Belmiro..................................... 41
Won Held Gonçalves de Freitas Filho; Marcelo
Pereira de Almeida..................................... 97 INSTRUMENTALIDADE
- Ver: Proposições teóricas aos institutos da
D emendatio libelli e da mutatio libelli – supera-
DEFENDANT CLASS ACTION ção do processo como instrumento de jurisdi-
- Ver: A tutela coletiva passiva do Código ção. Artigo de: Jânio Oliveira Donato; Leonar-
Modelo de Processos Coletivos para Ibero- do Augusto Marinho Marques................... 81
-América e sua aplicação no direito brasileiro.
Artigo de: Rafael Caselli Pereira................ 169 J
JUIZADOS ESPECIAIS
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - Ver: O sistema recursal e os meios autô­
- Ver: A eutanásia na processualidade de­ nomos de impugnação no âmbito dos
mocrática brasileira. Artigo de: Roberta juizados especiais cíveis – novos contornos
Beatriz Bernardes da Silva; Roberta Toledo jurisprudenciais. Artigo de: Celso Jorge
Campos................................................... 197 Fernandes Belmiro..................................... 41

E M
EMENDATIO LIBELLI MANDADO DE SEGURANÇA
- Ver: Proposições teóricas aos institutos da - Ver: O sistema recursal e os meios autô­
emendatio libelli e da mutatio libelli – supe­ nomos de impugnação no âmbito dos jui­
ração do processo como instrumento de zados especiais cíveis – novos contornos
juris­dição. Artigo de: Jânio Oliveira Donato; jurisprudenciais. Artigo de: Celso Jorge
Leonardo Augusto Marinho Marques......... 81 Fernandes Belmiro..................................... 41

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254 Índice

página página

MUTATIO LIBELLI RECURSOS


- Ver: Proposições teóricas aos institutos da - Ver: O sistema recursal e os meios autônomos
emendatio libelli e da mutatio libelli – supe­ de impugnação no âmbito dos juizados espe-
ração do processo como instrumento de ciais cíveis – novos contornos jurisprudenciais.
jurisdição. Artigo de: Jânio Oliveira Donato; Artigo de: Celso Jorge Fernandes Belmiro... 41
Leonardo Augusto Marinho Marques......... 81
REGIME PROCESSUAL CIVIL EXPERIMENTAL
O PORTUGUÊS
ORALIDADE - Ver: O regime Processual Civil Experimental
- Ver: O regime Processual Civil Experimental do Decreto-Lei nº. 108/2006, de 8 de Junho.
do Decreto-Lei nº. 108/2006, de 8 de junho. Artigo de: Carlos Manuel Ferreira da Silva.. 23
Artigo de: Carlos Manuel Ferreira da Silva.. 23
P S
PESSOALIZAÇÃO DOS DIREITOS SUSPEIÇÃO
- Ver: Colaboração na concretização da decisão - Ver: Impedimento e suspeição no processo
da causa. Artigo de: Lívio Goellner Goron...119 administrativo. Artigo de: Alice Ribeiro de
Sousa........................................................ 11
PODER JUDICIÁRIO
- Ver: Algumas notas sobre o controle jurisdi- T
cional da arbitragem. Artigo de: João Bosco TÉCNICAS PROCEDIMENTAIS
Won Held Gonçalves de Freitas Filho; Marcelo - Ver: O regime Processual Civil Experimental
Pereira de Almeida..................................... 97 do Decreto-Lei nº. 108/2006, de 8 de junho.
Artigo de: Carlos Manuel Ferreira da Silva.. 23
POSIÇÃO ATIVA DO JUIZ NA DIREÇÃO DO
PROCESSO TUTELA COLETIVA PASSIVA
- Ver: O regime Processual Civil Experimental - Ver: A tutela coletiva passiva do Código
do Decreto-Lei nº. 108/2006, de 8 de junho. Modelo de Processos Coletivos para Ibero-
Artigo de: Carlos Manuel Ferreira da Silva.. 23 -América e sua aplicação no direito brasileiro.
Artigo de: Rafael Caselli Pereira................ 169
PROCESSO ADMINISTRATIVO
- Ver: Impedimento e suspeição no processo TUTELA MATERIAL
administrativo. Artigo de: Alice Ribeiro de - Ver: Colaboração na concretização da decisão
Sousa........................................................ 11 da causa. Artigo de: Lívio Goellner Goron... 119

PROCESSO COOPERATIVO TUTELA PROCESSUAL


- Ver: Colaboração na concretização da decisão - Ver: Colaboração na concretização da decisão
da causa. Artigo de: Lívio Goellner Goron...119 da causa. Artigo de: Lívio Goellner Goron... 119

R
RECLAMAÇÃO
- Ver: O sistema recursal e os meios autônomos
de impugnação no âmbito dos juizados espe-
ciais cíveis – novos contornos jurisprudenciais.
Artigo de: Celso Jorge Fernandes Belmiro... 41

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Instruções de publicação para os autores 255

Instruções de publicação para os autores

Os trabalhos para publicação na Revista Brasileira de Direito


Processual – RBDPro, ISSN 0100-2589, editada pela Editora Fórum e com
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devem ser justificados. O tamanho do papel deve ser A4 e as margens
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Key words), sumário do artigo, epígrafe (se houver), texto do artigo,
referências. O Autor deverá fazer constar, no final do artigo, a data e o
local em que foi escrito o trabalho de sua autoria.

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256 Instruções de publicação para os autores

Recomenda-se que todo destaque que se queira dar ao texto seja


feito com o uso de itálico e não por meio do negrito e do sublinhado.
As citações (palavras, expressões, períodos) deverão ser cuidadosamente
conferidas pelos autores e/ou tradutores; as citações textuais longas (mais
de três linhas) devem constituir um parágrafo independente, com recuo
esquerdo de 2cm (alinhamento justificado), utilizando-se espaçamento
entre linhas simples e tamanho da fonte 10; as citações textuais
curtas (de até três linhas) devem ser inseridas no texto, entre aspas e
sem itálico. As expressões em língua estrangeira deverão ser padronizadas
e destacadas em itálico. O uso do op. cit., ibidem e do idem nas notas
bibliográficas deve ser evitado, substituindo-o pelo nome da obra por
extenso.
Os trabalhos serão selecionados pelos Diretores e pelo Conselho
Editorial da Revista, que entrarão em contato com os respectivos autores
para confir­mar o recebimento dos textos. Os originais recebidos e não
publicados não serão devolvidos. Não serão devidos direitos autorais
ou qualquer outra remune­ração pela publicação dos trabalhos. O autor
receberá gratuitamente dois exemplares da revista sempre que o seu texto
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Esta obra foi composta em fontes New


Baskerville e Humnst 777, corpo 9/12 e
impressa em papel Offset 75g (miolo) e
Supremo 250g (capa) pela Gráfica e Editora
O LUTADOR. Belo Horizonte/MG, março
de 2011.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 19, n. 73, p. 255-256, jan./mar. 2011

RBDPro_73.indd 256 18/3/2011 15:33:34

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