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Ademir Takara Felipe Jim Mizuno Marcelo Faria


Adinan Jarouche Felipe Lobo Batista Marcelo Frullani Lopes
Adriano Sarti Fernando Rondinelli Marcelo Torres
Alejandro Sainz de Vicuña Filipe Keuper Pereira Marcelo Wilinski
Alexandre Andolpho Silva Flávio Ávila Marcio de Jesus Carvalho
Alexandre Bianchini Elian Miguel Flavio Rocha Brito Marques Márcio José Pereira Martins
Alexandre Gusmão Francisco Vasconcelos Nascimento Marcio Pereira Lima
Alexandre Tadeu Sudário Pires Gabriel de Paula Richa Marcos Esteves
Americo Sa Gabriel Garcia Martinão Margareth Ishii
Ana Claudia P. Teixeira de Melo Gabriel Perecini Marina de Mattos Dantas
André Alves Gabriel Porto Dutra Mário César Burigo Filho
Andre Luis Pereira Duarte Gabriel Roberti Gobeth Mateus Dani
Andre Tebit Gilson Gustavo Paiva Oliveira Mateus Pecly
Andre Vidiz Gilvannewton Souza Matias Pinto
Andres Lasa Giovanni Ghilardi Maurício Deodato Gil
Antonio Coelho de S do Nascimento Giovanni Magliano Filho Maurício Fraga Wagner
Arley Fernandes Teixeira Glauber Mussi Rodrigues Mauricio Gaia
Armando Pantoja Marcos Giassetti Glaucio Reynaud Mauricio Simões
Arthur Moura Gregório Unbehaun Leal da Silva Maurício Targino
Artur Andrade Guilherme Almeida Monique Torquetti
Ary Jose Rocco Jr Guilherme Larsson Murilo Megale
Ayrton Pereira da Silva Jr Guilherme Nagamine Gomes Neuber Boaventura Souto
Bernardo A Santos de Mello Gustavo Figueiredo Nicholas Aguirre
Bernardo Peregrino Gustavo Lazzaretti Olavo Silva Bueno Franco
Bianca Hennemann Gustavo Valladares Paulo Aramis Bonin
Bruno Canova Hélio Correia Paulo Cesar Homem de Melo
Bruno Daher Bacil Homero L.S. Queiroga Paulo Torres
Bruno Gonzalez de Souza Ivan Rabanillo Pedro Borg
Bruno Grüninger Janiel de Matos Sá Pedro Henrique Vieira Silva
Bruno Lirio de Souza Jean de Quinelato Pedro Petrucci
Bruno Morais Furlaneto Jean Vieira Pedro Zandonadi
Bruno Torquato João Fábio Porto Pierluiggi Agrelli
Caio Gama João Francisco Hein Priscila Cestari
Caio Pires Ribeiro Joao Henrique de S L P de Mello Rafael Iandoli
Carlos Abreu João Luiz Silva Rafael Morettini
Carlos Alberto de Quintino Joao Paulo Chalub Macedo Rafael Villar
Carlos Antonio Melo Junior João Paulo Gomes Wanderley Raul Cavalcanti
Carlos Augusto Rosa Gomes João Ricardo Lima Reinaldo Pereira Macedo
Carlos Henrique Bicalho Joao Victor Renan Medeiros
Carlos Lunna João Victor Junqueira Aranha Ricardo Pompermaier
Ciro Câmara João Victor Rezende Roberta Rocha
Cláudio Rabha João Vitor Marcondes Rodolfo Amstalden
Cyntia Silva Jones Mário de Ávila Minervini Jr Rodolpho Tavares
Daniel André Santos José Augusto de Aguiar Costa Rodrigo Capelo
Daniel Borsato José Augusto Toscano Boaventura Rodrigo de Castro Resende
Daniel Claudino Lins José de Sá Menezes Sobrinho Rodrigo de Oliveira Moreira
Daniel Consani José Gabriel Christensen V Pontes Rodrigo Lourenti
Daniel Liberto José Henrique Lopes de Oliveira Rodrigo Teixeira Neves
Daniel Tomiate José Luís Schmitz Rogério Luiz Ferreira Júnior
Danilo Augusto Leite da Silva Juan Wippel Sérgio Settani Giglio
Denis Ribeiro Laura Tetti Suellen Campana
Diogo Gustavo Sordi Leandro Godinho Rocha Thadeu Bretas
Eduardo Baratto Leonardi Leo Lepri The Library of Congress Office
Eduardo Biagini Leonardo da Rocha Botega Thiago Carlos Costa
Eduardo Borges Gradim Leonardo Pachelle Thiago Grizilli
Eduardo Drumond Leonardo Silva Pereira Thiago Lozano
Eduardo Palazzo Lucas Partezane Tiago Gonçalves
Eduardo Pequeno Luciano Amaral Victor Hugo da Paz Silva
Eduardo Tironi Luciano Fernández Vilimar David Junior
Elias Brito Alves Junior Luciano Melo Vinicius do Prado
Elton Bortoloso Luis H P P Rodrigues Vitor Braescher Barbosa
Emerson Arantes Luiz Alberto Luz F Gomes Vitor Ramos Navarro
Erick Xavier Marques Luiz Daher Nogueira Audi Werik de Lima ALves
Estevam Souza Luiz Felipe de Miranda Freitas Willian Gomes
Fabio de Faria Lima Luiz Tadeu Lins Zé Luiz Balduíno
Fábio Ivo Antunes Marcelo de Jesus Araujo

3
#8
Direção Projeto gráfico
Fernando Martinho Éric Chinaglia
fernando@leiacorner.com.br

Capa
Editor Fotografia: Fernando Martinho
Matheus Steinmetz Tratamento: Éric Chinaglia
matheus@leiacorner.com.br

Revisão
Colaboradores Kiara Domit
Denise Matsumoto
Felipe Fernández
Felipe Rolim Agradeciementos
Felipe de Souza
Giovanni Ghilardi especiais
Igor Bertolino Diego Lugano,
Miguel Lourenço Pereira Claudio Carsughi,
Nelson Oliveira Claudia Carsughi,
Pedro Tattoo Guilherme Palenzuela,
Tauan Ambrosio Juca Pacheco,
Valter Vinicius Costa e AS Velasca.

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4
Editorial
N
a primeira metade do século XIX, a pendência da FIFA. Mais tarde ela se tornaria o
América do Sul foi inundada pela onda organismo esportivo mais poderoso do planeta e,
emancipacionista em relação às metró- por vezes, mais influente que as nações as quais
poles ibéricas, o que definiu a geografia representa.
política do continente como se conhece
hoje. Em 1810, o Chile seria o primeiro a bradar in- Assim como fez Benito Musolini em 1934, também
dependência, e o Uruguai fecharia o ciclo em 1828. buscando, na recém criada Copa do Mundo, mais
prestígio para sua Itália fascista. O ditador entendeu
O fim da Guerra Cisplatina libertou o paisito do do- o poder do esporte sobre as massas e a importância
mínio brasileiro com a ajuda da mesma Argentina de uma liga forte e, principalmente, unida, como
com quem brigara muito tempo para não ser ane- nunca antes o país havia sido. Com uma mãozinha
xado. Pudera, as semelhanças entre bonaerenses do Estado, a Serie A reuniu as maiores estrelas do
e montevideanos eram muitas. Como bem disse jogo para conquistar o posto de principal cam-
Diego Lugano, sempre foram “a mesma merda peonato do planeta em diversas oportunidades.
com diferente fedor”. Agora, ela torce para que a chegada de CR7 repita
o que aconteceu quando Ronaldo, Adriano, Zidane,
De pouco em pouco, a ex-Banda Oriental se dis- Platini, Maradona, Zico, Falcão, Sócrates e outros
tanciava da imagem de província do Vice-Reinado do mesmo quilate por ali estiveram.
do Prata com o auxílio de personagens icônicos
essenciais na afirmação da autonomia uruguaia: Craques que Claudio Carsughi acompanhou à dis-
José Artigas, Fructuoso Rivera, Juan Lavalleja, Ma- tância desde que se mudou para o Brasil logo de-
nuel Oribe, mas também José Leandro Andrade [A pois do fim da Segunda Guerra Mundial, quando
Maravilha Negra], Héctor Scarone, Enrique Bal- virou um “jornalista brasileiro”, ainda que ci-
lesteros, Juan Alberto Schiaffino, Obdulio Varela, dadão italiano. Carsughi testemunhou, já como
Alcides Ghiggia. jornalista, sendo correspondente do Corriere dello
Sport, a Copa de 1950 e também a Copa Rio de 1951.
Educação universal, jornada de trabalho de oito
horas, voto feminino, Estado laico. O Uruguai das O sangue italiano corre nas veias de Diego Lugano,
primeiras décadas do século XX já mostrava sua que estampa esta capa e aponta os culpados pelos
veia progressista — diferentemente dos vizinhos tempos sombrios vividos pelo futebol uruguaio.
de continente —, com medidas que precederam a
legalização do aborto, da maconha e a Lei Trans. A Corner #8 te convida a mais uma viagem a bordo
Fadada a ser a primeira em quase tudo, a outrora do futebol, do jeito que sempre fez. Só que agora
“Suíça da América” foi também a responsável pelo com um novo condutor. A revista, como jornalismo
progresso do futebol e da sua maior entidade. independente, busca novos roteiros a oferecer, mas
a empreitada só se sustenta quando o caminho
No Centenário da primeira Constituição, o Uru- proposto é percorrido pelo leitor.
guai deu de presente a Jules Rimet a primeira Copa
do Mundo e, por conseguinte, promulgou a inde- Embarca nessa?

5
Sumário
Aquele Nacional de 1988
8 O último título mundial de um clube charrúa, por Felipe Rolim

Fútbol nomá!
10 A idiossincrasia futebolística da sociedade uruguaia,
por Felipe Fernández

Do outro lado da baía


12 Como a indústria da carne forjou o “terceiro grande” do Uruguai,
por Matheus Steinmetz

A casa de Obdulio
16 Uma visita a um lado esquecido do futebol uruguaio,
por Felipe de Souza

Entrevista: Diego Lugano


24 Um mate e uma volta ao mundo,
por Fernando Martinho e Matheus Steinmetz

Dívida de gratidão
52 A influência celeste na emancipação da FIFA,
por Matheus Steinmetz

É tetra!
54 Os donos do mundo antes da Copa,
por Tauan Ambrosio

La Copa del “no”


56 Mundialito: um tiro que saiu pela culatra,
por Matheus Steinmetz

6
#8
Entrevista: Claudio Carsughi
Memórias de um
“giornalista brasiliano”
58
O mundo é das pessoas
O futebol é de todos. A Copa Rio é do Palmeiras,
por Fernando Martinho
74
O scudetto que o Torino não venceu
Um time que perdeu apenas um campeonato italiano,
por Fernando Martinho
78
Carta di Viareggio
A origem fascista da Serie A,
por Miguel Lourenço Pereira
80
Todos os caminhos levam à Roma
Quando os melhores do mundo jogavam na Itália,
por Miguel Lourenço Pereira
82
Ascensão, queda e renascimento de um império
Como a Serie A se tornou, deixou de ser e pode voltar a ser um grande
centro do futebol mundial, por Fernando Martinho
86
Calcio & Arte
A icônica torre de Milão que dá nome a um clube conceito: AS Velasca,
por Giovanni Ghilardi
102
Cartellino rosso
Os tentáculos da máfia e do crime organizado no futebol italiano,
por Nelson Oliveira
110

7
oferece:

Aquele
Nacional
de 1988
Por Felipe Rolim

8
O último Old Boys, quando o Nacional foi campeão ao vencer
por 3 a 0 — gols de Vargas, Ostolaza e Hugo de León
— para o delírio de oitenta mil pessoas. Mesmo sem

título mundial ter ideia de que o hiato de títulos perduraria por dé-
cadas, Los Albos celebraram aquele mês de outubro
de 1988 como heróis. Ao norte de Montevidéu, outra

de um clube celebração acontecia com ares de Copa do Mundo. A


promulgação da Constituição da República Federativa
Brasileira, chamada de Constituição Cidadã, em clara

charrúa alusão simbólica ao processo de redemocratização


do Brasil. Outubro revelava heróis em Brasília e um
herói de capa(cete) em Suzuka, com Ayrton Senna
sobrepujando Prost na McLaren e abocanhando seu
primeiro título mundial na Fórmula 1.

N
ão era um ano para passar em branco, mas Vencido o Newell´s de Sensini, Tata Martino e um
para feitos ou proezas [La Gesta]. O Decano jovem Batistuta, Hugo de León — que antes pensara
havia se classificado para a maior competição em aposentadoria — ergue a Taça da Libertadores e
sul-americana de clubes com a última vaga uruguaia. levanta vôo com seus companheiros, tendo o Japão
Foi vice para o Montevideo Wanderers na Mini Liga como destino. Representavam a América do Sul e o
Pré-Libertadores, enquanto o Peñarol entraria avan- desejo mais íntimo do seu torcedor de empatar em
çado na competição por ter sido o campeão do ano an- títulos mundiais com seu rival aurinegro. Pressão
terior. Para amenizar a dor dos Bolsos, torcedores do externa e pressão exercida pela escola holandesa de
Nacional, seus arquirrivais carboneros — do técnico Guus Hiddink e seu PSV, que tinha o belga Eric Gerets
Óscar Tabárez e do atacante Diego Aguirre no título e o holandês Ronald Koeman no setor de defesa, além
de 1987 — após derrotarem o América de Cali na de- de um certo baixinho comandando o ataque com
cisão, sucumbiram ao Porto na Copa Intercontinental arranques, dribles em direção à área adversária, gols
de Clubes e não abriram 4 a 2 em títulos mundiais. de almanaque e, de vez em quando, chutes certeiros
Dava para buscar o 3 a 3 em 1988. com o bico da chuteira.
Pausa para o contexto histórico: diferente da década La Gesta viria com sofrimento, depois de um empate
de 1990 até 2018, em que só houve uma final envol- em 1 a 1 no tempo normal [Ostolaza, de cabeça, para
vendo um clube uruguaio, a de 2011, em que o Peñarol o Nacional e Romário para o PSV] repetido na pror-
perdeu para o Santos, os anos 1980 eram de gala para rogação. Aberto o tempo complementar, Koeman, de
o futebol charrúa na América do Sul. A Seleção Celeste pênalti, estava colocando a Copa Continental rumo à
chegou às três finais da Copa América [1983, 1987 e Eindhoven, no que foi barrado pelo herói da partida,
1989], com dois títulos e um vice em seqüência. Na Santiago Ostolaza [novamente de cabeça], que aos
Libertadores, entre 1980 e 1989, Nacional e Peñarol 119 minutos de batalha, devolveu a fé aos uruguaios.
se revezaram em cinco finais, mostrando força em Fé testada duas vezes, no chumbo trocado de vinte
campo e aumentando o que hoje chamamos de tra- pênaltis em seqüência. Todos os vinte jogadores de
dição, camisa, peso e demais adjetivos para times linha bateram, treze converteram. O dinamarquês
que não estão no mais alto nível, mas que têm uma Soren Lerby foi o quinto a bater pelo PSV. Era fazer
história a ser respeitada. e ganhar por 4 a 2. Holandes, Dinamarqueses e a
O técnico escolhido foi Roberto Fleitas, que vinha torcida do Peñarol bateram juntos com Lerby, mas
do título da Copa América. No entanto, o ano de 1988 acertaram o travessão de Seré. Hugo De León, barba
começa sem Juan Ramon Carrasco, talento formado na irretocável e camisa branca de mangas compridas
base tricolor. Com um time sem estrelas, o Nacional para dentro do calção, foi o último a bater e manteve
contou com a chegada do zagueiro “Zorro” Revelez e Los Albos vivos para as batidas alternadas. Chega a
do atacante Juan Carlos De Lima, este vindo do Botafo- vez de Eric Gerets, o já veterano lateral-direito da
go, artilheiro da Libertadores em 1986 pelo Deportivo seleção Belga, que vê sua penalidade ser espalmada
Quito. Durante a trajetória, chega o experiente Hugo por “Jorgito” Seré. “Chango” Saldanha se candidata
De León, campeão da Libertadores pelo Nacional em a vilão, perdendo a oitava cobrança e mantendo o
1980 e pelo Grêmio em 1983. empate em cinco a cinco. O herói Ostolaza converte,
Adick Koot, também. Faltava um jogador de linha para
A trajetória continental de 1988 começa e não dá cada time, era a disputa de pênaltis que melhor dividia
respiro nem na primeira fase. O Grupo 3 é pesado, a responsabilidade em uma final; todos bateriam. Van
formado por uruguaios e colombianos. Montevi- Aerle vai para o décimo pênalti holandês e vê Seré
deo Wanderers, o então tri-vice América de Cali e o rebolando para seu canto direito, apontando para o
Millonarios. Perfeito no Estádio Centenário da pri- canto direito e avisando que lá pularia. Van Aerle bateu
meira fase até o último jogo, o Nacional passou em lá, Seré pegou mais um. Coube a Tony Gomez fazer
segundo no Grupo 3 com oito pontos conquistados explodir a torcida uruguaia. Van Breukelen avisou que
[as vitórias davam dois pontos em vez de três]. Ga- iria para seu canto esquerdo, Tony Gomez bateu onde
nhou em casa do América por 2 a 0, do Millonarios o arqueiro pediu, mas com força e altura necessárias
por 2 a 1 e do Wanderers por 1 a 0. Fora de casa, não para entrar para a história.
fez e nem tomou gols nos empates contra América
e Wanderers. Porém, contra o Millonarios, ocorreu “Nacional del mundo, carajo!”, se esgoelou o narrador
“La catástrofe de Bogotá”, assim cunhada no site do da transmissão uruguaia. O Nacional buscou seu ter-
Nacional a humilhante derrota por 6 a 1. ceiro título mundial e sua torcida voltou a encarar os
Carboneros de igual para igual. O último título mun-
Em 26 de outubro, na volta da final contra o Newell´s dial uruguaio foi um parto e se tornou balzaquiano.

9
Fútbol
nomá!
Por Felipe Fernández

Tradução e adaptação:
Matheus Steinmetz

10
A idiossincrasia Aquele velho River era um time de trabalhadores do
porto de Montevidéu, e contam que era capaz de fazer
frente às equipes de jogadores ingleses.

futebolística Foi, também no início do século, na primeira Copa


América que o Uruguai apresenta em sua seleção um
jogador negro. Isabelino Grandin, montevideano, de

da sociedade Palermo, bairro do Candombe e do esporte. Isabe-


lino foi o goleador da primeira Copa América, mas
eram tempos em que a xenofobia dava as caras, cada
país queria ser branco e puro, sem reconhecer seus

uruguaia passados indígenas e africanos. O Chile denunciou o


Uruguai por usar um “africano”, Isabelino respondeu
com gols. Eram os mesmos anos quando um tal Arthur
Friedenreich tratava de esconder suas manchas e
branquear sua pele para poder jogar futebol no Brasil.

O centenário da sua constituição encontrou um Uru-


guai organizando o primeiro mundial de futebol. O
sucesso foi tão grande que o feito eclipsou a come-
moração, ninguém lembra 1930 como os cem anos de

O
algo, mas sim como a primeira Copa do Mundo da FIFA.
Uruguai não se entende sem futebol. Qualquer
um que tente contar a história desse canto ao
Daí pra frente a história é mais conhecida: campeões
sul do sul, mais cedo que tarde, deverá falar
novamente em 1950, de visitante e diante de um Mara-
de futebol. Há uma nuance, não é que o futebol sirva
canã repleto. Essa final, a última que o Uruguai jogou
para explicar a história do Uruguai — isso acontece
em um mundial, é e segue sendo a principal fonte de
com muitos países no mundo —, mas aqui se inverte
relato identitário. “Nós crescemos frente às adver-
a ordem dos fatores.
sidades”, “los de afuera son de palo” [“torcida não
ganha jogo”], “a garra Charrúa”. Ela se transformou
O futebol deu ao Uruguai uma construção de iden- tanto que parece que aqueles jogadores ganharam
tidade onde não havia nenhuma. O país declara sua não por serem os melhores, mas sim por lutar mais, e
independência em 1825, mas é em 1828, quando se re- nada mais que isso. Mantivemo-nos jogando de uma
aliza a convenção preliminar de paz no Rio de Janeiro, maneira ultrapassada, até que, em 1974, a Holanda
que o Império do Brasil reconhece a independência do da Laranja Mecânica bateu a seleção uruguaia de tal
Uruguai em relação à Argentina, com tudo mediado maneira que os dois times pareciam jogar esportes
pelos ingleses. Embora haja quem diga que o país diferentes entre si. Alfredo Arias, treinador, pensa
começa com o juramento da sua primeira constitui- que desse jogo foram tiradas conclusões equivocadas
ção em 1830. Independentemente do ano escolhido, de que a solução passava por correr e se doar mais.
o certo é que cinqüenta anos depois já se começava A seleção iniciou uma época de pouco brilho, ape-
a jogar o futebol. sar de vez ou outra ganhar algo, porque o futebol no
Uruguai é a maior indústria sem chaminés. Sempre
Em 1891 é fundado o primeiro time, o Albion Football haverá jogadores.
Club, que não apenas é o primeiro a nascer com fins
exclusivamente futebolísticos, mas também a pri- Esses anos também foram uns dos mais escuros em
meira equipe 100% nacional do Uruguai, segundo o matéria de liberdades, ditadura militar que chegou
historiador Pablo Alabarces. Apesar dos sobrenomes para combater uma guerrilha já vencida, mas não foi
dos primeiros jogadores serem ingleses ou escoceses, até 1984, quando se restabelece a democracia. Os 1980
todos eram nascidos em solo uruguaio. foram os últimos anos de conquistas internacionais.
Peñarol e Nacional campeões do mundo, algo que pa-
O começo do século XX encontra o Uruguai, primeiro, rece tão distante quanto utópico nos anos que passam.
dividido entre si por uma guerra civil e, segundo, com Ainda assim, com uma liga pobre, clubes deficitários,
uma associação de futebol já estabelecida. Monte- Peñarol e Nacional repartindo quase todas as glórias,
videana, obviamente, mas com uma organização ainda assim o Uruguai coloca em campo uma seleção
precoce em comparação ao continente. Logo virão que vale milhões: Godín, Josema, Torreira, Suárez,
os anos de Batlle y Ordóñez, das reformas sociais Cavani. Se alguém quiser comprar esses cinco vai ter
inéditas na época, oito horas de jornada de trabalho, que desembolsar centenas de milhões.
voto feminino, descanso semanal obrigatório. Diz-
-se que no Uruguai existe um José a cada cem anos O futebol para o Uruguai é a maneira de se sentir
que transcende fronteiras: José Artigas, José Batlle y competitivo em um mundo que não tem muito lugar
Ordóñez e José Mujica. para os países pequenos. Às vezes é, inclusive, o au-
to-engano de uma população que não sabe muito bem
Essas reformas proporcionaram maior tempo livre se é conservadora ou progressista, de um país com
para a classe trabalhadora, e à do Uruguai parece mui- um parlamento que aprova leis avançadas [aborto,
to bom empregá-lo jogando bola. Outro historiador, maconha, “lei trans”, anti-tabaco], enquanto a po-
Juan Carlos Luzuriaga, estabelece que o primeiro time pulação envelhece. O problema é que ficaram velhos
plebeu foi o velho River Plate Football Club [1897], que aqueles jovens dos anos 1960 e 1970, aqueles dos anos
não é o atual Club Atlético River Plate, mas o inspirou. obscuros dentro e fora dos gramados.

11
Do
outro
lado
da baía
Como a indústria da carne forjou
o “terceiro grande” do Uruguai
Por Matheus Steinmetz

12
O
Uruguai é um terreno fértil para dicotomias, Em 1726, Montevidéu foi fundada na margem leste
como se todos os âmbitos da vida do país tives- da baía homônima pelos espanhóis como parte da
sem somente duas visões opostas e nada mais. estratégia de ocupação na disputa pelo domínio da
Desde os seus primórdios como nação independente bacia do Prata contra os lusitanos. O marco inicial da
[1828], Blancos [Partido Nacional] e Colorados [Par- urbanização veio a se tornar o bairro de Ciudad Vieja,
tido Colorado] dominaram a vida política, alternan- intimamente ligado à atividade portuária — lar do
do-se à frente do governo e impondo-se como os dois Café Brasilero de Eduardo Galeano e do Teatro Solís
únicos donos do tabuleiro de xadrez que se tornou a — a partir do qual a cidade começou a se expandir
disputa pelo poder nos lados da Banda Oriental, até em direção ao norte e ao leste.
a ascensão da Frente Ampla.
Na contramão de onde florescia o município estava
A pobreza do interior pouco desenvolvido contrasta o Cerro de Montevidéu. Localizado na margem su-
com a importância da capital. Ao concentrar quase doeste da baía, o Cerro nada mais é, literalmente, do
metade dos habitantes do país, Montevidéu se afir- que um morro com formato semelhante ao de um
mou tal qual um oásis em meio à formação demo- cone — destaque paisagístico num país despido de
gráfica uruguaia e, ao longo do tempo, monopolizou grandes acidentes geográficos —, cujo ponto mais
as oportunidades, o crescimento, a indústria, a eco- alto alcança os 135 metros de altura. Ali, não havia
nomia e a cultura. rastros de urbanização à época, a não ser uma for-
taleza militar criada pelo reino espanhol dois anos
Em um palco onde o antagonismo dá o tom às rela- antes, em 1724, justamente para vigiar a navegação
ções, Nacional e Peñarol se destacam como a síntese no Rio da Prata e manter a influência na região.
desse DNA bipolar no âmbito futebolístico. Suas cores
colocam frente a frente [quase] duas metades de um Em 1834, seis anos depois da independência do Uru-
país cuja história se confunde com a do jogo. Bol- guai, foi decretada a criação do povoado que deu
sos e Manyas ocupam o espaço dos clubes gigantes origem à Villa del Cerro, independente da capital
que, como tudo por esses cantos, parecem não poder federal. Há de se dizer que o vilarejo foi inicialmente
passar de dois. batizado como Villa Cosmópolis, por ser o destino
principal das ondas de imigrantes que chegaram ao
Durante meio século essa hegemonia foi desafiada, Uruguai entre a segunda metade do século XIX e a
e o maior duelo do futebol uruguaio poderia ter vi- primeira do XX.
rado uma tríade. Se dentro das fronteiras orientales
ninguém discute que Tricolores e Carboneros são os O que atraía a chegada desses colonos europeus a
maiores — não necessariamente nessa ordem —, um lugar distante do centro da capital e sustentava
também não há receio em afirmar a existência de o seu desenvolvimento era o trabalho nos salade-
uma cadeira cativa para um inquestionável “terceiro ros, estabelecimentos em que a mão-de-obra — no
grande”. início, predominantemente escrava, importada da
África — atuava no duro trabalho de salgar a carne. O
Entre os anos 1920 e 1960, o Rampla Juniors Fútbol recurso era, àquela altura, a técnica disponível mais
Club foi o time que chegou mais próximo de trans- moderna para manter a conservação do alimento, o
formar essa realidade, mas ao mesmo tempo não famoso charque [tasajo, no Uruguai]. Além disso, um
conseguiu alcançar a popularidade nem se manter decreto do presidente Manuel Oribe, de 1836 — cujo
competitivo tal qual os dois desafiados. Curiosamen- texto definia que os estabelecimentos dedicados à
te, seu apogeu e seu ocaso foram efeitos da mesma produção de charque deveriam ser fixados longe da
causa, daquilo que reconhecidamente os uruguaios zona urbana da capital e próximos a saídas fluviais
produzem de melhor: a carne. —, contribuiu para que o Cerro e suas imediações,
os quais preenchiam perfeitamente tais requisitos,
afirmassem-se como o principal pólo industrial do
Departamento de Montevidéu e, por conseqüência,
do país.

A presença da indústria foi responsável por gerar


e acelerar o desenvolvimento local, tornando-se o
motor para o crescimento da população, da economia
La Villa e da recente urbanização daquela zona. Além dos
africanos escravizados, a região também absorvia
del Cerro: de forma intensa os imigrantes europeus que che-
gavam a Montevidéu em busca de uma nova vida.
o lar dos Estima-se que 85% dos habitantes da Villa del Cerro
fossem estrangeiros, e apenas 15% uruguaios, de
“Friyis” acordo com dados referentes ao ano de 1852. Em 1867,
o então presidente Venancio Flores apoiou a ideia de
batizar as ruas da vila com nomes de cidades e países
estrangeiros em razão do grande fluxo migratório
absorvido pelo território.

Nas duas primeiras décadas do século XX, os anti-


gos saladeros foram substituídos pelos frigoríficos.

13
Do outro lado da baía

Estas estruturas se apresentavam como uma nova terceiro mais popular do país.
tecnologia e supriam a produção de carne congelada
e enlatada, produto que começava a tomar o lugar A relação entre time e torcida nasceu já muito in-
do charque como o item número um da balança co- tensa, comum a equipes estabelecidas em regiões
mercial uruguaia, acompanhando as mudanças que humildes e de perfil operário, mas a simbiose foi
colocavam a Europa como o seu principal parceiro reforçada pelo isolamento do Cerro em relação ao
comercial, substituindo a América Latina. Em 1911, centro de Montevidéu. O desenvolvimento do bairro
os saladeros cerrenses abateram 446.600 cabeças de proporcionou a si mesmo e aos seus moradores uma
gado contra 23.000 dos frigoríficos. Em 1912, foram considerável auto-suficiência em razão das fartas
435.600 contra 69.000. No ano seguinte, 253.600 oportunidades de trabalho e lazer, o que permitia aos
frente a 141.000 [1913 foi o primeiro ano em que a cerrenses viver sem sair dos seus limites. A chegada
exportação de carne refrigerada ultrapassou a de definitiva do Rampla era o ingrediente que faltava
charque no Uruguai]. Já em 1914, o início da Primeira para reforçar o sentimento de pertencimento dos
Guerra Mundial foi decisivo para finalmente inverter habitantes com a comunidade.
o cenário: enquanto os saladeros sacrificaram 110.086
bovinos, os frigoríficos do Cerro mataram 280 mil Seu primeiro estádio — ou campo — no novo en-
cabeças de gado. O conflito internacional contribuiu dereço seria o de propriedade do Frigorífico Swift,
para dobrar a produção uruguaia entre 1915 e 1918, em cujo gramado conquistaria, já nos idos de 1921,
especialmente pelo crescimento da demanda inglesa o primeiro acesso à divisão de elite do Campeonato
sobre o produto. A queda na produção do charque Uruguaio, ainda na era amadora. Além disso, foi na
também se deu por causa da redução do preço do mão-de-obra dos frigoríficos que o Rampla Juniors
açúcar — à época principal commodity de Brasil e buscou alguns dos maiores jogadores da sua história.
Cuba —, o que afetou negativamente suas economias Primeiro goleiro campeão do mundo em 1930 pela
e diminuiu o poder de compra destes que eram os Celeste Olímpica, Enrique Ballesteros foi motorista
maiores importadores da mercadoria até então. de trator do mesmo Swift nos anos em que trajou
vermelho e verde [1926 - 1935] e atuou na conquista
Essa revolução tecnológica trouxe à região muitos in- do primeiro e único título nacional do clube, em 1927,
vestimentos de fora do país, oriundos especialmente e nos vices de 1928 e 1932 [este último, o primeiro
dos Estados Unidos. Parte importante desse volumoso ano de profissionalismo no futebol uruguaio]. Essa
aporte financeiro vinha mais precisamente de em- relação rendeu aos seguidores e jogadores do Rampla
presas da cidade de Chicago: em 1916, a Companhia Juniors o apelido de Friyis — em alusão a Fridges,
Swift adquiriu o Frigorífico Montevidéu, inaugurado "frigorífico" em inglês —, que perdurou até meados
quatro anos mais cedo; em 1917, um grupo de estan- da década de 1960.
cieiros uruguaios abriu o Frigorífico Artigas, que no
ano seguinte seria vendido à Companhia Armour. Ao todo, a pujança econômica do bairro impulsionada
Juntamente com o Frigorífico La Uruguaya (1904) — a pelo lucrativo negócio da carne foi contemporânea
partir de 1928, “Frigorífico Nacional” — , foram os também a outros três vice-campeonatos uruguaios
três grandes estabelecimentos que transformaram [1923, 1940 e 1964], a uma presença constante en-
a vida dos cerrenses. tre os postulantes ao título, além de outros troféus
representativos, como a Copa Maracanã de 1950,
O desenvolvimento da região fez com que a urbani- realizada em celebração ao mundial vencido sobre
zação de Montevidéu crescesse em direção ao oeste e o Brasil em julho daquele ano. A acanhada equi-
criasse comunicação viária entre as margens oriental pe da Rua Turquia e o Nacional são as duas únicas
e ocidental da baía, reduzindo o isolamento da nova agremiações que cederam jogadores para os quatro
zona em relação ao centro do município. No ano de mais importantes títulos do Uruguai no futebol: o
1913, a já Villa del Cerro deixa de ser um povoado, é bicampeonato olímpico de 1924 e 1928 e as Copas do
incorporada à cidade e alçada à condição de bairro Mundo de 1930 e 1950.
da capital.
Desde a sua estréia na primeira divisão, em 1922, o
Em paralelo, no dia 7 de janeiro de 1914 era fundado o Rampla Juniors se colocou entre os quatro primeiros
Rampla Juniors Fútbol Club, que, ironicamente, não por 12 temporadas consecutivas, até 1936 [em 1925,
surgiu no lugar onde se consagrou. O clube nasceu no 1926 e 1930 não houve campeonato uruguaio]. Esse
lado mais antigo da cidade, no extinto Café Trocadero período exitoso se deu justamente nos primeiros anos
— esquina das ruas Rampla Roosevelt e Solís —, no de investimento das companhias estadunidenses
bairro Aduana, vizinho ao porto de Montevidéu. Por Swift e Armour no negócio da carne ao fim dos anos
ali o clube ficou pelos primeiros cinco anos de exis- 1910, passando sem grandes sustos pela Grande De-
tência, jogando em campos emprestados, nos bairros pressão de 1929, mas interrompido pela assinatura da
de Ciudad Vieja, Cordón, Aguada e Piedras Blancas. Convenção de Ottawa, em 1932. O acordo, motivado
pela crise profunda nos Estados Unidos, estabeleceu
Somente em 1919 os Rojiverdes cruzam a baía e se que a Inglaterra compraria carne de ex-colônias bri-
estabelecem na parte nova da cidade, lar da indústria tânicas por um preço mais barato do que o praticado
mais importante do país. Começa então o crescimento pelos uruguaios.
fulminante do Rampla, que encontrou na Villa del
Cerro uma série de componentes que impulsionaram A indústria voltaria a viver seu auge na década de
o time à glória. Lá, arrebatou o coração dos habitantes 1940, e o Rampla tornaria a figurar entre os mais bem
que viviam da indústria cárnica, e estes se tornaram colocados no campeonato nacional — apenas uma
uma torcida fervorosa, transformando o clube no participação na segunda divisão, em 1944, manchou

14
Como a indústria da carne forjou o “terceiro grande” do Uruguai

o período glorioso do clube. Na primeira metade Depois dos primeiros anos como um clube itineran-
dos anos 1950, o país ainda vivia seus dias de “Suíça te, a chegada à Villa del Cerro em 1919 foi o ponto
das Américas”, os frigoríficos voltavam fortalecidos de partida para a ascensão meteórica do clube: em
com o aumento das exportações em decorrência da 1921 consegue o acesso à primeira divisão, em 1922
Segunda Guerra Mundial e o velho Rampla acumu- conquista o terceiro lugar e em 1923 é vice-campeão
lava cinco temporadas consecutivas conquistando uruguaio, mesmo ano em que inaugura seu estádio.
o terceiro lugar na competição mais importante do Assim, o Rampla dava os primeiros passos como uma
país, de 1949 a 1953. potência emergente e reinaria absoluto como único
clube importante do bairro — que mais parecia uma
Daí em diante, iniciou a derrocada do clube e o fim cidade autônoma — não fosse o surgimento do seu
do esplendor na economia do bairro. Em 1957, é for- clássico rival. Em 1º de dezembro de 1922, nasce o
malizado o Mercado Comum Europeu — cujo prote- Club Atlético Cerro como iniciativa de alguns sócios
cionismo implicou queda nas exportações de carne de clubes menores da região, a fim de criar uma ins-
charrúa —, e as companhias Swift e Armour retiram tituição “verdadeiramente cerrense”, já que o Rampla
seus investimentos do Uruguai, afetando direta- fora concebido do outro lado da cidade. Há quem diga
mente milhares de trabalhadores da Villa del Cerro. também que a fundação do Cerro [clube] contou com o
Em resposta ao problemas econômicos enfrentados incentivo de dirigentes do Peñarol. Preocupados com
pelo país, o governo propõe a revogação do Estado o crescimento do Rampla Juniors, o surgimento de um
de Bem-Estar Social, implantado por José Batlle y rival obrigaria os Rojiverdes a dividir os torcedores
Ordóñez no início do século, provocando greves ope- em um “mercado” tão engajado. Estava criado assim
rárias, contra a perda de direitos trabalhistas, que o Clásico de la Villa, o segundo maior do Uruguai em
viraram rotina até o fim dos anos 1960. importância e capacidade de mobilização, rivalidade
superada somente por Peñarol vs Nacional.
Nesse período, os frigoríficos voltam a ser proprieda-
de estatal e suas instalações são concedidas à EFCSA Apesar das eternas diferenças, um episódio marcou
[Estabelecimento Frigorífico do Cerro Sociedade a fusão de ambas as equipes em um dos momentos
Anônima], uma cooperativa formada pelos traba- mais delicados da história do país. De 1967 a 1969,
lhadores em uma tentativa de manter o negócio, que Montevidéu viveu tempos de conflitos de classe,
já não tinha a mesma força de antes. Quem perdeu o quando as greves de trabalhadores eram freqüentes
trabalho na indústria precisou buscar emprego em em resposta ao congelamento dos salários promovido
outros lugares de Montevidéu, e, aos poucos, o Cerro pela República nos anos de austeridade — todo esse
foi se transformando em um bairro-dormitório. barulho culminaria mais tarde na ditadura militar
em 1973. Em janeiro de 1969, um funcionário muni-
Em 1964, o Rampla Juniors, que já sentia os reflexos cipal foi morto em uma manifestação de empregados
da fragilidade econômica dos frigoríficos na quali- estatais. Em abril, iniciou-se uma greve de toda a
dade do seu plantel, fez sua aparição derradeira em indústria frigorífica, representando 14 mil traba-
uma final de primeira divisão ao ser derrotado pelo lhadores, que só acabaria em setembro.
Peñarol. Dois anos mais tarde, o Parque Nelson, que
a partir de 1980 seria rebatizado como Estádio Olím- Em solidariedade aos grevistas e sindicalistas —
pico, passou por reformas para substituir as antigas provavelmente torcedores de Cerro ou Rampla, cujo
arquibancadas de madeira por novas de concreto. Os trabalho ajudou a moldar a identidade da Villa del
próprios torcedores do Rampla trabalharam que- Cerro —, ambos os clubes organizaram amistosos
brando — a marretadas — as rochas que havia no a serem disputados entre a Seleção Uruguaia, que
local para viabilizar a obra. Por causa do empenho, enfrentaria a Inglaterra campeã do mundo na semana
passaram a ser chamados por “Picapiedras”, como seguinte no Centenário, e combinados formados por
um sinal de que a força dos Friyis começava a ficar jogadores da dupla Rampa-Cerro. O dinheiro arre-
no passado. cadado pela bilheteria seria revertido aos grevistas.

No dia 3 de junho daquele ano, uma terça-feira, o


Parque Federico Saroldi, casa do River Plate de Mon-
tevidéu, recebeu dois jogos. No primeiro, a equipe
formada pelo ataque do Rampla e pela defesa do Cerro
arrancou um empate em 2 a 2 com a seleção, que tinha
Pablo Forlán em campo. Na partida de fundo, Pedro
Rocha abriu o placar para a Celeste, derrotando por
El Clásico 3 a 1 a equipe que mesclava a defesa do Rampla com
o ataque do Cerro.
de la Villa A atitude, mais do que caridade, simbolizava a impor-
e o combinado tância da indústria na vida dos clubes, especialmente
na do decadente rubro-verde. Dali a um ano, em 1970,
pela greve o “velho Rampla” sucumbiu às dificuldades e retor-
nou à divisão de acesso, onde permaneceu por dez
temporadas consecutivas. Ao mesmo tempo, o time,
o bairro e o seu negócio seguiram destinos parecidos,
saudosos das glórias do passado e orgulhosos das
marcas que deixaram na história.

15
A casa
de
Obdulio
Uma visita a um lado
esquecido do futebol uruguaio

Reportagem:
Felipe de Souza

Fotografias:
Denise Matsumoto

16
17
A casa de Obdulio

N Blanco & Macaluso &


ão é preciso ser aficionado em futebol para
saber que, a um passo ao sul do Chuí, o es-
porte mais popular do mundo entra em uma
dicotomia quase intransponível: ou se é Peñarol, Colombino & Nin
ou se torce para o Nacional. O maniqueísmo se nota
antes mesmo de se chegar à capital uruguaia, uma
cidade que a cada dia fica mais bonita e acolhedora,
na contramão das demais metrópoles do continente.
Entrando-se em Montevidéu via terrestre, os murais
e pixos relacionados à paixão clubística têm motivos Apesar da maioria dos triunfos residirem em uma era
carboneros ou bolsilludos e nada mais. Aliás, já no remota, o Wanderers voltou a ser, se não protagonista,
ônibus em direção à república oriental isso era nítido: um coadjuvante que incomoda e finca pé nas primei-
nas poltronas ao lado, um jovem trajava calções tri- ras colocações da tabela uruguaia nos anos 2010. Em
colores; o outro ostentava uma tatuagem aurinegra. 2014 e 2016 acumulou dois vice-campeonatos. Em
2017, ficou em quarto na classificação geral, o que
Mas pera lá, para que no Uruguai haja um certame e carimbou seu passaporte para a Pré-Libertadores
para que o país tenha construído uma história fan- de 2018 em confronto contra o Olimpia do Paraguai.
tástica no futebol mundial, foi preciso muito mais
que duas equipes. E ali pelo bairro do Prado tem um Talvez um tanto desta retomada wanderista também
clube alvinegro, inaugurado em 1902 após uma via- seja ação de dirigentes como Jorge Nin, presidente do
gem dos irmãos Enrique e Juan Sardeson à Inglaterra. clube de 2016 a 2018. Ele mesmo admite que era mais
O nome, Montevideo Wanderers, foi escolhido para torcedor que presidente e que muitas vezes “se pasa
homenagear o Wolverhampton Wanderers, que a de la raya” [“passa-se da linha”]. Porém, tratou de
dupla conheceu lá pros lados da ilha britânica. sanar as finanças e reorganizar o time. O sujeito é sim-
pático, do tipo que visualiza e responde mensagens
Os primeiros anos já foram férteis: em 1905 o de WhatsApp em questão de minutos, dá carona ao
Wanderers ficou em terceiro lugar no Campeonato repórter e oferece a própria casa para servir de local
Uruguaio e cedeu o goleiro Cayetano Saporiti — que para entrevista. Tudo isso às vésperas do primeiro e
ficou sob as traves do time por quase vinte anos — talvez mais importante jogo de todo 2018.
para o selecionado nacional, defendendo-o por 55
vezes. Um ano depois, foi campeão invicto, com nove Vestindo camiseta e bermuda, da sala do apartamento
vitórias e um empate e, ainda na mesma década, amplo nos arredores da Avenida 18 de Julio, Jorge
levaria mais um troféu nacional para casa, desta solta um grito em direção ao outro cômodo: “Papai,
vez em 1909. tenho aqui um jornalista brasileiro que quer saber da
história do Wanderers. Ponha uma camisa e venha”.
É importante citar que o futebol uruguaio rachou
no episódio que por lá chamam cisma. Em 1922,
um quiproquó foi encabeçado por Peñarol e Cen-
tral Español. Os Carboneros, campeões uruguaios
de 1921, foram classificados para a Copa Aldao, que
realizava o confronto entre o campeão da AUF [As-
sociação Uruguaia de Futebol] e o vencedor da AFA
[Associación de Fútbol Argentino]. No entanto, o
Aprendendo a ser
time aurinegro teimou em fazer essa final contra o
Racing, que na realidade era campeão da Associa- wanderista na escola
ción de Fútbol Amateur Argentino. E foram além:
não cederam seus jogadores à AUF para a disputa
do Campeonato Sul-Americano daquele ano. Logo
depois, Penãrol e Central Español pediram permissão
à mesma AUF para irem à Argentina jogar amistosos
contra Racing e Independiente. O pedido foi negado. Aos 85 anos, seu homônimo pai é um arquivo vivo
Mesmo assim, as duas equipes atravessaram o Rio não só do time para o qual torce desde muito jovem,
da Prata e enfrentaram os rivais de Avellaneda. mas também testemunha ocular do protagonismo
do Wanderers no futebol uruguaio. “Logicamente,
Excluídos da AUF em represália, Peñarol liderou a estive próximo do Nacional por conta do ambiente
criação da FUF, Federación Uruguaya de Fútbol. A familiar, mas ao mesmo tempo eu tinha um professor
coisa ficou tão séria que o até então presidente do de quem gostava muito e que sempre me falava do
país, José Serrato, meteu seu bedelho e, na base do Wanderers”, recorda Jorge Nin — o pai. Sob influência
decreto, voltou a unificar o futebol nacional. direta do maestro, ele foi conferir de perto a cancha

18
Uma visita a um lado esquecido do futebol uruguaio

do alvinegro e por lá deu de cara com nomes como em cima do Nacional. Desde então, o clube traçou um
José Maria Medina, atacante que atuou cinco anos caminho claudicante, entre fracassos e quase glórias:
pelo time do Prado e representou a seleção celeste beijou a lona da segunda divisão por algumas vezes,
nos Sul-Americanos de 1941 e 1946. Ao lado de Me- garantiu vaga para a Libertadores de 1975 com Oscar
dina, pôde espiar também a elegância e fidalguia de Tabárez — como técnico, chegaria à seleção uruguaia
Obdulio Varela, nome que todo brasileiro aprendeu a — no elenco, goleou os Bolsilludos por 5 a 1 em uma
respeitar, mesmo que a custo de muito choro, trauma noite histórica pelo Uruguaio de 1979 e classificou-se
e clonazepam. novamente à Libertadores de 1985, com Tabárez já
como técnico.
“Primeiro me apaixonei por aquele grupo de joga-
dores, mas depois a história do clube e a conduta de Libertadores, aliás, é o que se respirava no apar-
seus dirigentes me conectaram ainda mais à insti- tamento dos Nin. O bom desempenho no certame
tuição”. Aos 85 anos, Nin pai é uma fonte inesgotável nacional de 2017 impulsionava o ambiente. “Vamos
de histórias, pura educação e afabilidade. Sorte da jogar contra um gigante. O Olimpia tem três títulos e
reportagem, que ganhou uma imersão no futebol é um rival duríssimo. Mas sou um otimista irreme-
uruguaio enquanto Nin filho não cessava as conversas diável e tenho fé no time”, afirmava o presidente. No
por telefone. ano anterior, o Wanderers passou pela primeira fase
ao eliminar o Universitário de Sucre, mas depois caiu
Se Obdulio e Medina fermentaram a tradição do Wa- diante do The Strongest, ambos da Bolívia. Com esse
nderers a partir dos anos 1930, os alicerces do clube retrospecto, encarar o Olimpia não parecia animador.
foram fixados ainda antes por um sujeito chamado
Héctor Gómez. Ele, apesar de nunca ter jogado dentro Talvez por isso a mídia local parecia ignorar o duelo
das quatro linhas, foi o presidente do time e um dos a ponto da Tenfield, emissora proprietária dos direi-
fundadores da Confederação Sul-Americana, além de tos televisivos do futebol uruguaio, organizar para a
presidente da AUF aos 27 anos, idade em que muita mesma noite um clássico Nacional-Peñarol no estádio
gente já se dá conta de que não ocupará um posto de Centenário. No entanto, Nin pai tem uma explicação
tal destaque. Para completar, viajou a Barcelona em mais plausível. “Eles estão em conflito com a Fox
1929 para um congresso com dirigentes europeus e Sports, aí fizeram isso”, esclarece.
os convenceu de que o Uruguai era o palco ideal para
a primeira Copa do Mundo. “Ele, na minha opinião,
marcou a história do Wanderers como nenhum outro”,
afirma Senhor Nin.

Av San Fructuoso 1070:


aconchegante como
A glória amadora não se a casa dos avós
esquece

Às voltas com a instalação dos refletores no Par-


que Viera, seu estádio, o Wanderers teve de jogar
Parece ser impossível falar da espinha dorsal e dos seu debut na Libertadores 2018 no Luis Franzini, de
tempos presentes do futebol Bohemio — apelido do propriedade do Defensor, um de seus principais ri-
Wanderers — sem visitar sua época amadora. “Para vais. Antes do jogo, a barra brava do time, chamada
definir o que é nosso time, temos que lembrar da era Los Vagabundos, que tem como um dos fundadores
amateur, quando competíamos de igual para igual justamente o presidente Jorge Nin, se reúne em uma
com os grandes, vencendo-os em muitos campeo- das sedes do clube, localizada na Avenida San Fruc-
natos”, pondera o pai do presidente, que também já tuoso. Simples e aconchegante, o prédio lembra uma
foi dirigente do clube. Com o passar dos anos e a Era ida à casa dos avós. Sobre sofás antigos, descansam
Profissional avançando, o Wanderers passou a ser camisas históricas. Pelas paredes — óbvio — são
modesto no quesito conquistas. Depois de 1931, seus ostentadas fotos de Obdulio e pôsteres que lembram
aficionados só voltariam a comemorar um título em conquistas como o Campeonato Uruguaio de 2014, o
1937, quando ganharam o Torneo de Honor Uruguayo vice-campeonato nacional de 1980, o tour por Chile

19
A casa de Obdulio

e Peru em 1936 e vários troféus das equipes de base. À medida que a tarde cai e a hora do jogo se aproxima,
Em um outro ambiente, a indefectível parrilla e uma o movimento na pequena sede vai se intensificando,
inusitada cancha de pelota vasca. mesmo que timidamente. Os “litrões” de Schneider e
os aromáticos porritos correm de mão em mão. “Isso
À medida que os torcedores chegam para o “aquece”, aqui é nosso estilo de vida”, diz Andrés Alonso, atual
a impressão é realmente de que todos se conhecem líder da barra Los Vagabundos. No comando da turma
de outros carnavais. Há um clima familiar flagrante, desde 2011, ele afirma que no ano anterior faltou a
como se um time de amigos estivesse indo jogar. E apenas uma partida e, quando não está nas tribunas
talvez fosse isso mesmo que estivesse acontecendo ali. empurrando o time, reúne os amigos wanderistas
para jogar bola em um esquadrão amador batizado
Ajudando a arrumar os bumbos e bandeiras, estava Los Wanderfull, em referência lógica ao clube que
Facundo Panizza, um moleque de 22 anos que co- habita sua alma.
meçou seu caso de amor com o Bohemio ao jogar nas
equipes juvenis do clube. Ele obviamente sabe quais Para ele, a sociedade uruguaia reforça o maniqueís-
são as maiores agremiações do país e diz não dar a mo Penãrol-Nacional. “Quando uma criança nasce,
mínima se o Wanderers se tornar ou não a terceira a primeira coisa que fazem é dar uma roupa de um
força charrúa. “Sinceramente, isso não me importa. ou de outro. Aconteceu comigo também. Mas eu me
Wanderers é minha família e temos um grupo de acostumei a bater bola atrás do gol onde os profis-
amigos muito bom aqui. Ganhar copas não é algo que sionais jogavam as partidas do Wanderers e aqui há
mude o sentimento pelo clube. Não ganhamos sempre, esse sentimento de pertencer a uma família. Não
mas quando vencemos os grandes daqui, passamos ganhamos sempre, mas se quer algo fácil, Nacional
curtindo isso a semana toda, principalmente porque e Peñarol estão aqui por perto. É só ir lá e torcer para
temos muito menos dinheiro que Peñarol ou Nacio- eles”, sugere ironicamente.
nal”, explica. Aliás, segundo informação do próprio Corpulento, tatuado e vestindo uma camisa polo com
presidente Nin, o orçamento mensal do clube era de o escudo do Wanderers no peito e as bandeiras dos
US$ 150 mil. Segundo ele, a quantia cobre desde o países onde já seguiu a equipe costuradas na manga
salário da telefonista até o soldo do centroavante. direita, Andrés reforça o clima familiar da barra. “Aqui
A geografia do futebol em Montevidéu — a exemplo não há um fanatismo louco. O importante é reunir os
de Buenos Aires — também é dividida por bairros. amigos e aproveitar. Já estamos com nosso ônibus
Mas a sensação de “buena onda” é tamanha que nem cheio para o jogo de volta em Assunção. São 24 horas
o River Plate, rival da vizinhança, importa muito a de viagem até lá. Só se aguenta tanto tempo dentro
eles. “Gostamos de ganhar mais do Defensor do que de um ônibus tendo ao lado amigos de verdade”, diz,
do River”, completa Panizza. A equipe violeta de Playa rindo. Na seqüência da entrevista, como não há espaço
Ramirez parece ser realmente a pedra no sapato dos em carros para todos, ele embarca na caçamba de
Bohemios. uma camioneta, abre um sorriso de orelha a orelha
e se cobre com uma lona para não ser flagrado pelas
Durante a função de preparo para o confronto com autoridades de trânsito.
os paraguaios, à sombra de Nacional e Peñarol, a Na esteira da camaradagem local, Sergio, um torcedor
realização do clássico naquela mesma segunda-feira fanático que veio de Buenos Aires só para ver o jogo,
não incomoda a nenhum dos presentes. “A verdade praticamente nos intima a ir com ele e sua esposa
é que ser torcedor de um time como o Wanderers é até o estádio. “Hoje ganhamos, sem dúvida. Posso
algo diferente. Os grandes são como organizações sentir”, previa.
mafiosas”, dispara Joaquín Martínez, sócio do clu-
be desde o nascimento, em 1998. Para ele, a partida
inesquecível foi uma vitória contra — adivinhem — o
Defensor. “Ganhamos de 2 a 1 como visitantes e nos
tornamos campeões”, recorda Martínez.
Uma cancha
violeta tingida
de branco e negro

“Se quer algo


fácil, Peñarol e
Ir a uma cancha uruguaia é como reviver o lado bom
de se gostar de futebol. O Luis Franzini é localizado na
orla de Montevidéu e o horário marcado para o jogo,
Nacional estão 19h15, reservou a todos ali um céu de tom rosa que
contrastava com a cor vibrante da edificação. Churros
aqui perto” eram vendidos a preços mais que justos e uma brisa
aliviava o calor intenso. As arquibancadas têm aque-
— les vãos em que se pode deixar cair chaves, grana e
documentos, mas ninguém parece se importar. Algo

Andrés Alonso que no Brasil, de Teixeira, Marin e Marcopolo, seria


visto como um escândalo.

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21
22
Uma visita a um lado esquecido do futebol uruguaio

O público vai chegando, o mate vai sendo sorvido em pia. Temos jogadores ainda muito jovens e talvez
vários pequenos grupos e amigos vão se encontrando, eles tenham sentido isso. Mesmo assim, pensei que
inclusive gente que torce para outros times chicos. podíamos ter empatado”, lamenta. No entanto, ela
“Torço para o Torque, mas hoje vim apoiar o Wande- também já olha pra frente e prevê uma boa partici-
rers, pois antes de tudo, sou uruguaio”, comentou um pação no Clausura, além de ressaltar as ações sociais
senhor ao rapaz que sentava a seu lado. Enquanto isso, que promove em parceria com o clube em benefício
Andrés, Facundo e Joaquin acomodavam os trapos a jovens carentes. “Essa paixão é incondicional e
e tirantes atrás de um dos gols e cantavam a plenos não tem explicação. Minha expectativa é ficar pelo
pulmões, apesar de algumas vezes serem abafados menos entre os três primeiros na tabela”, vaticina.
pela torcida do Olimpia, que veio em bom número e Para um clube que criou o maestro do Maracanazo,
com certa pirotecnia. nada é impossível.
Começada a peleja, o time paraguaio se mostra mais
organizado ofensivamente e arrisca dois tiros a gol
já nos minutos iniciais. Da parte wanderista, o pri-
meiro suspiro mais profundo nasceu de uma jogada
de Villoldo pela esquerda. Ele deu um corte seco no
Quando Óscar Tabárez
marcador e cruzou para Blanco, que se lançou à bola
sem sucesso. Depois, Rodrigo Rivero, com a casaca quebrou a hegemonia
7 do time uruguaio, arrisca um petardo de média
distância e obriga o arqueiro do Olimpia a uma defesa Nacional–Peñarol
estranha. O rebote cai nos pés de Blanco. A torcida
levanta, ensaia o grito de gol, mas o chute do camisa
11 bate em uma das traves, corre sobre a linha e sai em
tiro de meta. Inexplicável. Nessa altura, Andrés está Em tempos mais “recentes”, quando a distância em
cantando como louco e sua pele ganha tons rubros de relação aos dois grandes já era oceânica, foi Óscar
quem está ensandecido. Coisa linda de se ver. Tabárez quem abasteceu o orgulho da torcida wa-
nderista. Como jogador, atuou no time que levou o
Em resposta paraguaia, William Mendieta, o 10 do Wanderers pela primeira vez a uma Copa Libertadores,
alvinegro de Assunção, bate falta rasteira no canto em 1975. A classificação quebrou uma hegemonia de
esquerdo e obriga o goleiro Martín Rodriguez a uma décadas em que a participação uruguaia no torneio
defesa difícil. O arqueiro, aliás, figurava como um continental se resumia aos dois grandes da capital. A
dos principais personagens do jogo já no primeiro campanha não foi propriamente um sucesso: o quadro
tempo. Na segunda etapa, o Wanderers pouco criou bohemio não conseguiu forças para passar da fase de
e chegou a levar um pelotazo no travessão. Logo grupos, quando tinha como rivais o próprio Peña-
depois, Martín Rodríguez salva novamente, desta rol, além dos peruanos Universitário e Unión Haral.
vez um chute cara a cara com Roque Santa Cruz. No O atual técnico do selecionado uruguaio voltaria a
rebote, Camacho chutou sem goleiro e viu o defensor levar o Wanderers à Libertadores em 1985, desta vez
Paulo Lima salvar sobre a linha. como treinador.
E assim acabou aquele jogo de ida. Após o apito final
do árbitro Anderson Daronco, ficou a sensação de um
Olimpia não tão gigante e um Wanderers nem tão
zebra. No entanto, a partida de volta mostrou que,
talvez, isso fora realmente apenas uma sensação. Obdulio: wanderista,
Quatro dias depois, na sexta-feira do dia 26 de feve-
reiro, construindo muito pouco, o Wanderers tomou 2
sensível e filantropo
a 0 em um Defensores del Chaco lotado. Para Andrés
e a rapaziada de Los Vagabundos, que viajaram a As-
sunção, o resultado adverso parece só ter fortalecido
ainda mais a paixão que eles têm pelo Wanderers e Conversar com o patriarca dos Nin também revelou
tudo que gravita ao redor do clube. “Essas viagens que a birra Brasil-Uruguai é alimentada muito mais do
sempre são boas, pois reforçam nossas amizades. lado de cá [Brasil] do que de lá [Uruguai]. Segundo Nin
Dentro do campo, acho que o Wanderers foi buscar pai, Obdulio, que foi jogador e técnico do Wanderers
um 0 a 0 e acabou dominado durante todo o jogo”. A e capitão do time que venceu a equipe brasileira na
torcida local lotou o estádio e apoiou todo o tempo. final da Copa de 1950, cultivava uma admiração sem
“Foram muito superiores”, comentou o líder da barra tamanho pelos jogadores canarinhos. Entre os que
dias depois da eliminação. Sem tempo para lamúrias, Varela mais admirava estavam Ademir [o Queixada,
os corações Vagabundos já projetam o torneio local. revelado pelo Sport Recife e com passagens por Vasco
“Vamos adiante! No primeiro turno desse campeo- e Fluminense] e o próprio goleiro Barbosa, execrado
nato, jogaremos em casa contra Peñarol, Danubio, por grande parte da mídia e comunidade futebo-
Defensor, Rampla Juniors, Nacional e Cerro. Temos lística brasileira. “Para Obdulio, foi muito doloroso
que aproveitar”, diz Andrés. ver o que fizeram com Barbosa no Brasil”, afirma Sr.
Nin. Segundo ele, a sensibilidade de Obdulio ia além
Maria González, uma simpática argentina que desde dos gramados. “Aqui em Montevidéu há um hospital
2001 vive no Uruguai e desde então segue o Wan- que trata de crianças com problemas articulares, e
derers a todo lado, também concorda que a pressão Obdulio foi um dos que juntava os colegas da seleção
local pesou para a eliminação. “Éramos um grupo uruguaia e ia ao interior promover jogos beneficentes
de cinqüenta torcedores contra uns 35 mil do Olim- e arrecadar fundos para a obra”, conta.

23
Diego
Lugano
Um mate e uma volta ao
mundo
Entrevista:
Fernando Martinho
e
Matheus Steinmetz

Fotografias:
Fernando Martinho

I
nversamente proporcional ao tamanho do pe- mava em braço da política externa catari. No berço da
quenino Uruguai, pode-se considerar o currículo Revolução Industrial, realizou-se profissionalmente,
de Diego Lugano tão longo e diversificado quanto apesar de ter sido “só mais um”, admite. Carregou o
a variada lista de times profissionais existentes na nome do Uruguai até o Pólo Norte e, como afirma,
cidade de Montevidéu. Oriundo da pátria primeira do já foi responsável por abrir novos mercados para os
futebol no continente americano, saiu pelo mundo negócios do país onde sequer sabiam da existência
cravando tachinhas no seu mapa-múndi particular, de sua terra natal.
acumulando impressões que ultrapassaram as ar-
quibancadas dos estádios onde jogou. De volta ao Tricolor onde conquistou o planeta, La
Tota virou dirigente e rechaçou o estereótipo que o
Ídolo na maior cidade da América Latina, conquistou e inclinava à vida de treinador. Do seu apartamento, lo-
foi conquistado por uma Istambul em que ainda pôde calizado no Jardins, Lugano endossou a ligação única
sentir um quê de Constantinopla e — alega — teste- do futebol com a afirmação identitária da República
munhar ressentimentos centenários nos Bálcãs. Em Oriental e fez questão de denunciar os porquês obscu-
Paris, participou da transição do PSG que se transfor- ros que atrasam o desenvolvimento uruguaio no jogo

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25
Entrevista: Diego Lugano

Você nasceu em Canelones, que fica mais ou menos


a uns oitenta quilômetros da capital, Montevidéu…

É uma zona de italianos, [com produção] vitivinícola e


chacarera. Chacarera para nós é frutícola… Vitivinícola
e frutícola do país, onde tem uma concentração de
italianos, e a maioria do povo aí é de origem italiana.
“Lugano”, obviamente, é italiano, né…

Como era a vida em Canelones? Apesar de estar a


oitenta quilômetros, ela ainda é muito próxima a
Montevidéu.

Na verdade, eu morava na zona rural. Eu não morava


sequer na cidade. Canelones tinha vinte mil habitan-
tes, mas eu morava na zona rural. Meu avô tinha uma
terra na Itália, a família plantava verduras, frutas e
bodegas de vinho, mas para consumo próprio. Então
nem sequer era na cidade. Fui morar na cidade já
com dez, 12 anos. O Uruguai, por ser pequeno… As
distâncias para vocês são irrisórias, mas para nós
cem quilômetros, ainda mais naquela época, dá pra
diferenciar bastante a capital do interior. O Uruguai,
historicamente, desde que se fundou, tem um con-
traste muito grande entre o porto de Montevidéu, onde

“Com a
se fundou a cidade, onde, há trezentos anos, começou
o comércio — e nesse entorno cresceu a cidade —;
e o interior, que sempre foi um mundo à parte, até
politicamente, socialmente, costumes… A capital e
o interior do Uruguai incrivelmente, apesar de ser o Argentina
menor país da América, não estão consolidados como
um só. Então as vidas são bem diferentes, e a forma temos muitas
de viver, agir e pensar também.
semelhanças
históricas.
Como era o consumo de futebol na sua cidade? E
dentro da sua casa, a torcida era para Peñarol ou
Nacional?

Para você entender: lá em 1900, quando chega o futebol Praticamente


com os ingleses ao Rio da Prata, o Uruguai ainda se
auto-definia como “Banda Oriental”, ou seja, o lado somos a mesma
merda com
oriental do Rio da Prata, para nos diferenciar da Ar-
gentina, já que sempre fomos uma província quase

diferente fedor”
única. Mesmo oitenta anos depois da independência,
a gente não se chamava “uruguaios”. A partir do fu-
tebol, o primeiro jogo entre Uruguai e Argentina, em
1910, ganha o Uruguai… O Uruguai criou a Conmebol.
O Uruguai inventou a Copa América — a primeira
ganha o Uruguai em cima da Argentina. O Uruguai
foi o primeiro time de futebol sul-americano a viajar
para a Europa, o que para aquela época era uma fa-
çanha. Foi primeiro time a ganhar de europeus e ser
campeão na Europa. Nos Jogos Olímpicos de 1924 — o
futebol era regido pela FIFA — pelos quais você era
campeão do mundo. Então o Uruguai foi o primeiro
campeão do mundo, nas Olimpíadas. Foi o primeiro
país da América do Sul, do mundo, a fazer um mun-
dial, em 1930. Voltou a ganhar, de novo em cima da
Argentina. Na final da Olimpíada de 1928, quando a
Argentina também foi, o Uruguai foi campeão em cima
da Argentina. Então o futebol fez com que o Uruguai
se diferenciasse definitivamente, socialmente, do que
é a Argentina. Inteligentemente naquele momento,
políticos utilizaram o futebol para dar ao país um certo
sentimento de pertencimento nacionalista, que até
então não tinha, porque éramos culturas muito iguais,
histórias muito iguais com a Argentina. Por que eu
falo isso? Porque aí explica a cultura de futebol que
o Uruguai tem, que é incomparável a qualquer país.
Moro no Brasil, conheço bem a Argentina, mas a cul-

26
Um mate e uma volta ao mundo

tura de futebol do Uruguai é incomparável. O Uruguai [D. Pedro I] disse “papai, agora sou livre”. O Uruguai,
consome mais futebol que o Brasil e que a Argentina, pelo menos, teve, sim, suas guerras armadas contra
joga mais futebol… O futebol está enraizado em todo o portugueses, contra espanhóis… O Uruguai foi o pri-
país. No interior, cada cidade tem seu torneio amador, meiro país da América Latina a abolir a escravidão,
seu clube, sua torcida, sua seleção. O Uruguai tem o reconhecer o voto feminino… No Uruguai brigaram
maior sistema de futebol infantil, mais arrumado e pela liberdade, embora com poucas possibilidades
mais incrível do mundo, que é estudado por franceses, contra os exércitos espanhóis e portugueses, por isso
alemães, holandeses, que não entendem como um a ajuda britânica, que estrategicamente quis o porto.
país de três milhões de pessoas — a maioria mulheres Mas com a Argentina há essa irmandade, somos muito
e velhos — tinha tanto jogador. No futebol infantil mais irmãs do que rivais. Só no futebol a gente briga.
do Uruguai jogam setenta mil crianças. Setenta mil Tanto é assim que a única vez na história que Uruguai
crianças equivalem a aproximadamente sessenta por e Argentina romperam relações, bilateralmente, foi
cento das crianças que estudam nas escolas. Ou seja, depois da final da Copa do Mundo de 1930, quando
sessenta por cento dos que estão na escola jogam no vieram vinte mil argentinos a Montevidéu, o Uruguai
sistema de futebol infantil organizado, com dados ganhou por 4 a 2 o primeiro mundial, e os argentinos
cruzados em todo o país. Não tem um bairro, uma — principalmente os jogadores — até o último dia
cidade, um povoado em todo o país que não tenha que morreu o último [jogador daquela partida]... Como
um time de futebol infantil que não compita, que não se chamava? [Francisco] Varallo, que morreu faz dez
tenha seu valor social. Então, para você entender o anos, 12… Ele falava que nunca mais voltou ao Uruguai,
que é o futebol uruguaio, a cultura é muito diferente porque naquele dia a Argentina terminou o primeiro
do que acontece em qualquer parte do mundo. Por tempo vencendo por 2 a 1 e, no túnel indo para o ves-
isso que a gente compete, né. Senão, por questões tiário, eles apanharam de jogadores uruguaios, não
de demografia, seria impossível competir. Estamos sei o quê… E no segundo tempo o Uruguai vai e ganha
falando de: são cem mil crianças no país e sessenta por 4 a 2. Então, como eles foram maltratados, blá blá
mil competem no futebol, em idades entre seis e 12 blá, imediatamente na Argentina o povo argentino
anos. Depois começam os adolescentes e os times queimou o consulado uruguaio... Queimou! E por dois
amadores. Sempre tive contato com o futebol, meu anos o embaixador uruguaio na Argentina voltou,
pai jogava futebol lá no time da minha cidade. o [embaixador] argentino no Uruguai voltou para a
Argentina. Foi uma loucura…
Amador?
Fogo no consulado uruguaio em Buenos Aires?
Sim, porque incrivelmente uma das nossas brigas
atuais no Uruguai é a diferença entre Montevidéu e Sim, sim… E aí houve uma ruptura de relações bi-
o interior. A federação uruguaia está localizada em laterais por dois, três anos. Única vez na história,
Montevidéu, tem vinte times em Montevidéu e, apesar por causa do futebol. Não houve guerra porque não
de ser o menor país do mundo, com essa cultura de houve, ficamos no limite, e não teve contato consular
futebol incrível, nunca quiseram fazer um futebol nenhum. Foi a única vez, nos duzentos anos de história
nacional. A separação entre Montevidéu e o interior do país, por futebol! Imagina que se [o futebol] bem
é incrível. Até hoje é incrível que seja o único país do nos une, também há uma certa rivalidade histórica.
mundo que não tenha um futebol nacional, que tenha
futebol — abre aspas — profissional em Montevidéu, Uma vez fazíamos uma brincadeira, eu e um colega
com vinte times… Falo “profissional” porque é uma do trabalho, de escolher as equipes ideais dos nos-
merda como competem. E o futebol amador, que é no sos times, se tivéssemos todo dinheiro do mundo
interior do país… Qualquer time de qualquer cidade do à disposição. Esse meu amigo, é torcedor do Ri-
interior leva mais público, mais torcida que noventa ver, armou os onze jogadores com você na defesa,
por cento dos times — abre aspas — profissionais de apesar de nunca ter jogado na Argentina. Houve a
Montevidéu. É um contraste incrível, uma coisa que possibilidade de jogar lá?
estamos combatendo à força. Porque, se em cem anos,
por política, por poder, pela cultura do país, não se Mil vezes. A questão é que, historicamente, o uruguaio
conseguiu fazer um futebol nacional é porque falando na Argentina se dá bem, pelas semelhanças culturais
você não vai conseguir. Tem que ser à força mesmo. e porque argentinos se identificam com o tempe-
ramento uruguaio. Na Argentina sempre ficaram
A rivalidade é muito maior com a Argentina do que marcados [os uruguaios]: Carlos Gardel era uruguaio,
com o Brasil? Como você fala sobre isso? mas para ele crescer ele foi à Argentina; Victor Hugo
Morales, que é o principal narrador argentino… todos
Com a Argentina temos muitas semelhanças his- uruguaios. Pelo Uruguai ser um mercado pequeno, têm
tóricas. Praticamente somos “a mesma merda com que ir para a Argentina para crescer, como artistas,
diferente fedor”, como a gente fala, né [risos]. As esportistas ou qualquer outra profissão. E no futebol
origens da Coroa espanhola, que fez o Vice-Reinado sempre os uruguaios, desde o começo do futebol, se
do Rio da Prata… As origens são as mesmas, né. Na dão bem na Argentina. Então o argentino se identi-
verdade, o Uruguai é independente porque os ingleses fica muito com o Uruguaio. Eu fui dez anos capitão
quiseram ter um porto livre entre duas potências, que do Uruguai, tive muitas batalhas contra a Argentina
eram o império português no Brasil e o império es- e, incrivelmente, sem me dar conta fui criando um
panhol na Argentina, mas historicamente temos uma respeito tão grande que fez com que nos últimos anos
semelhança muito grande. Por isso que eles sempre da minha carreira, todos os anos, a cada seis meses,
falam que o Uruguai é uma província argentina ainda. pelo menos Boca e River batiam na minha porta e
Diferentemente, do Brasil, o Uruguai teve movimen- perguntavam se eu queria voltar à América do Sul, à
tos internos revolucionários de liberdade que, por Argentina. Depois também Independiente, Racing, de
exemplo, o Brasil nunca teve. No Brasil, o filho do Rei outros times… Incrível, todos os anos. “A torcida te

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28
Um mate e uma volta ao mundo

adora, a torcida te quer…”, mas como se eu não tenho


nenhuma identificação com nenhum deles? “Não,
porque você vem pra cá, vai ser líder, vai ser capitão,
vai ser ídolo…” Incrível!

No final, você foi para o Cerro Porteño. Por que não


Argentina?

Porque eu considero que o futebol argentino é ideal


— tampouco fui ao Uruguai — para ir jovem. Para ir
jovem é ideal. Mas para ir velho já, com responsabili-
dades, não acredito que teria paciência. Eu não tenho
muita paciência — nunca tive, mais velho, então, me-
nos — para agüentar muita estupidez, sabe. Agüentar
a imprensa, invasões de torcida, essas coisas… eu fui
ficando sem paciência, e na Argentina essas coisas são
muito intensas. Os líderes têm que conviver com muita
coisa que tem que ter muita flexibilidade. Moleques
novos que já surgem com outra irresponsabilidade,
enfim… Há muitas coisas na Argentina — que é pa-
recida com o Uruguai — que você, quando está mais
velho, acho que você não está mais disposto a passar.
“Pelo Uruguai Essa é a minha visão e estou convencido de que, se
tivesse ido, teria problemas. Porque conviver com

ser um esse entorno já mais velho… Você já tem seus ideais,


sua maneira de pensar e você é assim e não muda,

mercado então não vai ser mais problema. Por isso que não
fui depois de mais velho, assim como não fui para o

pequeno, têm
Uruguai. O Paraguai foi diferente porque, enfim, eu
estava me recuperando de uma contusão, não sabia

que ir para
ainda se voltaria a jogar bola, porque o doutor me
falou que o joelho não dava mais, mas eu sentia que
dava pra ir mais um pouquinho. Então optei por isso
a Argentina do Paraguai.

para crescer, Você não se arrepende de não ter jogado na Ar-


gentina?

como artistas, Não… Mas fiquei com essa curiosidade, mas estava
convencido de que seria mais problema. Tenho uma
esportistas história incrível. “El Ratón” Ayala [Roberto Ayala],
que era um fenômeno, estava como diretor do Racing,

ou qualquer me chamou para ir para lá. Eu estava voltando da


Europa para o Brasil. Ele disse que “o Racing é um

outra time grande, com torcida…”, e isso eu conheço muito


bem. “A equipe vai ser boa. Armamos um time para o

profissão.”
futuro… Precisamos de um líder, uma referência, blá
blá blá…” Aí eu respondi: “Ratón, eu já tenho 33 anos,
34. Ir à Argentina agora é mais problema.”

Em 2013, seria?

Sim, por aí… “Não quero mais problema agora...”.


Sabe que na Argentina e no Uruguai, os jogadores
mais velhos são quem têm a imprensa muito mais em
cima, vão mais atrás de você, dão mais problema. Tem
que ser tolerante com um entorno muito idiota, com
invasão, dirigentes, torcida… “Não, mas aqui, Diego,
juro, venha.” “Não, Ratón…” “Não, Diego, aqui você
vai ser ídolo, o clube…” “Mas Ratón, [o problema] não
é o Racing, é a Argentina, por isso, isso e isso. Porque
já estou mais velho, não tenho paciência…” “Não, mas
venha, venha…” Aí eu disse “Ratón, não vou para a
Argentina.” Então diz ele: “Não venha nunca. Tem
razão. Tem razão, não venha nunca” [risos]. “Você
não sabe como me arrependo de ter voltado a jogar
aqui”, disse. Ou seja, primeiro ele fez o trabalho como
diretor esportivo. Como diretor esportivo tentou me
convencer. Quando eu disse que não, que estava con-
vencido, como ex-jogador me disse “que bem que

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Entrevista: Diego Lugano

você faz. Depois de velho não venha nunca.” É muito cultura nórdica que tanto sempre se fala… Então eu
invasivo, né. Bem, enfim, é preciso ter uma paciência fui um pouco mais [maduro], com 34 anos, com uma
especial. Mas, sim, fiquei com a vontade, talvez, de curiosidade de vida...
conhecer um pouco a liga argentina. O destino me
trouxe para o Brasil. Você escolhe um caminho, ou o Em quais meses você esteve lá?
caminho te escolhe. No meu caso me elegeu o norte,
o Brasil. Do final de fevereiro até julho. Lindos meses…

Você foi jogar por um time pequeno da Suécia, o Claro, você pegou o fim do frio…
Häcken…
Eu tive uma recepção incrível quando cheguei à Suécia.
Isso foi depois da Copa do Mundo [de 2014]. Eu fiquei No aeroporto havia cem uruguaios com tambores me
seis meses parado, desesperado porque não podia esperando e “paracatum” “paracatum” “paraca-
jogar mais. Tinha problemas no joelho, não podia tum”... Uma recepção como a de uma personalidade
mais, ia parar de jogar. Fiz um tratamento nos Estados nacional. Desde que cheguei foi tudo muito bom. Era
Unidos e eu sentia que não queria parar de jogar por um time médio com uma estrutura notável — isso
causa da contusão. Acho que o jogador se sente mais é o de menos — e a vida lá era espetacular. Aprendi
derrotado, né, quando uma contusão te para. Então muitíssimo com eles. Não me esqueço mais de uma
nesse período eu tive muitas chances de ir para a conversa que tive com o presidente do clube. Com isso
Argentina, Paraguai, para tentar voltar a jogar, mas eu resumo a minha passagem pela Suécia e só este
eu não queria arranhar meu prestígio em um time, papo já valeu meus cinco meses na Suécia. O presi-
talvez, todo fodido [risos], não podia nem correr. E dente do clube tinha trabalhado na FIFA anos atrás e
claro, a imagem de um jogador você cria por 15 anos naquele momento foi quando explodiu o “Fifagate”,
e ela desaparece em dois jogos. Então eu optei por ir que tinha uruguaios como o [Eugênio] Figueredo, blá
tentar longe, em um país que eu adoro, como a Suécia, blá blá… Então ele fala do tema: “ Eu não entendo por
porque eu sou muito curioso culturalmente, então o que essa avareza? Fazendo o correto eles [cartolas] e
futebol me deu essa oportunidade de conhecer mui- todo o entorno podem viver muito melhor. Não dá para
tos lugares. Eu adoro isso. Tem muitos uruguaios na entender, coitado do cara.” E eu xingando “filho da
Suécia, muitos uruguaios. É o país que tem a maior puta! Ladrões!”, e ele “não, não, coitado do cara. Por
colônia uruguaia no mundo. É um país incrível. Então que essa mentalidade tão pequena de querer sempre
eu tinha essa curiosidade. Eu aproveitei uma etapa tirar vantagem? Tirando vantagem você vai viver
da recuperação para fazer turismo e crescer cultu- igual, mas vai prejudicar todo o entorno. Então, em
ralmente. conseqüência, você vai viver pior”. Eu falava com essa
raiva, e ele com um altruísmo, tratava como coitado o
Mas como foi essa experiência? Eles te buscaram cara. Ele não entendia a corrupção. Não entendia. Eu
ou você os buscou? xingava, e ele não entendia. Claro, o povo sueco vive
num país, talvez, com menos índices de corrupção, o
Um contato me liga e eu falo “arruma um time pra povo vive melhor, porque ele não entende a corrup-
mim...” Um amigo aí, que está no futebol. Eu disse ção. “Por que fazer a coisa errada se eu posso fazer
“quero ver se ainda posso jogar futebol”, porque na certo? Se faço certo todo mundo vai viver melhor. E
América do Sul, o São Paulo já tinha me oferecido para se todo mundo viver melhor, eu também vou viver
voltar, todos os times argentinos, Cerro Porteño, Co- melhor. Não vai ser diferente para mim ter um ou um
lo-Colo, todos os times grandes do Brasil, da América bilhão. É uma vida só e temos que vivê-la bem.” Ele
do Sul, todos… Só que eu tinha cinco meses parado, e não entendia a corrupção. Não é que ele ficava puto,
o doutor tinha me falado que com esse problema de é importante ressaltar a diferença. Eu estava puto, eu
cartilagem era difícil voltar. Eu peso noventa quilos, entendia a corrupção. Ele não estava puto: “Coitado…
então não queria ir a um clube para, sabe, passar O cara nunca vai ser feliz…” Caralho…
vergonha e não conseguir nem correr. Como eu me
tratei, comecei a me recuperar, quis tentar e fui lá Ou seja, esse tipo de socialismo seria tão idiossin-
pro Häcken, para ver se o corpo respondia. Comecei crático deles, uma forma muito ampla do egoísmo,
devagar como um carro velho e… [risos] não te parece? “Se todos vão viver melhor, eu tam-
bém vou viver melhor”.
O que você achou de Gotemburgo?
Mas para quê roubar se o seu objetivo é que todos
Espetacular! Espetacular! Como Istambul, como Pa- vivam melhor? Não identifico como nenhuma ide-
ris, como Birmingham… Eu aproveito muito. A maior ologia política. São valores de vida. São valores de
coisa que o futebol me deu foi a experiência — dá a vida que fazem com que a sociedade viva melhor.
nós jogadores —, a oportunidade de viver… Não tem nada a ver com filosofia política, mas com
valores de vida. Eu falei “caralho…”. É por isso que
Nesse momento você já havia jogado em Istambul, esses caras aqui têm menores índices de corrupção,
Paris, Birmingham… maior qualidade de vida. Têm tudo de melhor e é por
essa mentalidade. Não é que o cara estivesse forçan-
O berço da Revolução Industrial… do. Ele não entendia. E ele tinha trabalhado na FIFA,
então ele sabia do que estava falando. Era presidente
E na Suécia, o que te impressionou mais? O que te do clube, empresário. Impressionante. E o futebol lá
assustou? O clima? é um futebol competitivo, estádios modernos. É uma
Na Suécia eu queria conhecer como funcionava um linda experiência. Visitei o norte lá, fui ver a Aurora
país socialista que realmente funciona, no mundo — Boreal, a cultura Sámi. Sámis são os “indígenas”
o único país socialista que realmente funciona —, a deles, que tem 2500 anos na região, eles vivem da
caça do cervo deles. Deixam eles morar no nordeste.

30
Um mate e uma volta ao mundo

Entre a Finlândia, a Noruega e a Suécia eles têm… nenhuma chance de ser jogador. Então eu fui campeão,
São como os “Sem Terra” daqui. Então eles deixam nesse ano, do torneio da minha cidade — amador
que vivam no nordeste, livres, como fazem há 2000 —; fui à seleção amadora da minha cidade. Eu me
anos. Eles vão só atrás do animal. Vão e voltam as inscrevi na faculdade, já tinha terminado o colegial.
temporadas caçando, comendo... Sámis… Muito legal, Comecei a faculdade e aí apareceu a oportunidade no
uma experiência enriquecedora. Nacional. Um olheiro do treinador do Nacional tinha
visto jogo do amador e escutado falar de mim. Ele
Antes de você ir para o Häcken, você estava nesse foi e me trouxe para o Nacional. Então surgiu com 18
período de recuperação, você treinou por um pe- anos, quase 19, a oportunidade de ser jogador, porque
ríodo no Plaza Colonia, do Uruguai. Nesse tempo antes, quando se é amador, treinando uma ou duas
em que você usou a estrutura deles… vezes por semana, seria impossível. Nem sequer era
meu objetivo. Então aí eu comecei a faculdade, e foi
A “falta” de estrutura, né… [risos]. quando o Nacional me levou para testar. Eu fiquei ali
jogando, já fiz pré-temporada, já fui ficando fixo, fui
...O seu rosto estampou a camisa do clube duran- pegando moral. Aí falei “bom, posso apostar um ou
te algum tempo, como forma de homenagem do dois anos nesta aventura aqui, para ver o que dá”. Era
clube… a primeira vez na minha vida que eu treinava todos os
Foi a única vez no mundo, acho, que isso aconteceu… dias, que treinava sério. Então me dediquei por isso.
Um ano e meio fui para Colônia [do Sacramento], blá
Por que isso aconteceu? blá blá, São Paulo, e aí… [risos]. A rotina mudou, o
planejamento de vida mudou bastante.
Eu joguei lá, com Diego Aguirre como treinador. Foi o
primeiro ano do Aguirre como treinador profissional. Mas essa experiência breve te deu um olhar dife-
No meu primeiro ano lá a gente foi muito bem, eu rente, para a sua carreira como jogador, alguma
fui capitão com vinte anos. Fomos vice-campeões coisa que te diferenciasse…
uruguaios, a primeira vez que [o Plaza Colonia] ficou
próximo da Libertadores, ganhou de times grandes, Não, não… Porque eu também tinha 16 anos saindo
como Peñarol e Nacional. Então foi uma campanha que do colegial…
ficou na história, a gente ficou carismático. Eu voltei Foi uma continuação do colégio?
depois para me recuperar ali porque, como eu fui por
dez anos capitão da seleção e muito identificado como Sim, tinha 18 para 19 anos na época.
líder da seleção, você não pode mais se envolver com
Nacional ou Peñarol, tem que ser da seleção, senão Então foi uma continuação porque já havia uma
você já começa a dividir. Por isso eu fiquei com muito orientação do colégio…
contato com o cara, sou muito grato na vida, muito
grato. E apesar de ser um time muito pequeno, eu devo Lógico… E familiar. Curioso, né. A curiosidade de sem-
muita coisa a eles. Fui ali me recuperar porque o trei- pre estar querendo saber ou entender o que acontece
nador é meu amigo, fui fazer uns treinos de futebol, ao seu redor. Acho que esses meses, pontualmente,
relembrar também, para estar no país um pouco. Aí não me deram nada de diferente, não. De diferente
foi idéia deles de jogar um torneio com a minha foto já tinha antes, no colegial. Era meu projeto de vida.
na camisa. Acho que foi a primeira vez no mundo. Até
depois foram campeões uruguaios, os filhos da puta Numa entrevista sua para o UOL, de 2018, você diz
[risos]. Quando eu fui estavam na segunda divisão. que o Óscar Tabárez mudou o jeito como a socie-
Foram campeões da segunda divisão, subiram e foram dade uruguaia via os jogadores da seleção e o modo
campeões da primeira divisão. Incrível. como os próprios jogadores se percebiam quanto ao
papel que eles tinham frente à sociedade. Qual era a
Foi um time que oscilou muito… imagem que a sociedade uruguaia tinha do jogador
de futebol, especialmente da Celeste?
Sim, mas segue oscilando porque você tem que ver, a
necessidade de estrutura é um desastre. É um desastre, O Maestro Tabárez também foi um sociólogo. Tal-
porque poderia ser muito melhor, mas a estrutura de vez em todo o mundo não haja nenhum treinador
futebol do Uruguai não permite que um time cresça. que tenha modificado tanto a conduta ou os padrões
É um desastre. O coração, a paixão e a cultura que sociais de um país como Tabárez, através de nós,
tem no entorno é muito boa. O que não permite são jogadores. O Uruguai, nas últimas décadas, havia
as regulamentações. caído em uma decadência importante do produto, que
falamos anteriormente; também em uma confusão,
Você começou a faculdade de Economia antes de confundindo garra, raça, às vezes com violência, in-
jogar pelo Nacional. disciplina. Enfim, muita paixão, mas às vezes pouca
visão sobre o que você representa como jogador da
Sim, antes… seleção, do alcance que você tem. Tudo o que falamos
anteriormente sobre o que significa a seleção para o
Quanto tempo chegou a cursar? seu país. Um país pequeno como o Uruguai a única
Dois meses [risos]. Eu terminei o colegial de economia chance que tem de aparecer para o mundo é através
de Canelones, na minha cidade. Eu jogava no meu do futebol. Para você ter uma idéia, no mundial de
time, que foi campeão da minha cidade. Até tenho 2010, quando a gente chegou até a semifinal, a pala-
fotos engraçadas de quando fui campeão com 18 anos, vra “Uruguai” no Google, nas redes sociais, multi-
mas se você com 18, 19 anos jogar no futebol amador, plicou-se por seis milhões de vezes no mundo. Isso
treinando uma ou duas vezes por semana, estudando equivale — em um estudo sobre o Uruguai aparecendo
e trabalhando, você não vai jogar bola, né. Não tem em vários meios em qualquer parte do mundo — a

31
Entrevista: Diego Lugano

cem anos de trabalho do Ministério das Relações


Exteriores de nosso país. Isso trouxe investimento,
turismo, entrada de capital… Uma coisa incomum.
Então o jogador tem que ter a mínima referência. Do
Brasil eu não vou dizer porque é uma potência por
si só, um país gigantesco. Mas e pro pequeno? Você
representa muito mais do que apenas chutar uma
bola. Tem que ter a mínima consciência quando vai
à China jogar, o que representa jogar na China para
o Uruguai. A nós, depois do mundial, fomos jogar na
China em 2011. Uns dez empresários diferentes, em
diferentes momentos, vieram nos agradecer porque
a gente permitiu, através do futebol, a entrada de lã,
trigo, carne, diferentes produtos ao mercado chinês,
porque os chineses não sabiam se Uruguai era da
América do Sul, se era da África do Sul, da Arábia… E
através do futebol começaram a ver esta cultura, que
o Uruguai tem uma forma de pensar, de se relacionar.
Você representa muito mais que um jogador de futebol.
E também para o seu próprio país, porque um jogador
da seleção em período de competições aparece mais
na televisão do que o presidente da república. Você
é mais assistido e mais ouvido que o presidente por
crianças, adolescentes, adultos. A gente teve essa
visão e [combinamos], na ponta do lápis com meus
companheiros — naquele momento com [Sebastián]
Eguren, [Andrés] Scotti, [Loco] Abreu, [Diego] Forlán
—, que o nosso comportamento dali para frente seria
sempre ganhar, perder ou empatar com total educação
para com o torcedor, em qualquer parte do mundo, a
qualquer hora. Com os jornalistas, total respeito —
apesar de estarmos putos —, com os adversários…
Até o que a gente tinha que falar, em que momento.
A gente tomou ciência do nosso significado para o
país, do que Tabárez queria de nós, e começamos a
partir daí um projeto de conduta, digamos, que você
vai alimentando no dia a dia, todo dia. Se você é uma
pessoa todos os dias, sempre, você cria um respeito
e uma recepção muito grande. E acabou que o povo
uruguaio vê a seleção como algo muito além de ga-
nhar ou perder. O uruguaio vê a seleção e diz “porra,
esses caras nos representam, porque se expressam
‘assim’, porque pensam ‘assim’, porque a conduta é
‘assim’, porque são pessoas ‘deste jeito’...” E essa foi
uma transformação incrível. O pessoal já não vai ver

“Talvez em todo
a seleção ganhar, perder ou empatar; vai ver o cara
que representa o país socialmente e culturalmente. E

o mundo não
isso fala o Tabárez. Ele é uma pessoa que, no meio do
futebol, não existe, está totalmente fora de contexto.
É um intelectual, é maestro de verdade na escola
pública do Uruguai. É uma pessoa com um intelecto
muito acima. Nunca você vai ver ele xingar, falar alto. haja nenhum
Está fora de contexto.
treinador
que tenha
O que ele falou exatamente? Como foi o convenci-
mento? O que ele disse e como disse?

Aí é que está: ele não falou muito, não. Primeiro, educa


com o exemplo. Segundo, ele foi colhendo os caras modificado
que ele entendia que podiam representar. Foi aí que
eu, com 25 anos, passei a ser o capitão mais novo da tanto a conduta
história de seleção uruguaia. Eu, com nove jogos na
seleção aos 25 anos, passei a ser o capitão da seleção ou os padrões
uruguaia.
sociais de um
país como
Rinus Michels perguntado como foi pra fazer para
que os jogadores se entendessem na Holanda revo-
lucionária de 1974, a resposta foi simples: ele disse
que tinha oito jogadores com um nível intelectual
Tabárez”
32
Um mate e uma volta ao mundo

“O povo muito mais alto que a média. Não foi a idéia que
ele tinha, e, sim, os jogadores que ele dispunha

uruguaio vê a
nesse momento. Você diz que o Tabárez também se
deu conta que tinha esses jogadores como Eguren,

seleção como
Scotti, você, Forlán, [Loco] Abreu, que podiam en-
tendê-lo sem fazer força, tantos gritos…

algo muito Exatamente. O que ele fez foi eleger líderes. Como
digo, fui capitão com 25 anos. É um momento muito

além de ganhar criticado, porque 25 anos capitão de uma seleção tra-


dicional como o Uruguai, com dez jogos na seleção, é

ou perder. O
impossível, impensável. Foi uma decisão muito criti-
cada, um momento de muita pressão, mas ele entendia

uruguaio vê a
também que precisava de uma mudança cultural. Para
você ver como é o Tabárez, uma vez, lá em 2009, na
Turquia, eu briguei em um clássico contra o Galata-
seleção e diz saray. Tive um problema do caralho, fiquei suspenso
sete jogos. O presidente Erdoğan falou que eu não

‘porra, esses era um exemplo, a torcida do Galatasaray queria me


matar, no estádio teve briga. Foi uma merda… Culpa

caras nos minha. E o Tabárez nunca, jamais, nunca liga para


ninguém, nunca chama ninguém, mantém distância,

representam’...
é muito respeitoso. Nesse dia ele me ligou. “Diego, eu
vi sua atuação aí na Europa, a repercussão. Sabe, ano

E essa foi uma


passado, quando eu escolhi você como capitão. Você
não é só capitão quando você representa o seu país
quando joga noventa minutos pelo Uruguai. Você está
transformação representando todo o tempo, a toda hora e em todo
o lugar. E eu não o escolhi pelo que você fez. Talvez

incrível.” eu esteja errado. Vou rever o meu pensamento a seu


respeito.” — como esse respeito assim mesmo —
“Talvez eu tenha errado ao ver você como um pessoa
que poderia liderar este processo”. “Pin!”, desligou o
telefone e não falou mais nada. Me convocou para o
próximo jogo dois meses depois, ainda me deu a faixa
de capitão, mas deixou a mensagem sem fazer muito
alarde, sem fazer público nada. E assim o cara vai
sendo firme e vai gerando uma conduta. Por exem-
plo: na África do Sul, em 2010, a seleção uruguaia foi
escolhida pela Academia Espanhola de Letras como
a seleção que melhor se expressou em língua espa-
nhola. Tínhamos seis ou sete seleções falantes de
espanhol, e o Uruguai foi a que melhor se expressou,
segundo a Academia Espanhola. Eu nunca vi um cara
tão feliz. Ele estava feliz. Quando ele me comunicou
isso, seus olhos brilhavam. Ele me chamou à parte,
formalmente, pediu cinco minutos para falar comigo
como ele sempre faz. “Eu quero comunicar a vocês
algo muito importante que me deixa muito feliz…”.
Me mostrou o prêmio: “O Uruguai nunca ganhou, é o
mais importante o que estamos fazendo, o que vocês
estão fazendo...”. Ele estava feliz! Estava feliz da vida.

Nada a ver com o futebolístico…

Nada a ver. Nunca uma vitória deixou ele tão feliz. E


ser campeão, e mundial… Nunca, os resultados ele
sempre levou com muito equilíbrio. Esta coisa, não.
Então ele vai plantando uma semente em tudo o que
ele vai fazendo. Hoje, em um país pequeno como o
Uruguai e em uma região como a América do Sul,
onde os valores estão a cada dia mais feridos — onde
você vê, a cada dia, mais falta de respeito, intolerância
—, a seleção uruguaia é um bastião, uma reserva de
valores. O povo vê isso, a política vê isso. É como uma
reserva, toda em torno da figura do maestro e dos
jogadores que ele escolheu, mas que não tem reflexo
no futebol interno.

33
Sobre a greve dos jogadores. Conta um pouco des- uruguaio começou a se estagnar. Quem controla o
se processo e se o Tabárez tem alguma influência futebol em um país como o nosso controla a cultura,
nisso, a partir da seleção, de levar essa conscien- controla a política — porque nenhum político mexe
tização para as camadas do futebol interno. Parece contra o monopólio que fatura milhões, que tem im-
que é uma liderança, primeiro, dentro da seleção, prensa, que tem televisão, que tem futebol, então
de revisar os contratos. Como isso chegou até você? político vira sócio, vira caixa 2. Foi-se gerando um
De que maneira? E como você transmitiu isso para sistema perverso que afundou todo o nosso futebol e
os jogadores locais? afundou a nossa sociedade, até porque os convênios,
as formas [de negócio] eram as piores possíveis. Há
É um tema profundo, longo e difícil de você entender, casos de tiros em jornalistas que opinavam contra [o
embora também não seja tão difícil, porque parale- monopólio]. Presidentes ou até ministro dos espor-
lamente foi o que aconteceu em todas as federações tes que opinavam que [as coisas] estavam mal eram
sul-americanas. A ver, o Uruguai era uma potência destituídos. Do Ministério do Esporte do país [!] eram
até o futebol se profissionalizar. Até o final dos anos destituídos. Mandavam embora do país ou para uma
1980, começo dos 1990 — quando apareceu a televi- embaixada de fora. O time que ia contra não recebia
são pagando muito dinheiro, apareceu o marketing o dinheiro da televisão e era rebaixado de divisão...
—, até aí o Uruguai era potência, quando os times se [Foi] uma coisa que virou uma…
bancavam apenas pela bilheteria ou pelos sócios; aí
Peñarol, Nacional, a seleção e os times do Uruguai Uma máfia…
eram potência na América. A partir do [momento]
em que o futebol passou a ser business, o Uruguai Uma máfia! Um sistema mafioso. Um sistema mafioso
infelizmente, nesse momento, teve diretorias ne- que por vinte anos foi se enraizando, foi criando um
fastas que fizeram, talvez, os piores e mais nefastos status quo e era intocável. Falo que era — a nível do
contratos, convênios, entregando tudo o que o futebol presidente do país — intocável. O único presidente das
tinha, como direitos, imagem, televisão, seleção, federações sul-americanas, no Fifagate, que saiu ileso;
camisa, ativos… Tudo… Questões digitais, tecnolo- o único que não teve um caso, nada contra ele; que as
gias atuais e futuras… Assim foi o contrato de 1998 escutas telefônicas de Hawilla, de Grondona, de Leoz,
que assinou o Uruguai: “Toda tecnologia atual e do de todos os caras que falam que o único cara [inocente]
futuro está entregue para vocês”, isso eu tenho de era Sebastián Bauzá, presidente da federação uruguaia
memória, “com o direito de prorrogar [o contrato] de 2009 a 2013, quando eu era capitão. Único cara
eternamente”. Inacreditável! Isso aconteceu em 1998. que saiu ileso. No Uruguai, o governo, que naquele
Então, você foi gerando um monopólio no país, e momento infelizmente era presidido pelo Mujica;
como todo monopólio traz consigo corrupção, falta o sindicato dos jogadores e o poder do monopólio
de desenvolvimento, falta de concorrência. O futebol derrubaram ele, porque ele queria — pela primeira

34
“Até o final dos anos 1980, começo
dos 1990 — quando apareceu
a televisão pagando muito
dinheiro, apareceu o marketing
—, até aí o Uruguai era potência,
quando os times se bancavam
apenas pela bilheteria ou pelos
sócios; aí Peñarol, Nacional, a
seleção e os times do Uruguai
eram potência”

vez em 15, 17 anos — abrir uma licitação para vender Godín tinha nome. Bem, Eguren, Abreu, Forlán… Ou
o produto, um artigo econômico da federação. Acho seja, a gente sabe disso tudo, que a gente estava dando
que era a televisão para a Copa do Mundo da Rússia, milhões para o sistema, porque indo bem a seleção,
algo assim. Ou seja, por ele querer abrir uma licitação estávamos fazendo com que os caras faturassem
para que entrasse mais dinheiro, acabaram com ele milhões, para alimentar essa podridão. Então a gente
judicialmente. Judicialmente quiseram fazer dele — seria tão covarde e tão responsável como todo o sis-
com declarações falsas — um cara corrupto. Inclusive, tema. Ou fazemos algo contra — ou tentamos fazer
os bancos do Uruguai chegaram a falar que a conta —, ou, do contrário, somos todos iguais.
da esposa dele tinha transferido dinheiro justamente
na época do escândalo de corrupção da Conmebol. E isso foi a partir dos jogadores ou o Tabárez teve
Os bancos oficiais do meu país, democrático como alguma…
o Uruguai, falaram que este presidente da federação
uruguaia tinha dinheiro suspeito circulando, e o cara Dos jogadores. Sempre dos jogadores. E aí começa-
ficou dois anos sendo investigado até que, em Nova mos… Contratamos uma assessoria com advogados
York, o FBI, revisando todos os dados e todas as es- europeus em 2013, começamos a ver contratos, a li-
cutas, se deu conta de que o único cara que nunca foi berar a imagem dos jogadores… Para você ter uma
corrompido foi no Uruguai. O que aconteceu: os bancos idéia do absurdo.
oficiais do país disseram “hum, foi um erro…”. Um
erro! Um erro! Que “essa conta era de uma mulher de E esse custo era bancado pelos jogadores?
outro nome”, e não a dele. Aí o processo judicial que Até hoje! Tudo bancamos os jogadores. Para liberar,
ele estava levando dentro do Uruguai, obviamente, para que entre dinheiro para o futebol. Assim come-
por declarações falsas, ficou congelado. E o cara saiu çou, e depois vieram muitas etapas na briga. Para você
limpo, mas obviamente se afastou do futebol. Óbvio, ver, em 1998, quando o [Eugenio] Figueredo assinou
né. A família sofreu, ele foi ameaçado de morte. Ele o tal contrato, ele cedeu a imagem dos jogadores…
tem um negócio, e foi ameaçado o negócio dele. Esse
é o futebol interno do meu país! Se esse cara quase foi O Figueredo foi preso…
preso por ser honesto, interveio o governo e houve
um aparato do monopólio para derrubar o cara, por Lógico! O Figueredo foi preso [no Fifagate]. Ele assinou
ele ousar querer licitar um ativo da federação uru- o contrato em 1998 e foi ele quem falou publicamente
guaia. Isso faz cinco anos, e não trinta. A família dele contra o Bauzá. A justiça uruguaia teve o Bauzá — o
foi ameaçada, o negócio dele foi ameaçado… Máfia! único cara honesto — em processo por dois anos por
A gente fala “porra!”. Eu era o capitão da seleção, causa das declarações do Figueredo, que estava sendo
reunimos os meninos: naquele momento, Suárez e preso pelo Fifagate. Incrível… Para você ver como o
o Cavani eram meninos, mas já estavam jogando… Uruguai funciona mal. Você entende o que eu tô te

35
Entrevista: Diego Lugano

falando? Figueredo foi quem entregou o monopólio, televisão até 2032! Isso foi em 2017! Quando viram
em 1998, já estava na Conmebol e depois foi vice na que estávamos fortes e falávamos sério…
FIFA. Este Bauzá tomou o poder em 2010, um cara
muito bom. Aí veio o Fifagate, o Figueredo vai preso. 15 anos de renovação…
Nos Estados Unidos conseguem que ele volte para o
Uruguai. No Uruguai ele depõe contra o Bauzá, porque Sim, 15 anos. A gente fez um estudo profissional que
o Bauzá também falava “você é o corrupto, não sou fala que o povo uruguaio, por ser muita classe média
eu”. A justiça uruguaia inventa uma conta do cara [sic], paga muito para ver futebol [na TV], diferente
no banco, e ele [Bauzá] fica dois anos publicamente do Brasil. O uruguaio paga pelos direitos, para ver
[caluniado], nos jornais… Ele foi destituído da fede- futebol, então são um milhão de pessoas seis, sete
ração uruguaia… dólares por mês. São setenta, oitenta milhões de dó-
lares por ano que o povo paga para o futebol. Sabe
Algum jogador sofreu algum tipo de assédio pare- quanto disso volta para o futebol? Dez. Dez milhões
cido com o que sofreu Bauzá? que são repartidos entre 25 clubes. De cinqüenta a
sessenta [milhões de dólares] ficam ninguém sabe
Eu, mil vezes. Fui ameaçado de morte, o meu filho… onde. Nós, jogadores, pedimos esse estudo profis-
Ameaçaram meus negócios no Uruguai. Publicamente sional, mas os clubes não quiseram ver. Estamos
eu fui ameaçado. Godín também, Suárez, Cavani… obrigando que os clubes ganhem dinheiro, porque
Eu mais, porque eu sou o “cabeça”, né. Aí depois, os assim podem pagar melhores salários, assim podem
jogadores uruguaios que nos acompanharam, todos, construir um estádio decente, um vestiário com água
ficaram sem clube no Uruguai. Os que acompanharam quente. É incrível. A mesma coisa aconteceu com a
essa greve em 2016… federação uruguaia: “Ei, Federação, tem a Nike aqui
oferecendo trinta milhões, por que [receber] só três
Os que jogavam nos clubes do Uruguai? [da Puma]?”, “Não, quero três, porque ela é minha
parceira faz tempo.” A mesma coisa acontece com a
Sim, que são os mais desamparados. Por isso que a televisão, acontece com tudo, né. É incrível! Pois a
gente assumiu o poder. Os mais fracos foram fican- gente vai entrando, você pensa que vai entrar pou-
do, muitos deles, sem clube, e na verdade a gente quinho, mas você vai indo, vai indo, vai indo, e fica
acha que isso está errado. Por isso, nós [jogadores] cada vez mais comprometido com o país, na verdade.
ingressamos em uma área que não conhecemos. De Com o país e com o povo, porque o povo uruguaio
política não conhecemos, de extorsões, de ameaças, merece outra coisa. O povo merece um futebol digno.
de corrupção… Só queremos fazer a coisa certa. Então No mercado sempre vamos ser menos que Brasil,
falamos “o que está certo? Isso. Então vamos fazer Argentina e Chile por questões de demografia, mas
as coisas certo”. Se você mexe nisso é como cutu- pelo menos dignos. Enfim, em 2018 conseguimos
car uma colméia. Todo mundo salta, vêm e “picam” que a FIFA interviesse na federação uruguaia, porque
você, porque você está prejudicando esses caras aí… teve problemas de corrupção de novo nas eleições,
Sem saber, né… Porque quando você fala “porra…” áudios de corrupção, o mesmo de sempre. A FIFA e a
Por exemplo, um caso famoso foi o da camiseta [da Conmebol intervieram na federação uruguaia assim
seleção uruguaia]. Fazia vinte anos que o Uruguai como fizeram em 2017 na federação argentina [AFA].
tinha uma camisa que ganhava zero. Zero! Porque Então começaram a refazer estatutos, coisas moder-
estava tudo entregue [nos contratos]. Então falamos nas, para que o futebol tenha outras regras, outras
“porra, a gente vai nos mundiais e não temos gelo, normas, seja mais democrático, mais transparente.
não temos vitaminas, não temos uma máquina para Mas, mesmo assim, os clubes não querem isso. Os
treinar, não temos alimentação adequada, não temos clubes foram ao TAS [Tribunal Arbitral do Esporte],
uma máquina para fazer fisioterapia… Vamos fazer acham que é uma invasão de privacidade. Pra você
com que a federação [AUF] nos dê esse dinheiro. Como entender a distância entre o Governo [do Uruguai] e
conseguimos esse dinheiro? Liberando o produto. os jogadores: os capitães da seleção, Godín, Suárez
Como ‘liberando o produto’? Cancelando os contratos e Cavani; os jogadores do Uruguai e os ex-capitães,
que gozam de mil irregularidades legais.” Só que os como eu, pedimos à FIFA para intervir na federa-
clubes locais não vão contra eles [da federação uru- ção uruguaia por “x” motivos. A FIFA interveio e,
guaia], porque estão todos acomodados ao status quo. imediatamente, o Governo, por meio do Ministério
Todos eles devem dinheiro, devem favores, tudo é da Cultura, emitiu um comunicado dizendo que de
tocado “por fora”, então só nós, jogadores, podemos nenhuma maneira iria permitir que a FIFA fizesse
entrar nessa guerra. E assim fomos entrando. Nós, uma intervenção a partir do exterior, blá blá blá.
através da nossa imagem, obrigamos a federação, Dali a cinco minutos, dez minutos — veja no Ins-
e se ela não seguir licitando cada produto publica- tagram, deve ter data de 1º de setembro —, todos os
mente, com auditorias, ela não vai ter a imagem dos jogadores da seleção, Arrascaeta; Nández, do Boca;
jogadores, ou seja, Suárez, Cavani, Godín. Eles não Cavani; Carlos Sánchez; Muslera… Todos! Todos di-
poderiam ter suas imagens transmitidas na televisão zendo: “Estamos totalmente de acordo. Pedimos
nem ser fotografados. A gente começou a briga por aí. e suplicamos à FIFA que intervenha na federação
Trouxemos uma oferta dez vezes maior do que a que uruguaia, para que revise isto, isto, isto e isto.” Então
já tinha pelo patrocínio da camisa [material esporti- o governo do Uruguai teve que recuar, né, porque até
vo], e os caras [da AUF] não queriam assinar. Tinham o presidente do país disse “Não, porque a FIFA tem
assinado a [oferta] antiga, dez vezes inferior, porque que intervir?” e aos 15 minutos todos os jogadores
era a do monopólio. Assim era com tudo. Essa era a [uruguaios] em todo o mundo disseram que estavam
ponta do iceberg. Assim eram os direitos de televisão. de acordo. Aí, obviamente, colocamos nossa pressão
Por exemplo, em 2017, quando a gente foi avançando, popular contra o governo. O governo teve que recuar
avançando, e os caras viram que estávamos fortes, e dizer “Vamos ver o que está acontecendo”. Mas
os clubes locais quiseram estender um contrato de estamos com o pontinho de luz vermelha bem aqui

36
Um mate e uma volta ao mundo

[na testa], a gente está desafiando muito eles. Esses


cinqüenta milhões que desaparecem do futebol vão
para onde? Campanhas políticas, advogados, juízes…
Esse dinheiro tem que ficar para o futebol! Que seja
tudo legal, tudo auditado, tudo transparente.

Projeta-se que a Copa do Mundo de 2030 seja sediada


por Uruguai, Argentina e Paraguai, uma candidatura
tripla, por causa dos cem anos da primeira Copa
do Mundo. Existe algum problema relacionado a
isso, internamente, que afete até mesmo a vocês,
jogadores e ex-jogadores?

Existe, sim. Porque, em um determinado momento,


pediram nosso apoio para fazer a Copa. Inclusive,
quando Suárez e Messi entraram com camisas alusivas
à campanha, antes de um Uruguai vs Argentina, em
agosto de 2017. Um dia antes do jogo, o governo e a
federação estavam pedindo pra gente ajudar, mas a
gente falou: “Como vamos ser tão hipócritas de apoiar
um mundial no Uruguai enquanto no futebol interno
está acontecendo o que está acontecendo?” Aí, naquele
momento, eles se comprometeram a não necessaria-
mente ajudar, mas a pelo menos não interferir mais
e tentar fazer com que a coisa avance bem. A nossa
história merece um mundial no Uruguai, merece,
porque o berço do futebol é ali. O presidente não me-
rece. A gente sabe que para trazer uma Copa, além dos
investimentos milionários — nesse caso o Uruguai
seria austero e não investiria nada —, no mínimo tem
que ter um futebol em que as regras internas sejam
decentes. Bom, pelo menos o que aconteceu durante
essa transição, nessa intervenção da FIFA —apesar
dos clubes do “status quo” de Montevidéu brigarem
contra — o futebol todo, os amadores, os jogadores,
os árbitros, os treinadores, está todo mundo de acordo
que uma hora tem que mudar isso. É um tema profun-
do que vem de décadas, que não é muito diferente do
que acontece no Brasil. A CBF, nas decisões, deveria
ter em sua assembléia representações de jogadores,
árbitros, treinadores, do futebol amador, porque a CBF
não representa só os vinte times da primeira divisão.
A CBF representa o futebol brasileiro. Se os times
profissionais fazem uma liga, como é na Espanha,
na Inglaterra e na Argentina, aí, sim, essa liga seria
mandada pelos clubes profissionais. Só que a CBF,
como a federação uruguaia, representa o futebol do
país, e o futebol são todos! Não são só São Paulo, Fla-
mengo e Corinthians. O futebol também é o Sergipe,
Maceió [Alagoas], são os jogadores… Então tem que
ter uma representação para começar a controlar, ver
e estar dentro das decisões. Isso é o que a gente está
fazendo no Uruguai vai ter, em breve, repercussão no
Brasil, na Argentina, no Chile. Com certeza.

O Uruguai sempre teve esse pioneirismo, sempre foi


mais avançado, digamos, nessas questões indivi-
duais e também coletivas. Afinal de contas, é o que
falamos da Suécia, em que o individual se confunde
com o coletivo. Casamento gay…

Vai no começo do século XX: oito horas de trabalho,


o Uruguai foi o primeiro; voto feminino, na América
foi o primeiro; abolição da escravidão, na América
Latina o Uruguai foi o primeiro, acho que até antes
dos Estados Unidos…

Educação pública universal…

Acesso universal à educação também. Obrigatória,

37
Entrevista: Diego Lugano

universal e laica. O Uruguai foi pioneiro em tudo


sempre.

Bem, essas mais recentes como casamento gay,


aborto, maconha…

Por último a “Lei Trans”... Essa aí tem muita gente


em desacordo…

Paradoxalmente, há uma liberdade da posse de


armas no Uruguai.

Sim, mas é preciso de uma liberação especial que


restringe muito. Não é tão livre assim.

Tal qual a maconha, certo? Não se compra assim,


de qualquer jeito. É preciso de todo um registro.
Parece a você que isso é um avanço, que são liber-
dades importantes e imprescindíveis?

Sim. Quando a Lei Seca apareceu nos Estados Unidos


nos anos 1920 de Al Capone, o governo do Uruguai
comercializava álcool. É a mesma coisa que fez ago-
ra com a maconha. Quando todo mundo proíbe, no
Uruguai o Estado comercializa, porque aí você evita,
obviamente, a criação do tráfico ilegal, clandesti-
no. Então tem uma história já o Uruguai. É diferente
dessa que já é mais ideológica do que racional. Como
a esquerda no Uruguai tem maioria no Parlamento
[em 2018], estão aprovando todas as leis ideológicas
de esquerda, porque estão vendo que na Argentina
tem o Macri, veio o Bolsonaro no Brasil, então há
um reflexo óbvio no Uruguai. Em 2019 tem eleição,
e o povo também está um pouco decepcionado com
muita coisa. Estão aprovando muitas leis — e eu estou
falando o que eu penso sobre elas —, que são direitos,
mas também são polêmicas. Uma metade do país apoia
e a outra não. Em um país laico como o Uruguai, que
sempre foi laico, onde as igrejas, diversas, não têm
peso nenhum — algo que nos diferencia da Argentina,
aliás, é a única diferença importante entre nossas
duas Constituições — o aborto legal dá liberdade,
mas se não houver a educação adequada também é um
perigo iminente, porque na realidade os abortos na
adolescência se multiplicaram por dezenas de vezes.
Deveria haver uma maior educação para prevenção do
que para resolver problemas depois de feitos, porque
a “cura” é a cirurgia do aborto. É muito polêmico isso,
porque se a liberdade é importante, quando ela não é
acompanhada de uma educação muito boa se geram
aí o que acontece no Uruguai, como seis, sete mil
casos de abortos de adolescentes. Em um país como
o Uruguai é muito. Tem gente que fala: “Mas antes
o aborto era clandestino”. É verdade, claro. Então é
difícil. A “Lei Trans”, que surgiu em outubro de 2018,
é polêmica. Não porque se reconhece o direito, mas
você reconhecer e pagar, porque você está pagando
um “salário” à população transexual, por outro lado
você também está discriminando ele. Por que ele não
pode trabalhar? Por que ele não pode ter a vida dele?
Se o Estado está subsidiando e pagando, o Estado o
está discriminando. Por outro lado, meu pai trabalhou
quarenta anos como empregado, como peão rural. Ele
tem os dedos assim [inchados] de tanto trabalhar. A
cabeça e o corpo com marcas de um trabalho de toda
uma vida. De aposentadoria ele ganha menos do que
os trans, por ser trans. Então aí não está errado? Assim
como o meu pai, há outros milhões de casos em que
não combina… Está sendo muito polêmico. Uma coisa
é você dar direitos. Tem que ter direitos, tem que ter

38
Um mate e uma volta ao mundo

liberdades. Mas até onde você está discriminando a Você comentou sobre o seu pai ser de esquerda,
outra parte da população? É um tema muito polêmico, por ser do campo e trabalhador rural. Antes você
rende muito debate no Uruguai. Acho que a melhor falou da sua relação com o Mujica, que você fez
maneira de você, justamente, respeitar é dar legal- campanha para ele…
mente os mesmos direitos para todo mundo. Se todo
mundo, todo ser humano, tiver os mesmos direitos a Não, não... Não fiz campanha…
ser respeitado e a ser livre, é a maior coisa que você
pode dar a qualquer grupo ativista ou de minorias. Dar apoio, digamos assim… Como foi isso?
Esse é o meu pensamento. Tudo tem seus dois lados.
Tudo é polêmico. Na verdade, na minha época de capitão da seleção,
quando a gente estava muito bem, era época do Mujica
Em comparação com o Brasil, onde cresce o discurso presidente do país. Então, inevitavelmente — no Uru-
mais conservador que vai de encontro a isso, ao que guai, historicamente, política e futebol têm conexão
faz o Uruguai, o Brasil faz um caminho totalmente —, a gente até se reunia várias vezes na chácara dele,
diferente, inverso… ele ia à concentração do Uruguai. Era um cara excep-
cional para falar de filosofia, um cara muito bacana
Mas no Uruguai isso tudo só foi aprovado porque a para conversar sobre muitas coisas. Então, em muitos
Frente Ampla tem maioria parlamentar, tem ideologia momentos eu apareci, como capitão, muito próximo
de esquerda, e tem pressa para aprovar muitas leis. a ele. É por isso que falam em campanha. Eu nunca fiz
Isso tudo dá muita polêmica. Por exemplo, querer que campanha para ele, nunca me posicionei, mas, sim,
um menor de idade possa decidir sem a autorização apareci… Acho que por ser duas figuras do país — o
do pai a mudança de sexo é uma coisa polêmica para capitão da seleção e o presidente —, tem que ter certo
caramba. É difícil pensar. contato, ainda que muita gente tenha entendido que
essa proximidade acabava sendo vista como campa-
Mas o que te parece melhor como ideal de um país: nha, né. Nunca foi minha intenção, apesar que nesse
que se possa debater ou que não se possa debater? momento eu também votei nele [Mujica]. Um tempo
depois, foi passando… A gente entrou nesses assuntos
Eu acho que é preciso debater. Não pode-se aproveitar de futebol, que inevitavelmente envolviam política, e
a maioria parlamentar para aprovar leis que, talvez, a luta nos encontrou em posições diferentes… O que a
a maioria do país não esteja de acordo, ainda que gente [jogadores] quer, que é romper com esse status
esses parlamentares tenham sido eleitos. Isso traz quo, libertar o futebol e gerar independência, trans-
conseqüências. Acho que uma lei nunca fará com parência, livre comércio, acabar com o monopólio,
que exista uma integração real ou um respeito real. acabar com uma assistência evidente, que o povo já
O respeito se consegue com respeito. Não com uma percebeu, dos partidos de governo… Então ficamos
lei. Uma lei, muitas vezes, discrimina mais do que um pouco em uma posição de enfrentamento sobre
ajuda na integração. Não sei se me faço entender. É isso da gente querer romper com um monopólio, e
uma imposição. Está sendo discriminado justamente eles, o governo, em grande parte querer protegê-lo.
quem está sendo beneficiado. É como se o governo me Por quê? Cada um que tire suas próprias conclusões,
desse dinheiro só porque eu jogo mais futebol [risos]. mas… tá… não sei se me decepcionei. Na realidade,
Não sei. Por que essa diferença comigo se somos to- não houve decepção nem “não decepção”. Em um país
dos iguais perante a lei? Esse é o debate que existe pequeno como o Uruguai, todo mundo está conectado
no Uruguai. É algo muito sensível. Não acho que se com todo mundo, todo mundo deve favores a todo
trata de ser conservador ou não. Acho que se perante mundo. Só nós, jogadores da seleção, que estamos
a lei somos todos iguais, quantas centenas de grupos há vinte anos no exterior, que ganhamos dinheiro
minoritários diferentes há dentro da sociedade que fora e investimos no Uruguai, somos os únicos que
também se acham no direito de pedir alguma com- não devemos nada a ninguém. Por isso que estamos
pensação porque, sei lá, em determinados setores nessa luta.
não são tão bem aceitos, tão bem vistos? A lei tem
que ser igual para todo mundo, por isso há uma cons- Havia uma simpatia inicial e depois houve dife-
tituição. Na hora que você começa a fazer exceções, renças…
cria-se um precedente perigosíssimo. É o que está
acontecendo, eu acho, com esse tipo de exceções que É… como eu posso dizer isso... No assunto que eu
estão sendo abertas, que o povo está criticando. Meu conheço mais profundamente do Uruguai, que é o
pai, esquerdista por toda a vida, porque sempre foi futebol, o assunto que estou mais compenetrado para
peão, trabalhador… Meu pai fala “Caralho, trabalhei tentar mudar, percebi que é uma distância enorme
quarenta anos das seis da manhã às oito da noite e [entre o futebol interno e o externo] e que nossa prin-
ganho menos de aposentadoria do que alguém que cipal assistência é o setor do partido do governo. Por
simplesmente quis mudar de sexo”. O que tem a ver? quê?! Não sei… Mas há mil casos que aconteceram e
Qual é o parâmetro? Então é isso o que gera divisões. seguem acontecendo. Por exemplo: com a intervenção
As liberdades, sim, há que se respeitar a liberdade de da FIFA, esse setor do governo foi o que publicamente
cada um, total. Mas fazer diferenças perante a lei é falou que “não queremos intervenção aqui nesse
perigoso. Parece que foi sugestivo até, porque se você país, na federação uruguaia…”, quando a federação
dá mais [dinheiro] a alguém que trabalha, então qual uruguaia pertence à organização do futebol mundial,
é a mensagem que você dá pra sociedade? É louco, é que é a FIFA, né. Não tem nada a ver com a soberania
louco. Na verdade eu não consigo entender cem por do país. A federação uruguaia…
cento ainda o que está acontecendo. Não sou um es-
tudioso muito profundo do tema, vamos deixar claro. Autonomia…
Estou falando pelo que leio, por algum comentário
que ouço. Tenho familiares na imprensa... Autonomia, claro. Não tem nada a ver com assuntos
ideológicos. E nós, jogadores, tivemos que imedia-

39
Entrevista: Diego Lugano

tamente, publicamente, dizer que pedimos, implo-


ramos que investiguem. Então tá… Sobre esse tema
político eu não sou muito conhecedor para entrar em
debates e falar, mas esse episódio específico… [longo
suspiro]. O povo mesmo ficou muito decepcionado,
porque na realidade a gente quer transparência, gestão
aberta, a gente quer que todo mundo saiba o que está
acontecendo…

Diálogo?

Não, não… Leis! Que não haja corrupção, que os con-


tratos sejam assinados sobre a mesa, que tudo seja
auditado, seja licitado, que o futebol gere o máximo
possível [de retorno]. Como gerar o máximo possível?
Com livre comércio, com transparência, com gente
idônea. Que o dinheiro volte aonde tem que voltar, que
é para o futebol, aos clubes, à federação, que isso gere
benefícios em salários, em infra-estrutura, em um
melhor espetáculo para a torcida, para melhorar os
resultados internacionais. É toda uma cadeia… E tem
travas, travas do governo. “Tirem suas conclusões”
por quê? Mas são vinte anos, né. Vinte anos são muita
coisa em um país pequeno como o nosso. Foi foda. É
muito pequeno, sabe, você fica muito…

A coisas reverberam muito rapidamente…

Sim, e tudo está interligado, tudo está em contato. É


foda. Eu e o Luisito Suárez temos um grupo de What-
sapp com todos os capitães da série A e da série B do
Uruguai. O Suárez, antes de um Barça-Madrid no
Camp Nou… Não, foi no Bernabéu… 45 minutos antes
do jogo ele mandou mensagem ao capitão do Torque,
depois dele ser demitido. Disse “eu te falo a você que
você vai cobrar [o dinheiro]”. Foi um dinheiro que a
gente “liberou” da federação, nesta briga, a gente
doou para a segunda divisão, onde os clubes esta-
vam com quatro meses de salário atrasado. Foram
oitocentos mil dólares. Eu não estava na seleção aí.
Eu sou o “cabeça”, mas já não cobrava. Ele [Suárez]
cobrava! Os caras doaram para a segunda divisão oi-
tocentos mil dólares! Todos os jogadores da segunda
divisão cobraram quatro salários mínimos. O Suárez,
antes de entrar com o Barcelona no Bernabéu para
um clássico, diz “fica tranquilo”... Caralho! Vê se o
Neymar vai fazer isso. Vê se o Messi vai fazer isso.
E ainda acho que ganharam de dois a um, com um
gol dele… É outra parada. Um comprometimento,
um altruísmo… No vestiário do Bernabéu, antes de
entrar em um clássico, ele estava em uma discussão
ali, brigando por um colega. Os jogadores da segunda
divisão entraram em campo, à época, com um cartaz
escrito: “Obrigado, craques, por não se esquecerem
da gente”. Também tem uma foto no Instagram, de
Godín e Suárez, um clássico entre Atlético de Madrid
e Barcelona no Camp Nou, entrando com uma cami-
seta [onde estava escrito] “#másunidosquenunca”.
Esses “monstros” estão preocupados em entrar em
uma briga com gente mafiosa, que te ameaça, que
tem muita imprensa [a favor]. Eles têm a imprensa,
né. Claro, vinte anos de monopólio, as manchetes
contra nós também são fortes: “Eles querem ficar
com o futebol uruguaio”, “Os caras levam o dinheiro
daqui”, sempre com baixarias. Mas a gente está por
cima disso. A gente está em uma briga grande.

Como você encara a transição pós-Tabárez na se-


leção uruguaia? Isso já está em curso?

40
Um mate e uma volta ao mundo

41
Entrevista: Diego Lugano

Vai ser muito difícil. Muito difícil porque… vinte horas por dia. Para isso, tem que ter uma paixão
e um comprometimento muito grandes que eu, hoje,
Você não enxerga uma pessoa? não tenho. Eu me cansei do futebol. Vinte anos! Vinte
anos de carreira, 15 como capitão da seleção fazendo
Muito difícil. O mais similar pode ser o [Diego] Aguir- todas essas merdas que falei agora há pouco. Sem-
re, Fabián Coito — treinador do sub-20 que tem um pre! No São Paulo é igual. Na Turquia também. Há
perfil de gente de bom nível... esse desgaste do tempo. Então, hoje, eu falei “puta
merda, não poderia dar essa intensidade mental e
Está tudo integrado, né? A seleção sub-20… de tempo ao futebol. Hoje [em 2018]... Mas eu vou ao
Tudo integrado. É o segredo por causa do qual o Uru- São Paulo e até tento não ir muito, ou não ir sempre,
guai consegue ser competitivo. porque eu quero me focar em outra área do clube. Só
que é impossível você ir e não dar um palpite. Eu sou
No Footecon de 2010, no Copacabana Palace, no Rio, consultado pelos meus companheiros, consultado
logo depois do mundial, comentou isso, que parte pelo Raí, pelos jogadores, pelo treinador… E é óbvio
da “revolução”, digamos, na seleção foi integrar os que eu tenho uma visão muito ampla do que acontece
juvenis com o profissional, que não poderiam ser no futebol. Uma visão que não se estuda em nenhum
tão separados. curso. Isso é óbvio. Daí a ter a intensidade mental
para me dedicar por tanto tempo... Por enquanto eu
Desde a sub-15 até o capitão da seleção principal, o tra- me vejo longe disso. Por enquanto.
tamento é o mesmo, a responsabilidade é a mesma…
Ele [Tabárez] criou em todo mundo um respeito, com A família pesa nisso?
saudações, educação, valores, conduta. Da sub-15 até
o profissional. O Cebolla Rodríguez deu um soco no Pesa, pesa a família, pesa o fato de eu também querer
[Gabriel] Heinze, no último jogo com a Argentina nas um tempo para mim, viver um pouco a minha vida, ter
Eliminatórias, e não foi à Copa do Mundo da África tempo para viajar, para… Não consegui desde que parei
do Sul. Perdeu a Copa do Mundo da África do Sul. O [de jogar]. Não consegui, ainda, ficar de bobeira. Mas
maestro não o perdoou. [Foi] firme! E a gente pedindo pelo menos tempo para, sei lá, fazer o que eu quiser,
“por favor, o Cebolla é o melhor que temos”. Naquele me dedicar ao que eu quiser. Hoje, como treinador,
momento tinha 25 anos, aquele era o grande momento você tem que ser um cara muito mais dedicado do que
dele. Não tinha mais jogador para substituí-lo, mas antes, porque os jogadores percebem imediatamente
ele não o levou. É “assim e assim”, firme pra caram- se você não está atualizado. Hoje o jogador conhece
ba. Dentro da educação dele, é firme e inflexível. A mais, por isso que ser aquele treinador “boleirão”
figura dele — tão firme — gerou uma blindagem que de antes é mais difícil hoje. Os jogadores percebem
ninguém nunca mais vai ter. Vai ser difícil. na hora…

Você vê o Aguirre como um sucessor? Sobre sua a família, ela se sente muito bem em São
Paulo. A Karina [esposa] falou, e pareceu bastante
Sim, todo mundo vê, assim como o Fabián Coito… O cômoda aqui.
problema também é ver quem quer pegar a seleção
depois do Tabárez. Tá difícil. São Paulo fica suficientemente perto e suficiente-
mente longe de Montevidéu [risos]. Então é um ponto
E você não tem mais vontade de se envolver mais ideal, além do que é uma cidade incrível, uma vida,
ainda e assumir a seleção um dia? uma dinâmica, uma cidade boêmia… A gente, desde
que voltou, está muito adaptado aqui e dificilmente
Já estou envolvido há mais de doze anos. Olha tudo que a gente pensa em voltar [para Montevidéu]. Não sei,
estou falando a vocês… Eu fui pra Copa do Mundo da pode acontecer muita coisa, mas moramos dez anos na
Rússia agora. Estou envolvido mil por cento. Gostaria Europa — obviamente mais distante de Montevidéu.
de estar menos, mas eu não posso. Se a gente baixar São Paulo é mais “perto e longe” e aqui tem uma vida
a guarda, os caras acabam com o futebol. muito mais livre do que em um país pequeno como o
Uruguai. Aqui a minha figura pode viver.
No imaginário de quem acompanha futebol, pelo
menos no Brasil, o caminho natural para um ex-jo- Você consegue ter uma vida social, mesmo com a
gador — zagueiro, capitão, assim como você — é idolatria da torcida do São Paulo?
um dia ele virar técnico. Apesar disso, não foi esse
o caminho que você seguiu. Logo da sua aposen- A idolatria é incrível, é imponente, mas São Paulo
tadoria, o São Paulo o convidou para ser dirigente. é uma cidade muito grande, então você consegue.
Por que não seguir sua carreira como técnico? Com a mesma imagem eu tenho em Montevidéu, no
Uruguai. Mas o Uruguai é menor, então para ter uma
Hoje eu não tenho isso como objetivo. Porém, eu fiz a rotina é mais difícil.
Licença B, agora, no curso da CBF. Fiz porque tem que
fazer, para ter. Hoje não tenho como objetivo. Hoje não Em Montevidéu você tem mais dificuldade?
me vejo com a paciência de dar ao futebol o tempo que
ele requer a um treinador. Um treinador não é mais Sim, porque em um lugar pequeno você vira um “alvo”
como era dez anos atrás. Hoje um treinador tem que mais fácil. Aqui em São Paulo é muito maior, né.
ser quase “esquizofrênico”. Tem que estar todos os Aqui você consegue até sair na rua, então.
dias vendo vídeos, assistindo informação, controlando
clube — jogadores, base, departamento médico, tor- Sim, consigo. Sempre tiro fotos, sempre tem pessoas
cida, diretor. Tem que ser “esquizofrênico”! É o perfil que vêm aqui. Em qualquer lado sempre tem gente
do Simeone, do Guardiola. É o perfil do Rogério Ceni! que se aproxima, mas é sempre.
É o perfil do Tite, de caras que, na verdade, dediquem

42
Um mate e uma volta ao mundo

Como é a sua vida depois da aposentadoria? Você uma cultura milenar, sofrida, patriota — apesar de ser
vai à padaria? Você faz as coisas normais? um país novo, já que tem noventa anos a Turquia —,
mas a cultura, não. A cultura e a raça têm 1500 anos.
Eu evito, mais ou menos. Eu vou ao clube, vou ver os Nunca entendi porque têm tanta paixão por futebol,
meus filhos [na escola], tento ter uma vida mais ou quando eles não têm, no contexto europeu e mundial,
menos normal. São Paulo ainda me permite fazer representatividade para ter tanta paixão assim como
isso. É óbvio que não vou a lugares muito populares tem o Uruguai, o Brasil e a Argentina, onde isso se
ou públicos. Em uma manifestação na Paulista, a três justifica. Aí você vai ver que eles são apaixonados por
quadras daqui, eu não posso ir. Se for, vou disfarçado. natureza, são apaixonados por qualquer ideal, são
Quando vou a um show, também ponho um boné, idealistas. Eles são apaixonados pelo seu país, por
mas só pra ter um pouco de tranqüilidade. Mas São seu partido político, pela bandeira do time. Eles são
Paulo é tão grande que qualquer um consegue viver. apaixonados por qualquer causa. Não é só no futebol,
Falam que no Rio de Janeiro, em Porto Alegre e em é cultural mesmo. Fui jogar uma partida com um time
Belo Horizonte já é diferente, mas São Paulo te permite turco na Sérvia ou na Grécia…
viver. É muito grande, se dispersa a cidade, então você
sempre encontra gente que te conhece, mas cada um Turcos e gregos se odeiam...
na sua. Isso também é uma vantagem. Isso também é
uma desvantagem de Montevidéu, que é menor, onde E sérvios também. Ali você vê o ódio. Você diz “cara-
o assédio é mais intenso. lho”. A gente acha que um clássico Uruguai e Argentina
é forte. Nós não existimos, não tem nada a ver. Um
Fale um pouco das suas percepções de Istambul, de ódio no olhar…
Paris. No início você já falou da Suécia, fale agora
um pouco dos outros lugares onde você já esteve. A partir dos turcos?

Istambul foi a cidade mais mágica onde a gente já De todos. Dos Sérvios também, sim. Os sérvios tam-
morou. Mágico, mágico. Claro, é também porque mo- bém. Eles dominaram sérvios por oitocentos anos. E
ramos cinco anos lá, dois filhos meus nasceram lá. falam que eles eram cruéis, odiavam. Era um clima
Esportivamente foi muito bom pra mim. Me adoram de ódio! Não de guerra, mas de ódio. Você chegava
lá, me adoram. Tudo isso conspira para que eu tenha de ônibus e via os sérvios te olhando, repudiando
uma visão muito melhor da cidade. Mas, mesmo as- oitocentos anos de invasão, de tortura, de estupros
sim, Istambul é espetacular. A gastronomia, a natu-
reza, a cidade, a cultura… E os turcos fazem as mesmas coisas com os curdos,
com os armênios. Fazem o contrário.
É um caos. É caótica…
Então você diz “essa nossa rivalidade aqui não existe”,
É um caos lindo. A história da cidade: Constantinopla é porque lá você vê no olho, estão transmitindo gerações
a cidade mais importante da história da humanidade. e gerações de sofrimento. Aí eles falam daquele que
Por ali passou a história da humanidade! traiu o Império, o outro diz “se não tivéssemos domi-
nado, iriam nos matar”. É uma coisa cultural, racial,
Não sei se você compartilha desse sentimento, mas pesada, que contamina o futebol quando competem
no editorial da Corner #5, falo que é um dos poucos entre si. Aí você começa a entender um pouco como nós
lugares do mundo que, do simples fato de estar ali, somos novos no mundo. Argentina, Uruguai, Paraguai:
você vê a história. as nossas diferenças são ridículas em comparação à
história desse povo. Aprendi muito. Aprendi a res-
Você se dá conta da história, é incrível. Imponente, peitar muito. Eles sabem que eu me interesso muito
é imponente a história. E essa cultura se respira. Fui pela cultura deles, então também fui muito respeitado
lá há vinte dias, não ia fazia seis anos. Voltei depois por isso. Eu aprendi muito, menos o idioma [risos],
de seis anos e houve uma homenagem incrível. Lá porque tem muito brasileiro lá e também porque eu,
eles dizem que sou mais ídolo do que no São Paulo para idiomas, sou péssimo. Mesmo assim teve uma
e no Uruguai. comunicação legal. Incrível. Mágico. Lá se respira,
não sei, algo diferente.
Sentem saudades suas lá.
Misticismo.
Sim, e a minha família também gostou muito da vida
lá. Por ali passou toda a história da humanidade. Para Exatamente. Se respira misticismo. E eu, hoje, sou
quem gosta de cultura… parte dessa cultura. Como eu disse, me adoram, me
reconhecem. O futebol é incrível. E conhecem o Uru-
E com o idioma turco, como você fez? guai: a primeira exportação de gado para a Turquia foi
porque eu estava lá. Eu fiz o contato do governo uru-
Não aprendi [risos]. Obviamente, primeiro eu morava guaio com o governo turco. Coisas que você aprende:
em um país muçulmano. Então começar a ouvir a o Uruguai, em 1960, foi o primeiro país do mundo a
história a partir do outro ponto de vista, diferente reconhecer o genocídio armênio. Para eles [turcos] é
do que eu sempre ouvi… No Uruguai eu fui criado em como uma punhalada, então não existe relação entre
uma família católica, fiz até escola católica. Ao ouvir Uruguai e Turquia, não há embaixada nem consulado.
a história, a mesma história, de outro ponto de vista, Tive dois filhos lá e não encontrei nenhum cônsul
você vê que os seres humanos são todos iguais. Se acir- uruguaio, tive que fazer os documentos com o pas-
ram as coisas diferentes, mas o objetivo e a sensação saporte italiano. Eu fui a primeira imagem respeitada
são os mesmos. Tenho mil histórias sobre coisas que do Uruguai novamente na Turquia. Eu não entendia
ouvi, que aprendi, que aprendi a respeitar. Desde o lado por quê. Quando fui saber…
religioso ao cultural, da história guerreira deles, de

43
Entrevista: Diego Lugano

“Istambul
Então você não é um jogador, é um diplomata.

[Risos] Claro! É que num país como o Uruguai, o jo-

foi a cidade
gador de futebol é um embaixador, um diplomata.
Também no Brasil e na Argentina, mas em um país
pequeno é muito mais, óbvio. Por isso que a respon-
sabilidade é muito maior. Claro! Eu nunca entendi. No
Uruguai tem muito armênio, assim como no Brasil e mais
mágica
na Argentina. O Uruguai, principalmente, tem muito
armênio, até no governo. Puts, eu não entendia por
que, pros turcos, não existia o Uruguai. Não existe!

onde a
Não tem nome. Era o Lugano e agora o [Fernando]
Muslera. Depois eu fui entender como a história pesa,
né.

E como você foi o visto, a permissão para trabalhar


na Turquia? gente já
Como italiano. Mas eles não fecham a fronteira, eles
permitem a entrada de uruguaios na fronteira, não
tem problema. Só que não há contato consular. Zero.
morou.”
Ou pelo menos não havia.

Nem embaixada?

Não, nunca vai haver! Agora acredito que estão se


abrindo… Depois de haver as importações de car-
ne, está tendo um pouco esse contato. O presidente
Erdoğan falou que iria, quando for visitar o Brasil e
a Argentina, ao Uruguai. Mas no Uruguai ainda tem
muita rejeição, porque tem muitos armênios. Não sei o
que vai acontecer. É um assunto que... Puta que pariu!

E depois você foi a Paris. O lado futebolístico não


foi tão bom para você, mas foi uma transição justo
quando chegaram os xeiques, não?

Fui a primeira contratação, junto com o Pastore, pelos


xeiques. Na Turquia era um povo e uma torcida passio-
nais, onde você não tinha tranquilidade nenhuma para
andar na rua, onde você era totalmente endeusado,
a sua família era reconhecida. Lá você vive uma vida
numa bolha. Você é tão reconhecido dentro da socie-
dade que se você fosse a um lugar, a um restaurante,
e não tivesse lugar, eles tiravam o presidente do país
para colocar o Alex ou o Lugano. A mesma coisa com
as nossas famílias. E isso não é real! Não é real você ir
para a escola e os outros abrirem um tapete para você.
Os táxis no aeroporto te levam de graça. Na rua, num
bairro mais pobre, o torcedor reconhece seu filho e
começa a [apertar suas bochechas]. Um turco com um
bigode [grande], feio, com uma cara de mau começa a
brincar com as crianças… Morávamos em um mundo
de mentiras, numa bolha. Na França era totalmente
o inverso: uma torcida fria, distante. São totalmente
individuais. Totalmente. Eles têm pouca cultura de
futebol, há pouco reconhecimento. Eu cheguei junto
com o Pastore como os primeiros contratados dos
catari, em um momento de transição total do clube.
Imagina um clube de Paris — imagina como são os
franceses —, comprado pelos cataris, onde o geren-
te é um brasileiro [Leonardo], em que as primeiras
contratações caras eram um uruguaio e um argen-
tino. Era contra tudo o que um parisiense queria, né.
Então esse ano foi complicadíssimo, mas me levaram
para isso, na verdade: para fazer a transformação do
vestiário, para começar a exercer a minha liderança
e o meu carisma, um pouco, nesse aspecto. No meu
primeiro ano eu joguei muito, muitos jogos, até que
eu me machuquei. Fomos vice-campeões [france-

44
Um mate e uma volta ao mundo

ses] e voltamos à Champions League. Não foi um ano


ruim. Esportivamente foi bom. Foi difícil no vestiá-
rio porque foi uma transição, os franceses também
não aceitavam muito que viessem jogadores de fora
ganhando dez vezes mais do que eles. Foi tenso, mas
depois foram chegando Thiago Silva, Thiago Motta…

Você ficou um ano e meio lá e depois foi pro Málaga.

Sim. Depois que o Ancelotti chegou eu comecei a jogar


menos e fui pro mercado. Mas foi um ano e meio muito
bom, né. Muito bom. Esportivamente, dentro de Paris,
dentro do clube, talvez tenha sido o vestiário em que
eu tive mais influência. Até hoje me reconhecem, tanto
que, quando fui embora, o diretor do PSG manteve
prática de contratar jogadores com o “perfil Lugano”.
Dentro do clube talvez tenha sido onde eu tive mais
influência, com esses jogadores com quem joguei.
Fora dele, por não ter tantos títulos e não ter tanto
tempo de casa, não teve tanto reconhecimento. Mas
dentro do clube acho que ajudei muito na transfor-
mação do vestiário, do clube… Ajudei bastante. Eu que
tive que fazer a integração de todo mundo lá. Eu sofri
muito, no começo, porque era o estrangeiro que fazia
parte do novo projeto. Então, puta… Foi complicado.
A imprensa mesmo me rejeitava. Os companheiros
não me rejeitavam, mas não aceitavam. A torcida…
Foi foda! Foi foda.

Mas Paris era uma cidade em que você podia andar


na rua?

Perfeitamente. [Uma cidade] totalmente difícil para


morar, na questão familiar, porque naquele momento
o clube não oferecia estrutura nenhuma. Eu já tinha
três filhos. Para eu os inscrever em uma escola euro-
péia eu tive que correr atrás para caralho, o clube não
ajudava em nada. Para conseguir alugar [uma casa]
fiquei quatro, cinco meses pulando de apart-hotel em
apart-hotel, indo na escola, para cá, para lá, jogando...
Uma merda! Essa foi a minha maior transformação
nesse clube. Porra, você não pode trazer um joga-
dor — pagando “x” — como eu e deixar assim, “na
rua”. Eu perdi seis meses lá em Paris. Os seis meses
em que mais joguei, eu perdi a minha cabeça em um
desgaste tremendo para me arrumar socialmente. Um
desgaste… E ninguém te ajuda lá em Paris. Porra, se
o jogador tem que render o máximo em um período

“Num país curto, tem que dar uma estrutura. Foi a maior dis-
cussão que eu sempre tive com o Leonardo. Aí depois

como o
começaram a vir os brasileiros e comecei a ajudar. Aí
eu acho que o clube fez uma estrutura um pouco mais
séria, obviamente, depois disso. Fiquei seis meses

Uruguai, o
morando quase como nômade.

Era falta de tato ou era realmente a postura do clube?

jogador de Não, o clube não tinha estrutura, tinha falta de tato


e a cultura deles é assim. O francês é muito “indivi-

futebol é um
dualité” [risos], cada um faz a sua, como tem que ser
também, né. Só que, no futebol, você chega e já tem
que render. Ainda mais com três filhos, como era o

embaixador,
meu caso: tem que levar na escola, tem que arrumar
uma casa, tem que arrumar seguro de saúde pública,
etc, e você não ganha nada, zero ajuda. Você ainda

um não fala o idioma... Incrível! Como pode ser assim no


PSG? Se eu venho sozinho, tudo bem.

diplomata.” Você começou a namorar a Karina com quantos


anos?

45
Entrevista: Diego Lugano

16, 17.

E ela?

15.

E ela já te pressionou para sair de algum lugar, para


ir para outro lugar? Ela teve alguma influência em
alguma mudança?

Ela sempre me acompanhou. Ela só ficou muito cha-


teada quando fomos morar em Istambul. Até hoje me
cobra por que fui embora se estávamos tão bem lá,
poderíamos estar até hoje. Até hoje ela me cobra. E
talvez, por incrível que pareça, em Paris, por todas
essas dificuldades, não se sentiu tão confortável, não.
Mas, igual, mesmo assim me acompanha a todos os
lugares. Isso é legal também, na vida de jogador, por-
que você acaba convivendo e vivendo muitas coisas.
Você aprende junto, cresce junto. Então ela é como eu,
tranquila, gosta de São Paulo, então nunca teve uma
influência negativa, sempre positiva. Uma cobrança
normal, né: [risos] até hoje: “Por que fomos embora
de Istambul?”

E a Birmingham, ela também te acompanhou?

Sim, claro.

Porque foi toda uma mudança: estava em Paris,


depois foi para Málaga por seis meses…

Birmingham também é muito boa. É perto de Lon-


dres, o inglês é diferente do francês, o clima é mais
complicado, porém eu queria jogar a Premier League
antes de voltar para a América do Sul. Queria jogar,
queria essa experiência. Existiram muitas possibili-
dades disso antes, mas eu estava bem no Fenerbahçe,
também não queria sair. Mas antes de voltar, queria
jogar a Premier League.

Você achou o que buscava lá?

Sim. Esportivamente, sim. Incrível.

O que você buscava lá?

A experiência de viver um futebol ultra, hiper profis-


sional. É um espetáculo. O futebol na Premier League
é um espetáculo. Porém, os clubes pequenos, como em
nenhuma parte do mundo, são geridos como empre-
sas, onde, na ponta do lápis, o importante é que não
se fique no vermelho no final do ano. Os resultados
esportivos são menos importantes. Aprendi isso. Eu
escutava, por exemplo: o Bromwich era de um grupo
investidor e se fazia praticamente todo o elenco, os
times, de acordo com o business. Se um jogador tinha
direito a prêmio por jogar cinco jogos consecutivos,
no quinto jogo ele não jogava mesmo que fosse um
craque. Se você jogava vinte jogos em um ano, e au-
tomaticamente o salário se multiplicava, o vigésimo
jogo você não jogaria mais, lógico. Fiquei pensando
sobre isso. É empresa, business. Business. Como tem
um nível bastante equilibrado entre os jogadores, falei
“caralho”. Nesse aspecto não era o que eu esperava,
mas faz sentido. Depois você tem toda uma estru-
tura espetacular para trabalhar, os jogos montados
perfeitamente. Um espetáculo tremendo. E a vida
de Birmingham, a cidade da Revolução Industrial,
é uma vida… Enfim, a cidade é a segunda maior da
Inglaterra, tem muitos paquistaneses e indianos lá,

46
47
Entrevista: Diego Lugano

por ser uma cidade industrial. Tem muita história. momento. Quando da suspensão do Suárez, teve uma
Andamos por toda a Inglaterra. Foi uma experiência pressão midiática importante do Brasil e da Inglaterra
muito boa. Experiência boa. Depois da Copa [de 2014] — de onde vinham muitas imagens —, e houve por
eu me machuquei e não pude voltar. parte da FIFA uma não defesa, absolutamente, porque
eu sei. Isso porque naquele momento, justamente,
Certa vez, o Verón contou que era muito diferente o [Eugenio] Figueredo era vice-presidente da FIFA.
na Inglaterra, que já no início dos treinos o Scholes Suárez foi tratado como delinqüente de uma forma
chutava muito forte e que lhe custou muito se adap- que eu nunca mais vou esquecer. Ele foi retirado pela
tar — menos aos jogos e mais aos treinamentos. Polícia Militar do hotel em Natal, dois dias depois. Pela
Aconteceu algo assim com você? Polícia Militar. Temos uma foto desse dia: a Polícia
Militar tirou ele do hotel porque ele não podia mais
Não. Os treinamentos são curtos e intensos, você tem ficar no hotel oficial da FIFA. A gente foi treinar num
dois dias livres na semana. É diferente, é muito natu- campo, acho que do ABC de Natal, e o Luís não podia
ral. É tão profissional que é livre. É tão profissional, entrar no campo. Ele tinha que ficar fora do estádio
tem tantos jogadores [bons], tanto poder econômico olhando, pendurado no muro, porque não podia entrar
que nós temos, a liga está muito valorizada. A cada dia em nenhuma estrutura da FIFA. Até que ele foi expulso
mais vai ter a de maior renda do mundo porque está do Brasil. Ele ficou quatro meses impossibilitado,
feita para isso, para ser um grande business. Então, em qualquer parte do mundo, de entrar em qualquer
não. Treinávamos fortíssimo num período de tempo estádio de qualquer liga ou time filiados à FIFA. Ele
curto, você não fica em concentração. Se tinha um jogo tinha um sobrinho no Uruguai, jogando em um time
contra o Manchester às três da tarde, você acordava amador e não podia ir lá ver. Então falei “caralho,
na sua casa e fazia um chimarrão. Cinco pra meio-dia o que esses caras fizeram”. Eu fiquei assistindo os
você chegava no clube, ao estádio, almoçava, descia, programas do Brasil e todo mundo tava achando que
enquanto comia a sobremesa trocava de roupa. Fazia era bonitinho: “Que bom, que exemplo”, “Que legal
a palestra, aquecia, jogava contra o Manchester, o da FIFA”. Tiraram o cara da concentração com a Po-
mundo inteiro assistia e às seis horas estava na sua lícia Federal, expulsando do país. Por quatro, cinco
casa de novo. Ou seja, é até leve, você vai levando de meses o impediram [de jogar]. Bom, ele foi ao Barça
forma leve. As viagens são curtas, toda quinta-feira e não conseguiu treinar no centro de treinamento
e segunda eram as folgas. Você é profissional por si do clube, teve que treinar num ginásio de um hotel,
mesmo, não porque te exigem. Você tem tudo porque justamente porque não podia entrar em um clube
você é profissional. Se você não é, vem outro. E outro, que fosse filiado à FIFA. Uma barbaridade histórica
e outro, e outro… no futebol! Um atentado contra tudo! E, vendo que
aqui no Brasil apoiavam tudo isso, até ex-jogadores
Não era uma obrigação, mas um dever consigo mes- de futebol, falei “Caralho, cara… Meus valores não
mo de se manter jogando ali? são esses valores aí”. E teve toda uma força midiática.
O máximo possível. Mas segundo você, qual seria a sanção mais correta?
Você deu uma coletiva de imprensa, em 2014, logo Uns dois, três jogos. O cara ficou dois anos sem jogar
depois da punição do Suárez pela mordida em pelo Uruguai. Dois anos sem jogar pelo Uruguai! Dez
Chiellini. Na ocasião, você que sugeriu uma inter- jogos oficiais pelo Uruguai, que equivalem a dois anos,
ferência da CBF na pena de Suárez... e quatro meses sem ingressar em qualquer campo,
Sim qualquer clube de futebol ligado à FIFA no mundo. Foi
uma coisa… Foi expulso pela Polícia Federal do Brasil!
...que te pareceu muito exagerada e, justamente,
porque se o Uruguai passasse pela Colômbia, cru- Qual pena lhe parecia justa?
zaria com o Brasil. Você segue com essa sensação, Um, dois, três…
tem alguma evidência? Como é?
Pela seleção ou por qualquer time?
Apareceram imagens, houve uma campanha depois
do jogo, exagerada. Apareceram imagens diferentes Lógico, do Uruguai. Tem assuntos políticos por trás.
das oficiais da FIFA, justamente para ela intervir. Os O Uruguai estava enchendo o saco da Conmebol. Todo
programas de televisão do Brasil estavam com um aquele assunto que estávamos falando antes, né, que
exagero na crítica, uma coisa que virou como um está relacionado ao que falamos no começo, coisas
assassinato. Então houve muita pressão, sim. Fora que decerto a gente até não saiba, né. Mas isso teve
que havia todo um contexto político naquela época, influência direta na sanção do Suárez. Tanto que, na
em que o Uruguai era a única federação da América súmula, ele [árbitro] falou que não viu nada. A súmula
que havia pedido à Conmebol e à FIFA pelos balanços desse jogo foi alterada. Houve uma atuação de fora
antes do Fifagate estourar, porque os balanços da como nunca antes na história do futebol. O árbitro
Conmebol não eram claros, e a única federação que não viu, não anotou nada na súmula, então por que
tinha pedido era a federação uruguaia. Então tinha vão intervir? Por quê? Horas depois, devido a muita
um atrito muito grande aí entre Grondona, Leoz — pressão, teve uma alteração na súmula. Tem foto
acho que era Marco Polo del Nero no Brasil — e a disso: ela foi apagada e depois foi relatada de novo.
federação uruguaia. Foi vergonhoso. Na época, no Uruguai ninguém in-
vestigou, né. Mas teve toda uma trama aí de poderes
Era o Marin, antes dele ser preso. e — falam — de punir coisas que estavam acontecendo
Sim. Então havia um atrito muito grande, já naquele politicamente, não só o Suárez. Isso aí é coisa para
momento. O Uruguai já era a ovelha negra naquele um jogo ou dois, e não para a Polícia Federal te tirar
do país. É uma vergonha. Um país cheio de corruptos

48
Um mate e uma volta ao mundo

como o Brasil, sessenta mil assassinatos por dia [sic],


e os caras vão com a Polícia Federal para tirar um
jogador do país. É uma vergonha. Mas a CBF tem a
ver, eu não sei, mas o sistema político, sim. O sistema
político do futebol. Tenho certeza, porque a Conme-
bol estava sendo denunciada somente pelo Uruguai.
Só. Por aquele [Sebastián] Bauzá. E bem depois é que
estoura o “Fifagate” com todas as merdas. Então
teve uma punição para o Uruguai: “Ah, você encheu
o saco? Aqui tem!” A resposta do presidente da FIFA
foi: “Ah, precisa de mim agora? Se fodam!” Essa foi
a resposta oficial. Eu era o capitão, eu estava vivendo
o que estava acontecendo.

Sobre isso da influência política: você acha que é


a mesma coisa que aconteceu com o caso do Dedé,
quando o expulsaram contra o Boca na Bombonera,
nas quartas da Libertadores de 2018? No Brasil se
falou muito que a falta de representatividade na
Conmebol…

Não, isso é histórico. Os grandes sempre, em toda


parte do mundo, tendem a ser mais beneficiados que
prejudicados. Fala pra mim sobre a final [da Copa do
Brasil de 2018] entre Corinthians e Cruzeiro: o pênalti
dado a favor do Corinthians, com 18 árbitros. Aquilo é
uma falta de respeito com o torcedor, é matar a pai-
xão do torcedor. Nesse aspecto estamos num ponto
delicadíssimo. O futebol está passando por uma crise
de credibilidade tremenda. Isso vai atentar contra
o negócio, porque isso é um grande business. Todo
o mundo vive desse negócio, e ele ainda não vai ter
credibilidade? Tanto se fala da Conmebol, mas e aqui
dentro do Brasil? É um assunto delicadíssimo: negócio
do VAR… Dá para discutir muito.

Esse pênalti não existiu, assim como a falta que


anulou o gol do Pedrinho.

Essa falta foi uma faltinha, mas foi porque teve o


pênalti. Então como 18 caras… É uma falta de res-
peito com o futebol e com a inteligência do torcedor.
Estamos em um ponto crítico. Crítico! Talvez antes
fosse até pior. Talvez. Porque hoje se vê mais. Hoje tem
vigilância, hoje se vê mais. Enfim… E o Dedé também
foi… Pelo menos não arrancou a cabeça [do Andrada].
Pelo menos não quebrou toda a mandíbula…

Mas até aí o árbitro não sabia que o goleiro tinha se


quebrado todo, porque ele seguiu jogando. Digamos
que não expulsassem o Dedé e o punissem depois
do jogo. Mas não: ele foi expulso pela “infração”.
Ou seja, ilógico.

Mas muito pior é o que acontece aqui no Brasil. Muito,


mas muito pior. Muito pior. No Brasil o erro acaba es-
colhendo campeões e quem cai pra segunda divisão. É
perigosíssimo para a credibilidade do futebol. Compli-
cadíssimo. Esse assunto do VAR é muito controverso.

Então você está contra ou a favor do VAR?

Totalmente contra o modo como foi implantado no


início. Sou a favor do VAR como nos esportes de eli-
te, de cavalheiros: rugby, tênis, futebol americano.
Os capitães de cada time, ou até o treinador, falam:
“Bom, este lance eu acho que tem erro, vamos ver no
VAR”. Aí os capitães, ou os treinadores, e o árbitro
resolvem, obviamente tendo uma chance por jogo,
ou uma chance por tempo. Se você erra não tem mais

49
Entrevista: Diego Lugano

chance no jogo. Resolve de uma maneira muito mais fácil.


Assim você está aumentando — ao meu ver — a área de
conflitos de interesses e de interferência. Que merda você
sabe do que esses caras que estão lá fora estão falando
[pela comunicação] nesse momento? O cara que fala “Ô,
juíz, veja este lance”: o que ele está falando? Como é a
interferência desses 18 caras? Eu sei que dentro do jogo
tem um cara, mas fora tem 18. Como você pode controlar
isso? Eu — jogador, treinador, torcedor —, como eu con-
trolo tudo isso? Para quê? Seria muito mais fácil você ter
uma imagem, uma televisão, um capitão fala: “Você errou.
Vamos ver”. Aí decide o árbitro. A interpretação é dele,
como sempre vai ser. Você tira toda a influência externa
e fica muito mais íntegro, muito mais nobre. Não tem
muito mistério. Para ter um pênalti como fizeram na final
da Copa do Brasil [de 2018] entre Corinthians e Cruzeiro,
uma falta de respeito com a inteligência do torcedor. É
intolerável. É um assunto para ser investigado mais pro-
fundamente. Então, para não ter esse tipo de conflito no
futuro, esse tipo de desconfiança — que só atenta contra
o esporte —, inevitavelmente você tem que usar o VAR
com os capitães. E voltamos ao mais importante, que é o
que está acontecendo principalmente no Brasil: quem são
os protagonistas do futebol? Quem são os protagonistas?
Os jogadores. Então você não pode dizer que o árbitro seja
sempre um personagem adorado. Algo está errado. E estão
levando, manipulando, o futebol para isso, mas está errado.
O protagonista é o jogador. E no dia em que o jogador tiver
mais protagonismo, melhor vai ser o espetáculo. Eu, como
diretor de time, para ser campeão ano que vem, em vez de
gastar dinheiro com um 10, tenho que pensar que o 10 não
vai ser um protagonista, que vai ser o árbitro porque vai
sair mais na televisão. Vai depender dele, então, ganhar
ou perder. Ou empatar. É como está acontecendo. Tem que
mudar um pouco o enfoque. O jogador no Brasil não é mais
protagonista, não sei se intencionalmente ou não, mas hoje
você vê em todos os programas de televisão um árbitro
que protege, de forma corporativista, os ex-companheiros.
Erros incríveis eles ignoram e em erros “mais ou menos”
eles não falam nada. Cada vez se fala menos do craque, que
é o jogador. O futebol está perdendo credibilidade. Está
perdendo graça. Um dos pontos para que o jogador possa
voltar a ter influência é usar o VAR com o capitão de cada
time — ou com o treinador — e decidir sobre os lances,
como acontece nos esportes de elite.

Analisando somente lances objetivos?

Como é no tênis? O jogador é quem pede. Como é no rugby?


O capitão pede. Como é no futebol americano? O capitão
do time diz: “Você errou, vamos ver”. Então por que in-
ventam 18 caras, que são um gasto incrível para o clube,
inflacionando [o preço]? Você aumenta a interferência.
Que merda falam esses caras no momento de apitar o
lance? Que merda esses caras falam antes do jogo? Quem
são os amigos desses caras? Que influência têm? Porra,
é desnecessário, totalmente. Você multiplica por vinte
a desconfiança. E se em vez do futebol passar confiança
ao consumidor, ele passar desconfiança; se você mudar o
protagonista, e ele não for mais o jogador, mas o árbitro
e o quinto árbitro; acaba indo contra o produto, contra
o futebol. Vai contra todo mundo. Eu não sei se isso está
sendo programado intencionalmente ou não, mas está
indo por um lado errado. Com certeza você vê mais imagem
de um árbitro do que do meia de um time. Com certeza.
Quem vende camisa, o 10 do São Paulo ou o árbitro? Então
tá tudo errado.

50
Um mate e uma volta ao mundo

51
Dívida de
gratidão
Por Matheus Steinmetz

N
ão é nenhum exagero afirmar que os títulos a irrupção da Primeira Guerra Mundial ocasionou o
olímpicos do Uruguai em 1924 e 1928 — louros cancelamento dos Jogos Olímpicos de Berlim [1916],
máximos para o futebol da época — impulsio- e a decisão de unificar as conquistas foi revogada
naram fortemente a candidatura do país para receber pouco antes dos Jogos da Antuérpia, em 1920. Em
a primeira Copa do Mundo da história. Agora, é, sim, contrapartida, foi na mesma edição da Bélgica que
uma ingenuidade sem tamanho acreditar que os dois a FIFA organizou pela primeira vez o futebol dentro
ouros em seqüência da Celeste tenham sido sufi- das Olimpíadas. Esse, aliás, foi o ano em que Jules
cientemente importantes para que a primeira sede Rimet — já como presidente da FFF [Fédération Fran-
do Mundial fosse o segundo menor país da América çaise de Football] — foi eleito também para assumir
do Sul, distante pelo menos dez mil quilômetros da a direção da FIFA.
Europa que penava no Entreguerras. Logo, os uru-
guaios não foram meros anfitriões do torneio, mas, Após o restabelecimento da paz, restrições diplo-
sim, os grandes fiadores de um projeto de 25 anos que máticas ainda eram obstáculos ao diálogo entre os
transformou o esporte e consolidou a FIFA como uma países europeus, protagonistas da guerra. Vários deles
das entidades mais poderosas do planeta. foram irredutíveis, opondo-se a negociar e disputar
torneios esportivos junto a nações das quais foram
Fundada em 21 de maio de 1904, a Fédération In- inimigos declarados por quatro anos. Houve casos
ternationale de Football Association nasceu para mais extremos, semelhantes ao da Inglaterra, que
desenvolver o futebol pelos quatro cantos do mundo renunciou à sua vaga nos mesmos Jogos da Antuérpia
com um objetivo claro em seu estatuto: ser a única por não concordar com a participação de países que
entidade com direito a realizar um campeonato mun- se mantiveram neutros no conflito, como Espanha —
dial de futebol. Apesar disso, a realidade era amar- que viria a ser prata em 1920 — e Noruega.
ga em relação às ambições da recém nascida. No 2º
Congresso da FIFA, em 1905, nenhuma das 12 nações Foi nesse contexto conturbado que começariam a se
filiadas até o fim daquele ano se dispôs formalmente estabelecer as condições necessárias à realização da
a sediar o Mundial, o qual os dirigentes projetavam primeira Copa do Mundo. Em 1923, o Uruguai con-
com empolgação já para 1906. quistaria sua quarta Copa América em sete edições
disputadas, afirmando-se como a maior potência do
Sem respaldo dos países-membros, a idéia foi enga- continente, mas ainda assim faltava o reconhecimen-
vetada. A modalidade continuou como parte do pro- to fora do Novo Mundo. Naquele mesmo ano, a AUF
grama olímpico, que vetava a participação de atletas garantiu sua condição de filiada à entidade máxima
profissionais. Além disso, o torneio organizado sob do futebol mundial, pré-requisito para a participação
o guarda-chuva do Comitê Olímpico Internacional de qualquer país na disputa da modalidade a partir
passava por cima da exclusividade reivindicada pela dos Jogos de 1920, primeira edição do evento em que
nova federação. Em 1914, a proposta de que o campeão o futebol passa a ser organizado inteiramente pela
olímpico de futebol fosse reconhecido também como FIFA. Diz a história que Atilio Narancio, presidente
campeão do mundo foi aprovada no congresso de da Asociación Uruguaya de Fútbol entre 1923 e 1925,
Kristiania [Oslo a partir de 1924], capital da Noruega. teria hipotecado um bem para pagar a sua viagem até
o 12º Congresso da FIFA, em Genebra.
De fato, a alteração nunca foi posta em prática, já que

52
Com a presença garantida nos Jogos da França, a Mas os mesmos que abdicaram em favor do Uruguai
Celeste despertou o fascínio dos parisienses, da im- também iniciaram uma onda de boicotes ao torneio.
prensa e dos cartolas devido às sucessivas goleadas O tempo de travessia do Atlântico até o sul da América
aplicadas à medida que avançava na sua primeira somado aos dias de competição implicava a ausência
aparição no torneio — foram vinte gols marcados e dos craques nos principais times europeus por pra-
apenas dois sofridos — em uma campanha invicta, ticamente dois meses. Além disso, a viagem também
coroada com um passeio de 3 a 0 sobre a Suíça na faria com que os jogadores — na sua imensa maioria
final de 1924. O ouro no peito dos charruas era uma amadores — tivessem de faltar aos seus empregos,
ótima surpresa para Rimet: a apresentação e o título acarretando um prejuízo econômico sem tamanho
uruguaios apresentaram a possibilidade de uma nova tanto para as empresas como para os familiares dos
configuração à organização geopolítica do futebol — atletas, que ficariam sem sustento.
que até então limitava seus grandes agentes à Europa
— e colocaram a América do Sul no mapa do bola. Criava-se aí um novo problema, pois uma Copa do
Mundo sem os europeus não teria o reconhecimento
Assim, criavam-se as condições para que um novo que Rimet desejava. Para que a competição não se
mercado fosse incluído à lógica do jogo junto aos tornasse um grande Pan-americano — com Argen-
europeus que, sozinhos, apresentavam uma série de tina, Bolívia, Brasil, Chile, Estados Unidos, México,
barreiras entre si para o crescimento do esporte em Paraguai, Peru e Uruguai —, a ação diplomática de
nível mundial. Enrique Buero precisou entrar em cena novamente
para garantir a presença de seleções européias, a fim
Mais do que isso: o desempenho dos sul-americanos de legitimar o caráter mundial do certame.
reavivou o desejo de concretizar a primeira Copa do
Mundo no seu maior entusiasta. No livro Futebol — A Para isso, Buero precisou redesenhar as propostas
Copa do Mundo, Rimet afirma que o triunfo dos uru- financeiras oferecidas a outros europeus de modo a
guaios poderia “facilitar enormemente a realização, persuadi-los a prestigiar o acontecimento. Como o
na América do Sul, do grande projeto com o qual tinha Uruguai já tinha chegado ao seu limite orçamentário
sonhado desde 1905”. Ademais toda capacidade uru- e não conseguia aumentar os valores para cobrir os
guaia dentro dos gramados, o que de fato proporcio- pedidos, o diplomata propôs que as passagens de
nou viabilidade ao plano da FIFA foi a entrada de um primeira classe nos transatlânticos na ida e na volta
personagem decisivo para que 1930 fosse possível. fossem substituídas por outras de segunda, sem abrir
mão do conforto. O valor economizado nos bilhetes —
Já em 1925, Jules Rimet passava férias na cidade de Ge- que chegavam a 3.760 francos por pessoa — seriam
nebra quando, casualmente, deparou-se com Enrique somados ao montante pago como incentivo, cobrindo
Buero, um renomado diplomata uruguaio que à época o que os jogadores deixariam de ganhar por faltar
era Ministro do Uruguai na Suíça [1923 a 1927]. Não por ao trabalho. A estratégia funcionou, e a Bélgica foi
acaso, Buero se notabilizou pela grande capacidade a primeira seleção européia a confirmar presença,
de articulação responsável por garantir a associação já no dia 26 de abril de 1930 — a abertura do torneio
dos uruguaios à FIFA em 1923. Ali, os dois puderam estava marcada para 15 de julho. A França deu sinal
conversar livremente sobre futebol. Nesse encontro verde um mês depois, em 19 de maio.
acidental, Rimet menciona o intuito de tirar do papel
a tão postergada Copa do Mundo de seleções, o que é De outro lado, Rimet ganhou o apoio do Rei Carol II,
muito bem recebido por Buero. da Romênia, que não apenas confirmou a participação
de sua seleção, como também convocou um a um seus
Nesta ocasião, o chanceler já teria se manifestado po- integrantes. Alguns desses convocados trabalhavam
sitivamente sobre um ponto crucial, principal entrave para uma companhia petrolífera inglesa, cujo gerente
para a execução da Copa: a disponibilidade de arcar não os teria liberado para ir à Copa não fosse uma
com todos os custos da organização de um evento des- nova intervenção do monarca. Depois de intensas
se porte. A partir daí, os dois manteriam uma relação negociações sobre o adiantamento do dinheiro e o
vital para o sucesso do planejamento, que tinha no aumento do número de integrantes da delegação —
Uruguai não somente o aporte financeiro necessário de 17 para vinte —, a Iugoslávia foi a última equipe a
para sustentar os gastos, mas como uma nação alheia assegurar a vaga.
às rivalidades continentais que faziam da Europa
um mosaico complexo politicamente, como reflexo Ao fim e ao cabo, franceses, belgas e romenos embar-
do clima bélico remanescente da Primeira Guerra. caram no navio SS Conte Verde — que daria carona
também aos cariocas da Seleção Brasileira — rumo
O Congresso de Amsterdam, em 26 de maio, às véspe- à Copa. A Iugoslávia cruzaria o oceano a bordo do
ras do início dos Jogos de 1928, definiu que a primeira Florida de Marselha.
Copa do Mundo seria disputada em 1930, mas não
escolheu o anfitrião. Suécia, Itália, Espanha, Holanda Confirmavam-se assim 13 participantes para a dispu-
e Uruguai se candidataram a país-sede. Quinze dias ta, abaixo dos 16 esperados pela FIFA, mas o suficiente
depois, o bi charrúa sobre a Argentina endossava a para que o plano finalmente ganhasse forma, o que
hegemonia uruguaia e a candidatura dos celestes. O nunca aconteceria sem os esforços conjuntos de Jules
Congresso de Barcelona, em 1929, definiu formal- Rimet e , principalmente, do governo charrúa.
mente que o país organizador seria o responsável por
arcar com todos os gastos da competição, incluindo No dia 30 de julho, a Celeste Olímpica levantou a pri-
transporte, estadia e alimentação de todas as delega- meira Copa do Mundo no estádio Centenário, bati-
ções — condição aceita pela AUF desde o papo de 1925 zado em comemoração ao centésimo aniversário da
entre Rimet e Buero. Todos os europeus retiraram suas Constituição de 1830, a primeira promulgada pelo
candidaturas, e o Uruguai foi eleito por aclamação a Uruguai soberano e independente, tal qual a FIFA
sediar, enfim, o primeiro mundial de futebol. dali pra frente.

53
É tetra! Os donos do mundo
antes da Copa
Por Tauan Ambrosio

E
ste não é o assunto mais comentado do futebol FIFA e Federação Francesa foram as responsáveis por
mundial. Ainda passa despercebido por alguns, calendário, regras, inscrições, critérios de admissão
mas nos mostra a importância de conhecer a dos atletas e cronograma. Tudo isso com extrema
fundo a história daquilo que amamos para não nos liberdade. O exercício dos poderes foi tão satisfatório
esquecermos de grandes feitos do passado e, princi- que serviu como base para a Copa do Mundo de 1930.
palmente, não fazermos pouco caso deles. O tema é
conhecido por alguns, mas ainda passa despercebido Os Jogos Olímpicos de 1924 mudaram a história da
por outros. Por que a seleção uruguaia usa, com reco- FIFA — embora a entidade não se lembre tanto deste
nhecimento da FIFA, quatro estrelas em cima de seu fato. No caminho de preparação para os Jogos de Paris,
escudo se conquistou apenas duas Copas do Mundo? a Fédération Internationale de Football Association
chegou à VIII Olimpíada ainda mais forte por causa do
A resposta para esta pergunta também explica o ape- futebol: subiu de 21 para 39 países associados, número
lido de Celeste Olímpica, usado até hoje para se referir superior ao da federação de Atletismo.
ao selecionado charrua. E começa antes mesmo da
Olimpíada de 1924, realizada em Paris.

No Uruguai, a população chega a estranhar quando se


fala que a sua seleção de futebol é bicampeã mundial.
Para eles, a Celeste é a primeira tetra do planeta. E isso
porque as medalhas de ouro em 1924 e 1928 valeram
como título mundial.
Obsessão
Não há discussão sobre a distinção entre os eventos:
uma coisa é Olimpíada, outra é Copa do Mundo. Só
que os registros históricos realmente dão, ao me-
nos, motivos para o debate em relação a 1924 e 1928.
Naquela época, a FIFA ainda não tinha criado o seu
campeonato do mundo, o que — extraoficialmente
— acontecia exatamente nas Olimpíadas.
O caráter global em 1924 esteve muito presente. Par-
ticiparam 22 equipes de cinco continentes, número
O futebol nos jogos de Paris, em 1924, tiveram a or- maior do que todas as Copas até 1982. Na página 330
ganização absolutamente independente da FIFA e da do número 36 da France Football era anunciado o
Federação Francesa: ambas presididas pelo famoso “Torneio Mundial de Futebol da VIII Olimpíada”. E,
Jules Rimet. a nove meses da bola rolar oficialmente, veículos de
imprensa anunciavam que o vencedor seria consi-
Foi durante o congresso da FIFA de 1923, em Genebra, derado campeão do mundo.
que a entidade ficou — ao lado da federação nacional
do país sede, no caso a França — responsável pela Vale lembrar que, de 1924 até 1978, sem interrupções,
administração do certame. Veículo oficial da Fede- a qualificação — ou seja, o nome do campeonato em
ração Francesa na época [e até 1946], a revista France si — dos Mundiais era de responsabilidade das fede-
Football, que até hoje é renomada no mundo inteiro, rações nacionais dos países-sede. Não era responsa-
propagou, desde antes de a bola rolar, o caráter mun- bilidade da FIFA. Em 1954, Rimet cedeu à qualificação
dial inédito do torneio que seria realizado. suíça e limitou à FIFA o direito de criar o subtítulo.

54
As campanhas ironias por parte de um comentarista de TV chama-
do... Arsène Wenger.

Em 1930, o país não comemorou apenas o primeiro


título de uma Copa do Mundo FIFA. Vibrou com o
fato de, pela terceira vez, estar no topo do mundo.
E o raciocínio foi o mesmo logo após o Maracanazo,
A estréia dos uruguaios foi contra a Iugoslávia, que com o narrador Carlos Solé aos gritos de: “É tetra!”.
se considerava uma equipe de certo valor. Só que os
sul-americanos não decepcionaram os analistas,
que já viam aquele time com um olhar todo especial.
A vitória na estréia foi maiúscula: 7 a 0. Só o público
que foi minúsculo. Apenas três mil espectadores. Mas
isso mudaria dali pra frente, assim como mudaria
a instalação celeste, que abandonou a “incômoda e
pouco higiênica Vila Olímpica” e se instalou em um
A discussão
casarão: o Château d'Argenteuil.

O segundo desafio reservou uma vitória por 3 a 0


sobre os Estados Unidos, em partida vista por dez
mil torcedores. Na terceira rodada, os comandados
do técnico Ernesto Figoli não tiveram pena dos fran- Na verdade, o debate parece encontrar uma solução
ceses: 5 a 1 nos donos da casa. A vaga para a semifinal menos polêmica se deixarmos clara uma coisa. A
estava garantida, e o duelo contra a Holanda marcou Copa do Mundo como se conhece é a Copa do Mundo
o maior desafio dos sul-americanos. FIFA [a globalizada FIFA World Cup], e nesse terreno a
Celeste Olímpica conquistou dois títulos: 1930 e 1950.
Os holandeses abriram o placar no primeiro tempo, e Mas antes, em 1924 e 28, o Uruguai foi considerado o
conseguiam agüentar a incrível pressão uruguaia no melhor time do mundo por ter conquistado os tor-
segundo. Pedro Cea empatou e Héctor Scarone, craque neios mais importantes do futebol mundial. Ambos
do time, garantiu a vitória em pênalti — bastante com organização completa e independente da FIFA.
contestado pelos neerlandeses.
O Uruguai é quatro vezes campeão mundial, mas duas
A decisão foi contra a Suíça, e lotou o estádio de Co- vezes vencedor da Copa do Mundo. A própria entidade
lombes. Cientes de que testemunhariam a coroação ratificou, um tanto às escuras, tal afirmação. Em 2010,
do primeiro campeão mundial, quarenta mil pessoas a FIFA reconheceu as estrelas na camisa do Uruguai
entraram no estádio e dez mil ficaram no lado de fora. como “não Copas do Mundo, mas, sim, torneios pre-
O primeiro tempo foi apertado, mas bom o bastante cursores da Copa do Mundo, de alto nível desportivo
para o Uruguai ficar na vantagem por 1 a 0. No final e organizados pela FIFA”.
das contas, o resultado foi 3 a 0 e uma medalha de
ouro com significado mais do que especial: o mundo Ou seja, praticamente validou a afirmativa de que os
era celeste pela primeira vez. charruas foram quatro vezes os melhores do mundo
e duas vezes campeões do seu Mundial.
Quatro anos depois, o caminho rumo ao bi começou
também com os holandeses. Jogando em Amsterdã, Em seu texto sobre uniformes oficiais, a FIFA é até
os “donos do mundo” fizeram 2 a 0. Depois golearam mais clara, deixando a entender que vê, sim, o Uruguai
a Alemanha [4 a 1], venceram a Itália [3 a 2] e, em como tetra: “As associações membros que ganharam
dois desafios, levaram a melhor sobre a Argentina uma ou mais edições precedentes da Copa do Mundo
na grande decisão. da FIFA [ou da Copa do Mundo feminina] estão autori-
zadas a colocar em seu uniforme de jogo do conjunto
titular a estrela de cinco pontas ou outro símbolo de
acordo com as instruções da FIFA por cada vitória em
uma Copa do Mundo da FIFA”.

A repercussão Na discussão por argumentos, os uruguaios têm ao


seu lado o maior número de provas cabais que jus-
tificam suas estrelas. O tema, hoje, talvez não seja
algo que repercuta tanto — talvez algo marcado pelo
desinteresse da FIFA em abordar abertamente o as-
sunto, pela menor importância que a AUF [Asociación
A imprensa uruguaia exaltou o feito de seus heróis, Uruguaya de Fútbol] tem hoje ou pela borracha que
repetindo o discurso europeu. Os jornais suíços classi- o tempo passa na memória das pessoas. Em relação
ficaram o Uruguai como campeão olímpico e mundial ao reconhecimento de títulos do passado, este talvez
[e forçaram um título europeu para a Suíça, afinal de seja o mais óbvio de todos e encontre um paralelo
contas, naquela época a idéia de um campeonato de semelhante apenas no título sul-americano do Vasco
seleções européias estava longe de acontecer]. em 1948 [o que não desconsidera todos os demais].

O mesmo ocorreu na França, que em 2008 até pro- De qualquer maneira, os desempenhos excelentes nos
moveu um amistoso contra os uruguaios da seguinte torneios olímpicos deram aos uruguaios o apelido de
maneira: “O Jogo de cinco Estrelas”. A promoção do Celeste Olímpica — presente até hoje. O que por si só
encontro, realizado no dia 19 de novembro, gerou mostra a importância do feito.

55
La Copa
del “no” Mundialito: um tiro
que saiu pela culatra
Por Matheus Steinmetz

“Uruguay, te queremos
Te queremos ver campeón
Porque en esta tierra vive
Un pueblo con corazón”

O
s militares que detinham o poder na República Oriental desde 1973 torceram o nariz ao
hit “Uruguay, te queremos”, de Alberto Triunfo e Roberto da Silva, que fez a cabeça dos
uruguaios. Apesar disso, compartilhavam — e muito — o desejo de ver a Celeste campeã.
Em especial, conquistar a Copa de Ouro de Campeões Mundiais.

Idealizado por João Havellange, então presidente da FIFA, o Mundialito — como ficou conhecido
—, a ser realizado inteiramente no estádio Centenário, foi concebido a fim de reunir todos os seis
campeões mundiais existentes até então para comemorar os cinqüenta anos da primeira Copa
do Mundo, realizada também em Montevidéu, em 1930.

A partir do dia 30 de dezembro de 1980, brigariam pelo título Uruguai, Argentina, Brasil, Itália,
Alemanha e Holanda. Vice-campeã nas Copas de 1974 e 1978, a Laranja Mecânica — sem Cruijff
— substituiria a Inglaterra, que recusou o convite — dizem — em protesto à ditadura que go-
vernava o país sul-americano.

De fato, nos últimos dias de 1980 não estava em jogo apenas a copa dos campeões mundiais, mas
o futuro político de toda uma nação. O Mundialito começaria a ser disputado no dia 30 de dezem-
bro, exatamente um mês depois da realização de um plebiscito nacional marcado para o dia 30
de novembro, que iria decidir ou não pela criação de uma nova Constituição para substituir a de
1967 e legitimar a ditadura civil-militar, governante de facto, perpetuando-a no poder.

“O Plebiscito Constitucional vai facilitar ao governo da nação os meios para iniciar a caminhada
em direção à normalidade, sem comprometer a obra realizada”, disse o então presidente Aparí-
cio Mendez, durante o comunicado do dia 1º de novembro que convocava os uruguaios à eleição
ainda naquele mês.

A normalidade escapava à realidade uruguaia durante aqueles anos com a tortura instituciona-

56
lizada, os desaparecimentos e os assassinatos pro- circuito, ao qual não podia acessar antes”, completa.
movidos pelo estado e a proibição legal de qualquer Aos 44 anos, o ainda jovem e já bem-sucedido Silvio
tipo de oposição ao governo. A ditadura no Uruguai, Berlusconi ainda não havia assumido o futebol do
dentre todas as suas contemporâneas que assolaram Milan, mas acabara de adquirir o Canale 5, que daria
a América Latina, foi a que teve a maior proporção de início ao grupo Mediaset, parte do império midiá-
presos políticos em relação à população. Legalizar tico que impulsionaria seus negócios dentro e fora
constitucionalmente a ditadura era legalizar, para do futebol, colocando-o como um dos personagens
sempre, o terror. centrais da vida italiana, chegando ao cargo mais alto
da política do país.
Os prognósticos bradavam a vitória do “sim” no ple-
biscito. Logo, a existência de um campeonato que
mobilizasse o país e chamasse a atenção do mundo
apenas trinta dias depois da votação era vista como a
festa que consagraria a manutenção do regime militar
“Sí por mi país
e recolocaria o Uruguai no jogo político internacional.
O plano parecia perfeito.
Sí por Uruguay
Sí por el progreso
Y sí por la paz
Sí por el futuro
Vamos a votar
De Voulgaris a Berlusco-
Sí por la grandeza
ni: as garantias finan-
Sí de mi Uruguay”
ceiras
Apesar de toda campanha nos jornais e no horário
nobre da televisão ser favorável ao “sim” que apro-
varia a nova Constituição e do temor de que as urnas
fossem fraudadas pelos militares, o resultado sur-

M
as para o plano se tornar realidade, havia que preendeu a todos: 56,83 por cento dos votos optaram
se buscar quem pagasse as contas do torneio. pelo “não”. A derrota no voto foi um golpe duro para
Além dos custos com a transmissão das parti- a ditadura e um dos fatores determinantes para a
das, do deslocamento e da hospedagem das delegações redemocratização do país, em 1985.
participantes, era preciso assegurar 250 mil dólares
a cada uma das cinco seleções convidadas. Mal passara a frustração com a derrota, e os militares
começaram a se preocupar com as conseqüências do
A primeira “solução” aparece em um empresário resultado durante a realização do Mundialito. Em
uruguaio de ascendência grega chamado Angelo Voul- exatos trinta dias, milhares de jornalistas estariam no
garis, que fizera fortuna exportando carne para países Uruguai para registrar a competição em um país cuja
africanos e anos mais tarde seria preso por tráfico de maioria da população, constatadamente, desaprovava
drogas. Num encontro em Madrid com Washington o regime. Mesmo a contragosto, era impossível can-
Cataldi — ex-deputado pelo Partido Colorado, então celar a competição às vésperas do seu início.
presidente do Peñarol e responsável pela organiza-
ção do Mundialito —, o empresário ficou sabendo À medida que os uruguaios avançavam na Copa de
do evento. Ouro, crescia o sentimento de oposição ao governo
nas arquibancadas do Centenário. Na final contra o
Voulgaris viajou até Nova York e negociou fundos Brasil, reeditando o Maracanazo de 1950, um novo 2
com outros empresários — cem milhões de dólares, a 1 deu a vitória à Celeste e enlouqueceu os orientales.
segundo o próprio em entrevista ao documentário Naquele dia 10 de janeiro de 1981, soldados e presos
“Mundialito”, de 2010 — para arcar com o investi- políticos celebraram juntos, pela primeira vez, a mes-
mento. Depois de assinar a compra dos direitos do ma conquista. O povo comemorava sem distinção a
torneio com a AUF, os investidores não honraram o taça dentro de campo e a esperança do retorno da
combinado com Voulgaris, que precisou correr atrás democracia como um só título, sentimento que nem
de um novo fiador. a banda militar que tocava no estádio ou a vontade
dos tiranos poderia calar:
“Um dia chega a mim o Cataldi e diz ‘Julio, vamos à
Itália. Me disseram que um tal Berlusconi que comprou
um canal de televisão em Montecarlo quer entrar na
rede italiana, o que ainda não conseguiu. Acredito que
podemos vender um grande produto aqui’”, conta o
ex-presidente Julio María Sanguinetti — àquela altura
“Se va acabar
ainda opositor ao governo repressor. “A partir daí,
com os direitos para a Itália, ele se faz forte frente
Se va acabar
à Rai e consegue a primeira introdução no grande La dictadura militar!”.
57
Claudio
Carsughi
Memórias de um
“giornalista brasiliano”
Entrevista:
Fernando Martinho

Fotografias:
Pedro Tattoo

R
ecém findava a Segunda Guerra Mundial e mais vida e o futebol brasileiros, simultaneamente, como
uma leva do clã Carsughi desembarcava no estrangeiro e local.
Brasil. Para não perder o contato com a língua
materna geralmente você ouve música, vê um filme, Contrariando a [estereo]típica passionalidade ita-
folheia um livro do seu país de origem… lê um jornal. liana, Claudio Carsughi faz questão da neutralidade
Só que Claudio, aos 16, preferiu escrever para um deles. para ver o jogo completo — não apenas metade — e
Ou melhor, para o maior diário esportivo da Itália. oferece um olhar sobre duas nações que por um tempo
estiveram inimigas, mas que, para ele, sempre foram
Correspondente internacional ainda na adolescência, complementares.
cobriu sua primeira Copa do Mundo de 1950 e, des-
de então, retratou — para veículos daqui e de lá — a Andiamo!

58
58
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Entrevista: Claudio Carsughi

Conte as suas memórias mais antigas, da sua infân- não previstos: um jogo contra a Lazio, por exemplo,
cia: até quando você fica em Arezzo? Por que você em que a Fiorentina perdia por 3 a 1 e virou para 4 a 3.
vai para Florença? Você acompanhou seus pais, né? Mas eram sempre coisas, digamos, restritas ao âmbito
Fala do seu início de vida. futebolístico, num momento em que ir ao estádio era
algo ameno, não havia brigas, mesmo com os torce-
Bom, eu nasci em Arezzo, em 13 de outubro de 1932. dores contrários. A vida, de uma forma geral, era um
Ficamos em Arezzo até quando eu tinha cinco anos. Aí pouco influenciada pela guerra.
a minha família se transferiu para Firenze [Florença].
Em Firenze eu comecei, então, a ir para a escola, nor- Que lembranças você tem de ver emergir o fascismo
mal. [Fiz] o primário e o ginásio, comecei a ter meus e o nazismo?
amigos e o time da minha predileção, da minha cidade,
a Fiorentina. Isso ocorreu até os 14 anos, quando viemos Eu não tenho a lembrança, na verdade, do surgimen-
para o Brasil. Foi uma mudança absolutamente radical to, porque quando eu nasci já eram duas realidades
na minha vida, porque eu deixava algo que eu conhecia absolutamente consolidadas. Era aquilo o que existia
para ir encontrar algo que eu não conhecia. Existiam e parecia uma coisa absolutamente normal. E mesmo
aqui em São Paulo parentes da família de minha avó: quando começou a guerra — a guerra começou em
tinha primos, tios, tias, mas eram — todas — pesso- 1939 —, a Itália entrou na guerra em dez de junho de
as com as quais eu tinha um relacionamento muito 1940. Até meados de 1942, final de 1942, era uma coisa
longínquo. Alguns deles tinham ido de férias para a absolutamente normal, não se sentia muito. Havia
Itália, mas, enfim, era mais a carta de “bom Natal”, alguma restrição, era mais difícil encontrar determi-
ou “boa Páscoa”, uma vez por ano, assinada, do que nados alimentos. Enfim, a vida corria normalmente.
qualquer outra coisa. A partir de 1943, com a chegada dos Aliados no front
italiano, as coisas mudaram. Eu me lembro que em
Fala da Itália que você lembra, do final dos anos 1943 nós íamos sempre à praia, em Viareggio. Nós
1930, do início dos anos 1940, período em que você íamos no dia seguinte ao encerramento das aulas,
já estava em Florença. que era normalmente no dia dez de junho, e voltáva-
mos um dia antes do recomeço do ano escolar, que era
A Itália que eu lembro — em Arezzo, claro — eu era 15 de setembro. Em 1943, já com o receio de alguma
criança, então eu tenho algumas lembranças episó- coisa com relação à parte bélica, ao invés de ir para
dicas. Tipo: o meu pai era advogado e, geralmente, os Viareggio fomos para o outro lado, no Mar Adriático,
clientes mandavam sempre algum presente. Havia um, perto de Rimini. Essa era uma primeira mudança com
dono de uma empresa de doces, que no Natal mandava relação à guerra. Depois, claro, as coisas se tornaram
um doce típico de Natal, na Páscoa mandava um ovo mais difíceis. Houve um período em que não se podia
de Páscoa — que a mim parecia algo extraordinaria- sair de casa. Havia dificuldades de abastecimento,
mente grande. Devia ser um ovo talvez de uns cinco dificuldades de você encontrar comida. Eu me lembro
quilos. E eu me lembro que nós íamos buscar isso na que em determinado momento, o meu avô tinha con-
estação, chegava pelo trem, e era um momento de seguido comprar um saco de trinta quilos de ervilha,
grande importância dentro da minha vida. Em Firenze só que eram ervilhas que estavam estragadas. Então
já era uma coisa diferente. Em Firenze eu tinha meus a tarefa de todo mundo era pôr ervilha na mesa, cada
primeiros amigos, que eram os amigos da escola; ti- um com uma faca cortava a ervilha no meio para tirar
nha meu primo, que tinha 11 anos mais do que eu e era o bicho que tinha dentro e depois poder utilizar para
encarregado pelos meus pais de me levar ao jogo. Ele comer. Nesse sentido, por exemplo, quando chegaram
também era torcedor da Fiorentina, então íamos juntos os Aliados, nós recebemos — já que a minha mãe e a
uma vez a cada 15 dias, porque no Campeonato Italiano minha avó tinham cidadania brasileira — um pacote
o time joga uma vez em casa e uma vez fora. A cada 15 de comida. Lembro de pão branco, de manteiga, de
dias íamos de bonde, naturalmente, e voltávamos de açúcar, de chocolate, que eram coisas que já estavam
bonde. Era um programa que eu esperava com grande fora, digamos, do ranking normal das comidas que se
ansiedade, porque era uma coisa diferente da norma- podiam ter. Lembro que eu cheguei em casa e a primeira
lidade. A normalidade era ir à escola. Naquele tempo coisa que fiz foi cortar uma fatia de pão — aquele pão
— contrariamente àquilo que acontece no Brasil —, nós italiano comprido, redondo —, botei manteiga, botei
tínhamos aula também no sábado. Então, realmente, açúcar por cima, comi e me pareceu o néctar dos deuses.
o dia de folga era só o domingo. E no domingo, repito,
a cada 15 dias tínhamos, então, o jogo de futebol para Então não eram os seus avós que já estavam no Brasil,
ir ver, torcer e ficar mais satisfeito quando ganhasse, eram parentes da sua avó.
menos satisfeito quando o time fosse derrotado.
Exato, parentes de minha avó e o irmão do meu avô
Você lembra da Fiorentina campeã da Copa Itália de que moravam aqui.
1940? Tem alguma memória disso?
E aí você vem para cá, vem para São Paulo.
Tenho uma memória muito vaga.
Nós passamos antes no Rio. Ficamos um mês no Rio.
Você já estava em Florença? Aliás, eu questionava muito meus pais e meu avô, por-
que eu achava que o Rio era muito mais bonito, o Rio
Exato. Foi uma vitória apertada, de 1 a 0, e a lembrança tinha mar, tinha praia, São Paulo não tinha mar nem
que eu tenho foi do nosso zagueiro Piccardi subindo praia. Eu questionava muito o fato de termos vindo
de cabeça com o goleiro para evitar aquele que teria para São Paulo [risos].
sido o gol do empate do Genoa, chocando-se com a
cabeça no travessão. Essa pessoa cai, praticamente Sobre a sua inserção na sociedade brasileira. Houve
desmaiada. É a imagem que me ficou mais clara. Depois, algum tipo de relato desses seus parentes contan-
claro, tantos outros jogos de resultados previstos ou do dificuldades anteriores? Que dificuldades você

60
Memórias de um “giornalista brasiliano”

também enfrentou? Eram parecidas?

Na verdade eu não tive dificuldades, porque fui inscrito


no colégio — no caso no Colégio Dante Alighieri. Aí fiz
amizades com meus colegas de turma e tive uma vida
normal, embora sempre a vida de um estrangeiro. Eu
via o Brasil de um ponto de vista, sempre, de fora. Tanto
que logo que comecei a escrever para o Corriere dello
Sport — pelo qual eu fui correspondente desde os 16
anos —, a minha idéia era que eu estava escrevendo
para alguém de lá, que eu conhecia, que pudesse ler.
Então a minha idéia era o barbeiro — naquele tempo
eu tinha cabelo. Eu pensava “bom, como é que ele gos-
taria de ver isso? Qual é a imagem que ele gostaria de
ter dessa outra coisa? Como é que ele entenderia uma
forma de vida, uma festa, um acontecimento social?”.
Para não passar uma imagem para alguém que está
dentro do Brasil, mas para alguém que está vendo o
Brasil mais ou menos de fora.

Esse Brasil que você conheceu: você chegou logo


depois do primeiro período Vargas, logo depois vem

“Eu via o Brasil a Copa do Mundo de 1950, na qual você trabalhou.


Queria que você falasse sobre esse impacto. Como

de um ponto de
foi chegar no Brasil e em São Paulo, que mesmo lá
nos anos 1940 já tinha essa pujança econômica, um
crescimento muito acelerado. Fala um pouco da sua
vista, sempre, de primeira percepção do Brasil.

fora. Tanto que


O que me chamou muito a atenção era a cordialidade
com que mesmo um estrangeiro era recebido. Essa
vontade de estabelecer e conquistar novos amigos, o
logo comecei a convite “venha lá em casa” — embora depois tenha
entendido bem a acepção do convite. Eu perguntava

escrever para o para a minha mãe e para o meu pai “‘venha tomar
café lá em casa’, mas quando?”, porque o normal para

Corriere dello
mim, se você quisesse convidar alguém à sua casa na
Itália, dizia “olha, na quarta-feira, nove horas, vem
tomar um café em casa”. Aqui, “apareça lá em casa!”.

Sport — pelo “Apareça” como? Um irmão do meu tio, que morava


aqui, no Jardim América, tinha uma bela casa com

qual eu fui
piscina — eu me lembro a primeira vez que nós fomos
lá — falou “ah, Cláudio, quando você quiser venha aqui,
aproveite a piscina, aparece”. Aí eu perguntei para a
correspondente minha mãe quando nós saímos: “Escuta, o tio falou
para aparecer. Quando é que nós vamos?”. “Não, não

desde os 16 anos” é bem assim. Apareça é uma forma gentil, mas não
é para ir. Se ele quisesse realmente, ele diria ‘venha
dia tal, hora tal’”. Isso me deixava muito curioso, essa
diferença. E outra coisa que eu achava diferente — e
depois, claro, entendi que é uma forma de não querer
magoar ninguém, porque o brasileirão não sabe dizer
“não”: você pergunta “você pode fazer isso?”, também
em relação de trabalho. É raríssimo que o cara diga
“não, não posso fazer”. Sempre vai dizer “sim, vamos
dar um jeito, fazemos”, mesmo que depois não faça.
Eu me lembro, trabalhando na [revista] Quatro Rodas,
tinha um pessoal que trabalhava comigo, e aí você
estabelece o organograma de trabalho em função do
fechamento da revista. Então eu dizia, por exemplo,
para um cara: “Olha, tem que fazer essa matéria. Hoje é
segunda. Dá pra você me entregar na sexta-feira a ma-
téria pronta?” “Ah, tudo bem”, e tal. Chegava na sexta
— claramente eu não cobrava mais, porque achava que
cada um tem um sentido de responsabilidade —, e a
matéria não estava pronta. Às vezes também não era
culpa dele, porque ele tinha outras coisas para fazer
e não dava. Então eu dizia “mas escuta: quando eu te
falei na segunda-feira, por que você não me falou ‘não,

61
“O Torino
era, realmente,
uma equipe
de porte
mundial,
que você
pode comparar
ao Honvéd
de Puskás;
Santos
de Pelé;
Botafogo
de Garrincha;
River do
Di Stéfano”
62
Memórias de um “giornalista brasiliano”

não dá para fazer’? Aí teríamos outra solução. Agora colaborando nesse sentido. Quando a Itália foi elimi-
fica difícil porque vai contra todos os organogramas nada, e o centro das atenções se voltou para o Brasil,
que temos, o dia que temos que mandar a revista para o diretor foi para o Rio, e eu fiquei cobrindo São Paulo,
a gráfica. Enfim, complica as coisas”. Nesse sentido, onde jogavam as mesmas equipes que jogavam no Rio,
chamou muito a minha atenção o brasileiro não saber só que, claramente, em horários e datas diferentes.
dizer “não”. Quando o Brasil estreou frente à Suécia, aqui joga-
ram Espanha e Uruguai. Quando o Brasil enfrentou
Agora vamos lá atrás, ainda no período em que você o Uruguai, aqui jogaram Espanha e Suécia. Foi uma
já era correspondente do Corriere dello Sport. Você cobertura muito interessante e, para mim, deu um
inicia a sua carreira na Copa de 1950? amadurecimento muito importante, sobretudo me
deu uma noção de que todo mundo tem que ser tratado
Não, eu comecei já quando eu cheguei aqui, porque, da mesma forma. Porque eu tinha 18 anos. Quer dizer,
como havia a idéia de voltarmos em um curto espaço com relação aos demais jornalistas italianos, era um
de tempo para a Itália, a preocupação do meu pai era moleque. Era tudo gente de cinqüenta, sessenta anos.
que eu não esquecesse como escrever em italiano. Uma No entanto, eles não me tratavam como um moleque,
coisa é você falar, outra coisa é você escrever. Então mas me tratavam como uma pessoa qualquer, como
eu comecei — ele era amigo do diretor do Corriere uma pessoa do mesmo nível deles fazendo as mesmas
dello Sport — a escrever e mandava, geralmente, uma coisas. Na fila para telefonar para o Rio, não é que eu
matéria por semana sobre as coisas mais diferentes, ficasse em último lugar. Eu ficava no lugar e quando
sempre ligadas ao esporte no Brasil. A primeira co- era a minha vez eu falava, tinha gente esperando atrás
bertura, digamos, ao vivo, aconteceu em 1948, quando de mim. Na utilização, depois, do Telex, era a mesma
o Torino veio fazer uma série de quatro jogos aqui. coisa. Então isso me deu um ensinamento de vida muito
Assisti aos quatro e, claro, fiz as matérias antes dos importante que eu aproveitei durante toda a minha
jogos, depois dos jogos, vestiários. Enfim, tudo aquilo carreira profissional, de tratar todo mundo como meu
que dizia respeito a uma presença efetiva no estádio. colega igual. É por isso que eu, toda vez que alguém me
Aliás, me sentia muito importante, porque era o único chama de senhor, eu digo “o senhor está no céu, me
jornalista brasileiro que estava cobrindo a vinda do chama de ‘você’ que é muito mais simples”.
Torino da Itália.
Fala do trabalho, das partes técnica e manual, da
Então você viu o Valentino Mazzola? tecnologia que você operava.
Sim, o Mazzola pai. Vi todo mundo daquele time. A tecnologia era ainda muito distante, porque se ba-
seava, sobretudo, em telegramas — o Telex veio um
Fale um pouco desse time. pouco depois —, em que você tinha que condensar
Era um belíssimo time. Era um time que tinha sido aquilo que você queria dizer na matéria. As matérias
formado e que tinha conseguido, em 1942, dar um mais longas, claramente, que não tinham necessidade
salto de qualidade quando o presidente, Ferrucio Novo, de uma presença cronológica de “hoje” e “amanhã”,
comprou dois meias que tinham aparecido com grande isso você fazia, escrevia na máquina e mandava por
destaque no time do Venezia — um time modesto que, via aérea pelo correio. Demorava, mais ou menos,
naquele ano, graças a [Ezio] Loik e [Valentino] Mazzola, uma semana. Em alguns casos, se fosse alguma coisa
foi terceiro no Campeonato Italiano. Loik e Mazzola importante, algum envelope maior com muitas fotos,
deram nova vida àquele elenco, apareceram jogadores eu costumava ir até Congonhas — aos sábados tinha
das categorias menores, e [o Torino] era, realmente, um vôo para a Itália — e tentava convencer o co-piloto,
uma equipe de porte mundial. Uma equipe que você o steward, ou até mesmo um passageiro: “Pelo amor
pode comparar ao Honvéd, por exemplo, de Puskás, de Deus, leva. Quando você chegar, vai ter alguém que
Kocsis, Hidegkuti; ao Santos de Pelé; ao Botafogo de vai buscar”.
Garrincha; ao River de Di Stéfano; ao Boca de [Mario] Conta um pouquinho só sobre esse Brasil da época
Boyé. Enfim, aos grandes times de todas as épocas. de Copa do Mundo de 1950.
Após o desastre de 1949, a Itália perde a base do time Era um Brasil completamente diferente do atual. Era
que jogaria a Copa de 1950. Aí vem a Copa do Mundo. um país que acreditava no futuro, um país onde todo
Eu queria que você falasse, nesse caso, do seu trabalho mundo era otimista, um país onde não havia a miséria
naquela Copa. Qual era a sua incumbência de cobrir que se vê hoje. Era absolutamente fora de cogitação
em São Paulo, a Itália? você pensar que alguém dormisse na rua. Era absolu-
Veio, naturalmente, o diretor do jornal. Vir ao Brasil tamente fora de cogitação pensar que alguém pudesse
representava um custo elevado. Somente os diretores te assaltar na rua. Eu lembro que a minha mãe e a
do principais jornais vieram para cá. Eu fui encontrá-lo minha avó iam de ônibus — vinham aqui na Paulista
logo que chegou ao aeroporto. Levei-o até o hotel — pegar ônibus — tomar chá. Vinham todas empere-
acho que era o Lord Hotel, na Avenida São João —, e quetadas, com colar de pérolas, com anel de brilhante,
ele falou “olha, Cláudio, vamos fazer o seguinte: você de ônibus, sem que ninguém dissesse absolutamente
continua fazendo as suas matérias de ‘cor local’”. Por nada. Quer dizer, não havia esse sentido de absoluta
exemplo, eu tinha mandado uma matéria mostrando insegurança que temos hoje, tanto que eu me lembro
o hotel onde a seleção [italiana] ficaria. Acho que era que, anos depois, a primeira vez que teve um assalto
o hotel que se chamava São Paulo, no Anhangabaú a um banco foi uma coisa clamorosa, como se tivesse
— existe ainda, hoje, mas não como hotel. Ele disse caído uma bomba atômica, porque ninguém pensava
“continua fazendo essas matérias. Eventualmente, que alguém pudesse ir a um banco e assaltar. Você ia
se você conseguir alguma entrevista, eu faço o resto”. no banco para depositar ou para tirar dinheiro. Era um
Claro, a Itália veio para São Paulo, e eu fiquei ajudando, brasil completamente diferente, um Brasil mais feliz

63
Entrevista: Claudio Carsughi

que tinha horizontes extremamentes positivos pela


frente. Enfim, tudo ao contrário de hoje.

Você viu o Brasil jogar aqui, no Pacaembu?

Exato. Eu lembro de ir contra a Suíça, a primeira vez


que o Brasil enfrentou uma seleção armada no ferrolho
e que teve uma imensa dificuldade porque não sabia
como sair desse tipo de marcação. Era uma marcação
que funcionava do meio de campo para trás, então
todo mundo vinha — o Rui, o Danilo, o Bauer eventu-
almente — com a bola dominada, mas aí encontravam
sempre alguém marcado, com mais um na sobra. Isso
criou uma grande dificuldade, tanto que o Brasil ficou
no empate de 2 a 2.

E do Uruguai: você tem uma lembrança clara do time


uruguaio?

O Uruguai deu uma sorte tremenda, a começar pelo


fato de haver uma série de desistências: a Escócia, por
exemplo, estava classificada, mas disse que só viria
se fosse vencedora do Campeonato Interbritânico, o
campeonato que reunia os quatro países britânicos —
Inglaterra, Escócia, Irlanda do Norte e País de Gales.
Ela foi vice e resolveu não vir. Então, dos 16 que deviam
participar, só ficaram 13. Tivemos, por exemplo, um
“A Copa Rio
foi levada
grupo da Itália como um grupo de três [seleções] —
Itália, Suécia e Paraguai. O grupo do Uruguai era um
grupo de dois — Uruguai e Bolívia. Então o Uruguai

a sério.
chegou, meteu 8 a 0 nos coitados bolivianos, que na-
quele tempo não sabiam jogar futebol, e se classificou
para a fase final. Depois, jogando aqui no Pacaembu,
tiveram que suar sete camisas para empatar em 2 a 2

Foi uma
com a Espanha. Perdiam por 2 a 1. Foi um chute, quase
do meio de campo, do Obdulio Varela, que conseguiu
dar o empate. Se não, eles teriam chegado no Rio, e nem

competição
a vitória [sobre o Brasil] lhes daria a possibilidade de
conquistar o título. Eu acho que a seleção do Uruguai
ganhou [apenas] um jogo, só que era o jogo decisivo.

Era uma surpresa, por mais que o Uruguai já fosse


campeão olímpico lá nos anos 1930?
realmente
importante.”
Sim, claro, mas era uma surpresa porque era um time
que não tinha… não era um time ruim: tinha Schiaffino,
tinha Míguez, tinha Ghiggia, tinha Obdulio Varela,
tinha o Máspoli como goleiro, mas não era um time
tecnicamente comparável ao Brasil.

Você falou que “o Brasil era um país muito mais feliz”,


mas você sentiu que essa derrota teve um impacto?
Começou a surgir um negativismo na sociedade
brasileira, no imaginário coletivo?

Teve um impacto, mas um impacto restrito ao futebol.


Teve um certo desencanto, tanto que caiu a presença de
público depois dos vários campeonatos regionais. Foi
isso, inclusive, que fez surgir a idéia da Copa Rio, por-
que o Thomaz [Tommaso] Mazzoni, redator-chefe da
Gazeta Esportiva; o Ottorino Barassi, vice-presidente
da Fifa que tinha estado aqui ajudando na organização
da Copa do Mundo e mais outras pessoas influentes
chegaram à conclusão de que tinha que se fazer alguma
coisa para reviver o entusiasmo do brasileiro com o
futebol. Qual era a solução: não dava para fazer outra
Copa do Mundo de seleções, mas podia se fazer algo
parecido, uma Copa do Mundo de clubes. Foi aí que
surgiu a idéia de convidar os clubes mais importantes
no mundo todo para disputar essa Copa Rio. Lembro

64
Memórias de um “giornalista brasiliano”

perfeitamente que foi uma competição que modificou A segunda Copa Rio já não tinha o mesmo sentido,
o aspecto futebolístico do Brasil no sentido de reviver porque não era uma competição que pudesse se pro-
essa chama. Eu me lembro da multidão que foi receber longar ao longo dos anos. Tinha servido exatamente
o time do Palmeiras voltando de trem do Rio após a para chacoalhar esse momento do futebol brasileiro e
conquista do título. A manchete de página inteira da transformá-lo de negativo para positivo, mas acabava
Gazeta Esportiva [foi]: “Chegam os campeões mun- aí. Quiseram fazer uma segunda edição, mas não teve
diais”. Foi, realmente, uma coisa extremamente im- o mesmo êxito, não teve o mesmo sentido.
portante. Claro, ninguém se importou de ratificar isso
de uma forma escritural, de pedir à Fifa que declarasse Você afirmaria que o Palmeiras é campeão mundial
o Palmeiras o primeiro campeão mundial, porque não de 1951 e que o Fluminense não é campeão mundial
era esse o objetivo, embora teria sido extremamente de 1952?
fácil, não teria sido problema nenhum. Mas o impor-
tante era fazer voltar o gosto pelo futebol no público, Me parece uma coisa mais ou menos óbvia. Claro, eu
e isso foi obtido. respeito as opiniões de todos. A de 1952 não teve a
mesma importância. Eu senti isso diretamente, porque
Você falou da manchete. Existia uma opinião pública em 1952 o espaço que o jornal dedicou à competição foi
que falava de uma copa mundial de clubes, como se extremamente menor, muitíssimo menor. Dos jorna-
fosse um Mundial de Clubes mesmo? listas importantes você não via ninguém. Foi mais uma
coisa que se tentou fazer, porque, na verdade, no Rio,
Sim, reconhecida dessa forma, porque realmente o o pessoal tinha ficado muito chateado que na semifi-
que se pensava, o que se queria fazer, era isso, era dar nal contra o Palmeiras o Vasco tenha sido eliminado.
uma possibilidade para que o público brasileiro — que Ninguém pensava que aquele timão do Vasco, com
tinha ficado chocado pelo desastre do Maracanã — Ademir [Marques de Menezes] e tudo mais, pudesse
pudesse voltar a gostar do futebol. Foi, realmente, isso ser eliminado. Então quiseram fazer uma segunda
que se obteve através do Vasco, através do Palmeiras, edição da Copa Rio, mas, na verdade, a Copa Rio era
com relação à disputa da Copa Rio. Quer dizer, foi um uma coisa única, não podia ter seqüência.
acontecimento ímpar, que teve boa repercussão, tam-
bém na Europa, porque ocorreu num momento em A partir daí, o Brasil começa a se reconstruir. Em
que, tradicionalmente, o futebol não tinha nenhuma 1954 teve alguma dificuldade também, mas chega a
atividade. Aquele momento do ano, no verão [europeu], 1958 e é campeão. Nesses vinte anos seguintes, entre
era de outros esportes, do ciclismo, do atletismo, da 1950 e 1970, o Brasil é tricampeão mundial. Nesse
natação. Então essa notícia do futebol ocupou aquele meio do caminho surgiu o Santos de Pelé, o Botafogo
lugar, que não era muito grande, claro, mas que estava de Garrincha, enquanto nesse mesmo período, na
reservado para notícias de futebol. Itália, consolidava-se o Catenaccio, com Helenio
Herrera na Inter. Como você fazia para acompanhar
Você falou do Torino, que veio excursionar, também. o futebol internacional neste período? Você seguia
Os europeus levaram isso a sério ou vieram num a Fiorentina?
esquema mais de pré-temporada? Os brasileiros
levaram mais a sério do que os europeus? Era mais ou menos complicado…

Olha, o Torino em 1948 e o Arsenal em 1949 vieram Até porque a Fiorentina é campeã da Recopa européia
para ganhar dinheiro, porque essa série de jogos aqui em 1961. Como era isso? Como chegavam as notícias?
no Brasil oferecia uma possibilidade de lucro que não Como você ia atrás disso?
existia na Europa, já que naquele momento — durante
o verão, ninguém ia ver futebol, não havia nem mes- Quando eu estava de férias eu ia para lá e via ao vivo,
mo interesse. Vinham meio como um passeio. Agora, conversava com meus amigos, ia ver jogo e tal. No resto
na Copa Rio, não. A Copa Rio foi levada a sério. Foi do ano eu tinha um rádio de ondas curtas com uma
uma competição realmente importante. Alguns clubes antena específica montada no topo da casa em que eu
não quiseram vir. Por exemplo, na Itália, o primeiro morava, na rua Major Diogo, já orientada para Roma, e
convidado foi o Milan, que era o campeão italiano do com isso eu conseguia ouvir. Claro, você ouvia muito
ano, e o Milan falou “não, nós já demos férias aos jo- chiado, ainda pifava e tal, mas dava para, depois de se
gadores. Já prometemos, não dá para voltar atrás”. Aí, acostumar a ouvir ondas curtas, seguir [ouvindo]. Com
o segundo era a Inter, segunda colocada [no italiano]. o mesmo rádio eu tinha noticiários de todos os outros
A Inter falou “não, não nos interessa, porque depois países, [ouvia] esportivamente o que acontecia e não
vai ‘embananar’ a preparação na próxima temporada. acontecia, as corridas de Fórmula 1. Quando estava aqui
Não queremos”. A Juventus, que era a terceira, aceitou. e me interessava sempre em acompanhar…
Vinha num período de recuperação, tanto que depois
foi campeã italiana, em 51/52. Tinha realmente um Quando o automobilismo entra na sua vida? Quando
belíssimo time. Quem veio levou a sério. O Nacional, você começa a se interessar por isso?
que era quase a base da seleção uruguaia, levou a sério. Praticamente quando tinha três anos [risos]. Eu estava
O Estrela Vermelha, o Áustria Viena, o Nice — que tinha na Itália, e meu pai me levava ao cume de uma colina
um brasileiro, Yeso Amalfi —, enfim, ninguém veio só perto de Arezzo de madrugada, porque era o horário
para passear. É claro que quando não jogavam futebol, em que passava a Mille Miglia. Então nós íamos ver
o pessoal queria desfrutar das belezas do Brasil, ver a passagem dos carros. Mais tarde me levava, quan-
as mulatas no Rio, mas para o futebol, dentro daquilo do eu tinha já seis, sete anos, para Monza para ver o
que se entendia sobre dedicação ao futebol, era uma Grande Prêmio da Itália. Aí veio esse interesse por
coisa absolutamente séria. automobilismo que, de certa forma, era também en-
Comparando com 1952, quais são as diferenças? campado pelo meu pai porque ele era advogado, mas
a sua especialidade eram causas relativas a acidentes

65
Entrevista: Claudio Carsughi

rodoviários. Essa era a especialidade dele. Então, sei


lá, comecei a entender o que é energia cinética muito
antes de chegar na escola...

Você tem uma frase em que diz “quando você torce


para um time, você vê apenas 50% do jogo”. Qual é
a origem disso?

Só vê uma parte, a outra parte, mesmo que você veja,


você vê distorcida. Sempre foi um erro do jogador do seu
time, e nunca habilidade do jogador do time contrário.

De onde vem essa conclusão? Ela é sua ou você aderiu


ao pensamento de alguém?

Não, é minha. É minha porque eu percebi que, torcendo


para um time, você não aprecia o que o adversário faz.
Eu falei “bom, como jornalista, não posso me submeter
a isso. Seria, além do mais, burrice”.

Então, em 1970, como você via aquela final Brasil


vs Itália? Existiu algo de torcedor ali para qualquer
um dos lados?

De jeito nenhum. Eu tinha absoluta certeza de que o


Brasil ganharia. Uma certeza que se expressou ainda
melhor no sábado, depois que eu comentei o jogo do
terceiro lugar em que a Alemanha derrotou o Uruguai “Eu percebi
por 1 a 0, e a Alemanha jogou só trinta minutos. Depois
os caras estavam mortos. Aí eu me lembrei de Ingla- que, torcendo
para um time,
terra-Alemanha, que precisou ir para a prorrogação. A
Alemanha sentiu isso frente à Itália. Claramente o time

você não
sentiu esse [desgaste]. Então eu lembro que eu cheguei à
conclusão e falei para o Joseval Peixoto. Naquele tempo
havia apenas três circuitos: os circuitos de áudio e de
voz eram [das rádios] Nacional, Bandeirantes e Jovem
Pan — Nacional com o Pedro Luiz, Bandeirantes com aprecia o que
o Fiori Gigliotti e Jovem Pan com o Joseval Peixoto. Aí,
até então, tinha sido feito um rodízio em que cada qual o adversário
narrava meio tempo. Na final não dava para fazer meio
tempo porque havia três [equipes], então se dividiu em
três pedaços de trinta minutos. Alguém irradiaria até
faz.”
os trinta minutos, outro faria dos trinta até os 15 do
segundo tempo e depois outro faria o final. Foi feito
um sorteio: não me lembro quem fez o primeiro e o
segundo, mas sei que o Joseval saiu no sorteio fazendo
o terceiro. Aí eu chamei o Joseval e falei “olha, cê tá
roubado, porque a Itália vai aguentar uma hora. Até
uma hora vai fazer um jogo parelho com o Brasil, mas
depois vai cair do ponto de vista físico e o Brasil pode
até golear. Você tá roubado porque quando você pegar,
a partir dos 15 do segundo tempo, talvez o Brasil já
esteja até ganhando”. Ele falou “ah, não se preocupe,
se for assim eu faço poesia, mas deixa comigo que eu
consigo levar”. E, de fato, ele conseguiu. É uma pes-
soa extremamente brilhante, tem um improviso que
poucos têm, e poucos tiveram, no rádio brasileiro. Hoje
acho que quase ninguém tem. Ele fez uma transmissão,
realmente, excepcional.

Passam-se doze anos e vem, novamente, um Bra-


sil-Itália definitório. Novamente um time brasileiro
que encantava o mundo como aquele de 1970, mas
acabou parando nessa Itália mais pragmática — um
time que não era ruim como se imagina. Nem esse
Brasil vs Itália teve um significado especial? E qual
era a sua antevisão tal qual em 1970?

Sim, tinha. Achava que não iria se repetir, de forma


nenhuma, 1970 e que dependendo de como o Brasil

66
Memórias de um “giornalista brasiliano”

67
Entrevista: Claudio Carsughi

encarasse o jogo a Itália tinha chance de ganhar. A


minha idéia era a seguinte: “O Brasil tem um excelente
meio de campo, mas a frente — Serginho não é lá es-
“Eu sempre
sas coisas —, e a defesa tem algumas falhas. Se você
conseguir bloquear o fornecimento de bola para o Zico, procurei não
me meter
você tira boa parte do poderio ofensivo do Brasil. Mas,
basicamente, o importante é saber como o Brasil vai
entrar. Se o Brasil vai entrar pensando que o empate
já é um excelente resultado, porque o classifica, então
o Brasil tem toda a chance de se classificar. Se o Brasil na política
brasileira,
entrar pensando ‘não, nós somos melhores, vamos
ganhar, aí a Itália tem chance’”. E foi o que aconteceu.

porque eu não
Em 1982 o regime militar ainda vigorava no Brasil.
Olhando um pouco para trás — 1978, 1974, 1970 —
de alguma forma você viu o regime se apropriar do
futebol, da paixão, da Seleção em si? Você via alguma
relação íntima entre CBD e o regime militar? achava que era
Sim, via. Por exemplo: em 1970, no México, todos os
chefes, dos menos graduados aos mais graduados, correto, como
estrangeiro,
eram militares, praticamente. Então havia uma pre-
sença marcante, mas eu sempre procurei não me meter
na política brasileira, porque eu não achava que era
correto, como estrangeiro, fazer isso, dar palpite. In-
clusive, isso me fez recusar algumas excelentes opor-
tunidades de trabalho. Em determinado momento, nos
fazer isso”
anos 1970, eu tinha bastante amizade com o pessoal
da televisão suíça de língua italiana, por causa do Clay
Regazzoni [ex-piloto de Fórmula 1 ítalo-suíço]. Em um
determinado momento eles disseram “Carsughi, nós
queremos um correspondente aqui para a televisão.
Você topa?”. O fato de ser pago em Francos suíços já Esse é um assunto no qual eu não entro. Eu acho que
me abriu um largo sorriso. Falei “é claro que eu topo! seria uma ingerência absolutamente descabida e de-
Vamos ver, me manda uma pauta”. Chegou a pauta, li a selegante nas coisas internas de um país estrangeiro.
pauta e na hora falei “olha, gente, muito obrigado, mas
não vou fazer isso”, porque a pauta era uma enquete 1990: enquanto profissional,houve uma frustração
sobre o desaparecimento daquele deputado federal tão grande quanto a sua não ida para a Itália pela
[Rubens Paiva] — não lembro o nome — que sumiu e rádio Jovem Pan?
foi morto; uma possível entrevista com o Marighella,
que ainda era vivo, e uma análise sobre o que fazia o Não foi tanto uma frustração quanto uma surpresa,
Serviço Nacional de Informação em relação à tortura porque eu fui da mesma forma por minha conta. Fui
de presos políticos. Falei “porra, vocês são é malucos. com o meu filho. A única coisa é que não falei no mi-
Está aqui o papel, arrumem outro porque nessa fria crofone.
eu não entro”. Aliás, depois era gozado, porque eu
acabava sabendo coisas do Brasil — muito mais — Mas você preferiria ter ido pela rádio?
quando eu estava na Itália, conversando com meus Para mim, repito, é aquela coisa que você está acostu-
colegas do Tuttosport — nesse tempo eu trabalhava mado a fazer, que é ir em todas as Copas, e de repente
no Tuttosport — do que aqui. Eu me lembro que em “você não vai mais” me surpreendeu. Inclusive, eu
1969 veio para cá o diretor do jornal, que já era outro tinha estado na Itália em novembro de 1989, lá em
nesse tempo, para fazer uma série de matérias sobre a Roma. Já tinha ido no hotel, tinha arrumado uma tarifa
preparação do Brasil [para a Copa]. Ele falava “escuta, mais barata para a equipe da Pan. Tinha acertado tudo.
mas como é? Fulano de tal foi executado?”, e eu falei Quando eu voltei, já apresentei, “consegui isso e tal. Vê
“olha, eu não estou sabendo de nada. Aqui ninguém o que vocês conseguem”. O fato de, em determinado
sabe”, “ah, não, é porque eu falei com fulano…”. Havia momento, dizerem “você não vai”, para mim foi sur-
um certo número de brasileiros na Itália. Na Itália presa. Não foi decepção. “Tá bom, então eu tiro férias e
estava o Juca Chaves, por exemplo, cantando até em vou por minha conta”. Fui ver com o meu filho [risos].
italiano. Eu tenho um disco dele cantando em italiano, Foi lá, inclusive, que eu vi a primeira apresentação dos
é gozadíssimo. Na França tinha também uma forte co- Três Tenores, durante a Copa.
lônia de brasileiros expatriados. Então eles [jornalistas
na Europa] conseguiam saber coisas que eu não sabia. Em 1994, logo antes da Copa, o falecimento do Ayr-
Quando chegou a Copa de 1970, começaram a perguntar ton Senna. Fala um pouco sobre ele, sobre a perso-
“escuta, e isso? E aquilo?”. Eu falei “Eu não sei, vocês nalidade dele. Ele é um grande herói nacional no
sabem muito mais do que eu, porque no Brasil essas Brasil, porque também era um período sem gló-
notícias não chegam”. rias no futebol, o grande esporte nacional. Aquele
documentário — “Senna: o brasileiro, o herói, o
Como você encara quando dizem que não houve campeão” — mostrou um outro lado dele. Ele tinha
ditadura no Brasil? Falam em governo militar, e não uma personalidade muito forte. E como era a sua
em ditadura militar. relação com ele?

68
Memórias de um “giornalista brasiliano”

“Não fosse o O que você achou do trabalho do Arrigo Sacchi na


seleção italiana? Ele foi abaixo da expectativa ou
entregou o que se esperava?

Baggio, a Itália Ele fez o que podia fazer. É claro que ficam sempre

teria sido
julgamentos pessoais — “por que usou esse jogador?”,
“por que não usou aquele?” —, mas dentro da sua filo-
sofia de jogo e não dispondo ainda dos ases holandeses

eliminada. que depois ele teria no Milan, ele fez o que podia fazer.

O título de 1994, o vice em 1998 para a França e no-

Chegou à final vamente o título em 2002 foram três Copas em que o


Brasil foi protagonista e ressurgiu no futebol mun-

com Baresi,
dial como potência. Você acha que isso formou algum
tipo de soberba dentro do pensamento brasileiro no
futebol e foi o embrião do 7 a 1?

que tinha Não, eu acho que não. Eu acho que o que o 7 a 1 foi um
caso completamente diferente, de um enfoque errado

feito uma que foi dado pelo Parreira e pelo Scolari na Seleção.
Deram uma sobrecarga de responsabilidade a um grupo

artroscopia 18
que não era tão bom assim. Era um bom time, mas não
era um super time. Querer jogar ofensivamente contra
a Alemanha era um suicídio tático. Claro que você vai

dias antes.” dizer “falar depois é simples”, mas se você visse aquele
jogo antes, contra o Chile, veria que foi um parto che-
gar a se classificar, inclusive com aquele chute, se não
me engano, do Pinilla no travessão. Se entra aquilo,
o Brasil estaria eliminado. Então o normal teria sido
uma equipe bem fechada tentando o contragolpe. Daria
uma sorte, ficaria 0 a 0, em um contragolpe faz 1 a 0 e
ganha. Ou então perde, mas perde de pouco, de 1 a 0, 2
Ele tinha uma personalidade forte, sabia perfeitamente a 0, uma coisa absolutamente normal. Pelo contrário,
o que queria, era um excepcional piloto — disso não há o Brasil fez dois jogos contra a Alemanha e Holanda,
dúvida alguma — e tinha toda uma formação familiar sofreu dez gols e marcou um.
que o levava na busca de ser o melhor. Então, talvez
ele possa ter tido no plano pessoal, algumas atitudes Há um paralelo entre o 7 a 1 e a derrota de 1950, do
que não foram bem recebidas. Ele esteve na base, por que se refletiu na sociedade a partir desses resul-
exemplo, da briga entre o Galvão e o Reginaldo [Leme], tados no futebol?
que depois foi resolvida. Mas é claro que é muito dife-
Em 1950 foi uma decepção, mas, digamos, uma de-
rente a imagem do Senna com a bandeira brasileira,
cepção — como eu poderia defini-la? — educada. Uma
com o Galvão tocando a musiquinha no fim da corrida…
decepção como a de uma criança de quem você tira o
O “Tema da vitória”, né? doce da boca. Em 2014 foi uma decepção raivosa, de
querer a todo custo crucificar alguém de raiva, de in-
É. No dia-a-dia, era uma pessoa que sabia exatamente satisfação. Enquanto em 1950 o futebol ainda era um
o que queria, como queria, inclusive em termos de jogo, era uma diversão, hoje o futebol é, apenas e tão
negócios: foi ele quem trouxe a Audi para o Brasil, somente, a tentativa de expressar aquilo que você sente.
por exemplo. Você — que não consegue êxito na vida, que briga com
seu chefe, que encrenca em casa com a mulher, que tem
Você tinha amizade com ele? Alguma coisa além da uma vida ruim — encontra no futebol, se o teu time
sua relação entre jornalista e piloto? ganhar, a forma de você ter uma afirmação positiva. E
quando isso não acontece, vem a raiva, vem a vontade
Não chegaria a dizer amizade. Ele sempre me tratou de agredir. Você vê o caso das torcidas organizadas.
muito bem, não havia razão para não me tratar bem. Quando eu cheguei ao Brasil você via torcedor sentado
Eu também o tratei muito bem, mas, sei lá, nunca fui lado a lado, um com a camisa do Palmeiras, outro com
na casa dele, por exemplo. Amigo era o Galvão. a camisa do Corinthians, outro com a camisa do São
Paulo, sem nenhum problema. Hoje isso é impensável.
Voltando ao futebol, você acha que a Itália mereceu Então, a grande diferença é essa.
mais a Copa de 1994 do que o Brasil?
13 de abril de 2015: você é demitido da Jovem Pan.
Não, a Itália chegou na final com as calças na mão. A
Itália, não fosse o Baggio, teria sido eliminada já nas Ah, é… [risos] Você falou 13 de abril, e eu fiquei pensando
fases preliminares. Chegou à final com Baresi, que “o que aconteceu nesse dia?” [risos].
tinha sido operado, feito uma artroscopia no menisco,
18 dias antes. Quer dizer, foi um milagre ter chegado Bom, foram seis anos após o falecimento da sua
à final e não ter perdido o jogo, ter sido derrotada só esposa, a Ilda.
nos pênaltis. Acho que fez o máximo que podia fazer.
Não poderia se exigir mais do que aquilo. Exato. Eu fiquei surpreso, realmente, porque não es-
perava.

69
Entrevista: Claudio Carsughi

Foram quase sessenta anos, né? Por que você teve


uma pequena interrupção no início.

Sim, na Bandeirantes eu fiquei de 1960 a 1963. Surpresa,


porque no meu imaginário eu continuaria trabalhando
até o momento que tivesse força para trabalhar.

Doeu quanto?

Não digo que doeu. Surpreendeu, sobretudo. Mas de-


pois, se você raciocina friamente, você vê que toda vez
que numa empresa — de caráter familiar — há uma
mudança de geração, há também uma mudança de
pessoas. Isso ocorreu, de uma forma menor, quando
saiu o doutor Paulo [Machado de Carvalho Filho] e
ficou o Tuta [Antônio Augusto Amaral de Carvalho]
como responsável. E ficou, agora de uma forma maior,
quando o Tuta se afastou, e ficaram seus dois filhos.
Mas acho que é uma coisa perfeitamente normal. Cada
qual raciocina de uma forma, acha — ingenuamente
ou não, não sei — que sabe mais do que aqueles que o
precederam e que vai fazer melhor. Ninguém quer fazer
pior, todo mundo quer melhorar. Então eu entendo que “Em 1950 foi
essa minha dispensa foi uma tentativa de mudar um
pouco o rumo do esporte da Pan. uma decepção,
Você mencionou em uma nota que a rádio passou a
se posicionar “frontalmente contra o PT, a Dilma e o
como a de
Lula”, com uma postura que você chamou de direita,
e que isso traria algum tipo de “benefício junto às uma criança
empresas que também pensem dessa forma”.
de quem você
tira o doce da
Foi só uma constatação, uma tentativa no mercado
publicitário de posicionar a rádio num sentido para

boca. Em 2014 foi


angariar maior presença comercial. Eu me lembro que
o Tuta — na área esportiva, claro — sempre dizia que
era imprescindível, em qualquer situação, ouvir os
dois lados, que ninguém está absolutamente certo e
ninguém está absolutamente errado. Essa era apenas uma decepção
uma constatação que eu fiz, que achei curioso, e nada
mais do que isso. Aliás, eu não tenho absolutamente raivosa, de
nada a ver com isso, porque envolve, repito, um campo
no qual eu não me meto. querer a todo
Você prefere não falar da política brasileira? custo crucificar
Eu tenho certeza que a minha demissão não teve nada
a ver com isso. Quanto à política brasileira, realmente alguém de raiva,
eu não falo. Se quiser discutir de política italiana, tenho
todo o prazer, mas política brasileira, não. de insatisfação.”
E por que essa posição, já que você vive no Brasil há
muito mais tempo do que você viveu na Itália? É só
por um vínculo de raíz, porque você tem esse vínculo
mais afetivo, digamos?

É um vínculo afetivo. Sim, nas férias eu vou para a


Itália. Afetivo no sentido de que a televisão que eu vejo
aqui é a Rai. Nunca vejo a Globo.

Mas, às vezes, você se chama de brasileiro, um jor-


nalista brasileiro.

Sim, mas é apenas uma colocação, digamos, geográfica.


Nada pessoal.

Então seu coração é tricolore.

Ah, eu sou italiano [risos]. E por isso que eu tenho,


sempre, essa posição de não querer me meter em coisas
que não me dizem o respeito. Acho que seria uma falta

70
Memórias de um “giornalista brasiliano”

de... sei lá, falta de tudo.

Um jornalista brasileiro falar sobre a política ita-


liana, para você…

Não, acho que o cara pode falar. Cada um vê de uma


forma. Eu, por exemplo, acho curioso quando leio o
New York Times falando da política italiana. É uma
visão para o leitor americano.

Bom, voltando um pouquinho no tempo: a Itália


conquista a Copa do Mundo em 2006, é eliminada
em 2010 — surpreendentemente — e, em 2014, na
primeira fase, e em 2018 nem se classifica. Como
você enxergou esse declínio?

Muito simples. É uma queda da qualidade geral do


futebol italiano. Hoje você não tem grandes jogadores.
“Eu me lembro Em 2006 estavam lá Nesta, Cannavaro, Pirlo, Totti e

que o Tuta Del Piero. Onde estão os novos Nestas, Cannavaros,


Pirlos, Del Pieros e Tottis?

[da Jovem Não existem. Simplesmente não existem. Mesmo os


que estão eventualmente sendo cogitados para a sele-
Pan] sempre ção não têm qualidade suficiente. Talvez nas gerações
subseqüentes possam vir bons jogadores. Às vezes, um

dizia que era jogador de 17 anos aparece com destaque, mas depois,
em outro nível, não consegue se posicionar. Hoje por

imprescindível, hoje, a Itália não tem grandes jogadores, é ponto pa-


cífico aceito por todos. Não tendo grandes jogadores,

em qualquer
você não tem grandes times. Não tendo grandes ti-
mes você não pode ter grandes resultados. Você pode,

situação,
eventualmente, numa competição específica, como foi
a Eurocopa [de 2016], ter um bom resultado, ganhar
da Espanha e tal, mas são coisas contingentes. É uma
ouvir os dois Chapecoense da vida, não é o normal.

lados, que Como você vê o fato do aumento de jogadores se-


rem filhos de imigrantes, caso do Balotelli? Como

ninguém está
você enxerga essa mudança na sociedade italiana?
Isso mudou um pouco a relação entre o futebol e a

absolutamente
população?

Sim, mudou. O público já não se interessa muito pela


certo e seleção. Aí está uma relação de causa e efeito, porque
se jogassem bem o público se interessaria. Eles sa-

ninguém está bem perfeitamente que não têm grandes jogadores


e que eventualmente têm jogadores que podem ter

absolutamente certo brilho dentro do cenário italiano, mas fora não.


Você vê que nas competições internacionais, mesmo

errado.”
com jogadores estrangeiros, são pouco os clubes ita-
lianos que se destacam. Praticamente só a Juventus,
que consegue um determinado nível, mas ou outros
— os dois grandes de Milão — estão em uma draga
tremenda, Milan e Inter. Então há um desamor para
com o futebol e para com a seleção. Some-se a isso
estádios velhos e incômodos, um ambiente perigoso
pelas torcidas organizadas. O pessoal acaba não indo.
Quando muito, se for muito torcedor, faz assinatura
da Sky e vê tranquilamente os jogos que ele quiser ver.
Além do mais, o futebol é caro. Hoje em dia, para ir em
um lugar “mais ou menos”, você gasta entre setenta
e oitenta euros.

A Juventus teve que cair, após o Calcciopoli, para a


série B e depois se reconstruir, num momento em
que o Milan dominava o futebol europeu, nos anos
2000. Sendo que a Juventus dominou na metade final
dos anos 1990. Na metade final dos anos 1980 e na

71
Entrevista: Claudio Carsughi

inicial dos 1990, quem dominava era o Milan, de novo.

O Berlusconi pegou o Milan na série B e o tornou o clube mais


vencedor do mundo.

A Inter teve aquele brilho de 2010, mas já vinha dominando o


futebol italiano há alguns anos. Claro, isso tem um pouco a ver
com a ausência da Juventus. Essas três forças simbolizavam
muito a economia italiana. A Fininvest, Pirelli e Fiat — Milan,
Inter e Juventus —, mas a economia italiana parece que sofreu
muito, e isso afetou diretamente o futebol.

Sim. No Milan, por exemplo, o Berlusconi começou a não botar


mais dinheiro.

Tanto é que Inter e Milan foram parar em mãos chinesas.


Como você vê isso?

[O Berlusconi] deixou de colocar dinheiro quando os filhos dis-


seram “olha, papai, você já gastou alguns bilhões. Vamos parar
com esse negócio, porque é um brinquedo caro demais”. Inter e
Milan foram vendidos. O [Massimo] Moratti também saiu porque
não queria mais gastar dinheiro à toa. O único que se sustenta é
a Juventus, porque ela conseguiu um estádio, uma política muito
interessante de valorização de jogadores — gastou uma nota para
comprar o Higuaín, mas tinha vendido o Pogba, então trocou seis
por meia dúzia. E ela também não chega além de certos limites.
Quando se falou da saída eventual do Neymar do Barcelona, a
Juventus logo disse “não, está fora das nossas possibilidades,
não vamos nem pensar nisso”.

Tem essa mudança de pólo, a Itália era o centro financeiro do


futebol mundial, onde se concentravam os melhores jogadores.
Com exceção do Real Madrid ou do Barcelona, que conseguiam
contratar a peso de ouro, depois veio a Inglaterra dividindo
essa força, e a Itália ficou relegada a uma “série B” da Europa.
Mesmo o primeiro escalão da Itália ficou muito abaixo desses.

E não tem possibilidade de uma modificação a curto prazo, por-


que há um peso de imposto de renda muito forte. Se você paga
cinco milhões num jogador, você gasta dez — são mais cinco
milhões em impostos que você, direta ou indiretamente, vai
acabar pagando —, então isso é difícil. Há um certo desamor
para o futebol, porque ele não apresenta grandes coisas. Na hora
que você vê na televisão um Real Madrid vs Bayern, diz “isso aí é
muito melhor do que o que eu vou ver no estádio domingo, então
não vou. Eu vou ver aquele outro”. Acho que não tem jeito. A curto
prazo não tem jeito.

Série A continuou competitiva, mas perdeu qualidade.

É competitiva. Você vê que na última rodada não se sabe quem


vai ser rebaixado, não se sabe quem classifica certamente para
a Champions, não se sabe quem certamente vai para a Europa
League. Competitiva ela é. Agora, o espetáculo claramente decaiu,
não tem o mesmo nível que tinha antes. Se você pensar que, no
começo do século, Milan e Juventus disputaram a final da Cham-
pions, hoje disputam a final da Copa da Itália. A diferença está aí.

Para encerrar, o Eduardo Galeano disse que o Churchill, ao


ser perguntado sobre como ele fez para chegar aos noventa
anos em tão boa forma física e mental, respondeu assim: “O
esporte: nunca pratiquei”. Qual é o segredo para chegar até
quase noventa anos com tanta lucidez?

Fazer aquilo que você gosta e — claramente com todos os cui-


dados necessários — praticar alguma forma de atividade física.
Não competitiva, mas se mexer. Se não, realmente, você acaba
morrendo antes. Churchill foi uma exceção [risos].

72
73
Foto: Fernando Martinho
O
mundo
é das
pessoas
O futebol é de todos.
A Copa Rio é do Palmeiras

Por Fernando Martinho

74
Por Fernando Martinho

75
O mundo é das pessoas

P
almeiras tem mundial? A pergunta é vá- rizadas pelos clubes europeus. Foram os casos do
lida. A Copa Rio de 1951 é considerada por Rapid Viena, campeão austríaco, e do vice-campeão
palmeirenses como um título mundial. Admira Wacker, que jogariam a Taça Mitropa, e do
O torneio reuniu diversos campeões na- Milan, que disputaria a Taça Latina.
cionais da Europa e da América do Sul.
Os mesmos palestrinos normalmente dizem que o A Taça Latina de 1951 também teve a participação
Corinthians não pode ter dois títulos mundiais tendo do Sporting, campeão português, que nos dias 21
vencido somente uma Libertadores. e 22 de junho jogou contra o Lille as semifinais do
torneio. Por sua vez, o Lille entrou no lugar do Nice,
Existe o caso do Atlético de Madrid, que conquistou que se recusou a disputar o certame e disputaria a
a Liga Europa em três oportunidades até 2019 e uma Copa Rio. O Sporting jogaria a definição de terceiro
extinta Recopa, mas jamais o principal título do lugar no dia 24 de junho contra o Atlético de Madrid
continente europeu. No entanto, os Colchoneros ven- e, no dia 1° de julho, os portugueses enfrentariam o
ceram a Taça Intercontinental devido à desistência Vasco, representante do Rio de Janeiro na compe-
da disputa do Bayern, e podem, tal como os demais tição, já que, à época, tampouco existia um cam-
vencedores do duelo, dizer-secampeões mundiais. peonato brasileiro. A Copa Rio contou também com
o representante de São Paulo, o Palmeiras, a outra
A discussão se estende ao Vasco da Gama, que foi cidade-sede do torneio.
admitido como campeão sul-americano na com-
petição precursora da Libertadores: o Campeonato Disputaram também a Copa Rio o campeão uruguaio
Sudamericano de Campeones em Santiago, em 1948. de 1950 [Nacional] e o campeão da Copa da Iugoslávia
O torneio não foi organizado pela Conmebol e sim de 1950, o Estrela Vermelha.
pelo Colo Colo, mas com o apoio do presidente da
entidade máxima do futebol sul-americano à época, Nenhum argentino disputou, sequer houve convite
o chileno Luis Valenzuela. No entanto, dizer que o a qualquer clube hermano em retaliação ao boicote
Vasco é bi-campeão da Libertadores é um erro. O da Argentina à Copa do Mundo de 1950.
Gigante da Colina é, sim, bi-campeão sul-america-
no, além da Copa Mercosul de 2000 na sua sala de Já os representantes da Itália [Juventus] e o austríaco
troféus. Porém, a Mercosul não contava com todos [Austria Vienna], vieram como campeões das tem-
os membros da Conmebol, embora fosse organizada poradas anteriores em substituição aos vencedores
por ela. Porém, é difícil dizer que a Copa Mercosul daquelas temporadas recém terminadas [Milan e
não seja um título continental. Rapid Viena], que disputariam a Taça Latina e a Taça
Mitropa, respectivamente. O representante francês
Voltando à Copa Rio, vencida pelo Palmeiras em 1951, [Nice] veio no lugar do representante espanhol, que
a competição não foi organizada pela FIFA tal como a seria o Barcelona, embora o Atlético de Madrid tives-
Taça Intercontinental não era. Porém, a Interconti- se conquistado o campeonato espanhol de 1950/51.
nental reunia diretamente os campeões da Conmebol
e da UEFA, e era organizado pelas duas entidades, Tratava-se de um torneio com cinco clubes europeus,
num primeiro momento em jogos de ida e volta e, a campeões em seus países, fosse naquela temporada
partir de 1980, em jogo único em Tóquio até 2004. A ou na anterior, e mais um representante sul-ameri-
partir de 2005, a FIFA assumiu as rédeas e passou a cano além de Palmeiras e Vasco, que tinha jogadores
organizar uma Copa do Mundo de Clubes contando do Uruguai campeão Mundial. Enfim, um torneio
com times de todas as federações continentais. inegavelmente de elite e de representatividade. Vale
reforçar que o Vasco havia conquistado o Campeo-
Naquele ano de 1951, a UEFA sequer existia. A enti- nato Sudamericano de Campeones três anos antes.
dade reguladora do futebol na Europa seria fundada
somente em 1954 e o torneio continental de clubes Não há dúvida da magnitude do campeonato. A
organizado por ela nasceria logo depois, em 1955. iniciativa estava à altura do estádio que recebeu a
Até então, os clubes europeus disputavam diferentes final do torneio e da Copa do Mundo um ano antes.
competições pelo Velho Continente além de suas O Maracanã foi construído sob uma perspectiva
ligas nacionais. proporcional à realização de uma Copa do Mundo e,
logo, realizar uma competição mundial entre clu-
De 1927 a 1939, disputava-se tradicionalmente a bes estava dentro da mesma ótica da época com os
Taça Mitropa. Uma competição européia pré-UEFA mesmos traços megalomaníacos.
que contava com os principais times do centro euro-
peu. Foi a primeira grande disputa internacional de Apesar de algumas baixas, como o campeão italiano
clubes e seria a precursora da Copa dos Campeões, Milan, que não participou, nem a vice Inter, substi-
como conta Miguel Lourenço Pereira no livro Noites tuída pela Juventus, terceira colocada naquele ano, e
Européias, publicado pela Corner no Brasil. embora a Juve tenha conquistado o campenato italia-
no de 1950, isso só foi possível devido à Tragédia de
De 1940 a 1950, não houve disputas devido à Segunda Superga em 1949, que matou todo o time do Grande
Guerra Mundial. A edição de 1940 chegou a ser joga- Torino, multi-campeão italiano dos anos 1940 e,
da, mas a final entre Rapid Bucareste e Ferencváros, fatalmente, favoritaço à conquista da Copa Rio, caso
agendada para julho daquele ano, não chegou a ser aceitasse o convite. Mas essa é a história do “se”.
disputada. Somente em 1951 a competição voltaria,
mas sem muito prestígio. Já que naquele ano dispu- Mauro Beting escreveu em seu blog no UOL sobre o
tava-se a terceira edição da Taça Latina, entre clubes Mundial do Palmeiras assim: “O futebol é de 1863. A
da França, Itália, Espanha e Portugal. FIFA é de 1904. Sim, o futebol é anterior à entidade.”
Verdade. Mas vale dizer que o futebol foi conven-
Tanto a Taça Latina quanto a Mitropa foram prio- cionado em 1863, até ali disputavam-se diferentes

76
O futebol é de todos. A Copa Rio é do Palmeiras

modalidades, até surgir a Football Association na Intercontinental como título mundial, todos os ven-
Inglaterra que, por sua vez, demorou bastante até cedores, especialmente os sul-americanos, se intitu-
reconhecer e se associar à FIFA, por entender que lavam campeões do mundo, o menos importante era
eles, os ingleses, eram os donos do jogo. E isso tem a o teor oficial, o que a FIFA achava, mas sim o desafio,
ver com o cartório que a FIFA se tornou e como nem o duelo entre os dois campeões de cada continente
sempre aquilo que ela promove ou deixa de promover onde mais se difundiu o jogo.
é o que vale. Mauro Beting usa uma ótima analogia:
“É como o nosso congresso. Não tem credibilidade, Tanto a oficialidade é o que menos vale, que o Co-
mas as leis são deles. Cumpramos”. rinthians conquistou o Mundial de Clubes de 2000,
um torneio organizado pela FIFA e foi diminuído, e
Se a FIFA reconhece, de fato ou não, a Copa Rio de será eternamente, pelos torcedores rivais e até por
1951 — e a de 1952 —, talvez seja o menos impor- jornalistas que optam pelo sensacionalismo. Se o
tante. Em 1952 também houve um torneio disputado título oficial do Corinthians é colocado em xeque,
na Venezuela chamado Pequeña Copa del Mundo de como pode o do Palmeiras ser cogitado como título
Clubes, que reunia times europeus e sul-americanos oficial?
e durou até 1957. Na primeira edição, o Botafogo
ficou em segundo lugar, enquanto Real Madrid foi A Copa Rio foi repetida em 1952 sem o mesmo suces-
o campeão. so, com o título do Fluminense. As mesmas pessoas
que defendem o caráter mundialista da Copa Rio
O Corinthians campeão sobre a Roma em 1954 e o São de 1951, não outorgam a mesma relevância para o
Paulo, em 1955, empatou com o Valencia no último triunfo tricolor no ano seguinte, com argumen-
jogo e ficou com a taça. Vasco foi vice em 1956 para tos mais ou menos válidos. Outros acreditam que,
o Real Madrid e, em 1957, o Botafogo foi novamente se alguns clubes não quiseram disputar a segunda
segundo colocado, quando o Barcelona levantou edição, azar o deles, e o Fluminense não tem nada
o caneco. Mas ninguém reclama a oficialidade do com isso, foi lá e ganhou.
torneio. Assim como os diferentes torneios de verão
europeus, como a Taça Teresa Herrera, que já promo- O grande problema é a mudança de significado e,
veu duelos memoráveis, mas este, diferentemente da sobretudo, da ordem de grandeza das coisas ao
Copa Rio ou até mesmo da Pequeña Copa del Mundo longo dos tempos. Durante muito tempo, alguns
de Clubes, sempre foi disputado com teor amistoso. clubes brasileiros preteriram a Copa Libertadores
Pelo menos pelos europeus. para prestigiar os campeonatos estaduais ou mesmo
turnês européias, a motivação era exclusivamente
E aqui entra uma nítida diferenciação de prioridades. financeira. Os cachês nas excursões ou as bilheterias
No geral, os clubes da Europa historicamente sempre de jogos do campeonato carioca ou paulista rendiam
deram mais de ombros para a Taça Intercontinen- muito mais do que os jogos da Libertadores durante
tal. Jogavam e venciam muitas vezes, mas além de uma boa época.
desistirem de algumas edições, notava-se um certo
desprezo. Os sudacas, porém, entravam sempre com Portanto, se um campeonato foi levado mais à sério
a faca nos dentes. Mas se ingleses levavam menos a por um clube do que por outro, para sorte de um e
sério a Intercontinental, espanhóis, portugueses e azar do outro, o torneio foi jogado e vencido por
italianos pareciam se preocupar mais com o troféu alguém e isso é indelével. O revisionismo pode ser
nas suas galerias, enquanto os alemães ficavam no cruel, mas pode ser positivo. O problema passa pre-
meio do caminho. ponderantemente pelas discussões clubistas e pas-
sionais. Os asteriscos sempre existiram, em diversas
Voltado à oficialidade, o bi-campeonato olímpico competições. O vice-campeão europeu, Atlético de
do Uruguai pode ser considerado um título mun- Madrid, foi lá e venceu o Independiente, campeão
dial, pois não havia Copa do Mundo. Os campeões sul-americano e se tornou um campeão mundial.
intercontinentais podem se considerar campeões
mundiais, pois não existia um Mundial de Clubes da Se colocam asterisco no título mundial organizado
FIFA. O mesmo serve pro Sul-Americano do Vasco pela FIFA do Corinthians, o do Palmeiras de 1951, tal
e outros diversos títulos por aí, até os controversos como o do Atlético de Madrid de 1974, além de todos
campeonatos brasileiros homologados pela CBF: os outros vencedores da Intercontinental também
Taça Brasil e Gomes Pedrosa. terão seus asteriscos.

A discussão pode se estender, inclusive, à Copa União. O Mundial do Palmeiras, o do Fluminense, o do Co-
Talvez o mais complexo dos casos, pois tudo se mis- rinthians de 2000 e até o Campeonato Brasileiro de
tura, se confunde, e todo mundo erra. Mas o livro 1987 merecem mais do que capítulos à parte. Mere-
de André Gallindo, 1987 - De fato, de direito e de cem livros e documentários, além dos que já existem.
cabeça, explica melhor o caso. Mas esse exemplo Mas quem sofreu, festejou, gritou “É campeão do
talvez ilustre melhor como o oficial, muitas vezes, Mundo!”, bebeu, comemorou, sabe da grandeza, do
é o que menos importa. Negar a dimensão do título significado, do sentimento, da emoção de se sentir
não-oficial rubro-negro é tão errado quanto ne- o melhor do mundo, pelo menos por um instante.
gar a oficialidade do título do Sport, conquistado
legitimamente. Um caso que se o adversário não Se algum clube europeu deu de ombros, tal como
quis jogar, azar do adversário. Mas Gallindo conta se algum time brasileiro resolveu não disputar a
também o lado podre da conquista do Rubro-Negro Libertadores para excursionar na Europa ou jogar o
pernambucano, o que não limpa em nada a soberba estadual, azar desses times. Os campeonatos existi-
do Rubro-Negro carioca. ram, e cada campeão tem mais é que estufar o peito
e se sentir orgulhoso. O Palmeiras tem a Copa Rio de
Portanto, mesmo antes de a FIFA reconhecer a Taça 1951 e ninguém tira, nem a FIFA.

77
O scudetto
que
o Torino
não venceu
Um time que perdeu apenas
um campeonato italiano
Por Fernando Martinho

78
I
l Grande Torino conquistou todos os títulos na- Sete dias mais tarde, Spezia e Torino se enfrentaram.
cionais oficiais que disputou de 1942 a 1949. No Zebra. O Spezia venceu por 2 a 1. Um feito que pou-
final da Segunda Guerra Mundial, porém, o cam- quíssimas pessoas presenciaram. Havia um enorme
peonato italiano deixou de ser oficialmente disputado temor com as rondas militares da ocupação alemã.
por duas temporadas. Com a Itália dividida em duas Com o resultado, o melhor time daquela época não
pela Linha Gótica, definiu-se que a parte centro-norte, tinha mais chances de título. Caberia ao Venezia ti-
controlada pelas tropas nazistas [de Roma pra cima], rar o troféu das mãos do Spezia, caso vencesse com
disputaria a Divisione Nazionale, ou Campionato Alta diferença maior de gols.
Italia, que contava com clubes das Series A, B e C.
Mas não. O Torino honrou sua fama. Entrou em campo
Após a invasão nazista, a parte do centro-norte pas- e venceu o Venezia por 5 a 2, terminando em segundo
sou a ser chamada de Repubblica Sociale Italiana, e lugar. Spezia campeão. O time liderado pelo camisa
o sul, controlado pelos aliados [Inglaterra e EUA], 10, Valentino Mazzola, perdia o único campeonato
continuou chamando-se Reino da Itália — afinal, italiano até a tragédia de Superga, em 1949. O Grande
Vittorio Emmanuele III deixou Roma após a ocupação Torino monopolizou os troféus no período. Foram
alemã e se instalou em Brindisi, capital da Puglia, que cinco Scudetti oficiais consecutivos até que o avião
fica exatamente na ponta do calcanhar da bota. Foi lá que trazia o time de um jogo contra o Benfica, em
onde se disputou o Campionato Dell'Italia Libera, que Lisboa, colidisse contra o muro da Basílica de Superga.
não contava com nenhum clube da Serie A, somente
das séries B e C.

No meio deste contexto, o futebol se ajustou a essa


nova divisão do país. Há relatos de vários jogadores
que fugiram para o sul após o controle e ocupação
nazista e acabaram jogando em outros times.

O Torino, que já havia conquistado o campeonato


Mas por que o título
italiano de 1942/43 e também o vice na temporada
1941/42, teve que jogar o Campionato Alta Italia. O não foi oficial?
torneio foi dividido em grupos compostos por regi-
ões e os melhores dos grupos passavam para a fase
inter-regional. Na primeira fase, entre janeiro e maio
de 1944, o Torino terminou como primeiro coloca-
do da região Piemonte/Liguria, de maneira invicta
[16 vitórias e 2 empates]. A segunda colocada foi a Mesmo considerando a oficialidade da competição,
Juventus e ambos se classificaram para a semifinal que dispunha de todos os times da Serie A e tinha um
inter-regional. caráter nacional, levando em consideração o contexto
político daquilo que se chamava República Social
Italiana, regida por Mussolini e controlada pelo na-
zismo, um aspecto esportivo terminaria por dificultar
Os clubes que venceram na o valor e peso oficial do título.
região do Lazio não
Na verdade, o Spezia, que militava na Serie B um ano
disputaram a fase antes, se afiliou ao Corpo de Bombeiros da cidade
inter-regional, tendo a Lazio para conseguir disputar o campeonato e passou a
se chamar G.S. 42º Corpo dei Vigili del Fuoco — ou
ficado com título de campeã. VV.FF. Spezia. O clube atravessava uma grave crise
Os clubes da Toscana — institucional, pois seu presidente, Coriolano Perioli,
havia sido capturado pelos nazistas e enviado a um
Montecatini e Lucchese — campo de concentração na Alemanha.
renunciaram a
No entanto, somente um dia após a conquista do tí-
disputa da fase tulo, a [FIGC] Federação Italiana de Futebol publicou
fi nal do campeonato. um comunicado dizendo que o caráter da competição
não era de um Scudetto e sim, de um campeonato de
guerra, com valor de uma Copa Nacional, segundo
Era vez de enfrentar os melhores da Lombardia. Inter- o Spezia, em contradição ao que foi anunciado no
nazionale e Varese compunham o restante do grupo início do certame.
que teve seus jogos entre o final de maio e junho. Mais
Independentemente de todas essas questões, o VV.FF.
uma vez, o Torino não perdeu nenhum jogo [4 vitórias
Spezia não perdeu nenhum jogo no Campionato Alta
e 2 empates] e ficou em primeiro lugar, garantindo
Italia, onde figuravam os melhores times da época.
vaga na fase final.
Venceu, inclusive, o maior de todos daquela época, o
No dia 9 de julho, na Arena Civica de Milão, local Grande Torino.
designado para o triangular final, que se jogaria em
Em 2002, a FIGC decidiu outorgar o título honorário
turno único, o Spezia enfrentava o Venezia — ven-
de campeão italiano ao Spezia, muito embora a ins-
cedores das regiões Emilia e Romagna, e Veneto,
tituição que realmente disputou aquele campeonato
Friuli-Venezia Giulia, respectivamente. A partida
tenha sido outra, em um outro “país”, considerado
terminou em empate por 1 a 1.
um “Estado Fantoche do terceiro Reich”.

79
Carta di
Viareggio
A origem fascista da Serie A
Por Miguel Lourenço Pereira

N
um pequeno paraíso na costa mediterrânica, de bater as débeis equipes do sul num jogo final para
o futebol italiano mudou para todo o sempre. formalizar a sua evidente superioridade, até porque
O que era, até então, um desporto ainda pro- ao sul da Toscana o futebol era um fenômeno ainda
fundamente influenciado pela sua herança britânica, incipiente e tudo se decidia habitualmente entre os
converteu-se numa das mais poderosas armas do grandes clubes da Lombardia, da Savoia, da Ligúria
recém consagrado regime fascista. Benito Mussolini e da Reggio-Emilia.
fez do calcio uma das suas principais bandeiras de
propaganda, antecipando numa década o que acabaria Aos nove scudettos conquistados até então, os geno-
por acontecer um pouco por toda a Europa do futebol: veses queriam juntar a décima coroa, mas em frente
uma profissionalização séria e orientada exclusiva- estava um emergente Bologna, clube com pouca his-
mente para a alta competição. Em Viareggio, comuna tória, mas uma grande equipe que contava com um
da região da Toscana, o futebol vestiu a camisa negra apoio impressionante de uma das grandes figuras
do fascismo e assentou as bases da Serie A. do Partido Fascista, Leandro Arpinati. Alto, atlético,
filho de uma ativista socialista e com uma juventude
Em 1920, Viareggio viveu a primeira morte do futebol marcada por várias aventuras anarquistas, Arpinati e
italiano, quando, no final de um tenso derby entre os Mussolini eram amigos desde jovens e juntos ajuda-
locais e os rivais de Lucca, um adepto assassinou com ram a montar o Partido Fascista. Durante 25 anos, foi
um tiro de espingarda o árbitro do jogo. A cidade ainda um dos seus grandes dirigentes e, tal como “Il Duce”,
não o sabia, mas a importância que teria na história um daqueles que melhor percebeu a importância do
do futebol italiano começou a forjar-se nesse dia e esporte dentro da ideologia do regime. A sua paixão
encerrou-se seis anos depois, simbolicamente, com pelo Bologna era lendária e, além de apoiar o clube
a visão oposta a esse caos emocional. Uma visão de desde as arquibancadas, Arpinati teve também papéis
ordem e progresso debaixo da influência política e administrativos dentro da entidade. Até aquela tarde
emocional do fascismo. Mas para chegar a esse verão de sete de junho na capital lombarda, quando a sua
de 1926 é fundamental viajar até um ano antes, em sombra ganhou outros contornos.
Milão, numa história cujos protagonistas principais
vinham de Bolonha, cidade historicamente ligada à Bologna e Genoa chegavam a um jogo de desempate
extrema esquerda politicamente, mas que — ironia depois de cada um ter vencido o rival por 2 a 1 no
das ironias — contava com um clube cujo principal campo contrário. A emoção estava a mil. Os genove-
apoiador era igualmente um dos pesos pesados do ses adiantaram-se cedo e ampliaram a vantagem até
Partido Fascista. Os eventos aconteceram na final o 2 a 0 com que se chegou ao intervalo. Na volta ao
do campeonato da zona norte entre o Rossoblu [Bo- segundo tempo, o poderoso atacante bolonhês Schia-
logna] e o Genoa, um jogo que entrou para a história vvo desferiu um potente disparo que o goleiro De Pra
por distintos motivos. O conjunto genovês era a má- desviou pra fora. Uma situação normal transformada
xima referência do calcio, o clube com mais títulos imediatamente pela ação de Arpinati, que liderou
nacionais até então, quando o campeonato era dis- uma invasão de campo de vários camisas negras —
putado apenas por equipes do norte que só tinham os apoiantes mais radicais do regime. Eles cercaram

80
o árbitro reclamando que a bola tinha entrado, ras- estrangeiros e até a mudança dos nomes de origem
gado a rede pela lateral e saído, pelo que deveria ser inglesa para a sua versão italiana.
confirmado o gol. A confusão durou mais de vinte
minutos, até que, cedendo à pressão física dos torce- Desse modo a Inter passou a ser “Ambrosiana” e
dores do Bologna, o árbitro Gianni Mauro — antigo o AC Milan virou “Milano”. Por outro, de forma a
futebolista da Inter e do AC Milan — mudou a decisão dotar os clubes do sul de meios para rivalizar com
e concedeu o gol. Os genoveses não podiam acreditar os grandes emblemas do norte, Mussolini forçou a
e vieram abaixo, concedendo um empate a Schiavvio fusão de pequenas equipes em super clubes regio-
momentos depois. O jogo acabou empatado e, quando nais. Assim nascem para a história times míticos,
Mauro indicou que se realizaria uma prorrogação, os como a Fiorentina, o Napoli e a AS Roma. A entidade
jogadores do Genoa se negaram, abandonando o jogo romana, que deveria converter-se no grande clube
sob a reclamação de que a vitória deveria ser atribuída da Itália segundo os desejos do Duce, nasceu do re-
a eles por ter existido uma invasão de campo. Assim sultado da fusão de todos os clubes da capital, com
ditava o regulamento, mas para Arpinati as leis se a exceção da SS Lazio, o único time que se negou à
faziam sob medida. pressão do regime. Ironicamente, décadas depois
seria a entidade um clube com mais torcedores na
Utilizando a sua influência, conseguiu que Mauro região interior do que na capital, identificado com
alterasse o seu relatório para indicar que tinham a extrema direita fascista por oposição a uma liga-
sido adeptos de ambos os clubes a invadir o grama- ção mais popular e de esquerda da Roma. Outra das
do, provocando assim a necessidade de um quarto principais decisões tomadas em Viareggio foi a de
encontro — que também acabou empatado — antes reformular por completo a estrutura organizativa
que um quinto jogo finalmente coroasse o Bologna, do jogo, desde a seleção nacional, a Squadra Azzurra,
que depois bateu o Alba-Aldace Roma num duelo cuja direção seria entregue a um promissor técnico
formal contra o campeão da zona sul, conquistando chamado Vittorio Pozzo, bem como a federação, cujo
assim o seu primeiro título. O Genoa jamais seria primeiro presidente seria… Leandro Arpinatti.
campeão novamente. A atitude de Arpinati assentou
o precedente — o “Scudetto delle pistole” [“Título Arpinatti foi a sombra que coseu as distintas vontades
das armas”] ficou batizado para a posteridade — e em Viareggio, logrando inclusive trasladar a sede
no ano seguinte foram várias as invasões de campo da FIGC [Federação Italiana de Futebol] de Turim
de membros ligados ao Partido Fascista em jogos que até Bolonha. A carta, assinada formalmente pelos
suas equipes apresentavam resultados adversos, o que emissários de Ferreti, entre os quais se encontrava
por sua vez levou a uma greve dos árbitros no final da Giovanni Mauro — precisamente o árbitro do polê-
temporada 1925-26, até que a ordem fosse restaurada. mico jogo de Milão de um ano antes — a 2 de Agosto,
após pouco mais de dez horas de reunião, marcou um
O fantasma de não poder avançar com o torneio, bem antes e um depois na história do calcio. A aparição
como a crescente influência de vários dirigentes fas- de uma competição altamente estruturada e profis-
cistas de clubes rivais, levaram Mussolini a atuar. O sionalizada como a Serie A, estreada no seu modelo
futebol seria tomado como um exemplo por todos final em 1929/30, quando a maioria das principais
aqueles que defendiam a ordem frente ao caos na ligas européias, exceto a inglesa, ainda viviam a idade
sociedade italiana. Uma crise na gestão da federação amadora — casos de Espanha, Alemanha, França,
precipitou os acontecimentos para o verão de 1926, Portugal ou Holanda — deu ao futebol italiano um
quando a demissão do presidente Enric Olivetti le- importante avanço que permitiu aos transalpinos se
vou a Lando Ferreti, presidente do Comitê Olímpico afirmarem como a grande potência mundial da década
Nacional Italiano [CONI], a dar seguimento formal seguinte, quando venceram dois Campeonatos do
ao plano do Duce. Mundo, uns Jogos Olímpicos e os seus clubes várias
edições da Copa Mitropa, o primeiro grande torneio
Na tranqüilidade do passeio marítimo de Viareggio, de clubes europeu.
vários dignatários do Partido Fascista e do CONI pas-
seavam no fim de tarde de 30 de julho de 1926. Foi na O profissionalismo aberto foi igualmente decisivo
cidade costeira toscana, bem perto de Lucca, que o para atrair alguns dos melhores jogadores sul-a-
regime de Mussolini decidiu convocar uma reunião mericanos, o que criou pela primeira vez o conceito
entre distintos elementos ligados ao futebol para ci- de “liga de estrelas”, um conceito que os italianos
mentar as bases de uma nova era do calcio. Mussolini iriam procurar repetir no futuro recorrentemente,
estava disposto a seguir os passos de algumas das como se viu nos anos 1950 e 1960, primeiro, e logo
ligas centro-européias e aprovar o profissionalismo nas décadas de 1980 e 1990 — períodos em que foram,
— que na imensa maioria das ligas era ainda uma inequivocamente, a liga mais importante do Mundo.
utopia —, mas em troca exigia uma reformulação Para Arpinatti, novo presidente da federação, o êxito
absoluta do futebol transalpino. Por um lado, aca- da Carta di Viareggio foi vivido com exultação. O bo-
bar-se-ia com o torneio de Prima Divisione, como lonhês cedo exerceu o seu novo poder quando, no seu
era conhecido, em que os campeões norte e sul se primeiro ano como máxima figura, conseguiu anular
encontravam numa final depois de fases de grupos o título conquistado pelo Torino sobre o seu Bolonia
regionais. Estava na hora de criar um torneio nacional graças a uma acusação de corrupção esportiva nunca
com representantes de todos os quadrantes geo- provada. Sobre a sombra do fascismo e da polêmica,
gráficos do país, mas para isso acontecer Mussolini foram lançadas as sementes de um torneio único,
necessitava de duas coisas. Por um lado, impor a sua onde até o gigante mais poderoso como a Juventus
influência nos grandes clubes do norte, muitos deles pode ser despromovido por corrupção e em que nada
ainda marcadamente de influência britânica, o que é bem o que parece. Um torneio que foi muitas vezes a
levou a exigir a todos eles o abandono de costumes inveja do mundo, mas que dificilmente teria surgido
não italianos; a expulsão de jogadores e treinadores se não fosse a ambição política do fascismo

81
Todos os
caminhos
levam
à Roma
Quando os melhores do mundo
jogavam na Itália
Por Miguel Lourenço Pereira

82
D
urante quatro etapas distintas, a Serie A ita-
liana foi considerada como a competição na-
cional de clubes mais importante do mundo.
No caso das quatro, foi o dinheiro e a importante
influência política que pavimentaram o caminho. A
chegada de Cristiano Ronaldo à Juventus — a primei-
ra transferência de um jogador considerado como o
melhor do mundo desde Ronaldo Nazário para um
clube transalpino — tem como objetivo abrir uma
quinta etapa dourada. Mas a história pode voltar a
repetir-se.

Luisito Monti chegou à Itália depois do mundial de


1930. Zico e Sócrates, da desilusão de Sarriá, aterris-
saram em terras italianas. A chegada inesperada de
Cristiano ecoou a de Ronaldo — o original — vinte
anos depois. O esquadrão sueco no alvor dos anos
1950 depois do show em terras brasileiras. Cinco epi-
sódios, cinco momentos chave na história do calcio.

Todos eles prenunciaram o início de algo único. Até


a confirmação do real impacto de Cristiano na Ju-
ventus, todos eles fizeram história e contribuíram
para que a Serie A fosse considerada, historicamente,
como uma das três ligas mais importantes da história
do futebol. Todas elas foram ponto de inflexão, o mo-
mento em que os dirigentes italianos — desportivos
e políticos — entenderam que, para poder competir
com os maiores do mundo, os italianos tinham de
encontrar uma fórmula para fazer coabitar o talento
local com a nata mundial. Para que o futebol fosse, no
terreno de jogo, o genuíno motor de união de um país
que de unificado sempre teve pouco. Muito pouco.
Não é casualidade. Não apenas porque só em 1929 é
que finalmente pôde-se falar numa liga nacional.
O desequilíbrio já existia e iria seguir porque, do
Rio Pó para sul, raros eram os clubes que podiam
medir-se com as potências do norte. Mas também
porque, como país, a Itália ainda não sabia o que era.

A unificação, forjada pelas “camisas vermelhas” do


herói Garibaldi, tinha sido feita debaixo da bandeira
dos Saboia, uma família real com tanto de italiana
como de francesa, na fronteira noroeste do país,
sem qualquer relação com napolitanos, toscanos ou
venezianos, para não falar nas ilhas. O que entendiam
esses saboianos sobre “Itália”? Um conceito tantas
vezes associado ao império romano que esqueciam
igualmente que Roma já foi apenas um hub central
de uma série de tribos regionais — de influências
gregas e fenícias, ao sul; galas e germânicas, ao norte
—, sem nenhuma relação direta entre si. Itália não

83
Todos os caminhos levam a Roma

existia política e socialmente depois de quase dois Não foram os únicos. Entre os oriundi [descenden-
mil anos de cidades-Estado, mas encontrou uma tes de italianos], estavam ainda estrelas do futebol
forma de se olhar no espelho quando a bola começou sul-americano como Libonatti, Cesarini, Guaita, que
a rolar. E fê-lo debaixo de uma idéia de Estado que, ao se unirem aos Piola, Meazza e companhia, aju-
em momentos temporais diferentes, soube aplicar daram não só à Itália de Pozzo a vencer duas Copas
uma metamorfose ao mercado e à gestão dos clu- consecutivas — em 1934 e 1938 —, como também a
bes para reforçar essa rivalidade que, no fundo, era transformar a liga italiana na mais forte da Euro-
também união. pa, ultrapassando os rivais austríacos, húngaros
ou checos com quem se mediam — e muitas vezes
1930. 1950. 1982. 1996. 2018? Cinco momentos chave, superavam — na emergente Taça Mitropa.
cinco anos históricos para a redefinição do calcio.
Cinco anos em que a mistura de italianos e estran- Quando na Espanha ainda se vivia um semi-pro-
geiros levou o futebol local para outra dimensão. Não fissionalismo, na Alemanha e na França um claro
é ironia que três desses momentos tenham surgido amadorismo e na Inglaterra se mantinham todos
depois de Copas do Mundo — até os anos da televi- isolados do planeta, eram os italianos que governa-
são por satélite, o verdadeiro scouting que os clubes vam o mundo e, não fosse a Segunda Guerra Mundial
tinham em mãos — e que tenham dado o pontapé ter deflagrado em 1939, essa hegemonia poderia ter
inicial para uma nova época dourada. seguido, tal como demonstrou a grande formação
do Torino dos anos 1940. Mas o desaparecimento
Tudo começou com Benito Mussolini e Vittorio Pozzo, da squadra turinesa no acidente de Superga e os
dois homens que partilhavam de uma idéia, apesar problemas da reconstrução de um país depois dos
de quererem chegar a ela de maneiras diferentes. anos de guerra atiraram o calcio para o precipício.
Pozzo era um visionário, um homem do mundo, Parecia que finalmente os ingleses se abriam ao
distante do ideal teórico fascista, um anglófilo as- mundo e que os espanhóis começavam a assumir
sumido e, sobretudo, um apaixonado pelo futebol. o papel de “liga dos milhões” ao atrair estrelas do
Foi dele que surgiram idéias tão importantes para nível de Kubala ou Ben Barek, o que deixava a Serie A
a evolução do jogo, como a Taça Mitropa, a primei- numa situação complicada. Uma vez mais uma Copa
ra grande competição de clubes européia, e a Taça do Mundo e uma decisão das autoridades ajudaram
GERO, a sua equivalente de seleções, uma espécie de a dar a volta por cima na situação.
“proto-europeu”. Também do conceito de Squadra
Azzurra, um clube nacional mais do que uma seleção Por um lado, tornou-se evidente às autoridades de-
dos jogadores mais em forma, como era habitual à mocrata-cristãs que, para evitar a ascensão da ame-
época. Pozzo queria triunfar a todo o custo e com os aça do Partido Comunista, o mais forte da Europa
melhores. Nisso, sim, as suas idéias cruzavam-se Ocidental, era necessário dar ao povo italiano uma
com as de Mussolini. Não só ele era um apaixonado nova ração de “pão e circo”. Não foi por casualidade
pelo jogo — provavelmente o único dirigente fascista que a emergência do cinema italiano na sua época
europeu que o era —, mas também um conhecedor áurea coincida com esses anos 1950 e também que o
do seu impacto na sociedade. futebol tenha despertado da sua letargia quando as
autoridades voltaram a gerar condições financeiras,
Já debaixo da sua proteção, o futebol italiano tinha com vários empréstimos que nunca foram pagos pe-
assumido o profissionalismo, uma organização na- los clubes, para que estes pudessem oferecer salários
cional e nacionalizada. Depois da Copa de 1930 no apetecíveis aos melhores jogadores da Europa para
Uruguai, na qual os italianos estiveram ausentes, se mudarem ao país.
Mussolini entendeu verdadeiramente a importância
que o jogo poderia ter e assumiu a necessidade dos O mundo pós-Segunda Guerra Mundial era, no en-
italianos liderarem essa dinâmica desde a Europa. tanto, muito diferente daquele de 1930. A Escola
Foi fundamental para conseguir a organização do Danubiana tinha desaparecido, engolida pelos pa-
seguinte torneio, em 1934, apesar da vontade de Jules íses do Bloco do Leste, e ainda que alguns exilados
Rimet de levar a competição ao seu país natal. Foi húngaros encontrassem o caminho das fronteiras
também quem colocou à disposição de Pozzo todas italianas, a maioria optou pela Espanha para seguir
as ferramentas para conseguir vencer a competição. com suas carreiras. Os sul-americanos também ti-
A mais importante de todas foi a nacionalização de nham encontrado nessa década mais estímulos para
jogadores sul-americanos para reforçar as cores ficarem em casa ou irem ao campeonato espanhol,
italianas. Como? Aproveitando a origem italiana de o que limitava e muito o mercado para os clubes
muitos deles — alguns, filhos de italianos emigrados italianos. Foi, no entanto, a magnífica e inesperada
na Argentina e no Uruguai, outros até nascidos na campanha da Suécia no mundial do Brasil, em 1950,
Itália antes de partirem muito jovens com os seus que apresentou ao mundo as suas principais estrelas.
familiares para o Novo Mundo —, o regime fascista
impulsionou a contratação das principais estrelas Rapidamente, os clubes italianos olharam para o
do mundial por clubes italianos, garantindo aos norte e trouxeram para a Serie A jogadores como
jogadores a nacionalidade e com ela a possibilidade Gunnar Nordhal, Gunnar Gren e Nils Liedholm. Qua-
de defender as cores da Itália. À época não existia a tro anos depois, o triunfo da Alemanha Ocidental
proibição de defender países distintos, e como era abriu igualmente as portas a jogadores germânicos,
muito raro um jogador representar o seu país se jo- como Schnellinger, a seguirem o mesmo caminho.
gasse fora do campeonato local — por dificuldades E apesar dos espanhóis terem um ponto de vanta-
logísticas — essa promessa foi determinante para gem — evidente na conquista das primeiras edições
convencer a atletas como Luisito Monti ou Raimundo das novas competições européias —, as presenças
Orsi a cruzarem o Atlântico. de Fiorentina e Milan nas finais da antiga Copa dos
Campeões da Europa foram o prenúncio de uma mu-

84
Quando os melhores do mundo jogavam na Itália

dança de ciclo consumado pelo triunfo dos Rossoneri, era, provavelmente, o melhor jogador do mundo
em 1963, e da Inter de Helenio Herrera em 1964 e aos olhos de muitos — Zico. À sua volta militavam
1965, no principal torneio continental europeu, bem também Sócrates [Fiorentina], Rummenigge [In-
como os triunfos da Fiorentina e da Roma noutras ter], Boniek [Juventus/Roma], Falcão [Roma], Brady
competições. E nessas equipes, além dos principais [Milan], Elkjær Larsen [Verona] e Toninho Cerezo
jogadores italianos, havia suecos, alemães, brasi- [Roma/Sampdoria]. A chegada de Diego Armando
leiros, como Altafini e Jair, e uma nova geração de Maradona a um modesto Napoli, em 1984, culminou
oriundi, como Angelillo, Sivori e companhia. nesse momento de virada que lançou a Serie A de
novo para o mais alto nível.
A Serie A era, de novo, a liga mais importante do
mundo em meados dos anos 1960, e a chegada de Quando a nova geração de talentos internacionais
Eusébio, a estrela portuguesa do mundial de 1966, despontou nas suas ligas natais, a sua chegada
à Inter parecia consumar esse apogeu, não fosse a aos gigantes italianos passou a ser uma questão
surpreendente derrota dos italianos frente à desco- de “quando”, e não de “como”, tal qual se viu com
nhecida Coréia do Norte. Foi um golpe humilhante às os holandeses que assinaram pelo AC Milan e os
aspirações de uma Itália que não vencia um torneio alemães que optaram pela Inter. Ninguém discutia
internacional desde 1938, que levou as autoridades que o futebol italiano de finais dos 1980 era a liga
a tomar uma decisão radical: fronteiras foram fe- a seguir, mas a afirmação da Premier League em
chadas e estrangeiros foram impedidos de atuar no 1993 e o importante investimento financeiro dos
calcio. A curto prazo parecia uma boa decisão. espanhóis em conceber a “Liga Milionária” — com
ajudas fiscais propiciadas pelo governo conservador
A Itália venceu o Europeu de 1968 e perdeu a final — ameaçaram ultrapassar os italianos, não fosse
contra o mágico Brasil no Azteca, dois anos depois. um novo golpe surpresa marcado pela contratação
Inter e Juventus disputaram finais européias no co- de Ronaldo Nazário, do Barcelona, pela Inter.
meço dos anos 1960 contra o poderoso Ajax. Mas
depois veio o deserto. Só com italianos a Serie A A chegada do gênio brasileiro marcava um ponto
transformou-se no campeonato mais previsível e de virada depois de cinco anos em que a Serie A pa-
aborrecido da Europa, e os conjuntos do país desa- recia ter sido suplantada pelos espanhóis — casos
pareceram da elite européia. De tal forma que, uma de Romário, Stoichkov, Laudrup, Hagi — e pelos
vez mais, foi o governo transalpino quem teve de ingleses — Cantona, Ginola, Bergkamp, Zola — na
intervir para mudar o contexto. Eram os “anos de questão de atrair os melhores do mundo. Ronaldo
chumbo”, os anos em que grupos armados, como as em 1997 marcou esse momento, seguido nos anos
Brigadas Vermelhas, podiam assassinar primeiros- seguintes pelas incorporações de outras máximas
-ministros impunemente, em que os movimentos de figuras mundiais, como Zinédine Zidane, George
extrema-direita faziam explodir bombas no centro Weah, Rui Costa, Gabriel Batistuta, Youri Djorkaeff,
das cidades e que os clãs da droga dominavam já as Marcelo Salas, Juan Sebastian Verón, Hernan Crespo,
ruas da Sardenha, da Sicília, Nápoles e Roma. Nes- Andriy Shevchenko, Pavel Nedvěd, David Trezeguet,
se contexto desesperante, o fracasso absoluto do Zlatan Ibrahimović e Adriano.
Europeu de 1980 — não só da seleção azzurra — e
também do interesse dos tiffosi nas arquibancadas Foi na virada do milênio que o calcio viveu outra
dos campos onde se disputaram os vários jogos le- época dourada, graças a uma engenharia financeira
varam as autoridades a atuar. Foi desenhada uma fictícia — como as falências posteriores de Parma,
estratégia de marketing esportivo para mudar a Lazio, Napoli e Fiorentina demonstrariam — apoiada
face do futebol italiano. Vários clubes mudaram de por uma série de governos de centro-direita mais
emblemas, houve reajustes até de equipamentos, interessados em que as atenções nacionais estives-
introduziu-se a publicidade nas camisas. sem nas jornadas de fim de semana, ou nos êxitos
europeus, do que na supervisão das contas públicas.
O triunfo na organização da Copa do Mundo de 1990 Até que a bolha estourou. Ironicamente com uma
em relação à candidatura soviética abriu caminho Copa do Mundo — outra — conquistada pela própria
a uma profunda renovação das infra-estruturas. Itália — de novo. Uma punição à Juventus, clube que
Mas o que verdadeiramente relançou a Serie A para melhor representou essa gestão, arrastou pouco a
a elite foi a reabertura das fronteiras a jogadores pouco os outros gigantes com ela.
estrangeiros, limitada a um jogador em 1980, dois
em 1981 e três na temporada seguinte. Tempora- A definitiva afirmação do modelo de negócio de es-
da que começava precisamente depois de mais um petáculo e entretenimento da Premier, a maior con-
mundial. Um mundial que, contra todo o prognóstico, centração de gênios individuais por metro quadrado
os italianos acabariam por vencer, mas no qual as da história na liga espanhola e o êxito da política
estrelas individuais foram outras: desde os fran- esportiva de uma renovada liga alemã destronaram
ceses liderados por Platini, os polacos de Boniek ou a Itália para uma posição secundária como nunca
o magnífico e eterno conjunto brasileiro, superado antes. Até que chegou Cristiano Ronaldo. Até que
pelos transalpinos no Sarrià. aterrissou o português. Num país entregue, de novo,
a uma gestão pública caótica, com uma dívida im-
A abertura das fronteiras, o novo influxo financeiro possível de pagar e com o futebol a surgir, uma vez
de novos donos e dois apoios publicitários abriram mais, como única tábua de salvação emocional para
a liga italiana a uma nova época de liderança propi- os milhões de italianos. O desembarque do português
ciada pela chegada imediata de alguns dos maiores na Serie A pode prenunciar um regresso ao passado,
jogadores do mundo. A partir da temporada 1982/83, a uma história que já demonstrou funcionar até que
passeavam pelos campos italianos o melhor jogador se perdesse a conta. Uma história que pode ter um
europeu à época — Michel Platini — e aquele que final já escrito nas estrelas.

85
86
Ascensão,
queda e
renascimento
de um
império
Como a Serie A se tornou,
deixou de ser e pode voltar
a ser um grande centro do
futebol mundial
Reportagem:
Fernando Martinho
Ilustração:
Igor Bertolino/@declassebr

87
Ascensão, queda e renascimento de um império

D
ennis Bergkamp e Davide Fontolan: dois loi- eldorado do futebol italiano. Era na Itália onde se
rinhos que faziam a dupla de ataque da Inter- jogava o futebol mais avançado do mundo — tática
nazionale naquele Derby della Madonnina da e tecnicamente.
temporada 1993/94. A Inter havia vencido pela última
vez a Serie A em 1989 e via seu arqui-rival se aproximar O futebol na Espanha se reestruturava depois de uma
do terceiro título consecutivo. profunda crise financeira que levou à uma legislação
específica, precisamente no ano de 1990, para con-
Na década de 1990, as transmissões do campeonato trolar a atuação econômica dos clubes com maior
italiano já eram tradicionais. Domingo era dia de transparência, que os convertia em SAD [Sociedades
visitar a bisavó e foi lá que deu pra assistir a esse Anónimas Deportivas], e o país, em si, ainda cicatriza
encontro. Antes de sair de casa, Elia Jr, simpático as feridas do franquismo, que caiu em 1978. O Barce-
carequinha da, então, Bandeirantes — “O Canal do lona ainda contratava jogadores a peso de ouro, como
Esporte” —, fazia o pré-jogo e se empolgava com Roberto Dinamite, Maradona ou Lineker, mas a eco-
uma possível vitória da Inter sobre o todo-poderoso nomia espanhola não permitia uma liga forte durante
conjunto milanista. toda a década de 1980, mudando o cenário somente
no início dos anos 1990, mas La Liga só começou a se
O Milan era, naquela época, algo parecido com o Real solidificar na metade final daquela década.
Madrid entre 2014 e 2018. Um time que todos detesta-
vam, apesar de reconhecer a superioridade técnica e A Alemanha estava dividida até a queda do muro de
tática. No comando de Arrigo Sacchi, o time levantou Berlim em 1989 e, exatamente nessa época, os prin-
duas Copas dos Campeões em 1989 e 1990 e manti- cipais jogadores alemães também escolheram a Itália
nha-se no topo no início dos anos 1990. pra jogar. Rudi Völler foi contratado pela Roma em
1987 e, nesse mesmo ano, Thomas Berthold assinou
Os Rossoneri perderam a final da Champions em 1993 com o Verona. Andreas Brehme e Lothar Matthäus
contra o Marseille. Mas o Olympique não disputou chegaram à Inter em 1988 e, já na primeira temporada,
a Taça Intercontinental daquele ano contra o São conquistaram o Scudetto. Logo depois, chegou outro
Paulo por conta da suspensão imposta ao clube por craque germânico: Jürgen Klinsmann.
suborno em jogos do campeonato francês. Naquela
final da Intercontinental, Milan e São Paulo fizeram A força do futebol italiano no final dos anos 1980 era
uma partida épica em Tóquio, que terminou com a perceptível nas competições européias. No livro Noites
vitória do Tricolor Paulista por 3 a 2. Européias, de Miguel Lourenço Pereira, publicado no
Brasil pela Corner, esse período recebeu um capítu-
Os Milanistas chegariam à outra final da Champions lo próprio chamado Calcio D'Oro. Antes de falar da
mais adiante, em 1994, desta vez vencendo o Barcelona Copa dos Campeões da Europa, vale lembrar que no
de Cruijff, campeão em 1992, já com Romário no time. seu antigo formato e até alguns anos após a criação
da Champions League, um país só era representado
Era o Milan de Fabio Capello. Arrigo Sacchi deixou o pelo campeão e apenas a liga que tivesse o campeão
clube em 1991 para assumir a seleção italiana. O novo da edição anterior poderia ter dois times participan-
técnico herdou jogadores como Gullit, van Basten e tes. Foi nesta época que o Milan mostrou ao mundo a
Rijkaard do time montado por Sacchi e foi recebendo potência econômica e esportiva do calcio.
outros jogadores fantásticos. À medida em que os
antigos medalhões saíram, chegaram novas feras
como Boban, Lentini, Savićević e Jean-Pierre Papin.
Mas lá estavam sempre Franco Baresi, Alessandro
Costacurta e Paolo Maldini na defesa, ponto forte
rossonero.

A Serie A italiana era similar ao que a Premier League


se transformou da metade dos anos 2000 em diante, ou
talvez até mais, pois não havia uma concentração tão
grande de craques na dupla Real Madrid–Barcelona.
Desde os anos 1980, quando a Itália abriu as portas
Fiat Uno
para jogadores estrangeiros, os melhores do mundo
desembarcavam em algum ponto da Velha Bota.

Dessa forma, se despertou um interesse midiático


natural. As pessoas queriam assistir a duelos entre
a Roma de Falcão e Toninho Cerezo, contra o Napoli
de Maradona, ou a Udinese de Zico e Edinho. Tinha
também a Fiorentina de Sócrates e Passarella, e nem

O
falar da Juventus de Platini, Boniek e também Michael presidente da Fiat, Gianni Agnelli, apresentava
Laudrup. As narrações eram, no início, de Luciano em 1983 um novo modelo de carro que renderia
Bruno, mas depois, de Silvio Luiz e os comentários muito lucro à montadora. Com um custo redu-
ficavam com Silvio Lancelotti, que também teve uns zido pela produção em série robotizada e aumento
programas de culinária na TV Bandeirantes ao longo da produtividade, o Fiat Uno chegava logo após uma
da semana. crise política entre sindicatos e empresas no final dos
Anos de Chumbo na Itália.
Eram os anos dourados do calcio. A Copa de 1990,
embora carregue consigo uma fama — injusta — de A Juventus, tendo a Fiat como empresa-mãe, acom-
ter sido um Mundial ruim, foi a cereja do bolo de um panhou o sucesso do novo modelo. O clube de Turim

88
Como a Serie A se tornou, deixou de ser e pode voltar a ser um grande centro do futebol mundial

chegou à final da Champions em 1983, já com as es- do seu terceiro mandato, as demandas da esquerda
trelas Platini e Boniek, quando perdeu pro Hamburgo em todo o mundo também chegam à Itália.
em Atenas. Em 1985, os Bianconeri chegariam no-
vamente à final, e encarariam o campeão Liverpool Em junho de 1968, por um lado, a Itália se consagrava
de 1984 num jogo que dividia o curso das águas. O campeã européia em Roma ao derrotar a Iugoslávia
título demonstrava a proeminente força dos clubes no Olimpico, mas dias mais tarde, chegava o fim do
italianos, afinal, era o primeiro título após duas fi- período de Aldo Moro como Primeiro Ministro e, por
nais perdidas, e marcaria um fim do domínio quase outro lado, o mundo entrava em ebulição. Foi o “Ano
hegemônico inglês, desde a metade final da década que não terminou”, como intitulou Zuenir Ventura
de 1970. Não só a derrota inglesa sentenciaria isso, em seu livro.
mas sim a batalha campal entre torcedores ingleses
e italianos, que ficou conhecida como Tragédia de Na Itália, o “Sessantotto” teve, como pontapé inicial,
Heysel, acarretaria na suspensão de clubes ingleses a ocupação da faculdade de Sociologia de Trento, no
de competições européias. norte do país, em fevereiro daquele ano. Mas foi em
12 de dezembro de 1969 o verdadeiro marco daqueles
Com os temidos times — e torcedores — ingleses de que seriam os Anos de Chumbo: um atentado na praça
fora, o futebol europeu abria espaço, primeiro, para Fontana em Milão deixou 17 mortos e 88 feridos com
“pequenos” clubes chegarem à glória, como Steaua a explosão de uma bomba na sede do BNA [Banca
Bucareste, Porto e PSV Eindhoven, mas depois, o Mi- Nazionale dell'Agricoltura]. A autoria foi do grupo
lan, de Arrigo Sacchi, chegaria ao trono e alternaria político de extrema direita Ordine Nuovo.
com a Juventus a dinastia italiana do futebol europeu.
A tensão aumentou gradualmente durante a década
Mas não foi por acaso. Para que se juntasse a ge- de 1970, numa época marcada por terrorismos das
nialidade de Sacchi e de jogadores do quilate de van militâncias políticas extremistas de direita e de es-
Basten e cia, houve um personagem chave: Silvio querda. O partido Democrata Cristão seguiu no poder.
Berlusconi. E para entender a aparição de Berlusconi,
é fundamental entender o contexto político e social Em 1974, Aldo Moro voltou ao cargo de Primeiro Mi-
italiano, um terreno fértil no final dos anos 1980 para nistro e, dois anos mais tarde, foi reeleito no cargo.
o surgimento de personagens como Berlusconi. Apesar de consolidar uma coalizão de centro-esquer-
da durante seus cinco mandatos, Moro foi perdendo
o apoio dos partidos socialistas aos poucos. No seu
lugar, em 1976, assumiu Giulio Andreotti, também da
Democracia Cristã, partido que Aldo Moro presidia,
aliás.

Em 1978, no dia em que Andreotti iniciava seu seguinte


mandato, Moro foi seqüestrado pelo grupo político
de esquerda Brigate Rosse. O alvo era o partido, que,
Aldo Moro e os Anos de segundo a Brigate Rosse, oprimia o povo italiano desde
os anos 1950. Um dos seqüestradores, Franco Bonisoli,
Chumbo contou que cogitaram seqüestrar o Primeiro Ministro
Giulio Andreotti, mas que pelo premiê gozar de uma
proteção muito mais ostensiva, acabaram optando por
raptar Moro, como relata o livro L'Italia degli anni di
piombo, de Indro Montanelli e Mario Cervi, de 1991.

Depois de 55 dias de procuras frustradas, o corpo de


Aldo Moro foi encontrado em Roma, num local bem
próximo à sede do Partido Democrático Cristão. O

O
clima político na Itália na metade final dos episódio foi, talvez, a gota d'água daquele período
anos 1970 era complexo. No governo estava que culminou no processo de Riflusso, um movi-
Aldo Moro, do Partido Democrata Cristão. Ele mento social de desilusão política de uma “maioria
iniciou sua carreira política em 1942, dentro do es- silenciosa”, que disse basta para os Anos de Chumbo.
pectro cristão de oposição ao Fascismo. Com o fim
do regime fascista, Moro ascendeu politicamente de O marco inicial dos Anos de Refluxo foi a “Marcha
maneira vertiginosa. dos Quarenta mil” em Turim, em outubro de 1980,
que visava reabrir as fábricas da Fiat ocupadas por
Eleito deputado nas eleições de 1948, dois anos após ter sindicalistas. Uma faixa carregada na passeata di-
participado do processo da assembléia constituinte. zia “queremos negociar e não a morte da FIAT” e
Depois de diversas iniciativas no campo político e de ilustrava bem como o povo havia se desvinculado
uma aliança com a centro-esquerda bem sucedida, em dos sindicatos.
1963, Aldo Moro se elegeu Primeiro Ministro italiano.
Era a primeira vez, desde a fundação da República Um outro aspecto que caracterizou a época foi a mas-
Italiana, em 1946, que um governo formaria uma base sificação da TV, que trouxe um impacto na relação
com lideranças socialistas no parlamento. público e mídia com um boom de publicidade, acar-
retando diretamente num maior consumo. Come-
O primeiro mandato de Moro prometia diversas re- çava um período de políticas de bem-estar social e o
formas, porém executou pouquíssimas e quase nada. futebol integrava perfeitamente esse processo com
Mas o líder democrata cristão conseguiu ser reeleito a abertura do mercado para jogadores estrangeiros,
mais duas vezes consecutivas. No entanto, ao final e o primeiro deles foi Falcão.

89
Ascensão, queda e renascimento de um império

Made in Italy levantou a Champions em 1963 e a Internazionale con-


quistou o bi da Champions em 1964 e 1965. Durante a
proibição de contratações de jogadores não-italianos,
somente o Milan conseguiu conquistar o principal
título europeu, em 1969, e duas Recopas. A Juventus
conseguiu vencer a Copa da UEFA em 1977 e só.

O
bloqueio a estrangeiros ocorreu após a derrota da Os clubes italianos só voltaram a ter protagonismo na
Itália para a Coréia do Norte na Copa do Mundo Europa a partir da reabertura em 1980, quando cada
de 1966. Nascia o Made in Italy. Uma maneira de clube passou a poder contratar um jogador estran-
evitar que jogadores italianos fossem preteridos por geiro por temporada e, em paralelo, uma revolução
estrangeiros e acabar por não formar talentos locais. midiática levaria o calcio aos seus anos mais gloriosos.
No entanto, em 1980, houve um caso que mancharia
A mesma iniciativa já havia sido colocada em prá- o futebol italiano.
tica antes, em 1953, pelo então ministro do interior,
Giulio Andreotti, que viria a ser Primeiro Ministro
pela Democracia Cristã, por cinco vezes, inclusive
substituindo Aldo Moro em 1976.

Andreotti acatou o pedido do Comitê Olímpico Ita-


liano, que previa a proibição da inscrição de joga-
dores que não tivessem antepassados italianos, os Pubblicità
chamados Oriundi.

Tanto em 1953 quanto em 1966, a motivação era a mes-


& Totonero
ma. Primeiro se deu por conta do desastre aéreo que
aniquilou o time do Torino, na Tragédia de Superga.
O futebol italiano não conseguia formar uma Squadra
forte e acharam que eliminando os estrangeiros o
problema seria solucionado. A primeira intervenção

D
durou apenas quatro anos, e foi durante a primeira ado o baixo rendimento dos clubes italianos nas
proibição de estrangeiros que a Fiorentina contra- competições da UEFA, o número de vagas pas-
tou Julinho Botelho, em 1955. A contratação só foi sou de seis para quatro na temporada 1979/80.
possível pois encontraram um avô dele na Toscana, Tudo isso graças ao fechamento para contratação
precisamente na cidade de Lucca. de jogadores estrangeiros, que provocou uma queda
brusca de competitividade internacional do calcio.
O brasileiro havia se destacado na Copa do Mundo de
1954 na Suíça e atraiu a atenção do clube de Florença. Nesta temporada, em contrapartida, aconteceram
Julinho, primeiro brasileiro a jogar na Fiorentina, foi também grandes inovações. Dada a popularidade
fundamental na conquista do primeiro Scudetto viola do calcio e a necessidade de receitas para contratar
e, na temporada seguinte, por levar o time até a final jogadores e pagar seus salários, se fez necessária
da Champions, quando perderam pro Real Madrid de uma mudança que infringia, primeiramente, o re-
Di Stéfano no Santiago Bernabéu, por 2 a 0. gulamento da federação italiana de futebol [FIGC]
e, depois, o gosto popular: a liberação para inclusão
Acontece que descobriram que o tal avô, de sobrenome das marcas dos fornecedores de material esportivo,
Bottelli, era, na verdade, um sacerdote e a Fiorentina pois a opinião pública achava que qualquer marca
respondeu a um processo penal por alteração ilegal estampada sujaria o uniforme.
de estado civil, como contou a Gazzetta dello Sport,
em reportagem publicada em 7 de maio de 2001. Desde a década de 1970, já havia um contraste de re-
alidades. Na final da Champions de 1972, entre Ajax e
Nesta época, houve o Passaportopoli — quase cin- Internazionale, os holandeses estampavam no peito,
qüenta anos depois do caso de Julinho —, um es- à direita, a logo da Le Coq Sportif, enquanto a Inter
cândalo envolvendo um esquema de 15 jogadores da levava o tradicional Scudetto do campeão italiano
Serie A italiana que usavam passaportes falsos, sendo bordado na camisa apenas.
sete deles brasileiros (dentre eles: Alberto Valentim,
Dida e Fabio Junior), além de Juan Sebastián Verón e Havia, porém, alguns antecedentes numa outra época,
Álvaro Recoba. As suspensões variaram caso a caso, a pré-midiática. O próprio Torino, multi-campeão nos
maioria dos atletas ficou suspensa por uma temporada anos 1940, estampou como escudo a logo da Fiat, era
e apenas Verón foi absolvido. uma maneira rudimentar de patrocínio esportivo, mas
foram escassos e, logo, regulados e proibidos. Foi só
Voltando à segunda proibição de jogadores estran- em 1978 que houve uma inclinação para regulamentar
geiros, em 1966, a motivação de melhorar o nível do não somente os patrocínios, mas também os direitos
futebol local talvez tenha tido algum êxito, afinal, de TV e as apostas, que ficava a cargo da Promocalcio.
logo em 1968, a Itália se consagrou campeã euro-
péia naquele ano e foi vice-campeã mundial em 1970, Na temporada 1978/79, ficou permitido o uso de logo-
quarta colocada em 1978 e, finalmente, campeã do marcas das empresas de material esportivo somente,
mundo em 1982. num espaço não superior a 12cm², logo estendido a
16cm². Doze das dezesseis equipes da Serie A conse-
Mas, no âmbito de clubes, houve um declínio verti- guiram se beneficiar da abertura comercial do cam-
ginoso. Antes do fechamento a estrangeiros, o Milan peonato. E foi aí que entrou uma jogada que envolvia

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Como a Serie A se tornou, deixou de ser e pode voltar a ser um grande centro do futebol mundial

um personagem chave no escândalo de acertos de Outros quatro jogadores foram intimados a compa-
resultados, que ficou conhecido como Totonero: Pa- recer à Guardia di Finanza, dentre eles Paolo Rossi.
olo Rossi.
Em 23 de dezembro de 1980, nove meses depois, to-
O atacante de 22 anos terminou a temporada com 15 dos os jogadores e dirigentes presos foram soltos e
gols convertidos pelo Vicenza, mas não pôde evitar absolvidos pela Justiça italiana e as punições ficaram
que seu clube fosse rebaixado. O faro goleador de Rossi somente no âmbito esportivo, as sanções já haviam
atraiu o interesse dos grandes clubes italianos, mas sido julgadas em segunda instância pelo “STJD” ita-
numa jogada de marketing controversa o jogador liano, entre julho e setembro daquele ano.
acabou assinando com o Perugia.
Paolo Rossi cumpriria suspensão por dois anos e só
Embora fosse um caminho sem retorno, quem ace- voltaria no final da temporada 1981/82, quando já
lerou a liberação dos patrocínios de camisa foi o pre- vestia a camisa da Juventus. Em junho de 1982, na
sidente do Perugia, Franco D'Attoma, justamente Copa do Mundo, após disputar somente três partidas
na operação para contratação, por empréstimo, de pela Juve, Rossi seria fundamental no título italiano,
Paolo Rossi junto ao rebaixado Vicenza. Primeira- deixando pelo caminho o Brasil, naquela que ficou
mente, o teor da transação, um empréstimo e não conhecida como Tragédia de Sarrià, uma ferida que
uma transferência em definitivo, foi fundamental ficará aberta pra sempre no futebol brasileiro.
pra convencer os dirigentes do Vicenza a não vender
Rossi para nenhum clube grande. Dessa forma, Rossi Das estrelas brasileiras naquele jogo: Zico, Falcão,
poderia se valorizar ainda mais jogando a Serie A e se Sócrates, Júnior, Toninho Cerezo e, no banco, Edinho,
transferir mais adiante por um valor maior. todos jogariam no calcio nos anos 1980.

Com uma cifra de 700 milhões de liras, Franco D'At-


toma contratou Paolo Rossi por um ano. Para conse-
guir a quantia, o presidente do Perugia acertou com
a marca alimentícia Ponte um valor de patrocínio de
400 milhões. Mas o acordo previa que a marca fosse
exibida no uniforme. D'Attoma, sabendo das restri-
ções, fundou a Ponte Sportswear com a logomarca Da luta armada
idêntica à da empresa de massas, e entrou em campo
assim no dia 25 de agosto de 1979. à moda
No dia 28 de agosto, o jornal italiano La Stampa cons-
tatou — além da óbvia percepção — a fraude, pois
Paolo Rossi era o único jogador que não podia usar
a marca no seu uniforme, pois o atacante tinha um
contrato individual com uma concorrente da Ponte,

A
a Polenghi Lombardo. abertura do mercado para estrangeiros veio em
conjunto com a necessidade de mudar radical-
Era evidente a tentativa de burlar, mas apesar do veto mente a imagem manchada do futebol italiano.
e da ameaça de multas por parte da Liga Italiana, Os direitos de TV internacionais seriam somente uma
Franco D'Attoma entrou firme na queda de braço e conseqüência direta de uma combinação esportiva e,
acabou abrindo o mercado do futebol para a publi- sobretudo, de marketing.
cidade, pois mostrou uma oportunidade financeira
não-explorada pelos clubes. Após ser campeã mundial, a Itália vivia um momento
de alegria passados, por fim, os anos de chumbo que
Por fim, depois de alguns meses proibida, em 23 de à esquerda, por parte dos extremistas comunistas
março de 1980, a Ponte volta a estampar a camisa do denominados Brigate Rosse, foram mais de oitenta
Perugia, desta vez de maneira legalizada. mortos em atentados até o final da década de 1970 e,
à direita, em somente um atentado, do grupo neo-
Mas Paolo Rossi seria protagonista num outro episó- -fascista NAR [Nuclei Armati Rivoluzionari], em 2 de
dio de manipulação bem mais grave: de resultados. O agosto de 1980, foram 85 mortos com uma bomba na
esquema envolvia diversos clubes e atletas. A denúncia estação central de Bolonha, no maior ato terrorista
foi levada ao ministério público no dia 1˚de março de dos chamados Anos de Chumbo.
1980 pelos comerciantes Massimo Cruciani e Alvaro
Trinca, que afirmavam terem sido trapaceados. Cru- O início dos anos 1980 trazia uma nova era, de pro-
ciani fornecia frutas e verduras para o restaurante de fundas mudanças, em que a população dizia um basta
Trinca, onde jogadores da Lazio os induziram a apos- e isso passava também por um novo estilo, uma nova
tar num resultado que estava acertado, no entanto, cara pro país e também pelo consumo, era o tal período
os apostadores tiveram um prejuízo de centenas de conhecido como Anos de Refluxo. As manifestações
milhões de Liras e resolveram acionar o poder público. deixavam as ruas. A morte de um Primeiro Ministro,
como Aldo Moro, por um grupo extremista de es-
O caso foi rápido, também naquele 23 de março de querda, justamente ele, tendo sido o único a dialogar
1980, mesmo dia em que o Perugia voltou a usar o com as alas socialistas, acarretou numa conclusão: de
controverso patrocínio de maneira oficial, uma ope- que não se entendia nada do que se estava vivendo,
ração policial prendia, após o final da rodada, nove como relatou à Rai a jornalista e escritora Natalia
jogadores da Serie A e dois da Serie B ainda no campo Aspesi: “O terrorismo não propunha uma mudança,
de jogo, além do presidente do Milan, Felice Colombo, mas sim a desordem”. E os jovens assim entenderam
como mostrou o Telegiornale 1 da Rai naquela noite. e deixaram de se interessar por política e seguiram

91
Ascensão, queda e renascimento de um império

os passos de Tony Manero, o personagem de John no mundo todo. Não faltaram esforços para mostrar
Travolta do filme Saturday Night Fever, provocando um país pujante, totalmente diferente daquele de
um aumento de discotecas no país, além de milhões dez anos antes.
de pessoas que começaram aulas de dança, conforme
mostra o documentário L'Italia Della Repubbica - Gli As figuras de Giorgio Armani, Gianni Versace e Lu-
anni del riflusso. ciano Benetton davam uma cara à tendência da alta
costura que transcendia as passarelas. Benetton
Já outros desiludidos com a revolução buscaram reli- marcou, além da moda, a publicidade com anún-
giões indianas que chegavam à Itália, por outro lado, cios à frente de seu tempo, o famoso “United Colors
a droga, precisamente a heroína, também serviu de of Benetton”. Além disso, a grife também era uma
anestésico para o vácuo ideológico daquela época de escuderia de Fórmula 1, outro pilar italiano neste
transição. processo de revolução.

E é nessa transição de comportamento, com o cres-


cimento da publicidade e da teledifusão, que surge
um personagem central no que a Itália viveria nas
próximas duas décadas: Silvio Berlusconi, seus inves-
timentos no setor de comunicação levaria à fundação
do Canale 5 [Cinque], em 1980, com transmissão na-
cional do Mundialito do Uruguai. Berlusconi antevia
o poder da TV, do futebol e da combinação de ambos.
Nicola Raccuglia
Nada simbolizaria mais essa transição do que a pre-
sença de Giorgio Armani na capa da revista Time, de
abril de 1982, logo antes da conquista do Mundial. O
título da Copa do Mundo também serviu, de maneira
simbólica, como marco do fim dos Anos de Chumbo,
foi um momento em que a Itália inteira se abraçou.
Não havia direita nem esquerda, empresários ou sin-

N
dicalistas. Eram todos italianos unidos, deixando a ascido em Palermo, na Sicília, Raccuglia foi um
política e a crise pra trás. jogador inexpressivo nos anos 1960, que jogou
em clubes de segundo escalão como Arezzo,
A Itália já mostrava pro mundo um novo rosto e o Vicenza, Ascoli, Jesi, Marsala, Cavese, Juve Stabia e,
futebol também acompanhava a tendência, trazendo finalmente, no Pescara, onde se aposentaria e iniciaria
uma revolução estética em diversos escudos dos times, um empreendimento no setor têxtil, precisamente
como contou John Foot no livro Calcio. no segmento de roupas esportivas.
Milan e Inter trouxeram versões minimalistas dis- Se dentro de campo não há nenhum vestígio de ge-
tantes das heráldicas tradicionais, uma roupagem nialidade, fora dele, Nicola Raccuglia foi um visioná-
vanguardista nas camisas dos principais clubes de rio, talvez por acaso, quando ele percebeu, no início
Milão, cujo slogan publicitário à época era: “Milano dos anos 1970, que as camisas de futebol poderiam
da bere” [“Milão para beber”, em tradução livre]. ser objetos de coleção. Mas nada teria ficado para a
posteridade se, em paralelo, a Itália não se tornasse
Outros clubes como Roma, Lazio, Torino, Atalanta,
o centro do futebol mundial.
Fiorentina, Bari e Verona também seguiram a re-
formulação de suas “marcas” e, inconscientemente, As camisas de quase todos os principais times do
isso seria importantíssimo para a popularização do Calcio foram, em algum momento, fabricadas pela
calcio no mundo todo, uma vez que os grandes cra- NR, marca que levava as iniciais de Nicola Raccuglia.
ques mundiais estavam espalhados pela Velha Bota, Ícones como Sócrates na Fiorentina, Baresi no Milan
os álbuns de figurinha da Panini eternizaram esses e, sobretudo, Maradona no Napoli, todos eles levaram
ícones e até times de botão dos clubes italianos eram o NR no peito, uma marca que carrega uma carga
vendidos no Brasil. sentimental que remete aos primórdios do marketing
esportivo, quando os jogos já eram transmitidos em
Em maio de 1984, a FIFA anunciou a escolha da Itália
outros continentes, mas o mercado nem sonhava com
como anfitriã da Copa do Mundo de 1990 em vez da
a expansão de distribuição global de camisas de times.
União Soviética, o que caracterizava um nítido es-
forço político do país para mostrar uma nova Itália Além de Napoli, Milan e Fiorentina, também vestiram
desvinculada, por um lado, no futebol, do escândalo NR: Lazio, Roma, Sampdoria e outros times da Serie
das vendas de resultados e, por outro, na política, de A e B da Itália. E já nos anos 1990, dois times fora da
disfarce da histórica e enraizada operação da máfia península itálica tiveram seus uniformes confeccio-
no país. nados pela NR que marcaram época: Kashima Antlers
de Zico e o Uruguai, campeão da Copa América de
Enzo Bearzot, técnico da Azzurra na época, falou ao
1995, com Enzo Francescoli.
jornal La Repubblica em vinte de maio de 1984: “É
uma vitória de todos... a Itália se tornará o centro do Era o tempo pré-expansão e hegemônico das gran-
Mundo”. des marcas que se consolidariam globalmente no
final dos anos 1990 em diante, como Adidas, Nike e
De fato, a Copa do Mundo de 1990 foi uma revolu-
Puma. Outras tantas marcas marcaram o imaginário
ção estética nas transmissões, com a inserção de
de torcedores do mundo todo em diferentes épocas e
caracteres muito à frente do que se via na televisão
lugares. A NR foi uma delas.

92
Como a Serie A se tornou, deixou de ser e pode voltar a ser um grande centro do futebol mundial

93
Ascensão, queda e renascimento de um império

Mediolanum Ou Zico ou Áustria!

Q A
uem não se lembra de vários patrocinado- contratação de Zico causou comoção na Velha
res que marcaram aquela época? Agfaco- Bota, pelo menos na região do Friuli. No Bra-
lor na Udinese, Canon no Verona, Barilla na sil, o desconhecido time do nordeste da Itália
___Roma, ERG na Sampdoria, Danone na Juven- ganhava fama. Edinho, ex-zagueiro do Fluminense,
tus, Misura na Inter. Na camisa do Milan da metade rumou para Udine em 1982, e esse seria o destino de
da década de 1980 estava a Mediolanum, que foi um Zico. No entanto, a transferência do camisa 10 foi
desses patrocinadores clássicos. contestada devido às cifras envolvidas. Havia uma
suspeita de fraude fiscal além da origem do dinheiro
Mediolanum é o nome arcaico da cidade de Milão e a pago ao Flamengo, que levou ao bloqueio de ⅔ do
marca era de uma financeira de propriedade do grupo salário do jogador pelo fisco italiano.
Fininvest, fundado por Silvio Berlusconi em 1978. O
empresário já detinha também algumas participa- A transferência foi intermediada pela Groupings Ltd,
ções em telecomunicações, naquilo que se tornaria empresa supostamente com sede em Londres, como
o conglomerado Mediaset. conta a Revista Placar de cinco de abril de 1985. A
triangulação se deu da seguinte forma: a empresa
Berlusconi adquiriu o Milan e salvou o clube da falên- ficava responsável por fazer um pool publicitário para
cia. Trouxe uma ambição que transcendia o esportivo financiar os US$ 4 milhões pedidos pelo Flamengo
e o econômico. Havia uma história a ser contada. pelo passe de Zico, na época com trinta anos.
Tudo premeditado.
A título de comparação, Maradona, se transferiu do
Um clube em crise esportiva e institucional, chega Boca Juniors para o Barcelona em 1982, aos 21 anos,
um novo presidente — leia-se proprietário —, salva por US$ 8 milhões e, em 1984, do Barça para o Napoli,
da falência e eleva o time a um patamar continental. por US$ 13 milhões, de acordo com os registros da
Para um mega-empresário, ambicioso como se mos- época. Esses eram os valores máximos pagos pelos
trou Berlusconi, seria uma plataforma midiática tão melhores jogadores do mundo e quase todos desem-
importante como outros empreendimentos na área barcavam na Itália, como o primeiro de todos: Falcão,
de comunicação como ele já detinha: Il Giornale e a cuja cifra girou ao redor de US$ 1,5 milhão, que deixou
TeleMilano, que se tornaria o Canale 5, embrião da Porto Alegre para jogar em Roma.
Mediaset. Uma estrutura midiática preparada para
sua trajetória política, mas ainda faltava um case A Udinese tinha subido da Serie B na temporada
de sucesso. 1978/79, e até a chegada de Zico ocupava sempre a
parte inferior da tabela. Com a chegada do camisa 10,
Berlusconi adquire o clube em março de 1986, o Milan o time conseguiu terminar em nono lugar.
terminaria em sétimo naquela temporada. O impacto
das contratações — de Daniele Massaro para o ata- Lamberto Mazza se tornou presidente da Udine-
que, Roberto Donadoni pro meio-campo e Giovanni se em 1981, e ele foi o responsável pela aquisição de
Galli pro gol — foi imediato. O time era comandado Zico. Mazza era presidente da Zanussi, uma marca
pelo sueco Nils Liedholm, ídolo milanista, mas a seis de eletrodomésticos italiana da mesma região da
rodadas do fim, após a demissão do treinador, quem Udinese, Friuli. A marca se associou ao futebol um
assumiu interinamente foi o técnico do time Pri- ano antes da chegada de Zico à Udine. A empresa se
mavera — como eles chamam o time de juniores —, tornou a primeira patrocinadora do Real Madrid em
Fabio Capello, que havia se aposentado no clube em meados de 1982.
1980, e treinava os jovens desde 1982.
O patrocínio ao clube merengue durou dois anos,
Capello conseguiu ainda classificar o time pra Copa pois em 1984, a Electrolux adquire a Zanussi. Talvez
da UEFA, depois de vencer a emergente Sampdoria no esse seja o principal motivo da investigação instau-
Spareggio, duelo tradicional de desempate no cam- rada pelo fisco italiano e pelo qual Lamberto Mazza
peonato italiano. Mas a temporada seguinte mudaria relata ao Corriere della Sera em março de 1984, que
os rumos do clube e do futebol mundial, inclusive, os políticos friulanos haviam declarado guerra a ele.
com a chegada de Arrigo Sacchi.
Mais do que qualquer perseguição, havia uma suspeita
Enquanto o Milan se reestruturava e buscava retomar clara de evasão de divisas e lavagem de dinheiro.
seu lugar no topo do calcio, outros times italianos Tal como relata a Revista Placar de cinco de abril de
viviam anos dourados e alguns nunca mais voltariam 1985, os rumores que corriam na Itália eram de que
a viver semelhante esplendor. a operação de Zico foi usada por Mazza para facilitar
remessas ao exterior ilegalmente através da Grou-
Enquanto Berlusconi adquiria o Milan, o Napoli já pings. Além disso, falava-se que a empresa tinha um
havia contratado Maradona, a Udinese teve Zico, a ridículo capital social de cinco Libras!
Roma contou com Falcão e a Juventus era campeã
européia com Platini. A discussão era ampla, pois a mesma reportagem da

94
Como a Serie A se tornou, deixou de ser e pode voltar a ser um grande centro do futebol mundial

Placar apontava que a prática era comum na Itália, estava destinado a ser eterno no clube na Cidade Eter-
que jogadores tinham um contrato oficial, sobre o na, embora tenha sido necessária uma articulação
qual pagavam seus impostos, e outro por fora. Sen- política para a permanência do brasileiro na Roma.
do uma prática tão corriqueira, a torcida da Udinese
estranhou que houvesse uma apuração tão minuciosa O presidente e proprietário da Roma à época, Dino
e rígida do caso. Viola, era um empresário do ramo armamentista e
tinha ótimas relações com o governo italiano. Quando,
Zico chega e é recebido como um chefe de estado, em 1983, a Internazionale, presidida por Ivanoe Frai-
naturalmente. Mas, logo em seguida, a aquisição do zzoli, ofereceu um ótimo salário a Falcão, Dino Viola
craque brasileiro é suspensa temporariamente após precisou apelar a um contato dentro do governo: Giulio
sua estréia, que se deu num amistoso contra o Fla- Andreotti, ele mesmo, que já havia sido Primeiro Mi-
mengo em Udine. O mesmo aconteceu com Toninho nistro cinco vezes e, naquela altura, ocupava o cargo
Cerezo, que chegava à Roma na mesma época e ficou de Ministro das Relações Exteriores. O presidente da
impedido de jogar. A Federação Italiana não aceitou a Inter, Fraizzoli, também empresário, era fornecedor
inscrição dos jogadores por conta do gasto ser con- de uniformes para o exército italiano, como relata
siderado incompatível com as dimensões dos clubes. Paulo Vinícius Coelho no seu livro Bola Fora.

Na série documental italiana I Miti del Calcio, Mazza Dino Viola ameaçou falir Fraizzoli, rompendo o con-
aparece na Piazza XX di Settembre repleta de gente, trato do governo com a sua empresa e usou Andreotti
dizendo: “Eu decidi fazer a Udinese ser grande” e, em para mandar o recado. Não coube outra alternativa
seguida, aparece uma faixa na parte alta do aeroporto, ao presidente da Inter, a não ser desistir da contra-
regada de torcedores, com os dizeres: “Mazza, La tação de Falcão. Assim, o brasileiro permaneceu na
Nord ti ringrazia” [Mazza, a torcida Nord te agradece]. Roma, onde chegaria à final da Champions naquela
temporada.
A medida da Federação Italiana soou como perse-
guição política e os desdobramentos recaíram numa
questão territorial para os habitantes do Friuli. A
região já havia sido parcialmente dominada pelo
império Austro-Húngaro e coube à população se posi-
cionar contra o governo central a partir da suspensão
da transferência do craque brasileiro e é quando surge
uma bandeira, durante o pronunciamento do então O Scudetto limpo
presidente da Udinese na praça XX di Settembre, com
a frase que ficou pra história e virou lenda: Ou Zico,
ou Aústria!

Entre o amistoso de estréia e a apresentação defi-


nitiva passou-se mais de um mês, quando o imbró-

A
glio chegou a um “fim”. Zico voltou a campo contra pós a crise do Totonero, da chegada contro-
o Hajduk e iniciou ali, oficialmente, sua passagem versa de jogadores financiada por operações
efêmera pelo calcio. pra lá de suspeitas, a temporada de 1984/85 foi
a mais fantástica. O Milan ainda não era nem sombra
do que seria a partir de 1988, mas aquela tempora-
da marcou a chegada de ninguém menos que Diego
Armando Maradona à Itália, onde já estavam Zico,
Platini, Falcão, Passarella e Sócrates.

O jogo entre Udinese e Napoli pela penúltima rodada


Rei de Roma nessa temporada foi a síntese do que era o futebol
italiano naquele momento. Um mar de fotógrafos
atrasava o início da partida para registrar um abra-
ço entre Maradona e Zico. Depois da foto, o árbitro
também quis aparecer no meio dos dois e convocou
novamente os dois capitães para outra foto.

Q
uando Falcão chegou à Roma, abrindo o Os melhores momentos desse jogo parecem um com-
mercado para estrangeiros na Velha Bota, pilado de lances de um campeonato inteiro de cada
ele ajudou na conquista do bicampeonato time. Zico e Maradona fizeram jogadas magníficas,
____da Coppa Italia 1980/81. Mas foi na temporada desfilaram em campo. Empate por 2 a 2. No final do
1982/83 que o trono romano foi conquistado pelo bra- jogo, Zico já falava em retornar ao Flamengo quando
sileiro. O segundo Scudetto da Roma era conquistado um repórter perguntava sobre se transferir para um
sob a batuta de Paulo Roberto Falcão. O título garantiu time grande da Itália.
vaga para a Copa dos Campeões da temporada se-
guinte, na qual os romanistas chegaram até a final, O Napoli terminou o campeonato em oitavo lugar e
cuja sede era justamente o Stadio Olimpico. a Udinese acabou na 12.ª colocação. Essa temporada
teve um sistema de definição de árbitros diferentes.
Apesar de perder nos pênaltis, a chegada da Roma Historicamente, a arbitragem era nomeada pelos
àquela final era o prenúncio daquilo que se tornaria clubes e uma comissão especial definia quais eram
um domínio esportivo e econômico do futebol italiano os árbitros adequados para cada encontro. Mas em
em âmbito europeu alguns anos mais tarde. Falcão 1984/85, havia sorteio.

95
Ascensão, queda e renascimento de um império

Coincidência ou não, nem Juventus, nem Inter, nem final da Copa da UEFA: o Torino perderia, no entanto,
Roma, nem Milan. O campeão desta edição seria o para o Ajax, de Dennis Bergkamp, que se transferiria
modesto Verona. Um título inesperado. pra Inter e faria dupla com Fontolan.

Estranhamente, a federação voltou a adotar o sistema Era o grande centro do futebol mundial. Aliado ao
de nomeação logo após o triunfo do Verona e somente desenvolvimento econômico da liga desde o início
o Napoli, na temporada 1986/87 sob a liderança de dos anos 1980, a partir da abertura para jogadores
Maradona, e a emergente Sampdoria conseguiram estrangeiros, e isso também envolveu muita corrup-
furar o domínio dos clubes mais ricos do centro- ção, lavagem de dinheiro de famílias mafiosas e de
-norte do país. empresas, sem falar de Silvio Berlusconi, que fez do
Milan a sua principal plataforma de ascensão polí-
tica após pegar o clube em uma crise institucional e
elevá-lo à potência italiana e européia.

O renascimento do Milan se deu em paralelo à “des-


conhecida” Sampdoria, que subiu degraus dentro da
Itália e conquistou duas Coppe Italia, em 1987/88 e
1988/89, que lhe deram vagas pra extinta, mas tradi-
Calcio D’Oro cionalíssima à época, Recopa da UEFA. A Samp chegou
à final em 1989 quando perdeu pro Barcelona e, no
ano seguinte, chegou novamente à finalíssima mas,
desta vez, levava o título europeu pra Gênova.

A Sampdoria atraía jogadores do quilate de Toninho


Cerezo, primeiramente, que se juntou aos atacantes
Gianluca Vialli e Roberto Mancini, além do goleiro

C
Gianluca Pagliuca e ao icônico meia Attilio Lombardo.
omo já citado, o time de Arrigo Sacchi venceu as Esse time comandado pelo iugoslavo Vujadin Boškov
edições de 1988/89 e 1989/90 da Copa dos Cam- chegou à glória máxima na temporada 1990/91 ao con-
peões. Na temporada 1990/91, os Rossoneri caí- quistar o inédito título da Serie A, terminando cinco
ram pro Marseille nas quartas-de-final e o campeão pontos à frente do poderoso Milan de Arrigo Sacchi.
italiano, Napoli, caiu nas oitavas-de-final pro Spartak
de Moscou. Era a última vez que Maradona jogaria A Samp chegaria à final da última edição da até en-
numa competição européia pelo time napoletano. tão chamada Copa dos Campeões, que passaria a ser
chamada Champions League na temporada seguinte.
Antes, o Napoli tinha conquistado a Copa da UEFA na A final era em Wembley, mas o resultado final coroou
temporada 1988/89 com o camisa 10 argentino, em sua o Dream Team do Barcelona de Johan Cruijff. De todas
plenitude, ao lado do atacante brasileiro Careca. Um as formas, os feitos da Sampdoria configuraram uma
jogo em especial marcou essa edição, foi nas quartas- verdadeira epopéia.
-de-final, quando Napoli e Juventus se enfrentaram.
Se houvesse uma trilogia do Calcio D’Oro, esse te-
No jogo de ida, a Juventus tinha vencido por 2 a 0 em ria sido o primeiro ato. A segunda parte começaria
Turim. Na volta, um 3 a 0 a favor dos napolitanos, com o Milan de Fabio Capello, na recém criada UEFA
proporcionando um duelo à altura do futebol italiano Champions League, que caiu diante do Marseille na
daquela época. O terceiro gol se deu aos 14 minutos temporada 1992/93. Como era comum na época, os
do segundo tempo da prorrogação, após cruzamento principais jogadores do time francês desembarcariam
de Careca e cabeceio de Renica. no calcio logo adiante: Marcel Desailly foi pro Milan,
Didier Deschamps e Alen Bokšić, para a Juventus; já
Os festejos no Stadio San Paolo eram comparáveis
Jocelyn Angloma e Abedi Pelé assinaram com o Torino.
a um título, uma explosão libertadora, pois existia
uma mensagem subliminar importantíssima para a Um ano mais tarde, na final da Champions League,
população do Sul da Itália, que era a eliminação em duelariam os dois clubes que jogavam o futebol mais
um torneio europeu de um poderoso time do norte fantástico na Europa naqueles últimos cinco anos.
diante da única força do sul que conseguiria tocar o Chegariam à final da edição 1993/94, às vésperas da
céu em âmbito continental. Nunca antes nem depois Copa do Mundo dos EUA, o Barcelona de Johan Cruijff,
— até 2018, pelo menos — um clube da parte de bai- reforçado por Romário, e um Milan mais poderoso
xo da península itálica conquistou uma competição do que nunca, com uma defesa que jogava junta há
européia. muitos anos.
Naquela temporada, as três competições européias De um lado um jogo propositivo, com um Guardiola
contaram com italianos nas finais: Milan venceu de primeiro volante onde todas as bolas passavam
a Copa dos Campeões, o Napoli a Copa da UEFA e a por ele e, do outro lado, um time ultra-organizado,
Sampdoria perdeu pro Barcelona a Recopa. pragmático taticamente, que tinha uma defesa im-
pecável e um contra-ataque letal.
A partir dali, ficava visível a hegemonia italiana tam-
bém na Copa UEFA, com Juventus e Fiorentina fazendo O time de Capello herdou a organização defensiva de
a final da edição 1989/90 e o título ficando pros Bian- Arrigo Sacchi, que assumiu a seleção italiana em 1991.
coneri; na temporada seguinte, outra final italiana, Há um relato interessantíssimo de Sacchi contado no
quando a Internazionale bateu a Roma e ficou com o livro Os Números do Jogo: “Eu convenci Gullit e Van
caneco. Um ano mais tarde, outro italiano chegava à Basten quando expliquei a eles que cinco jogadores

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Como a Serie A se tornou, deixou de ser e pode voltar a ser um grande centro do futebol mundial

bem organizados ganham de dez mal organizados”, da Padania, região norte da Itália. Padania deriva do
disse ele. “E provei. Peguei cinco jogadores: Galli no nome latino do Rio Pó [Padus], e compreende as re-
gol, Tassotti, Maldini, Costacurta e Baresi. O outro giões do Val D'Aosta, Piemonte, Lombardia, Liguria,
time tinha dez jogadores: Gullit, Van Basten, Rijka- Veneto e Friuli, além de Toscana e Emilia-Romana.
ard, Virdis, Evani, Ancelotti, Colombo, Donadoni,
Lantignotti e Mannari. Eles tinham 15 minutos para Em 15 de abril de 1994, Silvio Berlusconi assumia
fazer um gol contra meus cinco jogadores. A única seu primeiro mandato como deputado nacional pela
regra era que, se nós roubássemos a bola ou se eles Forza Italia. Quase dois meses mais tarde, seria eleito
a perdessem, eles tinham que recomeçar da própria Primeiro Ministro: xeque-mate.
área. Eu fazia isso toda hora e eles nunca marcaram.
Nem uma vez sequer.” A entrada oficial de Berlusconi na política trouxe
uma imediata instabilidade esportiva para o clube
As idéias de Cruijff, incorporadas e desenvolvidas rossonero. Adriano Galliani levou tempo até con-
por Guardiola posteriormente, visavam a posse de seguir recolocar o Milan nos trilhos. Contratações
bola como maneira de controlar o jogo e evitar gols fracassadas, mudança de técnicos e uma Juventus
dos adversários. Frases como “só há uma bola em que assumiu o lugar deixado pelos milanistas dentro
jogo, então você tem que ficar com ela” sintetizam o e fora da Itália.
conceito do holandês.
Os anos 1990 marcaram o ápice do futebol italiano
Entretanto, pelo menos neste duelo de idéias opostas, em todas as suas vertentes, das negociatas e injeções
Arrigo Sacchi saiu vencedor. Fabio Capello manteve a de dinheiro que acarretariam em rebaixamentos por
mesma organização defensiva dos tempos de Sacchi e falências. Alguns clubes foram salvos por magnatas
aplicou um 4 a 0 sobre o time de Cruijff com Romário, após serem destruídos por outros magnatas, como
Stoichkov, Koeman e Guardiola em campo naquela a Lazio de Cragnotti que foi recuperada por Claudio
final em Atenas. Lotito após uma operação fraudulenta mal-sucedida.

Cragnotti, dono da Cirio que patrocinava a Lazio,


criou uma nova empresa [Eurolat] que controlaria
a operação de laticínios da Cirio e seria controla-
da pela Parmalat. Mas a Parmalat também passaria
por profundos problemas financeiros e deixaria o
Parma endividado. Outro caso emblemático foi o da
Fiorentina que, em 2001, já apresentava um processo
Gli anni novanta de falência, mas as vendas de seus principais jogado-
res [Gabriel Batistuta, Rui Costa e Francesco Toldo]
apenas adiaram o que aconteceria inevitavelmente
um ano mais tarde. A Fiorentina faliu em 2002, foi
refundada e recomeçou sua trajetória na Serie C2.

O Parma, outro expoente dos anos 1990, também


atravessaria graves problemas econômicos depois
da quebra da Parmalat que, por sua vez, se descobriu

A
consistência econômica do calcio não acompa- fraudulenta logo após a falência decretada. O calcio
nhava mais a economia italiana, que começava se tornou um paraíso fiscal de magnatas italianos. As
a apresentar graves problemas. A política de transferências e altos salários de jogadores e técnicos
bem-estar social trazia um aumento de déficit público, levaram a diversos casos de falência e refundação dos
sobretudo porque, além de mais despesas, as receitas clubes, caso do Napoli pós-Maradona.
caíram com a sonegação de impostos.
Mas enquanto o dinheiro jorrava, o calcio dominava
A crise econômica do modelo de bem-estar social a Europa. Finais de Copa da UEFA, títulos da Recopa e
trouxe à tona um sentimento separatista espelhado três finais consecutivas da Juventus. Era um momento
num discurso nacionalista neo-liberal, personifi- de transição não só do futebol europeu, a partir da
cado em Silvio Berlusconi. O sucesso do Milan desde lei-Bosman e da reformulação da principal compe-
1988 até 1994 era o grande case do empreendedor que tição européia de clubes, que passou a ser chamada
dispunha de uma plataforma financeira e de teleco- de Champions League e a contar com mais times
municações invejáveis. Não à toa, se apropriou do participantes gradualmente, mas também estava
slogan Forza Milan para criar o slogan Forza Italia, por surgir o Euro como moeda, que traria um teto e
que transmitia a idéia de êxito que tinha mudado uma prestação de contas das finanças italianas junto
drasticamente o inconsciente popular nos anos 1980. ao Banco Central Europeu. A farra estava com seus
dias contados.
Cresceu exponencialmente o número de pequenos
empreendedores, sobretudo impulsionados pelo mer- A Itália sempre esteve à frente em negócios como a
cado de moda e também no âmbito financeiro, quando co-propriedade de atletas. A própria Parmalat passou
a Bolsa de Milão teve uma grande adesão de novos a controlar clubes por meio de patrocínios em dife-
pequenos investidores. Os empreendedores deixaram rentes países, como Benfica, Boca Juniors e Palmeiras
de ser inimigos do povo e passaram a ser um exemplo na mesma época.
a seguir. Era exatamente o caso de Berlusconi.
Ferran Soriano contou em seu livro “A bola não entra
Forza Italia era um braço da Lega Nord, fundada em por acaso” que a negociação com italianos era sempre
1989, que originalmente propunha a independência mais complexa. Soriano, ex-vice presidente do Barce-

97
Ascensão, queda e renascimento de um império

lona, relatou o caso da transação de Zambrotta para comandada por Carlo Ancelotti e não mais por Lippi,
o Milan, quando Adriano Galliani, após a reunião, que deixou o clube para treinar a Inter que buscava
detalha toda a transferência por telefone. Ao desligar, seu lugar ao sol.
Ferran Soriano pergunta com quem ele estava falan-
do, afinal, ele dera muitos detalhes da negociação na Naquele duelo válido pela semifinal, o Manchester
chamada telefônica. Galliani disse que estava falando United superou os italianos mostrando a força do
com um jornalista, que preferia ele mesmo passar as trabalho de um clube que apostava no mesmo técnico
informações antes que as inventassem. Os rumores do desde 1986 e de uma liga que começava a mostrar si-
“calciomercato” movimentavam demais as redações nais de competitividade continental novamente após
e, logo, as vendas dos principais jornais esportivos da chegarem ao fundo do poço, quando mesmo proibidos
Itália, como Gazzetta dello Sport, de Milão, Corriere de disputar qualquer competição européia, entre 1985
dello Sport, de Roma, e o TuttoSport, de Turim. e 1991, proporcionaram o maior dos desastres, aquele
de Hillsborough em 1989 na semifinal da Copa da
Tudo isso colocou a Itália à frente do futebol mundial. Inglaterra, entre Liverpool e Sheffield Wednesday.
Outros processos aconteciam em paralelo em diferen-
tes pontos da Europa. Por um lado, o Ajax recrutava Para enfrentar o Manchester United na final, o Bayern
jogadores em mercados periféricos como Finlândia, buscava recuperar o território que havia perdido den-
de onde trouxe Jari Litmanen, ou África, onde garim- tro da Alemanha, onde dominava desde a fundação da
param Finidi, que somados a uma geração formada Bundesliga e via o Dortmund crescer. Com um final
nas camadas inferiores do clube, sob a batuta de Louis épico, decidido nos acréscimos com gols dos reservas
van Gaal, conseguiram duelar com o todo-poderoso Sheringham e Solskjær, o título do United significava
Milan em 1995, conquistando o título da Champions um novo momento do futebol europeu. Os italianos
League, um ano depois dos Milanistas massacrarem ainda tinham a melhor liga e demonstraram isso por
o Dream Team do Barcelona de Johan Cruijff. mais algum tempo, sobretudo na Copa da UEFA. Mas
a página começava a virar.
Na temporada seguinte, praticamente o mesmo time
do Ajax chegaria novamente à final da Champions, na Desde 1989, a final da competição continental se-
qual cairia diante da proeminente Juventus, que to- cundária teve um representante italiano pelo menos,
mou o lugar do Milan imediatamente após Berlusconi exceto em 1996, quando Bayern e Bordeaux duelaram
iniciar sua carreira política. Com o Mercado Comum na final. No Bordeaux se destacaram dois jogadores:
Europeu a pleno vapor, os principais jogadores do Ajax Christophe Dugarry e Zinédine Zidane.
acabariam no Milan, na Juventus e até na Sampdoria,
caso de Seedorf, que logo depois se transferiu para o O Milan foi eliminado nesta edição justamente pelo
Real Madrid, que se reconstruía num plano ambicioso Bordeaux, nas quartas-de-final. Depois de ganhar
de Florentino Pérez. em Milão por 3 a 0, os Rossoneri perderam na França
por 3 a 0, com dois gols de Dugarry. Ao finalizar a
O Bayern perdia um pouco da sua força dentro da temporada, os Milanistas correram pra contratar o
Alemanha, o Dortmund desbancou o clube da Baviera atacante, já a Juventus, campeã da Champions, con-
na Bundesliga e foi o time a bater a Juventus na final tratou Zidane. O resto é História.
da Champions, em 1997.
O Milan continuou perdido entre contratações deste
No ano seguinte, na terceira final consecutiva da estilo e a Juventus se transformou numa máquina de
Juventus comandada por Marcello Lippi, foi o Real incorporar talentos.
Madrid, já com Seedorf, que levantou a orelhuda.
Nesse momento, o Barcelona estava perdido após A Copa da UEFA se tornaria um reinado italiano até
a saída de Johan Cruijff, que deixava o futebol por o início da década de 2000. O Parma, com um time
problemas cardíacos. Entre contratações recordes altamente competitivo subsidiado pela Parmalat,
como a de Ronaldo, em 1996, e a venda um ano depois conquistaria duas vezes a competição, a primeira
para a Inter, o clube acabou se transformando num delas diante da Juventus em 1995.
centro holandês, liderado por Louis van Gaal vindo
do Ajax, de onde trouxe muitos de seus pupilos, como Também em 1995, a Internazionale foi comprada por
os irmãos Frank e Ronald de Boer, Reiziger, Kluivert Massimo Moratti, empresário que herdou o grupo
e outros holandeses, como Cocu e Zenden. Saras de refinaria de petróleo e também a paixão pela
Inter, que já havia sido presidida pelo seu pai, Angelo,
O clube blaugrana contratava Rivaldo num primeiro nos anos 1950 e 1960. Em 1998, após contratarem
momento e Riquelme logo depois para o lugar do bra- Ronaldo e uma infinidade de jogadores, os Nera-
sileiro, jogadores que não encaixam nas idéias táticas zzurri finalmente levantaram uma taça expressiva ao
de van Gaal. Enquanto seguia sem um rumo definido, derrotarem a Lazio na final da Copa da UEFA. A Inter
quem dominava a Champions era o Real Madrid, com tinha perdido na final do ano anterior, a mesma Copa
três títulos em cinco edições entre 1998 e 2002. da UEFA, para o Schalke 04.

Em 1999, um clube inglês finalmente voltaria a uma No ano seguinte, foi a vez do Parma tocar o céu pela
final de Champions como conseqüência da revolução segunda vez, ao derrotar o Marseille por 3 a 0 na final,
imposta pelo Relatório Taylor, que levou à criação da em Moscou. Desta vez com um esquadrão histórico.
Premier League. Os inventores do jogo estavam muito Era o ápice dos investimentos da Parmalat, no time
atrasados e corriam atrás para recuperar o déficit. estavam jogadores do calibre de Buffon, Thuram,
Sensini, Cannavaro, Verón e Crespo.
Pra chegar à finalíssima da Champions daquele ano,
disputada em Barcelona, o Manchester United teve Verón e Sensini assinariam com a Lazio. Crespo che-
de superar a poderosíssima Juventus, à essa época já garia um ano mais tarde ao clube da capital onde,

98
Como a Serie A se tornou, deixou de ser e pode voltar a ser um grande centro do futebol mundial

juntos, conquistariam o Scudetto na temporada no Parma e da Fiorentina do magnata Vittorio Cecchi


2000/01, o segundo da história dos Laziali. Era um Gori, preso por falência fraudulenta do clube em 2002.
time caríssimo para a dimensão do clube, tal como no
Parma, a Lazio só podia manter os gastos graças aos O terceiro ato começa com a chegada de Alessandro
aportes de Sergio Cragnotti por meio da sua empresa Nesta, vindo da Lazio, quando o Milan voltaria a ser
e patrocinadora do clube, a Cirio. O envolvimento uma potência européia. Haviam remanescentes da-
de empresas em negócios com retorno duvidoso le- quele velho time de Arrigo Sacchi, como os já vete-
vantava suspeitas de lavagem de dinheiro, já que os raníssimos Maldini e Costacurta, além de Shevchenko,
investimentos estavam muito acima do que valeria Seedorf, Pirlo e Cafú.
um patrocínio de camisa.
Andrea Pirlo demorou até se encontrar no futebol
O Milan padecia com a falta de um projeto esportivo italiano. Foi logo contratado pela Inter, que contratava
consistente, sobretudo após a aposentadoria de Fran- qualquer talento que via pela frente, num desespero
co Baresi em 1997, pilar defensivo do time de Arrigo para rivalizar ora com Milan, ora com Juventus. Mas
Sacchi, responsável pela saída de bola e pelo avanço até Roma e Lazio conseguiram conquistar a Serie
da defesa para deixar os adversários em impedimento. A, enquanto Massimo Moratti torrava fortunas em
contratações. Enquanto isso, Pirlo foi emprestado à
Até que, em 1998, o clube contratou mais um atacante, Reggina, do sul da Itália, pra tentar se reencontrar,
depois de George Weah e Patrick Kluivert não terem mas foi no seu retorno ao Brescia onde ele achou seu
dado certo como se esperava. Chegou da Udinese o tutor e sua missão na Terra.
alemão Oliver Bierhoff, que terminaria como arti-
lheiro do time e campeão, quase sem querer, graças A inserção de Pirlo como volante aconteceu por aca-
a um empate da Lazio com a Fiorentina em casa, na so. Quando ele retorna ao time que o revelou, ele se
penúltima rodada. Mas o Milan só voltaria à sua ple- reencontra com o veteraníssimo Roberto Baggio,
nitude mais adiante. que usava a camisa 10 do time e, obrigatoriamente,
fez Pirlo se reinventar, se encaixar no time em outra
Na mesma temporada de 1998/99, o Dynamo de Kiev posição. Pirlo já havia enfrentado a concorrência de
fez uma Champions League surpreendente. O time Baggio na Inter temporadas antes.
tinha dois jogadores que despontavam: Shevchenko
e Rebrov. Desta vez, o Milan contratou Andriy She- Carlo Mazzone, técnico do Brescia em 2001, foi o res-
vchenko. ponsável pela mudança de posição que mudaria a
carreira de Pirlo para sempre. Logo depois foi inclu-
Nessa época, precisamente no ano de 2000, o campe- ído numa negociação com o Milan e lá se encaixaria
onato italiano deixou de ser transmitido pela ESPN. à perfeição com Gattuso, responsável por fazer o
Foi um momento de turbulência da comunicação, trabalho sujo, Seedorf e Rui Costa, encarregados da
chegavam as operadoras via satélite como Sky e Di- criação antes da chegada de Kaká, quando o time
rectv ao mercado, concorrendo com as outras TVs recuperaria o título europeu diante da grande rival
por assinatura, mas via cabo. A Sky tinha um canal até a época Juventus na final da Champions de 2003,
exclusivo, a PSN [Panamerican Sports Network], que no Old Trafford.
pertencia ao grupo investidor do Corinthians e Cru-
zeiro, a Hicks & Muse. Mas o canal logo desapareceu A Juventus se manteria no duelo cabeça-a-cabeça
e os direitos de transmissão ficaram sem dono no com o Milan até 2006, quando conquistou a Serie
Brasil até voltar a ser transmitido na ESPN. A, mas o tribunal esportivo retirou o título após um
novo escândalo de venda de resultados no qual a Ju-
ventus encabeçava o esquema através de seu diretor
esportivo, Luciano Moggi.

O Milan, que também estaria envolvido no esquema,


conseguiu chegar à final da Champions em 2005,
quando, após estar vencendo por 3 a 0, permitiu o
inesquecível empate e perdeu para o Liverpool nos
Milan volta pênaltis, no episódio que ficou conhecido como “O
Milagre de Istambul”.
a ser Milan, Na Copa do Mundo de 2006, conquistada pela Itália,
Itália volta o paralelo era inevitável. Após um escândalo de cor-
rupção, o título mundial foi para os italianos. Mas, se
a ser Itália em 1982, o título após o Totonero abriria o caminho
para quase três décadas de supremacia do calcio, este
escândalo, conhecido como Calciopoli, anunciaria o
fim dos anos dourados do futebol italiano.

A Juventus foi condenada ao rebaixamento e abriu


caminho para o crescimento da Inter, que só teria
como oponente o seu rival de Milão pelo domínio no

N
a trilogia do calcio, o primeiro ato correspon- calcio. E assim foi, enquanto o Milan conseguiu em
dia à abertura do mercado para estrangeiros 2007 retornar à final da Champions, novamente con-
nos anos 1980. O segundo ato começava com o tra o Liverpool, mas desta vez levantando a orelhuda
domínio europeu do futebol italiano e terminava com em Atenas, a Internazionale faturaria quase todos os
a eclosão a Cirio de Cragnotti na Lazio, da Parmalat títulos domésticos desde então.

99
Ascensão, queda e renascimento de um império

O sonho pool de Rafa Benítez chegar a duas finais em 2005 e


2007, o técnico português foi demitido.
de Moratti O tipo de “investidor” mudava. O perfil de Abramo-
vich nada tinha a ver com o de Berlusconi. Em 2008,
e os anos o Sheik dos Emirados Árabes, Mansour bin Zayed
adquiria o Manchester City com um projeto ainda
de escuridão mais ambicioso que o de Abramovich.

Na temporada 2008/09, quando Guardiola assumia o


Barça, Mourinho acabara chegando a Milão pra assu-
mir o comando da Internazionale no lugar de Roberto
Mancini. O português manteve a seqüência de títulos
domésticos na sua primeira temporada, mas foi em
2009/10 que Mourinho, já sem Ibrahimović, entraria
definitivamente para a História ao eliminar, com um
jogador a menos, o Barcelona numa semifinal épica

O
Milan via seus talentos envelhecerem e Silvio no Camp Nou. O título europeu retornaria pra Milão
Berlusconi já não conseguia estar à altura dos três anos depois da última conquista do Milan e 45
investimentos que o todo do futebol europeu anos após o último título da Internazionale, quando
exigia àquela época. No livro A Bola não entra por o pai de Massimo Moratti era o presidente.
acaso, Ferran Soriano fala do atraso do Barcelona
Mas esse foi o último suspiro do calcio. O desempenho
com relação ao seu arqui-rival Real Madrid e, so-
pífio na Copa do Mundo de 2010 e 2014, apesar de uma
bretudo, ao Manchester United, que enxergaram na
boa performance na Euro de 2012 e uma campanha
Ásia a solução econômica para poderem contratar
razoável em 2016, somados à não-classificação para
os melhores jogadores do mundo.
a Copa de 2018 na Rússia, mostraram que, em muito
Já não bastava um magnata injetando dinheiro, era pouco tempo, o futebol italiano deixou de ser o melhor
necessário fazer as cifras se multiplicarem. O futebol do mundo enquanto liga e uma potência enquanto
italiano chegou ao ápice com seu funcionamento seleção pra cair num limbo.
quase amador, tendo nos seus donos a fonte das prin-
Talvez o fracasso de 2018 tenha a ver com a derrota
cipais receitas. O negócio ficou caro para esse tipo
da Itália em 1966. Entretanto, em vez de se fechar
de investidor, que configurava quase um mecenato.
em si mesma, a Itália buscou soluções que o mundo
Em 2008/09, Pep Guardiola assumia o comando do globalizado e digitalizado oferece.
Barcelona e mudaria a história do futebol. Pep montou
As críticas às presenças dos não-italianos na seleção
um time que, logo na primeira temporada, apresen-
surgiram, claro. Jogadores naturalizados, como Ba-
tou um jogo único e conquistou a Champions League
lotelli, despertaram os mais profundos sentimentos
em Roma, batendo o Manchester United. Guardiola
fascistas que, em um primeiro momento, eram mais
elevaria Messi ao posto de melhor jogador do mundo.
velados, mas que ganharam espaço na sociedade
O Real Madrid, clube mais rico do mundo naquele
italiana devido à crise financeira que o país atravessa
momento, não deixou barato. Contratou Cristiano
desde 2008. Esse período econômico nada próspero e
Ronaldo junto ao Manchester United e Kaká junto
com o aumento exponencial de imigrantes africanos
ao Milan. Havia ali uma mudança de eixo visível: um
e sírios permitiu a ascensão do discurso fascista
clube espanhol contratou os dois últimos vencedores
personificado em Matteo Salvini, uma espécie de
da Bola de Ouro. Anos antes, eles teriam desembar-
Bolsonaro italiano, que chegou à vice-presidência do
cado na Itália.
conselho de ministros pela Lega Nord, aquele partido
O Barça seguia com seu futebol exuberante e resol- que prevê a separação do norte italiano.
veu mostrar seu poder financeiro quando contratou
No futebol, em 2015, a Inter foi vendida para Erick
Zlatan Ibrahimović junto à Internazionale e, como
Thohir, um empresário indonésio, e em 2016 vende
contrapeso, mandou Samuel Eto'o pros Nerazzurri.
sua parte ao grupo chinês Suning Holding Group. Já
Mas eram só sintomas. Talvez poucos percebessem o Milan foi vendido primeiramente também para
os movimentos ou encarassem somente como fruto empresários chineses, mas acabou sendo assumido
da globalização. No livro Soccernomics, de Simon pelo grupo norte-americano Elliot.
Kuper e Stefan Szymanski, publicado em 2008, eles
A Roma, que nesse meio tempo foi adquirida por
apontavam que não demoraria muito para haver um
empresários norte-americanos, montou um projeto
campeão europeu londrino, que Chelsea ou Arsenal
esportivo e institucional muito interessante e aus-
seriam campeões da Champions League. O Arsenal
tero. Já o Napoli, que ressurgiu das cinzas e, dentro
já tinha batido na trave em 2006, até que em 2012 a
de suas limitações, assumiu ao lado da Roma o lugar
“profecia” se concretizou, mesmo que com o pior
deixado por Milan e Inter.
Chelsea desde a chegada de Roman Abramovich em
2003. O magnata russo, cuja fortuna tem origem A Juventus manteve-se como propriedade da Fiat,
bastante controversa, não economizou para chegar dominou o calcio desde então impulsionada pelo
ao título europeu. Contratou José Mourinho, campeão Juventus Stadium, inaugurado em 2011, e revolu-
da Champions em 2004 pelo modestíssimo Porto cionou-se a si mesma e trouxe consigo toda a Serie
para alcançar a glória mas, após três temporadas e A nas costas.
decepções em âmbito europeu, quando viam o Liver-

100
Como a Serie A se tornou, deixou de ser e pode voltar a ser um grande centro do futebol mundial

Após dois vice-campeonatos europeus, quando per- e assinava com o PSG por € 222 milhões.
deu para o Barcelona em 2015 e para o Real Madrid
em 2017, ficou evidente a discrepância das realidades. O caminho natural era o oposto. Jogadores desponta-
Foi quando a Juve resolveu contratar Cristiano Ro- vam na poderosa Premier League e acabavam desem-
naldo e apontar os holofotes pra Turim. Seu reflexo barcando no Real ou Barça. Assim foi com Cristiano
acabaria iluminando o breu que havia tomado conta Ronaldo, Gareth Bale, Luka Modrić ou Luís Suárez e
da península itálica. Philippe Coutinho. O PSG mudou essa lógica.

Em paralelo, as transmissões da Champions League


passaram a ser cada vez mais populares. A TV Glo-
bo, sobretudo com a ida de Neymar para o futebol
europeu, primeiramente pro Barcelona, começou a
priorizar a cobertura dos jogos da Champions e pas-
sou a transmitir jogos da fase de grupos, que antes
eram sub-licenciados para a Band. Na TV fechada, o
Esporte Interativo entrou no cenário quando adquiriu
os direitos do triênio 2015–18.
Serie A Pass A renovação dos direitos de transmissão, no en-
e DAZN tanto, surpreendeu ainda mais. Muitos esperavam
pela entrada da Sportv ou até mesmo da ESPN, que
historicamente transmitia a Champions. Mas foi
quando surgiu notícia de que o Facebook e o Esporte
Interativo transmitiriam a competição.

O streaming não era mais uma tecnologia do futuro,


era uma realidade. A multiplicidade de dispositivos
capazes de suportar a transmissão dava uma nova
cara ao consumo de futebol. Celulares, tablets, com-

O
s tempos mudaram. A geografia do futebol putadores e Smart TVs proporcionavam um alcance
europeu mostrava claramente a mudança do ainda maior à competição.
eixo. Se nos anos 1980, 1990 e início dos 2000,
o centro do futebol mundial era a Itália, a partir da A chegada de Neymar ao futebol francês e de Cristia-
midiatização dos binômios Barcelona-Real Madrid, no Ronaldo ao calcio, somado às novas plataformas
Guardiola-Mourinho e Messi-CR7, dominavam não de transmissão digitais disponíveis fizeram as ne-
somente as atenções da imprensa e do público, mas gociações dos direitos de TV mudarem radicalmente.
também os títulos ficavam restritos à dupla.
A Serie A recuperou grande parte da demanda que
Desde 2008 até 2017, o título de melhor jogador do havia perdido e o francês passou a ser requisitado
mundo era de Cristiano Ronaldo ou Messi, invaria- como nunca. Ambos os campeonatos inflacionaram
velmente. Cada um ganhou cinco títulos da Bola de as suas pedidas e os canais convencionais se viram
Ouro, contando somente o prêmio da revista France incapazes de atender às demandas. As emissoras
Football, que viria a ser unificado com o título de acreditaram num possível blefe e que as ligas abai-
melhor do mundo da FIFA e depois dissolvido nova- xariam as cifras uma vez começado os campeonatos.
mente. Foi neste período que o separatismo catalão
ganhou evidência e o Barça sempre foi a principal Até que chega pelas redes sociais um anúncio publi-
plataforma. A rivalidade acentuada excedia o campo, citário, de um serviço de streaming do campeonato
respingava na política e vice-versa. italiano, o Serie A Pass. A mensagem era clara: era
necessário aumentar o alcance e, ao mesmo tempo,
Além disso, entre 2014 e 2018, foram cinco títulos as receitas provenientes dos direitos de TV, mas só
da Champions League para La Liga. Quatro deles pro era possível essa briga com os players consolidados
Real Madrid de Cristiano Ronaldo e o outro pro Bar- graças à chegada de Cristiano Ronaldo e das fer-
celona de Messi. Em duas ocasiões o outro finalista ramentas digitais disponíveis. Em seguida, surgiu
foi o Atlético de Madrid. o anúncio da plataforma de streaming DAZN que
transmitiria o calcio e outras competições. O mundo
Mas dois novos gigantes surgiam e começaram a era outro, o alcance e o consumo também.
concentrar talentos pagando fortunas incompatíveis
com as suas receitas. Dois projetos árabes em clubes No futuro, provavelmente Cristiano Ronaldo sim-
que passaram a integrar a área VIP da Champions bolizará pro futebol italiano aquilo que Falcão sim-
League de maneira cada vez mais regular: Manches- bolizou no início dos anos 1980. CR7 pode promover
ter City e Paris Saint-Germain. uma reabertura, um reinício, mas num contexto
externo totalmente diferente daquele, em uma Eu-
O time francês reinseriu a liga francesa no mapa a ropa que, apesar de toda a crise econômica vivida
partir de 2012, quando levou Zlatan Ibrahimović, desde 2008, passou a acumular os maiores talentos
que foi a última grande figura do Milan. Aquele tipo do futebol espalhados por diversos clubes de todo o
de jogador franquia, que vende camisas, que atrai continente, mas concentrados em uma só competi-
a atenção do mundo. Um embaixador. Mas foi em ção, que caminha ano após ano para formação uma
2017 que a Cidade Luz ficou ainda mais iluminada Superliga Européia de Clubes em que as competições
com tantos flashes após o anúncio da contratação nacionais passaram a se parecer com os moribundos
mais cara da história: Neymar deixava o Barcelona campeonatos estaduais do Brasil.

101
Calcio
&
Arte
A icônica torre de Milão que dá
nome a um clube conceito:
AS Velasca
Reportagem:
Giovanni Ghilardi
Fotos:
AS Velasca

102
103
Calcio & Arte

“S
e puder, chega um pouco antes porque hoje
vamos entregar as caneleiras aos jogadores”.
É só um pedido [nada comum por sinal] mas
já mostra bem a essência do A.S. Velasca. Um clube
italiano que dá seus passos com uma perna artística
e outra esportiva; buscando fazer tudo diferente,
desde a camisa de jogo até as caneleiras.

O autor da frase que abre o texto: Wolfgang Natlacen


[presidente do clube] e Marco De Girolamo [diretor
esportivo], são dois dos cinco fundadores da equipe,
falaram com a Corner para entender um pouco mais
da história e das pretensões do time milanês.

No alto da catedral de Milão, fica uma das vistas mais


famosas da cidade. A paisagem contempla ruas, pré-
dios e galerias tradicionais. Mas não tem jeito, quem
rouba a cena é sempre a torre “diferente demais para
estar no centro histórico” que tem um lugar de des-
taque no cenário.

A torre foi inspirada na cultura lombarda, com as


torres das fortalezas tendo as bases mais estreitas
que as partes superiores, e ao lado do Duomo, a Torre
Velasca com estilo arquitetônico brutalista é a cons-
trução mais icônica de Milão.

A Torre Velasca, inaugurada em 1958, grande inspira-


ção para o time que leva o mesmo nome e que também
quer causar o mesmo efeito da obra no mundo do fu-
tebol, criando experiências igualmente “fascinantes
e impossíveis de serem copiadas”.

A idéia inicial era retratar de um lado um jogador


antigo que não usava caneleiras, e do outro, trazer
um raio-x de uma lesão obtida graças a esse fato.

Depois, utilizando as mesmas técnicas fotográfi-


cas, Belussi produziu os pedidos de jogadores, que
escolheram as imagens para serem estampadas em
cada uma de suas pernas, como um símbolo de sorte
e proteção; sendo também uma espécie de escudo
quase invisível. Afinal, o meião acaba escondendo
tudo, mas o sentido transcende o futebol e ganha um
significado para cada jogador.

Em cada jogo, dá pra notar algumas inovações do


time. A bandeira de escanteio, por exemplo, é uma
obra feita pelo artista inglês Kevin Jackson e as tra-
dicionais bandeirinhas dos auxiliares é um trabalho
confeccionado por Stephen Dean, inspirado no cal-
çadão do Rio de Janeiro.

Assim é o Velasca, cada detalhe que possa ser reinven-


tado se transforma em uma obra de arte. Os limites
não existem para a as criações: “Aqui, os artistas são
sempre livres”, garante Natlacen, almejando honrar
sempre o slogan do clube, em alusão à torre, à arte
e ao futebol: Always Higher ou em tradução livre:
Sempre mais alto.

104
AS Velasca

105
106
AS Velasca

No campo

“Não entendo
por que fui
descartado,
eu gosto de
Basquiat e leio
Houllebecq.”

Essa foi a fala inconformada de um jogador após ser


dispensado pelo Velasca. Sim, é verdade que alguns
dos atletas também tem um lado artístico e muitas
vezes até trabalham nesse campo, mas essa não é a
regra por lá.

O Velasca, ano a ano, vai subindo dois degraus com


a bola nos pés. Na primeira temporada, acabou em
sétimo. Já na segunda, a colocação na tabela foi a
quinta posição. E em 2018, vem brigando pelo ter-
ceiro posto. Agora na Open B, liga organizada pela
CSI [Centro Esportivo Italiano], o objetivo em breve
é disputar competições maiores, regularizadas pela
maior confederação futebolística do país.

“Em 2019, gostaria de inscrever o time em campeo-


natos organizados pela FIGC [Federação Italiana de
Futebol], sempre partindo de baixo. A inscrição não
é difícil, basta pagar. Mas queremos causar uma boa
impressão por lá. Por isso quero que o time melhore
a cada ano e assim na temporada 2019/20 estaremos
nessas ligas com mais visibilidade”.

Assim conta De Girolamo. Na sua cabeça também


está bem claro o time de equipe e de jogadores que
ele gostaria de contar. “Meu desejo é que os jogado-
res ficassem no Velasca por anos. Do ponto de vista
futebolístico queria criar essa alma para o time. For-
mar ídolos, ‘bandeiras’ como vimos antes na Itália:
Maldini e Totti.”

Com a declaração dá pra ver um pouco do espírito do


diretor esportivo e como ele gostaria que seu time
resgatasse o romantismo de outros tempos. Os outros
quatro fundadores também compartilham a paixão
pelo futebol de outrora.

107
Calcio & Arte

“Sócrates e a A cada temporada, um artista é convidado para fazer


o desenho da camisa. Na temporada 2016/17, o convi-

democracia
dado foi o francês Zevs, que aproveitou a oportunidade
para fazer uma crítica ao mundo das marcas e ao
capitalismo moderno. O paradoxo de confeccionar

corinthiana são essa idéia, ficou por conta da Hummel.

uma das nossas


Já na temporada 2017/18, a idéia foi brincar com o fato
de que os dois grandes times de Milão, a Inter e o Mi-
lan, foram comprados recentemente por investidores

grandes da China.“Estava com inveja, os dois primeiros times


de Milão são chineses, nós também queremos ser”

referências.”
conta o presidente. Assim, foi escolhido um artista
do país asiático, Jiang Li, para criar a camisa.

— Os tradicionais cachecóis também foram produzidos


para a temporada com um conceito de liberdade de

Wolfgang
expressão. Dessa maneira, três versões diferentes
foram confeccionadas levando três poemas futuristas
diferentes.
Natlacen Outro detalhe para essa temporada fica por conta da
entrada da Le Coq Sportif como patrocinadora es-
portiva. Um desejo que os fundadores tinham desde o
início do clube. “Eles têm valores bem parecidos com
os nossos, sempre pensamos neles”, conta Natlacen,

108
AS Velasca

que após 16 meses de negociação concluiu a parceira.

Dessa forma, uma leva de camisas e cachecóis são


“Tudo é
feitos e vendidos no site do clube. O comércio dessas
duas peças é o maior ganha pão do time, que não pensado,
apresenta outras grandes rendas.

O Velasca não vende o trabalho de outros artistas


tudo tem
— como aquelas caneleiras do começo da matéria,
criadas por Belussi. Assim, se alguém quiser uma peça uma narrativa
igual à usada pelo time, deve se dirigir diretamente
ao autor, que fica com o lucro. É desse modo que a que segue
o nosso
parceria vai aumentando.

“Alguns artistas são nossos patrocinadores. Outros


nós que buscamos, como por exemplo Eric Pougeau,
que usava sempre a temática da morte em suas obras,
e assim, nós pedimos para que ele fizesse nossa faixa
pensamento.”
de luto”.

Os trabalhos fogem totalmente de um esporte cada


vez mais padronizado. Mas é essa estranheza e esse Sempre com a torre em vista, o Velasca vai construin-
respiro que a equipe quer proporcionar ao futebol que do seus próprios andares jogando bola e contando
já foi o maior do mundo e que hoje lamenta a ausência histórias. Querendo chegar nas alturas para desafiar
de sua seleção na Copa do Mundo. os antigos arranha-céus italianos, mas com os pés
no chão.

109
Cartellino
Rosso
Os tentáculos da máfia e do
crime organizado no calcio

Reportagem:
Nelson Oliveira/Calciopédia

Ilustração:
Valter Vinícius Costa

110
111
Cartellino Rosso

É
um fato espinhoso de se reconhecer, mas não E agentes públicos faziam acordos ilegais, por baixo
há dúvidas de que a Itália é o país que descobriu dos panos, para tentar coibir as ondas de violência.
mais casos de influência do crime organizado
em qualquer nível do futebol, se considerarmos as O crime italiano também se tornou um player in-
nações com as principais ligas da Europa. Muito além ternacional, graças às suas principais organizações
de insinuações ou de piadas fora de lugar, os elos mafiosas: primeiro a Cosa Nostra [Sicília] e depois a
entre o esporte e os indivíduos fora da lei [incluindo Camorra [Campânia] e a ‘Ndrangheta [Calábria], que
integrantes de máfias] são uma questão estrutural no fazem negócios com foras da lei de todos os conti-
país e merecem ser discutidas dentro de uma pers- nentes. Com tal capilaridade, não é de se estranhar
pectiva socioeconômica. que a máfia chegaria ao futebol, uma das maiores
paixões do povo italiano. Poder, notoriedade, lava-
O futebol está tão entranhado na sociedade italiana gem de dinheiro, manipulação de resultados, apostas
que parece até que ele está inserido nela há milênios. ilegais e infiltração em torcidas: tudo isto interessa
Bom, um dos antepassados do esporte, o calcio flo- aos criminosos no esporte.
rentino, até se difundiu por regiões do país, no século
XVI, mas o futebol propriamente dito só chegou ao
Belpaese no fim do século XIX, com imigrantes in-
gleses. O crime organizado é um pouco mais antigo:
a máfia tem origem na passagem do feudalismo para
a modernidade no sul da Itália.

Segundo o jornalista Leandro Demori, editor-execu- O cérebro: a máfia


tivo do The Intercept Brasil e autor de “Cosa Nostra
no Brasil: a história do mafioso que derrubou um
Império”, o movimento que impulsionou o estabe-
que controla clubes ou
lecimento das organizações mafiosas, tão ligadas a
manifestações populares, teve início com os nobres
influencia dirigentes
sicilianos. Os senhores passaram cada vez mais a
deixar o campo e a se fixar em Palermo e, por isso,
confiaram a proteção de suas terras a pequenos fa-
zendeiros, que ficaram encarregados de manter os
servos na roça. Estas milícias utilizavam da violência

E
para atingir os objetivos dos patrões e tinham carta mbora as diversas associações mafiosas da Itá-
branca para usar a força e outros meios escusos em lia atuem em áreas que movimentam grandes
benefício próprio. montantes, a participação de criminosos no
futebol não alcança a mesma relevância, em termos
Não demorou para que este “serviço” começasse a financeiros — nem mesmo de lavagem de dinheiro,
se tornar um verdadeiro negócio, geralmente tocado já que existem formas mais eficazes de limpar ca-
por núcleos familiares. Também foi rápido que os clãs pitais. Por que, então, o esporte interessa tanto às
assumiram a premissa de que seu trabalho servia para organizações mafiosas?
proteger o povo: conseqüentemente, ficaram cada vez
mais conhecidos e multiplicaram o número de sócios. “O maior medo deles [dos mafiosos] é estar no centro
Isso aconteceu inicialmente por toda a Sicília, em das atenções. Eles querem ser, como disse um arre-
meados do século XIX — época em que há o primei- pendido camorrista, pessoas muito importantes em
ro registro da palavra “máfia” —, e depois pelo sul nível local. Famosos em seus territórios, mas anô-
do país. Neste contexto, se estabeleceram duas das nimos nos cenários nacional e internacional”, disse
cláusulas pétreas da máfia: o pizzo [pagamento por Roberto Saviano, em entrevista ao jornal inglês The
proteção, usualmente mediante extorsão] e a omertà, Guardian. Saviano sabe bem do que fala: nascido em
forma de justiça paralela aplicada a quem age com Nápoles, o jornalista é o autor do best-seller “Go-
deslealdade com contribuintes ou não segue o código morra”, que deu origem a um premiado filme e a uma
de honra da organização — normalmente sob a forma série televisiva, ambos com o mesmo nome. Desde
de homicídios ou outras formas de intimidação. as primeiras ameaças de morte recebidas, em 2006,
pelo clã dos Casalesi [uma dissidência da Camorra],
Após a Segunda Guerra Mundial, a máfia expandiu o escritor vive sob um protocolo de segurança que
seus horizontes. Deixou os negócios rurais e as pe- prevê escolta contínua e, para sua própria proteção,
quenas cidades para, definitivamente, agir onde a mora em um local não revelado.
iniciativa privada era incipiente, o decadente reino
italiano não havia agido e a nova república não che- Nas cidades menores do sul da Itália e nas periferias
gara. Contrabando, tráfico de armas, lobby bancário, das cidades grandes, a influência que a máfia exerce
especulação imobiliária e os negócios legais em que sobre os territórios é notória e se espalha como uma
se imiscuía e, por último, as drogas: a máfia espa- colônia de bactérias. A lógica aqui é a da capilaridade
lhou seus tentáculos por quase todos os setores da territorial, da possibilidade de o crime organizado
economia do Belpaese e ganhou território, atuando estar entranhado e ter poder sobre as mais diversas
também no centro e no norte da Bota. áreas da sociedade, como explica Leandro Demori.

As ramificações da máfia podem até ser mais eviden- “Em muitas cidades pequenas você ainda vai ver que
tes no sul da Itália, mas se estendem a todo o país. Em a máfia ainda pode atuar em negócios minúsculos,
2000, estimava-se que 20% dos negócios do país eram como cobrar pizzo de comércio ou feiras. Não é um
controlados pelos mafiosos. Até mesmo gente impor- grande filo financeiro, que vá gerar grandes volumes
tante, como Silvio Berlusconi, pagaria por proteção. de dinheiro, como o tráfico internacional de qualquer

112
Os tentáculos da máfia e do crime organizado no futebol italiano

“É natural que a realizados como homenagem a mafiosos assassina-


dos na Calábria. Segundo um informante chamado
máfia esteja enfiada Armando De Rosa, desde 2002 acontecem campe-
onatos anuais financiados pelo crime organizado
em lugares onde haja em Scampia, um dos subúrbios mais conhecidos de
Nápoles. Criminosos procurados internacionalmente
qualquer costumam dar o ar da graça para prestigiar as partidas
e, de quebra, relembrar a algum desavisado quem é
manifestação popular. que detém o poder por ali. Os clãs disputam entre si
e até contratam jogadores semiprofissionais para
Nada melhor do que o dar uma força aos amadores locais, que competem
por drogas e não por prêmios em dinheiro ou troféus.
futebol para isso.” Eventualmente, os mafiosos deram um passo à fren-
— te e, com o uso de “laranjas”, deixaram a esfera do
esporte local em alguns casos. Raffaele Cantone, ex-
Leandro Demori -procurador da divisão anti-máfia de Nápoles, lembra
que o futebol não é apenas uma excelente ferramenta
para manter o controle dos territórios. Comandar um
clube serve para que os criminosos possam manter
sua influência e capilaridade, mas tem uma grande
vantagem: a chance de lavar o dinheiro proveniente
de seus negócios ilegais. “Ao redor do esporte há um
grande movimento de capital, ligado, por exemplo, ao
mundo das apostas. O futebol também é um veículo
importante para unir mundos distantes, tendo em
conta as relações que as agremiações têm com a po-
lítica e o empreendedorismo”, declarou em entrevista
ao Affari Italiani.

A compra de empresas falidas, destinadas a uma falsa


recuperação financeira, é uma das formas mais co-
coisa, mas é uma forma de manter o poder da máfia, muns de lavagem de dinheiro. Para quem não está
capilar e vertical. Os caras mantêm o controle sobre habituado ao tema, o princípio é simples: ao investir
aquela área”, diz o jornalista. O futebol entra nessa nestas corporações, o verdadeiro intuito dos crimino-
lógica, desde as suas manifestações mais comezinhas. sos é dar uma aparência de legalidade a um patrimônio
“A máfia não é um tipo de poder que freqüenta salões obtido de formas escusas, “limpando-o” e tornando-o
refinados: os mafiosos costumam ter um contato mui- disponível para investimentos e a obtenção de novas
to grande com a população local, mais ou menos como riquezas. Como na história do futebol italiano não
na lógica do tráfico nos morros do Brasil”, completa. faltam casos de clubes que entraram em bancarrota,
não é novidade que a prática mafiosa, antes vista em
Nápoles é uma das poucas cidades grandes da Europa outros empreendimentos, chegaria ao esporte.
em que ainda é comum ver garotos jogando bola nas
ruas: ainda que seja uma metrópole, conserva hábitos Se considerarmos apenas situações em que crimino-
que persistem em toda a parte meridional da Bota. sos ou pessoas diretamente ligadas a eles ocupem o
Enquanto muitos destes garotos acabam cooptados primeiro ou o segundo nível administrativo de um
para atuarem em serviços pequenos do tráfico, como o clube [ou seja, exercendo função como presidente,
de olheiros das bocas, é comum que a máfia aja como diretor ou conselheiro], perceberemos que tal envol-
“patrocinadora” do esporte local, sobretudo em locais vimento entre o mundo do crime e o esporte aconte-
em que o estado atue menos e em que a iniciativa ce atualmente [de maneira confirmada] apenas nas
privada enfrente enormes dificuldades financeiras. divisões inferiores, em equipes semi-profissionais
“É natural que a máfia esteja enfiada em lugares em ou amadoras. Como lembra Cantone, “uma escalada
que haja povo ou qualquer manifestação popular. Nada formal da máfia nos clubes da elite é mais difícil”, já
melhor do que o futebol para isso: trazer um jogador que nos níveis mais profissionais do futebol existe
para um clube, ser dirigente, benemérito, ajudar a uma maior fiscalização — transações obscuras para
reformar um campo, um estádio”, explica Demori. aquisições de jogadores já chamam a atenção e ge-
ram desconfianças sobre a sua idoneidade, mas são
Esse tipo de relação confere aos criminosos poder identificadas com mais facilidade, por exemplo. Por
suficiente para influenciar votações municipais e, sua vez, as categorias diletantes são uma verdadeira
assim, eleger políticos que façam vista grossa para terra de ninguém.
os seus negócios ou que atuem diretamente junto ao
crime, trabalhando para aprovar matérias de inte- O Crotone tem um lugar peculiar neste contexto.
resse da máfia. “Em cidades pequenas, o presidente Flutuando nas divisões profissionais há quase vinte
de um clube costuma ter um poder enorme e mais anos e desde 2016 na Serie A, a equipe da Calábria
influência do que o próprio prefeito”, salienta Daniele faliu no início dos anos 1990 e, em 1992, foi assumida
Poto, jornalista autor do livro “Mafia nel pallone” [“A pela família Vrenna, na figura dos irmãos Raffaele
máfia no futebol”], sem tradução para o português. e Gianni. Atuais mandatários do clube, os dois têm
um dos sobrenomes mais importantes da cidade:
Seguindo essa linha, há relatos de torneios infantis afinal, a ‘Ndrina Vrenna é uma das mais fortes re-

113
Cartellino Rosso

presentantes da ‘Ndrangheta em Crotone. Raffaele Roberto De Zerbi [hoje no Benevento], o atacante


é, ainda, um empreendedor do ramo de descarte de Pietro Iemmello [Benevento] e o zagueiro brasileiro
resíduos sólidos — setor historicamente ligado às Alan Empereur [Bari]. Todos podem ser condenados
organizações mafiosas, que cobram preços menores na esfera cível por receptação e correm o risco de
para a indústria e descartam o lixo de maneira ilegal. cumprir uma suspensão de três a seis meses se forem
considerados culpados pela justiça desportiva.
Parece fácil juntar lé com cré, não é? No entanto, até
agora nada foi provado contra Raffaele, que é um Enquanto o Crotone ainda militava nas divisões infe-
parente distante de Luigi Vrenna, fundador do clã no riores e Casillo estava prestes a ser absolvido, porém,
início do século XX. Neto do chefão e primo de Vrenna, houve uma ambiciosa tentativa de infiltração mafio-
Luigi Bonaventura prestou depoimento à justiça em sa na crème de la crème do futebol italiano — caso
2013 e, no inquérito, acusou o presidente do Crotone considerado pelo promotor Cantone como um “forte
de envolvimento com a ‘Ndrangheta — fato negado sinal, que não deveria ser subestimado”. Em uma
pelo cartola. investigação coordenada pelo Ministério Público da
República e pela administração distrital Anti-máfia
Outros delatores também acusaram o dirigente de de Nápoles, iniciada em 2006, se descobriu que um
intrínseco contato com a organização: supostamente, grupo de empresários da Europa Oriental vincula-
empregava parentes de criminosos em troca de se- do ao clã dos Casalesi tentou adquirir uma cota de
gurança para si e seus negócios. Segundo Domenico ações da Lazio. O inquérito mostrou como a operação
Bumbaca, um dos colaboradores, Vrenna também foi idealizada de forma a disfarçar a identidade dos
utilizava de meios para ameaçar adversários no fu- compradores reais através do uso de laranjas e de um
tebol e manipular resultados de partidas, além da complexo esquema corporativo.
influência da família como trunfo para controlar os
ultras ou garantir aos jogadores que ninguém mexeria Um dos cabeças da negociata seria Giorgio Chinaglia,
com eles. Diante de tantas denúncias, no início de 2016 uma das grandes bandeiras celestes. Long John foi
a promotoria de Catanzaro [sede administrativa da atacante da equipe que venceu o scudetto em 1974 e
Calábria], através de sua divisão anti-máfia, acusou presidente do clube entre 1983 e 1986, numa gestão
Raffaele Vrenna de associação mafiosa e solicitou o controversa: uma década depois, ele acabaria conde-
seqüestro de 800 milhões em bens — incluindo, aí, nado a dois anos de prisão [transformados em multa]
o próprio Crotone. por fraude contábil e por responsabilidade direta
na bancarrota da empresa que gerenciava o clube.
O cartola acabou inocentado e pode comemorar mais Mesmo assim, o ex-artilheiro não deixou de traba-
uma vitória em uma batalha judicial: anteriormen- lhar na gestão esportiva e, ao longo dos anos 2000,
te, já havia sido absolvido na última instância outra participou de negócios com Ferencváros [Hungria]
vez por associação mafiosa e também por extorsão, e Lanciano, além de ter sido presidente de fato do
corrupção e compra de votos. Mais recentemente, em Foggia e honorário do Marsala.
primeira instância, se livrou da acusação de ocultação
de patrimônio. Em janeiro deste ano, porém, a histó- Chinaglia voltou à cena romana quando falou publi-
ria ganhou um novo capítulo, depois que um delator, camente sobre o suposto interesse de uma companhia
ex-membro da ‘Ndrangheta, afirmou que utilizou um farmacêutica húngara em comprar a cota majoritária
caminhão da empresa de Vrenna para transportar uma de ações da Lazio. Isto fez com que os títulos do clube
quantidade de lixo hospitalar que foi enterrada num na bolsa de valores oscilassem de forma anormal nos
local impróprio, perto de uma escola de Crotone. As meses de fevereiro e março de 2006. De bate-pronto,
investigações estão em curso: terminarão em mais a empresa do Leste Europeu negou veementemen-
uma absolvição? te o interesse em administrar um clube de futebol,
a Comissão de Valores Mobiliários italiana acabou
A trajetória de absolvição tardou, mas chegou para intervindo com medidas restritivas para impedir
Pasquale Casillo, presidente do Foggia nos tempos de qualquer manobra indevida — mais ou menos o que
ouro do clube — fim dos anos 1980 e início dos 1990, não foi feito no Brasil após as delações premiadas de
quando chegou a encantar na Serie A. O dirigente do executivos do grupo JBS, que se beneficiou de tais
time apuliano foi processado em 1993 por associação oscilações no mercado financeiro.
mafiosa, chegou a ser preso em 1994 e só em 2007 foi
inocentado na corte federal. A longa tramitação do Segundo a acusação, Chinaglia sabia que as verbas
caso no judiciário do Belpaese acabou prejudicando para a compra do clube procediam da Camorra e aco-
suas empresas, que nunca se recuperaram do baque: bertava os chefões. Durante toda a investigação, foram
faliram e deixaram centenas de desempregados. Ca- expedidos mandados de prisão para o ex-cartola por
sillo até tentou retomar a vida como dirigente em organização criminosa com agravante de uso de mé-
outros clubes e voltou ao Foggia após a bancarrota todos mafiosos, manipulação do mercado financeiro
dos satanelli, em 2012, ocupando a presidência por e tentativa de extorsão — o alvo da chantagem era
dois anos. Claudio Lotito, que já era o manda-chuva da Lazio
àquela época. Chinaglia, porém, residia nos Estados
Atualmente, a agremiação rossonera se encontra na Unidos havia alguns anos. Considerado foragido da
segunda divisão, mas voltou a se ver envolta em pro- Justiça, sempre negou todas as acusações, mas nunca
blemas: em dezembro, o ex-vice-presidente Massimo mais pisou na Itália e nem cumpriu pena: morreu em
Curci e, no fim de janeiro, seu dono, Fedele Sannella, 2012, aos 65 anos, após sofrer um ataque cardíaco
foram presos por fraude e lavagem de dinheiro. Os car- na Flórida.
tolas teriam consciência de que a quantia investigada
era de origem ilícita e aceitavam limpar o capital da Entre outras medidas, as autoridades fiscais italianas
máfia através de pagamentos por fora do balanço, em emitiram outros mandados de prisão, bloquearam
espécie, a vários funcionários — entre eles, o técnico parte dos milhões de euros que Camorra queria in-

114
Os tentáculos da máfia e do crime organizado no futebol italiano

jetar no clube e também revelaram a participação de


membros da Irriducibili, maior organizada da Lazio, “O mundo do futebol
nas ameaças feitas a Lotito e a sua família — isto,
porém, é assunto para depois. O relatório conjunto amador é deixado à
da procuradoria e do órgão anti-máfia também dava
conta de que os Casalesi tinham um plano de inves- mercê do crime
timento de grande escala no futebol: por meio do
mesmo esquema, os criminosos desejavam adquirir organizado, pela
cotas ou a integralidade de equipes como Benevento,
Lanciano e Marsala. Chinaglia teve alguma ligação ausência de controle
com as duas últimas mencionadas.
eficaz sobre os planos
Apesar do plano de tomar o controle acionário da
Lazio, equipes do mesmo porte das citadas no pará- esportivo, fiscal e penal.”
grafo acima eram consideradas ideais pelos mafiosos.
Afinal, em categorias menos badaladas, o risco para —
esse tipo de reinvestimento de capital sujo é defini-
tivamente menor do que na Serie A. De acordo com a Comissão
Comissão Parlamentar Anti-máfia, as agremiações
que ocupam estes níveis do futebol local têm maior Parlamentar
possibilidade de sofrer “infiltração” de mafiosos por
brechas no processo de inscrição de um clube nas Anti-máfia
categorias menores e na pequena possibilidade de
fiscalização feita pelos órgãos competentes.

O processo de inscrição junto à Lega Nazionale Di-


lettanti, que organiza as competições da quarta até
a última divisão, é muito mais simples do que nos
campeonatos profissionais — embora haja sérias
deficiências também nestas instâncias, como já fa-
lamos aqui. A documentação obrigatória pedida para
os sócios é mínima, verdadeiramente incipiente, o fluxo de caixa e atividade econômica inexistente, ho-
que gera um efeito dominó para os mecanismos de mens de negócios suspeitos e perseguidos por dívidas,
controle posteriores. velhinhas aposentadas e até mesmo um professor
de matemática que havia se tornado ator pornô e se
“A natureza jurídica das empresas registradas as frustrado com a nova profissão. Em suma: pessoas
desobriga de certas formalidades contábeis, fiscais com ganhos incompatíveis para sanar as dívidas de
e orçamentárias. Isto abre caminho para a execução um clube que nem mesmo pagava salários para os
de operações nebulosas, a inserção de capital ilícito jogadores. O alarme foi disparado quando se descobriu
e o uso de dinheiro em espécie e outros instrumentos que um dos investidores, proveniente da província
de pagamento não rastreáveis. Em suma, o mundo de Caserta, mantinha negócios com familiares de
do futebol amador é deixado à mercê do crime or- Antonio Iovine, um dos principais chefes do clã dos
ganizado, pela ausência de controle eficaz sobre os Casalesi — que está atrás das grades.
planos esportivo, fiscal e penal, já que os clubes não
possuem documentação contábil e balanços financei- Outra característica em comum entre os sócios do
ros confiáveis”, diz relatório publicado pela comissão Mantova é que nenhum deles tinha uma cota acio-
em dezembro de 2017. nária superior aos 10%, o que impedia a Lega Pro,
organizadora da terceira divisão, de ir atrás da ficha
Em 2012, o procurador de Lecce, Cataldo Motta, até corrida de cada um deles. Por regulamento, acionis-
sugeriu à Federação Italiana [FIGC] um protocolo de tas que possuem menos de 10% de um clube não são
checagem e atribuição de uma certificação anti-máfia obrigados a provar a liquidez de seus investimentos
aos sócios e funcionários dos clubes, mas esta estru- ou atestar a sua idoneidade em relação a envolvimento
turação teria como entraves os custos relativamente com a máfia — cota que a AIC, a Associação Italiana
altos e a dificuldade de operação. Ademais, os mafiosos de jogadores, deseja reduzir para 1% ou 2%.
aperfeiçoam os seus métodos de ocultação de patri-
mônio a cada dia e o que não lhes faltam são laranjas. “Através de uma divisão artificial nas ações da socie-
dade, sujeitos ligados a um clã da Camorra buscavam
Um dos casos mais nefastos que já ocorreram nas evitar a possibilidade de rastreio de suas relações com
divisões inferiores deixa nítidos o aperfeiçoamento a organização criminosa”, relatava um documento da
das práticas dos criminosos e a fragilidade do controle Comissão Parlamentar Anti-máfia. O relatório ainda
fiscal. Em 2017, o tradicional Mantova, que já contou afirmava categoricamente que todos os acionistas
com craques como Dino Zoff, Angelo Sormani e Kar- eram laranjas do esquema. Luca Tassinari, o ator
l-Heinz Schnellinger em suas fileiras, disputava a pornô citado, chegou a admitir que havia assinado o
terceirona e estava à beira da falência quando, miste- contrato por ser um mero fiador. A quem emprestou
riosamente, foi adquirido por um grupo de acionistas. a sua confiança, porém, ele não disse.
O que seria a salvação do clube acabou virando uma
novela, nos moldes da que culminou na falência do É de se espantar que não haja a necessidade de do-
Parma, em 2015. cumentação complementar, nem mesmo quando os
indícios de negociata são evidentes. No caso do Man-
Entre os beneméritos, supostos empresários sem

115
Cartellino Rosso

tova, isso ficou ainda mais claro quando o senhor -los a patrocinar o clube azzurrostellato, considerado
Marco Claudio De Sanctis assumiu como presidente: pela polícia como uma “verdadeira obsessão” para o
De Sanctis é um empresário romano processado inú- alcaide. Com investimento robusto, a equipe chegou
meras vezes por ilícitos fiscais, estelionato e outras à Serie C, onde atualmente está. Paradoxalmente, a
trapaças. No comando do clube da cidade de Virgílio, equipe manda seus jogos no estádio intitulado em
o pilantra passou meses prometendo o paraíso e, homenagem a Marcello Torre, ex-prefeito e presi-
no final das contas, emitiu um comunicado em que dente do clube, assassinado por capangas de Raffaele
informava que os sócios não poderiam arcar com as Cutolo, fundador da Nuova Camorra Organizzata, em
dívidas do clube e não apresentariam recurso à de- dezembro de 1980.
cisão da liga, que excluiria o time da Serie C 2017-18
por dificuldades financeiras. O Mantova foi usado Cutolo, aliás, foi um personagem bastante comen-
como mecanismo de lavagem de dinheiro e, após tado naquela década — e não só pela matança que
servir aos fins do crime, foi deixado à míngua: faliu comandava nas guerras entre máfias e o poder ju-
e recomeçou a sua caminhada da Serie D. diciário. No plano do esporte, o boss foi o pivô de um
acontecimento que teve o brasileiro Juary, ex-Santos,
Para demonstrar o quão comuns são essas opera- como um protagonista de pára-quedas.
ções nas divisões inferiores, o já citado procurador
Motta, como chefe do Ministério Público regional Dois meses antes de ordenar o assassinato de Torre,
da Apúlia, foi ainda mais longe. À época que condu- Cutolo recebeu a visita de Antonio Sibilia, então pre-
ziu investigações sobre futebol e crime organizado, sidente do Avellino, em uma das muitas audiências
em 2012, o promotor afirmou que sete dos 16 clubes judiciais do processo que o colocou atrás das grades.
que disputavam o grupo local da Eccellenza [quinta Durante um intervalo, ele se dirigiu ao mafioso levan-
divisão, disputada em grupos em cada região] eram do a tiracolo o Menino da Vila, principal contratação
controlados por pessoas ligadas à Sacra Corona Unita do clube biancoverde para a temporada. Sibilia cum-
— conhecida popularmente como “quarta máfia”, primentou o mafioso com três beijos na bochecha e
por ter surgido depois de Camorra, Cosa Nostra e lhe entregou, através de Juary, uma medalha de ouro
‘Ndrangheta. com uma dedicatória: “Para Raffaele Cutolo, com
estima, de Avellino Calcio”.
Durante o último ano, a situação não era tão diferente.
Procuradores associados à Comissão Parlamentar Várias décadas depois, as homenagens a mafiosos
Anti-máfia apontaram que cinco clubes poderiam continuaram no futebol da Itália. Em 1997, o Locri
estar sendo usados como instrumentos do crime or- lamentou a morte de Cosimo Cordì, chefão da ‘Ndran-
ganizado: Polisportiva Laureanese, Fronti di Lamezia gheta. Em 2004, o árbitro Paolo Zimmaro foi suspenso
Terme, Isola Capo Rizzuto [os três são da Calábria], após ser instado a prestar um minuto de silêncio em
Città di Foligno [Úmbria] e Ilva Maddalena [Sardenha]. homenagem a Carmine Arena, outro chefe da orga-
nização morto com tiros de AK-47, após a blindagem
Na Campânia, por exemplo, a máfia ainda dominou de seu carro ser detonada por uma bazuca. Cinco
equipes como Boys Caivanese, cujo estádio servia anos depois, foi a vez de Gioacchino Sferrazza, en-
como esconderijo de armas para as guerras entre as tão presidente do Akragas [time que milita na Serie
famílias. Também podemos citar o Giugliano Calcio, C e que disputava a sexta divisão na época], dedicar
comandado por Giuseppe Dell’Aquila, conhecido como uma vitória a Nicola Ribisi, capo da Cosa Nostra em
Peppe ‘o Ciuccio [o popular Zé Chupeta, do clã Mallar- Agrigento. A pressão foi tanta que Sferrazza se viu
do], que foi confiscado pelas autoridades; a Virtus obrigado a entregar o cargo.
Baia [clã Pariante] e a Albanova, apoiada muito de
perto por Walter Schiavone. Ele é irmão de Francesco A lista continua. Em 2012, a minúscula Folgore con-
Schiavone, o Sandokan, camorrista do topo da cadeia vidou Marsala [Serie D] para realizar um torneio
alimentar do clã dos Casalesi — os dois caíram nas amistoso em deferência a Paolo Forte, padrinho de
garras do magistrado Raffaele Cantone. crisma de Matteo Messina Denaro, maior chefe da
Cosa Nostra — Forte havia, inclusive, emprestado
Ainda nas proximidades de Nápoles, outros casos seus documentos para que o boss foragido pudesse
de destaque envolvem a Nocerina e a Paganese. Sob circular pela Itália e ordenar atentados durante a
o comando de Giovanni Citarella, entre 2009 a 2013, década de 1990. Em 2017, o Catania também prestou
a equipe de Nocera Inferiore chegou a disputar a Se- um minuto de silêncio para recordar a memória de
rie B pela terceira vez em sua história, após mais de Ciccio Famoso, ultra ligado ao crime organizado.
trinta anos de ausência. Citarella é um dos reis da Nenhum destes casos, porém, teve o desfecho dra-
fabricação de concreto no sul da Bota e filho de Gino, mático causado pelo “inocente” presentinho dado
um expoente da Nuova Famiglia que foi assassinado por Sibilia a Cutolo.
em 1990. Ele foi condenado por participação em uma
tentativa de homicídio e suspeito em vários casos Sibilia e Cutolo não contavam que Luigi Necco, célebre
por associação com a Camorra, mas só foi preso em repórter da Rai no sul da Itália entre os anos 1970 e
2014, por fraude e falsidade ideológica. 42% das ações 1990, observava a entrega da medalha com olhos
do clube foram seqüestradas e a Nocerina, já falida, bastante atentos. Na TV, o jornalista relatou tudo
passou para as mãos de torcedores, que iniciaram o que viu e surpreendeu os telespectadores. Com a
uma campanha para associação em massa. Hoje, o repercussão, Sibilia disse que o mafioso recebeu a
clube disputa a Serie D. medalha por ser um “super torcedor do Avellino” e
que a entrega foi uma “decisão tomada pelo conse-
A prisão também foi o destino de Alberico Gambino, lho de administração do clube”. Cutolo, por sua vez,
ex-prefeito de Pagani, ligado à Paganese. Gambino negou que pudesse ordenar qualquer revanche contra
foi para o xadrez por, juntamente a membros dos clãs Necco. “Em jornalistas não se toca. E Necco é até um
Petrosino e D’Auria, extorquir empresários e obrigá- tipo simpático”, declarou o chefão.

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Os tentáculos da máfia e do crime organizado no futebol italiano

A recomendação de Cutolo, porém, não foi seguida O clube, fundado nos anos 1950, deixou de existir em
por Enzo Casillo, ‘O Nirone [“o Negão”]. O general da 2010 porque nenhum empresário local teve coragem
Nuova Camorra Organizzata, responsável por todas de confrontar a ‘Ndrina Pesce: a família afiliada à
as ações armadas do bando, quis ganhar mais pres- ‘Ndrangheta esteve à frente dos amaranto por qua-
tígio na associação e preparou uma emboscada para se 15 anos. Em entrevista ao Corriere della Sera, o
Necco, em meados de 1981. O jornalista deixava um procurador Antonello Ardituro, que participou do
restaurante em Mercogliano, feudo do presidente processo de “libertação” da Nuova Quarto, foi enfático
Sibilia, quando sicários de Casillo lhe deram três tiros ao comentar os efeitos dos trabalhos anti-máfia no
nas pernas. Ainda picharam seu carro com uma frase futebol: “certos ambientes reagem mal a qualquer
enigmática: “Você não queria criticar?”. Segundo o mensagem que sublinhe a força da legalidade”. Estas
jornalista Roberto Saviano, em entrevista ao Cor- mensagens, no entanto, ainda estão longe de atingi-
riere della Sera, o episódio sacudiu a organização rem a totalidade do esporte italiano.
criminosa mais sangrenta e poderosa da Campânia
naqueles anos. “Foi o suficiente para fazê-la reagir.
Naquele momento, os mafiosos tinham mais medo da
coragem de um repórter esportivo do que de dezenas
de processos judiciais em curso”, diz.

Anos depois do caso, Sibilia chegou a ser detido por


acusação de associação mafiosa, mas foi absolvido. As vértebras:
Resta lembrar que a sua relação com a criminalidade
em Avellino era intimíssima: certa vez, Juary teve
o toca-fitas de seu carro roubado e o presidente lhe
os agentes duplos
disse que resolveria tudo com um telefonema, mas
precisava de uma informação: tinha que saber em que
ligados aos clubes
lado da rua o brasileiro havia estacionado. O motivo?
Um clã comandava a banda direita da rua e outra
família dominava a oposta.

Retaliações como a de que foi alvo Luigi Necco, fa-

N
lecido em março de 2018, eram comuns nos anos de em sempre a infiltração criminosa ocorre di-
chumbo, mas ainda perduram na Itália, porque a retamente no topo da administração de um
omertà é um dos pilares da máfia. No futebol, uma clube. Há casos em que os cabeças [presidentes
das vítimas desta prática foi Pino Morinello, ex-pre- e principais diretores] não estão envolvidos direta-
sidente do Gela: o dirigente da agremiação siciliana mente com a máfia, mas sim simples funcionários
teve sua Fiat 600 alvejada por disparos de armas de das agremiações ou de empresas terceirizadas que
fogo por ter uma postura anti-máfia. Após o incidente, prestam serviços no meio esportivo. Em geral, a cor-
Morinello não só manteve o discurso duro contra a rupção nestes níveis se apresenta muito mais como
criminalidade, como fez a equipe entrar em campo amostra de poder dos mafiosos, mas também pode
com uma camisa em que se lia “eu não pago o pizzo” ter conseqüências nefastas, como um vetor de gra-
— a taxa cobrada pelos delinqüentes. ves delitos. De qualquer forma, são um forte viés de
sustentação do crime organizado no futebol.
Mais acima da Sicília, na Campânia, a Nuova Quarto
sofreu com a reviravolta em sua administração e em Em 2011, um caso agitou os bastidores do Napoli: An-
seu destino como clube. Até 2011, a agremiação era tonio Lo Russo, filho do chefe camorrista Salvatore Lo
comandada pelo boss Giuseppe Polverino, expoente Russo, foi flagrado em posição privilegiada, à beira do
da Camorra no tráfico de haxixe — embora seu nome campo, em pelo menos três jogos da equipe na Serie
signifique “Zé Pozinho” — e entusiasta da elimi- A. O presidente Aurelio De Laurentiis logo abafou o
nação de rivais através da dissolução de seus corpos caso ao declarar desconhecimento do clube e afirmar
em barris de ácido. Polverino ficou foragido de 2006 que o rapaz havia sido credenciado pela empresa que
a 2012, quando foi capturado na Espanha, e um ano cuidava do gramado do San Paolo.
antes de ser preso, teve seus bens confiscados pela
justiça: grande parte dos negócios da cidade de Quar- Como Antonio não estava em dívidas com a lei naquele
to estavam nas mãos da máfia, inclusive o clube de momento, a história não ganhou maiores propor-
futebol local. A Nuova Quarto foi assumida por uma ções. Também ajudou o fato de seu pai ter se tornado
nova administração e foi encampada como símbolo colaborador da justiça e ter passado informações
do combate ao crime. que contribuíram para desmantelar o clã, histórico
adversário dos comparsas do boss Raffaele Cutolo e
A história até teria um final feliz se os apoiadores do protagonista de uma violenta guerra em Scampia,
criminoso não interpretassem como traição o fato nos anos 2000.
de a equipe ter dado prosseguimento à sua trajetória
futebolística. Ameaças e atos contínuos de vandalismo No Palermo, observar não era reflexo da paixão fu-
[roubo de materiais esportivos, incêndio de redes e tebolística. Em 2007, se descobriu que a Cosa Nostra
quebra-quebra nas arquibancadas, por exemplo] co- colocou um preposto dentro do clube para se infor-
meçaram a fazer parte da realidade da Nuova Quarto, mar sobre todas as movimentações que a diretoria
que teve até mesmo os troféus conquistados no pós- rosanero fazia, pois enxergava a agremiação como
-Polverino roubado pelos camorristas. um filão de novos negócios — o mesmo acontecia,
segundo delatores, em outras equipes sicilianas.
A atmosfera ameaçadora se verificava também no
processo de falência do pequeno Rosarno, da Calábria. Totò Milano era subordinado ao chefe da coleta de

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Cartellino Rosso

pizzo do capo, Salvatore Lo Piccolo e, segundo investi- doria em pleno Renzo Barbera. Paixão pelo futebol?
gação da polícia, era assíduo freqüentador da sede e do Não, Messina Denaro não tem o mesmo perfil de seu
centro de treinamentos do Palermo desde as gestões aliado Andrea Manciaracina, que teve o esconderijo
dos presidentes Giovanni Ferrara e Liborio Polizzi, descoberto quando foi interceptado um telefonema
nos anos 1990 — período em que o time disputava, em que pedia uma televisão para assistir às semifinais
majoritariamente, a Serie C1. Milano acompanhava da Copa de 1990. A ida ao estádio fazia parte de um
treinamentos e chegava a viajar no mesmo avião que encontro de negócios com mafiosos da cidade — o
os jogadores para acompanhar partidas fora de casa. local foi alterado de última hora.

As informações reunidas pelos investigadores, ob- Foragido desde 1993, Messina Denaro é um dos cri-
tidas através de depoimentos, davam conta de que minosos mais procurados do mundo e o último dos
o objetivo do mafioso era fazer com que empresas grandes chefões a continuar em fuga. Ainda assim,
ligadas à Cosa Nostra pudessem ser subcontratadas teria conseguido entrar em um estádio repleto de
como prestadoras de serviço para o Palermo. Lo Pic- aparatos de vigilância. Sabemos que os pré-requi-
colo mirava obras de requalificação do CT rosanero, sitos de segurança nas praças esportivas italianas
em Boccadifalco, e também queria colocar as mãos são mínimos, mas é difícil imaginar que não tenha
sobre a construção de um grande empreendimento havido complacência por parte de funcionários en-
numa área de propriedade de Maurizio Zamparini, carregados do controle de entrada em La Favorita
dono do clube. naquele dia. Afinal, Messina Denaro é famoso na
Sicília e reconhecido por não costumar utilizar dis-
Naquele momento ainda havia dúvida se o local seria farces ou guarda-costas.
utilizado para a implantação de um novo estádio
para a agremiação ou como um hipermercado. Para Eventualmente, a máfia e o crime organizado prestam
a máfia, ambas as oportunidades seriam lucrativas, serviços aos clubes. No ano passado, por exemplo,
já que desde a década de 1950, numa série de eventos emergiu uma história relacionada ao Latina [Lácio],
conhecida como “Saque de Palermo”, setores da Cosa clube que quase chegou à primeira divisão, em 2014,
Nostra atuam fortemente na especulação imobiliária mas que faliu e atualmente se encontra na Serie D.
e dominam a construção civil na ilha, seja estabele- A diretoria trocava a proteção de um chefe local por
cendo cartéis ou superfaturando obras e materiais. privilégios, como a decisão de quem poderia acessar
Para completar o quadro, em 2011 foi descoberto que as arquibancadas e trânsito livre do criminoso entre
Giovanni Li Causi, gestor do bar do estádio Renzo atletas e funcionários. Seis anos antes, a Sanremese
Barbera, também estava envolvido no esquema e [Ligúria] teve seu presidente e seu administrador geral
tinha o dever de garantir que firmas parceiras dos — Marco e Riccardo Del Gratta, pai e filho — presos
criminosos tivessem seu lugar garantido em stands por terem remunerado elementos da criminalidade
num centro comercial de posse de Zamparini. organizada para que ameaçassem três jogadores do
próprio elenco, com o intuito de que eles desistissem
Os diretores da época negaram que soubessem que de renovar seus contratos e deixassem o clube.
Milano fazia parte da máfia, embora muitos deles
fossem nascidos e criados em Palermo e o sobrenome Os gigantes do norte também já sofreram com infil-
do preposto fosse um dos mais famosos no mun- trações mafiosas, sobretudo em atos ligados a torcidas
do do crime. Zamparini declarou várias vezes que organizadas e à contratação de serviços terceirizados
nunca foi pressionado e chegou até a declarar que a — exatamente as duas formas em que a máfia costuma
máfia parecia uma “invenção para dar um salário a agir mais fortemente no futebol da parte setentrional
policiais e procuradores”. O fato é que Rino Foschi, do país. No ano passado, a procuradoria de Catanzaro
que comandava a parte esportiva do clube, era um abriu uma investigação sobre a participação de mem-
dos mais assediados por Milano e foi ele que auto- bros da ‘Ndrangheta [muito ativa na Lombardia e no
rizou o trânsito do mafioso por locais reservados a Piemonte] no serviço de catering do estádio San Siro
funcionários. durante partidas do Milan. Segundo os promotores,
o clube ou seus funcionários não teriam quaisquer
O dirigente se defendeu, dizendo que acreditava que o responsabilidades sobre isto.
gângster era um simples torcedor, mas foi desmentido
pelos acontecimentos, já que se descobriu que ele foi Veredito diferente ao dado pela justiça desportiva
ameaçado pela Cosa Nostra em mais de uma ocasião. também em 2017 para o presidente da Juventus, An-
Na mais simbólica delas, o executivo recebeu uma drea Agnelli — nenhuma medida contra o clube foi
cabeça de cabrito como presente de Natal: era o sinal tomada pela justiça comum, no entanto. O juventino
de que a máfia não queria ficar de fora dos negócios foi suspenso de diversas atividades pelo período de
arquitetados pelo Palermo. No inquérito que inves- um ano, por ter dado aval à distribuição de ingressos
tigava o caso, Foschi e os jogadores Franco Brienza, a ultras do clube. Os organizados eram cambistas e
Salvatore Aronica e Vincenzo Montalbano também tinham um líder ligado a clãs da máfia calabresa e
foram acusados de terem agido a mando da máfia para da Cosa Nostra.
manipular uma partida entre Palermo e Ascoli, em
2002-03, mas a prescrição do suposto delito encerrou Em resumo, a Juventus “comprava” o silêncio dos
prematuramente a fase de coleta de provas. ultras ao distribuir ingressos para as maiores orga-
nizadas. Ao agradar as torcidas, o clube tinha como
A órbita da Cosa Nostra em torno do Palermo não se objetivo evitar protestos, brigas e qualquer forma
encerrou ali. Em 2010, uma denúncia confirmada pela de violência por parte dos radicais para não correr o
polícia dava conta de que Messina Denaro, um dos risco de sofrer sanções disciplinares, como multas e
chefes históricos da organização criminosa, chegou perda de pontos. Parte do ótimo ambiente no Allianz
a assistir a uma partida da equipe contra a Samp- Stadium seria, então, um simulacro.

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Os tentáculos da máfia e do crime organizado no futebol italiano

Em troca do bom comportamento dos ultras, a Juven- Dominello e estava foragido havia vinte anos. Foi
tus fechava os olhos para as ilegalidades cometidas condenado à prisão perpétua por seqüestro, posse de
pelos organizados fora das dependências do estádio, armas, associação mafiosa e duplo homicídio. Rocco
mesmo que algumas delas fossem feitas com ingres- teve uma pena mais leve: sete anos e nove meses por
sos cedidos pelo clube. Um bom negócio para os dois associação mafiosa.
lados, afinal. Para Raffaele Cantone, casos assim são
comuns em toda a Bota e são emblemáticos. “Estas Como se vê, a máfia não consegue operar dentro dos
relações entre clubes e grupos criminosos acabam clubes sem a complacência de funcionários. E, prin-
garantindo benefícios às torcidas e as agremiações cipalmente, sem a mãozinha das organizadas.
aceitam a chantagem”, diz.

Segundo a investigação, algumas torcidas chega-


vam a lucrar um milhão de euros por temporada com
cambismo. Um valor praticamente irrisório para os
chefões da máfia, mas muito atraente para associados
O braço: as torcidas que
recentes ou para criminosos que atuam de maneira
adjacente aos principais grupos mafiosos. É o que
servem ao crime
explica o jornalista Leandro Demori. “Essa questão organizado
do cambismo me parece algo menor. Talvez seja algo
como o contrabando de cigarros no passado: quando
as máfias começaram a traficar heroína, o negócio
de cigarros ficou em segundo plano e começou a ser
feito por associados novos. Para uma pessoa comum,

S
vender ingressos superfaturados pode parecer um
grande negócio, mas para uma máfia estabelecida o e a Sacra Corona Unita é chamada popularmente
câmbio não é muito relevante. Porém, se estabelece de quarta máfia, já há quem defenda a aplica-
uma lógica da capilaridade territorial, que é muito ção do termo “quinta máfia” como referência
importante para as organizações”, diz. aos ultras do futebol da Itália. Na Velha Bota, as or-
ganizadas começaram a se popularizar no final da
Era exatamente o que acontecia no caso da Juventus década de 1960, uma época atribulada na sociedade
e o que fez despertar o interesse da divisão anti-má- italiana. Era um período de dificuldades econômi-
fia que investigava as atividades da ‘Ndrangheta no cas, que antecedeu os chamados Anos de Chumbo.
Piemonte. Raffaello Bucci e Dino Mocciola, membros Naqueles tempos, a luta armada e o terrorismo de
da Drughi, maior organizada da Juve na atualidade, extrema-direita e extrema-esquerda ceifavam vidas
tinham relações próximas com Stefano Merulla [chefe e deixavam apreensivo um povo que já havia sofrido
do setor de ingressos] e Alessandro D’Angelo [chefe de com a Segunda Guerra Mundial e sentia os efeitos dos
segurança e amigo de infância de Agnelli]. A torcida conflitos entre clãs da máfia.
passou, porém, a ter a presença constante de Rocco
Dominello, próximo a uma ‘Ndrina de Rosarno. Rocco Neste contexto, as torcidas organizadas não demo-
seria exatamente a figura responsável por garantir o raram a protagonizar atos de violência. As brigas
bom comportamento da torcida e teria relação direta levaram às primeiras mortes no fim dos anos 1970:
com D’Angelo. Bucci, por sua vez, foi tido como infor- uma delas, a de um torcedor da Lazio no clássico
mante da polícia e seu corpo foi encontrado boiando romano, teve de ser “administrada” pelo capitão
num rio nos arredores de Turim. Giuseppe Wilson. Pino precisou acalmar a torcida,
pois a FIGC não suspendeu a realização do jogo mes-
Para a investigação, Agnelli e os diretores da Juventus mo após o ato de violência. A partida aconteceu sob
sabiam com quem estavam lidando e não tentaram um silêncio surreal e os gols do empate por 1 a 1 não
coibir os atos dos torcedores. O relatório afirma ca- foram comemorados pelos torcedores.
tegoricamente que os citados mantinham “relações
duradouras com os ultras” e que “participaram pesso- Desde então, os casos mais conhecidos entre os mui-
almente de algumas reuniões com membros do crime tos em que ultras morreram ou mataram foram os
organizado”. Como não incentivaram ou financiaram de Gabriele Sandri e Filippo Raciti [2007] e o de Ciro
atos ilícitos, escaparam da justiça comum, mas fe- Esposito [2014]. Neste capítulo, porém, o assunto
riram artigos do código desportivo — lembramos principal não é confrontos entre torcidas: falaremos
que cambismo não é crime na Itália, embora a divi- sobre como as uniformizadas se tornaram verdadeiros
são anti-máfia proponha que deveria ser tipificado. instrumentos do crime organizado, já que boa parte de
Atualmente, Agnelli está suspenso [a pena é de um seus elementos utilizam de sua posição para cometer
ano] e impedido de representar a Juventus junto à crimes que transcendem a esfera esportiva. Ainda que
FIGC, participar de reuniões e ir a vestiários em dias a violência contra grupos rivais sirva como forma de
de jogos, por exemplo. O clube também teve de pagar ganhar prestígio entre seus pares.
uma multa de 300 mil euros.
Segundo levantamento feito por divisões policiais
Dominello e alguns ultras, porém, foram indiciados especializadas, algumas organizadas chegam a ter
pela justiça comum. Rocco e seu pai, Saverio, foram 30% de seus quadros formados por pessoas com an-
presos, juntamente a outras 13 pessoas, em uma ope- tecedentes criminais — na prática, um em cada três
ração deflagrada em julho de 2016, alguns dias de- torcedores. Para a Comissão Parlamentar Anti-má-
pois da captura de Ernesto Fazzalari. Um dos chefes fia, os atos de intimidação exercidos pelos ultras em
mais procurados da ‘Ndrangheta, Fazzalari era ligado seus territórios “reproduzem muitas vezes o método
aos grupos de Rosarno que faziam negócios com os mafioso”.

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Cartellino Rosso

Os graves registros criminais e as investigações da Nada de novo para quem já havia sido indiciado por
procuradoria já poderiam falar por si só, mas esta assalto, agressão e tentativa de assassinato.
parcela das torcidas é formada por sujeitos com his-
tórico de violência contra adversários ou a polícia Grancini, por sua vez, merece um capítulo à parte.
fora do estádio ou nas arquibancadas, além de traje- No final de 2017, o influente personagem de uma das
tórias caracterizadas por constante comportamento maiores torcidas da Juventus foi condenado a 13 anos
agressivo e anti-social. Não são pessoas que cometem de cadeia por ter sido mandante de um assassinato no
erros, pagam por eles e depois tocam a vida de forma bar Los Hermanos, em Milão. O ultra, que é campeão
limpa: seus atos ilícitos perduram. de pôquer e já cumpria suspensão de oito anos sem
poder ir a estádios na Itália, seria associado à Cosa
Casos como o de Adamo Dionisi são raríssimos. Ex- Nostra e também seria muito próximo a um clã da
-ultra da Lazio, ele foi proibido de ir aos estádios e ‘Ndrangheta. O nome de Grancini foi citado também
também foi preso por envolvimento com tráfico de no inquérito sobre a já explicada infiltração mafiosa na
drogas, em 2001. Na cadeia passou a se dedicar ao torcida juventina, pois ele seria um dos responsáveis
teatro e, em 2008, quando sua pena foi concluída, por fazer a ligação entre os cambistas e o bando de
decidiu virar ator. Após alguns papéis como coadju- criminosos da Calábria.
vante, roubou a cena em Suburra [2015], filme dirigido
por Stefano Sollima: no filme ele interpreta Manfredi A polícia italiana também cita Grancini na investi-
Anacleti, boss da máfia cigana, um dos personagens gação sobre o suicídio de Raffaello Bucci, o juventino
mais interessantes da história. Não à toa, Anacleti que foi encontrado boiando num rio próximo a Turim.
é também um dos protagonistas da primeira tem- Há clamor para a reabertura do caso da morte do
porada da série, lançada no final de 2017 como uma torcedor: um médico legista contratado pela família
preqüência do longa-metragem. do falecido questionou a autópsia oficial e levantou
dúvidas sobre a causa do seu falecimento. Além de
Tal qual Dionisi, praticamente todos os líderes de indícios de fraturas que não poderiam ter sido cau-
grandes torcidas da Itália ou personagens influentes sadas por um suicida, soma-se o fato de que muitos
em cada curva já tiveram o acesso vetado às praças ultras desejavam vê-lo comendo grama pela raiz.
esportivas: a medida é conhecida no Belpaese como
Daspo. Neste quesito ninguém supera Claudio Galim- Para Franco Gabrielli, diretor-geral da polícia de es-
berti, o Bocia, histórico chefe da tifoseria da Atalanta. tado da Itália, a infiltração mafiosa nas torcidas não
serve apenas para expandir os negócios ligados ao
Bocia já recebeu mais de vinte advertências e foi tráfico de drogas ou lavar dinheiro. “O crime organi-
processado judicialmente por ter comandado um zado do tipo mafioso vê o futebol [as torcidas] como
ataque com coquetéis molotov ao carro de Roberto uma oportunidade de se misturar de forma pervasiva
Meroni, ex-ministro do Interior que introduziu regras no tecido social”. Há situações de ligação tão íntima
de identificação mais rígidas para que os torcedores entre ultras e mafiosos que seria como se os federais
pudessem ter acesso a partidas dos campeonatos brasileiros descobrissem que a Gaviões da Fiel teria
locais. Uma pessoa próxima a Bocia e outros ultras é relação umbilical com o PCC ou que a Raça Rubro-Ne-
Francesco Buonanno, filho do chefe da promotoria gra fosse um braço do Comando Vermelho — estas
de Brescia: ele fornecia cocaína para os ultras, que torcidas foram citadas por motivos ilustrativos.
consumiam e revendiam a droga. No seu apartamento,
localizado no mesmo edifício em que seu pai reside, As organizadas funcionam como uma “reserva de
foram encontrados alguns quilos de pó. mercado” para a máfia, segundo o magistrado Canto-
ne. Quando falta pessoal ou em momentos em que os
Também no norte da Itália, os líderes das torcidas de criminosos de alto escalão se interessam por expandir
Inter, Juventus e Milan deixam de lado a rivalidade seus tentáculos [seguindo a já explicada lógica da
para serem parceiros de negócios. Afinal, as orga- capilaridade territorial], é comum que eles contra-
nizadas são um business como qualquer outro e há tem ultras como uma mão de obra barata e disposta
até quem mude de torcida [e de time] para poder ter a sujar as mãos. Embora isto seja visível nas torcidas
vantagens financeiras — são os “torcedores profis- do norte do país, chegando ao sul tudo fica muito
sionais”. Nas figuras dos ultras Franchino Caravita mais escancarado — em 2009, por exemplo, um clã
[Boys San, Inter], Giancarlo “Sandokan” Lombardi camorrístico napolitano pagou para que torcedores
[Guerrieri Ultras, Milan] e Loris Giuliano Granci- promovessem um quebra-quebra e organizassem
ni [Vikings, Juve] estavam concentrados o cartel de protestos contra a reabertura do lixão de Pianura.
transporte dos torcedores para jogos fora de casa e a
distribuição de cocaína em áreas de Milão — embora No centro do Belpaese esta relação mais íntima já se
expoente da Vikings bianconera, Grancini mora na vê. Em Roma, por exemplo, onde o maior expoen-
sede da Lombardia e não em Turim, a 140 km dali. te do crime era um “pirata”. Caolho desde que uma
fuga da polícia acabou mal, com um tiro que lhe fez
Sandokan tem uma história interessante. Apesar perder o olho esquerdo, o chefão da máfia da capital,
de nunca ter sido assíduo freqüentador de San Siro Massimo Carminati, tinha em seu bolso políticos,
e costumar ser mais visto dentro de sua Ferrari do empresários, policiais e agentes públicos. No futebol,
que em qualquer outro lugar, ele se tornou o capo a Mafia Capitale mantinha boas relações com os ultras
da Guerrieri Ultras e o mais temido ultra milanista. das duas grandes equipes da cidade, principalmente
Para ganhar a posição central do segundo anel do com as torcidas orientadas à extrema-direita — não
estádio e conseguir o controle do tráfico de drogas se engane, não é apenas a Lazio que tem torcedores
e dos outros negócios ilícitos ligados às torcidas, se apaixonados pelo fascismo. O alinhamento ideológico
utilizou de muita violência para vencer a guerra com se dava pelo fato de que Carminati havia sido um dos
outras organizadas: ordenou e comandou embosca- fundadores dos Núcleos Armados Revolucionários
das, tiroteios, espancamentos, ameaças e chantagens. [NAR], grupo terrorista de inspiração neofascista

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Os tentáculos da máfia e do crime organizado no futebol italiano

ativo entre o fim da década de 1970 e início da de 1980, oficiais seguiram um comparsa de Diabolik até um
nos anos de chumbo da república italiana. apartamento que acreditavam estar sendo usado pelo
capoultra, onde os dois assistiram ao jogo juntos. Dois
Carminati, que fez parte da organização criminosa anos depois, ele foi condenado pela extorsão a Lotito
Banda della Magliana, está preso desde dezembro e somente no ano seguinte [2016] é que foi preso em
de 2014. Il Nero foi companheiro de armas de Mario definitivo por tráfico.
Corsi, membro da NAR quando jovem e ex-líder ultra
dos Boys da Roma. Marione foi indiciado ao lado de E o que acontece quando ultras do Napoli viajam até
Carminati por dois assassinatos em 1978, mas acabou Roma? Tiro, porrada e bomba — literalmente. Em
absolvido por falta de provas. No entanto, era reco- 2014, o Olímpico recebeu a final da Coppa Italia entre
nhecido por roubar escolas e cinemas e por ameaçar Napoli e Fiorentina, numa partida que ficou marcada
funcionários do Olímpico para ter acesso gratuito ao pelo fato de o líder da organizada azzurra ter autori-
estádio. Também eram comuns as entradas forçadas zado o pontapé inicial somente após conversar com
em estúdios de rádios para fazer com que os radia- Marek Hamsík e se certificar de que torcedores na-
listas lessem seus comunicados à torcida romanista. politanos feridos antes do jogo não haviam morrido.

Hoje isso não é mais necessário. Corsi tem seu próprio Horas antes do início da partida, ultras da Roma fi-
programa numa FM local e tem uma audiência de zeram emboscadas para torcedores da Fiorentina e,
ultras. Grampos feitos à época da prisão de Carminati principalmente, do Napoli — seus rivais há mais de
mostram que o comunicador utilizava seu espaço na vinte anos. Nas proximidades do estádio, os romanis-
mídia para favorecer negócios da Mafia Capitale, seja tas atacaram um ônibus de organizados napolitanos
pressionando o poder público a aprovar matérias de e, no meio da confusão, um deles sacou uma pistola,
interesse do crime organizado ou usando de influência atingindo alguns adversários com os disparos. Ciro
para obter para a máfia postos e contratos de trabalho Esposito sofreu os ferimentos mais graves e seu es-
junto a parlamentares recém-eleitos. Além de Corsi, tado de saúde foi o motivo da fúria da torcida azzurra.
outro ultra romanista problemático é Nicola Follo, Esposito morreria cinqüenta dias depois num hospital
líder da torcida Padroni di Casa: ele é integrante do romano, após numerosas cirurgias e tentativas de
partido clandestino CasaPound, de extrema-direita. reverter seu quadro clínico.

Do lado da Lazio as coisas não funcionam de for- No dia seguinte às tocaias, a polícia romana anun-
ma diferente. Fabrizio Piscitelli, o Diabolik, líder ciou a prisão de Daniele De Santis por tentativa de
dos Irriducibili, se envolveu em problemas com a lei homicídio. Conhecido pelo apelido Gastone, o ultra
ao longo de 25 anos. Em 2016, teve dois milhões em foi encontrado inconsciente, após ser linchado a al-
bens sequestrados pela justiça quando foi preso por guns metros da cena do crime, o que sugeria a sua
comandar um esquema de tráfico de entorpecentes participação no confronto. O romanista, capo da Boys
da Espanha para a Itália. A droga seria distribuída na e da Frangia Ostile, era uma referência no mundo
zona sul de Roma com a bênção de Michele Senese, das organizadas na capital e seu envolvimento com
boss napolitano que controla esta região da cidade. atos ilícitos vinha de longa data. Estes delitos eram
Diabolik, que operava junto a criminosos albaneses gestados no bar gerido pelo próprio Gastone, um
[falaremos mais deles daqui a pouco], era um dos elos reduto de fascistas [de fé romanista ou laziale] de
entre Senese e Carminati, mafiosos que chegavam toda a Cidade Eterna.
a se encontrar publicamente, como se não fossem
procurados pela polícia. Em 1994, De Santis foi preso por ter participado de um
confronto com a polícia de Brescia, que acabou com
Membro dos Irriducibili desde a sua fundação, em um dos chefes da força local esfaqueado. Dois anos
1987, Diabolik rapidamente entrou em evidência e depois, voltou ao cárcere [juntamente a expoentes da
manteve sua relevância ao longo dos anos, princi- tifoseria romanista e da extrema-direita] por chanta-
palmente através do monopólio de venda de produtos gens a Giuseppe Ciarrapico e Franco Sensi: ele exigia
da organizada, cujo símbolo ele patenteou. Piscitelli, ingressos gratuitos para os ultras em partidas dentro
entretanto, sempre teve más relações com Claudio e fora de Roma. Para obter as vantagens, ele ameaçava
Lotito, presidente da Lazio. os dirigentes com a possibilidade de elevar o tom de
protestos, organizar greve das torcidas ou promover
Os entreveros tiveram origem na tentativa da esca- quebra-quebras às instalações do clube e do estádio.
lada mafiosa no clube em 2006, da qual falamos no
primeiro capítulo: afinal, a serviço dos criminosos, Dez anos depois de seu primeiro registro criminal, já
Diabolik foi um dos responsáveis por tentar extorquir em 2004, Gastone apareceu ao vivo para todo o país ao
e chantagear o cartola, juntamente com os torcedores invadir o gramado do Olímpico com outros ultras. Eles
Fabrizio Toffolo, Yuri Alviti e Paolo Arcivieri. Ma- exigiam que Francesco Totti intercedesse para inter-
nobrada pelos líderes, a torcida levava ao Olímpico romper o dérbi contra a Lazio porque [supostamente]
faixas com palavras de ordem contra o presidente e um garoto havia sido vítima fatal de atropelamento
pressionava pela cessão ao grupo representado pelo por uma viatura da polícia nos arredores do estádio.
ídolo Chinaglia. “Lembre-se, eu falei com a mãe do garotinho”, disse
Gastone ao capitão.
Mesmo mantendo péssimas relações com Lotito,
Piscitelli era próximo a alguns jogadores do elen- Era boato, mas a partida acabou suspensa — o que
co e invadiu o gramado com outros torcedores para mostrou o poder dos ultras. Nenhum torcedor foi
levantar a taça da Coppa Italia, em 2013. Meses de- penalizado porque suas transgressões já haviam
pois, procurado por tráfico de drogas, ficou foragido prescrito quando os recursos finalmente seriam es-
até a polícia prendê-lo ao apito final da partida dos gotados, em 2008. Pelo assassinato de Esposito, ao
romanos contra o Apollon, pela Liga Europa — os menos, De Santis foi condenado: a primeira instância

121
Cartellino Rosso

lhe impôs uma sentença de 26 anos de cárcere, redu- Federação Italiana de Futebol [Giancarlo Abete] e
zida depois para 16. seu vice [Demetrio Albertini], o então diretor-mor
do Comitê Olímpico [Gino Petrucci] e uma série de
O líder ultra do Napoli que negociou com Hamsík o políticos, como Matteo Renzi — primeiro-ministro
início da final da Coppa Italia também estava longe italiano à época. Simbólico.
de ser santo — e já tinha um grande histórico de vio-
lência. Genny ‘a Carogna [o “Carniça”] é o nome de Tão simbólico quanto o fato de a Itália ter parado
guerra de Gennaro De Tommaso, chefe dos Mastiffs, naquele dia e ter visto, ao vivo, a briga por poder
um dos grupos de radicais mais famosos do Napoli. entre sujeitos em simbiose com o neofascismo e a
Sua família é ligada aos clãs Misso e Giugliano, da criminalidade de tipo mafioso. Uma violência com
Camorra: ele é filho de Ciccione Carniça e sobrinho a cara de um passado do qual o país já deveria ter se
de Giuseppe De Tommaso, “O Assassino”. distanciado há tempos, mas que parte da população
chega a referendar nas urnas.
O chefe da organizada utilizava uma camisa com as
seguintes frases: “Liberdade para Speziale” e “Li- A ineficácia dos procedimentos de segurança nos
berdade para os ultras”. Em 2007, Antonino Speziale estádios e de medidas como a Daspo e o já extinto
assassinou o policial Filippo Raciti, antes de um dérbi cartão de identificação dos torcedores [tessera del
siciliano entre Palermo e Catania. Neste caso especí- tifoso] já é velha conhecida dos italianos. Estas ações
fico, aliás, o capitão catanês, Marco Biagianti, chegou não conseguiram reduzir a criminalidade nas orga-
a ser extorquido por ultras rossoblù. Eles queriam nizadas porque a grande maioria dos ilícitos acontece
cinco mil euros para pagar despesas processuais dos fora das praças esportivas. À época do assassinato de
torcedores que haviam sido acusados de participação Esposito, por exemplo, já havia anos que De Santis não
no quebra-quebra que levou ao assassinato do oficial freqüentava a Curva Sud romanista. Ao contrário do
da lei. No tribunal, por medo de represálias, Biagianti que acontece na Inglaterra, a Daspo não obriga que
referendou a versão dos ultras, negada pela promo- o torcedor proibido de ir aos estádios se apresente às
toria: segundo eles, o dinheiro teria sido dado de bom autoridades no horário dos jogos — é apenas opcional.
grado para apoiar a confecção de materiais da torcida.
Estas situações são apenas simples exemplos de
“Carniça” já havia sido sancionado pela Daspo e proi- como as punições na esfera esportiva são brandas
bido de ir a estádios mais de uma vez no passado. na Itália, como afirma o procurador Raffaele Cantone.
Mesmo assim, em 2012, Genny ‘a Carogna comemorou O magistrado defende que sentenças mais severas
de forma bastante íntima o título da Coppa Italia do desestimulam criminosos em potencial e, por isso,
Napoli: esta reprodução da Rai mostra o ultra no meio têm a capacidade de fazer com que os crimes ligados
do campo, abraçado à taça, como se ela fosse sua. À ao futebol diminuam. No entanto, ele reconhece que
época dos eventos da copa seguinte, De Tommaso ainda há um longo caminho pela frente. “O problema
já havia sido indiciado por roubo, tráfico de drogas é complexo porque seria necessário costurar acordos
e, em 2008, havia sido delatado num inquérito que multilaterais entre os países [da União Européia] para
apurava a ligação de sua facção de ultras com o crime haver critérios legais em comum, como acontece
organizado e grupos fascistas. em outros temas”, declara. Cambismo [ainda] não é
tipificado como crime na Itália, mas no Brasil sim.
Os Mastiffs também têm em seu histórico criminal: Mesmo dentro da Europa há divergências quanto à
roubos de pertences de jogadores do Napoli como punição de delitos ligados ao esporte.
forma de represália ao não comparecimento deles
a eventos coordenados pela torcida ou a negativas Outro grande entrave para a justiça italiana é o fato
a outras solicitações — claros exemplos de omertà. de que um dos crimes que geram o maior número
Sem falar no fato de que algumas faixas exibidas pelos de conseqüências diretas no futebol é praticado de
mastins nos estádios remetem a clãs da Camorra. A maneira extremamente sub-reptícia, o que deixa
própria divisão das torcidas no estádio obedece a uma muito pequenas as possibilidades de combate em sua
lógica territorial cara à máfia. origem. Sem alarde ou violência, a manipulação de
resultados para favorecer apostadores é um delito,
Em Nápoles, as organizadas subservientes à máfia como o cambismo, forjado na intrínseca [quase umbi-
local também cobram preços abusivos pelo esta- lical] relação entre torcidas e funcionários dos clubes.
cionamento nos arredores do San Paolo, praticam
cambismo e detêm o monopólio do mercado paralelo Líderes dos ultras, nos maiores ou nos menores times,
de vendas de produtos licenciados do Napoli. No ano costumam buscar acesso direto aos jogadores como
passado, De Tommaso e seus tios [um deles, o tal forma de demonstrar prestígio perante os outros
“Assassino”] finalmente foram presos por tráfico torcedores. Os que operam criminalmente, espe-
internacional de drogas. Genny cumpria prisão do- cialmente nas divisões inferiores, vêem nisso uma
miciliar e a sua advogada se disse “satisfeita” com oportunidade de negócios, já que podem servir de
a sentença, mas no início de maio a procuradoria ponte entre as máfias e os atletas.
pediu vinte anos de prisão para o Carniça: segundo
o promotor Francesco De Falco, ele seria o chefe do Para a Comissão Parlamentar Anti-máfia, a possi-
cartel, que tem braços na Espanha, na Holanda e na bilidade de ter livre acesso aos ambientes dos clubes
América do Sul. e, mais ainda, de ser próximo a jogadores da equipe
local, tem um duplo valor para os ligados aos mafio-
O fato é que, em 3 de maio 2014, Gennaro De Tommaso, sos. “Este acesso certamente é um motivo de reforço
ultra ligado ao crime organizado e à Camorra, foi a à imagem do criminoso e de seu prestígio dentro da
autoridade máxima num local em que se encontra- associação. É uma forma de se afirmar no mundo do
vam os cartolas de Fiorentina [Andrea Della Valle] crime organizado, em muitos casos sem que o atleta
e Napoli [Aurelio De Laurentiis], o ex-presidente da tenha conhecimento de que está sendo utilizado para

122
Os tentáculos da máfia e do crime organizado no futebol italiano

estes fins”, lê-se em relatório. lão. A operação Last Bet foi deflagrada após o colhi-
mento de denúncias e de informações cedidas pela
As relações entre jogadores e ilicitudes são exatamen- SKS365, empresa austríaca que controla alguns sites
te as peças que fecham o quebra-cabeças da infiltração de apostas. Em colaboração com a justiça, a corporação
do crime organizado no calcio. compartilhou dados de uma série de partidas em que
havia notado fluxo anormal de lances — não apenas
em resultados, mas em critérios específicos, como
o número de gols em um jogo, por exemplo. Obvia-
mente, qualquer um que invista pesado em apostas
e possa lucrar com estas movimentações anômalas
precisa ter relacionamento direto com os jogadores
Os pés: as partidas das partidas em questão, afinal, são eles que entram
em campo e determinam os resultados.

manipuladas e os A justiça italiana investigou 149 pessoas, entre joga-


dores, ex-atletas, treinadores e dirigentes que seriam
jogadores que já tiveram pagos para combinar resultados e/ou lucrariam com
os ganhos das apostas. A compra de uma partida da
problemas com a lei Serie A custava 400 mil euros [distribuídos entre os
responsáveis por armar os resultados], enquanto uma
da B estava cotada em 120 mil e as da terceira divisão
giravam em torno de cinqüenta mil. Os investigados
eram ligados a 38 equipes das seis principais divisões
de futebol do país e mais dois times de futsal.

C
ompras de resultados mancham a imagem do Inicialmente, 200 partidas foram colocadas sob sus-
futebol italiano desde os anos 1920, quando eclo- peita, mas “apenas” sessenta forneceram evidências
diu o primeiro escândalo de relevância nacional. suficientes para que pudessem ser inseridas definiti-
Em 1927, o Torino teve o scudetto revogado porque vamente no inquérito. Parte dos acusados acabou ab-
um diretor teria subornado o lateral-esquerdo Luigi solvida: esportistas conhecidos, como Christian Vieri,
Allemandi, da Juventus, para que ele entregasse o Maurizio Sarri, Kakha Kaladze, Domenico Criscito,
clássico. O Toro venceu, mas o jogador da seleção Leonardo Bonucci, Andrea Ranocchia e Rodrigo Pala-
italiana foi um dos melhores em campo e quase atra- cio foram considerados estranhos aos fatos relatados.
palhou o sucesso dos grenás, o que colocou em dúvida
a veracidade da acusação. O Torino até hoje pede que a As punições aplicadas aos times foram de pequenas
FIGC reveja a decisão e lhe devolva o título, mas o fato multas a sentenças mais duras para os clubes que
é que o “caso Allemandi” é considerado o precursor tiveram responsabilidade objetiva. Estes amargaram
dos ilícitos esportivos no Belpaese. a perda de pontos no campeonato [como aconteceu à
Atalanta, por exemplo, em duas temporadas consecu-
De lá para cá, a Udinese já teve um vice-campeonato tivas, entre 2011 e 2013] ou até mesmo o rebaixamento,
cassado e foi rebaixada [1955], o Totonero assustou como nos casos de Lecce, Alessandria e Ravenna. O
a Itália antes do Mundial de 1982 e teve seu bis em Lecce, que havia disputado a Serie A e caído no campo,
1986, o Genoa perdeu o direito do acesso à Serie A e em 2011-12, foi diretamente para a terceirona, onde
caiu para a C1 [2005], e o Calciopoli [2006] mudou o se encontra até hoje. O Ravenna teve de jogar a sexta
panorama do futebol no país, rebaixando a gigante divisão, faliu, e hoje está na Serie C.
Juventus para a Serie B. Nenhum deles [e só citamos
alguns], porém, teve a participação direta do crime As penas aplicadas aos jogadores condenados varia-
organizado. vam de multas por omissão de denúncia a suspen-
sões e banimentos. Entre os que foram suspensos
Nos anos 1990, o jornalista norte-americano Joe Mc- por períodos de alguns meses a dois anos e dois me-
Ginniss levantou suspeitas sobre o eventual envol- ses, encontramos vários nomes conhecidos, como
vimento do pequeno Castel di Sangro com venda de os do lateral-esquerdo Alessandro Parisi [ex-Bari
resultados e relações escusas com a máfia, mas nada e Messina, com passagem pela seleção italiana], o
foi provado até hoje. Alguns anos antes, emergiram meia Stefano Mauri [ex-capitão da Lazio e jogador
denúncias de que jogadores do Napoli teriam deixado da seleção], o zagueiro Andrea Masiello [atual titular
escapar o título da temporada 1987-88 como forma de da Atalanta, dono da maior pena] e os selecionáveis
retribuir favores da Camorra, que perderia dinheiro Kewullay Conteh [zagueiro do Piacenza; Serra Leoa],
investido em apostas se o bicampeonato azzurro Jean-François Gillet [goleiro do Bari; membro do elen-
acontecesse. A história sem pé nem cabeça nunca foi co da Bélgica na Euro 2016] e Vitali Kutuzov [atacante
comprovada e virou lenda urbana, mas antecipou a do Bari; Belarus].
tendência de manipulação de resultados em escala
industrial, com o intuito de favorecer organizações O atacante brasileiro Joelson, da Cremonese, também
criminosas alheias ao esporte. Este tipo de delito se participou do esquema e recebeu uma suspensão
verificou pela primeira vez no escândalo Scommes- de dois anos e meio. O atacante Paulo Vitor Barreto
sopoli, que eclodiu em 2011 e teve processos pelo [Bari] e o goleiro Angelo da Costa [ex-Ancona, hoje no
período de cinco anos. Bologna] pegaram três meses de gancho por terem
conhecimento do esquema e não tê-lo denunciado.
A investigação uniu procuradorias de norte a sul do Pena similar à de Antonio Conte, que passou quatro
país e teve início em Cremona, cidade próxima a Mi- meses afastado do cargo de técnico da Juventus por

123
Cartellino Rosso

não ter feito nada para dar fim aos ilícitos quando era res chamado hawala. O método existe desde o século
o comandante do Bari. VIII, quando era comum na Rota da Seda, e hoje em
dia é muito utilizado por imigrantes ilegais ou por
Os principais operadores do esquema receberam sen- pessoas que não queiram prestar contas de suas ope-
tenças ainda mais duras: além de suspensos, alguns rações. A hawala é tão rudimentar quanto complexa:
foram banidos e todos eles foram presos por fraude opera com transferências de dinheiro em espécie e
e formação de quadrilha. Foram os casos do goleiro sem emissão de comprovantes, o que torna qualquer
Marco Paoloni [Cremonese], que somou nove anos de negócio praticamente impossível de ser rastreado.
suspensão; do meia Carlo Gervasoni [Cremonese e
Piacenza; sete anos], do meia-atacante Cristiano Doni A rede da dupla era extensa. Tan e Perumal tinham
[Atalanta e seleção italiana na Copa de 2002; cinco diversos intermediários chineses e atuavam na Ásia,
anos e meio] e dos ex-atletas Luigi Sartor [Parma e na África e na Europa. Na Europa, concentravam seus
seleção; cinco anos] e Giuseppe Signori [Foggia, Lazio, negócios na Itália, na limpa Finlândia e na Hungria
Bologna e seleção no Mundial de 1994; cinco anos e — país para o qual foram extraditados e em que cum-
ulterior banimento do esporte]. prem pena, por responsabilidade em um esquema
tão extenso quanto o Scommessopoli. Não é mera
Os atletas em atividade eram responsáveis por es- coincidência que Giorgio Chinaglia atuasse como
tabelecer os contatos com os jogadores dos próprios agente de empresas do país do Leste Europeu e que
times e dos adversários — Doni ainda tentou fugir Sartor e Signori também tenham jogado em um clube
quando ia ser preso e atuou para destruir provas. húngaro no fim de suas carreiras como profissionais.
Sartor e Signori [viciado em apostas e facilmente Alguns dos comparsas dos singapurianos na Itália
manipulável] também faziam isso, mas atuavam eram ex-jogadores ligados a grupos mafiosos eslavos,
principalmente com lavagem de dinheiro. um deles chefiado por um ex-agente da polícia da
Macedônia. No Belpaese, os nativos do Leste Europeu
Mas dinheiro de quem? Rapidamente se descobriu são chamados pejorativamente de “zingari” [ciganos].
que a dupla de ex-jogadores da Nazionale atuava lado
a lado a dois sócios que não eram ligados ao futebol, A aliança entre o crime organizado asiático e o eslavo
numa offshore com sede no Panamá e administrada para a manipulação de partidas de futebol na Itália
a partir de uma filial na Suíça. Neste momento, a mostra como o panorama criminal da Velha Bota tem
operação transcendeu as fronteiras da Itália e, através mudado nos últimos anos. Antes tidas como “máfias
de uma força-tarefa internacional, se concluiu que de segunda classe”, estas organizações cresceram e
pelo menos 600 mil euros foram lavados pelo grupo, até mesmo trabalham juntamente a facções rivais,
a mando dos cabeças da organização: Wilson Raj Pe- que antigamente as desprezavam. Clãs da máfia de
rumal e “Dan” Tan Seet Eng, cidadãos de Singapura, Bari, por exemplo, eram parceiros dos “zingari” no
que acabaram presos. Os dois são conhecidos golpistas esquema de apostas ilegais. Em Nápoles, a Camorra
no submundo das apostas e já estavam envolvidos contava com capital chinês e mão-de-obra do Leste
com manipulação de resultados desde meados dos Europeu para manter a roda de seu esquema girando.
anos 1990.
Segundo o jornalista Leandro Demori, este movimen-
Dan alega que chegou a perder três milhões de dó- to tem acontecido desde os anos 1980, com a deca-
lares ao tentar, sem sucesso, manipular um jogo da dência da Cosa Nostra e a queda do Muro de Berlim. O
Champions League entre Fenerbahçe e Barcelona, fim de muitas fronteiras e o impulso na globalização
em 2001. Ele teria apostado que a partida teria menos possibilitaram que outras máfias ocupassem o espaço
de três gols e subornou funcionários do clube turco, deixado pela quadrilha siciliana. “A Cosa Nostra con-
com o intuito de que eles cortassem o fornecimento tinua operando de várias formas, mas outras máfias
de energia para o estádio e o cotejo fosse cancelado. italianas cresceram. A Camorra, que era considerada
No segundo tempo, com 2 a 0 para o Barça, bam, os inferior, uma máfia de rua, cresceu; a Sacra Corona
refletores se apagaram. Para o azar de Tan, os ge- Unita, quase desconhecida, também; e a ‘Ndran-
radores de prontidão funcionaram rapidamente e, gheta se tornou a principal máfia italiana e uma das
vinte minutos depois, restabeleceram a iluminação maiores do mundo. Essa abertura de mercados trouxe
no Sükrü Saraçoglu. Um dia é da caça e o outro é do toda uma série de sistemas mafiosos formados por
caçador, no entanto: o criminoso singapurano tam- organizações criminosas de Leste Europeu, Nigéria,
bém se gaba de ter faturado 15 milhões de euros em Japão ou China”, explica.
uma única partida da Serie A.
Ainda que o bolo da criminalidade esteja sendo repar-
Segundo a investigação, o grupo asiático teria con- tido entre mais organizações, a máfia italiana mantém
seguido adulterar 380 partidas na Europa e 300 em o controle sobre boa parte do ramo de manipulação
outras partes do mundo — incluindo, aí, duelos pela de resultados e do mercado negro das apostas. Em
Champions League e pelas Eliminatórias para a Copa. uma entrevista concedida à revista L’Espresso, em
A operação normalmente consistia em um grande 2011, Pietro Grasso, ex-juiz auxiliar do Maxiproces-
número de apostas de baixo valor, de até cem euros so de Palermo [que nos anos 1980 julgou quase 500
cada, usando cartões de crédito diferentes: o grupo filiados à Cosa Nostra] e então diretor nacional do
era capaz de movimentar quantias de dois a cinco órgão anti-máfia, opinou sobre o Scommessopoli. Na
milhões de euros por jogo e costumava fazer lances ocasião, ele afirmou enfaticamente que os gângsters
com os confrontos em andamento, para despistar estavam investindo pesadamente na aquisição de
ferramentas de controle das operadoras. cotas de empresas ligadas a apostas, cujos lucros
[incluindo os oriundos de fontes legais] já estavam
O lucro do grupo foi de quase 11 milhões de dólares e em ascensão. Os criminosos estavam de olho inclu-
a lavagem do montante aconteceu através de novas sive nas divisões inferiores, onde a fiscalização das
apostas ou de um sistema informal de trocas de valo-

124
Os tentáculos da máfia e do crime organizado no futebol italiano

autoridades é menor. de Sanità, que pressionava o dirigente por não gostar


do fato de ele não ceder espaço no clube para seus
As palavras de Grasso, atual presidente do Senado negócios ilegais.
italiano, foram relembradas em 2015, quando um novo
escândalo de manipulação de resultados veio à tona A chegada de Maradona mudou a história de Nápoles.
com a operação Dirty Soccer: os zingari, a Camorra O craque argentino ganhou status de divindade e,
e a ‘Ndrangheta estavam lucrando com partidas ar- como tal, um poder próprio. “Com a força de então,
ranjadas na terceira e na quarta divisões do país. Uma não havia como Maradona não ter tido contato com
investigação paralela ainda descobriu que o Catania a Camorra, que se entrelaçava a todos os poderes da
havia comprado algumas partidas da Serie B para sociedade italiana”, disse o jornalista Gigi Di Fiore,
tentar escapar do rebaixamento — o que acabaria em uma coluna escrita em janeiro de 2017 no napoli-
acontecendo. tano Il Mattino. El Diez nunca sofreu qualquer sanção
penal por associação mafiosa, mas foi protagonista
Como punição, a equipe siciliana teve que jogar a de alguns episódios polêmicos com camorristas.
terceira divisão e seu presidente, Antonino Pulvirenti,
foi suspenso por cinco anos e teve de pagar uma multa Na época em que surgiu o boato de que o Napoli perdeu
de 300 mil euros. Ademais, o diretor esportivo Daniele o scudetto de 1988 para beneficiar a Camorra, outra
Delli Carri [ex-jogador de Torino, Genoa, Piacenza e história que também nunca foi comprovada, veio à
Fiorentina] pegou um gancho de quatro anos e chegou tona. Corria à boca miúda que Guillermo Coppola,
a ter prisão domiciliar decretada. ex-empresário de Maradona, conseguia cocaína com
camorristas e era responsável por distribuir a droga
Em relação às apostas nas divisões inferiores, uma em festas cheias de jogadores do elenco napolitano. O
série de medidas já foi proposta pelo órgão anti-máfia fato é que, além do argentino, o único jogador azzurro
do país e por outras entidades, como a Associação que teve problemas com substâncias ilícitas foi An-
Italiana de Jogadores — AIC, atualmente comandada drea Carnevale: nos tempos de Roma foi suspenso
por Damiano Tommasi. Quando estava à frente da por doping, pelo uso de anfetaminas para emagrecer
DIA [o departamento que combate o crime organi- e, muito depois de ter se aposentado, foi preso por
zado na Itália], Grasso recomendou a criação de um tráfico de cocaína.
observatório permanente para analisar o fluxo de
apostas online e identificar eventuais anomalias com O que se sabe, de maneira oficial, é que Diego conhe-
rapidez, agilizando qualquer operação. ceu a família Giuliano, de Forcella, bairro central de
Nápoles. Em 1986, uma investigação sobre esquemas
Tommasi, por sua vez, defendeu em uma entrevista clandestinos de apostas esportivas chegou até o clã.
à L’Espresso a proibição de apostas “ao menos nas Lovigino, um dos 11 irmãos que comandavam a li-
divisões amadoras”, pela maior facilidade de ma- nhagem, havia introduzido o ramo aos negócios do
nipulação de resultados nesta categoria. Na mesma grupo, que se dedicava principalmente a atividades
conversa, o ex-volante da Roma também salientou que como rufianismo, extorsão, contrabando e tráfico
a associação apoia a introdução de normas federais de drogas. Após uma batida na casa de Carmine — o
que pressuponham a suspensão, ao menos por uma Giuliano mais próximo a Maradona —, a polícia teve
rodada, para todos os jogadores, técnicos e diretores acesso a 71 fotos, entre as quais algumas do jogador
que aceitarem ameaças dos ultras e interagirem com brindando com o capo e rindo com os irmãos numa
eles sobre assuntos anti-éticos. Seriam medidas edu- banheira em formato de concha.
cativas, segundo o dirigente. “O que podemos fazer é
alertar os jogadores sobre os riscos decorrentes de tais A presença do craque naquelas fotos de gângsters
atitudes. Isto serve para lembrar a todos que, no final investigados por apostas esportivas ilegais e tráfico
das contas, estamos a falar de garotos, muitas vezes de entorpecentes chamou a atenção dos policiais, que
muito jovens, que precisam administrar situações reportaram o fato em um relatório. Intimado a prestar
que às vezes são muito difíceis”, ressaltou. depoimento, Maradona declarou que era comum para
ele tirar fotos com admiradores. Carmine, que também
Se estas diretrizes apoiadas pela AIC já estivessem foi interrogado, afirmou ser simpatizante do Napoli
valendo, pouca gente receberia tantos ganchos quanto e, claro, fã do camisa 10: “após a inauguração de um
Diego Maradona. A suspensão por doping aplicada ao clube de torcedores do Napoli em Forcella, Maradona
argentino em 1991, por uso de cocaína, foi o ponto mais visitou os lares de muitos dos presentes e também
alto de sucessivas relações perigosas desenvolvidas foi até a minha casa”, alegou. O caso, que corria em
por ele ao longo de seus anos em Nápoles. Afinal, sigilo, esfriou e as fotos só vieram à tona três anos
qualquer miligrama de droga que circula por Nápoles depois, quando foram publicadas por Il Mattino antes
tem que receber a bênção da Camorra. do início da temporada 1989-90.
As amizades controversas eram um dos motivos que Após as fotos virem a público, Diego quase não re-
reacendiam as rusgas entre El Pibe de Oro e Corrado tornou de suas férias. O relacionamento de Maradona
Ferlaino, então presidente do clube azzurro. O car- com Ferlaino e o diretor esportivo Luciano Moggi já
tola tinha vários motivos para, de antemão, não ser estava muito desgastado e, depois do vazamento, o
muito receptivo a mafiosos: de origem calabresa, era argentino emitiu um comunicado em que afirmava
sobrinho do magistrado Francesco Ferlaino, morto temer pela sua vida e a de seus familiares. Sua esposa
pela ‘Ndrangheta em 1975, e era considerado inimigo Claudia já havia sido ameaçada nas arquibancadas do
por ultras ligados à Camorra. Em 1982, dois anos antes San Paolo durante uma partida, sua irmã já tinha sido
de Maradona chegar a Nápoles, um avião com a frase assaltada em casa e o próprio Diego teve seu carro
“Ferlaino, vá embora” sobrevoou o estádio San Paolo danificado por uma bola de aço.
durante uma partida. Uma investigação concluiu que
a aeronave havia sido alugada por um boss do distrito Assim como a ocorrência da depredação do veículo, as

125
Cartellino Rosso

supostas ameaças não foram levadas à polícia: Mara- abastadas, ainda que sua riqueza tenha sido obtida
dona conversou com Carmine Giuliano por telefone e à revelia da lei.
recebeu a promessa de que qualquer um que fizesse
mal a ele ou a sua família teria contas a acertar com o O carinho do avô impulsionou a carreira do jovem
clã. Com a palavra do boss como garantia, El Pibe de Beppe. Morabito era o seu maior incentivador e ia a
Oro voltou a Nápoles para fazer sua primeira partida todos os jogos do garoto antes de se tornar foragido
naquela Serie A apenas na 5ª rodada. Mesmo assim, da justiça. Aos 15 anos, Sculli deixou a Calábria para
levou o Napoli a seu segundo scudetto. se juntar às categorias de base da Juventus, onde se
formou e se tornou um atacante de futuro: passou
Naquela mesma temporada, houve um grande assalto por todas as seleções juvenis da Itália e até integrou
a um banco de Napoli. Muitas jóias foram levadas, mas o elenco azzurro que foi campeão europeu sub-21 e
o principal bem roubado na rapina foi a bola de ouro ficou com o bronze olímpico em 2004.
que Maradona havia ganhado como melhor jogador
da Copa do Mundo de 1986, que nunca foi recuperada. Após as conquistas, o jogador viveu a primeira po-
Em 2011, o capo Salvatore Lo Russo [citado no início lêmica da carreira: pelo seu histórico familiar [o avô
do capítulo 2] foi preso e, como colaborador da justiça, tinha sido preso meses antes], foi o único dos vito-
alegou em depoimento que havia se tornado amigo de riosos que não foi convidado para receber uma co-
Diego: o mafioso disse que, além de ter dado cocaína menda no Palácio do Quirinal, residência oficial da
para uso pessoal do argentino algumas vezes, havia presidência da república. À época, Sculli deu entre-
recebido um pedido dele para recuperar o prêmio e vistas mostrando sua indignação com o fato e, além
alguns relógios. de não renegar o avô, declarou que tanto ele quanto
o patriarca eram honestos.
O chefão dos Capitoni mandou capangas até os becos
dos Quartieri Spagnoli e conseguiu reaver quase to- Dois anos depois, os fatos desmentiram o jogador ca-
dos os pertences: faltou a pelota dourada. Lo Russo labrês e inauguraram sua ficha de acusações e delitos
disse aos oficiais de justiça que até tentou oferecer dentro e fora da esfera esportiva. Poucos dias após
uma recompensa para quem devolvesse o troféu do Sculli acertar com o Genoa, vazaram gravações que
craque, mas soube que seria impossível tê-lo de volta, revelavam que ele, alguns companheiros e adver-
já que a bola teria sido fundida em lingotes de ouro sários haviam realizado um acerto para determinar
puro pelos camorristas. o resultado na partida entre o Crotone, sua equipe,
e o Messina, na última rodada da Serie B 2001-02.
Segundo Lo Russo, ele havia conhecido Maradona Os telefonemas foram grampeados numa operação
quando gerenciava um ponto clandestino de apostas, que investigava a ‘Ndrangheta na região de Reggio
através do traficante Pietro Pugliese e de Palum- Calabria — mais especificamente, pessoas ligadas a
mella — codinome do capo ultra Gennaro Montuori. Giuseppe Morabito.
Pugliese foi preso no início dos anos 1990 e, com as
informações que cedeu em delação premiada, colabo- Os calabreses já estavam condenados a jogar a Serie
rou com a condenação de 15 comparsas. O criminoso C1 e Sculli concordou em arranjar uma derrota para
também disse aos policiais que Diego havia sido rou- salvar os peloritani da queda. Jogadores do Bari, que
bado como forma de pressão: a máfia queria que ele receberam mala branca para vencerem a Ternana e
influenciasse companheiros para favorecer o negócio ajudarem o Messina, também participaram do acer-
clandestino de apostas. Os investigadores acharam to. As duas partidas acabaram em 2 a 1 e a trama foi
a acusação infundada, assim como as alegações do concluída com êxito, mas os resultados de campo
próprio Pugliese de que os azzurri haviam vendido acabaram sendo praticamente nulos: a Ternana, que
o scudetto — as mesmas que viraram lenda urbana. iria cair, foi repescada por causa da falência da Fio-
rentina e continuou na segundona.
Embora Maradona seja um dos tipos mais polêmicos
da história do futebol, ele não seria o jogador mais As gravações divulgadas eram impactantes de qual-
afetado pelas medidas desejadas pela AIC: perderia quer forma, já que deixaram claro que Beppe, com
para o atacante Giuseppe Sculli, um verdadeiro cole- apenas 21 anos, liderou o esquema. Para o tio, Rocco
cionador de controvérsias, ganchos e indiciamentos Morabito, afirmou que recebera quatro “salaminhos”,
na esfera judicial. A criminalidade acompanha a vida enquanto dois teriam sido enviados para Bari. Con-
do jogador desde seu nascimento, já que ele é o neto versando com a namorada da época, Sculli confes-
favorito de Giuseppe Morabito, mafioso de mais de sou que havia “uns vinténs” em jogo e que havia
sessenta anos de estrada e ex-número um da ‘Ndran- pressionado os companheiros para cobrar uma falta
gheta. Morabito ainda era ligado à Cosa Nostra e for- perigosa [para fora] porque “se outro tivesse batido,
neceu guarida a Totò Riina, mafioso mais procurado o gol teria saído”.
do mundo por um quarto de século — o capo foi preso
em 1993 e morreu em 2017. A afirmação levou os investigadores a crerem que o
atacante havia marcado o gol de empate no cotejo
No submundo do crime, o apelido que o chefão do clã para pressionar os mandantes a aumentarem o valor
Morabito herdou do pai é “u tiradrittu” — ou seja, da propina. Em outro telefonema grampeado, Beppe
o “mira certa”. O bom atirador foi preso em 2004, dizia para a namorada: “Você sabe que eu tenho uma
após passar 12 anos foragido, mas antes construiu família particular. Na minha família você não diz não,
um império calcado na eliminação de vários de seus na sua talvez sim. Na minha família, nunca dizemos
rivais, durante os anos 1980, e no tráfico internacional não. Para qualquer um”. Por não ter dito não, Sculli
de drogas, em parceria com a criminalidade organi- recebeu uma suspensão de oito meses.
zada dos Bálcãs, da América Latina e da África e Ásia
mediterrâneas. A fortuna da família fez de Sculli um Além do gancho por manipulação de resultados, na-
raro personagem no futebol: o jogador de origens quela mesma época Sculli foi investigado [e julgado

126
Os tentáculos da máfia e do crime organizado no futebol italiano

“Você sabe que eu noitadas e eventos com os líderes das organizadas.

tenho uma família A dupla até participou de uma celebração preparada


para o neofascista Leopizzi quando ele deixou a prisão
particular. Na minha domiciliar por porte ilegal de armas — a acusação
tentou provar que ele pretendia matar a ex-esposa e
família, nunca o ex-sogro, mas não obteve sucesso. A presença dos
dois na festa foi confirmada por Fabrizio Fileni, outro
dizemos não. líder histórico da tifoseria genovesa, cujo respeito
entre os ultras foi conquistado também pelo fato de
Pra ninguém.” ter perdido a visão de um olho enquanto preparava
uma coreografia. Na ocasião, ele acabou ferido aci-
— dentalmente pelo mastro de uma bandeira.

Giuseppe Sculli
“Sculli, um de nós”, urraram os ultras do Genoa na-
quela triste tarde contra o Siena, no Marassi. A frase
foi repetida pelos líderes da torcida depois: Leopizzi
e Fileni afirmaram que, se não fosse jogador, Beppe
certamente daria um ótimo capo da organizada. Os
fatos que se sucederam a essas declarações dão estofo
a seu conteúdo, já que a justiça interceptou telefone-
mas entre o torcedor de extrema-direita e o neto do
boss da ‘Ndrangheta.

Leopizzi queixava-se de uma suposta trairagem de


Preziosi. O dirigente pediu que a polícia prendesse os
responsáveis pela bagunça no estádio, esquecendo
de favores prestados anteriormente pelo torcedor. O
ultra disse que, além de ter garantido o bom compor-
tamento da torcida em momentos ruins, ainda havia
prestado falso testemunho para proteger Preziosi e o
inocente] em casos de tentativa de homicídio, tráfico Genoa no caso da compra de um resultado diante do
de narcóticos e associação mafiosa. Neste último Venezia, em 2005 — o episódio, citado no início do
particular, a promotoria alegava que ele usava mé- capítulo, fez os grifoni perderem o direito ao acesso à
todos truculentos para obrigar cidadãos de Bruzzano Serie A e irem direto para a C1. A alegação de Leopizzi,
Zeffirio, onde foi criado, a votar em candidatos que porém, não foi confirmada.
ele indicava nas eleições locais. Após anos de relativa
tranqüilidade no Genoa, clube em que disputou seu Em maio de 2012, os responsáveis pelo processo
melhor futebol sob as ordens de Gian Piero Gasperini Scommessopoli mostraram que Sculli e Fileni po-
[que também fora seu técnico na base juventina], o deriam ter, também, uma relação comercial. Uma
neto de Morabito voltou — e com força — às man- investigação sobre tráfico de drogas iniciada pela
chetes nacionais em 2012. procuradoria de Alessandria vigiava o bósnio Safet
Altic, operador de um clã da Cosa Nostra em Gênova e
Tudo começou em 22 de abril, durante a 34ª rodada partícipe de diversas atividades ilegais. O “zingaro”
da Serie A. O Genoa perdia em casa por 4 a 0 do Siena também era parceiro de Guido Morso, torcedor ros-
quando um forte protesto começou nas arquiban- soblù que tinha ligações com outra família siciliana,
cadas, levando à interrupção da partida. Petardos e associada a seus patrões.
sinalizadores foram atirados ao gramado e os ultras
exigiam, em coro, que os jogadores tirassem seus Numa ação de vigilância em maio de 2011, os policiais
uniformes, pois seriam indignos de ostentar as cores flagraram uma reunião entre o criminoso, outros
do clube. comparsas eslavos, Fileni, Sculli e o lateral-esquerdo
Domenico Criscito, que defendia o Genoa naquela
Para tentar conter a fúria das tribunas, o capitão época. A conversa aconteceu num restaurante, fora do
Marco Rossi e o presidente Enrico Preziosi pediram horário comercial, a cortinas fechadas — o que gerou
para que os atletas se despissem. Enquanto alguns mais suspeitas por parte da polícia. As fotografias do
choravam, Sculli [devidamente uniformizado] escalou encontro foram repassadas à promotoria de Cremona,
a parede de vidro que separava a torcida do campo, que investigava as manipulações de resultados.
agarrou o ultra Massimo Leopizzi pelo pescoço, e em
uma conversa acalorada ao pé do ouvido, negociou Os acusados afirmaram que o tema da reunião teria
a retomada do jogo, concluído com um 4 a 1 para os sido o comportamento dos jogadores na vitória do
toscanos. O Genoa foi sentenciado a jogar de portões Genoa por 2 a 1 no clássico contra a Sampdoria [que
fechados até o fim do campeonato, mas conseguiu a acabou rebaixada], mas a presença dos mafiosos es-
permanência na elite. lavos e de Sculli foi suficiente para abrir um inquérito.
Afinal, o atacante atuava na Lazio àquela época e a
Dias depois, emergiram novas informações sobre a partida seguinte dos grifoni, pela penúltima rodada
relação entre Sculli e os ultras — estes últimos che- da Serie A 2010-11, seria exatamente contra os celes-
garam a ameaçar os jornalistas após a divulgação dos tes. Sculli e Altic ainda foram investigados por uma
fatos. A aparente intimidade com a qual o atacante suposta tentativa de chantagem a Luca Toni: eles
tratou os torcedores tinha motivo: ele e um colega queriam que o atacante, à época no Genoa, entrasse
de clube, o meia Omar Milanetto, costumavam ir a no esquema. Caso contrário, mostrariam à Marta

127
Cartellino Rosso

Cecchetto, sua noiva, fotos de uma suposta traição Calábria, temos o caso de Vincenzo Iaquinta, tetra-
do jogador. campeão mundial com a Itália em 2006. Atualmente, o
ex-atacante e o pai Giuseppe estão sendo processados
Beppe se safou da prisão preventiva, mas Milanetto por suposto envolvimento com a ‘Ndrina Grande Aracri
e Stefano Mauri [da Lazio] acabaram encarcerados e posse ilegal de armas.
temporariamente. O envolvimento do trio deu origem
a especulações sobre a duração do esquema. Afinal, Segundo depoimentos de associados que foram para a
os três jogaram juntos pelo Modena em 2002-03, o cadeia, a família Iaquinta era favorecida em diversas
que levantou dúvidas [na própria promotoria] sobre a situações por causa da proximidade com a organização
possibilidade de os delitos existirem há mais tempo. e também trocaria favores do clã por agrados como
No entanto, nenhum processo foi aberto, já que qual- chuteiras, material esportivo em geral e ingressos. Nas
quer fraude acontecida na época teria prescrito nos acaloradas sessões judiciais e acareações, os depoentes
campos esportivo e penal. Ao fim das investigações, também afirmaram que o pai do jogador pedia que os
somente Mauri recebeu um gancho de seis meses, por mafiosos dessem um jeito de pressionar e ameaçar
não ter denunciado a tentativa de manipulação. Altic, pessoas ligadas a Udinese e Juventus para que Vincenzo
àquela altura, já estava preso por tráfico de drogas. jogasse ou fosse negociado com outro clube.

Em outras investigações de eventos relacionados ao Colega de ataque de Iaquinta por um breve período
Scommessopoli, a polícia descobriu que Sculli fazia na Juventus e na seleção italiana, o napolitano Marco
parte do entourage de Massimo Carminati, chefe da Borriello teve o pai assassinado pela Camorra — o
máfia da capital, citado no capítulo 3. O jogador jantava crime aconteceu em 1993, quando o bomber tinha
freqüentemente com Giovanni De Carlo, homem de apenas dez anos. Seu progenitor, Vittorio, chegou a
confiança do capo de extrema-direita, que foi preso ser processado [e absolvido] por envolvimento com
junto com o chefe em 2014. “Eu posso ser amigo até de o crime organizado e foi executado porque Pasquale
Bin Laden, mas isso não significa que eu faço as coisas Centore, ex-prefeito de San Nicola La Strada, ligado
que os outros fazem”, rebateu o atacante calabrês em aos Casalesi, pegou dinheiro emprestado e não que-
uma entrevista ao jornal La Stampa. ria lhe devolver. Vittorio estaria agindo como agiota
e cobrando juros de 300% em cima do valor cedido.
O desabafo de Sculli vai ao encontro do que afirma o
jornalista Leandro Demori: muitas vezes os jogadores Borriello cresceu em San Giovanni a Teduccio, um dos
e os gângstWWWers nascem nas mesmas comunida- bairros com maior concentração de clãs em Nápoles,
des ou têm interesses pessoais em comum. “Seria a e lembra dos tempos de dificuldade na infância. “Mi-
mesma coisa dizer que o Adriano é criminoso porque nha mãe foi fundamental para mim. A região [em que
tirou foto com o Rogério 157, que comanda o tráfico vivia] não era uma selva, mas também não era como
na Rocinha. Às vezes há uma amizade de infância ou a Disneylândia. Uma criança nascida lá tem que ficar
afinidade por causa de um mesmo background. Se não ligada o tempo todo, porque um ano ali vale mais do
há uma investigação específica e objetiva sobre algum que dez em qualquer outro lugar”, declarou à Gazzetta
caso, não tem como dizer que houve uma associação dello Sport, em 2013.
mafiosa proposital, porque essa relação está imiscuída
no sistema e na vida de algumas pessoas”, explica. Outro jogador que cresceu em meio à criminalidade de
Nápoles foi Armando Izzo, zagueiro do Genoa que tem
Mesmo com este contraponto, o excesso de casos ex- convocações para a seleção italiana. O jogador é um
tracampo deixava claro que Sculli não andava muito dos poucos que já bateram bola pelas ruas de Scampia
preocupado com sua vida profissional, embora ainda e tiveram talento e sorte suficientes para ingressar na
tivesse apenas 31 anos: uma amostra disso é que, carreira profissional: nascido no pobre bairro, atuou
entre junho de 2012 e meados de 2016, ele disputou pelo Arci Scampia — um dos símbolos de emancipação
apenas vinte partidas. Fora dos gramados, viu seu anticamorra —, fez parte das categorias de base do
pai, Francesco [falecido em 2014], ser preso no âmbito Napoli e parecia distante de ter qualquer relação com
de uma investigação sobre lavagem de dinheiro, por o crime. Até que, em 2015, foi delatado como um dos
favorecer o clã da família. Funcionário público em supostos artífices de um esquema de manipulação de
Bruzzano Zeffirio, ele emitiu licenças que incenti- resultados na Serie B, quando atuava pelo Avellino.
varam o crescimento desordenado da cidadezinha
localizada no litoral jônico e a especulação imobiliária. Izzo é sobrinho de Salvatore Petriccione, um dos fun-
dadores do clã Girati-Vanella Grassi — o boss é casado
Após a morte do pai, Sculli [que hoje mora em Milão com a irmã de sua mãe. Segundo o depoimento do
e disputa a sexta divisão pela Accademia Pavese] ain- delator Antonio Accurso, o zagueiro teria declarado ao
da se envolveu num entrevero com Fabrizio Corona, primo Gaetano que queria largar o futebol e se afiliar
personalidade da mídia, agente fotográfico e notório ao grupo, quando ainda era menor de idade. Sua en-
chantagista. Corona já extorquiu ou tentou extorquir trada teria sido negada pelo tio, que desejava que Izzo
figuras como Lapo Elkann [neto de Gianni Agnelli], seguisse sua vocação. Seu empresário, Paolo Palermo,
Adriano, Francesco Totti e Alberto Gilardino, mas teria também quis proteger o jogador das más companhias.
sido vítima do calabrês. Em 2016, Sculli e um amigo Em uma ligação telefônica grampeada, ele subenten-
teriam espancado e ameaçado o vigarista por causa dia que tinha mandado Izzo para a Triestina por este
de um empréstimo não quitado. Teriam também or- motivo e que faria o mesmo novamente — e fez, pois
denado furtos à casa da sua ex-esposa, a modelo Nina o zagueiro trocou o Avellino pelo Genoa — que tem
Moric, para reaver a quantia. Desde então, Beppe não sede a 700 quilômetros de sua cidade natal.
voltou às páginas esportivas ou policiais.
Acusações de que Armando teria tentado arranjar
Giuseppe Sculli não seria o único parente de mafiosos resultados quando atuava pelo clube de Trieste foram
a tentar a vida no futebol profissional. Na própria afastadas, mas o zagueiro assumiu ter apresentado

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Os tentáculos da máfia e do crime organizado no futebol italiano

Francesco Millesi [capitão do Avellino] a camorristas, tam e convivem com os fora da lei, como Maradona
em 2014. Izzo negou, no entanto, ter conversado so- fazia — mas sem a mesma repercussão, já que nem
bre manipular as partidas contra Modena e Reggina. todos têm o mesmo apelo midiático que o Pibe de Oro.
Millesi, por sua vez, tentou comprar até mesmo o
colega Fabio Pisacane [atualmente no Cagliari], que Reina, Callejón, Maggio, Higuaín e os irmãos Fabio e
anos antes havia sido nomeado embaixador da FIFA Paolo Cannavaro [os três últimos, quando estavam no
por ter denunciado a fraude dos diretores do Ravenna, Napoli] já foram vistos juntamente a criminosos e até
seu clube à época do Scommessopoli. planejavam viagem a Ibiza com um grupo que agia em
conluio com a Camorra — o atacante até passou férias
Izzo chegou a ser suspenso por seis meses, mas as no iate de um deles. Em meados dos anos 2000, Marco
acusações foram retiradas depois — o veterano Mil- Materazzi, Zlatan Ibrahimović, Javier Zanetti, Siniša
lesi, por sua vez, pegou gancho de cinco anos, se apo- Mihajlović e Roberto Mancini tiveram um alfaiate que
sentou e, em março deste ano, foi condenado a um também já havia sido preso por envolvimento com
ano de cadeia. Na esfera penal, o jogador do Genoa a máfia e por tráfico de drogas — ele era amigo de
aguarda julgamento pelo delito de colaboração com Alessandro Altobelli, estrela da Inter nos anos 1970 e
organização mafiosa. 1980. Vários outros casos poderiam ser citados e fotos
de jogadores com gângsters poderiam ser mostradas,
Embora os acontecimentos que envolvam jogadores mas em todas estas situações parece improvável que os
de prestígio chamem mais atenção, nenhum caso foi esportistas tivessem conhecimento da ficha criminal
mais pesado do que o que atingiu a família Montani. de seus interlocutores.
Uma série de eventos chocantes, que fazem acusações
[rebatidas] como o suposto comprometimento do late- Salvatore Aronica, que já foi acusado de manipulação
ral-esquerdo Francesco Modesto [ex-Reggina, Genoa, de resultados num caso arquivado por prescrição e
Parma e Crotone] com as atividades de agiotagem de teve carreira construída principalmente em times
seu sogro, ligado à ‘Ndrangheta, parecerem abso- do sul do país [Messina e Palermo, Sicília; Crotone
lutamente banais. No seio do clã afiliado à apuliana e Reggina, Calábria; e Napoli, Campânia] também
Sacra Corona Unita, parceira dos calabreses, cresceu o alegou desconhecimento sobre a vida criminal de
atacante Giovanni Montani. Ele chegou à equipe juvenil Luigi Bonaventura, mafioso da ‘Ndrangheta citado
do Bari, mas antes mesmo de se profissionalizar, foi no primeiro capítulo. O problema é que o ex-defensor
assassinado, em outubro de 2006. siciliano foi fotografado no casamento do capo, para
menos de 200 convidados. “Duzentos convidados não
Giovanni era sobrinho do chefão Andrea Montani, o são nada para um casamento da ‘Ndrangheta. Você
Malagnac, que estava preso na época de seu assas- não tem idéia de quantas pessoas eu deixei de fora.
sinato — foi solto apenas em 2016, após trinta anos Aronica era o único jogador presente”, declarou Bo-
encarcerado. O atacante foi criado lado a lado com o naventura. Aronica rebateu, dizendo que foi ao evento
primo Salvatore, de quem era muito próximo. Embora por se tratar do matrimônio do primo do presidente [no
tivesse familiaridade com criminosos, o jovem jogador caso, Raffaele Vrenna, do Crotone]. “Como eu poderia
nunca se envolveu com os negócios do clã. Mesmo saber?”, ironizou.
assim, teve sua vida interrompida prematuramente
por causa de suas origens. Em delação e em entrevista à Rai, Bonaventura tam-
bém acusou Aronica de ter tido a carreira privilegiada
Em junho de 2006, ele e o primo foram a um pet shop por sua proximidade aos clãs e de ter atuado como
com a intenção de comprar um cachorro. O filho do preposto da máfia: “Dá-se um jeito de fazer esses jo-
criminoso quis um desconto especial para a família gadores atuarem em times de cidades distantes, para
Montani e discutiu com o comerciante, que, cansado que se possa ter um referencial por lá e seja possível
de pagar o pizzo, respondeu com disparos de arma alcançar realidades que, de outra maneira, seria im-
de fogo. Salvatore foi ferido de morte e Giovanni saiu possível contatar”, declarou. O gângster disse ainda
correndo da loja para sobreviver. Seu salvo-conduto que o ex-jogador era pupilo do clã Vitale, de Palermo
durou apenas três meses, já que ele acabou emboscado [cujos expoentes haviam sido seus colegas de cadeia],
nas vielas do bairro San Paolo, na periferia da cidade. e que a Camorra o havia acolhido de braços abertos
quando ele se transferiu para o Napoli. Assim como
O motivo? Teria se acovardado e precisaria ser pu- as acusações feitas a Vrenna, os depoimentos sobre
nido por não ter defendido a honra da família, num Aronica não renderam novas investigações pela jus-
clássico exemplo do significado de omertà. Gaetano tiça italiana.
Capodiferro, que também era primo de Salvatore [mas
por outro lado da família] foi acusado do assassinato Colega de Aronica no Palermo, Fabrizio Miccoli não
juntamente com um comparsa, mas ambos acabaram teve a mesma sorte. Em 2013, o ídolo rosanero foi
inocentados. Até hoje o crime não foi solucionado. flagrado pela justiça em atividades suspeitas com
pessoas ligadas à Cosa Nostra: Giacomo Pampillonia
Embora os casos de jogadores que têm relações pa- e, principalmente, Mauro Lauricella, filho de um boss
rentais com mafiosos e/ou que de alguma forma co- palermitano. O atacante, que se aposentou em 2015,
laboraram com o crime organizado ganhem muita alegou que não sabia do background dos amigos, o
repercussão, a grande maioria dos vínculos entre que foi posto em xeque por ligações e mensagens de
estes dois mundos passa praticamente despercebi- SMS interceptadas.
do. Freqüentemente, ultras ligados ao gangsterismo
pressionam atletas por benesses, alternando abraços Em um dos vazamentos, Miccoli xingava um dos
amigáveis e gestos intimidatórios. Por segurança, os principais combatentes da máfia — o juiz Giovanni
futebolistas costumam se ver obrigados a ceder às Falcone, morto num atentado em 1992. Depois disso, o
intimidações e doam ingressos ou outros pequenos jogador, apelidado como Romário do Salento, perdeu
agrados. Muitas vezes, jogadores também freqüen- a cidadania honorária de Corleone: se debulhando em

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Cartellino Rosso

lágrimas, o baixinho teve que pedir desculpas públicas


pelo que falou.

O inquérito buscou provas sobre a possibilidade do


craque servir como ponte entre Lauricella e Francesco
Guttadauro, neto de Matteo Messina Denaro. Nada se
provou em relação a este pormenor, mas Miccoli foi
processado por ter feito algo que é comum na Itália:
pedir a caras durões [muitas vezes envolvidos com a
vida do crime] para recuperar bens ou resolver algum
problema. Miccoli queria que o dono de uma boate
devolvesse 12 mil euros a um fisioterapeuta do Pa-
lermo e pediu que Lauricella resolvesse isto para ele.

Em depoimento, o ex-capitão do Palermo admitiu


que era muito próximo do filho do capo e afirmou que
apenas comentara sobre o assunto com ele porque
Lauricella era “profundo conhecedor da noite”. As
investigações concluíram que a cria do mafioso rece-
beu uma comissão pelo “favor” e que Miccoli fizera a
entrega do dinheiro do suposto empréstimo ao amigo
fisioterapeuta — por isso, o caso foi enquadrado como
tentativa de extorsão.

Enquanto Miccoli foi condenado na primeira instância,


em outubro de 2017, a três anos e seis meses de prisão,
com agravante de associação mafiosa, Lauricella foi
absolvido. A defesa do atacante alegou que a aparente
incoerência na decisão do júri apenas ratifica a ino-
cência de seu cliente e entrou com recurso e Miccoli
aguardava em liberdade.

Ao mesmo tempo em que o ex-jogador do Palermo era


investigado, outras pessoas ligadas ao esporte e ao
showbiz foram aparecendo em outras interceptações
autorizadas pela justiça e eram suspeitas de se servi-
rem de expedientes semelhantes aos registrados entre
Miccoli e Lauricella. Nenhuma destas personalidades,
porém, foi incluída em processos na esfera criminal.

Giovanni De Carlo, um dos contatos de Sculli com


a Mafia Capitale, teve conversas grampeadas com
as namoradas de Mattia Destro e Blerim Dzemaili e
com Daniele De Rossi. De Carlo também teve contatos
telefônicos registrados com Belén Rodríguez, modelo
e apresentadora argentina radicada na Itália. Amiga
do lutador, ela é ex-namorada de dois personagens
já citados aqui: Marco Borriello e Fabrizio Corona.

A interceptação telefônica que chamou mais aten-


ção foi a que envolvia o atual capitão romanista. De
Rossi queria a ajuda do conhecido para resolver uma
discussão em que Mehdi Benatia, então companheiro
de time, havia se envolvido numa boate de Roma. De
Carlo, campeão de kickboxing, estava no mesmo local,
mas só retornou a chamada depois de o quiprocó ter
se resolvido.

O hábito e a forma corriqueira como estas trocas de


favores acontecem deixa claro como os italianos in-
terpretam alguns elementos de sua sociedade. São uma
prova de que, assim como no Brasil, prescindir da lei
para resolver problemas em favor próprio é uma forma
de burlar um sistema de leis frágeis, no qual impe-
ram a burocracia, a impunidade e a prescrição. Desta
forma, a ilegalidade mantém sua força em todos os
estratos da coletividade e a máfia continua ocupando
seu lugar de poder paralelo, muitas vezes mais forte,
decisivo, arraigado e organizado que o estabelecido
pela constituição da república.

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