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REVISTA BRASILEIRA DE DIREITO PROCESSUAL – RBDPRO


Diretores
Lúcio Delfino
Fernando F. Rossi

Conselho Editorial José Miguel Garcia Medina Luciana Cristina Minaré Pereira
José Roberto dos Santos Bedaque Luciana Fragoso Maia
Alexandre Freitas Câmara José Rogerio Cruz e Tucci Luciano Lamano
Alexandre Reis Siqueira Freire Jurandir Sebastião Luciano Roberto Del Duque
Ana Paula Chiovitti Lídia Prata Ciabotti Luiz Arthur de Paiva Corrêa
Antonio Carlos Marcato Luciano Borges Camargos Luiz Gustavo de Freitas Pinto
Antonio Gidi Luiz Eduardo R. Mourão Marcus Vinícios Correa Maia
A. João D’Amico Luiz Fernando Valladão Nogueira Paulo Leonardo Vilela Cardoso
Araken de Assis Luiz Fux Richard Crisóstomo Borges Maciel
Aristoteles Atheniense Luiz Guilherme Marinoni Rodrigo Corrêa Vaz de Carvalho
Arlete Inês Aurelli Luiz Rodrigues Wambier Wanderson de Freitas Peixoto
Arruda Alvim Marcelo Abelha Rodrigues Yves Cássius Silva
Bruno Garcia Redondo Marcelo Lima Guerra
Carlos Alberto Carmona Maria Elizabeth de Castro Lopes Conselho Internacional
Carlos Henrique Bezerra Leite Mariângela Guerreiro Milhoranza
Cassio Scarpinella Bueno Paulo Magalhães Nasser Adolfo Alvarado Velloso (Argentina)
Chedid Georges Abdulmassih Petrônio Calmon Filho Alvaro Pérez Ragone (Chile)
Claudiovir Delfino Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias Gustavo Calvinho (Argentina)
Daniel Mitidiero Sérgio Cruz Arenhart Hugo Jaime Botto Oakley (Chile)
Darci Guimarães Ribeiro Sérgio Gilberto Porto Juan Montero Aroca (Espanha)
Dierle Nunes Sérgio Luiz de Almeida Ribeiro Miguel Teixeira de Sousa (Portugal)
Djanira Maria Radamés de Sá Teresa Arruda Alvim Wambier Paula Costa e Silva (Portugal)
Donaldo Armelin Teori A. Zavascki Virginia Pardo (Espanha)
Eduardo Arruda Alvim
Eduardo José da Fonseca Costa Conselho de Redação Pareceristas ad hoc
Eduardo Talamini
Ernane Fidélis dos Santos André Menezes Delfino André Del Negri
Evaldo Marco Antônio Bruno Campos Silva Andrea Queiroz Fabri
Fredie Didier Jr. Bruno Garcia Redondo Carlos Gustavo Rodrigues Del Prá
Glauco Gumerato Ramos Carlos Eduardo do Nascimento Dnieper Chagas de Assis
Gil Ferreira de Mesquita Eduardo Carvalho Azank Abdu Marcelo Nogueira
Humberto Theodoro Júnior Frederico Paropat de Souza Mônica Cecilio Rodrigues
Jefferson Carús Guedes Helmo Marques Borges Murillo Sapia Gutier
J.E. Carreira Alvim Hugo Leonardo Teixeira Ricardo Herzl
João Batista Lopes Jarbas de Freitas Peixoto Roberta Toledo Campos
João Delfino José Carlos de Araujo Almeida Filho Rubens Correia Junior
Jorge Henrique Mattar José Henrique Mouta Sérgio Henrique Tiveron Juliano
José Carlos Barbosa Moreira Leonardo Vitório Salge Sérgio Luiz de Almeida Ribeiro
José Maria Rosa Tesheiner Leone Trida Sene

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R454 Revista Brasileira de Direito Processual : RBDPro. Território Nacional
– ano 15, n. 59, (jul./set. 2007)- . – Belo
Horizonte: Fórum, 2007- Os conceitos e opiniões expressas nos trabalhos assinados são de
responsabilidade exclusiva de seus autores.
Trimestral
ISSN 0100-2589
Esta revista está catalogada em:
Publicada do n. 1, jan./mar. 1975 ao n. 14, abr./ • RVBI (Rede Virtual de Bibliotecas – Congresso Nacional)
jun.1978 pela Vitória Artes Gráfica, Uberaba/MG. • Ulrich’s Periodicals Directory
Publicada do n. 15, jul./set. 1978 ao n. 58, abr./ • Library of Congress (Biblioteca do Congresso dos EUA)
jun. 1988 pela Editora Forense, Rio de Janeiro/RJ.
Publicação interrompida em 1988 e retomada Supervisão editorial: Leonardo Eustáquio Siqueira Araújo
pela Editora Fórum em 2007. Revisão: Lourdes Nascimento
Capa: Igor Jamur
1. Direito processual. I. Fórum. Projeto gráfico: Walter Santos
Diagramação: Bruno Lopes
CDD: 347.8
CDU: 347.9
Sumário

Editorial..............................................................................................................7

DOUTRINA
Artigos

A aplicação da actio nata no redirecionamento das execuções fiscais e seus


reflexos no desenvolvimento e na segurança jurídica
Andre Folloni, Lara Bonemer Azevedo da Rocha...................................................................... 13
Introdução................................................................................................................ 13
1 Responsabilidade tributária do sócio.......................................................................... 14
2 O prazo prescricional para o redirecionamento da execução fiscal................................. 16
3 A argumentação pela actio nata e a imprescritibilidade da execução fiscal.................... 21
4 A improcedência dos argumentos pela actio nata diante da segurança jurídica e do
desenvolvimento nacional.......................................................................................... 24
Considerações finais................................................................................................. 26
Referências.............................................................................................................. 27

A contribuição da teoria estruturalista para o processo constitucional no Estado


Democrático de Direito brasileiro – Reflexões sobre a crítica de Hermes Zaneti
Júnior à teoria de Fazzalari
Marcos Rezende ................................................................................................................... 31
Introdução................................................................................................................ 31
1 O Estado Democrático de Direito................................................................................ 32
2 O Estado Democrático de Direito e o processo constitucional....................................... 36
2.1 O processo constitucional e o contraditório................................................................. 39
2.2 O contraditório e a fundamentação da decisão............................................................ 41
2.3 O protagonismo judicial e o processo constitucional.................................................... 43
3 A teoria estruturalista do processo............................................................................. 46
4 A influência do common law no ordenamento jurídico brasileiro.................................... 49
5 A crítica de Hermes Zaneti Júnior à teoria de Fazzalari................................................. 51
Considerações finais................................................................................................. 55
Referências.............................................................................................................. 56

As ações repetitivas e a exigência de soluções complexas


Diógenes V. Hassan Ribeiro.................................................................................................... 61
1 Introdução................................................................................................................ 61
2 Modernidade e pós-modernidade................................................................................ 62
2.1 Gaston Bachelard..................................................................................................... 63
3 Complexidade. Complexidade simples. Hipercomplexidade........................................... 64
4 O método................................................................................................................. 66
5 Vive-se a era da incerteza.......................................................................................... 68
5.1 O risco na sociedade complexa.................................................................................. 68
6 Soluções.................................................................................................................. 69
7 As ações repetitivas e o sistema jurídico.................................................................... 72
7.1 A tese jurídica........................................................................................................... 72
8 Conclusão................................................................................................................ 74
Referências.............................................................................................................. 76

Aspectos da dinâmica do direito jurisprudencial no Brasil versus a busca da


coerência e integridade – Uma primeira impressão das premissas dos
precedentes no Novo Código de Processo Civil
Dierle Nunes, Aline Hadad Ladeira.......................................................................................... 77
1 Considerações iniciais............................................................................................... 77
2 O pressuposto brasileiro na dinâmica do direito jurisprudencial.................................... 83
3 Coerência e integridade a nortear uma adequada aplicação dos precedentes no Brasil.. 88
Considerações finais................................................................................................. 96
Referências.............................................................................................................. 98

Controle abstrato de constitucionalidade – ADI, ADC e ADPF


José Maria Tesheiner........................................................................................................... 101
Introdução.............................................................................................................. 101
1 Objeto das ações diretas de inconstitucionalidade e declaratória de
constitucionalidade e da arguição de descumprimento de preceito fundamental.......... 101
2 Subsidiariedade da ação de descumprimento de preceito fundamental
e fungibilidade........................................................................................................ 107
3 Legitimação ativa.................................................................................................... 108
4 Procedimento......................................................................................................... 111
5 Medida cautelar...................................................................................................... 114
6 Decisão................................................................................................................. 115
7 Efeitos da decisão.................................................................................................. 117
Conclusão.............................................................................................................. 121
Referências............................................................................................................ 122

Das normas fundamentais do processo e o projeto de novo Código de


Processo Civil brasileiro – Repetições e inovações
Marco Félix Jobim, Elaine Harzheim Macedo......................................................................... 123
Introdução.............................................................................................................. 123
1 Os princípios processuais constitucionais................................................................. 124
2 A normatividade adotada pelo Projeto de Código de Processo Civil brasileiro............... 127
2.1 Novidades e repetições principiológicas no Projeto de Código de Processo Civil brasileiro.... 130
Considerações finais............................................................................................... 133
Referências............................................................................................................ 134

Linhas básicas acerca da “liquidação de sentença” coletiva


Rodrigo Mazzei, Tiago Figueiredo Gonçalves......................................................................... 137
1 Introdução.............................................................................................................. 137
2 Conceito de “liquidação de sentença” e as técnicas de viabilização da liquidação........ 140
2.1 Liquidação-fase....................................................................................................... 141
2.2 Liquidação incidental............................................................................................... 141
2.3 Liquidação como “processo autônomo”.................................................................... 141
3 Das “espécies” de liquidação segundo o CPC........................................................... 142
3.1 “Liquidação” por cálculos........................................................................................ 142
3.2 Liquidação por arbitramento..................................................................................... 143
3.3 Liquidação por artigos............................................................................................. 145
4 Liquidação de sentença no Projeto do CPC................................................................ 145
5 Liquidação no processo coletivo............................................................................... 148
5.1 O devido processo legal coletivo e o microssistema do processo coletivo.................... 148
5.2 A sentença genérica no processo coletivo................................................................. 151
5.3 Alcance da liquidação de sentença em processo envolvendo os direitos
individuais homogêneos.......................................................................................... 152
5.3.1 Fluid recovery.......................................................................................................... 154
5.4 A liquidação de sentença em processo no qual tutelado direito difuso ou
direito coletivo........................................................................................................ 155
Referências............................................................................................................ 156

Mutação constitucional do artigo 52, X, da Constituição Federal – A consagração


do hibridismo no controle de constitucionalidade brasileiro e o seu impacto na
competência do Senado Federal
Fabiana Marcello Gonçalves, Humberto Dalla Bernardina de Pinho......................................... 159
1 Premissa inicial – A abstrativização do controle concreto como vertente da
interpenetração dos modelos difuso e concentrado................................................... 159
2 O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade difuso......................... 166
3 A adaptabilidade da Constituição Federal e os perigos da tese da
mutação constitucional............................................................................................ 172
4 Conclusão – Seria inconstitucional a mutação do artigo 52, X, da
Constituição Federal?.............................................................................................. 175
Referências............................................................................................................ 178

Princípio processual da objetividade argumentativa


Dhenis Cruz Madeira............................................................................................................ 181
1 Considerações iniciais............................................................................................. 181
2 Breves palavras sobre o discurso............................................................................. 182
3 Algumas palavras sobre o discurso processual.......................................................... 182
4 Princípio processual da objetividade argumentativa e a rejeição do solipsismo pelo
Estado Democrático de Direito................................................................................. 184
5 Considerações finais............................................................................................... 199
Referências............................................................................................................ 200

NOTAS E COMENTÁRIOS

Novo CPC, o “caballo de Tróya” iura novit curia e o papel do juiz


Dierle Nunes, Lúcio Delfino.................................................................................................. 205

O novo CPC contra o advogado diligente


Lúcio Delfino ................................................................................................................. 211

Pronunciamento do Advogado Dr. José Anchieta da Silva, homenageado no


Congresso de Direito Processual de Uberaba – 8. ed. no dia 11 de setembro
de 2014
José Anchieta da Silva......................................................................................................... 219
RESENHAS

ALVIM, Arruda et al. (Coord.). Execução e temas afins – Do CPC/1973 ao novo


CPC – Estudos em homenagem ao Prof. Araken de Assis. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2014
Marcelo José Magalhães Bonicio.......................................................................................... 227

KHALED JR., Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da


ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013
Aury Lopes Jr., Alexandre Morais da Rosa............................................................................. 229

MAZZEI, Rodrigo (Org.). Código de Processo Civil do Espírito Santo: texto legal e
breve notícia histórica. Vila Velha: ESM (Eppur Si Muove), 2014
Mônica Pimenta Júdice........................................................................................................ 233

SANTOS RODRIGUES, Marco Antonio dos. A modificação do pedido e da causa


de pedir no processo civil. Rio de Janeiro: GZ, 2014
Lúcio Delfino ................................................................................................................. 237

Instruções para os autores ................................................................................. 241


Editorial

Entre os dias 28 e 30 de agosto de 2014 ocorreram as Jornadas Brasileiras


de Direito Processual, na cidade de Campos do Jordão (SP), evento organizado pelo
Instituto Brasileiro de Direito Processual e que prestou justa e merecida homenagem
ao jurista Prof. José Manoel Arruda Alvim Netto. Ali palestraram destacados
processualistas tratando de temáticas variadas, com ênfase para as modificações
que se avizinham com a chegada do novo Código de Processo Civil.
Outro acontecimento de destaque foi o Congresso de Uberaba de Direito
Processual – 8. ed., que desta vez homenageou o advogado mineiro José Anchieta da
Silva. Como é de costume, processualistas de todo o Brasil fizeram-se presentes e
ministraram palestras riquíssimas e com abordagens atinentes às variadas temáticas
do direito processual. Também na ocasião teve lugar mais uma versão da Comenda
Professor Edson Prata, honraria que tem como objetivo perpetuar o nome do saudoso
advogado e professor Edson Prata, além de homenagear nomes de relevo no cenário
jurídico. Este ano, a Comenda foi concedida aos advogados Sérgio Murilo Braga (Belo
Horizonte), Leone Trida Sene (Uberaba) e também ao juiz de direito, Dr. Fabiano
Rubinger de Queiroz.
A presente edição da RBDPro traz os seguintes artigos doutrinários:
1 A aplicação da actio nata no redirecionamento das execuções fiscais e seus
reflexos no desenvolvimento e na segurança jurídica. Andre Folloni e Lara Bonemer
Azevedo da Rocha trazem uma análise dos dispositivos legais que disciplinam o
redirecionamento. Em seguida, examinam o prazo prescricional previsto no CTN e a
legitimidade constitucional da suspensão da execução prevista na Lei de Execuções
Fiscais. Por fim, expõem como a teoria da actio nata foi suscitada e tecem argumentos
sustentando o equívoco que repousa em advogar a necessidade da adoção dessa
teoria em execuções fiscais.
2 A contribuição da teoria estruturalista para o processo constitucional no
Estado Democrático de Direito brasileiro – Reflexões sobre a crítica de Hermes Zaneti
Júnior à teoria de Fazzalari. Marcos Rezende elabora estudo da obra do Prof. Hermes
Zaneti Júnior e disserta sobre o tema processo constitucional, objetivando investigar
a tradição híbrida (common law e civil law) do direito processual civil brasileiro. Em
determinado excerto da obra, o Prof. Hermes Zaneti afirma reduzida a contribuição
da teoria de Fazzalari ao direito processual brasileiro. E é sobre a pertinência dessa
crítica que o autor se debruça ao longo do texto.
3 As ações repetitivas e a exigência de soluções complexas. Diógenes V. Hassan
Ribeiro constrói estudo cujo propósito é revelar que o sistema jurídico pode deixar de
ser funcional quando ocorre a complexidade, mas que em determinadas situações

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 7-9, jul./set. 2014 7
editorial

essa mesma complexidade cria as chamadas crises sistêmicas, a exigir das ações
repetitivas soluções complexas.
4 Aspectos da dinâmica do direito jurisprudencial no Brasil versus a busca de
coerência e integridade – Uma primeira impressão das premissas dos precedentes
no novo Código de Processo Civil. Dierle Nunes e a Aline Hadad Ladeira pontuam
aspectos sobre a dinâmica do direito jurisprudencial no Brasil e a busca pela coerência
e integridade. Buscam analisar se o propósito da uniformidade jurisprudencial e
da igualdade promove (ou não) um fechamento do debate em face da criação
dos precedentes.
5 Controle abstrato de constitucionalidade – ADI, ADC E ADPF. O artigo da lavra do
Professor José Maria Tesheiner versa sobre as ações direta de inconstitucionalidade,
declaratória de constitucionalidade e de arguição de descumprimento de preceito
fundamental, com base sobretudo na jurisprudência do Supremo Federal, destacando
suas principais características.
6 Das normas fundamentais do processo e o projeto de novo código de
processo civil brasileiro – Repetições e inovações. Com a pretensão de investigar
qual a normatividade adotada pelo legislador na elaboração dos primeiros artigos
do Projeto de novo Código de Processo Civil, Marco Félix Jobim desenvolve esforços
para demonstrar o que há de inovação, o que já havia na legislação processual a
ser revogada e o que está se reproduzindo dos princípios processuais elencados na
Constituição da República Federativa do Brasil.
7 Legitimidade das associações civis para propositura de ação civil pública
no direito brasileiro – Uma leitura multidisciplinar. Arno Apolinário Júnior e Ricardo
da Silva Gama questionam quais os limites à atuação das associações civis como
sujeitos ativos na propositura de ações civis públicas no direito brasileiro e, ao longo
do trabalho, tecem discussão acerca da restrição da efetiva participação social gerada
pela inadequada representação no seio da legitimidade das associações civis para
proporem ação civil pública.
8 Linhas básicas acerca da ‘liquidação de sentença’ coletiva. Rodrigo Mazzei e
Tiago Figueiredo Gonçalves abordam e sistematizam as linhas básicas da liquidação
de sentença nos processos coletivos segundo o ordenamento legal brasileiro.
9 Mutação constitucional do artigo 52, X, da Constituição Federal – A consagração
do hibridismo no controle de constitucionalidade brasileiro e o seu impacto na
competência do Senado Federal. O texto examina o sistema híbrido de controle de
constitucionalidade no Brasil e a teoria da mutação constitucional, tudo a partir da
ótica do Supremo Tribunal Federal. Fabiana Marcello Gonçalves e Humberto Dalla
Bernardina de Pinho analisam, ainda, potencialidades e riscos da implementação
desta técnica à luz da nossa tradição legislativa e jurisprudencial.
10 Princípio processual da objetividade argumentativa. Dhenis Cruz Madeira
aborda uma temática onde defende a aplicação do conhecimento objetivo popperiano

8 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 7-9, jul./set. 2014
editorial

ao discurso processual democrático. Afirma que todos os argumentos utilizados


no discurso processual devem ser capazes de se ofertar à crítica, de maneira que
o princípio do contraditório seja plenamente exercido por aqueles que sofrerão os
efeitos do provimento jurisdicional.
Em “Notas e Comentários”, além do pronunciamento feito pelo homenageado
no Congresso de Direito Processual de Uberaba – 8. ed., Dr. José Anchieta da Silva,
a seção apresenta dois sucintos artigos acerca de questões envolvendo o Projeto do
novo CPC, já em fase avançada no Congresso Nacional.
Por fim, a revista traz quatro resenhas de excelentes obras obrigatórias em toda
e qualquer biblioteca jurídica.
Uma excelente leitura a todos.

Os Diretores

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 7-9, jul./set. 2014 9
DOUTRINA Artigos
A aplicação da actio nata no
redirecionamento das execuções fiscais
e seus reflexos no desenvolvimento
e na segurança jurídica

Andre Folloni
Doutor em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor Adjunto
da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), em Curitiba/PR, Brasil. Advogado.
Pesquisador. E-mail: <folloni.andre@pucpr.br>.

Lara Bonemer Azevedo da Rocha


Mestranda em Direito Econômico e Socioambiental pela Pontifícia Universidade
Católica do Paraná (PUCPR), em Curitiba/PR, Brasil. Advogada. Pesquisadora. E-mail:
<larabarocha1989@gmail.com>.

Resumo: O artigo estuda o prazo para o redirecionamento da ação de execução fiscal e o posicionamento
adotado pela Jurisprudência. No início, discorre sobre a responsabilidade tributária com a análise dos
dispositivos legais que disciplinam o redirecionamento. Em seguida, examina o prazo prescricional previsto
no artigo 174, I, do Código Tributário Nacional, e a legitimidade constitucional da suspensão da execução
prescrita no artigo 40 da Lei de Execuções Fiscais, tratando de forma complexa e interdisciplinar os temas
tributários e processuais. Adiante, expõe como a teoria da actio nata foi suscitada. Ao final, o artigo tece
argumentos sustentando o equívoco que repousa em sustentar a necessidade de adoção dessa teoria em
execuções fiscais. Para tanto, examina o princípio da segurança jurídica e a questão da imprescritibilidade
da dívida fiscal, além do óbice ao desenvolvimento nacional que a indeterminabilidade jurídica representa.
Palavras-chave: Tributação. Execução fiscal. Desenvolvimento. Segurança jurídica. Complexidade.

Sumário: Introdução - 1 Responsabilidade tributária do sócio - 2 O prazo prescricional para o redirecionamento da


execução fiscal - 3 A argumentação pela actio nata e a imprescritibilidade da execução fiscal - 4 A improcedência
dos argumentos pela actio nata diante da segurança jurídica e do desenvolvimento nacional - Considerações finais

Introdução
Uma questão polêmica é discutida no Recurso Especial nº 1.201.993, em
trâmite perante o Superior Tribunal de Justiça. Esse recurso foi selecionado como
representativo da controvérsia sobre a adoção da teoria da actio nata para a contagem
do prazo prescricional para o redirecionamento da ação de execução fiscal contra os
terceiros responsáveis. O Recurso Especial segue aguardando julgamento, de modo
que é relevante refletir a respeito do tema para, inclusive, oferecer subsídios à melhor
decisão, tarefa relevante que a Ciência do Direito deve assumir.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 13-29, jul./set. 2014 13
Andre Folloni, Lara Bonemer Azevedo da Rocha

A controvérsia diz respeito à prescrição para o redirecionamento da execução


fiscal. Para a teoria em estudo, o nascimento da pretensão do redirecionamento
da execução fiscal ocorreria apenas a partir do momento em que se constata nos
autos a inexistência de bens da empresa executada, ou sua dissolução irregular.
Sugere, portanto, uma solução diversa daquela que prescreve a interpretação judicial
prevalecente a respeito do artigo 174, inciso I, do Código Tributário Nacional, e do
artigo 40, §4º, da Lei de Execuções Fiscais, segundo a qual o prazo prescricional
para o redirecionamento da ação executiva fiscal para o terceiro responsável seria de
cinco anos, contados do despacho que ordena a citação da empresa executada. Nos
termos da teoria da actio nata, o dies a quo do redirecionamento estaria vinculado
a uma condição que surgiria em termo indeterminado — constatação, nos autos, de
inexistência de bens da empresa ou de sua dissolução irregular.
Debruçando-se sobre essa controvérsia, o presente artigo examina as
proposições sustentadas pela Fazenda Pública em cotejo com o que prescreve o
direito positivo a respeito. O estudo combina o método dedutivo — ao examinar as
teorias e formulações em abstrato diante de situações de aplicabilidade concreta —
e o método indutivo, concluindo a partir de observações particulares.
Inicialmente, o artigo trata da responsabilidade tributária, com a análise dos
dispositivos do ordenamento que autorizam o redirecionamento e disciplinam a
prescrição, em cotejo com o entendimento doutrinário e jurisprudencial sobre a matéria.
Considerando a necessidade de se atribuir segurança jurídica ao sujeito passivo
da obrigação tributária, será, em seguida, estudado o prazo prescricional para o
redirecionamento da ação de execução fiscal. Neste aspecto, será desenvolvida
análise das disposições pertinentes e de sua interpretação pela jurisprudência.
Em seguida, o objeto de estudo é a teoria da actio nata e de seus fundamentos,
na forma e na justificativa adotadas pela Fazenda Pública para a sua aplicação às
execuções fiscais, especificamente ao redirecionamento. Será então destacado o
posicionamento jurisprudencial que aplica a teoria e qual a fundamentação que tem
sido adotada pelos Tribunais neste sentido.
Ao final, são formuladas proposições prospectivas, objetivando oferecer
subsídios ao debate com a fundamentação de um posicionamento contrário às
pretensões da Fazenda Pública no Recurso Especial nº 1.201.993.

1 Responsabilidade tributária do sócio


No Direito Tributário, é comum na doutrina a consideração segundo a qual
a responsabilidade está relacionada ao descumprimento de um dever jurídico,
consistindo em uma espécie de sanção.1

MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 159.
1

14 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 13-29, jul./set. 2014
A aplicação da actio nata no redirecionamento das execuções fiscais e seus reflexos no desenvolvimento...

Isso leva a doutrina a considerar a responsabilidade em sentido amplo e em


sentido estrito. A primeira delas, no ensinamento de Hugo de Brito Machado, seria
a “submissão de determinada pessoa, contribuinte ou não, ao direito do fisco de
exigir a prestação da obrigação tributária. Essa responsabilidade vincula qualquer dos
sujeitos passivos da obrigação tributária”.2 É o que se observa dos artigos 124, 128,
136 e 138 do Código Tributário Nacional. A responsabilidade em sentido estrito, por
seu turno, prevista no artigo 121, II, do Código Tributário Nacional, é a condição de
sujeito passivo, decorrente de disposição legal expressa, àquele que, em que pese
não ser contribuinte, está vinculado ao fato gerador da obrigação tributária e, por
consequência, ao direito do Estado em exigir o pagamento do tributo.
Luís Eduardo Schoueri, examinando o julgamento do Recurso Extraordinário
nº 562.276, relatado pela Ministra Ellen Gracie, do Supremo Tribunal Federal, traz à
evidência o conceito de responsabilidade, que “pressupõe duas normas autônomas:
a regra matriz de incidência tributária e a regra matriz de responsabilidade tributária,
cada uma com seu pressuposto de fato e seus sujeitos próprios” sendo que “a
referência ao responsável enquanto terceiro (dritter Persone, terzo ou tercero)
evidencia que não participa da relação contributiva, mas de uma relação específica de
responsabilidade tributária, inconfundível com aquela”.3 Assevera, em seguida, que:

Importa não perder de mente que não se trata de vínculo obrigacional


novo: obrigação tributária surge com o fato jurídico tributário; na
responsabilidade existe mera transferência do vínculo já surgido. Não
há novo vínculo. Tanto assim é que, extinta a obrigação pelo devedor
original, nada há a exigir do responsável.4

Assume, portanto, a condição de responsável, aquele sujeito passivo


da obrigação tributária que é vinculado à obrigação por meio de expressa
disposição legal, diante de relação mediata que apresente com o fato gerador da
obrigação tributária.
Em decorrência da presença do responsável como devedor da obrigação
tributária, pode haver modificação subjetiva no polo passivo da obrigação, que deixa
de ser ocupado pelo contribuinte. E, nesse contexto, o Código Tributário Nacional
enuncia quais as hipóteses de responsabilidade admitidas em lei e a forma como que
ela deverá ocorrer, inclusive a possibilidade de que o responsável o seja apenas em
caráter subsidiário em relação ao contribuinte.
O CTN, ao tratar da responsabilidade no artigo 134, VII, prescreve que, havendo
impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal por parte do

2
MACHADO, Curso de direito tributário, p. 159.
3
Direito tributário. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 529.
4
Direito tributário. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 529.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 13-29, jul./set. 2014 15
Andre Folloni, Lara Bonemer Azevedo da Rocha

contribuinte, responderão solidariamente com ele, nos atos em que intervierem


ou pelas omissões que forem responsáveis, os sócios, no caso de liquidação de
sociedade de pessoas. Fica claro que não deve bastar o mero vínculo para que a
responsabilidade atinja a figura do terceiro. É preciso que ele tenha praticado algum
ato omissivo ou comissivo, na forma estabelecida pela lei, devendo responder apenas
se tiver concorrido para o não cumprimento da obrigação tributária. Daí a doutrina,
como visto, ressaltar a ilicitude do ato que leva à responsabilidade tributária.
Por sua vez, o artigo 135, ao dispor sobre aqueles que são pessoalmente
responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes
de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou
estatutos, nomeia as pessoas referidas no artigo 134, os mandatários, prepostos
e empregados e os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de
direito privado.
A teor do que prescrevem esses preceitos, a responsabilidade do sócio administrador,
dos diretores, gerentes e representantes da pessoa jurídica que respondem a uma
execução fiscal não é decorrente do mero inadimplemento ou da insuficiência de
recursos para saldar a execução, para que seja autorizado o redirecionamento. Deve
haver a prática de ato para o qual o terceiro não detinha poderes, ou de ato que tenha
infringido a lei, o contrato social ou o estatuto de uma sociedade.
Nesse sentido, pacificou-se a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no
sentido de “ser subjetiva a responsabilidade do sócio-gerente pelo pagamento de
tributo devido pela sociedade, ficando aquele obrigado pessoalmente pela dívida,
somente quando restar provado ter ele agido com fraude ou excesso de poderes”.5
Assim, as pessoas apenas têm o direito subjetivo de serem consideradas
sujeitos passivos de tributos quando cumuladas três situações, como ensina Roque
Antonio Carrazza: quando previstos expressa ou implicitamente na Constituição
Federal; quando constituídos legislativamente enquanto sujeitos passivos; e, ainda,
após a ocorrência do fato gerador.6

2 O prazo prescricional para o redirecionamento da


execução fiscal
A função tributária apenas pode ser exercida na forma que prevê a
Constituição. Na lição de Celso Ribeiro Bastos, é a Constituição “...que confere e

5
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AGRESP 384860/RS. 2ª Turma. Rel. Min. Paulo Medina. DJ, p. 09 jul.
2003, p. 213. E na mesma linha: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AGRESP 433227/DF, 2ª Turma. Rel.
Min. Franciulli Netto. DJ, p. 288, 16 jun. 2003; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AGRESP 492428/RS.
1ª Turma. Rel. Min. Humberto Gomes de Barros. DJ, p. 189, 09 jun. 2003; BRASIL. Superior Tribunal de
Justiça. AGA 487076/SC. 1ª Turma. Rel. Min. Luiz Fux. DJ, 29 set. 2003.
6
Curso de direito constitucional tributário. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 425.

16 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 13-29, jul./set. 2014
A aplicação da actio nata no redirecionamento das execuções fiscais e seus reflexos no desenvolvimento...

distribui competências, dispõe sobre a repartição das receitas arrecadadas, fixa os


pressupostos para a criação dos tributos, enfim, delimita a atuação do Estado neste
mister”.7 A Constituição também prevê que haverá normas gerais em matéria de
legislação tributária, vinculando União, Estados, Distrito Federal e Municípios, a serem
criadas por lei complementar. A previsão, sobre a qual ainda reina forte controvérsia,
está no artigo 146, III, da Constituição.8
No aspecto formal, a lei complementar é votada pela maioria absoluta do
Congresso Nacional, seguindo o rito estabelecido pela Constituição. No viés material,
lei complementar é aquela que regula determinadas matérias previstas como de sua
competência pela Constituição.9
Segundo José Souto Maior Borges, as leis complementares não se posicionam,
necessariamente, em patamar hierarquicamente superior às ordinárias.10 Diferem
dessas, em muitos casos, por veicularem conteúdo específico que determinará a
validade das legislações ordinárias federal, estadual e municipal, servindo-lhes de
fundamento de validade.
Para validade das leis complementares, faz-se necessária a aprovação pela
maioria absoluta de votos de cada uma das Casas do Congresso Nacional. Segundo
Celso Ribeiro Bastos:

[...] entendemos por lei complementar a espécie normativa autônoma,


expressamente prevista no inc. II do art. 59 da Constituição Federal, que
versa sobre matéria subtraída ao campo de atuação das demais espécies
normativas do nosso direito positivo, demandando, para a sua aprovação,
um quórum especial de maioria absoluta dos votos dos membros das
duas Casas de que se compõe o Congresso Nacional.
Lei Complementar é, assim, toda aquela que contempla uma matéria
a ela entregue de forma exclusiva e que, em consequência, repele
normações heterogêneas, aprovada mediante um quórum próprio de
maioria absoluta.11

A questão afeta a prescrição, assim como as que dizem respeito à obrigação,


lançamento, crédito e decadência, deve, nos termos do artigo 146, inciso III, alínea “b”,
da Constituição Federal, ser disciplinada por Lei Complementar. Essa lei complementar
prevista na Constituição nunca foi editada, porque a ordem constitucional atual
recepciona a Lei nº 5.172/1966, denominada Código Tributário Nacional.

7
Curso de direito financeiro e de direito tributário. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 105.
8
BORGES, José Souto Maior. Normas gerais de direito tributário: velho tema sob perspectiva nova. Revista
Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 213, jun. 2013, p. 48-65.
9
CEZAROTI, Guilherme. Normas gerais de direito tributário. In: PEIXOTO, Marcelo Magalhães; DINIZ, Marcelo de
Lima Castro (Coord.). Curso de direito tributário. São Paulo: MP, 2005. p. 127.
10
BORGES, José Souto Maior. Lei complementar tributária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1975. p. 54.
11
Curso de direito financeiro e de direito tributário. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 165-166.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 13-29, jul./set. 2014 17
Andre Folloni, Lara Bonemer Azevedo da Rocha

Com esse fundamento constitucional, o Código Tributário Nacional determina,


no artigo 174, que a ação para a cobrança do crédito tributário prescreve em cinco
anos, contados da data da sua constituição definitiva. Essa ação para a cobrança
do crédito tributário é a ação de execução fiscal, que tem procedimento específico
estabelecido pela Lei nº 6.380/1980.
Antes da entrada em vigor da Lei Complementar nº 118/2005, que alterou
sua redação, o CTN estabelecia que a ação para a cobrança do crédito tributário
prescrevia no prazo de cinco anos contados da data da citação pessoal do devedor
em ação de execução fiscal. A fim de se evitar a imprescritibilidade das dívidas fiscais,
o redirecionamento da execução para a pessoa do sócio-gerente deveria ocorrer no
prazo de cinco anos contados da citação da pessoa jurídica executada, sob pena de
se operar a prescrição. A jurisprudência tinha posicionamento sedimentado no sentido
de se operar a prescrição para o redirecionamento da execução quando transcorridos
mais de cinco anos entre a efetiva citação da empresa e, posteriormente, do sócio-
gerente. Verifique-se, a propósito, os seguintes trechos de acórdãos proferidos pelo
Superior Tribunal de Justiça:

[...] com a finalidade de evitar a imprescritibilidade das dívidas fiscais,


vem-se entendendo, de forma reiterada, que o redirecionamento da
execução contra os sócios deve dar-se no prazo de cinco anos contados
da citação da pessoa jurídica. Precedentes: AgRg nos EREsp 761.488/
SC, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, Primeira Seção, DJe de 7.12.2009;
AgRg no REsp 958.846/RS, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma,
DJe de 30.9.2009; REsp 914.916/RS, Rel. Ministra Eliana Calmon,
Segunda Turma, DJe de 16.4.2009. 2. agravo regimental não provido.12
[...] 3. O redirecionamento da execução fiscal contra o sócio deve ocorrer
no prazo de cinco nos da citação da pessoa jurídica, sob pena de operar-se
a prescrição. [...]13
[...] PROCESSO CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL. PRESCRIÇÃO. SÓCIO-GERENTE.
CITAÇÃO. PESSOA JURÍDICA.1. A jurisprudência das 1ª e 2ª Turmas
desta Corte vêm proclamando o entendimento no sentido de que o
redirecionamento da execução contra o sócio deve dar-se no prazo de
cinco anos da citação da pessoa jurídica, sendo inaplicável o disposto
no art. 40 da Lei nº 6.830/80 que, além de referir-se ao devedor, e
não ao responsável tributário, deve harmonizar-se com as hipóteses
de suspensão previstas no art. 174 do CTN, de modo a não tornar
imprescritível a dívida fiscal. Precedentes. [...]14

12
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no Ag n. 1.211.213/SP. Rel. Min. Mauro Campbell Marques.
2ª Turma. J. 15.02.2011. DJe, 24 fev. 2011.
13
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgReg no REsp n. 200901466440. Rel. Min. Castro Meira. 2ª Turma.
DJe, 18 jul. 2010.
14
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 73.511/PR, Rel. Min. Castro Meira, 2ª Turma. J. 03.08.2004, DJ,
p. 186, 06 set. 2004.

18 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 13-29, jul./set. 2014
A aplicação da actio nata no redirecionamento das execuções fiscais e seus reflexos no desenvolvimento...

No mesmo sentido, convém também referir os acórdãos de AgRg no EREsp


nº 761.488/SC, Primeira Seção, de relatoria do Min. Hamilton Carvalhido, julgado em
data de 25.11.200915 e de AgRg no REsp 734.867/SC, de relatoria da Ex-Ministra
Denise Arruda, Primeira Turma, julgado em 23.09.2008.16
Com a nova sistemática trazida pelo advento da Lei Complementar nº 118/2005,
o prazo prescricional passou a ser interrompido “pelo despacho do juiz que ordenar
a citação em execução fiscal”. O artigo 174, parágrafo único, I, do Código Tributário
Nacional, passou a vigorar com a seguinte redação:

Art. 174. A ação para a cobrança do crédito tributário prescreve em cinco


anos, contados da data da sua constituição definitiva.
Parágrafo único. A prescrição se interrompe:
I - pelo despacho do juiz que ordenar a citação em execução fiscal.

Consequentemente, no caso de redirecionamento, o prazo prescricional passou


a ser interrompido pelo despacho que determina o redirecionamento da execução
fiscal para a pessoa do sócio. Dessa forma, se contados mais de cinco anos entre
o despacho ordenatório da citação da pessoa jurídica executada e o despacho
que determina o redirecionamento da execução, restaria a execução fulminada
pela prescrição.
E por isso, a partir de então, o Superior Tribunal de Justiça, ao analisar
questões referentes à prescrição de débitos fiscais, posicionou-se no sentido de
que se contados mais de cinco anos entre o despacho que determina a citação da
empresa e aquele que autoriza o redirecionamento da execução, torna-se imperioso
o reconhecimento da prescrição, a fim de se evitar a imprescritibilidade da dívida
tributária. Veja-se, a respeito, os seguintes excertos:

No presente caso, o Tribunal regional registrou que o processo não


pode tramitar indefinidamente ao efeito de tornar imprescritível a dívida
tributária, entendendo pela extinção do crédito tributário, por operada a
prescrição.3. Conforme cediço, após o decurso de determinado tempo,
sem promoção da parte interessada, deve-se estabilizar o conflito, pela
via da prescrição, impondo segurança jurídica aos litigantes, uma vez que
a prescrição indefinida afronta os princípios informadores do sistema
tributário. Paralisado o processo por mais de 5 (cinco) anos impõe-se
o reconhecimento da prescrição. Precedentes: REsp 1190292/MG,

15
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no EREsp 761488/SC. Primeira Seção. Rel. Min. Hamilton Carvalhido.
Julgado em: 25 nov. 2009.
16
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 734.867/SC. Rel. Min. Denise Arruda. Primeira Turma.
Julgado em: 23 set. 2008.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 13-29, jul./set. 2014 19
Andre Folloni, Lara Bonemer Azevedo da Rocha

Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, DJe 18/08/2010; AgRg no


Ag 1272777/MG, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda
Turma, DJe 03/09/2010; REsp 1235256/PE, Rel. Ministro Castro Meira,
Segunda Turma, DJe 10/05/2011.4. Agravo regimental não provido.17
O redirecionamento da execução contra o sócio deve dar-se no prazo de cinco
anos da citação da pessoa jurídica, sendo inaplicável o disposto no art. 40
da Lei nº 6.830/80 que, além de referir-se ao devedor, e não ao responsável
tributário, deve harmonizar-se com as hipóteses previstas no art. 174 do
CTN, de modo a não tornar imprescritível a dívida fiscal. Precedentes:
REsp 205887, Rel. DJ 01.08.2005; REsp 736030, DJ 20.06.2005;
AgRg no REsp 445658, DJ 16.05.2005; AgRg no Ag 541255,
DJ 11.04.2005. [...] 7. A Primeira Seção, no julgamento do AgRg nos
EREsp 761488/SC, Rel. Ministro HAMILTON CARVALHIDO, pacíficou
o referido entendimento: “por suas duas Turmas de Direito Público,
consolidou o entendimento de que, não obstante a citação válida da
pessoa jurídica interrompa a prescrição em relação aos responsáveis
solidários, no caso de redirecionamento da execução fiscal, há
prescrição intercorrente se decorridos mais de cinco anos entre a citação
da empresa e a citação pessoal dos sócios, de modo a não tornar
imprescritível a dívida fiscal. (AgRg nos EREsp nº 761.488/SC. Rel. Min.
Hamilton Carvalhido. Primeira Seção. Julgado em: 25 nov. 2009. DJe,
07 nov. 2009)18

Inclusive, o STJ já se valeu desse posicionamento levando em consideração


a teoria da actio nata, objeto da controvérsia, e que será exposta no item seguinte:

O redirecionamento da execução contra o sócio deve dar-se no prazo de


cinco anos da citação da pessoa jurídica, sendo inaplicável o disposto no
art. 40 da Lei nº 6.830/80 que, além de referir-se ao devedor, e não ao
responsável tributário, deve harmonizar-se com as hipóteses previstas
no art. 174 do CTN, de modo a não tornar imprescritível a dívida fiscal
(Precedentes: REsp nº 205.887, DJU de 01/08/2005; REsp nº 736.030,
DJU de 20/06/2005; AgRg no REsp nº 445.658, DJU de 16.05.2005;
AgRg no Ag nº 541.255, DJU de 11/04/2005). [...] 6. A aplicação da
Teoria da Actio Nata requer que o pedido do redirecionamento seja feito
dentro do período de 5 anos que sucedem a citação da pessoa jurídica,
ainda que não tenha sido caracterizada a inércia da autarquia fazendária.
(REsp nº 975.691/RS. Rel. Ministro Castro Meira. 2ª Turma. Julgado em:
09.10.2007. DJ, p. 355, 26 out. 2007)19

17
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no Ag 1286579/RS. Rel. Min. Benedito Gonçalves. Primeira Turma.
Julgado em: 02.06.2011. DJe, 09 jun. 2011.
18
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1202195/PR. Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma. Julgado
em: 03.02. 2011. DJe, 22 fev. 2011.
19
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. EDcl no AgRg no Ag 1272349/SP. Rel. Ministro Luiz Fux. Primeira Turma.
Julgado em: 02.12.2010. DJe, 14 dez. 2010.

20 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 13-29, jul./set. 2014
A aplicação da actio nata no redirecionamento das execuções fiscais e seus reflexos no desenvolvimento...

Esse é o panorama jurisprudencial que antecede o Recurso Especial


nº 1.201.993, selecionado como representativo da controvérsia para julgamento na
forma do artigo 543-B, §1º, do Código de Processo Civil.20
Reina dúvida doutrinária a respeito da necessidade de que a disciplina da
prescrição intercorrente seja feita em lei complementar. Adotamos a posição
segundo a qual não há essa necessidade. As normas gerais de Direito Tributário,
que demandam lei complementar, devem tratar do crédito e da prescrição da ação
de cobrança, pressupostos para a execução fiscal, mas não necessariamente de
temas internos à ação de execução, agora afetos ao Direito Processual Tributário.
Sem dúvida, é lícito o tratamento da prescrição intercorrente por lei complementar;
no entanto, não é obrigatório: lei ordinária pode tratar do tema. Trata-se de tema de
Direito Processual, a ser disciplinado pela União (CF, art. 22, I), que pode optar pela
lei complementar ou pela lei ordinária.21

3 A argumentação pela actio nata e a imprescritibilidade


da execução fiscal
No Recurso Especial nº 1.201.993, a Fazenda Pública invoca a teoria da actio
nata. Aplicando-a, na interpretação da Fazenda Pública, o nascimento da pretensão do
redirecionamento ocorreria apenas a partir da ciência acerca da inexistência de bens
de propriedade da empresa ou de sua dissolução irregular. Veja-se, por exemplo, a
argumentação seguinte:

[...] o prazo para cobrança do crédito tributário do sucessor, mesmo nas


hipóteses em que há pedido de redirecionamento do feito executivo, é de
cinco anos, nos termos do artigo 174 do CTN. Este prazo, todavia, retoma
seu curso, no caso do exemplo dado acima, com a caracterização da
operação de reorganização societária ocorrida ou mesmo demonstração

20
Conferir, ainda: BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. AG 0014241-44.2011.404.0000. Primeira
Turma. Relator Álvaro Eduardo Junqueira, DE, 18 jan. 2012; BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná.
AgIn n. 813466-9. Des. Rel. Fabio Andre Santos Muniz. 1ª Câm. Cív. DJe, 11 out. 2011; BRASIL. Tribunal
de Justiça do Estado do Paraná. AgIn n. 717989-1. Des. Rel. Paulo Roberto Vasconcelos, 3ª Câm. Cív. DJe,
22.06.2011. BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. AG 0000533-24.2011.404.0000. Segunda
Turma. Relator Otávio Roberto Pamplona, DE, 04 maio 2011; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n.
1.104.900/ES. Rel. Ministra Denise Arruda. Primeira Seção. Julgado em: 25.03.2009. DJe, 1º.04.2009;
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1.196.377-SP. 2ª Turma. Rel. Min. Humberto Martins.
DJe, 27 out. 2010; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1.100.907/RS. Rel. Min. Humberto
Martins. Segunda Turma, DJe, 18 set. 2009; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1.062.571/
RS. Rel. Min. Herman Benjamin. Segunda Turma. Julgado em: 20.11.2008, DJe, 24.03.2009; BRASIL.
Tribunal Regional Federal da 4a Região. Apelação Cível nº 0002491-84.2012.404.9999/RS. Rel. Des. Federal
Luciane Amaral Corrêa Münch de 05-07-2012; BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. AG 5022584-
70.2013.404.0000. Segunda Turma. Rel. Luciane Amaral Corrêa Münch. DE, 30 set. 2013.
21
Também considerando tratar-se de tema de Direito Processual, suscetível de tratamento por lei ordinária,
SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Decadência e prescrição no direito tributário. São Paulo: Max Limonad, 2000.
p. 236.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 13-29, jul./set. 2014 21
Andre Folloni, Lara Bonemer Azevedo da Rocha

da aquisição de um estabelecimento empresarial. [...] Apenas reafirmando


o que já foi dito, este prazo prescricional somente pode retomar seu curso
do início, a partir do momento em que ficar caracterizada a ocorrência
da hipótese de responsabilidade tributária. [...] Neste caso, o cômputo
inicial deste prazo terá que coincidir como exato momento em que houve
a configuração seja de uma operação de reorganização societária, seja
da prática de um ato ilícito pelo representante da pessoa jurídica, dentre
outras hipóteses, traduzida pela linguagem competente das provas,
tendo em vista que, somente a partir deste instante, surge o direito de o
fisco exigir do responsável o crédito tributário.22

Este entendimento encontraria amparo no artigo 40 da Lei de Execuções


Fiscais (Lei nº 6.380/1980), que prescreve: “o Juiz suspenderá o curso da execução,
enquanto não for localizado o devedor ou encontrados bens sobre os quais possa
recair a penhora, e, nesses casos, não correrá o prazo de prescrição”.
Nessa alternativa de interpretação, admite-se que, enquanto não constatada
a efetiva inexistência de bens passíveis de saldar a dívida exequenda, não se teria
atingido o dies a quo do redirecionamento, sustentando-se um novo marco interruptivo
da prescrição não previsto em lei, mas por uma espécie de aplicação extensiva ou
analógica do que estabelece o artigo 40 da Lei de Execuções Fiscais.
Em sua configuração atual, o preceito referido tem a seguinte redação:

Art. 40 - O Juiz suspenderá o curso da execução, enquanto não for


localizado o devedor ou encontrados bens sobre os quais possa recair a
penhora, e, nesses casos, não correrá o prazo de prescrição.
§1º - Suspenso o curso da execução, será aberta vista dos autos ao
representante judicial da Fazenda Pública.
§2º - Decorrido o prazo máximo de 1 (um) ano, sem que seja localizado o
devedor ou encontrados bens penhoráveis, o Juiz ordenará o arquivamento
dos autos.
§3º - Encontrados que sejam, a qualquer tempo, o devedor ou os bens,
serão desarquivados os autos para prosseguimento da execução.
§4º - Se da decisão que ordenar o arquivamento tiver decorrido o prazo
prescricional, o juiz, depois de ouvida a Fazenda Pública, poderá, de ofício,
reconhecer a prescrição intercorrente e decretá-la de imediato.
§5º - A manifestação prévia da Fazenda Pública prevista no §4o deste
artigo será dispensada no caso de cobranças judiciais cujo valor seja
inferior ao mínimo fixado por ato do Ministro de Estado da Fazenda.

O preceito estabelece a possibilidade de suspensão da execução por um


ano, na falta de localização do devedor ou dos bens penhoráveis, sem que corra a

ARAÚJO, Juliana Furtado Costa. O prazo para redirecionamento da ação de execução fiscal em face de terceiros
22

responsáveis. Revista da PGFN. Brasília, Ano I, n. 1, jan./jun. 2011. p. 90-91.

22 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 13-29, jul./set. 2014
A aplicação da actio nata no redirecionamento das execuções fiscais e seus reflexos no desenvolvimento...

prescrição. Passado o prazo e mantida a condição, os autos serão arquivados. No


entanto, poderão ser desarquivados, “a qualquer tempo”, encontrado o devedor ou
os bens.
A Fazenda Pública, lastreada na teoria da actio nata, defende a possibilidade
desse desarquivamento “a qualquer tempo” quando, no curso da execução,
descobre-se o fato que autorizaria o redirecionamento. Isso, anote-se, sem qualquer
previsão legal a respeito e mediante o recurso à teoria da “linguagem competente”,
já amplamente falseada pela doutrina.23
Isso tornaria a execução fiscal, na prática, imprescritível. Por isso, o artigo
40 da LEF tem sido alvo de críticas. A jurisprudência tem, em parte, admitido uma
necessidade de harmonização entre o artigo 40, da Lei de Execução Fiscal e o que
dispõe o artigo 147, do CTN:

[...] 1. O artigo 40 da Lei de Execução Fiscal deve ser interpretado


harmonicamente com o disposto no art. 174 do CTN, que deve prevalecer
em caso de colidência entre as referidas leis. Isto porque é princípio
de Direito Público que a prescrição e a decadência tributárias são
matérias reservadas à lei complementar, segundo prescreve o artigo
146, III, b, da CF. [...] 3. Após o decurso de determinado tempo, sem
promoção da parte interessada, deve-se estabilizar o conflito, pela via
da prescrição, impondo segurança jurídica aos litigantes, uma vez que
afronta os princípios informadores do sistema tributário a prescrição
indefinida. 4. Paralisado o processo por mais de 5 (cinco) anos impõe-se
o reconhecimento da prescrição. [...]24

E no mesmo sentido, entende a doutrina:

Todavia, a interpretação que se deve dar ao art. 40 da LEF não conduz


necessariamente a essa conclusão de inconstitucionalidade ou de
imprescritibilidade do crédito tributário. É que nesse dispositivo foi
estabelecido, simplesmente, um caso de suspensão do processo de
execução fiscal, enquanto não foi localizado o devedor ou encontrados
bens sobre os quais possa recair a penhora. Logicamente, suspenso
o processo, estancado está o curso da prescrição, mas essa situação
deverá perdurar tão-somente por um ano, a contar da intimação pessoal
ou vista dos autos ao representante judicial do exequente. Decorrido
esse prazo máximo, sem qualquer providência que leve à localização
do devedor ou de bens, os autos serão arquivados, sem baixa na

23
Demonstrando o falseamento da teoria da linguagem competente, baseada no dualismo entre fato e evento,
conferir: COSTA, Adriano Soares da. Teoria da incidência das normas jurídicas: crítica ao realismo linguístico
de Paulo de Barros Carvalho. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2009; BORGES, José Souto Maior. Curso de direito
comunitário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009; FOLLONI, André. Ciência do direito tributário no Brasil: crítica e
perspectivas a partir de José Souto Maior Borges. São Paulo: Saraiva, 2013.
24
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 971630 RS, Rel. Min. Luiz Fux. Primeira Turma. Julgado
em: 12.02. 2008.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 13-29, jul./set. 2014 23
Andre Folloni, Lara Bonemer Azevedo da Rocha

distribuição. Contudo, se o exequente permanecer inerte, a partir de


então e por lapso temporal superior a cinco anos, ocorrerá a chamada
prescrição intercorrente, com a possibilidade de ser reconhecida a
extinção do crédito tributário.25

Por essa harmonização, verifica-se que seria admitido um prazo máximo para
a extinção da execução fiscal. Haveria, então, uma incorporação do prazo de um
ano de suspensão que estabelece a Lei de Execuções Fiscais na contagem total do
lapso temporal. Isso significa que a aplicação do artigo 40 da LEF não pode levar à
imprescritibilidade das execuções fiscais.

4 A improcedência dos argumentos pela actio nata diante


da segurança jurídica e do desenvolvimento nacional
A teoria da actio nata era aplicada na antiga redação do artigo 174, inciso I,
do CTN, com a aplicação da Súmula nº 106, do Superior Tribunal de Justiça.26 Esse
entendimento visava evitar que a Fazenda Pública fosse penalizada pela demora que
não estivesse sob seu controle. Então, por aplicação subsidiária do artigo 40, da
Lei de Execuções Fiscais e do artigo 219, do Código de Processo Civil ao Direito
Tributário, entendia-se que a demora na citação, por motivos inerentes ao mecanismo
de justiça, não acarretava em prescrição ou decadência. Não havia, portanto, qualquer
relação com eventual nascimento de direito na execução com o conhecimento da
inexistência de bens do executado.
Outrossim, verifica-se que a própria alteração realizada pela Lei Complementar
nº 118/2005, no artigo 174, inciso I, do CTN, teve o condão de eliminar qualquer
possibilidade do devedor, por recalcitrância em ser encontrado, poder retardar a causa
de interrupção da prescrição. Afastou-se, então, a possibilidade de ser a Fazenda
Pública penalizada pela demora em encontrar o devedor da execução.
Trata-se, a actio nata, na hipótese, de uma construção jurisprudencial motivada
pelas teses aduzidas pela Fazenda Pública, destinada a resolver a controvérsia então
existente, hoje superada.
No caso em análise, é possível verificar um desvirtuamento da aplicação analógica
do artigo 40, da Lei de Execuções Fiscais. Isso porque, conforme salientado no item
precedente, ainda que houvesse a pretendida harmonização de dispositivos, com
um lapso temporal máximo de seis anos para a ocorrência do redirecionamento, na

25
ÁLVARES, Manoel. Comentários aos arts. 46 a 51, 63 a 67, 83 a 95 e 165 a 174. In: FREITAS, Vladimir
Passos de (Coord.). Código Tributário Nacional comentado: doutrina e jurisprudência, artigo por artigo, inclusive
ICMS (LC 85/1996 e LC 114/2002) e ISS (LC 116/2003). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 724.
26
“Proposta a ação no prazo fixado para o seu exercício, a demora na citação, por motivos inerentes ao
mecanismo da justiça, não justifica o acolhimento da arguição de prescrição ou decadência”.

24 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 13-29, jul./set. 2014
A aplicação da actio nata no redirecionamento das execuções fiscais e seus reflexos no desenvolvimento...

prática têm-se situações em que este prazo é elastecido por tempo indeterminado, até
que se constate, nos autos, o fato que faça nascer a pretensão do redirecionamento
por parte da Fazenda Pública. Na prática, a ação torna-se imprescritível.
Conforme acertadamente enuncia Humberto Ávila, existe na atualidade uma
premente necessidade de reconstruir a segurança jurídica, em geral e no âmbito do
Direito Tributário, como norma-princípio fundada na Constituição, a fim de reduzir
sua indeterminação e atribuir-lhe maior funcionalidade possível. E isso especialmente
porque, na visão do autor,

[...] também a jurisdição tem causado problemas de cognoscibilidade, de


confiabilidade e de calculabilidade: de cognoscibilidade, em virtude da
falta de fundamentação adequada das decisões ou, mesmo, da existência
de divergências entre decisões, órgãos ou tribunais; de confiabilidade,
em razão da modificação jurisprudencial de entendimentos anteriormente
consolidados com eficácia retroativa inclusive para aqueles que, com
base no entendimento abandonado, praticaram atos de disposição dos
seus direitos fundamentais; e de calculabilidade, pela falta de suavidade
das alterações de entendimento ou, mesmo, pela ausência de coerência
na interpretação do ordenamento jurídico.27

A segurança jurídica pode estar relacionada ao ordenamento como um todo, à


norma propriamente dita e também à sua aplicação uniforme, o que se entende pela
“segurança na aplicação das normas”:

[...] Essa segurança depende de argumentos argumentativos e


processuais. Os elementos argumentativos dizem respeito ao uso
de estruturas claras de raciocínio, presentes quando as premissas
e as conclusões do raciocínio, presentes quando as premissas e
as conclusões do raciocínio jurídico são esclarecidas e fundadas no
ordenamento jurídico, bem como a sua construção obedece a critérios
racionais de argumentação, baseados na sua consistência formal e na
sua coerência material. Os elementos processuais dizem respeito a um
procedimento, administrativo ou judicial, que permite e que considera
a ampla defesa e o contraditório, bem como garanta a fundamentação
estrita e lógica das decisões.28

O princípio da segurança jurídica ajuda a promover valores supremos da


sociedade, de modo que o Direito, na busca da obtenção da justiça e de dar efetividade
às garantias constitucionais, deve procurar tornar segura a vida das pessoas e das
instituições. Cada pessoa precisa, para que se estabeleça um estado mínimo de

27
ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no direito tributário. 2. ed. São
Paulo: Malheiros, 2012. p. 166.
28
ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no direito tributário. 2. ed. São
Paulo: Malheiros, 2012. p. 148.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 13-29, jul./set. 2014 25
Andre Folloni, Lara Bonemer Azevedo da Rocha

segurança, ter elementos para conhecer previamente as consequências de seus


atos, o que lhe confere tranquilidade para planejar o porvir.29
Há, portanto, insegurança jurídica quando a jurisprudência passa a filiar-se
a uma nova corrente, desprovida de amparo legal. A ausência de julgamentos
uniformes sobre uma mesma questão torna imprevisível a sua solução para casos
futuros.30 Afinal, a existência de muitas interpretações para a mesma lei equivaleria
à existência de muitas leis para o mesmo caso, gerando forte insegurança e tirando,
da lei, seu papel de estabilização e previsibilidade.31
Ora, conforme afirma Eduardo Cambi, “Ora, quando uma mesma regra ou
princípio é interpretado de maneira diversa por Juízes ou Tribunais em casos iguais,
isso gera insegurança jurídica, pois, para o mesmo problema, uns obtêm e outros
deixam de obter a tutela jurisdicional”.32
Essa insegurança, por consequência, abala o crédito do Direito e do Poder
Judiciário enquanto instituições sociais imprescindíveis ao desenvolvimento, na
medida em que elimina a certeza, causa desconfiança, afeta a calculabilidade e a
cognoscibilidade dos cidadãos que não encontram a necessária segurança para a
prática de seus atos. Sob a a égide de um direito incerto, é impossível viver seguro
dos bens ou da vida.

Considerações finais
Conclui-se pela não aplicação da teoria da actio nata para fins de contagem do
prazo para o redirecionamento da ação executiva fiscal para os terceiros responsáveis.
A razão de ser da teoria seria evitar que a Fazenda Pública sofresse prejuízos em
decorrência da demora na citação do devedor, decorrente de condutas deste para
não ser encontrado. De fato, com antiga sistemática, vigente antes do advento da
LC nº 118/2005, essa situação ocorria com certa frequência e clamava por uma
solução. Porém, a partir da entrada em vigor da Lei Complementar nº 118/2005,
que modificou as disposições do artigo 174, inciso I, do Código Tributário Nacional,
passando a constar que um dos marcos interruptivos do prazo prescricional seria o
despacho que ordena a citação e não mais a citação do devedor, a aplicação da actio
nata, com essa finalidade, perdeu sua razão de ser.
Hoje, há disciplina específica na matéria pela conjugação do previsto no Código
Tributário Nacional (art. 174) e na Lei de Execuções Fiscais (art. 40), cada qual em

29
CARRAZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 23. ed. Malheiros, 2007. p. 420-421.
30
TESHEINER, José Maria Rosa; VIAFORE, Daniele. Uniformização de jurisprudência: prós e contras. Revista
Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 21, n. 84, out./dez. 2013, p. 3.
31
GOUVEIA, Lúcio Grassi de; ATAÍDE JÚNIOR, Jaldemiro Rodrigues de. Criação judicial do direito e importância
dos precedentes. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 20, n. 80,
out./dez. 2012, p. 11.
32
CAMBI, Eduardo. Jurisprudência lotérica. Revista dos Tribunais. São Paulo, ano 90, v. 786, abr. 2001, p. 111.

26 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 13-29, jul./set. 2014
A aplicação da actio nata no redirecionamento das execuções fiscais e seus reflexos no desenvolvimento...

seu âmbito constitucional próprio: o primeiro, em normas gerais de Direito Tributário


sobre prescrição do crédito tributário, com fundamento no artigo 146, III, “b”, da
Constituição; o segundo, em normas de Direito Processual estabelecidas pela União,
com fundamento no artigo 22, I, da Constituição.
Afastar-se esse regramento criado pelo Poder Legislativo mediante uma
proposta teórica, além de violar a legitimidade democrática da opção do Poder
competente, e deixar o Direito suscetível ao arbítrio dos teóricos, fere a segurança
jurídica, uma vez que, na prática, torna as execuções fiscais imprescritíveis. Isso
afeta, consideravelmente, a cognoscibilidade, a confiabilidade e a calculabilidade,
elementos necessários da segurança jurídica. Gera, ainda, descrédito em relação
às instituições sociais, ao Direito e Poder Judiciário, o que representa um verdadeiro
óbice ao desenvolvimento nacional. O desenvolvimento de um país tem como base
propulsora instituições fortes, dotadas de eficiência e confiança da sociedade em
fornecer respostas prontas com a qualidade esperada para satisfazer seus anseios,
algo que, no Brasil, ainda está em construção.

The Application of Actio Nata when Forwarding Fiscal Enforcement Actions and its Consequences in
Development and Legal Security
Abstract: The article studies the deadline for the redirection of tax enforcement action and the position
adopted by the courts. First, it discusses the tax liability with the analysis of the legal prescription governing
the redirection. Then it examines deadline provided for it by Article 174, I, of the National Tax Code, and the
constitutional legitimacy of the suspension prescribed in Article 40 of the Tax Enforcement Action, dealing
with tax and procedural issues in a complex and interdisciplinary way. Then, exposes how the theory of actio
nata was raised. Finally, the article presents arguments supporting the misconception that lies in sustaining
the need to adopt this theory in tax foreclosures. Therefore, it examines the principle of legal certainty and
the issue of the absence of deadlines for tax debts, as well as the obstacle to national development that
legal indeterminacy represents.

Key words: Taxation. Fiscal enforcement action. Development. Legal Security. Complexity.

Curitiba, 18 de março de 2014.

Referências
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Andre Folloni, Lara Bonemer Azevedo da Rocha

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Vasconcelos, 3ª Câm. Cív. DJe, 22 jun. 2011.

28 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 13-29, jul./set. 2014
A aplicação da actio nata no redirecionamento das execuções fiscais e seus reflexos no desenvolvimento...

BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. AG 0014241-44.2011.404.0000, Primeira Turma,


Relator Álvaro Eduardo Junqueira, DE, 18 jan. 2012.
BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. AG 0000533-24.2011.404.0000, 2ª Turma,
Rel. Otávio Roberto Pamplona, DE, 04 maio 2011.
BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4a Região. Apelação Cível nº 0002491-84.2012.404.9999/RS.
Rel. Des. Federal Luciane Amaral Corrêa Münch, 05 jul. 2012.
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

FOLLONI, Andre; ROCHA, Lara Bonemer Azevedo da. A aplicação da actio nata no
redirecionamento das execuções fiscais e seus reflexos no desenvolvimento e na
segurança jurídica. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte,
ano 22, n. 87, p. 13-29, jul./set. 2014.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 13-29, jul./set. 2014 29
A contribuição da teoria estruturalista
para o processo constitucional no
Estado Democrático de Direito
brasileiro – Reflexões sobre a crítica de
Hermes Zaneti Júnior à teoria de Fazzalari1

Marcos Rezende
Mestrando em Direito Processual pela PUC Minas. Graduado em Direito pela UFMG. Pesquisador.

Resumo: Na construção do Estado Democrático de Direito, o processo constitucional revela-se essencial


para assegurar a implementação dos direitos e garantias fundamentais. O processo constitucional
se apoia na teoria estruturalista, para realizar-se como procedimento em contraditório e garantir uma
decisão comparticipada. O Prof. Hermes Zaneti Júnior, em obra recente, disserta sobre o tema processo
constitucional, objetivando investigar a tradição híbrida (common law e civil law) do direito processual
civil brasileiro. Em determinado excerto da obra, o Prof. Hermes Zaneti afirma reduzida a contribuição da
teoria de Fazzalari ao direito processual brasileiro. É sobre a pertinência dessa crítica que o estudo ora
apresentado se debruça e concede uma resposta à sua reflexão.
Palavras-chave: Estado Democrático de Direito. Processo constitucional. Contraditório. Fundamentação
da decisão. Teoria estruturalista do processo. Elio Fazzalari. Hermes Zaneti Júnior. Protagonismo judicial.
Crítica. Common Law.

Sumário: Introdução – 1 O Estado Democrático de Direito – 2 O Estado Democrático de Direito e o processo


constitucional – 2.1 O processo constitucional e o contraditório – 2.2 O contraditório e a fundamentação da
decisão – 2.3 O protagonismo judicial e o processo constitucional – 3 A teoria estruturalista do processo –
4 A influência do common law no ordenamento jurídico brasileiro – 5 A crítica de Hermes Zaneti Júnior à
teoria de Fazzalari – Considerações finais – Referências

Introdução
Na construção do sempre inacabado Estado Democrático de Direito, o
processo constitucional revela-se essencial para garantir, por meio da jurisdição, a
implementação dos direitos e garantias fundamentais. O processo constitucional,
orientado pelos princípios da democracia, do devido processo legal, do contraditório,

Artigo elaborado sob a orientação do Professor Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias, Mestre e Doutor em Direito
1

pela UFMG. Professor e Vice-Diretor da Faculdade Mineira de Direito da PUC Minas. Membro Efetivo do Instituto
dos Advogados de Minas Gerais. Advogado militante em Minas Gerais.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 31-59, jul./set. 2014 31
Marcos Rezende

da fundamentação da decisão, se apoia na teoria estruturalista, idealizada por


Elio Fazzalari, para realizar-se como um procedimento em contraditório, contributo
indispensável para garantir uma decisão comparticipada.
Em recente obra publicada,2 Hermes Zaneti Júnior disserta sobre o tema
processo constitucional. O objetivo principal da obra de Zaneti, conforme afirma o
autor, é investigar a tradição híbrida (common law e civil law) do direito processual
civil brasileiro e verificar se esta configuração é a mais apropriada para solucionar
problemas a partir da institucionalização de procedimentos mais democráticos para a
tomada de decisão no Estado Democrático Constitucional brasileiro.3 Hermes Zaneti
aborda, com frequência,4 pensamentos de Elio Fazzalari e, em determinado excerto,
afirma que: “a contribuição de Fazzalari para a compreensão do processo como razão
prática procedimental fica reduzida e inviabilizada no direito brasileiro”.5
Este trabalho examina se há pertinência na afirmação de Hermes Zaneti em
relação à crítica que faz à teoria de Fazzalari. A pesquisa se estruturou em estudos
científicos e históricos sobre o Estado Democrático de Direito, o processo constitucional
na perspectiva democrática (Escola Mineira de Processo), o contraditório, a
fundamentação da decisão, o protagonismo judicial e a teoria estruturalista6 de Elio
Fazzalari. Há um tópico específico para avaliar a aproximação dos sistemas do civil
law e do common law, uma vez que Zaneti utiliza a figura do judge-made do common
law para trabalhar sua teoria. Finalmente, analisa-se a crítica de Hermes Zaneti Júnior
à teoria de Fazzalari, concedendo-se uma resposta à sua reflexão.

1 O Estado Democrático de Direito


Ainda não foi possível projetar um sistema político que atenda os interesses
de toda a sociedade. A partir das revoluções liberais do século XVIII, com as
Constituições americana de 1776 e a francesa de 1789,7 acolhe-se a democracia

2
ZANETI JÚNIOR, Hermes. Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2007. A obra tem origem em sua tese de doutorado A constitucionalização do processo:
a virada do paradigma racional e político no processo civil brasileiro do Estado Democrático constitucional.
3
ZANETI JÚNIOR, Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro, p. 1.
4
ZANETI JÚNIOR, Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro, 2007. p. 62, 85,
115, 171, 186, 190, 195, 197, 198, 199, 200, 207, 208, 209, 216, 217, 265.
5
ZANETI JÚNIOR, Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro, p. 200.
6
A denominação “teoria estruturalista” é adotada por Ronaldo Brêtas, em razão de Elio Fazzalari conceber o
processo como espécie de procedimento, que se desenvolve obedecendo a uma predeterminada estrutura
normativa sob a presença contraditório. A expressão “estrutura normativa” é utilizada várias vezes por Aroldo
Plínio Gonçalves na obra Técnica processual e teoria do processo, por meio da qual apresenta a teoria
estruturalista do processo ao direito processual brasileiro e também pelo próprio Fazzalari (BRÊTAS, Ronaldo
de Carvalho Dias. Processo constitucional e Estado Democrático de Direito. 2. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte:
Del Rey, 2012. p. 90-91.
7
BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. São Paulo: Brasiliense, 2000. p. 34.

32 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 31-59, jul./set. 2014
A contribuição da teoria estruturalista para o processo constitucional no Estado Democrático de Direito...

representativa8 como sistema político factível, apesar de todas as suas limitações,


desacertos, incoerências e retóricas. Em sistemas sociais complexos, caracterizados
por uma tematização diferenciada de questões econômicas, políticas, religiosas,
ecológicas, culturais,9 há uma incontável diversidade de grupos legítimos, os quais,
como também povo, têm, na democracia, o direito de participar da formação do
Estado,10 estar representados politicamente e ser respeitados em suas liberdades,
sob pena de sua extinção ou segregação, como ocorre em Estados totalitários.11
A teoria do Estado Direito está umbilicalmente vinculada à teoria do Estado
Moderno.12 A influência kantiana da razão sobre a formação do Estado de Direito
se expressa em uma estrutura legal normativa, de bases democráticas liberais.13
A teoria do Estado de Direito surge para se contrapor à teoria do Estado de Polícia.14
A expressão “Estado de Direito” começa a ser utilizada na Alemanha por Robert
Von Mohl, em meados do século XIX, originária da justaposição dos termos Recht, que
se traduz por Direito, e Staat, que significa Estado, resultando no termo Rechtsstaat.
Originariamente, o termo Rechtsstaat se relacionava ao uso racional do direito para o
bem das pessoas, e não como forma de Estado ou de governo.15
A teoria do Estado, concebida inicialmente na Alemanha no século XIX, de
caráter liberal, foi construída sobre uma base que se fundamentava na negação da
noção divina de Estado e que valorizava a preservação da liberdade, a segurança das
pessoas, a propriedade privada, a organização das atividades essenciais do Estado,
o reconhecimento de direitos de liberdade e igualdade do cidadão, a independência
dos juízes, a separação das funções estatais, a representação popular no parlamento
e a supremacia da lei.16
No século XX, o Estado de Direito se consolida a partir dos postulados da
supremacia da lei, sendo esta originária da função legislativa; da separação das

8
A democracia representativa demonstra sinais de insuficiência e decadência. A democracia participativa, ainda
incipiente, apresenta-se mais adequada ao Estado Democrático, pela maior participação do povo nos processos
de decisão e na produção de inputs políticos (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria
da Constituição. 3. ed. Reimpressão. Lisboa: Almedina, 1998. p. 282).
9
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito processual constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos,
2001. p. 219-221.
10
Estado aqui se refere a Estado com qualidades constitucionais, ou seja Estado de Direito e Estado Democrático.
CANOTILHO, Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 89.
11
Nesse mesmo sentido, a opinião de André Del Negri: “As sociedades totalitárias são avessas ao debate.
Silenciam o discurso dos atores sociais, tanto quanto. Em face dessa não possibilidade de manifestar opinião,
o outro é anulado. Por isso, a importância de estudos que buscam a emancipação dos indivíduos num contexto
que privilegie a pluralidade de vozes e de visões de mundo. Daí a importância da teoria da democracia, das
soluções legítimas para os problemas sociais, da ‘inclusão do outro’, da contestação, da racionalidade, das
‘sociedades abertas’, de um razão dialogal, e não subjetiva, de decisões compartilhadas e não solitárias”.
(DEL NEGRI, André. Processo constitucional e decisão interna corporis. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 33).
12
BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Processo constitucional e Estado Democrático de Direito. 2. ed. rev. e
ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2012. p. 48.
13
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Regimes políticos. São Paulo: Resenha Universitária, 1997. p. 126-127.
14
BRÊTAS, Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 49.
15
BRÊTAS, Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 49.
16
BRÊTAS, Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 50.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 31-59, jul./set. 2014 33
Marcos Rezende

funções do Estado (legislativa, administrativa e jurisdicional); da atuação da


Administração Pública em observância à legalidade e sob controle jurisdicional; dos
direitos e liberdades fundamentais das pessoas e suas garantias.17
Ressalta-se que, no Estado de Direito, há normas que se referem ao exercício
do poder estatal, mas há também normas que asseguram às pessoas o poder
jurídico de atuarem contra o Estado, quando este agride de forma arbitrária e ofensiva
seus direitos.18 Não pode o Estado extrapolar ou abusar dos poderes que lhe foram
outorgados, sob pena de violar os princípios constitucionais.19
O Estado moderno encontra-se organizado sob uma Constituição.20 Por
influência do constitucionalismo francês e norte-americano, o Estado se estruturou
em conformidade com uma ordem jurídica constitucional, surgindo o Estado de
Direito Constitucional, que se rege pelos direitos e liberdades fundamentais,21 pela
separação das funções estatais e pelo princípio da legalidade.22 O constitucionalismo
se fortalece e a Constituição23 passa a ser um conjunto de normas que regula o
Estado e o exercício do poder. Porém, a origem deste poder é fator determinante para
definir o caráter democrático ou liberal do Estado.
O Estado Constitucional moderno estrutura-se como Estado Democrático de
Direito,24 porque o povo é quem legitima a própria existência do Estado. O direito

17
BRÊTAS, Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 51.
18
BRÊTAS, Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 52.
19
“Os princípios baixaram primeiro das alturas montanhosas e metafísicas de suas primeiras formulações
filosóficas para a planície normativa do Direito Civil. Transitando daí para as Constituições, noutro passo largo,
subiram ao degrau mais alto da hierarquia normativa” (BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional.
25. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 293).
20
Em relação à noção de Constituição, Raul Machado Horta relata que: “A ideia de Constituição despontou no
mundo antigo, preocupando Aristóteles em sua Política, penetrou na Idade Média com a Magna Carta e ganhou
conteúdo mais nítido e preciso na elaboração doutrinária do conceito de Lex Fundamentalis, nos séculos XVII
e XVIII”. E dando continuidade, afirma que: “Há, entretanto, concordância entre os autores quando acentuam
que a elaboração doutrinária do conceito de Lex Fundamentalis constitui uma das apreciáveis contribuições
da École du droit de la nature et des gens, que Edgard Bodenheimer, para distingui-la, denomina de Escola
Clássica do Direito Natural. É especialmente entre os filósofos da primeira fase dessa escola — assinalada
pelo advento do mercantilismo, na economia, pelo absolutismo ilustrado, na política, e pelo protestantismo,
na religião — que se deve procurar as fontes doutrinárias da concepção de Lex Fundamentalis” (HORTA, Raul
Machado. Estudos de direito constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 1995, p. 133-134).
21
“As normas constitucionais definidoras de direitos são as que tipicamente geram direitos subjetivos, investindo
o jurisdicionado no poder de exigir do Estado — ou de outro eventual destinatário da norma — prestações
positivas ou negativas, que proporcionem o desfrute dos bens jurídicos nelas consagrados. Nesta categoria se
incluem todas as normas concernentes aos direitos políticos, individuais, coletivos, sociais e difusos previstos
na Constituição” (BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 2. ed. rev. São Paulo:
Saraiva, 1998, p. 228).
22
BRÊTAS, Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 54.
23
OMMATI, José Emilio Medauar. Teoria da Constituição. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. p. 18-21.
24
Na lição de Gilmar Mendes, Inocêncio Coelho e Paulo Gustavo Gonet: “Em que pesem pequenas variações
semânticas em torno desse núcleo essencial, entende-se como Estado Democrático de Direito a organização
política em que o poder emana do povo, que o exerce diretamente ou por meio de representantes, escolhidos
em eleições livres e periódicas, mediante sufrágio universal e voto direito e secreto, para o exercício de
mandatos periódicos, como proclama, entre outras, a Constituição brasileira”. MENDES, Gilmar Ferreira;
MÁRTIRES COELHO, Inocêncio; GONET BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de direito constitucional. 2. ed. São
Paulo: Saraiva, 2008. p. 149.

34 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 31-59, jul./set. 2014
A contribuição da teoria estruturalista para o processo constitucional no Estado Democrático de Direito...

e o poder devem ser exercidos de forma democrática. Afirma Canotilho que: “Só o
princípio da soberania popular segundo o qual ‘todo o poder vem do povo’ assegura e
garante o direito à igual participação na formação democrática da vontade popular”.25
E Canotilho arremata afirmando que o Estado Democrático de Direito se fundamenta
em dois pilares principais, “o Estado limitado pelo direito e o poder político legitimado
pelo povo”.26
O Estado Constitucional Democrático de Direito surge do arranjo dos
princípios do Estado Democrático e do Estado de Direito conformado por normas
constitucionais.27 Resulta historicamente da superação de organizações políticas
tradicionais de Estados, de novas orientações políticas, da participação popular e da
adequação dos objetivos do Estado às necessidades do povo. E, para confirmar a
orientação democrática do Estado de Direito a transformá-lo em Estado Democrático
de Direito, André Del Negri afirma: “Verifica-se, portanto, que o Estado na Democracia
é estabilizador dos atos produzidos no espaço democrático (espaço demarcado
pelas leis construídas em discursividade argumentativa testificável). Na sociedade
moderna, fundada na racionalidade comunicativa, não se admite por parte do Estado
(Administração Governativa) nenhum tipo de sobressaltos e afronta aos Direitos
Fundamentais, pois ele é, senão, o próprio lugar de garantia jurídica da legalidade
e legitimidade”.28
A democracia é um princípio constitucional que legitima o exercício do poder, cujo
único titular é o povo. A respeito da noção de povo, afirma Ronaldo Brêtas, invocando
entendimento de Jorge Miranda, “Como povo, há de entender a comunidade política
do Estado, composta de pessoas livres, dotadas de direitos subjetivos umas em face
de outras e perante o próprio Estado, fazendo parte do povo tanto os governados
como os governantes, pois estes são provenientes do povo, sejam quais forem
suas condições sociais, todos obedientes às mesmas normas jurídicas, sobretudo à
Constituição, que é o estatuto maior do poder político”.29
O Estado30 que adota, não retoricamente, o princípio da democracia como
fundamento de sua organização interna, condiciona-se a praticar e promover

25
CANOTILHO, Jose Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 3. ed. Reimpressão. Lisboa:
Almedina, 1998. p. 96.
26
CANOTILHO, Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 227.
27
BRÊTAS, Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 58.
28
DEL NEGRI. André. Controle de constitucionalidade no processo legislativo: teoria da legitimidade democrática.
Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 46.
29
BRÊTAS, Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 59.
30
Conforme assinala Canotilho, “Se quisermos um Estado Constitucional assente em fundamentos não
metafísicos, temos de distinguir claramente duas coisa: (1) uma é a da legitimidade do direito, dos direitos
fundamentais e do processo de legislação no sistema jurídico; (2) outra é a da ‘legitimidade de uma ordem
de domínio e da legitimação do exercício do poder político’. O Estado ‘impolítico’ do Estado de direito não
dá resposta a este último problema: de onde vem o poder. Só o princípio da soberania popular segundo o
qual ‘todo poder vem do povo’ assegura e garante o direito de igual participação na formação democrática da
vontade popular” (Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 96).

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 31-59, jul./set. 2014 35
Marcos Rezende

simultaneamente determinados objetivos essenciais. Entre estes se destacam a


legitimação do exercício do poder pelo povo, a escolha dos seus representantes
pelo voto direto, secreto e igual, a participação popular na solução de problemas e
questões da nação,31 o respeito à liberdade, a preservação da dignidade humana,32
o respeito às minorias.
O Estado Democrático de Direito, instituído sobre os princípios da supremacia
da Constituição e o da reserva legal, somente é construído por meio da participação
popular. O Estado, na atuação de suas funções, tem o dever de assegurar a qualquer
um do povo o efetivo exercício de seus direitos civis, políticos, sociais, econômicos,
culturais, individuais e coletivos. E a garantia deste exercício se promoverá por
meio do processo constitucional, “instituição constitucionalizada garantidora de
direitos procedimentais pelos princípios do contraditório, isonomia, ampla defesa,
anterioridade da lei, dever da jurisdição, direito ao advogado, liberdade incondicionada
de requerer, caracterizadores do due process que abrange o direito material do
substantive due process modulador dos procedimentos (procedural due process)
para assegurar efetividade”, ou seja, “metodologia normativa de garantia dos
direitos fundamentais”.33
Nessa perspectiva, a Constituição brasileira prestigia em seu texto os princípios
do Estado Democrático e do Estado de Direito, em normas constitucionais explícitas,
justamente no título que trata dos princípios fundamentais da República Federativa do
Brasil. Representa, assim, “um Estado submetido às normas do direito e estruturado
por leis, sobretudo a lei constitucional, um Estado no qual se estabeleça estreita
conexão interna entre dois grandes princípios jurídicos, democracia e Estado de Direito”.34
E é a partir desta base principiológica constitucional democrática que será possível
garantir o direito fundamental à jurisdição e ao devido processo constitucional,35 para
que o Estado cumpra os seus objetivos, atendendo às necessidades do povo.

2 O Estado Democrático de Direito e o processo


constitucional
A evolução do direito constitucional na Europa, sobretudo após a segunda
grande guerra, e no Brasil, principalmente a partir da década de 1990, proporcionou

31
BRÊTAS, Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 64.
32
GOYARD-FABRE, Simone. O que é a democracia? A genealogia filosófica de uma grande aventura humana. São
Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 14.
33
BRÊTAS, Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 74.
34
BRÊTAS, Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 54.
35
“A formulação de um Processo Constitucional que possa ser instrumento de absorção das crises e dos
conflitos, a nível institucional, torna-se necessária para o Estado democrático, que somente assim poderá
corresponder aos apelos da sociedade contemporânea” (BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Processo
constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 354).

36 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 31-59, jul./set. 2014
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o surgimento do fenômeno que se denomina “constituticionalização do direito”,


que compreende duas principais características: a expansividade das normas
constitucionais, com força normativa sobre todo o ordenamento, e o condicionamento
da validade das normas infraconstiticionais aos princípios e regras presentes na
Constituição.36 Em respeito a esse fenômeno, todas as normas infraconstitucionais
devem ser interpretadas e aplicadas sob o prisma constitucional.
Com o surgimento do neoconstitucionalismo, preponderam os direitos
fundamentais (direitos humanos positivados na Constituição), resultando na criação
de um bloco normativo de direitos, liberdades e garantias. Entre esses direitos se
destaca o direito à jurisdição, que permite postular do Estado a tutela jurisdicional
para a proteção dos direitos individuais, coletivos e difusos.
O Estado, ao adotar, simultaneamente, os princípios do Estado Democrático
e do Estado de Direito, coerentemente, deve utilizar-se de um aparato linguístico-
jurídico suficiente para dar cumprimento aos fundamentos aos quais aderiu.
Na estrutura do Estado Democrático de Direito, a função jurisdicional se configura
como “atividade-dever do Estado, prestada pelos órgãos competentes, indicados no
texto da Constituição, somente exercida sob petição da parte interessada (direito
de ação) e mediante a garantia do devido processo constitucional”.37 A jurisdição,
nesse contexto, somente se concretiza mediante a observância dos princípios e
regras delineados na Constituição, quais sejam, o juízo natural, a ampla defesa, o
contraditório, a fundamentação da decisão com base na reserva legal.38
No exercício da função jurisdicional, o Estado-Jurisdição, mediante provocação,
em conjunto com os interessados, deve aplicar as técnicas processuais apropriadas
para resolver o conflito de interesses. Para tanto, o Estado e as partes devem
observar as normas39 do ordenamento jurídico, que estabelecem os direitos e os
procedimentos para exercê-los, os deveres, os limites e as restrições ao exercício
do poder pelo Estado, sempre orientados a assegurar os direitos e garantias
fundamentais da pessoa humana.40 Desta forma, a função jurisdicional no Estado

36
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a
construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 352.
37
BRÊTAS, Processo constitucional e Estado Democrático de Direito., p. 32.
38
BRÊTAS, Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 32.
39
A respeito das normas jurídicas e de suas espécies, princípios e regras, Robert Alexy esclarece que: “A
distinção entre regras e princípios constitui, além disso, a estrutura de uma teoria normativo-material dos
direitos fundamentais e, com isso, um ponto de partida para a resposta à pergunta acerca da possibilidade
e dos limites da racionalidade no âmbito dos direitos fundamentais. Nesse sentido, a distinção entre regras
e princípios é uma das colunas-mestras do edifício da teoria dos direitos fundamentais. Não faltam indícios
de que a distinção entre regras e princípios desempenha um papel no contexto dos direitos fundamentais. As
normas de direitos fundamentais são não raro caracterizadas como ‘princípios’” (ALEXY, Robert. Teoria dos
direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 85-86). BRÊTAS, Processo
constitucional e Estado Democrático de Direito, 2012, p. 105-114. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios,
p. 35-40.
40
BRÊTAS, Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 9.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 31-59, jul./set. 2014 37
Marcos Rezende

Democrático de Direito deve observar fielmente o processo constitucional “agindo


sempre, de acordo com os Pilares Estruturais do Processo: Vivência Digna pela
Liberdade e Responsabilidade de Agir em Contraditório, Ampla Defesa, Acesso ao
Direito, Isonomia, Racionalidade Temporal e Procedimental e Fundamentação dos
Provimentos, garantindo, assim, a adequada manifestação dos copartícipes da
norma na formação compartilhada do ato estatal que poderá alcançar a liberdade ou
o patrimônio do cidadão”.41
O processo constitucional, concebido pela teoria constitucionalista do
processo, desenvolvida por Fix Zamudio, com intensos estudos publicados sobre
o tema Constituição e processo, e sistematizada no Brasil por Baracho,42 tem
como base a supremacia das normas constitucionais sobre as normas processuais
infraconstitucionais. Na estrutura de um ordenamento jurídico estruturalmente
complexo, surge, como elemento deste, o processo constitucional, exigindo
incessantemente o controle da conformidade normativa ordinária com a Constituição.43
O processo na teoria constitucionalista se afirma como garantia constitucional,
instrumentalizando a jurisdição, a partir de uma metodologia normativa.44 Ao exercer
a função jurisdicional, o Estado está cingido a uma determinada estrutura normativa,
de suporte constitucional, que garanta a participação adequada das partes e uma
postura objetiva por parte do juiz.45
Ao se optar por uma abordagem processual objetivamente racionalizada, o
processo constitucional recusa a utilização de conceitos metajurídicos na solução
de conflitos, uma vez que o processo constitucional democrático se desenvolve sob
uma técnica cuja finalidade não é a busca de decisões justas, mas, conforme afirma
Rosemiro Pereira Leal, “[...] o processo não busca ‘decisões justas’, mas assegura
as partes participarem isonomicamente na construção do provimento, sem que o
impreciso e idiossincrático conceito de ‘justiça’ da decisão decorra da clarividência

41
TAVARES, Fernando Horta; CUNHA, Maurício Ferreira. A codificação no direito e a temática recursal no projeto
do novo código de processo civil brasileiro. In: BARROS, Flaviane de Magalhães; BOLZAN DE MORAIS, José
Luis (Coord.). Reforma do processo civil: perspectivas constitucionais. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 246.
42
Afirma o Prof. José Alfredo de Oliveira Baracho que: “A origem do Processo Constitucional moderno está
nos diversos procedimentos aceitos para a declaração da inconstitucionalidade das leis. [...]. O Processo
Constitucional visa à proteção dos princípios constitucionais, especialmente aqueles conferidos aos indivíduos,
para se oporem às decisões legítimas das autoridades públicas” (BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Processo
constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 346).
43
BARACHO, Processo constitucional, p. 347.
44
BRÊTAS, Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 93-94.
45
Preciso o esclarecimento de Brêtas quando afirma que: “O Estado só pode agir, se e quando chamado
a exercer a função jurisdicional, dentro de uma estrutura metodológica construída normativamente (devido
processo legal), de modo a garantir adequada participação dos destinatários na formação do seu ato decisório
imperativo. Com essa metodologia, afasta-se qualquer subjetivismo ou ideologia do agente público decisor
(juiz), investido pelo Estado do poder de julgar, sem espaço para a discricionariedade ou a utilização de
hermenêutica canhestra fundada no prudente livre arbítrio do julgador ou prudente critério do juiz, incompatível!
com os postulados do Estado Democrático de Direito” (BRÊTAS, Processo constitucional e Estado Democrático
de Direito, 2012, p. 36).

38 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 31-59, jul./set. 2014
A contribuição da teoria estruturalista para o processo constitucional no Estado Democrático de Direito...

do julgado, de sua ideologia ou magnanimidade. Afaste-se desde logo ser o processo


o ‘tema-ponte a interligar o processo civil com a justiça social’ ou o modo de fazer
aflorar toda uma problemática inserida em um contexto social e econômico, cuja
solução coubesse à sapiência do juiz”46 (grifos no original).
Assim, o processo constitucional democrático se estrutura em uma função de
garantia constitucional, cuja decisão se constrói democraticamente entre as partes e
o órgão julgador. O processo democrático não é um vínculo de sujeição das partes ao
órgão julgador, decidindo solitariamente quais os efeitos recairão sobre as mesmas,
pois, se assim o fosse, o processo aplicado seria aquele a que se refere a teoria
relacionista, de caráter socializante.

2.1 O processo constitucional e o contraditório


O processo constitucional,47 forma construtiva e estruturada de um espaço
procedimental cognitivo-argumentativo democratizado,48 se realiza sob o devido
processo legal, com observância dos princípios do contraditório, da ampla defesa, da
fundamentação da decisão, em face do caso concreto. O princípio do contraditório e
o princípio da fundamentação da decisão são essenciais na realização do processo
constitucional democrático.
A toda e qualquer espécie de processo (jurisdicional, administrativo, legislativo)
devem estar assegurados o contraditório e a ampla defesa, conforme preceitua
expressamente o art. 5º, LV da Constituição.49 Esta configuração processual ampla
do contraditório somente se deu no Brasil com a Constituição de 1988, influenciada
pelo neoconstitucionalismo, surgido no pós-Segunda Guerra.
O princípio do contraditório, “viga-mestra da garantia constitucional, por isto
fundamental, mais extensa do devido processo legal, destarte, formatando o devido
processo constitucional”,50 é uma garantia fundamental da pessoa humana e somente
com a participação efetiva das partes, em igualdade de condições, é possível realizar
a defesa dos seus interesses de forma democrática. O contraditório no contexto

46
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 68.
47
“A noção de modelo constitucional de processo permite suprimir a dicotomia entre direito processual
constitucional e direito constitucional do processo, visto que tal modelo é constituído de uma base
principiológica uníssona aplicável a todos e qualquer processo, já que todo processo é constitucional, seja
em razão de sua fundamentação ou de sua estrutura, pois é garantia constitutiva dos direitos fundamentais
dos sujeitos de direito” (BARROS, Flaviane de Magalhães. O modelo constitucional de processo e o processo
penal: a necessidade de uma interpretação das reformas do processo penal a partir da Constituição. In:
MACHADO, Felipe Daniel Amorim; CATTONI DE OLIVEIRA. Marcelo Andrade (Coord.). Constituição e processo:
a contribuição do processo ao constitucionalismo brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. p. 333.
48
BRÊTAS, Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 34.
49
Art. 5º, LV, Constituição Federal. BRASIL. Constituição Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>.
Acesso em: 1º jun. 2012.
50
BRÊTAS, Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 90.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 31-59, jul./set. 2014 39
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democrático se dá com a “igual oportunidade de igual tratamento, que se funda na


liberdade de todos perante a lei”.51
O prestígio que o contraditório ocupa no processo constitucional é destacado
por Cattoni de Oliveira, citado por Ronaldo Brêtas, na seguinte passagem: “Por
isso, para Cattoni de Oliveira, ‘o contraditório é uma das garantias centrais dos
discursos de aplicação jurídica institucional e é condição de aceitabilidade racional do
processo jurisdicional’. Conclui, dito autor, nessa linha de raciocínio, que processo ‘é
procedimento discursivo, participativo, que garante a geração de decisão participada’.
Ainda esclarece Cattoni de Oliveira que a concepção de processo garantidor da geração
de decisão participada resulta da associação entre a perspectiva reconstrutiva da
teoria discursiva do direito e da democracia, elaborada por Habermas, e a tese
formulada por Fazzalari, exposta e desenvolvida, no Brasil, por Aroldo Plínio Gonçalves,
concebendo o processo como procedimento em contraditório. Como resultante da
referida associação, o processo deve ser entendido espécie de procedimento que se
realiza em contraditório, garantindo-se a simétrica participação dos interessados na
preparação do provimento estatal”.52
O contraditório, considerado endoprocessualmente, não constitui uma obrigação
ou um dever para as partes. Trata-se de uma faculdade para a parte que queira utilizá-lo,
ou a vir a tornar-se um ônus para a parte que não o utilizou.53 Porém, para o juiz,
o contraditório é um dever, pois, configura para o órgão julgador uma obrigação de
oportunizar às partes a realização do contraditório. E, da inobservância desse dever
pelo juiz, surge uma pretensão para a parte prejudicada, a ser satisfeita pelo exercício
do direito de ação, espécie do direito constitucional de petição, com a interposição
do recurso apropriado.
Wach percebeu, em 1865, a relevância do contraditório para o processo. E
esta importância se ampliou com as contribuições, entre outras, de Calamandrei
(1965), Frederico Marques (1982),54 e, mais recentemente, pela presença expressa
do princípio do contraditório na Constituição de 1988, como garantia fundamental e
como elemento essencial do processo constitucional.
O contraditório, em sua configuração atual, deixa de ser apenas a ciência
bilateral dos atos e termos processuais, para se transformar em uma dupla garantia:
a) possibilidade de as partes, durante todo o processo, influírem em todos os
atos, provas e questões, que sejam potencialmente relevantes para a decisão;
b) de a decisão estar obrigatoriamente vinculada com o que foi debatido durante
o processo.

51
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992, p. 127.
52
BRÊTAS, Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 33-34.
53
NUNES, Dierle José Coelho. O princípio do contraditório. In: Revista IOB — RDCPC n. 29. São Paulo, maio-jun.
2004, p. 79.
54
BRÊTAS, Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 96-97.

40 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 31-59, jul./set. 2014
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2.2 O contraditório e a fundamentação da decisão


No processo constitucional, a fundamentação da decisão deve formar-se a partir
dos debates realizados no decorrer do procedimento, em conformidade com o objeto
do contraditório e com as normas do ordenamento jurídico, e não a partir da atividade
criadora e isolada do juiz,55 tal como pode ocorrer na teoria processual da relação
jurídica. Percebe-se, claramente, que a participação no procedimento e na construção
da decisão são características essencialmente democráticas. Conforme assevera
Humberto Theodoro Júnior, invocando Trocker, “Não podendo o juiz decidir nada que
não fosse exposto ao debate prévio das partes, e devendo o juiz levar em conta esse
debate, criava-se a garantia para todos os sujeitos do processo de contribuir de forma
crítica e construtiva para a formação do julgado”.56
A fundamentação da decisão está calcada em princípio constitucional, direito
fundamental,57 previsto no art. 93, IX e X da Constituição. Este direito fundamental
condiciona a decisão à participação das partes e à conformidade com o ordenamento
jurídico, de forma a evitar arbitrariedades na conclusão do procedimento. A motivação
de decisão judicial ou administrativa no Estado Democrático de Direito se caracteriza
como requisito de validade, legitimando o exercício do poder. Poder que se realiza no
exercício das funções do Estado. A ausência de fundamentação da decisão configura
uma inconstitucionalidade. A fundamentação da decisão exige uma relação necessária e
lógica com o objeto do contraditório. O que foi discutido no contraditório deve ser a base
da decisão. Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero, neste sentido, registram que: “O
problema da extensão do dever de motivação das decisões judiciais tem de ser resolvido à
luz do conceito de contraditório. É por essa razão que o nexo entre os conceitos é radical.
E a razão é simples: a motivação das decisões judiciais constitui o último momento de
manifestação do direito ao contraditório e fornece seguro parâmetro para aferição da
submissão do juízo ao contraditório e ao dever de debate que dele dimana”.58
José Carlos Barbosa Moreira registra que a motivação das decisões se insere
mais adequadamente no âmbito das garantias fundamentais do que em qualquer
outro nível normativo infraconstitucional. E o autor afirma que este princípio está

55
A respeito de decisão judicial André Del Negri faz a seguinte observação, “Decisão e totalitarismo — os dois
maiores assuntos impregnados de tirania ao longo da história da humanidade — nunca foram esquecidos.
[...]. Do ponto de vista historiográfico, há versões básicas de como a magistratura usou e abusou do discurso
de autoridade. Embora a acusação pareça excessiva, o acúmulo de fatos, em detrimento da análise, não
deixa dúvida de que a magistratura apoiou-se em algumas teorias autoritárias. Como diz Elpídio Nunes, ‘há
de haver uma forte justificativa histórica para que, em pleno século XXI, ainda visualizemos a jurisdição como
um espírito divino, que desceu a Terra e aqui se incorporou na pessoa do juiz’” (DEL NEGRI. André. Processo
constitucional e decisão interna corporis. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 33).
56
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Constituição e processo: desafios constitucionais da reforma do processo civil
no Brasil. In: MACHADO, Felipe Daniel Amorim; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade (Coord.). Constituição e
processo: a contribuição do processo ao constitucionalismo brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. p. 252.
57
SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 665.
58
SARLET; MARINONI; MITIDIERO. Curso de direito constitucional, p. 666-667.

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presente nas Constituições da Itália, Bélgica, Colômbia, Grécia, México59 e, de


forma expressa, na brasileira de 1988. A fundamentação é uma garantia das
partes, pois expressa a posição parcial ou imparcial do julgador, juntamente com a
conformidade ou desconformidade da decisão com o ordenamento jurídico.60 A partir
da fundamentação, permite-se às partes verificarem se o juiz apreciou corretamente
as questões suscitadas no processo,61 abrindo às partes irresignadas o direito à
interposição de recursos previstos no ordenamento jurídico.
A fundamentação da decisão no Estado Democrático de Direito se vincula
primordialmente ao objeto do contraditório e ao princípio da reserva legal.62 É no
contraditório que ocorre o diálogo das partes sobre a pretensão do autor e sobre
as controvérsias verificadas no curso do procedimento. Decisão que não considere
a argumentação produzida pelas partes no desenvolvimento do procedimento
será inconstitucional e não poderá sequer ser considerada como pronunciamento
jurisdicional.63 Além disso, a exigência constitucional da fundamentação da decisão
se associa ao controle da atividade jurisdicional pelo povo (no sentido de uma
avaliação ampla) e pelas as partes, em sentido estrito, permitindo, às mesmas,
avaliar fatores relacionados à inconstitucionalidade, subjetividade, racionalidade da
decisão e estruturação técnico-jurídica para interposição de recursos.64
Brêtas adverte que a fundamentação da decisão deve harmonizar-se com
a jurisdição, desde que esta se exerça em observância ao princípio do Estado
Democrático de Direito.65 Em seguida, assevera que: “No Estado Democrático de
Direito, essa justificação tem de ser feita dentro de um conteúdo estrutural normativo
que as normas processuais impõem à decisão, em forma tal que o agente público
julgador lhe dê motivação racional sob a prevalência do ordenamento jurídico em
vigor e indique a legitimidade das escolhas adotadas, em decorrência da obrigatória
análise dos argumentos desenvolvidos pelas partes, em contraditório, em torno das
questões de fato e de direito sobre as quais estabelecem discussão”.66
A respeito da importância e atualidade da doutrina que relaciona o contraditório à
fundamentação da decisão, Brêtas invoca as considerações de Michele Taruffo para quem
“[...] na verdade, a decisão jurisdicional pode ser entendida como o resultado final da
contraposição dialética travada entre as partes, que é o contraditório, sendo essenciais as

59
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A motivação das decisões jurisdicionais como garantia inerente ao Estado
Democrático de Direito. In: Temas de direito processual civil: segunda série. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 84.
60
BARBOSA MOREIRA, A motivação das decisões jurisdicionais como garantia inerente ao Estado Democrático
de Direito, p. 87
61
BARBOSA MOREIRA, A motivação das decisões jurisdicionais como garantia inerente ao Estado Democrático
de Direito, p. 88.
62
BRÊTAS, Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 122.
63
LEAL, André Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões jurisdicionais no direito processual
democrático. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 105.
64
BRÊTAS, Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 136-137.
65
BRÊTAS, Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 132.
66
BRÊTAS, Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 134.

42 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 31-59, jul./set. 2014
A contribuição da teoria estruturalista para o processo constitucional no Estado Democrático de Direito...

argumentações fáticas e jurídicas que elas desenvolvem, visando à reconstrução do caso


concreto no processo e à correta individualização das questões que serão julgadas”.67
Em razão da relevância do princípio da fundamentação da decisão para a
estabilidade do processo constitucional e do Estado Democrático de Direito, não está
o órgão decisor autorizado a utilizar critérios ideológicos, culturais, sociais, religiosos,
caritativos, magnânimos e discricionários, para motivar a decisão. E no sentido revelado,
afirma Ronaldo Brêtas: “A justificação assim desenvolvida pelo órgão julgador, porém,
não pode ser abstrata, desordenada, desvairada, ilógica, irracional, discricionária ou
arbitrária, formulada no influxo das ideologias, do particular sentimento de justiça, do
livre espírito de equidade, do prudente arbítrio ou das convicções pessoais do agente
público julgador, marginalizando as questões e os argumentos posicionados pelas
partes no processo, porque o julgador não está sozinho no processo, não é o seu
centro de gravidade e não possui o monopólio do saber”.68
André Cordeiro Leal, quando disserta sobre o contraditório e a fundamentação
da decisão, afirma que: “[...] o ato judicante não mais pode ser abordado como
instrumento posto à disposição do Estado para atingir objetivos metajurídicos,
por via de atividade solitária do julgador. A justiça não mais é a do julgador, mas
a do povo (fonte única do Direito), que a faz inserir em leis democraticamente
elaboradas”,69 demonstrando que no Estado Democrático de Direito o órgão julgador
está permanentemente vinculado ao ordenamento jurídico e não à sua consciência.
Assim, o decisor, ao fundamentar a decisão, deve buscar legitimidade nas
argumentações das partes e na aplicação das normas do ordenamento, abstraindo-se
de critérios subjetivos e voluntaristas,70 harmonizando-a ao princípio do Estado
Democrático de Direito.

2.3 O protagonismo judicial e o processo constitucional


Ainda se crê, e por muitos, na doutrina e nos tribunais,71 que é possível conciliar
o processo constitucional democrático e o protagonismo judicial.72 A maioria dos

67
BRÊTAS, Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 138.
68
BRÊTAS, Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 132.
69
LEAL, O contraditório e a fundamentação das decisões jurisdicionais no direito processual democrático, p. 102.
70
THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle José Coelho. Uma dimensão que urge reconhecer ao contraditório
no direito brasileiro: sua aplicação como garantia de influência, de não surpresa e de aproveitamento da
atividade processual. Revista de Processo, v. 168. São Paulo, fev. 2009, p. 137.
71
STJ/AgRg no Resp nº 27988/AL. Rel. Min. José Delgado. 1ª Turma. Julg. 03.04.2001, Publ. DJ, 11 jun. 2001;
STJ/HC nº 94826/SP. Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho. 5ª Turma, Julg.: DJ, 17 abr. 2008. Publ. DJ, 05 maio
2008; STJ/HC nº 16706/RJ. Rel. Min. Hamilton Carvalhido. 6ª Turma. Julg. 19 jun. 2001. Publ. DJ, 24 set. 2001.
72
Conforme assinala Lenio Streck: “Para além da operacionalidade stricto sensu, a doutrina indica o caminho para
a interpretação colocando a consciência ou a convicção pessoal como norteadores do juiz, perfectibilizando essa
‘metodologia’ de vários modos. Ou seja, mesmo que se afirma que a Constituição é o norte da interpretação,
tem-se dito, à saciedade, que o ‘produto’ desse processo hermenêutico ‘deve ficar a cargo da convicção-do-juiz’,
fenômeno que aparece sob o álibi da discricionariedade” (STRECK, Lenio Luiz. O que é isto — “decidir conforme
a consciência”? Protogênese do protagonismo judicial. In: MACHADO, Felipe; CATTONI. Marcelo (Coord.).
Constituição e processo; entre o direito e a política. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 219).

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 31-59, jul./set. 2014 43
Marcos Rezende

processualistas e quase a totalidade dos tribunais brasileiros pensam, afirmam


e defendem que o processo constitucional democrático tem como um dos seus
principais atributos a presença do órgão julgador no eixo principal da jurisdição.73
Esta linha de entendimento, que não se coaduna com o processo constitucional
democrático, implica diversas consequências teóricas e práticas na atuação judicial,
que contribuem negativamente para o atraso da sempre inacabada construção do
Estado Democrático de Direito.
O pior nesta quadra é que o protagonismo judicial é capaz de se ocultar em
formas pseudodemocráticas, a realizar uma “justiça do juiz”74 no exercício da função
jurisdicional “virtuosa”. A função jurisdicional, nesta perspectiva, passa não só a
contribuir, como também a ocupar-se da realização de políticas públicas, da promoção
do bem comum, da correção do desequilíbrio social, ultrapassando, em muito, os limites
democráticos de sua atuação. Além de ocupar-se de atividades externas aos limites
de seu continente, o órgão julgador usurpa as demais funções do Estado, sobretudo
pela ineficiência, desqualificação e ignorância daqueles que as presentam, bem como
dos representantes das partes no processo e dos órgãos de classe. Atribui-se ao corpo
que atua a jurisdição um poder de superioridade mítica, não humano,75 solipsista, que
extrapola os limites do seu legítimo atuar democrático. Desta forma, se introduz no
processo, muitas vezes, uma elevada carga de subjetividade, arbítrio e prepotência.
Essa crítica à jurisdição não deve conduzir ao entendimento reacionário da
exoneração da atuação da Jurisdição. No Estado Democrático de Direito, a jurisdição
é função essencial do Estado.76 Deve ser realizada nos seus limites, exercida pelos
órgãos constitucionalmente indicados, concretizada como instrumento do processo
constitucional, respeitoso dos direitos e garantias fundamentais, e de acordo com
o processo constitucional e com as normas do ordenamento jurídico.77 A jurisdição
é essencial ao Estado Democrático e não há como se concretizar o processo
constitucional sem a participação efetiva dos órgãos julgadores.

73
André Cordeiro Leal a propósito faz o seguinte comentário: “Dificuldades incontornáveis surgem quando
as teorias do processo tentam clarificar aspectos de uma ‘atividade jurisdicional’ que se desenvolve pelas
pessoas dos magistrados, porque isso desemboca em concepções intrinsecamente monológicas e solipsistas
de jurisdição que não se alinham ao paradigma democrático procedimentalista” (LEAL, André Cordeiro.
Instrumentalidade do processo em crise. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008. p. 27).
74
O indicado ao cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, em sabatina no Senado,
ao ser questionado sobre o julgamento dos recursos dos réus no caso “Mensalão” assim se pronunciou: “Eu
vou fazer o que eu acho certo, o que meu coração mandar, ninguém me pauta, nem governo, nem imprensa,
nem acusados, somente farei o que achar certo” (CALGARO, Fernanda. Senado aprova nome de Barroso para
ministro do STF. Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2013/06/05/senado-
aprova-nome-de-barroso.htm >. Acesso em 07 jun. 2013).
75
NELSON, Jacinto. A contribuição da Constituição democrática ao processo penal inquisitório brasileiro. In:
MACHADO, Felipe Daniel Amorim e CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade (Coord.). Constituição e processo:
a contribuição do processo ao constitucionalismo brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. p. 227.
76
BRÊTAS, Ronaldo Processo constitucional e Estado Democrático de Direito. 2. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte:
Del Rey, 2012. p. 89. nota 35.
77
BRÊTAS, Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 32.

44 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 31-59, jul./set. 2014
A contribuição da teoria estruturalista para o processo constitucional no Estado Democrático de Direito...

Ocorre que o protagonismo judicial é uma deficiência do sistema processual,


difícil de ser corrigida, especialmente em razão da carga histórica78 que carrega, da
inexistência de uma fiscalidade eficaz, da força do corporativismo dos membros do
judiciário, da inércia e das prerrogativas que se concedem ao corpo da jurisdição.
E mais, não é apenas a jurisdição que sofre de grave moléstia. As demais funções
estatais, governamental e legislativa, padecem de enfermidades iguais ou tão mais
graves, que fogem às críticas deste trabalho.
Desde a implantação do socialismo processual, juntamente com o
processualismo científico,79 forte nos ideais de Menger, Klein e Bülow, o juiz passou
a ter fortalecido o seu campo de atuação, com a expansão de suas atividades no
processo, o que resultou em um fortalecimento político do órgão que presenta.
A partir da metade do século XIX, percebe-se uma insurgência à ideologia
liberal, principalmente em razão dos efeitos provocados pela revolução industrial, que
acarretou forte desequilíbrio social. O direito, então, passou a ser um dos depositários
das transformações sociais.80
Constata-se, a partir desse marco revolucionário, um progressivo fortalecimento
do órgão julgador a desenvolver uma dupla finalidade. A primeira, de caráter
educacional, no sentido de instruir a pessoa na defesa de seus interesses, exercendo
uma função extraprocessual. A segunda, de caráter interventivo, atuando o juiz como
representante da parte mais fraca, no desempenho de uma função endoprocessual.
Outros fatores, além dos relacionados, propiciaram a potencialização do
poder do órgão julgador no modelo processual socializante, fatores que até hoje se
revelam presentes. Como, por exemplo, a técnica da oralidade, os conceitos jurídicos
indeterminados, a hiperatividade e a omissão da atividade legislativa. De acordo com
Karl Larenz, citado por Dierle Nunes, o protagonismo judicial concebido por Bülow
atribuiu ao juiz a autoridade de completar o ciclo de criação do direito, aplicando a
norma à situação fática, sem a necessidade de especificar os critérios que pudessem
controlar a sua atividade.81

78
“Efetivamente, desde Oskar von Büllow (sic) — questão que também pode ser vista em Anton Menger e Franz
Klein -, a relação publicística está lastreada na figura do juiz, ‘porta-voz avançado do sentimento jurídico do povo’,
com poderes para criar direito mesmo contra legem, tese que viabilizou, na sequência, a Escola de Direito Livre.
Essa aposta solipsista está lastreada no paradigma representacional, que atravessa dois séculos, podendo
facilmente ser percebida em Chiovenda, para quem a vontade concreta da lei é aquilo que o juiz afirma ser a
vontade concreta da lei; em Carnellutti, que sustenta que a jurisdição é ‘prover’, ‘fazer o que seja necessário’;
também em Couture, que, a partir de sua visão intuitiva e subjetivista chega a dizer que ‘o problema da escolha
do juiz é, em definitivo, o problema da justiça’; em Liebman, para quem o juiz, no exercício da jurisdição, é livre de
vínculos enquanto intérprete qualificado da lei” (STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica. Constituição e Processo, ou
de “como discricionariedade não combina com democracia”; o contraponto da resposta correta. In: MACHADO,
Felipe Daniel Amorim; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade (Coord.). Constituição e processo: a contribuição
do processo ao constitucionalismo brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. p. 11).
79
BRÊTAS, Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 77.
80
NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2008. p. 79.
81
NUNES, Processo jurisdicional democrático, p. 100.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 31-59, jul./set. 2014 45
Marcos Rezende

A partir de 1970, na Europa, com a culminação da crise do Welfare State e o


início de uma nova rivalidade entre as ideologias social e liberal, continua a prevalecer
o protagonismo judicial. Esse protagonismo no Brasil se mantém forte até os dias
de hoje, principalmente nos órgãos superiores da jurisdição. Mas, o que se percebe
é que, para muitos operadores do Direito, não parece ser o protagonismo judicial
um problema para o processo, porque a preocupação maior é pretender corrigir as
mazelas do processo por meio de contínuas e inócuas reformas legislativas.
Mas é certo que o protagonismo judicial não se concilia com o processo constitucional
democrático, pois afasta a construção participativa no processo e concentra no órgão
julgador poderes que o levam a decidir utilizando critérios não democráticos.82
Assim, fica evidente que o protagonismo judicial oculta em sua configuração um
grave déficit de legitimidade, impedindo a democratização do processo, que somente
se sustenta a partir de uma interdependência e colaboração entre os sujeitos
processuais, a caracterizar um saudável policentrismo processual.83

3 A teoria estruturalista do processo


A noção atual de processo é resultado de uma evolução histórica. Bülow teve
o mérito de distinguir o caráter autônomo da relação jurídica de direito material em
relação à de direito processual.84 A sua teoria sofreu diversas adaptações para se
manter atualizada e, ainda hoje, é adotada por grande parte da doutrina brasileira.
Chiovenda, Carnelutti e Liebman são doutrinadores de prestígio no direito processual
brasileiro. Todos eles adeptos da tese de o processo se constituir em uma relação
jurídica de direito público, vinculando as partes ao juiz.85
Porém, a estrutura bülowiana de processo, que continua a ser adotada até hoje,
como “força que motiva e justifica a prática dos atos do procedimento, interligando os
sujeitos processuais”,86 não se encontra cientificamente atualizada, apesar de penosos
esforços retóricos, em vão, para atribuir ao processo a qualidade de democrático.87

82
CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Teoria da argumentação jurídica: constitucionalismo e democracia em uma
reconstrução das fontes no direito moderno. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 179-180.
83
NUNES, Processo jurisdicional democrático, p. 195.
84
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER Ada Pellegrini; DINAMARCO Cândido Rangel. Teoria geral do
processo. 25. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 302.
85
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Trad. Paolo Capitanio. 4. ed. Campinas:
BookSeller, 2009. p. 43.
86
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER Ada Pellegrini; DINAMARCO Cândido Rangel. Teoria geral do
processo. 25. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 297.
87
André Cordeiro Leal, ao comentar sobre a jurisdição na teoria relacionista do processo, faz as seguintes
considerações: “A jurisdição, assim concebida, é, ‘in integrum’, atividade de juízes que revelam, pelo ato
sentencial, suas próprias vontades (como em Bülow), ou uma outra vontade pronta na lei, a da ‘mens legis’
ou a da’ mens legislatoris’ (num enfoque que, por imprestável, o próprio Ronald Dworkin já se esforçara em
afastar), ou, ainda, intervenções solipsistas e contingenciais em realidades sociais que estariam a suplicar
socorro prestante em razão da inércia (ou inaptidão) do legislador soberano” (Instrumentalidade do processo
em crise. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008. p. 31).

46 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 31-59, jul./set. 2014
A contribuição da teoria estruturalista para o processo constitucional no Estado Democrático de Direito...

Da mesma forma, a caracterização de processo como finalidade,88 não o distingue


do procedimento, porque este também é, análogo ao processo, essencialmente
finalístico. Não é possível, a partir destas duas características apresentadas pelos
adeptos da teoria relacionista do processo, diferenciar cientificamente as noções
básicas de processo e de procedimento, ainda que haja empenho.
A teoria do processo como relação jurídica reveste-se de um evidente déficit de
democracia, quando submete as partes ao juiz,89 demonstrando uma hierarquização
no vínculo e ausência da participação das partes na decisão. A teoria da relação
jurídica se estrutura na supremacia das funções do órgão julgador e na exclusividade
da jurisdição pelo juiz.90 Em perspectiva completamente diversa, no processo
constitucional democrático, juiz e partes exercem funções de forma interdependente.91
Após a segunda grande guerra, sobressai, inicialmente na Europa, por influência do
neoconstitucionalismo,92 a preponderância dos direitos fundamentais.93 A partir deste
contexto, torna-se forte a influência da democracia no direito e, consequentemente,
na ciência processual. Neste sentido observa Dierle Nunes: “... ao fomento do
constitucionalismo no século XX, alguns teóricos começaram a perceber no processo
algo além de um instrumento técnico neutro, uma vez que se vislumbra neste uma
estrutura democratizante de participação dos interessados em todas as esferas do
poder, de modo a balizar a tomada de qualquer decisão no âmbito público [...]”.94
A ciência processual evoluiu de forma significativa a partir da teoria de Elio
Fazzalari,95 que conduziu uma nova virada conceitual do processo, ao conceber uma
original noção de processo. A teoria, divulgada inicialmente no Brasil por obra de
Aroldo Plínio Gonçalves, apresenta relevante vantagem científica e democrática,
quando comparada com as teorias processuais concebidas anteriormente.96
A teoria estruturalista conceitua o procedimento como gênero e o processo
como sendo uma de suas espécies,97 porém, diferenciada por uma característica

88
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER Ada Pellegrini; DINAMARCO Cândido Rangel. Teoria geral do
processo. 25. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 297.
89
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992. p. 97.
90
NUNES. Processo jurisdicional democrático, p. 203.
91
Afirma Nunes que: “[...] numa visão constitucional democrática, pode-se afirmar que não existe entre os
sujeitos processuais (técnicos processuais) submissão, mas sim, interdependência, fazendo-se inaceitável
o esquema da relação jurídico-processual que impõe submissão das partes ao juiz”. (Processo jurisdicional
democrático, p. 204).
92
BRÊTAS, Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 89, nota 35).
93
BRÊTAS, Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 69.
94
NUNES, Processo jurisdicional democrático, p. 39.
95
Fazzalari percebe, a partir dos estudos de Feliciano Benvenutti, que processo e processo possuem origens
comuns (Processo jurisdicional democrático, p. 204).
96
Teoria do processo como contrato; teoria do processo como quase contrato; teoria do processo como relação
jurídica; teoria do processo como situação jurídica; teoria do processo como instituição (LEAL, Rosemiro
Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 82-86).
97
Aroldo Plínio assinala que ao invés de se adotar a relação gênero e espécie, a teoria de Fazzalari ficaria melhor
explicitada se recorresse à lógica da relação entre classes (GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e
teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992, p. 114).

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 31-59, jul./set. 2014 47
Marcos Rezende

própria, qual seja, o contraditório.98 A prevalência científica da teoria estruturalista


sobre a teoria da relação jurídica tem o mérito de transferir o eixo principal da ciência
processual, que passa a ser o processo e não mais a jurisdição.99
Não se pode afirmar, como fazem alguns autores,100 que a teoria estruturalista
seja compatível com a teoria relacionista do processo. Na teoria estruturalista, o
processo corresponde a uma estrutura técnica normativa construída pelas partes,
sempre presente a possibilidade do exercício, no procedimento, do direito ao
contraditório simetricamente paritário. A decisão a ser proferida no processo, nesta
teoria, é uma consequência racionalizada dos atos produzidos no procedimento
em contraditório.101
O procedimento na teoria fazzalariana apresenta uma configuração própria,
enriquecida, não mais concebida apenas como uma sequência de atos. Passa a ser
uma atividade preliminar de uma decisão estatal, ou, como melhor explica Aroldo
Plínio, “O procedimento é uma atividade preparatória de um determinado ato estatal,
atividade regulada por uma estrutura normativa, composta de uma sequência de
normas, de atos e de posições subjetivas, que se desenvolvem em uma dinâmica
bastante específica, na preparação de um provimento”.102 No procedimento, os atos
a serem realizados e as posições subjetivas das partes e do juiz estão previstos
em normas, e é a partir desta estrutura que a decisão deve ser elaborada. Nesta
estrutura, os destinatários da decisão possuem a faculdade de influir na decisão,
denotando-se um processo de feições democráticas.
O conceito de contraditório,103 essencial na teoria estruturalista do processo,
por sua vez, também evoluiu e não se restringe apenas no “dizer” e no “contradizer”.
O contraditório tem como pressuposto a possibilidade da igualdade de oportunidades,
característica essencial na democracia. Conforme assevera Aroldo Plínio Gonçalves,
“O contraditório não é o ‘dizer’ e o ‘contradizer’, sobre matéria controvertida, não
é a discussão que se trava o processo sobre a relação de direito material, não é a
polêmica que se desenvolve em torno dos interesses divergentes sobre o conteúdo
do ato final. Esta será a sua matéria, o seu conteúdo possível. O contraditório é a

98
FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual. Trad. Elaine Nassif. Campinas: Bookseller, 2006. p. 18.
99
ARAÚJO DE CARVALHO, Carlos Eduardo. Legitimidade dos provimentos. Curitiba: Juruá, 2009, p. 260.
100
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER Ada Pellegrini; DINAMARCO Cândido Rangel. Teoria geral do
processo. 25. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 305.
101
LEAL, Teoria geral do processo: primeiros estudos, p. 87.
102
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992, p. 102.
103
A respeito do conceito de contraditório, afirma Humberto Theodoro Júnior que o contraditório “Concebido
como elemento indispensável à configuração do processo, qualquer que fosse o ramo do direito a atuar por
seu intermédio, foi em torno do contraditório que se aperfeiçoou basicamente a garantia do devido processo
legal. Na visão primitiva, resumia-se o contraditório ao direito à bilateralidade da audiência das partes. Sua
incidência deveria ocorrer no plano do relacionamento entre as partes”. (THEODORO JÚNIOR, Humberto.
Constituição e processo: desafios constitucionais da reforma do processo civil no Brasil. In: MACHADO, Felipe
Daniel Amorim; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade (Coord.). Constituição e processo: a contribuição do
processo ao constitucionalismo brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. p. 252).

48 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 31-59, jul./set. 2014
A contribuição da teoria estruturalista para o processo constitucional no Estado Democrático de Direito...

igualdade de oportunidades no processo, é a igual oportunidade de igual tratamento,


que se funda na liberdade de todos perante a lei”.104
Outro acréscimo teórico atribuído à teoria estruturalista, não integrado à teoria
do processo como relação jurídica, é a ampliação da processualidade democrática no
direito, permitindo utilizar a teoria de Fazzalari em outras espécies de processos, além
do judicial, como o processo administrativo e o legislativo.105 Todos como espécies de
procedimento realizado em contraditório na preparação de uma decisão estatal final.
Apesar das críticas dirigidas à teoria estruturalista do processo,106 não há dúvidas
de sua compatibilidade ao processo constitucional democrático, mesmo porque,
concebida há mais de 50 anos, a teoria estruturou-se em elementos democráticos e
tem contribuído para a formação e atualização do processo constitucional democrático.

4 A influência do common law no ordenamento jurídico


brasileiro
Há alguns anos, percebe-se em parcela respeitável da doutrina,107 e de forma
incipiente em alguns julgados dos tribunais superiores,108 tendências em inserir
no ordenamento jurídico brasileiro institutos109 do common law. Apesar de haver
distinções de relevo110 entre os sistemas do common law e do civil law, há institutos,
que se “importados” e adaptados, podem trazer benefícios.111 Entretanto, ao se

104
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992, p. 127.
105
GONÇALVES, Técnica processual e teoria do processo, p. 115.
106
BRÊTAS, Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 92-93; LEAL, Teoria geral do processo: primeiros
estudos, p. 87; LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidade do processo em crise. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008.
p. 122. ARAÚJO DE CARVALHO, Carlos Eduardo. Legitimidade dos provimentos. Curitiba: Juruá, 2009, p. 263.
107
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2010. TUCCI, José
Rogério Cruz. Precedente judicial como fonte do direito. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2004. DIDIER Jr.,
Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil. 8. ed. ver. ampl.
atual. Salvador: JusPodivm, 2013, v. 2. ZANETI JÚNIOR, Processo constitucional: o modelo constitucional do
processo civil brasileiro. BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do precedente judicial: a justificação e a
aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012.
108
No STF: AI-795809-AgR/RS. Rel.: Min. Luiz Fux. Julg.: 18.12.2012, Órgão Julgador: 1ª Turma. Publ.: 20.02.2013;
Pet-2859 MC-segunda/SP. Rel.: Min. Gilmar Mendes. Julg.: 03.02.2005, Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publ.:
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Pleno. Publ.: 29.06.2012. No STJ: AgRg no REsp 1124660/MG. Rel.: Min. Luiz Fux. Órgão Julgador: 1ª Turma.
Julg.: 17.02.2011. Publ.: DJe, 28 fev. 2011; AgRg nos EDcl no REsp 1139549/SP. Rel.: Min. Humberto
Martins. Órgão Julgador: 2ª Turma. Julg.: 22.06.2010. Publ.: DJe, 06 ago. 2010; Resp-1111743/DF. Red.:
Min. Luiz Fux. Órgão Julgador: Corte Especial. Julg.: 25.02.2010. Publ.: DJe, 21.06.2010; HC-252243/PR.
Rel.: Min. Marco Buzzi. Órgão Julgador: 4ª Turma. Julg.: 21.03.2013. Publ.: DJe, 04.04.2013; HC-118310/RS.
Rel.: Min. Og Fernandes. Órgão Julgador: 6ª Turma. Julg.: 18.10.2012. Publ.: DJe, 31 out. 2012; AgRg no
Resp-1284520/GO. Rel.: Min. Humberto Martins. Órgão Julgador: 2ª Turma. Julg.: 04.09.2012. Publ.: DJe,
08 mar. 2013; Resp-279119/SP. Rel.: Min. Maria Thereza de Assis Moura. Órgão Julgador: 6ª Turma. Julg.:
28.09.2010. Publ.: DJe, 08 jun. 2011.
109
O termo instituto é utilizado neste trabalho de forma ampla, alcançando categorias, espécies, definições,
estruturas e procedimentos jurídicos.
110
Principalmente em relação ao precedente do common law, que se configura como norma jurídica e no civil law
não, porque neste último prevalece o principio da legalidade.
111
Um dos exemplos de transposição virtuosa se refere ao controle difuso de constitucionalidade das leis,
originário do sistema jurídico norte-americano.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 31-59, jul./set. 2014 49
Marcos Rezende

admitir a transposição automática e precipitada112 de institutos, corre-se o risco de


potencializar a desestruturação e o desequilíbrio do sistema jurídico,113 ou, por outro
lado, não causar qualquer benefício ao sistema.
O surgimento dos sistemas civil law e common law se deram em contextos
políticos-culturais diversos, resultando em estruturas114 e institutos também distintos.
O civil law surge da influência da Revolução francesa e do constitucionalismo.115 Já
o sistema do common law, de origem consuetudinária, adotou um direito próprio,
adequado às necessidades sociais no contexto de sua formação e pouco influenciado
pelo direito romano.116
No sistema do common law, os juízes criam e modificam o direito e, por esta
razão, ocupam a posição central no sistema jurídico. O fundamento do sistema do
common law está no judge-made. A característica elementar do sistema do common
law é a formação do direito pela atuação judicial.117

112
Sobre a “importação” acrítica de institutos pertencentes a sistemas jurídicos diferentes do brasileiro, cita-se nota
do administrativista Celso Antônio Bandeira de Mello que denuncia, herculeamente, a existência dessa prática
desarrazoada no sistema brasileiro: “Cumpre, pois, estar advertido contra o típico servilismo intelectual de
povos periféricos em relação às metrópoles culturais, cujas produções jurídicas teóricas costumam ser havidas
como as ‘verdadeiras’ e, destarte, reproduzidas acriticamente. Ao incorrer no sobredito equívoco, prescinde-se
de obviedade de que as considerações doutrinárias neles formuladas correspondem ou podem corresponder a
descrições exatas (verdadeiras) dos respectivos Direitos Positivos, mas não são necessariamente aplicáveis
ao nosso próprio Direito Positivo, cujas instituições, aliás, compreensivelmente, passam muito ao largo das
preocupações dos juristas de tais países. As referidas observações, evidentemente, não implicam, de modo
algum, qualquer menoscabo ao estudo da produção jurídico-teórica dos países culturalmente mais avançados
ou ao interesse na perquirição sobre a origem e desenvolvimento das respectivas instituições. Pelo contrário,
reconhece-se a imensa utilidade que proporcionam. Com efeito, são valiosos, e não apenas em razão do
refinamento científico que — isto sim — devemos imitar, mas também por ensejar-nos filiar tanto nossos próprios
institutos jurídicos quanto a origem da maior parte das posições doutrinárias entre nós sustentadas. Graças a
isto, pode-se, de um lado, visualizá-los com maior clareza e detectar equívocos decorrentes de transposições
acríticas indevidamente efetuadas. Finalmente, sobre proporcionar-nos uma perspectiva mais ampla, permitem
adotar, rentavelmente, uma visão ‘desde fora’, ou seja: mirar nossas instituições e produção doutrinária a partir
de um ponto de observação como que externo, pois involucrado nos subsídios colhidos em universo cultural
alheio ao nosso específico e circunstancial envolvimento (teórico e institucional). Assim, instrumentam-nos para
um conhecimento mais objetivo e criticamente mais aparelhado de ambos os tópicos” (BANDEIRA DE MELLO,
Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 20. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006. p. 314-315).
113
Humberto Ávila exemplifica esta situação a partir da modulação dos efeitos na ação direta de
inconstitucionalidade, que “transferido” do sistema normativo alemão, que adota o sistema do civil law, para
ordenamento jurídico brasileiro, teve a sua aplicação distorcida pelo Supremo Tribunal Federal. i: Relativização
da Coisa Julgada e a Modulação Temporal das Decisões do STF. Palestra proferida pelo Professor Humberto
Ávila durante o IV Congresso Brasileiro de Direito Tributário, realizado nos dias 31.10.11 e 1º.11.11 em
Salvador, Bahia. Disponível em: <http://www.humbertoavila.com.br/site/category/palestra/>. Acesso em:
07 jun. 2013.
114
WHITTACKER, Simon. Precedent in english law: a view from the citadel. In: HONDIUS, Edwoud (Edited by).
Precent and the law: reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law. Bruxelles.
Etablissements Emile Bruyland, S. A., 2007. p. 36.
115
MARINONI, Luiz Guilherme. Aproximação crítica entre as jurisdições de civil law e de common law e a
necessidade de respeito aos precedentes no Brasil. Revista da Faculdade de Direito — UFPR. Curitiba, n. 49,
2009, p. 11-58.
116
TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
p. 150-151.
117
WHITTACKER, Simon. Precedent in english law: a view from the citadel. In: HONDIUS, Edwoud (Edited by).
Precent and the law: reports to the XVIIth Congress International Academy of Comparative Law. Bruxelles.
Etablissements Emile Bruyland, S. A., 2007, p. 28.

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A contribuição da teoria estruturalista para o processo constitucional no Estado Democrático de Direito...

O juiz do civil law, após a Revolução Francesa, passou a ser proibido de interpretar
a lei em razão de abusos cometidos durante a monarquia absolutista. Mas, ao final
do século XIX, com a socialização do processo, a partir das ideias de Klein e Menger,
o órgão julgador incorporou uma crescente potencialização do seu poder, que se
estende até a atualidade, uma das causas do ativismo e do protagonismo judicial
presentes na jurisdição.
Para validar a sua tese de aproximação dos sistemas do common law e do civil
law, Hermes Zaneti Júnior utiliza a arquitetura119 como representação. Porém, o
118

autor, ao valer-se da modificação parcial da fachada de um edifício para simbolizar a


transposição de institutos de um sistema jurídico para outro, abre uma divergência.
Nesta simbologia, entende-se que a introdução de um instituto jurídico de um
ordenamento em outro não está relacionada à estética e sim a elementos estruturais
do sistema. E estes, se projetados inadequadamente, podem levar à ruptura ou
instabilidade do sistema.
As justificativas apresentadas, pelas quais a introdução dos precedentes e de
outros institutos do common law contribuiria na formação do Estado Democrático
de Direito, ainda não estão suficientemente e nem cientificamente fundamentadas
e merecem estudos mais profundos, sobretudo em um momento em que parece
prevalecer o neoliberalismo processual,120 que persegue a celeridade do processo
a qualquer custo, a resolução de conflitos por atacado e privilegia o protagonismo
judicial dos membros dos tribunais superiores.121

5 A crítica de Hermes Zaneti Júnior à teoria de Fazzalari


Na introdução à obra Processo constitucional: o modelo constitucional do
processo civil brasileiro, o autor, Hermes Zaneti Júnior, afirma a importância do
caráter democrático do direito processual: “A questão levantada é que nenhuma
ótica centrada exclusivamente no indivíduo ou no Estado, como representante
máximo do bem comum, poderá assegurar o processo justo. De um lado, ter-se-á a
velha fórmula do laissez-faire e, de outro, o Estado totalitário. O Estado Democrático
Constitucional representa a passagem dessa virtual contraposição entre o Estado
Liberal e o Estado Social, indicando um modelo pluralista e participativo de gestão da

118
ZANETI JÚNIOR, Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro, p. 27.
119
No sentido de técnica de organização estético-espacial.
120
NUNES, Processo jurisdicional democrático, p. 175.
121
Oportuna a afirmação de Rosemiro Pereira Leal: “Assim, a permanência secular de uma justiça civil com aceno
de ‘acesso à justiça’, sem esclarecer que justiça se justifica pela atividade fabril de um judiciário que a cada
dia mais se civiliza em aumento quantitativo das bordas do Estado-juiz, é um problema que se agrava quando
somado a socorros de globalização e internacionalização” (LEAL, Rosemiro Pereira. Modelos processuais e
Constituição democrática. In: MACHADO, Felipe Daniel Amorim e CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade
(Coord.). Constituição e processo: a contribuição do processo ao constitucionalismo brasileiro. Belo Horizonte:
Del Rey, 2009. p. 287).

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 31-59, jul./set. 2014 51
Marcos Rezende

democracia. [...] Aí entra a necessidade de demodiversidade, ou seja, vários meios


institucionalizados e abertos para a institucionalização e a participação do indivíduo
e da sociedade na formação dos atos decisórios que irão intervir na sua realidade
cotidiana. A relevância social e científica da pesquisa está em preparar o direito
processual para a institucionalização de práticas democráticas no desenvolvimento
das controvérsias judiciais (máxima cooperação), bem como demonstrar a riqueza
híbrida da tradição constitucional e infraconstitucional brasileira e as potencialidades
da vanguarda institucional (políticas e jurídicas) que são descortinadas no quadro do
Estado Democrático Constitucional do Direito”122 (grifos nossos).
Em nota de rodapé, Hermes Zaneti Júnior informa que um dos objetivos de sua
pesquisa é “justificar a potencialidade normativa da jurisprudência no sistema do stare
decisis e abrir espaço para a aceitação do judge-made law no nosso ordenamento”.123
(grifos nossos).
Mais adiante, o autor declara a sua concordância em adotar a equidade para a
solução de conflitos: “Desta forma, a Constituição deve ser entendida como um direito
superior, vinculativo inclusive para o legislador. Mas não só, o seu mais importante
aspecto está na presença simultânea de regras, princípios, direitos fundamentais e
justiça como elementos mínimos, agregados pela exigência extra de adequação e
razoabilidade entre o caso concreto e a lei; em certa medida, é um retorno aos juízos
de equidade”124 (grifos nossos).
Interessante é que Hermes Zaneti se insurge contra privilégios processuais
concedidos em prejuízo do direito de igualdade assegurado constitucionalmente,125
por contrariar preceito constitucional. Porém, o autor adota preferências na
utilização da equidade e do instituto judge-made law.126 Estes institutos, sem
amparo constitucional, diretamente ou por via reflexa, não só potencializam, mas
também contribuem para ofender os princípios constitucionais da reserva legal,127 do
contraditório,128 da fundamentação da decisão,129 dos direitos fundamentais,130 além

122
ZANETI JÚNIOR, Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro, p. 2.
123
ZANETI JÚNIOR, Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro, p. 4. nota 5.
124
ZANETI JÚNIOR, Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro, p. 4. Noção de
judge-make law. DICEY, Albert Venn. Lectures on the Relation between Law and Public Opinion in England during
the Nineteenth Century. 2. ed. London: Macmillan, 1919, Apendix: note IV: JUDGE-MADE LAW. Disponível em
<http://oll.libertyfund.org/title/1683/9640>. Acesso em: 22 jun. 2013.
125
ZANETI JÚNIOR, Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro, p. 5.
126
Crítica pertinente de Rosemiro Pereira Leal a institutos antidemocráticos: “A mítica da autoridade na dicção
do direito submete a interpretação jurídica à regência de juízos ordálicos e de conveniência e equidade
que escapam à cognitividade probatícia de democratização decisória pelo contraditório e ampla defesa,
excluindo o discurso jurídico (escritura legal) como eixo polarizador de sentidos para todos os argumentantes
processualmente legitimados”. LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 246.
127
BRÊTAS, Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 121-127.
128
BRÊTAS, Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 95-104.
129
BRÊTAS, Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 130-136.
130
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 2. ed. rev. São Paulo: Celso
Bastos Editor, 1999. p. 35-36.

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A contribuição da teoria estruturalista para o processo constitucional no Estado Democrático de Direito...

da inconstitucionalidade transparente e não declarada do preceito do art. 127 do


atual Código de Processo Civil.131
Em virtude de seus posicionamentos favoráveis ao protagonismo judicial
e à aproximação de institutos do sistema da common law, Hermes Zaneti Júnior
considera que a teoria estruturalista do processo não seria compatível e aplicável ao
ordenamento constitucional brasileiro e que a contribuição teórica de Elio Fazzalari
não se viabilizaria no direito brasileiro, em suas próprias palavras: “Contudo, as
observações de Fazzalari, conquanto sirvam para dar suporte à noção de módulo
processual, não estão de todo assentes com o que aqui se desenvolve como
dimensão democrática e participativa do processo no marco do Estado Constitucional
Democrático. [...] Assim, justamente por excessivo apego privativista e lógico-formal,
a contribuição de Fazzalari para a compreensão do processo como razão prática
procedimental fica reduzida e inviabilizada no direito brasileiro. Ao cerrar as portas
para o discurso judicial e para a criação do direito pelo juiz, Fazzalari adota uma
barreira intransponível para a consecução da finalidade de abertura democrática do
processo”132 (grifos nossos).
No “modelo constitucional de processo” adotado por Hermes Zanetti Júnior,
o autor perfila a ideia de que a abertura democrática do processo se dá com a
criação do direito pelo juiz.133 Neste sentido, Hermes Zaneti Júnior se filia à doutrina
que instala a jurisdição e principalmente o órgão julgador no eixo principal do direito
processual. Com isso, o autor valoriza o protagonismo judicial e se insere nas fileiras
dos adeptos da antiquada e persistente concepção de processo como relação
jurídica, caracterizada simultaneamente por uma superioridade do juiz e pela sujeição
das partes. As nocivas consequências desta já conhecida teoria são a utilização das
mazelas da arbitrariedade e do subjetivismo na atividade jurisdicional. A “ousadia”
criativa do juiz, como preconiza, em sentido benfazejo, Hermes Zanetti Júnior, instiga o
juiz a conduzir-se solipsisticamente, prevalecendo na decisão que profere as nuances
de sua formação social, religiosa, cultural, econômica.

131
Crítica de Ronaldo Brêtas ao art. 120 do projeto do novo Código de Processo civil, na redação do PLC
nº 8.046/2010, com idêntica redação do art. 127 do atual CPC, quando afirma que: “No Estado Democrático
de Direito brasileiro, o juiz somente pode decidir com observância do princípio constitucional da reserva legal
(Constituição Federal, art. 5º. inciso II), ou seja, com base nas normas (regras legais e princípios de direito)
que integram seu ordenamento jurídico, nunca por equidade, fonte de subjetivismos e ideologias do agente
público julgador”. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-
temporarias/especiais/54a-legislatura/8046-10-codigo-de-processo-civil/arquivos/ap-ronaldo-bretas>.
Acesso em: 12 jun. 2013.
132
ZANETI JÚNIOR, Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro, p. 199-200.
133
Assinalando o desacerto de Hermes Zaneti Júnior, Ronaldo Brêtas assevera que: “[...], porque o juiz não
‘cria’ (ou ‘inventa’) direito algum no processo que possa ser considerado democrático, visto não ser seu
protagonista, transformando as partes em mero receptáculo da sua vontade pessoal, à margem da inarredável
garantia constitucional da reserva legal, eliminando, reduzindo ou menosprezando a participação dos
interessados na formação do ato decisório final, cujo efeitos suportarão” (BRÊTAS, Processo constitucional e
Estado Democrático de Direito, p. 92).

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 31-59, jul./set. 2014 53
Marcos Rezende

Nessa perspectiva, parecem contraditórias as considerações de Hermes Zaneti,


quando salienta que o processo terá uma configuração constitucional democrática e
se prepara para a “institucionalização e a participação do indivíduo e da sociedade
na formação dos atos decisórios que irão intervir na sua realidade cotidiana”.134 Isso
porque, ao atribuir ao órgão julgador o poder de julgar com base na equidade e na
figura do judge-made law, o autor está, na verdade, reduzindo a participação dos
destinatários na decisão que lhes é afeta.135
Ao formular a sua crítica à teoria de Fazzalari, Hermes Zanetti se apoia em
determinado excerto de um artigo,136 publicado pelo autor italiano no ano de 1989, no
qual Fazzalari assevera: “Nella nostra cultura non è possibile soppiantare la ‘norma’
vera e propria - quella generale, intendiamo — con la sentenza (ed è altresì equivoco
presentare quest’ultima, con un erroneo kelsenismo, come ‘norma individuale’:
la volizione del giudice è ‘atto’, alla stessa stregua del negozio). Del resto, negli
ordinamenti statuali moderni — e così nel nostro — la funzione giurisdizionale è istituita
come tutela di posizioni sostanziali pregresse”.137 Neste trecho, afirma Fazzalari
que, no sistema do civil law, no qual se vincula o ordenamento italiano e também o
brasileiro, não é possível a criação da norma pelo órgão julgador quando este profere
a decisão. A criação da “lei” é atividade estatal legislativa, cuja incumbência é do
parlamento. O juiz somente está autorizado a criar a norma quando houver permissão
constitucional. E esta permissão também não está presente no direito brasileiro.138
O exercício criativo do juiz implica potencial violação dos direitos e garantias
constitucionais ao tensionar o princípio da reserva legal. Pouco ou nada adiantaria
promover o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa, se, ao final,
permite-se ao juiz decidir a demanda adotando os critérios da equidade e do judge-
made law. As garantias fundamentais no decorrer do procedimento podem ser
subitamente eliminadas por um ato “solene” do órgão julgador.
Assim, ao examinar a crítica de Hermes Zaneti Júnior à teoria de Fazzalari,
há razões suficientes para se divergir do registro que o autor faz ao processualista

134
ZANETI JÚNIOR, Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro, p. 2.
135
Em sentido semelhante, Lenio Streck assevera que: “Por isso, para mim, o principal problema aparece quando
se procura determinar ‘como ocorre e dentro de quais limites deve ocorrer a decisão judicial’. As teorias
argumentativas — que se enquadram no âmbito das teorias analíticas — continuam apostando na vontade do
intérprete para resolver o problema gerando a discricionariedade judicial. Tais teorias ‘sofrem, assim, de um
letal défict democrático’” (STRECK, Lenio Luiz. O que é isto - “decidir conforme a consciência”? Protogênese
do protagonismo judicial. In: MACHADO, Felipe; CATTONI. Marcelo (Coord.). Constituição e processo: entre o
direito e a política. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 237).
136
FAZZALARI, Elio. Sentenza Civile, In: ENCICLOPEDIA del Diritto. Milano: Giuffrè, 1989, v. 41. p. 1262.
137
FAZZALARI, Elio. Sentenza Civile, In: ENCICLOPEDIA del Diritto. Milano: Giuffrè, 1989, v. 41. p. 1262. “Em
nossa cultura, não é possível substituir a verdadeira ‘norma’ — aquela geral, como entendemos - com a
sentença (é também um equívoco apresentar esta última [a sentença], utilizando-se de um errôneo kelsenismo,
como ‘norma individual’: a vontade do juiz é um ‘ato’ [jurídico] da mesma forma que um negócio [jurídico]).
Além disso, nos ordenamentos dos Estados modernos — e, portanto, como é o nosso - a função jurisdicional
é estabelecida como proteção de posições [jurídicas] substanciais anteriores”. (Tradução livre).
138
BRÊTAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo constitucional e Estado Democrático de Direito. 2. ed. rev. e
ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2012. p. 123.

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A contribuição da teoria estruturalista para o processo constitucional no Estado Democrático de Direito...

italiano. Ao contrário do que leciona Zaneti, o direito brasileiro, que se constitui em


Estado Democrático de Direito, inaugurado com a Constituição de 1988, é totalmente
compatível com os fundamentos da teoria estruturalista de processo desenvolvida
por Fazzalari. Ressalta-se que, apesar de sua teoria ter sido concebida em 1958, ela
contribuiu de forma significativa para a construção da atualizada teoria do processo
constitucional, um dos principais fundamentos do Estado Democrático de Direito.

Considerações finais
O Estado Constitucional Democrático de Direito surge a partir da combinação
dos princípios da democracia e do Estado de Direito e tem nas normas constitucionais
a sua principal orientação.
As funções legislativa, jurisdicional e administrativa, no Estado Democrático de
Direito, estão constitucionalmente condicionadas a manter organizada a estrutura
estatal e assegurar a qualquer um do povo o efetivo exercício de seus direitos
fundamentais, por meio do processo constitucional, orientado pelos princípios do
devido processo legal, do contraditório, da fundamentação da decisão, da ampla
defesa, do direito ao advogado. O processo constitucional busca na teoria de
Fazzalari o componente participativo, identificado pelo contraditório e de caráter
essencialmente democrático.
O juiz, ao decidir, deve alicerçar a fundamentação da sua decisão nas
argumentações das partes, no contraditório e na aplicação das normas do
ordenamento, abstraindo-se de critérios subjetivos.
Há uma tendência atual no Brasil de importação de institutos do sistema do
common law. A transposição de institutos deve ser feita com cautela, pois potencializa
a desestruturação e o desequilíbrio do já combalido sistema judiciário brasileiro.
Na obra Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil
brasileiro, o autor, Hermes Zaneti Júnior, incentiva uma maior atuação do juiz, a partir
da aplicação da equidade e do judge-made law no processo brasileiro.
A aplicação da equidade e a permissão do judge-made law evidenciam uma
forte potencialização do protagonismo judicial. Além disso, no sistema jurídico
brasileiro, o precedente não cria a norma jurídica e o juiz não cria o direito. Assim, na
atual configuração do sistema jurídico brasileiro, há de se observar com reservas o
entendimento de Hermes Zaneti Júnior, porque, ao prestigiar o juiz com mecanismos
que valorizam a subjetividade, é certo que se estará desprestigiando e até mesmo
transgredindo o princípio do devido processo legal e as demais garantias fundamentais,
e em consequência, o processo constitucional democrático.
A crítica de Hermes Zaneti Júnior à teoria de Fazzalari não se justifica, porque
a teoria estruturalista do processo, de raízes democráticas, ainda que incipientes,
privilegia a participação dos sujeitos processuais e se compatibiliza perfeitamente com

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 31-59, jul./set. 2014 55
Marcos Rezende

o ordenamento jurídico brasileiro, que adotou, como princípio, o Estado Democrático


de Direito. A estrutura do processo constitucional democrático tem como elemento
normativo-constitucional o contraditório, essencial para fundamentar a decisão e
estruturar a comparticipação democrática no processo.
Hermes Zaneti Júnior, em sua obra, defende um pseudomodelo de processo
constitucional democrático, a partir do qual prestigia um poder de atuação
protagonizado pelo juiz. Na incursão pela obra do autor, percebe-se que o mesmo
propõe a inclusão, no processo, dos institutos da equidade e do jude-made-law,
incompatíveis com os princípios e fundamentos do Estado Democrático de Direito. A
aplicação das teses adotadas pelo autor ao processo ofende direta ou indiretamente
os princípios da reserva legal, do contraditório, da ampla defesa e da fundamentação
da decisão.
Destarte, adotando entendimento adverso ao de Hermes Zaneti Júnior, se pode
afirmar que as reflexões de Fazzalari muito contribuíram para o desenvolvimento do
processo constitucional brasileiro, quando se observa este sob a perspectiva do
sempre inacabado Estado Democrático de Direito.

Abstract: In the construction of the Law Democratic State, the constitutional process is essential to
ensure the implementation of fundamental rights and guarantees. The constitutional process relies on the
structuralist theory, to perform as adversarial procedure and ensure a shared decision. Professor Hermes
Zaneti Júnior, in recent work, reports on the topic constitutional process, aiming to investigate the hybrid
tradition (common law and civil law) of Brazilian civil procedural law. In particular excerpt, Professor Hermes
Zaneti states that it is reduced the contribution of Fazzalari theory to the brazilian procedural law. It’s about
the relevance of this statement that this paper relies on and gives an answer to its reflection.
Key words: Law Democratic State. Constitutional process. Adversarial. Structuralist theory. Reasons for
judicial decisions. Elio Fazzalari. Hermes Zaneti Júnior. Judicial activism. Common Law.

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56 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 31-59, jul./set. 2014
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As ações repetitivas e a exigência de
soluções complexas

Diógenes V. Hassan Ribeiro


Mestre e Doutor em Direito Público (UNISINOS). Desembargador do Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Sul, Vice-Presidente de Assuntos Legislativos da Associação dos
Magistrados Brasileiros (AMB – 2011-2013). Professor do PPGD/Mestrado em Direito do
UNILASALLE – Canoas/RS.

Resumo: A pesquisa do artigo investigou a impossibilidade de soluções simples na atual época


histórica e cultural da sociedade, em qualquer área do conhecimento. O conhecimento é multidisciplinar
e transdisciplinar. Desenvolveu-se iniciando pelas noções de pós-modernidade e complexidade,
indeterminismo e risco, como decorrência da superação do mecanicismo, determinismo e das ideias de
segurança. O sistema jurídico pode deixar de ser funcional ocorrendo excesso de complexidade, mas
também, por outro lado, pode exigir maior complexidade. Essas situações são ditas crises sistêmicas.
Nessa linha, o sistema jurídico não se conforma com soluções simples, exigindo soluções complexas. A
solução do problema das ações repetitivas, portanto, exige maior complexidade sistêmica.
Palavras-chave: Sociedade. Conhecimento. Pós-modernidade. Direito. Complexidade. Método. Incerteza.
Insegurança. Acesso à justiça.

Sumário: 1 Introdução – 2 Modernidade e pós-modernidade – 2.1 Gaston Bachelard – 3 Complexidade.


Complexidade simples. Hipercomplexidade – 4 O método – 5 Vive-se a era da incerteza – 5.1 O risco na
sociedade complexa – 6 Soluções – 7 As ações repetitivas e o sistema jurídico – 7.1 A tese jurídica –
8 Conclusão – Referências

1 Introdução
O tema em que se insere a pesquisa ora apresentada é o do acesso à
justiça. Neste tema se estabelece o problema das ações repetitivas, no vértice do
elevadíssimo número de ações que aportam no Judiciário e da diversidade de soluções
dadas. A sociedade contemporânea, para a solução dos seus problemas, exige maior
complexidade, não sendo possíveis soluções simples, daí, então, a necessidade de
analisar a proposta de tese jurídica, constante do Projeto de Código de Processo
Civil, em tramitação na Câmara dos Deputados: trata-se de solução simples ou de
solução complexa?
Considerando que o acesso à justiça está na ordem do dia das sociedades
democráticas, de consumo de massa e de excesso e de falta de acesso à informação,
é necessário o desenvolvimento de pesquisas que enunciem soluções para aqueles
problemas ou que se proponham ao debate crítico-científico de soluções intentadas.

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Diógenes V. Hassan Ribeiro

As ações judiciais repetitivas põem em destaque as dificuldades da jurisdição: volume


elevado de serviço forense, daí a maior morosidade da prestação jurisdicional, diante
do esgotamento dos recursos humanos e materiais, e insegurança jurídica diante
de soluções conflitantes pelos diversos órgãos judiciários. Conciliar as soluções
com a estrutura democrática da sociedade é de suma relevância, disso resultando a
importância da pesquisa, no debate acadêmico.
Caracterizou-se como objetivo genérico da pesquisa, que se insere no tema
propriamente dito, estudar o aspecto democrático do acesso à justiça e, como
objetivo específico, examinar se a proposta do incidente de resolução de demandas
repetitivas, mediante “tese jurídica”, a ser definida diretamente nos Tribunais, está
adequada àquele padrão e ao da exigência de soluções complexas.
O desenvolvimento da pesquisa e a sua apresentação partiu dos conceitos
genéricos das teorias já firmadas, que convinham ser novamente repetidas. Assim,
iniciou-se pelos conceitos de modernidade, pós-modernidade, determinismo e
indeterminismo, complexidade e hipercomplexidade, incerteza e risco. Posteriormente,
no ponto específico, é apresentada uma noção de democracia de acesso à justiça e
das repercussões da solução apresentada para a resolução de demandas repetitivas.

2 Modernidade e pós-modernidade
Muito já se escreveu sobre a pós-modernidade. Trata-se de conceito que
encontra uma profícua significação. Pós-modernidade como era das incertezas, que
supera o determinismo da modernidade. Pós-modernidade que tem como marco
inicial a revolução industrial. Pós-modernidade como época de transição da sociedade
para outro estágio histórico. Pós-modernidade em que se inaugura a complexidade
da sociedade.
Parte-se da premissa de que qualquer investigação científica deve reprisar
tais conceitos, de modo a tê-los sempre presentes, evitando-se, assim, cair nas
armadilhas da simplificação. Nesses termos, o momento anterior à projeção é o da
prospecção, significando dizer que esta é condição para o sucesso da fundamentação
de alguma projeção que se faça. O problema das ações repetitivas, que resulta,
desde o primeiro olhar, no vértice do elevado número de ações judiciais em trâmite
perante os tribunais e da necessidade de tratar os conflitos semelhantes ou
idênticos com isonomia de soluções, daí derivando o que se costumou chamar de
segurança jurídica.
A identificação, portanto, dos problemas da sociedade pós-moderna, é a
principal motivação da pesquisa, embora genérica. E de logo se antevê, então, que
deve haver uma preparação preliminar para poder apresentar soluções, deve haver
uma preparação para soluções complexas. Cumpre demonstrar que, não havendo
soluções simples, não é possível dar conta dos problemas da sociedade sem a

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As ações repetitivas e a exigência de soluções complexas

constatação da sua severa complexidade, que transborda das específicas áreas do


conhecimento. No decorrer do texto que contém a pesquisa, serão vistos exemplos
de problemas dos sistemas que precisam ser resolvidos pelos subsistemas e que,
portanto, os irritam,1 em especial exemplos do sistema jurídico.
O ponto de partida é a questão do método para o conhecimento com o objetivo
de atingir o ponto final sobre o preparo para as soluções complexas.
Importa menos saber quando teve início e quando teve fim a modernidade, mas
importa mais saber quais conceitos vigoraram nessa época, qual o modo de viver
dessa sociedade. A modernidade como símbolo é um modelo histórico de sociedade.
O rompimento desse modelo, ou a superação desse modelo, não ocorre de forma
simples, como se bastasse para tanto uma decisão. É importante fixar que não há
extinção desse modelo, mas a sua superação, com o ingresso em um novo modelo,
a significar que há absorção do antigo modelo pelo novo. Todavia, muitos segmentos
da sociedade, ou seja, muitas comunidades continuam vivendo conforme os padrões
superados, demorando a ingressar no novo modelo. Há quem qualifique o ingresso
dessas comunidades no novo padrão de tardio. O fato é que, se não há a extinção
— eliminação — do antigo modelo, também não há o ingresso no novo modelo por
simples decisão. Antes é preciso superar os estágios necessários para o ingresso,
estágios históricos, portanto temporais. Por isso, comunidades desenvolvidas e
capitalizadas economicamente ingressam no novo modelo antes de outras, menos
desenvolvidas culturalmente. São comunidades da periferia do desenvolvimento
social, cultural, econômico, político e educacional.
No meio acadêmico, no meio profissional, no meio econômico, no meio político,
entre outros, a superação do modelo antigo e o ingresso no novo modelo também
ocorrem de forma paulatina e conforme o estágio em que se encontram.

2.1 Gaston Bachelard


Desde Gaston Bachelard,2 conhece-se a distinção entre determinismo e
indeterminismo. Estabeleceu Bachelard que o espírito da simplificação é a base do
determinismo, que expõe o êxito da concepção mecanicista. Todavia, o determinismo
não é verificado senão numa face irrisória em que a mecânica tenta explicar o
fenômeno. Tudo estaria contido em verdadeiras restrições experimentais. O
determinismo partiria de escolhas e de abstrações, tornando-se, assim, uma técnica.
O determinismo científico estaria presente apenas nos fenômenos simplificados

1
Irritação é uma expressão da teoria dos sistemas de Luhmann, que expressa o contato do sistema com os
demais subsistemas e que, por isso, possibilita a sua evolução.
2
Segundo Edgar Morin, Gaston Bachelard teria sido o primeiro a expressar o termo complexidade com
essa compreensão.

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Diógenes V. Hassan Ribeiro

e dogmatizados, andaria junto com o “coisismo”. Aliás, haveria uma mecânica


mutilada, deixada à deriva no exame inadequado do espaço-tempo, enquanto que,
na física, apenas permitira prova nos fenômenos hierarquizados, com peso maior em
variáveis particulares, e na química, apenas nos corpos purificados, com referência à
qualidades enumeradas.3
E, quando trata do indeterminismo, Bachelard menciona um ponto de vista
completamente diverso, recordando de Einstein, que descreveu a ideia de relatividade
na noção do intervalo do caráter elétrico e do caráter magnético do campo antes
concebido como eletromagnético. A exposição é de que o mesmo estado que se
descreve como um campo puramente magnético em um determinado sistema de
coordenadas, para outro sistema em movimento, na relação recíproca, é um campo
elétrico. Assim, seriam simples aparências os caracteres experimentais magnéticos
e elétricos, pelo que ficou enunciada a caracterização do campo unitário.4
Enfim, enquanto na modernidade havia a crença no determinismo histórico,
em que vigoravam o pensamento mecânico, cartesiano, a ideia de progresso, de
destino, na pós-modernidade, com esse rompimento e superação, percebe-se que o
progresso nunca é garantido. Percebe-se que as forças da natureza mudam o possível
destino e, ainda, que o mercado não garante o sucesso econômico do Estado, mas
assegura apenas o prosseguimento do próprio mercado e das suas instabilidades
próprias. As catástrofes naturais também trazem no ventre a ideia da incerteza do
destino humano. Não há mais a segurança de viver em um mundo predeterminado
pela vontade da sociedade, pela vontade do Estado, pela vontade do mercado, ainda
que este seja instável. Não há mais segurança, mas risco, e o perigo é conceito
igualmente presente.

3 Complexidade. Complexidade simples.


Hipercomplexidade
Fixado o rápido resumo dessa fatia de noções de modernidade e pós-modernidade
que interessavam, a análise deste tópico é sobre o significado de complexidade.
Pela ótica da teoria dos sistemas sociais, conforme desenvolvida por Niklas
Luhmann,5 a complexidade foi compreendida, em paralelo com a racionalidade,
como diferença entre o ambiente e o sistema, no sentido de que o sistema significa
a redução da complexidade do ambiente, também entendido como o entorno, ou
meio externo. Assim, considerando que sempre o meio externo é mais complexo
que o sistema, a primeira função do sistema é a de reduzir a complexidade. No

3
BACHELARD, Gaston. O novo espírito científico. 3. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000. p. 96-97.
4
Ibidem, p. 111.
5
Ver, por exemplo, LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas sociais. Rio de Janeiro: Vozes, 2010.

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As ações repetitivas e a exigência de soluções complexas

sistema formam-se estruturas que permitem a racionalidade dos obstáculos ao seu


funcionamento. Por outro lado, os sistemas cumprem funções para o sistema total,
que é o sistema social, a sociedade. Há inúmeros sistemas, podendo ser lembrados
os sistemas jurídico, político, econômico, da família, da saúde e o da educação.
Evidentemente que a teoria dos sistemas sociais é severamente complexa,
permitindo conexões e investigações de muita dificuldade, discussão que não é
objeto do presente artigo. Pode ser citada uma dificuldade e investigação que foi
desenvolvida que é a da relação existente entre o ambiente e o sistema, havendo
conclusão de que o sistema é fechado operacionalmente, mas aberto cognitivamente:
fechado para o meio no que concerne às suas operações, caso contrário não teria
condições de operar, e aberto para o meio cognitivamente, ou seja, como tem a
função de resolver um problema do sistema sociedade, tem de permanecer aberto
para essa relação, permitindo modificações na sua estrutura e com isso a evolução.
Tentando precisar e reduzir um conceito de complexidade, no contexto a que se
propõe a pesquisa apresentada, Luhmann esclarece caber pensar, inicialmente, no
número das possíveis relações, dos eventuais acontecimentos e processos. O meio
externo no qual se encontra um organismo, máquina e formação social é sempre
mais complexo, daí resultando que oferece mais possibilidades do que aquelas que
o sistema pode aceitar, legitimar e processar. Por isso, o sistema opera de maneira
seletiva, assim no plano das estruturas, como no dos processos. Há sempre outras
opções que poderiam ser, ou ter sido, selecionadas, quando se tenta atingir a ordem. A
própria ordem intentada é o resultado de uma seleção da relação de seus elementos.6
Paradoxalmente, como é dos ensinamentos de Luhmann, ele distingue entre
complexidade simples, em que todos os elementos poderiam ser conectados,
e complexidade complexa, em que há seletividade e contingência, com maior
capacidade de variação, diante da impossibilidade de conectar todos os elementos.
Há necessidade de escolha, de seleção entre as diversas possibilidades, o que traz
em si o risco de erro, a indeterminação, a ausência de segurança.
De acordo com a narrativa de Luhmann, na tradição histórica da Idade Média,
o conceito de complexidade era o simples, com uma cosmovisão de necessidade de
construção de segurança frente ao instável. Todavia, na atualidade, aprofundando a
análise, pode-se chegar a descrições da complexidade por sistemas que atingem a
descrição da hipercomplexidade, a significar que um sistema pode ser descrito por
uma pluralidade de descrições complexas.
Em Morin7 a descrição de complexidade é diversa: resgata a origem latina,
expressa complexus como o que tece em conjunto. Explica Morin a incapacidade
atual de lidar com a complexidade, uma vez que a educação e a tradição somente

6
LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas sociais. Petrópolis/RJ: Vozes, 2010. p. 184.
7
CASTRO, Gustavo de. Ensaios de complexidade. 3. ed. Porto Alegre: Sulina, 2002.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 61-76, jul./set. 2014 65
Diógenes V. Hassan Ribeiro

forneceram formação para separar e isolar as coisas.8 Tudo é separado: os objetos


de seus contextos, a realidade em disciplinas compartimentadas. Entretanto,
a realidade é feita de laços e de interações. O conhecimento atual é incapaz de
perceber o “complexus” — o tecido que junta o todo. A seu turno, o sistema da
educação elegeu as coisas deterministas, que obedecem à mecânica. Essas coisas
permitem a previsão e a predição.9
Sobre a democracia, noutra de suas inúmeras obras, Edgar Morin expõe que
se trata de sistema político complexo, que se nutre de pluralidades, concorrências e
antagonismos, permanecendo como comunidade. Trata-se da autonomia de espírito
dos indivíduos, da sua liberdade de opinião e de expressão, do próprio civismo, que
advém do ideal liberdade/igualdade/fraternidade, com o sentido de conflituosidade
criadora dos três termos inseparáveis. A democracia seria a união entre a união e a
desunião. A pluralidade dos três poderes do Estado, Executivo, Legislativo e Judiciário,
é o que conserva a democracia e que, por sua vez, conserva essa pluralidade.10
Complexidade é o excesso de possibilidades, contra a contingência de soluções,
em que deve haver seleção, opção, escolha, por uma hipótese, que pode não se
revelar a correta. Analisadas as duas óticas, de Luhmann e de Morin, a complexidade
é o todo, o ambiente, a sociedade, que sistematicamente muda e que exige dos
sistemas a adaptação sistêmica, de redução de complexidade. A complexidade gera
uma infinidade de possibilidades que o sistema não consegue absorver, por isso
essa circularidade, essa ida e vinda do todo ao indivíduo e do indivíduo ao todo,
esse aparente eterno retorno.11 Aparente porque há mudanças, em nós mesmos, nos
espaço/tempo entre a ida e o retorno.

4 O método
Conforme o Discurso de René Descartes, que deu ensejo a inúmeras pesquisas
e investigações científicas da modernidade, o método não tem mais aplicação na pós-
modernidade. Portanto, não há método que assegure o conhecimento da verdade e até
mesmo a verdade é questionável, porque a verdade só pode ser aquela da existência
da expressão de que algo é verdadeiro,12 em nada correspondendo à essência do

8
Aqui entra a noção da necessidade de preparação para soluções complexas expressa nas entrelinhas e nos
objetivos implícitos do artigo e da pesquisa.
9
Ibidem, MORIN, Edgar: Complexidade e ética da solidariedade, p. 11.
10
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília/DF: UNESCO,
2002, p. 108-109.
11
Nietzsche fala de “eterno retorno”, assim como, antes dele, Marx, que disse que a história se repete, uma vez
como tragédia, outra como farsa. Ver, sobre Nietzche, Milan Kundera — A insustentável leveza do ser; e, em
Marx — O 18 brumário de Napoleão Bonaparte. Não convém esquecer que Hegel também tratou da espiral
histórica, ainda que no sentido de interpretação da história.
12
Heidegger, sobre a verdade, menciona que a expressão “o ouro é falso” ou o “ouro é verdadeiro” são
verdadeiras nas suas expressões, o que não significa que sejam verdadeiras nas suas essências, podendo
ser verdadeiras na sua realidade de falsidade ou de autenticidade.

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As ações repetitivas e a exigência de soluções complexas

que se pretende que seja verdadeiro. Nesses termos, tudo passa a se contemplar na
linguagem que permite o próprio mundo: sem linguagem não há mundo.
O método cartesiano (Descartes), o método da separação e do conhecimento
do todo pelo conhecimento das partes, vinculado ao mecanicismo (Newton), da
causalidade, que entende que os efeitos já estão determinados nas causas que os
precederam, perderam seu sentido. A ausência de método coloca o conhecimento em
insegurança, em indeterminação. Não existe uma verdade, mas verdades. Não existe
uma leitura, mas leituras diversas, igualmente relevantes para o conhecimento. Existe
uma forma perfeitamente humana de conhecer.
O humano — na sua perfeição: é perfeito na sua imperfeição. Heidegger
esclarece a respeito, propondo a assertiva de que, onde o ente é pouco conhecido, ou
onde é conhecido rudimentarmente, a sua revelação pode ser enunciada de maneira
mais essencial do que onde é conhecido e constantemente oferecido e tornado
exaurível ao olhar, pois aqui a capacidade técnica de dominar as coisas se desdobra
em uma agitação sem fim.13
Sobre a verdade, no âmbito da teoria do discurso, de Habermas, a proposta
é a de que sejam cumpridas duas condições, sendo a primeira delas a liberdade
comunicativa, e a segunda a orientação para o consenso. A prática argumentativa
permite a criação de um laço social que se preserva, inclusive entre os participantes
na competição pelos melhores argumentos.14
Argumentação razoável e discurso que busque um consenso, com liberdade do
sujeito, de tal modo amalgamados que possibilitem a busca da verdade cultural e
histórica. Portanto, verdade naquele contexto histórico. Isso é o que se pode concluir
de Habermas.
Com a perda de sentido do método, o sistema positivista, de organização do
conhecimento, de organização da história, igualmente perdeu sentido. Na sociedade da
informação, há excesso de informação e a história deixou de ser linear, se é que um dia
verdadeiramente tenha sido linear no seu acontecer, senão apenas na sua narrativa.
Superado o método cartesiano, o Método de Morin não indica uma metodologia
de investigação e de pesquisa, deixando o cientista liberto para buscar e produzir
conhecimento, tão somente de posse dos princípios inaugurais. Assim, rigorosamente
o método de Morin é a criação do método pelo cientista na ocasião da sua própria
investigação. Morin volta-se à etimologia da palavra método: metá (além, através) e
hódos (caminho). A pesquisa científica se faz enquanto se produz a pesquisa — esse é
o método. E isso tudo conflui numa aparência de anarquia — apenas aparência. Aliás,
a própria democracia é um acontecer diuturno, é uma prática, mais que um discurso.

13
HEIDEGGER, Martin. Conferências e escritos filosóficos. Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Nova Cultural,
1989. p. 130. (Os pensadores).
14
HABERMAS, Jürgen. La ética del discurso y la cuestión de la verdad. Buenos Aires: Paidós, 2004. p. 30-31.

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Diógenes V. Hassan Ribeiro

5 Vive-se a era da incerteza


Como consequência da perda de sentido do determinismo e do destino, vive-se
a era da incerteza. O ser humano não se pode arrogar como ser perfeito que prevê o
mundo. A sociedade não tem o controle do mundo e dos acontecimentos. Vivemos num
mundo em que não há segurança. Segundo Morin, “vivemos num mundo onde cada vez
mais há incertezas. A crença no determinismo universal, que era o dogma da ciência do
século passado, desmoronou. O problema é como enfrentar e rejuntar a incerteza”.15
Outro intenso pensador da atualidade, Zygmunt Bauman expressa que a vida
é uma arte, em que devem ser anunciados desafios para os viventes, desafios
difíceis de confrontar diretamente. Esses alvos parecem permanecer com teimosia
distante da nossa capacidade, muito acima dela. Mas, se não há sequer prognóstico
de atingirmos esses objetivos, quanto mais certeza disso. Por isso, a incerteza
é o lugar natural da vida humana, mesmo que tenhamos a esperança de acabar
com a incerteza e que isso seja o motor das ações humanas. Fugir da incerteza é
ingrediente fundamental, mas é apenas presumido. Daí, então, estar a felicidade,
aquela adequada, perfeita, sempre parecer residir em algo mais distante, como o
horizonte que recua quando dele tentamos nos aproximar.16
A compreensão da incerteza do mundo traz o benefício de que o homem é
o senhor de si mesmo, mas traz a insegurança da ausência do determinismo, da
causalidade e da ideia do progresso.
Morin tece outra advertência que não pode ser abstraída. Diz que o conhecimento
é uma aventura plena de incertezas, no qual está incluído o risco de ilusão e de
erro. Todavia, é nas certezas dogmáticas e intolerantes que se encontram as piores
ilusões. Enquanto que o caráter incerto do ato de conhecer constitui uma oportunidade
de chegar ao conhecimento pertinente, o que demanda exames, verificações, revisão
dos indícios, a vida compreende espaços indefinidos, espaços falsamente definidos
e, sobretudo, ausência de um quadro geral explicativo fechado: o conhecimento é
como navegar no oceano cheio de incertezas, entre arquipélagos de certezas.17
Nesses termos, o ser humano está abandonado ao seu conhecimento do mundo
e a sua perfeição de ser meramente humano: é perfeito na sua imperfeição.

5.1 O risco na sociedade complexa


O risco na sociedade complexa, como fechamento dessa análise cíclica,
ou circular, a sociedade contemporânea é uma sociedade de risco. Mas, o que
significa, precisamente, essa concepção de sociedade? Ulrich Beck, Luhmann,

15
MORIN, Edgar. Ensaios de complexidade. Coordenação de CASTRO, Gustavo de. p. 11.
16
BAUMAN, Zygmunt. A arte da vida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. p. 31-32.
17
MORIN, Edgar. Os sete saberes..., p. 86.

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As ações repetitivas e a exigência de soluções complexas

Baumann, Giddens, Scott Lasch, entre outros cientistas já trataram dessa sociedade
pós-industrial, de risco.
O risco está por toda a parte, em todas as coisas e possibilidades, tal a significar
redundância e é acrescentado juntamente com a evolução, ou seja, vem de mãos
dadas com esta. Ulrich Beck expressa essa conclusão, enunciando que o processo
de modernização passa a ser reflexivo, numa conversão de si mesmo em tema e
problema. O desenvolvimento e o emprego de tecnologias, na natureza, na sociedade
e na própria personalidade exigem o tratamento das questões de manejo político e
científico, como administração, descoberta, integração, prevenção, acobertamento,
dos riscos. O desenvolvimento técnico-econômico exige segurança, que avança com
os riscos, presente uma esfera pública alerta e crítica.18
E Ulrich Beck exemplifica, na mesma obra, com o problema do excesso de
peso, em lugar do problema da fome, antecipando os problemas da “nova pobreza”.
Relativamente ao que chama de riscos potenciais de autoameaça civilizatórios, Beck
situa cinco teses: a) riscos da forma como são produzidos, em que menciona como
exemplo a radioatividade; b) riscos decorrentes da distribuição fazem surgir situações
sociais de ameaça, como se fosse um bumerangue, implodindo o esquema de
classes, pois, mesmo que tardiamente, os que produziram os riscos, ou lucram com
eles, também serão atingidos; c) a expansão dos riscos não rompem com a lógica
capitalista, pois a fome pode ser saciada e necessidades podem ser satisfeitas,
mas os riscos civilizatórios são um barril de necessidades sem fundo, interminável,
infinito, autorreferencial, são as necessidades insaciáveis que os economistas
sempre pretenderam; d) as riquezas podem ser possuídas, mas os riscos afetam a
todos; e e) a sociedade de risco como sociedade catastrófica, em que o estado de
exceção ameaça converter-se em estado normal, como no caso do desmatamento,
em que há o combate às causas no próprio processo industrial, ocorrendo a regência
pela esfera pública e política do modelos industriais.19
Não há segurança, nem determinismo. Há risco e improbabilidades, o que
demanda esforço e cálculo, que somente servem para reforçar a conclusão.

6 Soluções
Em decorrência dessas noções, não há mais possibilidade de soluções simples
para os problemas da sociedade, que os sistemas funcionais têm a função de
resolver. As soluções devem ser soluções complexas, trazendo o paradoxo de, para
simplificar o funcionamento do sistema, gerar-se maior complexidade.
Os sistemas sociais evoluem com a seleção, variação e estabilização, e
consequente acréscimo estrutural, tornando-se, assim, mais complexo. Entretanto,

18
BECK, Ulrich. Sociedade de risco – rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Ed. 34, 2010. p. 24.
19
Idem, p. 28.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 61-76, jul./set. 2014 69
Diógenes V. Hassan Ribeiro

pela excessiva complexidade, o sistema pode deixar de ser operativo. Nesse sentido
há excesso de complexidade.
Por outro lado, pode haver necessidade de maior complexidade. Habermas
precisa a concepção de crise sistêmica nesse caso, dizendo que as crises surgem
quando a estrutura de um sistema social permite menos possibilidades para resolver
o problema, ao passo que é necessário mais possibilidades, inclusive para a contínua
existência do próprio sistema. Seriam, então, as crises, vistas como distúrbios
persistentes da integração do sistema.20
A crise sistêmica demanda maior complexidade, demanda a evolução. Todavia,
a evolução não pode ser causada, nem construída, apenas estimulada. Uma
determinada seleção pode ser, mais tarde, rejeitada, uma vez que não se revelou
funcional. Não há certeza do sucesso da evolução. O processo da evolução se
completa com a realização de fatos que caracterizam seus elementos: primeiro a
variação, depois a seleção e, por fim, a estabilização. O sistema, para se manter e,
ao mesmo tempo, para manter a sua identidade frente ao meio, deve ser estabilizado
por uma estrutura, estrutura esta que, paradoxalmente, precisa evoluir, à medida que
o sistema e meio exigem, sem perder a sua estabilidade.
Para mostrar que, efetivamente, não há possibilidade de a sociedade — o
sistema total — resolver seus problemas com soluções simples, podem ser citados
alguns exemplos. O primeiro, que aborda o sistema do tráfego. Na atualidade, como
se percebe, há uma sobrecarga intensa do sistema de tráfego, pois os automóveis
são produzidos e ingressam no mercado em profusão absurda. Argumenta-se que,
nas cidades, haverá brevemente uma situação de congestionamento do trânsito
total. Quais soluções podem ser apresentadas? a) construir e ampliar as rodovias; b)
cobrar mais tributos sobre os automóveis; c) impor condições para a aquisição de um
automóvel; d) proibir a circulação de determinados veículos em algumas vias públicas,
por exemplo caminhões nas vias urbanas; e) proibir o trânsito de determinados
veículos, por finais de placas, que somente poderão trafegar em determinados dias
da semana, estabelecendo alternância de dias entre uns e outros; f) cobrar pedágios
em determinadas vias urbanas; g) melhorar e ampliar o transporte coletivo, inclusive
pelo meio metroviário.
Todas as possibilidades de solução apresentadas, como visto, são soluções
simples que surgem desde os primeiros debates. Entretanto, vistas com outros
olhares, constata-se que a sua concretização é de intensa complexidade, uma vez que
terão graves repercussões em outros sistemas, em especial no sistema econômico.
O problema é de grave complexidade e, como tal, exige soluções complexas. Qualquer
medida que produza a restrição da produção de veículos, no curto prazo resultará
em graves problemas de ordem econômica, como o desemprego, que desestrutura

20
HABERMAS, Jürgen. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 2002. p. 13.

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As ações repetitivas e a exigência de soluções complexas

famílias (portanto, atinge o sistema da família), causando problemas severos para


as empresas, inclusive para as que se estabelecem em função dos veículos. Há
municípios que têm todo o comércio voltado para a renda oriunda da produção de
automóveis. Igualmente, os orçamentos municipais e estaduais sofrerão perdas com
a menor arrecadação de tributos.
Por outro lado, a melhoria e a ampliação do sistema de transporte coletivo, no
curto prazo, não é possível em razão dos custos de tais obras. Há também o sistema
político, a democracia das decisões, que devem ser adotadas a respeito, muitas
vezes demoradas.
Outra questão que pode ser citada como exemplo e que demanda solução
complexa, no meio jurídico, decorrente de casos concretos, é a que se dá no direito
fundamental à saúde. O judiciário recebe, diariamente, inúmeras ações postulando
medicamentos, ou vagas hospitalares para baixas, que possibilitem a pacientes
continuarem sobrevivendo, pelo menos retardando os males da patologia que os
acomete. Sobre isso há uma infinidade de argumentos. A argumentação e a análise
transbordam o sistema jurídico, como se vê pela análise feita por Germano Schwartz,
no âmbito da teoria Luhmanniana. Relata que os portadores do vírus HIV exigem
o fornecimento dos medicamentos, enquanto o sistema social processa essa
informação e a distribui entre os subsistemas, que reagem, mas sempre conforme
as suas próprias referências. O sistema religioso estabelece que, em vez do
fornecimento de preservativos para evitar a contaminação, deve ser praticado sexo
somente após o casamento. O sistema econômico vê uma oportunidade de lucro,
como sói ocorrer, uma vez que a sobrevivência daqueles seres humanos impõe a
aquisição de medicamentos e outros suprimentos, inclusive de rede de serviços de
tratamento. E o sistema político procura obter o voto desse grande contingente de
pessoas e edita legislação que, quando entra no sistema jurídico, passa a funcionar
como critério de decisão, circulando dinamicamente, com vistas ao restabelecimento
da norma eventualmente violada.21
A solução sobre a concessão, ou não, dos medicamentos, já deu ensejo a
incontáveis decisões na jurisprudência, inclusive no Supremo Tribunal Federal. A
abordagem do tema erigiu o denominado limite da reserva do possível, sobre o qual
discorreu Ingo Wolfgang Sarlet, admitindo uma compreensão ampla, que abrangeria
tanto a possibilidade quanto o poder de disposição do destinatário da norma.22
O constitucionalista esclarece que há uma limitação de recursos, que limitam,
por seu turno, a disponibilidade do Poder Público e, ainda, que este tenha capacidade,
ou seja, a possibilidade de dispor daquelas prestações.

21
SCHWARTZ, Germano. O tratamento jurídico do risco no direito à saúde. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2004. p.186.
22
SARLET, Ingo Wolfgang. Eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
p. 289, 318.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 61-76, jul./set. 2014 71
Diógenes V. Hassan Ribeiro

Enfim, o objetivo é que se compreenda que qualquer exigência do sistema


social não pode ser isoladamente tratada, mas, sim, que a disciplina desbordará do
âmbito de um sistema, superando-o, transbordando-o. Daí a necessidade de soluções
complexas, que prevejam o espectro de consequências possíveis e imagináveis.

7 As ações repetitivas e o sistema jurídico


Na linha do que constou acima, há outros exemplos. Relativamente ao sistema
jurídico, o problema das ações repetitivas e, consequentemente, dos recursos
repetitivos está na ordem do dia. Este, aliás, é o mote da pesquisa apresentada.
Com efeito, para a solução desse problema, que resulta noutros inúmeros,
já foram imaginadas várias soluções, entre as quais (a) as ações coletivas, (b) a
uniformização de jurisprudência em súmulas, inclusive vinculantes à Administração e
aos diversos graus de jurisdição e (c) julgamento de tese, em incidente, pelo tribunal,
tese que serviria para a solução de todos os casos semelhantes.
A legislação existente que trata das ações coletivas é adequada e provém
do direito norte-americano, das chamadas “class actions”. As origens e as
modificações posteriores da legislação brasileira23 preservam o direito de as partes
não ingressarem com a ação e, portanto, de não serem atingidas pela sentença. O
instituto da uniformização de jurisprudência, antigo, não se revelou uma solução,
pois os tribunais não adotaram o instituto como solução em razão de a organização
judicial, no Brasil, ser excessivamente centralizada e concentrada, ao argumento de
que deve haver uma interpretação federal da legislação. Assim, os tribunais dos
Estados-Membros da federação, e os tribunais regionais federais, deixam de emitir
súmulas considerando a possibilidade de perderem a credibilidade com decisão
diversa produzida pelos tribunais superiores, com sede em Brasília. A novidade da
súmula com caráter vinculante também não se revelou, até o presente instante,
eficaz, ou, pelo menos, eficaz no sentido de ser evitado o ajuizamento de inúmeras
demandas em série e repetitivas fora do âmbito do Supremo Tribunal Federal e da
interpretação constitucional.

7.1 A tese jurídica


No projeto de Código de Processo Civil foi criada a inovação da elaboração
de tese jurídica no incidente de demandas repetitivas, que será da competência do
tribunal, a exemplo do incidente de uniformização de jurisprudência. O risco dessa
inovação é o de possibilitar a excessiva concentração e centralização das decisões

23
A Lei nº 7.347/85, que já sofreu várias modificações, a mais recente em 2011, é a lei a que se refere no texto
e que versa sobre a ação civil pública.

72 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 61-76, jul./set. 2014
As ações repetitivas e a exigência de soluções complexas

judiciais nos tribunais superiores, diante da inércia dos tribunais estaduais, inércia
que se justifica pelo fato de não pretenderem perder sua credibilidade com eventual
alteração da tese por corte superior.
Há um risco maior, contudo, que é o já mencionado da excessiva centralização
e concentração das decisões nas cortes superiores de Brasília. Esse risco, se
adotada efetivamente tal solução, altera o quadro democrático das decisões judiciais
que, normalmente, nascem da sua base, no primeiro grau de jurisdição, e vão
amadurecendo, com eventuais alterações e diante dos debates, por vezes polêmicos,
formados, até a conclusão final com a decisão dos tribunais superiores. É possível
compreender que um tribunal superior possa, de plano e imediatamente, funcionar
como o derradeiro intérprete de um determinado caso jurídico? Para uma solução
simples, a resposta é necessariamente afirmativa, pois, de rigor, o tribunal superior
dá a última interpretação com frequência. Todavia, essa última interpretação tem sido
dada depois de longa discussão da questão jurídica posta. Há um debate amplo, que
se inicia com a propositura da ação, que é enfrentada pela defesa apresentada pela
outra parte e que, depois de produzidas outras alegações e argumentações encontra
a sentença de primeiro grau. Essa sentença é impugnada por recurso e, depois, o
recurso é, igualmente, impugnado. Por fim há o julgamento no tribunal, cuja decisão,
em algumas situações, comporta novo recurso, diante de afronta à Constituição ou
diante de interpretação da lei federal equivocada. Esse trâmite é necessário para o
amadurecimento da decisão, o que não ocorreria no caso de, desde logo, ocorrer
incidente no tribunal para estabelecer a tese jurídica que solucionaria, ou solucionará,
todas as demais demandas.
Por outro lado, o princípio do duplo grau de jurisdição seria observado?
Tecnicamente pode-se dizer que sim, considerando que as decisões adotadas em
razão da tese jurídica posta poderiam ser impugnadas pelo recurso cabível e, assim,
reexaminadas. Mas, se a tese for imposta por decisão do Superior Tribunal de Justiça,
em incidente formado naquele tribunal, haveria, sim, dúvidas sobre o atendimento ao
princípio do duplo grau de jurisdição, à medida que o Supremo Tribunal Federal não é
tribunal de segundo grau em relação ao STJ.
Argumenta-se, outrossim, que essa solução atende ao princípio da segurança
jurídica, ostentado no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal. No caso, sustenta-se,
o princípio da segurança jurídica estaria sendo observado porque a mesma decisão
seria implementada a todas as demais situações jurídicas iguais. Contudo, cumpre
questionar sobre a eventual ocorrência de alteração da decisão, posteriormente. Ora,
a alteração da jurisprudência tem ocorrido em inúmeros casos, inclusive em casos de
ações repetitivas. Quem pode garantir que, mudando a composição da Corte, não haja
a mudança, mesmo em parte, do entendimento preconizado na tese jurídica? Nessa
situação, o prejuízo terá atingido um número possivelmente maior de partes, todas as
que figuraram nas ações julgadas no período de vigência da tese jurídica modificada.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 61-76, jul./set. 2014 73
Diógenes V. Hassan Ribeiro

E a democracia? O constitucionalista alemão Peter Häberle24 expôs a teoria


da “sociedade aberta dos intérpretes da Constituição, que atende a democracia
e que expande a interpretação da Constituição a todos os cidadãos, não apenas
ao Judiciário e, em especial, às Cortes Constitucionais. No caso da tese jurídica,
impõe-se reconhecer que não se cogita de interpretação da Constituição. Entretanto,
valem os mesmos princípios, pois não é democrático estabelecer o Tribunal uma
tese jurídica que será adotada em todas as demais situações jurídicas, sem qualquer
outra mediação hermenêutica. Com efeito, uma tese jurídica, adotada em um
determinado caso, que valerá para todas as demais situações jurídicas, impede que
se processem outras interpretações, as quais, eventualmente, poderão apresentar
outros argumentos mais apropriados e mais corretos.
Ainda tendo em conta a democracia, Jürgen Habermas distingue discursos
jurídicos de fundamentação dos discursos jurídicos de aplicação.25 Os primeiros
tratam da fundamentação das normas; os segundos, da aplicação das normas, ou
da opção por uma delas e, nesse caso, aplicá-la a uma dada situação jurídica. Os
cidadãos criam para si mesmos as leis, numa formação da sua vontade, e o exercício
do poder político funda-se e se legitima nessas leis. A aplicação da lei depende
do judiciário e o judiciário, para a aplicação da lei a um caso concreto, depende
do aparato administrativo do Estado. Esta é a lógica da separação dos Poderes.
A suposição da tese jurídica, tal qual proposta, estabelece uma abstração própria
à legislação, permanecendo, por isso, a questão da conformação constitucional,
política e democrática dessa tese a ser criada pelo Tribunal, que será aplicada a um
número expressivo de situações jurídicas.
Ademais, considerando que o caso posto à decisão pode ser diferente dos
demais, por guardar uma peculiaridade, assim como muitos outros, evidentemente
não poderá ser emitida a mesma solução vista na tese posta pelo tribunal superior.
Estas são apenas algumas das repercussões negativas da tese jurídica, tal
como pretendida. Mais adiante serão vistas outras.

8 Conclusão
Pode-se dizer que o presente artigo procurou apresentar a complexidade,
ou hipercomplexidade da sociedade contemporânea, daí fez inflexões no sistema
jurídico, mostrando exemplos dessa dificuldade e, portanto, complexidade.

24
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição
para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto
Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1997.
25
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia — entre faticidade e validade, vol. I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
p. 213 e seguintes.

74 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 61-76, jul./set. 2014
As ações repetitivas e a exigência de soluções complexas

Como visto, na sociedade contemporânea predomina a incerteza, a insegurança


e o risco, daí a superação do determinismo, do mecanicismo e do cartesianismo, não
havendo espaço para soluções simples, pois as soluções serão sempre complexas,
já que terão consequências não imaginadas. Isso significa que não bastam soluções
que implicam mera soma aritmética, mero incremento de uma novidade, de uma
invenção, olvidando-se as consequências que decorrerão desse acréscimo.
Diante dos problemas (a) do volume do serviço pela quantidade de ações
ajuizadas e, então, morosidade do judiciário considerando o esgotamento dos
recursos humanos e materiais, e (b) da imposição de atender, na medida do possível,
a segurança jurídica consistente no tratamento isonômico de situações iguais, é
indispensável que se eleja alguma solução.
Não se pode olvidar, aliás, do princípio constitucional da razoável duração do
processo na busca de medidas contrárias à morosidade.26
A solução contida no projeto de Código de Processo Civil — da tese jurídica —
certamente não é uma solução simples. Há uma situação, um problema para o
sistema jurídico, que se impõe solucionar. Nesse caso, então, há uma crise sistêmica:
ausência de complexidade.
O fato é que, haurida do direito estrangeiro, pois, como se sabe, há soluções
semelhantes em prática na Alemanha, em Portugal, na Itália, nos Estados Unidos
e em outros países, não há certeza sobre se a adoção dessa solução, no Brasil,
terá êxito. Outrossim, certamente haverá repercussões noutros lindes sistêmicos,
em especial no sistema político, pois o Judiciário estará qualificado, de certa forma,
a arbitrar soluções abstratas, genéricas.
Todavia, como a evolução não pode ser causada, mas apenas estimulada,
evidentemente que a opção poderá ser pela via da aprovação da proposta de criação
de tese jurídica para solucionar as demandas repetitivas. O tempo se encarregará de
dizer se a opção eleita dará a resposta esperada.
Finalmente, pode-se dizer que os problemas complexos da sociedade
contemporânea exigem soluções complexas que, por sua vez, exigem que o foco
esteja na solução, não no problema, no sentido de evitar que a solução se transforme
em um problema maior.

Repetitive lawsuits and the requirement of complex solutions


Abstract: The research paper investigated the impossibility of simple solutions in the current historical
era and cultural society in any field of knowledge. Knowledge is multidisciplinary, and transdisciplinary. It
developed itself starting with the notions of postmodernism and complexity, and risk indeterminism, as a
result of overcoming the mechanism, determinism and ideas of safety. The legal system may no longer be
functional when excessive complexity occurs, but, on the other hand, it can require increased complexity.

26
Ver a respeito JOBIM, Marco Félix. O direito à duração razoável do processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 61-76, jul./set. 2014 75
Diógenes V. Hassan Ribeiro

These circumstances are known as systemic crises. Therefore, the legal system does not adjust to simple
solutions, it demands complex solutions. The solution to the problem of repetitive lawsuits, therefore,
requires a higher systemic complexity.

Key words: Society. Knowledge. Postmodernism. Law. Complexity. Method. Uncertainty. Lack of safety.
Access to justice.

Referências
BACHELARD, Gaston. O novo espírito científico. 3. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000.
BAUMAN, Zygmunt. A arte da vida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
BECK, Ulrich. Sociedade de risco – rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Ed. 34, 2010.
CASTRO, Gustavo de. Ensaios de complexidade. 3. ed. Porto Alegre: Sulina, 2002.
HABERMAS, Jürgen. La ética del discurso y la cuestión de la verdad. Buenos Aires: Paidós, 2004.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia – entre faticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro. v. 1.
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição:
contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar
Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1997.
HEIDEGGER, Martin. Conferências e escritos filosóficos. Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Nova
Cultural, 1989.
JOBIM, Marco Félix. O direito à razoável duração do processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado
Editora, 2012.
LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas sociais. Rio de Janeiro: Vozes, 2010.
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília/DF:
UNESCO, 2002.
MORIN, Edgar. Ensaios de complexidade. In: CASTRO, Gustavo de. Ensaios de complexidade. 3. ed.
Porto Alegre: Sulina, 2002.
SARLET, Ingo Wolfgang. Eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
SCHWARTZ, Germano. O tratamento jurídico do risco no direito à saúde. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2004.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

RIBEIRO, Diógenes V. Hassan. As ações repetitivas e a exigência de soluções


complexas. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano
22, n. 87, p. 61-76, jul./set. 2014.

76 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 61-76, jul./set. 2014
Aspectos da dinâmica do direito
jurisprudencial no Brasil versus a busca
da coerência e integridade –
Uma primeira impressão das premissas
dos precedentes no Novo Código de
Processo Civil

Dierle Nunes
Doutor em Direito Processual (PUC Minas/Università degli Studi di Roma “La Sapienza”).
Mestre em Direito Processual (PUC Minas). Professor permanente do PPGD da PUC
MINAS. Professor adjunto na PUC MINAS e na UFMG. Secretário-Geral Adjunto do IBDP.
Membro fundador do ABDPC. Membro da comissão de juristas do Novo CPC na Câmara dos
Deputados. Advogado. E-mail: <dierle@cron.adv.br>.

Aline Hadad Ladeira


Mestre em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas. Advogada.
E-mail: <alinehadad@yahoo.com.br>.

Resumo: O presente artigo objetiva pontuar alguns aspectos na dinâmica do direito jurisprudencial no
Brasil e a busca pela coerência e integridade – dois pressupostos do sistema delineado pelo Novo Código
de Processo Civil para os precedentes. A proposta é analisar se o propósito da uniformidade jurisprudencial
e da igualdade, comum entre nós, promove (ou não) um fechamento do debate em face da criação dos
padrões decisórios, em contradição o sistema originário do common law. Parte-se do pensamento de
Ronald Dworkin e de alguns dados empíricos. A pautar-se pelas nuances do common law, a integridade
e coerência na aplicação jurisdicional significa a reconstrução histórica da cadeia de casos concretos
julgados e interpretados, ou seja, de uma efetiva realidade e não teses jurídicas em abstrato.
Palavras-chave: Direito Jurisprudencial. Coerência e Integridade. Common Law. Novo Código de Processo Civil.

Sumário: 1 Considerações iniciais – 2 O pressuposto brasileiro na dinâmica do direito jurisprudencial –


3 Coerência e integridade a nortear uma adequada aplicação dos precedentes no Brasil – Considerações
finais – Referências

1 Considerações iniciais
Pensar o direito e sua realização prática tem se tornado uma tarefa cada vez
mais complicada diante da multiplicidade de perspectivas teóricas e metodológicas,
sobretudo quando se está diante de uma decisão jurídica.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 77-99, jul./set. 2014 77
Dierle Nunes, Aline Hadad Ladeira

Tanto é assim que dentre os principais debates teóricos está a interação


constante entre o civil law e o common law. Hoje, a dicotomia entre essas duas
tradições não se apresenta tão nítida e radical como foi outrora, sendo visível uma
gradativa e mútua aproximação entre elas,1 como já pontuamos inúmeras vezes
no passado.2
Tal “atenuação progressiva” demonstra que, embora partindo de pontos
distanciados, as duas grandes tradições jurídicas tendem a percorrer caminhos
convergentes, donde se faz prudente a “comparação dos métodos que uns e outros
vão imaginando para espancar o pesadelo da sobrecarga judiciária, o que nos
é comum”.3
De imediato, há de se pontuar que essa tendência e esse fenômeno podem
gerar deturpações e equívocos causadores de grande problemas.
Nesse viés, desde algum tempo no Brasil, as reformas legislativas e
constitucionais têm se concentrado na tentativa de uniformização da jurisprudência,
sob a falsa premissa de que o direito jurisprudencial serviria como técnica de
dimensionamento da litigiosidade repetitiva.
Seu uso, por óbvio, especialmente pelas técnicas de causa piloto existentes
(543-A a C) e projetadas no Novo CPC (arts. 520 a 522 e 1.049 et seq da versão
Câmara de 26.03.2014), pode viabilizar uma melhoria e gerenciamento da litigiosidade
repetitiva, de modo que os tribunais julguem menos vezes (com maior qualidade)
os macrotemas (com abrangência argumentativa), mas isso não induz a certeza,
alardeada por alguns, e posta quase como dogma, de que o Direito jurisprudencial
sirva para tal desiderato.
Ocorre de forma cada vez mais acentuada a defesa da criação de mecanismos
de padronização decisória no sentido de que, uma vez firmada jurisprudência em
certo sentido, esta deveria, como norma, ser mantida, salvo se houver relevantes
razões recomendando sua alteração.
No momento em que o Poder Judiciário é provocado a decidir sobre qualquer
tipo de assunto com uma grande carga de trabalho (profusão numérica de

1
Há mais de vinte e cinco anos, a convergência entre o common law e o civil law foi relatada por Mauro
Cappelletti (The Doctrine of stare decisis and the civil law: A Fundamental difference – or no difference at all?
Tübingen: J.C.B. Mohr, 1981).
2
Cf. v.g. THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Breves considerações da politização
do judiciário e do panorama de aplicação no direito brasileiro – Análise da convergência entre o civil law e
o common law e dos problemas da padronização decisória. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos
Tribunais, v. 189, nov. 2010, p. 40.
3
LEAL, Victor Nunes. A súmula do Supremo Tribunal e o restatement of the law dos norte-americanos.
In: Problemas de direito público e outros problemas. Brasília: Ministério da Justiça, 1997. p. 59-64,
v. 2. p. 5.

78 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 77-99, jul./set. 2014
Aspectos da dinâmica do direito jurisprudencial no Brasil versus a busca da coerência e integridade...

processos),4 além da judicialização da vida política e administrativa, instauram-se


há algum tempo (e se ampliam) modelos de padronização decisória para o
estabelecimento de uniformidade nas decisões em busca de uma pretensa igualdade.
O lema tem sido: para questões idênticas, decisões iguais.
É de se ver que as várias reformas legislativas ocorridas em nosso ordenamento
jurídico nas últimas décadas permitiram a entrada de institutos incomuns à tradição do civil
law, inspirado, sobretudo, na suposta valorização do precedente oriundo do common law.5
O suposto está na possibilidade de se estabelecer “standards interpretativos”
a partir do julgamento de alguns casos, onde um tribunal superior, diante da
multiplicidade de casos, os julgaria abstraindo-se de suas especificidades e
tomando-lhes apenas a “tese” subjacente. “Definida a tese, todos os demais casos
serão julgados com base no que foi predeterminado; para isso, as especificidades
desses novos casos também serão desconsideradas para que se concentre apenas
na tese que lhes torna idênticos aos anteriores”.6
Está-se encarando o precedente como ponto de chegada com a criação de
padrões decisórios. No entanto, na tradição do common law o precedente apresenta-se
com um princípio, o ponto de partida. Ao contrário do que se possa supor, a regra do
stare decisis, núcleo da padronização decisória nos sistemas de common law, é um
comando flexível. Não existe obediência cega a decisões passadas. Ela permite que os
tribunais se beneficiem da sabedoria do passado, mas rejeitem o que seja desarrazoado
ou errôneo.7 No ambiente do common law admite-se certa discricionariedade ao juiz

4
“Em pesquisa realizada pelo CNJ em diversos países se constatou que taxa de congestionamento no Brasil é
muito alta. Segundo o texto do documento: ‘O Brasil é o país que apresenta maior taxa de congestionamento,
70%, seguido de Bósnia e Herzegovina e Portugal, com 68 e 67%, respectivamente. Observa-se elevada
diferença entre a taxa mais alta, de 70%, e a mais baixa, de 3%, referente à Federação Russa. Assim como a
maior taxa de congestionamento, o Brasil também apresenta o maior número de advogados por magistrado,
seguido por Itália e Malta, com 25 e 33 advogados, respectivamente, conforme apresentado na tabela. Como
a elevada proporção de advogados em relação a magistrados pode indicar que existe elevada propensão
ao litígio e relativa incapacidade de fazer frente a essa tendência, analisou-se o coeficiente de correlação
entre a proporção de advogados por magistrados e a taxa de congestionamento. Obteve-se como resultado
um valor de 61,8%. Isso significa que há relação alta e significativa entre essas duas variáveis. Ou seja,
quanto maior o número de advogados por magistrado, maior tende a ser a taxa de congestionamento desses
países. [...] O Brasil possui a terceira maior produtividade quando comparado aos países da Europa. Não
obstante, contrariamente à Dinamarca, essa produtividade é ainda inferior à carga de trabalho, e isso se
reflete em uma taxa de congestionamento alta. Pode-se dizer que o Brasil está em posição intermediária entre
a Bósnia e Herzegovina e a Dinamarca (CNJ. Estudo comparado sobre recursos, litigiosidade e produtividade:
a prestação jurisdicional no contexto internacional. Brasília: CNJ, 2011; NUNES, Dierle. Padronizar decisões
pode empobrecer o discurso jurídico. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2012-ago-06/dierle-nunes-
padronizar-decisoes-empobrecer-discurso-juridico>. Acesso em: 14 jan. 2013).
5
Basta ver, por exemplo, a edição da Emenda Constitucional nº 45/2004, que institui entre nós a denominada
súmula vinculante (art.103-A da Constituição), além das reformas legislativas do Código de Processo Civil que
instituíram as denominadas súmulas obstativas de recurso ou, ainda, deram poderes ao relator para prover
(ou não) monocraticamente recurso quando haja súmula ou jurisprudência dominante. Em um sistema jurídico
caracterizado pela influência romanística, causa espécie o estabelecimento de normas dessa natureza.
6
THEODORO JUNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Breve considerações sobre a politização do
judiciário e do panorama de aplicação no direito brasileiro. Op. cit. p. 25.
7
RE, Edward D. Stare Decisis. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Repro 73, São Paulo, jan./mar. 1994, p. 47-54. p. 51.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 77-99, jul./set. 2014 79
Dierle Nunes, Aline Hadad Ladeira

para que, motivadamente, realize um prévio contraste entre o caso paradigma e as


características e circunstâncias sob as quais se apresenta o caso concreto em análise.
Assim, antes de qualquer coisa, é necessário que o tribunal determine se o princípio
deduzido através do caso anterior é aplicável para, em seguida, decidir em que extensão
o princípio será aplicado.8 Portanto, sempre que um precedente for a base de uma nova
decisão, seu conteúdo é passível de um ajuste jurisprudencial.
Suas bases estariam fincadas, de acordo com Eisenberg, na necessidade
de o common law depender de padrões de congruência social (standards of social
congruence), consistência sistêmica (systemic consistency) e estabilidade doutrinária
(doctrinal stability), cujos princípios norteadores são os de “sustentabilidade” (support),
“universalidade” (replicability), “objetividade” (objectivity) e “capacidade de resposta”
(responsiveness).9 O padrão de congruência social e consistência sistêmica cuida de
identificar as situações em que uma regra tornou-se inconsistente quando aplicada
sob determinado aspecto social e em confronto com outras teses. Um precedente
que carregue uma tese (doctrine) constantemente questionada com argumentos
consistentes não satisfaz a ideia de previsibilidade das decisões (confiança).10
Como já dissemos, em muito boa companhia,11 acerca do tema:

[...] importa frisar uma característica do common law inglês que nos parece
ser salutar e diverge radicalmente da prática adotada no direito brasileiro
de se editar súmulas ou, mais recentemente, “temas” expressando a
ratio decidendi em termos gerais e abstratos. No direito inglês, vigora o
denominado Mootness Principle, ou princípio da vinculação ao debate,
que estabelece que os tribunais não podem discursar abstratamente
sobre regras jurídicas hipotéticas, mas apenas estabelecer as regras
que derivam especificamente da análise de cada caso concreto.12 Esse
princípio implica uma especificação do âmbito do debate, a fim de
permitir uma consideração de todas as particularidades e circunstâncias
individualizadoras do caso concreto. Ele implica, também, que a decisão
acerca de quais casos hão de ser regulados pelo precedente não é
definitiva, já que é o tribunal futuro que deve decidir, no caso semelhante,
mais ainda não expressamente regulado, sobre se o precedente judicial
deve ser “estendido”, pela técnica da analogia, ou “diferenciado”, pela
técnica do distinguishing. Ambas as operações constituem, portanto, uma
argumentação em que se busca verificar qual deve ser a “regra do caso”,
por meio de uma ponderação de princípios. A ideia reguladora do processo
de aplicação de precedentes é, como explica MacCormick, a exigência de

8
RE, Edward D. Stare Decisis. Repro 73, op. cit., p. 51.
9
EISENBERG, Melvin Aron. The nature of the common law. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press,
1988, p. 105-126.
10
Ibidem, p. 106-110.
11
DERZI, Misabel et al. O novo regime dos recursos extraordinários e a responsabilidade política dos tribunais:
um problema em aberto para o legislador. Revista de Processo (no prelo).
12
HARRIS, J. W. “Towards principles of overruling – When should a final court of appeal second guess?”. Oxford
Journal of Legal Studies, v. 10, p. 135-199, 1990. Para um aprofundamento do princípio em análise no
contexto do overruling de precedentes judiciais ver, além do texto citado, BUSTAMANTE, Thomas. Teoria do
precedente judicial: a justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012. p. 400.

80 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 77-99, jul./set. 2014
Aspectos da dinâmica do direito jurisprudencial no Brasil versus a busca da coerência e integridade...

coerência: “a característica geral da argumentação jurídica em que se


baseia esta busca pelos princípios subjacentes [à ratio decidendi] me
parece ser uma... exigência ideal de coerência — ou seja, coerência
normativa em sentido geral — em um sistema jurídico”.13 Essa coerência,
no entanto, só pode ser obtida por meio de uma argumentação pautada
por um elemento de “princípio”, o qual constitui a razão justificadora da
analogia que o intérprete pretende estabelecer entre os casos que estão
sendo comparados. A argumentação por analogia, portanto, “é em si
uma forma de argumentação por princípios”.14 A decisão de aplicar cada
precedente a um novo caso concreto é, portanto, presidida e informada
por uma argumentação fundada em princípios, que se encontra na base
do processo de comparação de casos por meio de analogias e contra-
analogias (disanalogies).15 É incorreta, portanto, a asserção de que a

13
MACCORMICK, Neil. “Donoghue v. Stevenson and Legal Reasoning”, em Peter Burns e Susan J. Lyons (Org.).
Donoghue v. Stevenson and the Modern Law of Negligence. Vancouver: University of British Columbia, p. 191-
213, 1991. p. 201.
14
Ibidem, p. 207.
15
A asserção de que a aplicação de precedentes judiciais envolve um raciocínio per analogiam é defendida
neste trabalho como uma afirmação geral, aplicável todas as vezes que se toma um precedente judicial como
uma razão para decidir determinado caso concreto. Importa frisar, quanto a este ponto, que essa afirmação
não é incompatível com a tese, que sustentamos em trabalhos anteriores, de que há determinados setores
do ordenamento jurídico — o direito penal e o direito tributário, por exemplo — onde vigora o princípio da
legalidade estrita, que funciona como uma norma geral exclusiva que torna obrigatório o uso do argumento a
contrario nesses setores, já que a ausência de previsão típica de uma conduta implica automaticamente a sua
permissão (BUSTAMANTE, op. cit., p. 493).
Aplica-se, nesse terreno, a regra da legalidade estrita, consubstanciada no aforisma latino “Nullum crimen,
nulla poena sine lege”, que pode ser desdobrado em quatro outros: Nullun crimen sine praevia lege; Nulla
poena sine praevia lege; Nemo iudex sine lege; Nemo damnetur nisi per legale iudicum (uma vez que o devido
processo, ou o juízo regrado em lei, deve ser observado em qualquer condenação penal) (Cf. JIMENEZ DE
ASÚA, Luis. Tratado de Derecho penal. Buenos Aires, Losada, 1951, p. 383-384. A bibliografia nacional e
estrangeira sobre o tema é vastíssima. Ver, em especial, DERZI, Misabel. Direito tributário, direito penal e tipo.
2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 122, nota 25).
Nossas concepções teóricas sobre esses princípios já foram previamente publicadas, e podem ser sintetizadas
nos parágrafos que se seguem: “Os quatro aforismas latinos cumprem a mesma função: a de segurança jurídica,
completando-se uns aos outros. E, em determinados sistemas jurídicos, nos quais se inclui o nosso, a segurança
jurídica esteia-se na limitação das fontes formais de criação jurídica, a qual, por sua vez, só se viabiliza na
separação e no equilíbrio das funções estatais. Como limitação às fontes de criação jurídica, o nullum crimen sine
lege significa, pois, que o crime e a pena somente podem ganhar existência se estiverem expressa e previamente
indicados na lei, como ato próprio do Poder Legislativo. [...] Afastar-se-ão, por conseguinte, atos normativos
emanados de outros órgãos do Estado, ineptos para legislar, assim como aqueles que, embora oriundos do Poder
Legislativo, sejam posteriores ao fato; da mesma forma, têm sido rejeitados, tradicionalmente, pela doutrina e
pela jurisprudência, a analogia e os costumes como fontes diretas de criação de delitos e cominação de penas.
Igualmente, os juízes-executores da lei penal recebem sua função e competência diretamente da lei (senão da
Constituição), assim como devem aplicá-la, por meio de processo legalmente disciplinado” (Op. cit., p. 123-124).
Sem embargo, a asserção de que o argumento por precedentes opera por meio de uma analogia entre casos
não nos obriga a permitir a punição por meio de analogia ou a criação de tributos em violação ao preceito
constitucional que estabelece a legalidade tributária estrita.
Quando sustentamos que a extensão de um precedente deve ser feita por um raciocínio analógico, não estamos
sustentando qualquer tipo de flexibilização da regra da legalidade estrita, mas tão somente que, se houver dois
casos que, abstratamente considerados, possam ser igualmente compreendidos no quadro das possibilidades
semânticas do texto de uma norma legal N, a regra jurisprudencial R1, segundo a qual o caso C1 está
compreendido hipótese de incidência de N, só pode ser estendida caso se conclua que o caso C2, a ser resolvido
pela nova regra jurisprudencial R2, também é enquadrável na hipótese de incidência de N. A fundamentação de
R2, porém, só pode estar baseada em um precedente judicial se ao se comparar os casos C1 e C2 for possível
concluir que há razões de princípio que justificam a mesma solução para os dois casos em julgamento. É apenas
nesse sentido que afirmarmos haver um raciocínio analógico para estabelecer R2 a partir de R1.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 77-99, jul./set. 2014 81
Dierle Nunes, Aline Hadad Ladeira

técnica do precedente, em si mesma, implica um engessamento ou


uma paralisia do processo argumentativo, pois o precedente precisa ser
reinterpretado e reconstruído em cada caso concreto, por meio de um
processo de argumentação por princípios.

Vislumbra-se, nestes termos, que o corpo de precedentes disponíveis para


serem considerados em qualquer sistema jurídico representa uma acumulação
de conhecimento do passado. Diante disso, na medida em que as decisões
de hoje funcionarão como precedentes aos futuros julgadores, deve haver uma
responsabilidade especial (ônus argumentativo) em relação a vincular o futuro antes
de se chegar lá.16
E essa responsabilidade está, justamente, na problematização que o precedente
ocasiona na dinâmica para se encontrar a resposta adequada à solução jurídica.
Edward Re é preciso: “o caso decidido estabelece um princípio e ele é na verdade um
principium, um começo”.17
O precedente, produto do desenvolvimento gradual e casuístico do common
law, representa o princípio para as discussões dos novos casos e pode dinamizar o
sistema jurídico se devidamente construído e aplicado, enquanto o pressuposto de
padronização decisória, festejada no Brasil, pode comprometer a dinâmica do direito
ao fechar o debate.
É diante desse cenário que se deve analisar se o pressuposto de uniformidade
jurisprudencial e de igualdade, comum entre nós, promove (ou não) um fechamento
do debate em face da criação dos padrões decisórios, em contradição ao sistema
originário do common law e gerando dilemas práticos.
Partiremos do pensamento de Ronald Dworkin e de alguns dados empíricos
recentemente constatados em pesquisa da UFMG. Ademais, procuraremos ofertar
embasamento para dois pressupostos do sistema delineado pelo Novo CPC para os
precedentes, quais sejam, o respeito à integridade e coerência.
É de se ver que os tribunais, ao julgar um novo caso, devem respeitar a
história institucional da aplicação daquele instituto como um romance em cadeia,
mas permitindo rupturas devidamente fundamentadas e consoante a concepção de
integridade de Ronald Dworkin.
Fato é que, antes da criação de padrões decisórios, importante se faz
a (re)discussão da dogmática jurídica e seus mecanismos de (re)produção e
instrumentalização, consubstanciado no que se pode chamar de senso comum
teórico dos juristas, que instaurou um olhar estandarizado sobre a operacionalidade

16
SCHAUER, Frederick. Precedent. Stanford Law Review. v. 39, n. 3; Feb. 1987, p. 571-605. Disponível em:
<http://www.jstor.org/discover/10.2307/1228760>. Acesso em: 10 set. 2013. p. 573.
17
RE, Edward. Stare decisis, op. cit., p. 48.

82 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 77-99, jul./set. 2014
Aspectos da dinâmica do direito jurisprudencial no Brasil versus a busca da coerência e integridade...

do Direito.18 Nesse contexto, e a partir de uma abordagem hermenêutica, uma análise


do sistema de precedentes do common law pode oferecer um caminho, já que o
núcleo da padronização decisória do common law (stare decisis) tem como pretensão
a conciliação entre estabilidade e mudança.19

2 O pressuposto brasileiro na dinâmica do direito


jurisprudencial
A distorção da aplicação de precedentes no Brasil é evidente e já foi objeto de
críticas recorrentes.20 Sua peculiar “sistemática” se dá (de modo mais recorrente)
por mera subsunção, por vezes encarada sob a ótica da tese jurídica, separando,
cirurgicamente, direito dos fatos.
Segundo Damaška, o uso dos precedentes no civil law tem sido caracterizado
pelo juiz procurar nos mesmos (“precedentes”) uma “regra como pronunciamento
de autoridade superior” desconsiderando a concretude do caso. Assim, o que a
doutrina de common law desvaloriza como mero dictum (interpretação jurídica ou
argumentação expressamente contida na decisão judicial, cujo conteúdo e presença
são irrelevantes para a solução final da demanda) é bem-vindo justamente porque
gera uma (pseudo) independência aos fatos.21
Interessante observar que Damaška atribui a “vinculação” na tradição do civil
law a um “ideal hierárquico”, enquanto confere a vinculação no common law a um
“ideal coordenativo”.22
O juiz continental procura regras de autoridade hierárquica cada vez mais
concretas em decisões anteriores, desconsiderando o contexto factual envolvente.
Assumindo a natureza da vinculação desta norma de concretização progressiva, o
autor alerta para os padrões de decisão (standards) que, com o tempo, se tornariam
intoleravelmente rígidos. Em suma, enquanto uma organização judiciária composta

18
STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges. O que é isto – o precedente judicial e as súmulas vinculantes?. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 1998. p. 117.
19
“A estabilidade exige uma continuidade com o passado e é necessária para permitir que os membros da
sociedade conduzam suas atividades diárias com um razoável grau de certeza quanto às consequências
jurídicas de seus atos. A mudança implica numa variação ou alteração daquilo que está fixo ou estável. Sem
mudança, no entanto, não pode haver progresso”. RE, Edward. Stare Decisis, op. cit., p. 48.
20
V. g. NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Formação e aplicação do Direito jurisprudencial: alguns dilemas. In: Revista
TST, Brasília, v. 79, n. 2, 2013. NUNES, Dierle. Padronizar decisões pode empobrecer o discurso jurídico. Disponível em:
<http://www.conjur.com.br/2012-ago-06/dierle-nunes-padronizar-decisoes-empobrecer-discurso-juridico>.
Acesso em: 14 jan. 2013.
21
“What the judge was looking for in the ‘precedent’ was a rule like pronouncement of higher authority, the facts
of the case stripped to their shadows. Thus what conventional common-law doctrine would devalue as mere
dictum was welcome precisely because it stood independent of the concrete constellati on of facts in the case”
(DAMAŠKA, Mirjan R. The faces of justice and state authority: a comparative approach to the legal process.
Yale University Press, 1986. p. 33-34).
22
Ibidem, p. 23 et seq.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 77-99, jul./set. 2014 83
Dierle Nunes, Aline Hadad Ladeira

de juízes “livremente” hierárquicos pode exigir uma doutrina do precedente vinculante


como um estabilizador ideológico interno, uma carreira judiciária estritamente
hierárquica pode ser bem melhor sem ele.23 Repare que a vinculação hierárquica de
que trata o autor não é pelo espírito de obediência a um superior, mas nas regras de
autoridade hierárquica!24 Eis, a esse respeito, a seguinte passagem:

É verdade que quando os tribunais fiscalizam a Constituição seu texto


torna-se inevitavelmente coberto por gloss judicial. Mas o grau em que o
brilho surge do texto varia dependendo da maneira em que as decisões
judiciais são tratadas. Há uma técnica que é facilmente conciliável com
o textualismo: decisões referentes a um texto são destacados de seus
contextos factuais e convertidos em normas abstratas que enchem
“vasos conceituais” a governar com conteúdo mais específico. [...] O case
law americano, no entanto, é de uma natureza diferente: fato e direito
continuam a ser mais estreitamente entrelaçados, e os precedentes
tornam-se uma história da qual um pensamento ordenado não pode
derivar facilmente de regras claras. As decisões de “aplicar” um texto
são comparadas umas com as outras, ao contrário de se debruçar num
esquema de textos para sua concretização.25

E assim, o pressuposto equivocado na utilização no precedente no Brasil é o


de que mediante o julgamento de um único caso (ou poucos), sem um contraditório
dinâmico como garantia de influência e não surpresa para sua formação26 (amplitude
de argumentação e respeito ao direito de se levar em consideração os argumentos
das partes – Recht auf Berücksichtigung von Äußerungen), mediante a técnica de

23
“It is worth noting that a doctrine of formally binding precedent would be far more rigid in continental than in
the common law institutional framework. The primary reason is not so much the greater spirit of obeisance to
superiors in the former than in the latter as the understanding of precedent. The continental judge seeks ever
more concrete rules in prior decisions disregarding the enveloping factual context. Assuming the binding nature
of this progressive norm concretization, decisional standards would in time become intolerable rigid, each new
decision a drop in the formation of an ever longer stalactite of norms. In short, while a judicial organization
composed of loosely hierarchical judges may require a doctrine of binding precedent as an internal ideological
stabilizer, a hierarquical career judiciary may well better off without it” (ibidem, p. 37).
24
A ideia central de Mirjan Damaška reside num estudo comparativo entre as tradições do ponto de vista de suas
respectivas organizações judiciárias.
25
“It is true that when courts police the constitution, its text inevitably becomes covered by judicial gloss. But
the degree to which the gloss submerges the text varies, depending on the manner in which court decisions
are treated. There is a technique that is easily reconcilable with textualism: decisions referring to a text are
detached from factual contexts and converted into abstract norms that fill conceptual vessels of the governing
text with more specific content. Here the judicial gloss is translucent; as the gloss thickens the text may
even become clearer. American case-law, however, is of a different nature: fact and law remain more closely
intertwined, and precedent becomes a story from which ordering thought cannot easily derive clear rules.
Decisions “applying” a text are compared to one another, rather than fitted into the scheme of the text as its
concretization” (DAMAŠKA, Mirjan R Reflections on American Constitutionalism. In: The American Journal of
Comparative Law, v. 38, Supplement. U. S. Law in an Era of Democratization (1990), p. 421-443, p. 426-427).
26
NUNES, Dierle. Fundamentos e dilemas para o sistema processual brasileiro: uma abordagem da litigância de
interesse público a partir do processualismo Constitucional democrático. In: FIGUEIREDO, Eduardo Henrique
Lopes; MÔNACO, Gustavo Ferraz de Campos; MAGALHÃES, José Luiz Quadros de (Org.). Constitucionalismo e
democracia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. p. 187.

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Aspectos da dinâmica do direito jurisprudencial no Brasil versus a busca da coerência e integridade...

causa piloto, o Tribunal Superior formaria um julgado (interpretado por muitos como
precedente) que deveria ser aplicado a todos os casos idênticos.27
Para resolver o problema da sobrecarga do Judiciário no Brasil, há uma evidente
prevalência de propostas comprometidas com uma eficiência quantitativa em
detrimento da análise efetiva de casos concretos que são encarados apenas do
ponto de vista de teses jurídicas/pautas gerais.
Olvida-se que o objetivo do uso da técnica de causa piloto é o de promover
um gerenciamento da litigiosidade repetitiva e tal fim somente será promovido se o
tribunal julgar a demanda idêntica padrão com uma visão panorâmica do caso, que
induz amplitude de argumentos; julgar poucas vezes bem para viabilizar a aplicação
do precedente no máximo de casos, com uma analogia adequada.
Recente pesquisa patrocinada pela UFMG28 se constatou vários problemas na
aplicação das atuais técnicas de causa-piloto envolvendo os recursos extraordinários,
dentre eles, a superficialidade de formação de julgados para as decisões mistas
relatados pelos pesquisadores e julgadores:

Relataram, também, o problema das denominadas “decisões mistas”.


Em determinados casos a matéria debatida é, além de complexa, de
grande extensão, abordando pretensões e questões normativas que são
objeto de impugnação pelo Recurso Especial e outras questões que não
são. Nesses casos, o sobrestamento ocorre in totum, sem separação
de quais matérias serão analisadas posteriormente. O problema dessa
hipótese surge, posteriormente, quando do rejulgamento, uma vez que
em alguns casos os pedidos ficam sem análise, pois a retratação envolve
somente a adequação do entendimento do Tribunal ao entendimento do
Superior Tribunal de Justiça; ou, ainda, são julgados, o que faz com o
que o acórdão aborde tanto pretensões que foram objeto da técnica de
Recursos Repetitivos quanto pretensões que restaram sem apreciação do
Superior Tribunal de Justiça. Nesse último caso, em relação à pretensão
que não tinha sido apreciada, caberia Recurso Especial, enquanto que
em relação à pretensão sob a qual foi aplicada a técnica do art. 543-C
não caberia outro Recurso Especial, mas somente Agravo Interno, o que
gera um embaraço procedimental recursal.

Este é só um exemplo da superficialidade recorrente no emprego da técnica.


Assim, atribui-se às “regras de autoridade hierárquica” um “esgotamento

27
NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Formação e aplicação do direito jurisprudencial: alguns dilemas.: Revista
TST, Brasília, v. 79, n. 2, 2013. p. 119.
28
Pesquisa Judiciária intitulada “A força normativa do direito judicial: uma análise da aplicação prática do
precedente no direito brasileiro e dos seus desafios para a legitimação da autoridade do Poder Judiciário”,
financiada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), administrada pela Fundação de Desenvolvimento da
Pesquisa (FUNDEP/UFMG), e concebida e executada por Grupo de Pesquisa ligado à Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG), sob a coordenação do Prof. Dr. Thomas da Rosa de Bustamante (Contrato nº 17/2013)
com participação dos Profs. Drs. Dierle Nunes, Misabel Derzi, entre inúmeros outros pesquisadores. O relatório
final da pesquisa se encontra em fase de redação.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 77-99, jul./set. 2014 85
Dierle Nunes, Aline Hadad Ladeira

argumentativo”, quando se sabe que no sistema de case law o precedente é um


princípio. A partir dele, de modo discursivo e profundo, verificar-se-á, inclusive com
análise dos fatos, se o precedente deverá ou não ser repetido. Além do mais,
como bem ressalta Fine, “se concede respeito ao precedente somente se ele for
resultado de uma fundamentada e cuidadosa análise judicial baseada em um intenso
contraditório exercido pelas partes”.29
Como já dito no passado, o precedente dos Tribunais Superiores é
equivocadamente tido como um encerramento discursivo, onde, estabelecida a
“tese jurídica”, esta deve ser aplicada de modo mecânico para causas repetitivas.
E ademais, “esses importantes Tribunais e seus ministros produzem comumente
rupturas com seus próprios entendimentos, ferindo de morte um dos princípios do
modelo precedencialista: a estabilidade”.30 Não há a reconstrução da cadeia de
julgados; não se leva a sério a integridade; ignora-se o leading case (o caso mais novo
é visto como o mais importante); não se preocupa com a ratio decidendi (elemento
vinculante) de um precedente. Em outras palavras, são desconsideradas questões
basilares do direito jurisprudencial.31

29
FINE, Toni M. Uso do precedente e o papel do princípio do stare decisis no sistema legal norte americano. RT/
Fasc. Civ., ano 89, v. 782, dez. 2000, p. 94.
30
NUNES; BAHIA, Formação e aplicação do direito jurisprudencial: alguns dilemas, op. cit., p. 124.
31
A título de exemplo da instabilidade jurisprudencial no direito brasileiro, pode-se citar a questão que envolve
a sucessão do cônjuge e do companheiro: “A inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil, que cuida
da sucessão do companheiro, foi suscitada no julgamento do Agravo de Instrumento no Recurso Especial nº
1.135.354-PB, e recebeu, perante a Corte Especial, paradigmático voto favorável da lavra do ministro Luis
Felipe Salomão. Apesar da percuciência do voto do relator, os ministros Cesar Asfor Rocha e Teori Zavascki,
a despeito de rejeitarem o recurso, adiantaram entendimento contrário à tese da inconstitucionalidade do
artigo 1.790 do Código Civil. Lamentavelmente, em razão de questão prévia atinente ao cabimento do próprio
recurso, o incidente restou prejudicado. Assim, uma das mais importantes questões que paira sobre o direito
privado, “e que está realmente a intranquilizar toda a sociedade brasileira”, nas palavras do Ministro Sidnei
Beneti, ainda pende de solução. O fato é que, sem um norte confiável, os julgados dos tribunais estaduais
divergem a respeito da matéria, com crescente posicionamento favorável à inconstitucionalidade do artigo
1.790 do Código Civil, o que dilata sobremaneira a importância do artigo 1.829, aplicável não apenas à
sucessão do cônjuge, como também à do companheiro, para aqueles que entendem que o artigo 1.790
do Código Civil desponta inconstitucional. Contudo, o artigo 1.829 do Código Civil longe está de receber
interpretação coerente. Por paradoxal que possa parecer, é o próprio STJ, detentor do monopólio da função
nomofilácica, que tem contribuído para polemizar a exegese da lei. Em outubro de 2009, no julgamento do
Recurso Especial nº 1.111.095-RJ, a 4ª Turma prestigiou a vontade do testador, para excluir da herança os
herdeiros do cônjuge casado sob o regime da separação convencional de bens, ao argumento de que o pacto
antenupcial e o testamento constituíam ato jurídico perfeito. Neste precedente, no entanto, havia a prevalência
da questão de direito intertemporal, muito bem destacada no voto do ministro Luis Felipe Salomão. Tanto o
pacto antenupcial, quanto o casamento, assim como o testamento, haviam sido celebrados antes da entrada
em vigou do Código Civil de 2002. Por essa razão, aquele acórdão estava fadado a se tornar um precedente
único, dificilmente aplicável a outros casos análogos. Ainda assim, importa destacar a robustez e a clareza
de raciocínio do voto divergente proferido pelo ministro João Otavio de Noronha, que dava a exata dimensão
da controvérsia. No mesmo ano de 2009, a matéria veio a ser novamente debatida pelo STJ, no julgamento
do Recurso Especial nº 992.749/MS, relatado pela Ministro Nancy Andrighi, em cujo voto foi examinada toda
a evolução sucessória do cônjuge. Pretendendo sistematizar a matéria, sem embargo do louvável esforço
da ilustre relatora, a 3ª Turma conferiu interpretação contrária à letra do artigo 1.829 do Código Civil. Na
hipótese concreta, negou-se ao cônjuge casado sob o regime da separação convencional a condição de
herdeiro necessário, em decorrência de peculiaridades fáticas do caso vertente (o que irrompe paradoxal em
sede de recurso especial), em particular, a circunstância de o vínculo matrimonial ser recentíssimo e o cônjuge

86 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 77-99, jul./set. 2014
Aspectos da dinâmica do direito jurisprudencial no Brasil versus a busca da coerência e integridade...

É fato que a utilização de precedentes no Brasil tem seguido uma lógica que
é estranha a qualquer sistema de case law, especialmente ao inglês e ao norte-
americano. Como pontua Ramires, “o resultado é um ecletismo improvisado entre duas
tradições diversas, sem que haja uma real interlocução entre elas”.32 Oficializou-se
no Brasil um sincretismo equivocado entre as tradições do common law e do civil law
onde se avaliza qualquer possibilidade de aplicação de “precedentes” (não obstante
as diferenças dos sistemas jurídicos).
O que se percebe é que as reformas processuais, até recentemente, têm
revelado, tão somente, um compromisso com a redução do número de processos.
E esse tipo de aplicação do direito deve ter por norte que eficiência, quando bem
entendida, é uma medida da relação entre o resultado ou objetivo de uma atividade,
ao custo de alcançá-la. E, portanto, “a velocidade e o custo que um sistema de
justiça incorre para resolução dos casos, nos dizem pouco sobre sua eficácia se não
formos informados de suas metas: sem referências as elas a eficiência é um ideal
sem conteúdo”.33
Nesse envolvimento pela eficiência se faz perceptível a tendência em se diminuir
a ênfase nas questões processuais sobre a forma, incluindo as diferenças residuais
entre o common law e o civil law. No entanto, enquanto persistirem vestígios no

sobrevivente ser 31 anos mais jovem do que o autor da herança. A despeito de alguns reflexos deste precedente
nas decisões proferidas, desde então, pelas cortes estaduais, tanto a doutrina quanto a jurisprudência
repudiaram o entendimento contra legem e continuaram a prestigiar a interpretação sistemática da lei. Já em
2011, a própria 3ª Turma do STJ posicionou-se em sentido contrário ao entendimento secundado no apontado
acórdão relatado pela Ministra Nancy Andrighi, evidenciando que aquele precedente tinha aplicação exclusiva
à excepcionalidade do caso. Assim é que no julgamento do Recurso Especial nº 54.567-PE, de relatoria do
Ministro Massami Uyeda, a 3ª Turma do STJ sufragou entendimento em absoluta simetria com o texto legal,
no sentido de que o cônjuge casado sob o regime da participação final nos aquestos pode herdar os bens
particulares do autor da herança, nas hipóteses do artigo 1.829 do Código Civil. Ainda em 2011, agora no
julgamento do Recurso Especial 974.241-DF, a 4ª Turma do STJ decidiu que o cônjuge casado sob o regime a
comunhão parcial herda os bens particulares do autor da herança e não tem direito hereditário sobre a meação
do falecido, posicionamento este respaldado em sólida construção doutrinária, estruturada no consistente
voto-vista do ministro Luis Felipe Salomão. Mais recentemente, em outubro de 2013, no julgamento do
Recurso Especial nº 1.377.084-MG, relatado pela ministra Nancy Andrighi, a 3ª Turma agasalhou orientação
diametralmente oposta, no sentido de que o direito à herança do cônjuge casado sob o regime da comunhão
parcial recai sim sobre a meação do falecido. Estariam, portanto, excluídos da herança do cônjuge supérstite
os bens particulares do de cujus, como forma de prestigiar o regime de bens do casamento, para efeitos
sucessórios”. TUCCI, José Rogério Cruz. Jurisprudência sobre sucessão do cônjuge é instável. Disponível em
<http://www.conjur.com.br/2013-dez-10/paradoxo-corte-jurisprudencia-sucessao-conjuge-instavel>.
Acesso em: 11 dez. 2013.
32
RAMIRES, Mauricio. Crítica à aplicação de precedentes no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2010. p. 31.
33
“And indeed there is ubiquitous concern with increased efficiency. In the midst of this concern, a tendency
is discernible to deemphasize preoccupations with procedural form — including residual differences between
common law and civil law regimes — and concentrate instead on measures likely to contribute to the efficient
functioning of civil justice. But consider that efficiency, properly understood, is a measure of the relation of the
valued output, or goal of an activity, to the costof achieving it. The speed and cost at which a justice system
disposes of ingested cases tell us little about its efficiency unless we are informed of its goals: without
reference to them, efficiency is a content less ideal. DAMAŠKA, Mirjan. The Common Law – Civil Law Divide:
Residual Truth of a Misleading Distinction. The future of categories. In: CARPI, Federico. Toronto: International
Association of Procedural Law, 2009.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 77-99, jul./set. 2014 87
Dierle Nunes, Aline Hadad Ladeira

processo civil de atitudes díspares nas estruturas de autoridade entre o common law
e o civil law, eles não devem ser desconsiderados, mesmo se a preocupação principal
for o aumento da eficiência processual.34
Assim, se a sugestão é de que os precedentes auxiliem na uniformização da
jurisprudência, necessário se faz o abandono definitivo da “pretensão metafísica de
aprisionar os fatos de antemão”.35 Tal como a experiência do common law demonstra,
a utilização do precedente apenas pode se dar fazendo comparação entre as hipóteses
fáticas a permitir a aplicação do anterior ao novo.
Os Tribunais brasileiros não podem uniformizar se continuarem julgando como
na época que sua atividade se reduzia ao julgamento de recursos individuais para as
partes envolvidas. Se existe a pretensão de se viabilizar uma amplitude do julgado,
o tribunal deve se abrir ao contraditório pleno e à analise de todos os argumentos
relevantes na formação do precedente.
Passa-se, então, a reflexão do que falávamos sobre a “objetivação” do direito
sob os supostos teóricos de Ronald Dworkin. O estudo se voltará para análise
do modelo do direito como integridade e sua correspondência com o sistema de
precedentes vinculantes do common law — incompatível com a tendência de
padronização decisória adotada pelo Brasil.

3 Coerência e integridade a nortear uma adequada


aplicação dos precedentes no Brasil
Quando se analisa o projeto aprovado na Câmara para edição de um Novo CPC,
se constata que o inovador capítulo que trata dos precedentes se inicia com um
dispositivo enunciado nos seguintes termos: “os tribunais devem uniformizar sua
jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”.
Para além daquilo que decorre da aplicação generalizada de precedentes para
resolver um sem-número de processes tidos por idênticos (identidade analisada sob a
ótica da tese jurídica em abstrato) deve-se, a partir da nova legislação (ao menos) ter
por pressupostos à análise da coerência e integridade, pilares da teoria representada
pela analogia do romance em cadeia desenvolvida por Ronald Dworkin. Trata-se, pois,
de conciliar estabilidade e flexibilidade, entre a necessidade de seguir o precedente
e a exigência de um julgamento legítimo para o caso concreto.
Fato é que a racionalização e a customização da aplicação jurisdicional (o
julgamento de teses a despeito de casos — ou de casos a partir de pré-compreensões

34
“Thus, so long as vestiges persist in civil procedure of attitudes traceable to disparate common law civil law
structures of authority, they should not be disregarded, even if one’s principal concern is the increase of
procedural efficiency”.
35
RAMIRES, Mauricio. Crítica à aplicação de precedentes no direito brasileiro, op. cit., p. 95.

88 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 77-99, jul./set. 2014
Aspectos da dinâmica do direito jurisprudencial no Brasil versus a busca da coerência e integridade...

do julgador) esbarram no Estado Democrático de Direito, desvirtuam ambas (coerência


e integridade), e se volta para um agir da filosofia da consciência onde cada julgador,
a partir de uma postura solipsista, pode adotar um grau zero de sentido aplicar o
direito ao caso concreto. Ramires é preciso quando ressalta que o “fundamento
hermenêutico de uma teoria de precedentes inicia justamente no seu papel de
salvaguarda da tradição, da coerência e da integridade do direito, a despeito das
tentativas de fragmentação e dos casuísmos”.36
O fenômeno na estandardização impresso pela dogmática jurídica, cuja pretensão
é a da homogeneização do direito por discursos de fundamentação prévios, foi, como
bem lembra o referido autor, progressivamente alimentada justamente para combater
a “liberdade excessiva” (filosofia da consciência) antes (e ainda atualmente) exercida
pelos julgadores.37 O resultado é um direito puramente objetivo, onde coerência e
integridade restam inobservados.
Isto ainda é fortalecido pela doutrina brasileira que se contenta com o papel de
(má) comentarista dos julgados. Assim:

O círculo vicioso instalado no campo processual, a partir de uma continuada


valorização equivocada da “jurisprudência” (ou daquilo que se nomina
como tal), impede o aperfeiçoamento da ciência do processo, quando a
aplicação do Direito se limita quase exclusivamente a observar o uso de
ementas e enunciados de súmulas dos tribunais (descontextualizados
dos fatos e de seus motivos determinantes). Constata-se ainda que, no
Brasil, não há preocupação por parte dos tribunais, no mais das vezes,
com o modo que as decisões vêm sendo formadas e aplicadas.38

Palavras de ordem a forçar dita objetivação do direito são, entre outras,


igualdade, segurança jurídica39 e previsibilidade das decisões, elementos constitutivos
do Estado de Direito.40 Todas a subsidiar a aplicação descontextualizada dos julgados
produzidos pelos Tribunais Superiores.

36
RAMIRES, Mauricio. Crítica à aplicação de precedentes no direito brasileiro, Op. cit., p. 95.
37
Ibidem, p. 100-101.
38
NUNES, Dierle; REZENDE, Marcos; ALMEIDA, Helen. A contribuição da doutrina na (con)formação do direito
jurisprudencial: uma provocação essencial. Revista de Processo, São Paulo, n. 232, jun. 2014.
39
“As a philosopher of law among the ranks of lawmakers, I always had a certain inclination to remind colleagues
that certainty is unattainable, and that the mots one can do is aim to diminish uncertainty to an acceptable
degree. What degree is acceptable depends on the fact that other values, including justice in the light of
developing but currently unforeseen situations, are at stake” (MACCORMICK, Neil. Rhetoric and the rule of law:
a theory of legal reasoning. Oxford: Oxford University Press, 2005, p. 11).
40
“As pessoas precisam de regras para viver e trabalhar juntas como eficiência, e precisam ser protegidas
quando confiam em tais regras. Contudo, estimular e recompensar a confiança nem sempre são atitudes de
importância decisiva; às vezes é melhor que certas questões permaneçam sem regulamentação por convenção
para permitir o jogo de opiniões independentes, por parte dos juízes e do público quanto àquilo que os juízes
poderão vir a decidir” (DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. 2. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 176).

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 77-99, jul./set. 2014 89
Dierle Nunes, Aline Hadad Ladeira

E dentre todas elas, se sobressai a igualdade como principal expoente da


proteção da integridade e da coerência do direito através da aplicação de precedentes,
mas, é preciso advertir, essa igualdade deve decorrer da similitude jurídica e fática
dos casos confrontados, não apenas da tese jurídica.
Não há como alcançar integridade e coerência pela simples confrontação
de teses jurídicas em abstrato, onde o precedente ganha contornos autônomos,
independentes da realidade fática do caso que lhes deu origem. Retoma-se, nesse
sentido, a percepção da teoria clássica da ratio decidendi, cujo fundamento paira
apenas na proposição jurídica necessária para o deslinde do caso concreto, ou seja,
pela dissociação do direito ao fato.41
O alcance da coerência e da integridade reside, pois, não na ideia simplista
de repetição acrítica de precedentes, mas de respeito na associação da concretude
do caso ao direito. A integridade e coerência em Ronald Dworkin, aqui pensadas e
adotadas, não guardam relação com a obediência irrestrita e servil das orientações
fundadas em discursos de fundamentação prévios verbalizados pelos Tribunais
Superiores. Nesse contexto, absolutamente oportuna a advertência do pensador:

Qualquer estratégia de argumentação Constitucional com pretensões à


integridade constitucional total deve buscar respostas que combinem
bem com nossas práticas e tradições — que se apoie firmemente em
nossa continuidade histórica, bem como no texto da Constituição — para
que essas respostas possam, de maneira aceitável, ser consideradas
como descrição de nossos compromissos com a nação.42

O precedente, como já se repetiu tantas vezes, é o ponto de partida para as


discussões e todo tribunal chamado a decidir um caso, cuja matéria tenha sido
decidida em julgados anteriores, pode e deve submeter os precedentes ao teste de
fundamentação racional, vale dizer, o juiz não deve aceitar cegamente o precedente
(Mootness Principle). Nesse contexto, não se apresenta viável o fechamento
hermenêutico ou codificação dos precedentes, já que um “sistema fundando no stare
decisis não está preso a leituras exegéticas dos precedentes”43. No stare decisis:

41
Precursora das teorias de relevo propostas para caracterizar a ratio decidendi, a denominada teoria clássica
(há muito superada) afirma que a ratio decidendi de um caso é a proposição ou regra de direito sem a qual
o caso seria decidido de forma diversa. Em outras palavras, a ratio decidendi seria a proposição jurídica
necessária à decisão. Entre os defensores dessa caracterização da ratio decidendi cita-se Edmund Morgan e
John Salmond, dentre outros. Cf. MORGAN, Edmund Morris; DWYER, Francis Xavier. Introduction to the Study
of Law. 2. ed. Chicago: Callaghan, 1948, e SALMOND, John. The Theory of Judicial Precedent. Law Quarterly
Review, Vol. XVI, 1900.
42
DWORKIN. Ronald. A justiça de toga. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
p. 174-175.
43
BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. As súmulas vinculantes e a nova escola da exegese. Revista de
Processo, v. 206, p. 359-379, 2012, op. cit. p. 366.

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Aspectos da dinâmica do direito jurisprudencial no Brasil versus a busca da coerência e integridade...

As principais vantagens da doutrina é que ela leva a coerência na


aplicação e desenvolvimento dos princípios em cada ramo do direito
e, em virtude dessa característica, permite aos advogados prever,
com razoável certeza, qual atitude dos tribunais seja provável em um
determinado conjunto de fatos. O sistema é flexível na medida em
que pode encontrar uma resposta para qualquer problema legal e é
essencialmente prático de modo que os tribunais estão perpetuamente
lidando com circunstâncias reais.44

Assim, para além dos benefícios45 que sustentam a aplicação de precedentes


judiciais como fonte imediata do direito, é de suma importância que esse exercício
aconteça de forma responsável.
Conforme pontua Taruffo, há um grande risco de a discricionariedade pertinente
ao processo de aplicação do direito se desvirtuar em arbítrio, servindo o processo de
concretização normativa uma mera efetivação de escolhas subjetivas do julgador.46
Trata-se, portanto, “de estabelecer os limites entre decisões discricionárias e
decisões arbitrárias, o que é de óbvia importância no âmbito da administração da
justiça no moderno Estado de Direito”.47
A urgência de respostas deve ser encarada, tal como propõe Dworkin, levando-se
em conta toda a história institucional de decisões anteriores que tratam de uma
mesma temática, respeitando a coerência e a integridade do Direito.
Dworkin defende um direito como integridade, formado por uma comunidade de
princípios48 onde a coerência deve ser vista não apenas em cada regra do Direito, mas
em todo seu sistema. As proposições jurídicas não são como descrições objetivas,
mas parte de uma estrutura maior de princípios jurídicos abstratos com carga de valor
substancial que combinam elementos descritivos e valorativos.

44
“The main advantages of the doctrine are that it leads to consistency in the application and development of
the principles in each branch of the law, and by virtue of this characteristic it enables lawyers to forecast with
reasonable certainty what the attitude of the courts is likely to be to a given set of facts. The system is flexible
in that the courts are perpetually dealing with actual circumstances” (EDDEY, Keith James. The English Legal
System, 3. ed. Londres: Sweet e Maxwell, 1982. p. 129).
45
Dentre as razões para sustentar o uso e os benefícios dos precedentes judiciais permitindo um sistema judicial
coerente sem decisões inconsistentes, destacam-se a segurança jurídica, previsibilidade e estabilidade.
FINE, Toni M. Uso do precedente e o papel do princípio do stare decisis no sistema legal norte americano,
op. cit., 95-96.
46
TARUFFO, Michele. Legalità e giustificazione della creazione giudiziaria del diritto. Rivista Trimestrale di Diritto
e Procedura Civile. Ano LV. n. 1. Milano: Giuffrè Editore, 2001. p. 15.
47
Ibidem, p. 15.
48
“Denomino ‘princípio’ um padrão que deve ser observado, não porque vá promover ou assegurar uma situação
econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência de justiça [...]. A diferença
entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para
decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à
natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que
uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não
é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão. [...] Um princípio [...] enuncia uma razão que conduz
o argumento em uma certa direção, mas necessita de uma decisão particular”. DWORKIN, Ronald. Levando os
direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. p. 36, 42.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 77-99, jul./set. 2014 91
Dierle Nunes, Aline Hadad Ladeira

Em Dworkin, o direito como prática interpretativa exsurge de uma teoria de


cunho normativo. Em outras palavras, o direito (inseparável de uma teoria política
substantiva) é produto da construção interpretativa, na qual os participantes se
apropriam da história institucional constituída para, assim, sob os supostos da
moralidade política da sociedade, encontrar a melhor justificativa.
Assim, Dworkin não está apenas preocupado em demonstrar que os juízes
articulam argumentos de moralidade política na construção de suas decisões, mas
também em demonstrar quais são os vetores principiológicos que devem orientar
essa argumentação (igualdade, dignidade etc.) e em como evitar que isso caminhe
para o subjetivismo.
Assim, uma atitude interpretativa cuidadosa deve reconhecer a prática social
como portadora de um valor em si que responde a uma finalidade/propósito e reforça
um princípio afirmado, independentemente das regras que a descrevem. A finalidade/
propósito da prática social fica sujeita à valoração, dentro dos limites históricos da
compreensão de cada prática, o que autoriza sua modificação.
Nessa interpretação construtiva a prática social deixa de ser algo incompreensível,
mecânico, além do intérprete, tornando-se algo reconstruído diante desse significado,
modificada ao longo do tempo, pois repercute na prática alterando sua forma, e
a cada nova forma se tem uma nova interpretação. Assim, superando, portanto, o
“aguilhão semântico” das teorias positivistas e realistas, Dworkin demonstra que a
atividade interpretativa da prática social descola-se da intenção do autor como algo
objetivamente dado e passa para o intérprete, cuja preocupação é com a finalidade.49
O direito como integridade “condena a prática de tomar decisões que parecem
certas isoladamente, mas que podem não fazer parte de uma teoria abrangente dos
princípios e das políticas gerais que seja compatível com outras decisões igualmente
consideradas certas”50. Para ele:

O direito como integridade pede que os juízes admitam, na medida do


possível, que o direito é estruturado por um conjunto coerente de princípios
sobre a justiça, a equidade e o devido processo legal adjetivo, e pede-lhes
que os apliquem nos novos casos que se lhes apresentem, de tal modo
que a situação de cada pessoa seja justa e equitativa segundo as mesmas
normas. Esse estilo de deliberação judicial respeita a ambição que a
integridade assume a ambição de ser uma comunidade de princípios.51

A coerência com o conjunto de princípios que representa a moralidade política


da comunidade implica que todos sejam tratados com igual consideração e respeito

49
DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 55 et seq.
50
Essa ideia está intimamente relacionada com a doutrina da responsabilidade política a que estariam sujeitos
os juízes nas tomadas de decisões. Ibidem, p. 127/203.
51
DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 291.

92 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 77-99, jul./set. 2014
Aspectos da dinâmica do direito jurisprudencial no Brasil versus a busca da coerência e integridade...

nas decisões. Não se trata de coerência apenas com a decisão judicial precedente,
mas também com os princípios que a fundamentaram, apesar de não ser necessária
uma adesão estrita ao passado. A isso Dworkin atribui o nome de “força gravitacional”
dos precedentes,52 pois justamente essa força será ampliada para além do elemento
vinculante (ratio decidendi), já que a decisão deve estar baseada em princípios. Vale
dizer, a ratio decidendi não fecha a argumentação.
Nesse contexto, Hershovitz relaciona o stare decisis com a integridade de Dworkin:

A chave para entender a prática do stare decisis, devo argumentar,


repousa em outro ponto. Especificamente, ela repousa na virtude que
Ronald Dworkin chama de integridade. Integridade é um valor realizado
por padrões de comportamento reiterados no tempo. A única demanda
que a integridade faz sobre ambos, indivíduos e tribunais, é que eles
reconheçam que o que eles fizeram no passado influencia o que eles
devem fazer agora. Stare decisis [...] promove a integridade no processo
de decisão judicial. Como nós veremos, um Tribunal sem a preocupação
com a integridade de seus próprios processos de decisão não precisaria
distinguir ou rejeitar seus precedentes. Ele poderia simplesmente
ignorá-los53 (tradução livre, grifos nossos).

E este ignorar os precedentes é uma prática corrente entre nós.54


Ademais, a congruência sistêmica, aqui trazida por Eisenberg, imprime a noção
de respeito ao precedente como forma de realizar princípios como igualdade, coerência
e continuidade do ordenamento, equilibrando a exigência de certeza e confiabilidade
às de flexibilidade e adaptação de modo a atender a dinâmica social.55
O elemento vinculante, quando corretamente problematizado/aplicado, se
presta a uniformizar a jurisprudência e alcançar a dita congruência sistêmica, além
de combater a liberdade excessiva (filosofia da consciência) ainda hoje exercida
pelos julgadores.
No âmbito do civil law, Taruffo ressalta a importância de um judiciário
hierarquicamente bem estruturado e que respeite decisões tomadas em instâncias
superiores (e também as instâncias superiores devem guardar coerência com seus

52
DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 176.
53
No original: “The key to understanding the practice of stare decisis, I shall argue, lies elsewhere. Specifically,
it lies in the virtue Ronald Dworkin calls integrity. Integrity is a value that is realized by patterns of behavior a
Cross time. The unique demand that integrity makes upon both individuals and courts is that they recognize
that what they have done in the past affects what they ought to do now. Stare decisis, I aim to show, promotes
integrity in judicial decision making. As we shall see, a court with no concern for the integrity of its own decision
making would no need to distinguish or overrule its precedents. It could simply ignore them (HERHOVITZ, Scott.
Integrity and Stare decisis. In: HERSHOVITZ, Scott (Ed.). Exploring Law’s Empire. New York: Oxford University
Press, 2008. p. 103-104).
54
NUNES, Dierle. Afastamento de precedente não pode continuar sendo regra. Acesso em: <http://www.conjur.
com.br/2014-jun-04/dierle-nunes-afastamento-precedente-nao-regra>.
55
EISENBERG, Melvin Aron. The nature of the common law, op. cit., p. 105-126.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 77-99, jul./set. 2014 93
Dierle Nunes, Aline Hadad Ladeira

próprios julgados) promovendo certeza e segurança jurídica.56 Tal respeito, no entanto,


repita-se, não implica em aplicação passiva e mecânica, porquanto é possível afastar
um entendimento considerado injusto ou superado.
Tucci lembra que “a harmonia dos precedentes judiciais, além de constituir
precioso elemento de confiança no Poder Judiciário, tem enorme repercussão
na sociedade, porque uma conduta uniforme de julgar confere estabilidade aos
conceitos e às relações jurídicas”. Além de não zelar pela coerência e integridade,
“não há conspiração maior contra a previsibilidade e a segurança do direito do que
as repentinas e inusitadas alterações da jurisprudência!”.57 Assim, o respeito (e não
a servil obediência) ao que decidem os Tribunais Superiores de modo a alcançar
uniformidade jurisprudencial guarda estreita relação como a congruência sistêmica
na dinâmica dos precedentes.
Nesse sentido, enfatiza-se que integridade não significa decidir casos
semelhantes da mesma forma, não significa seguir fielmente os precedentes de
modo a alcançar coerência.
A coerência deve se dar com os princípios da comunidade e, portanto, o juiz
poderá se afastar da vertente de decisões anteriores em busca de fidelidade aos
princípios como mais fundamentais a esse sistema como um todo.58
Quando de uma nova decisão, instaura-se um novo processo de interpretação e
reinterpretação combinando elementos do passado e do futuro, já que a prática jurídica
contemporânea é um processo em desenvolvimento. O direito como integridade pede
aos juízes que continuem interpretando o mesmo material que ele próprio afirma ter
interpretado com sucesso.59 Ainda aqui, importa frisar que Dworkin repudia a ideia
de uma prática utilitarista, ou seja, a utilização de precedentes como o meio para a
redução do volume de processos. É a subversão dos argumentos de princípio para os
de procedimento político.
Ademais, com o modelo de integridade proposto por Dworkin será possível limitar
a liberdade de decisão (filosofia da consciência), conforme pontua Michel Rosenfeld:

Para prevenir abusos, os intérpretes devem manter um nível de integridade


segundo o qual se descola de uma via interpretativa disponível para
outra que só seria justificável SE acompanhada por uma assunção plena
e sincera de todos os encargos associado à última via interpretativa.
Em consonância com essa exigência de integridade, um interprete não
pode recorrer a uma via interpretativa disponível para pressionar por

56
TARUFFO, Michele. Legalità e giustificazione dela creazione giudiziaria del dirrito, op. cit., p. 26.
57
TUCCI, José Rogério Cruz e. Mudança de entendimento nas câmaras empresariais. Disponível em:
<http://www.conjur.com.br/2013-out-28/jose-rogerio-tucci-mudanca-entendimento-camaras-empresariais>.
Acesso em: 11 dez. 2013.
58
DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 171 et seq.
59
Ibidem, p. 275 et seq.

94 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 77-99, jul./set. 2014
Aspectos da dinâmica do direito jurisprudencial no Brasil versus a busca da coerência e integridade...

uma vantagem em uma ocasião, para, em seguida, na próxima ocasião,


abandonar essa via interpretativa em favor de outra, a fim de evitar uma
sobrecarga. Um intérprete, no entanto, pode mudar de uma perspectiva
interpretativa disponível para outra que ele acredita sinceramente que
a última perspectiva é mais adequada para promover a tentativa de
reconciliação pedida e se ele ou ela está plenamente preparado para
assumir todos os encargos que podem decorrer da adoção dessa nova
perspectiva.60 (grifos nossos)

Daí que a salvaguarda da coerência e integridade do Direito devem ter como


pressuposto aquilo que Dworkin asseverou para ilustrar sua festejada, e tantas vezes
reproduzida, tese acerca da integridade: o juiz deve se comportar como um autor em
uma cadeia literária (chain novel), dividindo espaço com outros autores, cada qual
escrevendo um capítulo de um “romance sem fim”, sendo lhe permitido revisar a
história escrita pelos outros, mas para seguir o caminho traçado anteriormente e não
para trilhar um percurso solitário. “O dever de um juiz é interpretar a história legal em
que ele se encontra, não inventar um melhor”.61
Em suma, um romance em cadeia, onde cada julgador é responsável pela redação
de um capítulo de uma obra em construção, tarefa que deve ser desempenhada
com absoluta responsabilidade, já que o ideal que se busca é um romance único
e coeso62 O romance deve guardar fidelidade ao enredo traçado, já que não propõe
um gênero livre; nem pode sê-lo, sob pena de chancelar o arbítrio e o subjetivismo
e comprometer a tão perseguida estabilidade, essencial para o uso eficiente do
direito jurisprudencial.
Aliás, é bom que se diga, o significado de cada capítulo do enredo delineado
não surgirá de pronto, pois dependerá de nova (re)leitura e bons argumentos, já que,
ao mesmo tempo em que se escreve um novo capítulo, se (re)interpreta o passado
que, por sua vez, adquire novos contornos e significados.63

60
No original: “To prevent abuses, interpreters should be held to a standard of integrity according to which shifts
from one available interpretive avenue to another would only be justifiable IF accompanied by a full and sincere
assumption of all the burdens associated with the latter interpretative avenue. Consistent with this requirement
of integrity, an interpreter may not resort to an available interpretative avenue to press for an advantage on
one occasion an then on the next occasion, abandon that interpretative avenue in favor of another order to
avoid a burden. An interpreter, however, may switch from one available interpretive perspective to another
it that interpreter sincerely believes that the latter perspective is better suited to promoted the attempted
reconciliation sought and if he or she is fully prepared to assume all the burdens that might flow from adoption
of the new perspective” (ROSENFELD, Michael. Just interpretations: Law between Ethics and Politics. Los
Angeles: University of California Press, 1998. p. 28).
61
“We know from the parallel argument in literature that this general description of interpretation in law is not
license for each judge to find in doctrinal history whatever he thinks should been there. The same distinction
holds between interpretation and ideal. A judge’s duty is to interpret the legal history he finds, not to invent
a better history” (DWORKIN, Ronald. Law as interpretation. Chicago Journals: Critical Inquiry, v. 9, n. 1,
p. 179-200, 1982, p. 194-195).
62
DWORKIN, Ronald. Império do direito, op. cit., p. 275 et seq.
63
ROSENFELD, Michael. Just Interpretations, op. cit. p. 18.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 77-99, jul./set. 2014 95
Dierle Nunes, Aline Hadad Ladeira

Ademais, a estrutura do direito como um conjunto coerente de princípios sobre


equidade, justiça e devido processo e que irá, consequentemente, possibilitar a
coerência e a integridade, deve decorrer de uma sucessão de casos concretos e não
de pautas gerais ou da mera discussão de teses jurídicas. Dito de outro modo, a
integridade e coerência na aplicação jurisdicional significa a reconstrução histórica da
cadeia de casos concretos julgados e interpretados, ou seja, de uma efetiva realidade
e não teses jurídicas em abstrato.
Nesse contexto e com base nos referenciais aqui apresentados, o paradigma
consubstanciado na adoção de padrões decisórios para a resolução de casos futuros
deve ser norteado pela coerência e integridade propostos por Dworkin, possibilitando,
assim, a correta sistemática na aplicação do direito jurisprudencial, além do controle/
cuidado na estandarização do direito.
Em última análise, para que a utilização dos precedentes aconteça de forma
adequada, para além de se instalar no Brasil o fenômeno de um “common law à
brasileira”,64 deve-se ter por norte a abertura (ou o ponto de partida) e a problematização
que o precedente ocasiona e não encará-lo como fechamento do direito. Ainda sobre a
estandarização do direito, nega-se a própria percepção de que ele é uma prática social
constante e que, portanto, não há como fechar o discurso e, consequentemente, o
debate. Dworkin é categórico quando enfatiza que “a força gravitacional do precedente
não pode ser apreendida por nenhuma teoria que considere que a plena força do
precedente está em sua força de promulgação, enquanto peça de legislação”.65

Considerações finais
O momento é de reflexão imparcial e prudente sobre a melhor técnica para
se alcançar, na experiência judiciária brasileira, o ideal de uniformidade que não
exclua a eventualidade justificada de alteração e que privilegie a concretude e a
singularidade do caso. Trata-se, pois, de conciliar segurança jurídica e estabilidade
com os imperativos de correção e flexibilidade.
Se a intenção é alcançar a uniformidade com a criação de padrões decisórios,
deve-se levar em conta toda a história institucional de decisões anteriores que tratam
de uma mesma temática, respeitando a coerência e a integridade do direito de modo
a retratar a moralidade política da comunidade. Não se trata, portanto, de um marco
zero interpretativo, mas um “desenvolver” que se dá pelo encadeamento de capítulos.
Deste modo, o precedente, abstratamente considerado, não pode ser concebido
como “a solução” para a produção de um mundo jurídico homogeneizado, como se

64
THEODORO JUNIOR, Humberto; NUNES Dierle; BAHIA, Alexandre. Breves considerações sobre a politização do
Judiciário e sobre o panorama de aplicação no direito brasileiro. Op. cit., p. 41.
65
DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 176.

96 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 77-99, jul./set. 2014
Aspectos da dinâmica do direito jurisprudencial no Brasil versus a busca da coerência e integridade...

todos os casos pudessem ser abarcados com uma tese jurídica antes estabelecida,
onde a concretude dos fatos revela-se dispensável, inconveniente até. Tal como
a integridade de Dworkin nos ensina, novas circunstâncias/contextos sempre vão
emergir quando da construção de um novo capítulo, inviável, pois, a compreensão
sempre universal e homogênea da vida e de seus problemas concretos. E por isso,
sem uma sucessão de casos concretos, apenas pelo confronto de teses, a redação
de um novo capítulo resta prejudicada, pois não contará com novos elementos que,
inevitavelmente, emergem da factível dinâmica social.
Se a proposta é de que os precedentes sirvam para uniformizar a jurisprudência,
necessário se faz o abandono definitivo da pretensão metafísica de ler e decifrar a
natureza de todos os fatos, aprisionando-os em normas universais e eternas. Tal
como a experiência do common law demonstra, a utilização do precedente apenas
pode se dar fazendo comparação entre os casos (hipóteses fáticas) a permitir a
aplicação do anterior ao novo.
Ademais, quando se avaliza a aplicação de “precedentes” apenas sob a ótica da
tese jurídica, desvela-se o viés condicionante da produção jurídica em que direito passa
a ter um caráter meramente reprodutivo daquilo que dizem os Tribunais Superiores
(que não raramente produzem graves rupturas em seus próprios entendimentos). Em
outras palavras, o direito passa a ser aquilo que é dito por eles em detrimento da
legislação produzida democraticamente.
Cumpre ressaltar que não se ignora aqui a necessidade de redução da
complexidade representada pela crise do Poder Judiciário, muito ao contrário. O
que não se valida, em absoluto, é a desvirtuação da finalidade de instrumentos
(como a súmula vinculante, por exemplo), transformando-os em mecanismos de
estandarização do direito e de bloqueio ao acesso à justiça como se seu compromisso
fosse, tão somente, o de reduzir o elevado número de processos. Inarredável,
portanto, a superação desse modo pragmático e objetivo de pensar o direito para a
(re)introdução da facticidade do mundo jurídico que deve primar pela coerência e
integridade nas decisões.
Em última análise, não há como prever ou delimitar um final para o romance que
se delineia, já que o enredo sempre contará com a influência de novos elementos da
concreta dinâmica social. E ditos elementos se voltam para o passado e o presente
com influência no futuro nessa intermitente construção onde, em cada nova decisão,
instaura-se um novo processo de (re)interpretação a permitir integridade e coerência.
A única previsão que se pode estabelecer é o ponto de partida, o primeiro capítulo —
a constituição.

Abstract: This article aims to highlight some aspects of the case law dynamics in Brazil and the search for
consistency and integrity – two assumptions outlined by the New Civil Procedure Code for the precedents.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 77-99, jul./set. 2014 97
Dierle Nunes, Aline Hadad Ladeira

The proposal is to analyze if the purpose of uniformity and equality jurisprudence, common among us,
promotes (or not) a closure of the debate in face of creation of decision-making patterns, contradicting the
system originating the common law. It starts with Ronald Dworkin thinking and some empirical data. Guided
by nuances of the common law system, the integrity and consistency on judicial application means the
historical reconstruction of concrete cases judged and interpreted. In others words an actual reality instead
of abstract legal theories.
Key words: Case Law. Consistency and integrity. Common Law. New Civil Procedure Code.

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

NUNES, Dierle; LADEIRA, Aline Hadad. Aspectos da dinâmica do direito jurisprudencial


no Brasil versus a busca da coerência e integridade – Uma primeira impressão das
premissas dos precedentes no Novo Código de Processo Civil. Revista Brasileira de
Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 77-99, jul./set. 2014.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 77-99, jul./set. 2014 99
Controle abstrato de constitucionalidade –
ADI, ADC e ADPF

José Maria Tesheiner


Professor de Processo Civil da PUCRS e Desembargador aposentado do TJRGS.

Sumário: Introdução – 1 Objeto das ações diretas de inconstitucionalidade e declaratória de


constitucionalidade e da arguição de descumprimento de preceito fundamental – 2 Subsidiariedade da
ação de descumprimento de preceito fundamental e fungibilidade – 3 Legitimação ativa – 4 Procedimento –
5 Medida cautelar – 6 Decisão – 7 Efeitos da decisão – Conclusão – Referências

Introdução
Apresentamos, neste estudo, o “estado da arte” relativamente às ações
direta de inconstitucionalidade, declaratória de constitucionalidade e de arguição de
descumprimento de preceito fundamental, com base sobretudo na jurisprudência do
Supremo Federal, destacando seu objeto, a legitimação, o procedimento, a decisão
e seus efeitos.

1 Objeto das ações diretas de inconstitucionalidade e


declaratória de constitucionalidade e da arguição de
descumprimento de preceito fundamental
Nos termos do artigo 102 da Constituição, a ação declaratória de
constitucionalidade tem por objeto lei ou ato normativo federal; o objeto da ação
declaratória de inconstitucionalidade é mais amplo: lei ou ato normativo federal
ou estadual. A Constituição não determina o objeto da ação de descumprimento
de preceito fundamental. Limita-se a estabelecer a competência do Supremo
Tribunal Federal (art. 101, III, §1º ), mas a Lei nº 9.882/1999 deixa claro que
pode ter por objeto lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal (art. 1º,
parágrafo único).
Diferentemente do que ocorre com as ações declaratórias de constitucionalidade
ou de inconstitucionalidade, o objeto da arguição de descumprimento de preceito
fundamental não precisa necessariamente ter natureza normativa. O artigo 1º, caput,
da Lei citada refere-se simplesmente a “ato do Poder Público” de que resulte ameaça
ou lesão a preceito fundamental.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 101-122, jul./set. 2014 101
José Maria Tesheiner

Diz Dirley da Cunha Júnior:

A arguição de descumprimento de preceito fundamental presta-se,


outrossim, a fiscalizar os atos ou omissões não normativas do poder
público. Vale dizer, pode ser empregada para controle dos atos
concretos ou individuais do Estado ou da Administração Pública, os atos
ou fatos materiais, os atos regidos pelo direito privado e os contratos
administrativos, alem de abranger, outrossim, até as decisões judiciais
e os atos políticos e as omissões na prática ou realização destes atos,
quando violarem preceitos constitucionais fundamentais.1

A arguição de descumprimento de preceito fundamental cabe também “quando for


relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal,
estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição” (Lei nº 9.882/1999,
art. 1º, parágrafo único), o que a integra entre os processos objetivos, cujo sistema
completa, ao incluir em seu objeto atos normativos municipais e atos normativos
anteriores à Constituição, excluídos do âmbito das ações diretas de constitucionalidade
e de inconstitucionalidade.
Diz Dirley da Cunha Júnior que também súmulas dos Tribunais podem ser objeto
de arguição de descumprimento de preceito fundamental.2 3
Contudo, na ADPF nº 147, afirmou o Supremo Tribunal Federal que a arguição
de descumprimento de preceito fundamental não é via adequada para se obter a
interpretação, a revisão ou o cancelamento de súmula vinculante (ADPF 147 AgR/
DF - Distrito Federal. Ag.Reg. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental.
Rel: Min. Cármen Lúcia. Julgamento: 24.03.2011. Órgão Julgador: Tribunal Pleno).
Em ação direta de inconstitucionalidade, conhecida como arguição de
descumprimento de preceito fundamental porque impugnada norma anterior à Emenda
nº 45, de dezembro de 2004, que estabeleceu a autonomia funcional, administrativa
e financeira das Defensorias Públicas Estaduais, o Supremo Tribunal Federal afirmou
a inconstitucionalidade de norma que imponha à Defensoria Pública Estadual, para
prestação de serviço jurídico integral e gratuito aos necessitados, a obrigatoriedade
de assinatura de convênio exclusivo com a Ordem dos Advogados do Brasil, ou com
qualquer outra entidade, por violar a autonomia funcional, administrativa e financeira
daquele órgão (ADI nº 4.163/SP. São Paulo. Ação Direta de Inconstitucionalidade.
Rel.
Min. Cezar Peluso.
Julgamento: 29.02.2012. Órgão Julgador: Tribunal Pleno).

1
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Ações constitucionais. Salvador: JusPodivm, p. 462.
2
Ibidem.
3
Em setembro de 2010 foi proposta arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 219, pelo
Presidente da República, em essência para impugnar orientação geral dos Juizados Especiais da Seção do
Judiciário do Rio de Janeiro, consubstanciada em aproximadamente 8.000 decisões, no sentido de obrigar a
União a apurar, nos processos em que condenada, o valor devido ao vencedor.

102 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 101-122, jul./set. 2014
Controle abstrato de constitucionalidade – ADI, ADC e ADPF

O Supremo Tribunal Federal conheceu a ADPF nº 132 como ação direta de


inconstitucionalidade para, em interpretação conforme a Constituição, excluir do
artigo 1.723 do Código Civil4 qualquer significado que impeça o reconhecimento da
união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como “entidade
familiar”, entendida esta como sinônimo perfeito de “família”. Reconhecimento a
ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união
estável heteroafetiva (ADPF nº 132/RJ. Rio de Janeiro. Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental. Rel.: Min. Ayres Britto.
Julgamento: 05 maio 2011. Órgão
Julgador: Tribunal Pleno).
Emenda constitucional é ato normativo, cuja inconstitucionalidade pode ser
declarada, por violação à cláusula pétrea da Constituição.
O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil propôs ação de
descumprimento de preceito fundamental para que se declarasse a não recepção
pela Constituição de 1988 do artigo 1º da Lei nº 6.683/1979 (Lei da Anistia),
ao que respondeu o Supremo Tribunal Federal que a anistia da Lei de 1979 foi
reafirmada, no texto da EC nº 26/85, pelo Poder Constituinte da Constituição de
1988. Daí não ter sentido questionar-se se a anistia, tal como definida pela lei, foi
ou não recebida pela Constituição de 1988; a nova Constituição a [re]instaurou em
seu ato originário. A Emenda Constitucional nº 26/85 inaugura uma nova ordem
constitucional, consubstanciando a ruptura da ordem constitucional que decaiu
plenamente no advento da Constituição de 05 de outubro de 1988 (ADPF 153/DF.
Distrito Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental.
Rel. Min.
Eros Grau. Julgamento: 29.04.2010. Órgão Julgador: Tribunal Pleno).
Proposta de emenda constitucional, enquanto mera proposta, não é, ainda,
ato normativo.
Decidiu o Supremo Tribunal Federal:

Atos normativos “in fieri”, ainda em fase da formação, com tramitação


procedimental não concluída, não ensejam e nem dão margem ao
controle concentrado ou em tese de constitucionalidade, que supõe
— ressalvadas as situações configuradoras de omissão juridicamente
relevante — a existência de espécies normativas definitivas, perfeitas
e acabadas. Ao contrario do ato normativo — que existe e que pode
dispor de eficácia jurídica imediata, constituindo, por isso mesmo, uma
realidade inovadora da ordem positiva —, a mera proposição legislativa
nada mais encerra do que simples proposta de direito novo, a ser
submetida â apreciação do órgão competente, para que, de sua eventual
aprovação, possa derivar, então, a sua introdução formal no universo
jurídico. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem refletido

4
É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência
pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 101-122, jul./set. 2014 103
José Maria Tesheiner

claramente essa posição em tema de controle normativo abstrato,


exigindo, nos termos do que prescreve o próprio texto constitucional —
e ressalvada a hipótese de inconstitucionalidade por omissão — que a
ação direta tenha, e só possa ter, como objeto juridicamente idôneo,
apenas leis e atos normativos, federais ou estaduais, já promulgados,
editados e publicados. (STJ, Plenário. ADIN nº 466-2/DF. Rel. Min. Celso
de Mello. J. 03.04.1991)

Todavia, nesse mesmo acórdão acenou-se para a possibilidade de proibição


judicial através de mandado de segurança, invocando-se como precedente o
Mandado de Segurança nº 20.257, Rel. Min. Moreira Alves, julgado em 08.10.1980,
assim ementado:

Mandado de segurança contra ato da Mesa do Congresso que admitiu


a deliberação de proposta de emenda constitucional que a impetração
alega ser tendente à abolição da república. Cabimento de mandado de
segurança em hipótese em que a vedação constitucional se dirige ao
próprio processamento da lei ou da emenda, vedando a sua apresentação
ou a sua deliberação. Nesses casos, a inconstitucionalidade diz respeito
ao próprio andamento do processo legislativo, e isso porque a Constituição
não quer — em face da gravidade dessas deliberações, se consumadas —
que sequer se chegue à deliberação, proibindo-a taxativamente. A
inconstitucionalidade, se ocorrente, já existe antes de o projeto ou de
a proposta se transformar em lei ou em emenda constitucional, porque
o próprio processamento já desrespeita, frontalmente, a Constituição.

Em decisão da maior importância, o Supremo Tribunal Federal conheceu mas


julgou improcedentes as ações diretas de inconstitucionalidade nºs 3.999 e 4.086,
que impugnavam as Resoluções nºs 22.610/2007 e 22.733/2008, do Tribunal
Superior Eleitoral, fundadas no princípio da fidelidade partidária. É verdade que o STF
já firmara entendimento nesse sentido nos Mandados de Segurança nºs 26.602,
22.603 e 26.604, a demonstrar mais uma vez que a criação de norma jurídica pode
decorrer também de decisões reiteradas em processos individuais (jurisprudência).
Seja como for, é patente a relevância da decisão proferida no controle concentrado
de constitucionalidade, ainda que em julgamento de improcedência. Ao afirmar a
constitucionalidade das resoluções, afirmou o Tribunal que não faria sentido a Corte
reconhecer a existência de um direito constitucional, sem prever um instrumento para
assegurá-lo, havendo surgido as resoluções impugnadas em contexto excepcional
e transitório, como mecanismos para salvaguardar a observância da fidelidade
partidária, enquanto o Poder Legislativo, órgão próprio para resolver as tensões
típicas da matéria, não se pronunciar (STF, Pleno. ADI nº 3.999 e ADI nº 4686. Rel.
Min. Joaquim Barbosa. J. 12.11.2008).
O STF tem tratado a chamada inconstitucionalidade superveniente, não
como questão constitucional, mas como tema de direito intertemporal. Todavia, a

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Controle abstrato de constitucionalidade – ADI, ADC e ADPF

arguição de descumprimento de preceito fundamental pode ter por objeto lei anterior
à Constituição, a confirmar a hipótese de que constitui nova espécie de processo
objetivo, compreendendo hipóteses que escapam ao âmbito das ações diretas de
constitucionalidade ou de inconstitucionalidade.

O parágrafo 1º do artigo 636 da Consolidação das Leis do Trabalho,


estabelece que os recursos administrativos interpostos das multas
impostas pelas autoridades do Ministério do Trabalho somente terão
seguimento se instruído com prova do depósito da multa (incluído pelo
Decreto nº 229/1967). O Supremo Tribunal Federal julgou procedente
arguição de descumprimento de preceito fundamental proposta pela
Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo, para
declará-lo não recepcionado pela Constituição. (ADPF 156/DF - Distrito
Federal Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Rel. Min.
Cármen Lúcia. Julgamento: 18.08.2011. Órgão Julgador: Tribunal Pleno)

Revogado ato, fica prejudicada a ADI, orientação criticada por Gilmar Mendes.5

A revogação do ato normativo impugnado ocorrida posteriormente ao


ajuizamento da ação direta, mas anteriormente ao seu julgamento,
a torna prejudicada, independentemente da verificação dos efeitos
concretos que o ato haja produzido, pois eles têm relevância no plano
das relações jurídicas individuais, não, porém, no do controle abstrato
das normas”. (ADI nº 737-8. Rel. Min. Moreira Alves. J. 16.09.1993.
PDT, “x”, art. 7º da Lei nº 8.149/92 — valor do salário mínimo)

Não fica excluído, porém, o cabimento de arguição de descumprimento de


preceito fundamental, exatamente para afastar os efeitos concretos que o ato haja
produzido. A transcendência da hipótese, além do plano das relações individuais, não
constitui requisito dessa ação, pois ela mais se aproxima das ações individuais do
que se insere nos processos objetivos.
Cabe ação direta de inconstitucionalidade contra medida provisória (ato
normativo). Sua conversão em lei não prejudica a ação. Contudo, havendo reedição,
exige-se aditamento. A ação resta prejudicada, se ela não é aprovada, ou se aprovada
com alterações (mesmo meramente formais), orientação esta criticada por Mendes.6
Cabe ação direta de inconstitucionalidade contra decreto legislativo (ato
normativo). Não é preventiva a ação proposta contra decreto legislativo que aprova
tratado internacional (MENDES).7
Cabe ação direta de inconstitucionalidade contra decreto do Poder Executivo
(ato normativo). Todavia, o Supremo Tribunal Federal não a admite contra decreto

5
MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional. 3. ed. São Paulo, Saraiva, 1999. p. 173 et seq.
6
MENDES. Jurisdição constitucional, p. 174 et seq.
7
Ibidem, p. 172.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 101-122, jul./set. 2014 105
José Maria Tesheiner

regulamentar, porque não haveria ofensa direta à Constituição, orientação criticada


por Mendes, porque se o regulamento vai além da lei, há violação do princípio
da legalidade.8
Na arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 169, o Supremo
Tribunal afirmou a impossibilidade de controle concentrado de ato que consubstancie
mera ofensa reflexa à Constituição, como o decreto presidencial nº 6.620/2008, que
regulamentou a Lei dos Portos (Lei nº 8.630/1993) (ADPF nº 169 AgR/DF - Distrito
Federal.
AG.REG. na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental.
 Rel.
Min. Ricardo Lewandowski. Julgamento: 19.09.2013. Órgão Julgador: Tribunal Pleno).
Decidiu o Supremo Tribunal Federal que a arguição de descumprimento de
preceito fundamental constitui meio inidôneo para impugnar normas secundárias e de
caráter tipicamente regulamentar, como as resoluções do Conselho Federal de Química
(ADPF nº 210 AgR/DF. Distrito Federal. AG.REG. na Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental. Rel. Min. Teori Zavascki. Julgamento: 06.06.2013. Órgão
Julgador: Tribunal Pleno).
Portaria pode ser objeto de ação direta de inconstitucionalidade. Na ADI
nº 4.105, o Supremo Tribunal Federal concedeu medida cautelar suspendendo a
eficácia de portaria do Ministério da Saúde, que impunha requisito não previsto em
lei para a participação licitação pública (ADI nº 4.105 MC/DF. Distrito Federal. Medida
Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade. Rel. Min. Marco Aurélio. Julgamento:
17.03.2010. Órgão Julgador: Tribunal Pleno).
Cabe ação direta de inconstitucionalidade, mas não ação declaratória de
constitucionalidade contra norma de Constituição estadual.
Ambas as ações podem ter por objeto ato normativo federal, editado por
pessoa jurídica de direito público, regimento interno de tribunal,9 parecer com força
normativa, tais como os da Consultoria-Geral da República, aprovados pelo Presidente
da República.10
Há, ainda, a ação direta de inconstitucionalidade por omissão. A Constituição
dispõe que, declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar
efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção
das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo
em trinta dias (art. 103, §2º).
O dispositivo traça claro limite à atuação jurisdicional, diretamente relacionado
com o princípio da separação dos Poderes, na medida em que, declarada a omissão
legislativa, a consequência será a mera comunicação ao Parlamento “para a adoção
das providências necessárias”. Assim, o Judiciário não substitui o Legislador,

8
Ibidem, p. 180 et seq.
9
Exemplo: ADI nº 1.662-7. Rel. Min. Maurício Correa. J. 30.08.2001. Governador do Estado de São Paulo
versus Instrução Normativa nº 11 do TST.
10
Exemplo: ADI nº 4-7. Rel. Sidney Sanches. J. 07.03.1991.

106 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 101-122, jul./set. 2014
Controle abstrato de constitucionalidade – ADI, ADC e ADPF

editando, em lugar dele, a norma reclamada pela Constituição. Tampouco poderá


constranger o Legislativo, através de astreintes ou de outra medida coercitiva.
Aliter, em mandado de injunção, em que a orientação do Supremo Tribunal
Federal é no sentido da possibilidade de o Poder Judiciário suprir a falta de norma
do Congresso Nacional, quando exigida pela Constituição (ver, por exemplo, o MI
nº 670. Rel. p/o acórdão Min. Gilmar Mendes. Julgado em: 25.10.2007, sobre a
regulamentação do direito de greve dos servidores públicos).

2 Subsidiariedade da ação de descumprimento de


preceito fundamental e fungibilidade
Nos termos do §1º do art. 4º da Lei nº 9.882/1999, “não será admitida
arguição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro
meio eficaz de sanar a lesividade”.
Já se observou que se esse outro meio de sanar a lesividade incluísse as ações
individuais, dificilmente haveria caso de cabimento de ação de descumprimento de
preceito fundamental. Obrigatória, então, a conclusão de que o cabimento dessa
ação estaria condicionado ao descabimento de ação direta de declaração de
constitucionalidade ou declaratória de constitucionalidade.
Decidiu o Supremo Tribunal Federal que “a existência de processos ordinários
e recursos extraordinários não deve excluir, a priori, a utilização da arguição de
descumprimento de preceito fundamental, em virtude da feição marcadamente objetiva
dessa ação” (STF, Pleno. ADPF nº 33. Min. Gilmar Mendes. Rel. J. 27.10.1966).
Confirma esse entendimento a orientação do Supremo Tribunal Federal,
admitindo a aplicação do princípio da fungibilidade, conhecendo-se de uma ação por
outra. Assim, por exemplo, na Questão de Ordem em Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental, Rel. Min. Ellen Gracie, julgada em 1º.06.2005. Tendo sido
proposta arguição de descumprimento de preceito fundamental pelo Governador do
Estado do Maranhão, considerada incabível, tendo em vista o disposto no artigo
4º, §1º, da Lei nº 9.882/1999 (“Não será admitida arguição de descumprimento
de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a
lesividade”), disse a Relatora:

Constato [...] que a presente ação satisfaz todos os elementos


necessários à propositura de ação direta de inconstitucionalidade: (a) o
autor, Governador do Estado, é um dos legitimados arrolados no art. 103,
V, da CF; (b) tem a ação como objeto espécie de ato normativo já admitido
pela jurisprudência da Casa em ADI; (c) tem como fundamento a violação
de dispositivos constitucionais vigentes; (d) pede-se a declaração de
violação a normas constitucionais e a retirada do ato atacado do
ordenamento jurídico.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 101-122, jul./set. 2014 107
José Maria Tesheiner

Assim sendo, demonstrada a impossibilidade de se conhecer a presente ação


como ADPF, pela existência de outro meio eficaz, sendo evidente o perfeito encaixe de
seus elementos ao molde de pressupostos da ação direta de inconstitucionalidade e,
ainda, demonstrando-se patente a relevância e a seriedade da situação trazida aos autos,
referente a conflito surgido entre dois Estados da Federação, resolve a presente questão
de ordem propondo o aproveitamento do feito como ação direta de inconstitucionalidade,
a ela aplicando, desde logo, o rito do art. 12 da Lei nº 9.868/1999.

3 Legitimação ativa
Conforme dispõe o artigo 2º da Lei nº 9.882, podem propor arguição de descumprimento
de preceito fundamental os legitimados para a ação direta de inconstitucionalidade.
Ora, a Constituição Federal dispõe:

Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a


ação declaratória de constitucionalidade: (Redação dada pela Emenda
Constitucional nº 45, de 2004)
I - o Presidente da República;
II - a Mesa do Senado Federal;
III - a Mesa da Câmara dos Deputados;
IV a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito
Federal; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
V o Governador de Estado ou do Distrito Federal; (Redação dada pela
Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
VI - o Procurador-Geral da República;
VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;
VIII - partido político com representação no Congresso Nacional;
IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

Segue-se, pois, que há identidade dos legitimados, no tocante às três ações: a


direta de inconstitucionalidade, a declaratória de constitucionalidade e a arguição de
descumprimento de preceito fundamental.
Dentre os legitimados, alguns o são qualquer que seja a norma impugnada. São
os legitimados universais. De outros, o Supremo Tribunal Federal tem exigido “relação
de pertinência”, entre a natureza do requerente e a da matéria debatida. São os
legitimados especiais. Assim, “a Mesa da Assembléia Legislativa do Amazonas não
terá direito a propor ação direta de inconstitucionalidade sobre lei que diga respeito à
remuneração dos servidores do Estado de São Paulo” (MARTINS).11

11
MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira. Controle concentrado de constitucionalidade. São
Paulo, Saraiva, 2001. p. 70.

108 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 101-122, jul./set. 2014
Controle abstrato de constitucionalidade – ADI, ADC e ADPF

Quanto ao Presidente da República, legitimado universal, observa-se que a


sanção da lei não impede que o chefe do Poder Executivo proponha a ação (ADI
nº 807. Rel. Min. Celso de Mello). A objeção de que, nesse caso, o Presidente da
República seria, simultaneamente, autor e réu, é afastada com a consideração de
que se trata de processo objetivo, sem partes, como acentua a doutrina alemã.
Do Conselho Federal da Ordem dos Advogados não se exige o requisito da
pertinência temática (MARTINS).12
Também não se o exige de partido político (Medida Cautelar na ADI nº 1.396-3,
Rel. Min. Marco Aurélio. J. 07.02.1996). Representado pelo Presidente de seu
Diretório Nacional, pode impugnar qualquer ato normativo, independentemente de
seu conteúdo material (ADI nº 1.096. Rel. Min. Celso de Mello. J. 16.03.1995).
De Governador de Estado, o STF tem exigido relação de pertinência com a
pretensão formulada (ADI nº 902. Rel. Min. Marco Aurélio, J. 03.03.1994). Ele tem
capacidade postulatória (ADI nº 120-5. Rel. Min. Moreira Alves. J. 20.03.1996), como
todos os mencionados no artigo 103, I a VII, da Constituição (ADI nº 127 – Questão
de Ordem – Medida cautelar).
O Estado-Membro não tem legitimidade sequer para interpor recurso em ação
proposta pelo Governador do Estado (STF, Pleno. Ag. Reg. na ADI nº 1.663. Rel. Min.
Dias Toffoli. J. 24.04.2013).
Por falta de pertinência temática, negou-se legitimidade à Confederação dos
Servidores Públicos do Brasil e Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa
de Pequeno Porte para impugnar dispositivos referentes ao regime de arrecadação
do “Simples Nacional” (ADI nº 3906. AgR. Pleno. Rel. Min. Menezes Direito.
J. 07.08.2008).
Das entidades sindicais, apenas as confederações têm legitimidade ativa (ADI
nº 505. Moreira Alves. J. 20.06.1990; (ADPF nº 96. Min. Elle Gracie. Rel. J. 25.11.2009.
ADI nº 3.330. Min. Ayres Britto. Rel. J. 03.05.2012). Entende-se por “confederação”
a que atende aos requisitos do artigo 535 da Consolidação das Leis do Trabalho. Por
isso, não tem legitimidade a Federação Nacional dos Administradores (FENAD) (ADI
nº 3.762. AgR. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. J. 26.10.2006).
Várias são as restrições impostas pelo Supremo Tribunal Federal, relativamente
à legitimação ativa de entidades de classe: como tais, não se qualificam as que,
congregando pessoas jurídicas, apresentam-se como verdadeiras associações de
associações; pessoas jurídicas de direito privado, que reúnam, como membros
integrantes, associações de natureza civil e organismos de caráter sindical,
desqualificam-se — precisamente em função do hibridismo dessa composição —
como instituições de classe; reclama-se a participação, nelas, dos próprios

12
Ibidem, p. 71.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 101-122, jul./set. 2014 109
José Maria Tesheiner

indivíduos integrantes de determinada categoria, e não apenas das entidades


privadas constituídas para representá-los; entidades internacionais, que possuam
Seção brasileira no território nacional, não se qualifica como instituição de classe;
composição heterogênea de associação, reunindo pessoas vinculadas a categorias
radicalmente distintas, descaracteriza-se como entidade de classe; excluem-se,
portanto, instituições integradas por membros vinculados a estratos sociais,
profissionais ou econômicos diversificados, cujos objetivos, individualmente
considerados, revelem-se contrastantes; a entidade há de ser nacional, com atuação
transregional e existência de associados ou membros em pelo menos nove Estados
da Federação, por aplicação analógica da Lei Orgânica dos Partidos Políticos (ADI
nº 79. Rel. Min. Celso de Mello. J. 13.04.1992).
Assim, não têm legitimidade: a União Nacional de Estudantes (UNE) (ADI
nº 894-3. Rel. Min. Néri da Silveira); a Associação dos Ex-Combatentes do Brasil (ADI
nº 1.090-5, Rel. Min. Néri da Silveira); a Federação das Associações de Militares
da Reserva Remunerada, de Reformados e de Pensionistas das Forças Armadas
e Auxiliares (ADI nº 993, Celso de Melo, 23.10.1994); a Associação Brasileira de
Consumidores (ADI nº 1.693, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 23.10.1997), esta porque
todos são consumidores. Também não têm legitimidade: a Associação Brasileira de
Indústria Gráfica (ABRIGRAF), porque representa apenas um segmento industrial, o das
indústrias gráficas (ADI nº 4.057. AgR. Rel. Min. Ricardo Lewandowski. J. 14.08,2008;
a Associação Brasileira de Gastronomia, Hospitalidade e Turismo, por não constituir
entidade de classe de âmbito nacional, segundo os critérios jurisprudenciais de sua
caracterização (ADI nº 3.850. AgR. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. J. 1º.08.2007).
Reconhecida foi a legitimidade da Associação dos Magistrados Brasileiros
(AMB) (Medida Cautelar na ADI nº 138. Rel. Min. Sydney Sanches. J. 14.02.1990),
da Associação Nacional dos Advogados da União (ADI nº 2.713, Min. Ellen Gracie,
J. 18.12.2002) e da Associação Nacional dos Defensores Públicos (ANADEP) (ADI
nº 2.903. Rel. Min. Celso de Mello. J. 1º.12.2005). Ela não tem, porém, legitimidade
quanto a processo objetivo que envolva normas relativas à execução contra a Fazenda,
porque ausente a pertinência temática (STF, Pleno. ADI nº 4.400. Min. Ayres Britto.
Rel. J. 06.03.2013).
A Associação Nacional dos Magistrados Estaduais não tem legitimidade
para impugnar norma aplicável a todos os membros integrantes do Judiciário, por
representar apenas fração da categoria (STF, Pleno, ADI nº 3.675. Min. Luiz Fux. Rel.
J. 1º.08.2011). Tem legitimidade para impugnar norma de interesse da magistratura
de determinado Estado-Membro (STJ, Pleno. Medida Cautelar na ADI nº 4.462. Rel.
Min. Cármen Lúcia. J. 29.06.2011).
A Associação Brasileira das Prestadoras de Serviços de Telecomunicações
Competitivas tem legitimidade para ajuizar ação direta objetivando a defesa das

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Controle abstrato de constitucionalidade – ADI, ADC e ADPF

pessoas jurídicas que a integram (STF, Pleno. ADI nº 4.739. Min. Marco Aurélio. Rel.
J. 07.02.2013).
Tem legitimidade a Associação Nacional dos Servidores do IBAMA, entidade de
classe de âmbito nacional. Em ação por ela proposta disse o Relator:

A participação da sociedade civil organizada nos processos de


controle abstrato de constitucionalidade deve ser estimulada, como
consectário de uma sociedade aberta dos intérpretes da Constituição,
na percepção doutrinária de Peter Häberle, mercê de o incremento do
rol dos legitimados à fiscalização abstrata das leis indicar esse novel
sentimento constitucional. 3. In casu, a entidade proponente da ação
sub judice possuir ampla gama de associados, distribuídos por todo
o território nacional, e que representam a integralidade da categoria
interessada, qual seja, a dos servidores públicos federais dos órgãos de
proteção ao meio ambiente (STF, Pleno. ADI nº 4.029. Min. Luiz Fux. Rel.
J. 08.03.2012).

A Associação dos Delegados de Polícia do Brasil tem legitimidade para a


propositura da ação direta, pois constitui entidade de classe de âmbito nacional,
congregadora de “todos os delegados de polícia de carreira do país, para defesa
de suas prerrogativas, direitos e interesses” (inciso IX do art. 103 da Constituição
Federal) (STF, Pleno. ADI nº 3.288. Min. Ayres Britto. Rel. J. 13.10.2010).
A Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (ATRICON)
qualifica-se como entidade de classe de âmbito nacional investida de legitimidade
ativa “ad causam” para a instauração, perante o Supremo Tribunal Federal, de
processo de controle abstrato de constitucionalidade, desde que existente nexo de
afinidade entre os seus objetivos institucionais e o conteúdo material dos textos
normativos impugnados.

4 Procedimento
Sobre a petição inicial dispõem, para a ação direta de inconstitucionalidade, os
artigos 3º e 4º da Lei nº 9.868/1999; os artigos 14 e 15 da mesma lei, para a ação
declaratória de constitucionalidade; os artigos 3º e 4º da Lei nº 9.882/1999, para a
arguição de descumprimento de preceito fundamental.
Na petição inicial da arguição de preceito fundamental fundamentada em ameaça
ou violação de preceito fundamental, exige-se prova da violação do preceito fundamental.
Na ação declaratória de constitucionalidade, assim como na ação de
descumprimento do parágrafo único do artigo 1º da Lei nº 9882/1999, a inicial deve
comprovar a existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação do dispositivo
objeto da ação. Controvérsia doutrinária não autoriza a propositura da ação. Gilmar
Mendes advoga o entendimento do cabimento da ação de constitucionalidade se os

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tribunais pronunciam (unanimemente) a inconstitucionalidade: “Assim, a exigência


de demonstração de controvérsia judicial há de ser entendida, nesse contexto, como
relativa à existência de controvérsia jurídica relevante capaz de afetar a presunção de
legitimidade da lei e, por conseguinte, a eficácia da decisão legislativa”.13
A procuração deve conter poderes específicos para atacar a norma impugnada
(ADI nº 2.187-7. Rel. Min. Octávio Gallotti. J. 15.07.2000).
O pedido é essencial para a jurisdição constitucional, uma vez que dele depende,
em determinada medida, a qualificação de órgão decisório como um Tribunal. A forma
judicial constitui característica peculiar que permite distinguir a atuação da jurisdição
constitucional de outras atividades, de cunho meramente político. (Gilmar Ferreira
Mendes).14 Mas, “a despeito da necessidade legal da indicação dos fundamentos
jurídicos na petição inicial, não fica o STF adstrito a eles na apreciação que faz da
constitucionalidade dos dispositivos questionados”. (Gilmar Ferreira Mendes).15
O STF tem admitido a requisição das informações ao órgão de que emanou o
ato ou a medida impugnada (MENDES).16
O aditamento é exigido com relação às medidas provisórias reeditadas ou
convertidas em lei.
Petição inicial inepta, não fundamentada ou manifestamente improcedente,
pode ser liminarmente indeferida pelo relator, decisão de que cabe agravo (Lei
nº 9.868/1999, arts. 4º e 15; Lei nº 9.882/1999, art. 4º, §2º).
Proposta a ação, não se admite desistência, nas ações diretas de
constitucionalidade e de inconstitucionalidade (Lei nº 9.868/1999, arts. 5º e 16). A
Lei nº 9.882/99 é omissa quanto à desistência em arguição de descumprimento de
preceito fundamental.
Na ação de inconstitucionalidade, o relator pede informações aos órgãos ou às
autoridades das quais emanou a lei ou o ato normativo impugnado, as quais devem
ser prestadas no prazo de trinta dias (Lei nº 9.868/1999, art. 6º). Omissa, no ponto,
a Lei 9.868/1999, quanto à ação declaratória de constitucionalidade. Na arguição
de descumprimento de preceito fundamental, apreciado o pedido de liminar, o relator
solicita informações às autoridades responsáveis pela prática do ato questionado, as
quais devem ser prestadas no prazo de dez dias (Lei nº 9.882/1999, art. 6º).
Não se admite intervenção de terceiros (Lei nº 9.868/99, arts. 7º e 18).
Contudo, nas ações de inconstitucionalidade, o relator pode, por despacho irrecorrível,
admitir a manifestação de órgãos ou entidades por ele indicados (Lei nº 9.868/1999,
art. 7º, §2º). Na arguição de descumprimento de preceito federal, pode o relator

13
Ibidem, p. 270.
14
MENDES, Jurisdição constitucional, p. 85
15
MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira. Controle concentrado de constitucionalidade. São
Paulo, Saraiva, 2001. p. 147
16
Ibidem, p. 151.

112 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 101-122, jul./set. 2014
Controle abstrato de constitucionalidade – ADI, ADC e ADPF

autorizar sustentação oral e juntada de memórias de interessados no processo, bem


como designar perito ou comissão de peritos ou, ainda, determinar a realização de
audiência pública (Lei nº 9.882/99, art. 6º, §§2º e 3º).
Afirma Eduardo Silva da Silva, ao tratar do requisito da representatividade do
amicus curiae:

[...] ainda que a utilização deste instituto esteja cada vez mais difundida
no âmbito de processos constitucionais, sua admissão está todavia
submetida a um alto grau de arbitrariedade do relator, mormente quando
a lei nem ao menos oferece possibilidade de recurso desta decisão.
Assim, uma figura que busca justamente diminuir a arbitrariedade
judicial, vez que possibilita a manifestação de diversos terceiros, a fim
de construir uma decisão mais acertada, tem sua admissão, ainda,
dependente do entendimento de um magistrado específico, já que não
há qualquer dispositivo positivado que disponha sobre o assunto.17

O amicus curiae não tem legitimidade para opor embargos de declaração em


ações de controle concentrado (STF, Pleno. Emb. Decl. na ADI nº 4.163, Rel. Min.
Teori Zavascki. J. 29.09.2013).
Na arguição de preceito fundamental nº 54-8, em que se discutia sobre a
existência de crime, na hipótese de aborto de feto anencéfalo, Paulo Restiffe Neto
requereu sua admissão como curador dos nascituros, o que foi indeferido, dizendo-se
não haver espaço para curatela em processo objetivo (STF. Pleno, Segundo Ag. Reg.
na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54-8. Rel. Min. Marco
Aurélio. J. 26.11.2008).
Ouvem-se, no caso da ação de inconstitucionalidade, o Advogado-Geral
da União e o Procurador-Geral da República (Lei cit., art. 8º); no caso da ação de
constitucionalidade, apenas o Procurador-Geral da República é ouvido (Lei cit., art. 19).
Quanto à ação de descumprimento de preceito fundamental, a Lei nº 9.882/1999
dispõe sobre a abertura de vista ao Ministério Público, por cinco dias, após o decurso
do prazo para informações (art. 7º, §único).
O Advogado-Geral da União deve defender a norma (ADI nº 72. Rel. Min.
Sepúlveda Pertence. ADI nº 3.413. Min. Marco Aurélio. J. 1º.06.2011).
O Procurador-Geral fala como fiscal da lei, mesmo quando haja proposto a ação
(ADI nº 97 — Questão de Ordem, Rel. Min. Moreira Alves).
No controle abstrato de normas, o Tribunal não exerce atividade jurisdicional.
Trata-se de processo objetivo (Rp. nº 1.405, Moreira Alves). Não há réu. A Constituição
determina que se cite o Advogado-Geral da União, em seu art. 103, §3º: “Quando o
Supremo Tribunal Federal apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal

17
SILVA, Eduardo Silva. O requisito da representatividade no amicus curiae: a participação do particular no debate
jurisdicional. Revista de Processo, v. 207/2012, p. 153, maio 2012/DTR\2012\44627.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 101-122, jul./set. 2014 113
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ou ato normativo, citará, previamente, o Advogado-Geral da União, que defenderá o


ato ou texto impugnado”.
Segundo Gilmar Ferreira Mendes, “a obrigação do Advogado-Geral da União
de defender, em qualquer hipótese, o ato inconstitucional, não encontra apoio na
Constituição e viola o princípio da fidelidade constitucional enquanto postulado
constitucional imanente”.18
A seguir, lançado o relatório, o relator pede dia para o julgamento. Em caso
de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato ou de
notória insuficiência das informações existentes nos autos, pode o relator requisitar
informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer
sobre a questão, ou fixar data para, em audiência pública, ouvir depoimentos de
pessoas com experiência e autoridade na matéria. Pode, ainda, solicitar informações
aos Tribunais Superiores, aos Tribunais federais e aos Tribunais estaduais acerca
da aplicação da norma impugnada no âmbito de sua jurisdição (Lei nº 9.868/1999,
arts. 9º e 20; Lei nº 9.882/1999, art. 6º, §1º e 7º).

5 Medida cautelar
As ações diretas de inconstitucionalidade ou de constitucionalidade, assim
como a arguição de descumprimento de preceito fundamental, admitem medida
cautelar (mais precisamente: antecipatória), concedida pela maioria absoluta dos
membros do Supremo Tribunal Federal. No caso de inconstitucionalidade, suspende-se
a vigência da lei, via de regra com eficácia ex nunc. No caso de ação declaratória da
constitucionalidade, expede-se ordem, suspendendo o julgamento dos processos que
envolvam a aplicação da lei ou do ato normativo objeto da ação até seu julgamento
definitivo (Lei nº 9.868/1999, arts. 10º e 21; Lei nº 9.882/1999, arts. 5º e §3º).
Ives Gandra Martins sustenta, a nosso ver com inteira razão, que a liminar,
concedida em ação direta de inconstitucionalidade, suspende definitivamente a
aplicação da lei. Sua revogação posterior não autoriza a aplicação da lei relativamente
a fatos ocorridos durante a suspensão. Argumenta com o exemplo do ICM: o
contribuinte, liberado, por liminar, do recolhimento do tributo, não teria, revogada a
liminar, de transferi-lo para o contribuinte de fato.19
A liminar tem eficácia a partir da publicação ou, havendo urgência, a partir da
comunicação, por telegrama, à autoridade (MARTINS).20
Dela cabe agravo regimental, ainda que sujeita a referendo (STF, Pleno, ADPF-
AgR 79. Min. Cezar Peluso. Relator. J. 18.06.2007).

18
MENDES, Jurisdição constitucional. 3, p. 43.
19
MARTINS. Jurisdição constitucional, p. 185-189.
20
Ibidem, p. 202.

114 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 101-122, jul./set. 2014
Controle abstrato de constitucionalidade – ADI, ADC e ADPF

Em ação de descumprimento de preceito fundamental proposta pela União


Nacional de Defensores Públicos contra ato do Governador da Paraíba, tendo em vista
que a despesa da Defensoria Pública fora reduzida em mais de dezesseis milhões
de reais, além de integrar as dotações do Poder Executivo como uma Secretaria de
Estado, o Supremo Tribunal Federal referendou medida liminar concedida pelo Ministro
Dias Toffoli, para determinar que o Governador do Estado da Paraíba e o Secretário
de Estado do Planejamento e Gestão “procedam à imediata complementação do
Projeto de Lei nº 1.678/2013 que Estima a Receita e Fixa a Despesa do Estado para
o Exercício Financeiro de 2014 e dá outras providências para o efeito de nela incluir
a Proposta Orçamentária da Defensoria Pública como Órgão Autônomo e nos valores
por ela aprovados” (ADPF nº 307 MC-Ref/DF. Distrito Federal. Referendo na Medida
Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Rel. Min. Dias
Toffoli.
Julgamento: 19.12.2013. Órgão Julgador: Tribunal Pleno).
Em um caso de extrema complexidade e importância, a ADPF 234, o Supremo
Tribunal Federal, por maioria de votos, concedeu medida cautelar para suspender a
eficácia das interdições ao transporte de amianto, algumas decorrentes de decisões
da Justiça do Trabalho, fundadas no artigo 1º da Lei nº 12.684/2007 do Estado de
São Paulo, que proibiu o uso, no Estado de São Paulo, de produtos ou artefatos que
contenham quaisquer tipos de amianto ou asbestos. O Tribunal distinguiu o “uso”,
cuja proibição restou mantida no Estado de São Paulo, e o “transporte” pelo Estado
de São Paulo, cuja proibição foi afastada, em atenção ao princípio federativo e à
legislação federal. Incidentemente, foram também considerados o direito fundamental
e saúde e tratados internacionais celebrados pelo Brasil (STF, Pleno. Medida cautelar
na ADPF nº 234. Rel. Min. Marco Aurélio. Relator. J. 28.11.2011).
Por Medida Cautelar na ADPF 151, o Supremo Tribunal Federal determinou que
o salário mínimo profissional dos técnicos em radiologia, fixado em valor equivalente
a 2 salários mínimos pelo art. 16 da Lei nº 7.394/1985, restasse congelado, a partir
do trânsito em julgado da decisão, de modo a desindexá-lo do salário mínimo, tendo
em vista a Súmula Vinculante nº 4 (Salvo nos casos previstos na constituição, o
salário mínimo não pode ser usado como indexador de base de cálculo de vantagem
de servidor público ou de empregado, nem ser substituído por decisão judicial) (ADPF
nº 151 MC/DF - Distrito Federal. Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental. Rel. Min. Joaquim Barbosa. Rel. p/ Acórdão: Min. Gilmar
Mendes.
Julgamento: 02.02.2011. Órgão Julgador: Tribunal Pleno.

6 Decisão
A decisão sobre a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da lei ou do ato
normativo somente será tomada se presentes na sessão pelo menos oito Ministros
(Lei nº 9.868/1999, art. 22; Lei nº 9.882/1999, art. 8º).

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 101-122, jul./set. 2014 115
José Maria Tesheiner

Efetuado o julgamento, proclamar-se a constitucionalidade ou a


inconstitucionalidade da disposição ou da norma impugnada se num ou noutro
sentido tiverem manifestado pelo menos seis Ministros, quer se trate de ação
direta de inconstitucionalidade ou de ação declaratória de constitucionalidade (Lei
nº 9.868/1999, art. 23). Não sendo alcançada a maioria necessária à declaração
de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, havendo Ministros ausentes,
suspende-se o julgamento, a fim de aguardar-se o comparecimento, até que se
atinja o número necessário para prolação da decisão num ou noutro sentido (Lei
nº 9.868/1999, art. 23, parágrafo único).
Proclamada a constitucionalidade, julgar-se improcedente a ação direta de
inconstitucionalidade ou procedente a ação declaratória de constitucionalidade.
Proclamada a inconstitucionalidade, julgar-se procedente a ação direta de
inconstitucionalidade ou improcedente a ação declaratória de constitucionalidade.
A decisão é irrecorrível, não sendo, tampouco, suscetível de rescisão. Cabem
embargos declaratórios (Lei nº 9.868/1999, art. 26; Lei nº 9.882/1999, art. 12).
São variantes da declaração de inconstitucionalidade: a declaração de nulidade
total como unidade técnico-legislativa, como no caso de vício de iniciativa; a de
nulidade total, em virtude de relação de dependência ou de interdependência entre
as partes constitucionais e inconstitucionais do dispositivo impugnado; a de nulidade
parcial, suposto que não exista dependência ou interdependência entre as partes e
que, do texto recortado não resulte norma contrária à vontade do legislador, criando-se
“lei nova”; a de nulidade parcial sem redução do texto, como no caso de declarar-se
inconstitucional a cobrança de tributo no exercício financeiro em que foi criado
(Súmula nº 67) ou de julgar-se improcedente a ação, desde que adotada tal e não
outra interpretação.21
Não se confundem “declaração de inconstitucionalidade sem redução do
texto” e “interpretação conforme a Constituição”. Esta não é senão modalidade de
interpretação sistemática, não exigindo, nos Tribunais locais, remessa ao Órgão
Especial. Na declaração de nulidade sem redução do texto, há expressa exclusão,
por inconstitucionalidade, de determinadas hipóteses de aplicação do programa
normativo, sem alteração do texto legal; na interpretação conforme à Constituição,
declara-se, pelo contrário, que a lei é constitucional, com a interpretação que lhe é
conferida pelo órgão judicial (MENDES).22

O artigo 287 do Código Penal define o crime de apologia de crime ou


criminoso como “fazer, publicamente, a apologia de ato criminoso ou
de autor de crime”. Na ADPF 187, proposta pelo Procurador Gerald a
República, o Supremo Tribunal Federal deu-lhe interpretação conforme

21
MENDES, Jurisdição constitucional, p. 277-278.
22
MENDES, Jurisdição constitucional, p. 286.

116 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 101-122, jul./set. 2014
Controle abstrato de constitucionalidade – ADI, ADC e ADPF

a Constituição, para excluir qualquer exegese que possa ensejar a


criminalização da defesa da legalização das drogas, ou de qualquer
substância entorpecente específica, inclusive através de manifestações
e eventos públicos, como a “marcha da maconha”. (ADPF nº 187/DF -
Distrito Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental.
Rel. Min. Celso de Mello. Julgamento: 15.06.2011. Órgão Julgador:
Tribunal Pleno)

7 Efeitos da decisão
É declaratória ou constitutiva negativa a sentença que julga procedente ação
direta de inconstitucionalidade?
Na doutrina americana do controle difuso, acolhida no Brasil, trata-se de
declaração de nulidade: “the inconstitutional statute is not law at all”.
Na doutrina de Kelsen, do controle concentrado, trata-se de anulabilidade,
facultando-se ao Tribunal reconhecer que a lei aplicada por longo período de tempo
haveria de ser considerada como fato eficaz, apto a produzir consequências.
O tema tornou-se controvertido, no Brasil, tendo em vista o disposto no artigo 27
da Lei nº 9.868/1999:

Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e


tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse
social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços
de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir
que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro
momento que venha a ser fixado.

Segundo Teori Albino Zavascki, a eficácia ex nunc da decisão proferida em controle


concentrado de constitucionalidade não infirma a tese da nulidade da lei inconstitucional.
Ao manter atos com base nela praticados, o Supremo não declara sua validade, nem
assume a função de “legislador positivo”, mas exerce típica função jurisdicional:

Diante de fatos consumados, irreversíveis ou de reversão possível,


mas comprometedora de outros valores constitucionais, só resta ao
julgador — e esse é o seu papel — ponderar os bens jurídicos em
conflito e optar pela providência menos gravosa ao sistema de direito,
ainda quando ela possa ter como resultado o da manutenção de uma
situação originariamente ilegítima. Em casos tais, a eficácia retroativa
da sentença de nulidade importaria a reversão de um estado de fato
consolidado, muitas vezes, sem culpa do interessado, que sofreria
prejuízo desmesurado e desproporcional.23

23
ZAVASCHI, Teori Albino. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. São Paulo, Revista dos Tribunais,
2001. p. 49-50.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 101-122, jul./set. 2014 117
José Maria Tesheiner

Segundo Mendes, a tese da anulabilidade não se compadece com o poder de


qualquer juiz de declarar a inconstitucionalidade, o que supõe a nulidade. O postulado
da nulidade da lei inconstitucional tem hierarquia constitucional. Isso, porém, não
impede o desenvolvimento de fórmulas intermediárias (como as que se converteram
em lei).24
Data venia, a premissa é falsa. No controle difuso, o juiz não declara a nulidade
da lei, porque ela não pode ser nula para uns e para outros não. O que ele, na
verdade, declara é a inaplicabilidade da lei às partes às quais é dada a sentença, o
que caracteriza hipótese de ineficácia, não de nulidade.
A tese tradicional, da natureza declarativa da sentença, com eficácia
necessariamente ex tunc, ajusta-se ao modelo de controle difuso da
constitucionalidade, com eficácia restrita às partes. Nessas ações, a parte que afirma
a inconstitucionalidade depende, via de regra, da eficácia ex tunc da sentença, para
que a declaração pretendida produza, no caso, efeitos práticos.
É diversa a situação, no controle abstrato de constitucionalidade. A sentença
tem, aí, natureza paralegislativa; natural, pois, que produza, de regra, efeitos ex nunc.
Por isso, dever-se-ia até mesmo inverter a regra e exigir maioria especial, não
para atribuir à sentença efeitos ex nunc, mas para atribuir-lhe efeitos ex tunc, pois
são inúmeras as situações em que se apresenta desarrazoada a eficácia retroativa
da decisão.
A sentença, abstrata, não desconstitui, automaticamente, direitos adquiridos,
atos jurídicos perfeitos e a coisa julgada, fundados na lei declarada inconstitucional.
“Os atos não mais suscetíveis de revisão”, diz Gilmar Ferreira Mendes, não são
afetados pela declaração de inconstitucionalidade, mediante a utilização das
chamadas fórmulas de preclusão.25
Mas o artigo 741, parágrafo único, do CPC, estabelece a inexigibilidade,
em execução judicial, de crédito fundado em lei ou ato normativo declarados
inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou
interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como
incompatíveis com a Constituição Federal (Redação da Lei nº 11.232/2005).
A legislação ordinária admite a modulação dos efeitos, podendo, pois, a
inconstitucionalidade ter eficácia futura. É o caso da lei “ainda constitucional”. Gilmar
Ferreira Mendes aponta, como exemplos, decisões do Supremo Tribunal Federal
admitindo prazo em dobro para a defensoria pública até que sua organização, nos
Estados, alcance o nível da organização do respectivo Ministério Público e reconhecendo
legitimidade ativa ao Ministério Público para promover a execução civil da sentença

24
MENDES, Jurisdição constitucional, p. 264-265.
25
MENDES, Jurisdição constitucional, p. 271.

118 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 101-122, jul./set. 2014
Controle abstrato de constitucionalidade – ADI, ADC e ADPF

penal condenatória, onde não houver Defensoria Pública.26 Na ADI nº 3.022, julgada
em 02.08.2004, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional norma que
atribuía à Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul a assistência judicial a
servidores processados por ato praticado em razão do exercício de suas atribuições
funcionais, estabelecendo, porém, que os efeitos dessa decisão passariam a valer a
partir do dia 31 de dezembro daquele ano.
Ingo Sarlet põe em dúvida a constitucionalidade da modulação de efeitos,
apontando os seguintes fundamentos para sustentar a inconstitucionalidade desse
acréscimo de poderes outorgado ao Supremo Tribunal Federal por lei infraconstitucional:
- No Direito Comparado, o efeito vinculante e a flexibilização dos efeitos
encontram-se previstos na própria Constituição ou foi regulamentado por lei,
mas com expressa delegação constitucional.
- Trata-se de matéria tipicamente constitucional, não sendo razoável que se
atribua a maioria simples e transitória do Congresso Nacional decisão sobre
questões tão relevantes para a ordem jurídico-constitucional.
- Outorgou-se ao Supremo Tribunal Federal uma margem de arbítrio sem
precedentes e virtualmente sem paralelo no direito constitucional,
permitindo-lhe fixar qualquer momento, passado, presente ou futuro, para
que a declaração de inconstitucionalidade passe a gerar efeitos. Assim,
apenas para exemplificar, tributo manifestamente inconstitucional poderá
continuar sendo cobrado meses ou mesmo anos após formal declaração de
sua inconstitucionalidade.27
A sentença proferida em ação abstrata tem eficácia contra todos e efeito
vinculante, como dispõe o art. 102, §2º, da Constituição:

As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal


Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações
declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e
efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e
à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual
e municipal. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45/2004)

O artigo 28, parágrafo único, da Lei nº 9.868/99, estabelece que a declaração


de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme
a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto
têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário
e à Administração Pública federal, estadual e municipal.

26
Ibidem, p. 295-301.
27
Ingo Wolfgang Sarlet (Arguição de preceito fundamental: alguns aspectos controversos. In: TAVARES, André
Ramos; ROTHENBURG, Walter Claudius (Org.). Arguição de descumprimento de preceito fundamental: análises
à luz da Lei n. 9.882/99. São Paulo: Atlas, 2001. p. 150-171.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 101-122, jul./set. 2014 119
José Maria Tesheiner

Segundo Mendes, o efeito vinculante, instituto desenvolvido no Direito Alemão,


significa mais do que força de lei ou força de coisa julgada, por implicar eficácia, não
apenas à parte dispositiva da decisão, mas também aos chamados fundamentos ou
motivos determinantes.

Segundo esse entendimento, a eficácia da decisão do Tribunal transcende


o caso singular, de modo que os princípios dimanados da parte dispositiva
e dos fundamentos determinantes sobre a interpretação da Constituição
devem ser observados por todos os tribunais e autoridades nos casos
futuros. Outras correntes doutrinárias sustentam que, tal como a coisa
julgada, o efeito vinculante limita-se à parte dispositiva da decisão, de
modo que, do prisma objetivo, não haveria distinção entre a coisa julgada
e o efeito vinculante.28

Diz mais:

Independentemente de se considerar a eficácia erga omnes como


simples coisa julgada com eficácia geral ou de se entender que se cuida
de instituto especial que afasta a incidência da coisa julgada nesses
processos especiais, é certo que se cuida de um instituto processual
específico do controle abstrato de normas e, portanto, que, declarada a
constitucionalidade de uma norma pelo Supremo Tribunal, ficam também
os órgãos do Poder Judiciário obrigados a seguir a orientação fixada pelo
próprio guardião da Constituição”.29

Tratando do tema com vistas à ação de descumprimento de preceito fundamental,


diz Mendes:

Se entendermos, como parece recomendável, que o efeito vinculante


abrange também os fundamentos determinantes da decisão, poderemos
dizer, com tranqüilidade, que não apenas a lei objeto da declaração de
inconstitucionalidade no município ‘A’, mas toda e qualquer lei municipal de
idêntico teor não mais poderão ser aplicadas” (Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental: parâmetro de controle e objeto.30

O efeito vinculante não vincula o próprio STF. Veja-se o artigo 102, §2º, da
Constituição: “As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal
Federal, nas ações declaratórias de constitucionalidade de lei ou ato normativo
federal, produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais
órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo.31

28
MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira. Controle concentrado de constitucionalidade. São
Paulo, Saraiva, 2001. p. 339.
29
MENDES, Jurisdição constitucional, p. 293.
30
TAVARES, André Ramos; ROTHENBURG, Walter Claudius (Org.). Arguição de descumprimento de preceito
fundamental: análises à luz da Lei n. 9.882/99. São Paulo, Atlas, 2001. p. 128-49).
31
Nesse sentido: MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira. Controle concentrado de
constitucionalidade. São Paulo, Saraiva, 2001. p. 342

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Controle abstrato de constitucionalidade – ADI, ADC e ADPF

Em particular, é possível posterior declaração de inconstitucionalidade, pelo


próprio Supremo Tribunal Federal, havendo mudança das circunstâncias fáticas ou
relevante alteração das concepções jurídicas dominantes.32
A eficácia vinculante impede a edição de norma posterior idêntica (ADI nº 864,
Moreira Alves, relator). Todavia, em sentido contrário, já se decidiu que a eficácia geral e o
efeito vinculante de decisão, proferidos pelo Supremo Tribunal Federal, em ação direta de
constitucionalidade ou de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal, só atingem os
demais órgãos do Poder Judiciário e todos os do Poder Executivo, não alcançando o legislador,
que pode editar nova lei com idêntico conteúdo normativo, sem ofender a autoridade
daquela decisão (STF, Pleno, Recl. nº 2.617. Rel. Min. Cezar Peluso. J. 23.02.2005).
Repara-se que não falamos de “coisa julgada”.
Nos recentes anos passou o Poder Judiciário a exercer novas e importantes
atribuições, entre as quais se destacam as ações relativas a interesses difusos e o
controle concentrado de constitucionalidade, que partilham a característica de não se
destinaram à tutela de direitos subjetivos.
Como era natural, pensou-se, em um primeiro momento, em situar-se essas
novidades no quadro das velhas ações. Entretanto, pelo menos no que diz respeito
às ações diretas de inconstitucionalidade e declaratórias de constitucionalidade, logo
se viu que elas tinham características distintas, passando-se então a vê-las como
“processos objetivos”, por isso mesmo distintos dos antigos processos subjetivos,
que eram, antes, os únicos de que conhecia o Poder Judiciário.
Entretanto, as velhas categorias afloraram e passou-se a atribuir às decisões
proferidas nesses processos a qualidade de coisa julgada, com a mesma característica
de imutabilidade dos processos subjetivos.
Rennan Tammay foi dos primeiros a ver que havia algo de equivocado nessa
concepção. Em sua dissertação de Mestrado sustentou a possibilidade de “relativizar-
se” a coisa julgada nessas ações. Era um modo de ajustar a velha teoria aos novos
fenômenos. Satisfez a banca examinadora, mas não a si próprio. Inquieto, continuou
a refletir sobre o tema e, em subsequente tese de doutorado, sustentou inexistência
de coisa julgada nos processos objetivos, “em seu sentido clássico”. Ora, se essa
“nova coisa julgada” corresponde a um outro conceito, trata-se de “outra coisa”,
ainda que se lhe possa dar o mesmo nome.33

Conclusão
O que se observa, ao termo do panorama jurisdicional assim traçado, é que
o Supremo Tribunal conta com instrumentos para exercer, e efetivamente está
exercendo, a condução da política nacional, em seu aspecto jurídico.

32
MENDES. Jurisdição constitucional. 3. ed. São Paulo, Saraiva, 1999. p. 295.
33
THAMAY, Rennan Faria Krüger. A inexistência de coisa julgada (clássica) no controle de constitucionalidade
abstrato/Rennan Faria Krüger Thamay. Porto Alegre, 2014.

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José Maria Tesheiner

Referências
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FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Efeitos da declaração de inconstitucionalidade. 5. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
MARTINS, Ives Gandra; MENDES, Gilmar Ferreira. Controle concentrado de constitucionalidade.
3. ed. São Paulo, Saraiva, 2009.
MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira. Controle concentrado de constitucionalidade.
São Paulo, Saraiva, 2001.
MENDES, Gilmar Ferreira. Arguição de descumprimento de preceito fundamental. São Paulo: Saraiva, 2007.
MENDES, Gilmar Ferreira. Arguição de descumprimento de preceito fundamental. São Paulo: Saraiva, 2009.
MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade. Revista Consulex, n. 101, mar. 2001.
MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional. 3. ed. São Paulo, Saraiva, 1999.
SARAIVA FILHO, Oswaldo Othon de Pontes. Arguição de descumprimento de preceito fundamental.
Revista Consulex, n. 99, fev. 2001.
SARLET, Ingo Wolfang. Arguição de descumprimento de preceito fundamental — alguns aspectos
controvertidos. Revista da Ajuris, n. 84, dez. 2001.
SARMENTO, Daniel. Apontamentos sobre a arguição de descumprimento de preceito fundamental.
Revista de direito administrativo, v. 1. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
SILVEIRA, José Néri da. Aspectos da definição e do objeto da arguição de descumprimento de preceito
fundamental. Revista Brasileira de Direito Constitucional, n. 1, jan./jun. Método, 2003.
SOUSA, Jailsom Leandro. Arguição de descumprimento de preceito fundamental: questões em torno
da lei nº 9.882/99. Revista Esmafe – Escola da Magistratura Federal da 5ª Região, n. 7, 2004.
STRECK, Lênio Luiz. Os meios de acesso do cidadão à jurisdição constitucional, a arguição de
descumprimento de preceito fundamental e a crise da eficácia da Constituição. Revista da Ajuris,
n. 81, mar. 2001.
SILVA, Eduardo Silva. O requisito da representatividade no amicus curiae a participação do particular
no debate jurisdicional. Revista de Processo, v. 207/2012, p. 153, maio, 2012. DTR\2012\44627.
TAVARES, André Ramos; ROTHENBURG, Walter Claudius (Org.). Arguição de descumprimento de
preceito fundamental: análises à luz da Lei n. 9.882/99. São Paulo, Atlas, 2001.
VELOSO, Zeno. Controle jurisdicional de constitucionalidade. 3. ed. Belo Horizonte, Del Rey, 2003.
ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. São Paulo, Revista dos
Tribunais, 2001.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

TESHEINER, José Maria. Controle abstrato de constitucionalidade – ADI, ADC e


ADPF. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 22,
n. 87, p. 101-122, jul./set. 2014.

122 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 101-122, jul./set. 2014
Das normas fundamentais do processo
e o projeto de novo Código de Processo
Civil brasileiro – Repetições e inovações

Marco Félix Jobim


Advogado e Professor Adjunto da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul na
graduação e pós-graduação lato e stricto sensu. Mestre e Doutor em Direito.

Elaine Harzheim Macedo


Professora dos programas de pós-graduação da PUCRS (mestrado e doutorado). Doutora em
Direito pela UNISINOS. Mestre em Direito pela PUCRS. Especialista em Direito Processual
Civil pela PUCRS. Ex-presidente do TRE-RS. Membro do Instituto dos Advogados do Rio
Grande do Sul (IARGS). Advogada. E-mail: <elaine@fhm.adv.br>.

Resumo: O estudo tem a pretensão de investigar qual foi a normatividade adotada pelo legislador
na elaboração dos primeiros artigos do projeto de novo Código de Processo Civil brasileiro, tentando
demonstrar o que há de inovação, o que já havia na legislação processual a ser revogada e o que está
se reproduzindo dos princípios processuais elencados na Constituição da República Federativa do Brasil.
Palavras-chave: Projeto de Código de Processo Civil. Princípios. Constituição Federal.

Sumário: Introdução – 1 Os princípios processuais constitucionais – 2 A normatividade adotada pelo


Projeto de Código de Processo Civil brasileiro – 2.1 Novidades e repetições principiológicas no Projeto de
Código de Processo Civil brasileiro – Considerações finais – Referências

Introdução
O advento da Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em
05 de outubro de 1988, não foi somente aplaudida pelo regulamentação do seu
cunho de direito material, mas, de idêntica forma, em razão de trazer previsões
constitucionais para matérias que irradiaram seus efeitos a várias disciplinas
ligadas ao Direito, o que se comprova com a febre da chamada constitucionalização
do Direito. Essa tomou ares para além de matérias de Direito Público, alcançando,
na acepção em que a teoria da dicotomia1 jurídica se divide, no Direito

Algumas diferenciações entre os Direitos Público e Privado estão na natureza do interesse, na qualidade dos
1

sujeitos envolvidos, nos tipos de relação, na politicidade e na imperatividade, conforme se lê em DIMOULIS,


Dimitri. Manual de introdução ao estudo do direito: definição e conceitos básicos, norma jurídica. 4. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 246-249.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 123-136, jul./set. 2014 123
Marco Félix Jobim, Elaine Harzheim Macedo

Privado,2 razão pela qual praticamente houve afetação em todas as áreas conhecidas
do Direito, e, dentre elas, uma das mais afetadas, talvez, seja a do processo. Sérgio
Gilberto Porto e Daniel Ustárroz3 denominam esse fenômeno de conteúdo processual
na Constituição, e não escondem o quão vasto ele se revela.
Diante desse fato, e sabendo-se que existem inúmeros dispositivos
constitucionais aplicados ao processo,4 dentre os quais podem ser citados toda a
organização judiciária, as ações constitucionais, o controle de constitucionalidade
de leis, os recursos aos tribunais superiores, o processo legislativo e os princípios
processuais constitucionais, opta-se em realizar uma investigação principiológica,
tendo em vista que se está às vesperas de implementação de um novo sistema
processual civil para o país, tendo o legislador optado por elaborar uma principiologia
inaugural nos primeiros artigos do projeto para que se irradiem como uma teoria geral
a ser seguida em todo o Código de Processo Civil brasileiro.
Em razão disso, pretende-se adentrar na seara de reconhecer quais princípios
estão duplicados, ou seja, fazem parte tanto do texto constitucional como da legislação
processual a ser inserida futuramente no contexto brasileiro, quais os princípios que
não existiam no texto constitucional e hoje serão parte integrante do texto inicial do
Codex processual civil e, por fim, mas não menos importante, se se pode averiguar
um conteúdo mais diferenciado entre os princípios colidentes entre as legislações,
adentrando em avanços e retrocessos do sistema processual.

1 Os princípios processuais constitucionais


Os princípios processuais constitucionais5 que ora se abordam são aqueles
destinados a terem efeitos no processo civil brasileiro, tendo em vista o corte
epistemológico de estudar a principiologia projetada, razão pela qual não serão
abordados aqueles determinados princípios mais afeitos às demais áreas, como o

2
Não se esquecendo de que há, ainda, o que se poderia denominar de Direito misto (ibidem, p. 257). Refere:
“Diante dessa situação, parte da doutrina vislumbrou a formação de um terceiro setor ao lado do direito
público e do direito privado. Se um conjunto de normas for marcado pela coexistência de características de
direito público e privado, devemos concluir que estamos no setor do ‘direito misto’. Alguns autores denominam
esse setor de ‘direito social’, considerando que sua característica preponderante é a regulamentação das
relações entre grupos sociais (produtores e consumidores, trabalhadores e empregadores etc.) e não das
relações entre o Estado e os indivíduos”.
3
PORTO, Sérgio Gilberto; USTÁRROZ, Daniel. Lições de direitos fundamentais no processo civil: o conteúdo
processual da Constituição Federal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 11. Aduzem: “No Brasil,
o vínculo entre Constituição e processo ficou mais evidente a partir da Constituição de 1988, em face das
múltiplas previsões aplicáveis ao direito processual”.
4
Para fins didáticos, será nominado todo o processo existente na Constituição de processo constitucional.
Sobre este ser o nome preferido, leia-se ZANETI JÚNIOR, Hermes. A constitucionalização do processo: o
modelo constitucional da justiça brasileira e as relações entre processo e constituição. 2. ed. São Paulo:
Atlas, 2014.
5
Para conhecimento de quais são, não exaustivamente, ler DANTAS, Paulo Roberto de Figueiredo. Direito
processual constitucional. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2014.

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Das normas fundamentais do processo e o projeto de novo Código de Processo...

Direito processual penal, o Direito processual do trabalho ou o Direito processual


tributário. Pode-se cogitar a existência de um trâmite ou rito processual pensado pelo
constituinte originário e, mais atualmente, o reformador, quando se está falando nos
princípios que norteiam o processo descrito na Constituição da República Federativa
do Brasil.
Pode-se iniciar a leitura com o direito de acesso6 ao Poder Judiciário,7 insculpido
no artigo 5º, inc. XXXV, ao dispor que “[...] a lei não excluirá da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça a direito”. O cidadão, uma vez inserido no Poder Judiciário,
a partir do ingresso de sua pretensão, assume a veste de jurisdicionado e tem a seu
favor talvez o seu guia processual com a possibilidade de ter seu dia na Corte8 com o
princípio do devido processo legal,9 ou do processo justo,10 ou ainda do procedimento
justo,11 alocado no artigo 5º, inciso LIV, afirmando que “[...] ninguém será privado
da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Com isso a parte tem,
teoricamente, garantidos todos os outros direitos processuais constitucionais, tendo
direito a um Juiz natural12 e a um promotor natural no artigo 5º, LIII, quando o texto
refere que “[...] ninguém será processado nem sentenciado senão por autoridade
competente”, não pode ele ser julgado em Tribunal que não aquele já previamente
instalado, conforme previsão constante no art. 5º, XXXVII,13 que textualiza que “[...]
não haverá juízo ou tribunal de exceção [...]”, tendo as partes garantidos os direitos
ao contraditório e à ampla defesa14 no artigo 5º, LV, ao expor que “[...] os litigantes,

6
E por acesso aqui não há que se confundir com o acesso pensado por Cappelletti e Garth, que pretendiam que,
a partir das ondas, mais pessoas acessassem o Poder Judiciário ou a justiça, como refere o título da obra.
Para tanto, ler CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002.
7
PINA, Ketlen Anne Pontes. Princípio constitucional da inafastabilidade do controle jurisdicional: questões
atuais. In: OLIVEIRA, Vallisney de Souza (Coord.). Constituição e processo civil. São Paulo: Saraiva, 2008.
p. 38-90.
8
Da expressão em inglês A Day in Court.
9
Sobre o tema, indica-se a leitura de MARTEL, Letícia de Campos Velho. Devido processo legal substantivo:
razão abstrata, função e características de aplicabilidade: a linha decisória da Suprema Corte estadunidense.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005; MATTOS, Sérgio Luís Wetzel de. Devido processo legal e a proteção de
direitos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009; e YOSHIKAWA, Eduardo Henrique de Oliveira. Origem e
evolução do devido processo legal substantivo: o controle da razoabilidade das leis do século XVII ao XXI. São
Paulo: Letras Jurídicas, 2007.
10
Sobre a nomenclatura do processo justo, ler SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO,
Daniel. Curso de direito constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 615, 623.
11
Nomenclatura adotada pelo articulista para demonstrar que a principiologia processual constitucional traz um
rito próprio mínimo a ser seguido em qualquer processo.
12
Sobre ambos os princípios (juiz e promotor natural), recomenda-se a leitura de MIRANDA, Gustavo Senna.
Princípio do juiz natural e sua aplicação na lei de improbidade administrativa. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2007.
13
Para compreensão de como se consolida e os perigos que existem na criação de um Tribunal para julgamento
de determinados casos, assistir ao filme O JULGAMENTO de Nuremberg. Direção: Yves Simoneau. 1 DVD.
169 min. Warner Home. Ano de lançamento: 2000. Color.
14
Sobre ambos os princípios (contraditório e ampla defesa), consultar SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI,
Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.
p. 643-655.

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em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o


contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ele inerentes [...]”, sendo,
pois, inconfundíveis os princípios, sabendo que os atos do Estado-juiz podem ser
controlados por qualquer pessoa tendo em vista a publicidade dos atos processuais15
garantida no art. 5o, inciso LX, ao aduzir que “[...] a lei só poderá restringir a publicidade
dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”,
tendo, inclusive, uma garantia dupla, pois se encontra, também, na primeira parte do
artigo 93, IX, ao dizer que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão
públicos”, para, após, na segunda parte do texto trazer outro princípio, o da motivação
das decisões judiciais,16 ao elencar que “[...] e fundamentadas todas as decisões,
sob pena de nulidade”,17 sabendo-se que, em caso de miserabilidade, terão as partes
garantida a assistência judiciária gratuita,18 bastando a leitura do artigo 5º, LXXIV,
quando refere que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que
comprovarem insuficiência de recursos”, sendo, no mais das vezes, garantido ao
jurisdicionado uma prestação célere de etapas processuais para que seu direito não
pereça, assim como que seu processo seja julgado em um tempo razoável, ambos
os princípios consolidados no texto do artigo 5º, LXXVIII,19 ao expor que “a todos, no
âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e
os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”, tendo, ainda, a garantia da
segurança jurídica20 stricto sensu com o respeito à coisa julgada, ao direito adquirido
e ao ato jurídico perfeito conforme texto do artigo 5º, XXXVI, quando aduz que a lei
não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada21, estando,
ainda, o jurisdicionado garantido quanto à não possibilidade de ter em seu processo
uma prova obtida ilicitamente,22 com a redação do artigo 5º, inciso LVI, e a previsão
de que “[...] são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”.

15
Sobre o tema recomenda-se a leitura de ALMADA, Roberto José Ferreira de. A garantia processual da
publicidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
16
Sobre o tema, recomenda-se a leitura de SILVA, Ana de Lourdes Coutinho. Motivação das decisões judiciais.
São Paulo: Atlas, 2012; e MOTTA, Cristina Reindolff da. A motivação das decisões cíveis: como condição de
possibilidade para a resposta correta/adequada. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.
17
Para melhor compreensão do tema das nulidades, recomenda-se a leitura de WAMBIER, Teresa Arruda Alvim.
Nulidades do processo e da sentença. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
18
Sobre o tema recomenda-se a leitura de COSTA NETO, José Wellington Bezerra da. Assistência judiciária
gratuita: acesso à justiça e carência econômica. Brasília, DF: Gazeta Jurídica, 2013.
19
Para saber mais, recomenda-se a leitura de JOBIM, Marco Félix. O direito à duração razoável do processo: a
responsabilidade civil do Estado em decorrência da intempestividade processual. 2. ed. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2012; e KOEHLER, Frederico Augusto Leopoldino. A duração razoável do processo. 2. ed.
Salvador: Juspodivm, 2013.
20
Indicado sobre o tema da segurança jurídica a leitura de ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre
permanência, mudança e realização do direito tributário. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2012.
21
Para saber mais sobre coisa julgada, recomenda-se a leitura de PORTO, Sérgio Gilberto. Coisa julgada civil.
4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
22
Para uma melhor compreensão sobre a prova ilícita, recomenda-se a leitura de MARINONI, Luiz Guilherme;
ARENHART, Sérgio Cruz. Prova. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

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Das normas fundamentais do processo e o projeto de novo Código de Processo...

Ao lado desses princípios acima apontados, tem sido alargada a principiologia, tanto
por consagração de princípios por decisão dos tribunais, como no duplo grau de
jurisdição,23 assim como alguns apontados por escritos mais atualizados sobre o
tema, como o princípio da paridade de armas e da colaboração processual.24
Realizando um esforço, pode-se concluir que existe um iter criado pelo
legislador constitucional que institucionalizou um procedimento constitucional
processual mínimo para o processo judicial a partir da esquematização sistemática25
dos princípios acima apontados. Todas as garantias constitucionais revestivas de
índole processual devem ser mantidas em qualquer processo,26 sob pena de ferir-se a
própria filosofia constitucional caso não cumprido algum dos princípios lá elencados.
O respeito pelo caminho procedimental eleito para se chegar à legitimidade de uma
decisão já foi assunto abordado por Niklas Luhmann.27

2 A normatividade adotada pelo Projeto de Código de


Processo Civil brasileiro
Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 8.046/2010, que institui,
caso seja aprovado, o novo Código de Processo Civil brasileiro, revogando a Lei
nº 5.869, de 1973, também conhecida como Código Buzaid28 ou Código de Processo
Civil brasileiro, consolidando, como prometido, uma legislação processual civil mais
atualizada aos anseios sociais. Interessa ao presente estudo o Capítulo I do Livro I,
intitulado Das normas fundamentais do processo civil, na qual elenca, entre o artigo 1º

23
Que na teoria não encontraria assento implícito da Constituição Federal. Ver: ROSAS, Roberto. Direito
processual constitucional: princípios constitucionais do processo civil. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1999. p. 21. Argumenta o autor que: “O princípio do duplo grau de jurisdição não está inscrito em nenhuma
regra constitucional, apenas deduz-se da estrutura constitucional da duplicidade de pronunciamentos que o
mesmo pertence à estrutura do Poder Judiciário”.
24
Sobre ambos os princípios, consultar SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel.
Curso de direito constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 623 -627; 639-643.
25
O que poderia ser feito por uma interpretação sistemática do próprio texto constitucional. Sobre o tema, leia-se
FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
26
ZIPPELIUS, Reinhold. Introdução ao estudo do direito. Tradução de Gercélia Batista de Oliveira Mendes. Belo
Horizonte: Del Rey, 2006. p. XVI. Luiz Moreira aduz: “É da reunião destas garantias e princípios constitucionais
do processo que se pode apontar a garantia do devido processo legal, que não se refere a nenhuma garantia
ou princípio especificamente, mas a todos eles, em conjunto e simultaneamente, como garantidor de que a
prestação jurisdicional se exprima de forma ilibada. Quer isto dizer que o processo só será válido e eficaz
se e quando prosperarem todas as garantias e princípios constitucionais, sob pena de inexistência ou
nulidade do processo ou ato processual, pois estes princípios e normas constitucionais se constituem como
garantias fundamentais”.
27
Para tanto, recomenda-se a leitura de LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Tradução de Maria
da Conceição Côrte-Real. Brasília: Universidade de Brasília, 1980.
28
Em homenagem a Alfredo Buzaid, um dos idealizadores do Código de Processo Civil de 1973. Interessante
texto pode ser lido em MITIDIERO, Daniel. O processualismo e a formação do Código Buzaid. In: TELLINI,
Denise; JOBIM, Geraldo Cordeiro; JOBIM, Marco Félix (Org.). Tempestividade e efetividade processual: novos
rumos do processo civil brasileiro. Caxias do Sul: Plenum, 2010. p. 109-130.

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e o 12º,29 alguns princípios que merecem a atenção neste momento30 de ainda se


discutir o texto projetado.
De início cabe elencar o artigo 1º31 do projeto que, ao dispor sobre o que
aparenta ser consenso na doutrina brasileira,32 refere que “o processo civil será
ordenado, disciplinado e interpretado conforme as normas da Constituição da
República Federativa do Brasil, observando-se, ainda, as disposições deste Código”,
sendo que, após, consagra dois princípios vigentes no atual Código de 73, sendo
eles o do dispositivo33 e do impulso oficial34 no artigo 2º35 “[...] ao referir que o
processo começa por iniciativa da parte e se desenvolve por impulso oficial, salvo as
exceções previstas em lei”, para, após, listar, no artigo 3º36 que “[...] não se excluirá
da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito”, complementando o artigo com
outros dois parágrafos, o §1º referindo que “[...] é permitida a arbitragem,37 na forma
da lei”, e o §2º que “o Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual
dos conflitos”, tendo no §3º a explicação de como se pode concretizar o anterior,38
com “[...] a conciliação, a mediação e outros métodos39 de solução consensual de
conflitos deverão ser estimulados por magistrados, advogados, defensores públicos
e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial”. Após, no

29
Todos os artigos do projeto citados estão disponíveis em: <http://www.redp.com.br/arquivos/substitutivo_
paulo_teixeira_08maio2013.pdf>. Acesso em: 30 jul. 2014.
30
Cumpre esclarecer que ainda há poucas produções bibliográficas sobre o projeto do novo Código de Processo
Civil sendo que, dentre as que existem, uma das mais recomendadas, embora ainda feita na época em que
somente existia o anteprojeto, é: MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O projeto do CPC: críticas e
propostas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
31
“Art. 1º. O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme as normas da Constituição da
República Federativa do Brasil, observando-se, ainda, as disposições deste Código”.
32
Uma referência, apenas para não passar em branco a afirmação, pode ser a de Luiz Guilherme Marinoni, ao
afirmar que toda lei deve estar em conformidade com a Constituição Federal e, especialmente, como refere,
com os direitos fundamentais. Ler íntegra em MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. 8. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 21.
33
Sobre o referido princípio, recomenda-se a leitura de LOPES, Maria Elizabeth de Castro. O juiz e o princípio
dispositivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
34
Sobre o tema, recomenda-se a leitura de PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. 6. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2005. p. 153-156.
35
“Art. 2º. O processo começa por iniciativa da parte e se desenvolve por impulso oficial, salvo as exceções
previstas em lei”.
36
“Art. 3º. Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito. §1º É permitida a arbitragem,
na forma da lei. §2º O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos. §3º
A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados
por magistrados, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do
processo judicial”.
37
Englobando o tema, leia-se SALLES, Carlos Alberto de; LORENCINI, Marco Antônio Garcia Lopes; ALVES DA
SILVA, Paulo Eduardo (Coord.). Negociação, mediação e arbitragem: curso básico para programa de graduação
em Direito. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012. Os coordenadores e diversos outros articulistas
refletem sobre temas de resolução alternativa de conflitos, em especial a arbitragem.
38
Sobre as técnicas de resolução de conflitos como as apontadas no texto, recomenda-se a leitura de CALMON,
Petrônio. Fundamentos da mediação e da conciliação. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
39
Sobre métodos inovadores de resolução de conflitos, recomenda-se a leitura de KEPPEN, Luiz Fernando
Tomasi; MARTINS, Nadia Bevilaqua. Introdução à resolução alternativa de conflitos: negociação, mediação,
levantamento de fatos, avaliação técnica independente. Curitiba: JM Livraria Jurídica, 2009.

128 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 123-136, jul./set. 2014
Das normas fundamentais do processo e o projeto de novo Código de Processo...

artigo 4º40 resolve expor que “as partes têm direito de obter em prazo razoável a
solução integral do processo, incluída a atividade satisfativa” e no artigo 5º41 resolve
consagrar que “aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se
de acordo com a boa-fé”. Depois, no texto do artigo 6º,42 consigna que, “ao aplicar
o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem
comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a
proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência”. Já no
artigo 7º43 consagra que “é assegurada às partes paridade de tratamento no curso
do processo, competindo ao juiz velar pelo efetivo contraditório” e complementa esse
artigo com a redação do artigo 8º,44 ao aduzir que “todos os sujeitos do processo
devem cooperar entre si para que se obtenha a solução do processo com efetividade e
em tempo razoável”. No artigo 9º45 o projeto prevê que “não se proferirá decisão contra
uma das partes sem que esta seja previamente ouvida”, explicando, no parágrafo
único, que há exceções quando afirma que “o disposto no caput não se aplica à tutela
antecipada de urgência e às hipóteses de tutela antecipada da evidência previstas
nos incisos III e IV do art. 306”, no artigo 1046 consagrou-se a não surpresa,47 ao
expor que “em qualquer grau de jurisdição, o órgão jurisdicional não pode decidir com
base em fundamento a respeito do qual não se tenha oportunizado manifestação das
partes, ainda que se trate de matéria apreciável de ofício” e, finalmente, no artigo 1148
desses princípios iniciais entendeu-se por afirmar a existência dos princípios da
publicidade e da fundamentação das decisões judiciais ao elencar que “todos os
julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas
as decisões, sob pena de nulidade”, havendo a ressalva no parágrafo único dos
casos de segredo de justiça.

40
“Art. 4º. As partes têm direito de obter em prazo razoável a solução integral do processo, incluída a
atividade satisfativa”.
41
“Art. 5º. Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé”.
42
“Art. 6º. Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum,
resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade,
a legalidade, a publicidade e a eficiência”.
43
“Art. 7º. É assegurada às partes paridade de tratamento no curso do processo, competindo ao juiz velar pelo
efetivo contraditório”.
44
“Art. 8º. Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha a solução do processo
com efetividade e em tempo razoável”.
45
“Art. 9º. Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que esta seja previamente ouvida. Parágrafo
único. O disposto no caput não se aplica à tutela antecipada de urgência e às hipóteses de tutela antecipada
da evidência previstas nos incisos III e IV do art. 306”.
46
“Art. 10. Em qualquer grau de jurisdição, o órgão jurisdicional não pode decidir com base em fundamento a respeito
do qual não se tenha oportunizado manifestação das partes, ainda que se trate de matéria apreciável de ofício”.
47
É a consagração do Überraschungsentscheidung, segundo refere Nelson Nery Junior, ao dizer que não podem
as partes ser surpreendidas por decisão fundada em fato ou circunstância de que a parte não tenha tomado
conhecimento. NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal: processo civil, penal e
administrativo. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 221.
48
“Art. 11. Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as
decisões, sob pena de nulidade. Parágrafo único. Nos casos de segredo de justiça, pode ser autorizada
somente a presença das partes, de seus advogados, defensores públicos ou do Ministério Público”.

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No artigo 12,49 apesar de fazer parte do capítulo I e se tratar de normas


fundamentais do processo, parece que não se trata de um princípio propriamente
dito, tendo em vista que aparenta ter um caráter mais de regra, bastando se deparar
com a leitura do texto que aufere que “os órgãos jurisdicionais deverão obedecer à
ordem cronológica de conclusão para proferir sentença ou acórdão” sendo que, até
mesmo, nos parágrafos do artigo, há maiores especificidades a serem lembradas,
como no §1º, que atesta que “a lista de processos aptos a julgamento deverá estar
permanentemente à disposição para consulta pública em cartório e na rede mundial
de computadores”, o que não acaba nele, havendo mais e mais especificidades a
seguir. Essa sistematização de como será a ordem processual nos Tribunais confere
densificação ao texto que poderá ser interpretado mais por subsunção do que com
ponderação, concedendo, pois, ares de regra ao dispositivo.50 Aqui, desde já, cumpre
a referência de que o texto não é de consonância, mesmo entre os entusiastas do
projeto, como pondera Lúcio Delfino51 ao expor ser o referido artigo, assim como
o 153 do mesmo projeto, textos que atentam contra o advogado diligente, o que,
nas suas palavras, não encontra, sequer, assento constitucional, contrariando o
artigo 133 da Constituição Federal.

2.1 Novidades e repetições principiológicas no Projeto de


Código de Processo Civil brasileiro
O projeto de novo Código de Processo Civil brasileiro inicia no título do Capítulo I
a elencar que disciplina a partir dos primeiros artigos a normatividade fundamental
do Direito processual, razão pela qual se chega ao pensamento de que não
necessariamente há somente princípios elencados entre o artigo 1º e o artigo 12,
mas também há regras a serem observadas, em especial as do artigo inaugural e do
artigo final do referido capítulo I. Poder-se-ia, ainda, cogitar da existência, com base na

49
“Art. 12. Os órgãos jurisdicionais deverão obedecer à ordem cronológica de conclusão para proferir sentença
ou acórdão. §1º A lista de processos aptos a julgamento deverá estar permanentemente à disposição para
consulta pública em cartório e na rede mundial de computadores. §2º Estão excluídos da regra do caput:
I - as sentenças proferidas em audiência, homologatórias de acordo ou de improcedência liminar do pedido;
II - o julgamento de processos em bloco para aplicação da tese jurídica firmada em julgamento de casos
repetitivos; III - o julgamento de recursos repetitivos ou de incidente de resolução de demandas repetitivas;
IV - as decisões proferidas com base no art. 945; V - o julgamento de embargos de declaração; VI - o julgamento
de agravo interno; VII - as preferências legais. §3º Após elaboração de lista própria, respeitar-se-á a ordem
cronológica das conclusões entre as preferências legais. §4º O requerimento formulado pela parte após a
inclusão do processo na lista de que trata o §1º não altera a ordem cronológica para a decisão, exceto quando
implicar a reabertura da instrução ou a conversão do julgamento em diligência. §5º Decidido o requerimento de
que trata o §4º, o processo retornará à mesma posição em que anteriormente se encontrava na lista.
50
Sobre o tema, consultar ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios
jurídicos. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.
51
Conferir a íntegra em: DELFINO, Lúcio. O art. 153 do novo CPC vai contra o advogado militante. Disponível em:
<http://www.conjur.com.br/2014-ago-01/lucio-delfino-artigo-153-cpc-advogado-diligente?utm_source=dlvr.
it&utm_medium=twitter>. Acesso em: 07 ago. 2014.

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Das normas fundamentais do processo e o projeto de novo Código de Processo...

nomenclatura adotada por Humberto Ávila,52 de postulados normativos no artigo 6º,


ao elencar a razoabilidade53 e a proporcionalidade54 como nortes ao julgador.
Após, seguindo a leitura do texto, pode-se averiguar a existência de dois
princípios conhecidos do Código Buzaid, sendo eles o do dispositivo e do impulso
oficial, respectivamente no artigo 2º55 e no artigo 26256 do Código de Processo Civil de
1973, não havendo inovação no tocante ao conteúdo do texto, apenas deslocamento
de ambos os princípios para um mesmo artigo.
Agora, importante a realização de uma leitura mais atenta do projetado artigo 3º
do Código de Processo Civil, tendo em vista que densifica um pouco mais o atual
direito de acesso do artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal, alocando no texto
processual a possibilidade da realização da arbitragem, do incentivo à solução
consensual dos conflitos, mostrando, inclusive, alguns caminhos, como a conciliação
e a mediação, assim também deixando em aberto novas modalidades, incentivando
aos profissionais do Direito que estimulem os meios alternativos de resolução de
conflitos. Parece óbvio que, apesar das ressalvas, ainda serão aceitos processos
judiciais das decisões57 e resoluções advindas dos meios alternativos, tendo em vista
o comando principiológico do art. 5º, XXXV, da Constituição Federal.
O artigo 4º, apesar de, aparentemente, trazer uma repetição do direito
fundamental à duração razoável do processo, aposta em ir além, referindo que esta
tempestividade não apenas deve ser garantida na fase de conhecimento, mas também
estar presente na fase do processo destinada à satisfação do direito da parte, o que
pode trazer algumas consequências impensadas pelo legislador como, por exemplo,
como garantir a duração razoável num cumprimento de sentença ou na execução de
um título extrajudicial no qual a parte devedora não tem bens para satisfazer a dívida
em ação cuja eficácia da sentença tenha sido de cunho condenatório?

52
Ibidem.
53
Ibidem, p. 277. Refere: “O postulado da razoabilidade aplica-se, primeiro, como diretriz que exige a relação
das normas gerais com as individualidades do caso concreto, quer mostrando sob qual perspectiva
a norma deve ser aplicada, quer indicando em quais hipóteses o caso individual, em virtude de suas
especificidades, deixa de se enquadrar na norma geral. Segundo, como diretriz que exige uma vinculação das
normas jurídicas com o mundo ao qual elas fazem referência, seja reclamando a existência de um suporte
empírico e adequado a qualquer ato jurídico, seja demandando uma relação congruente entre a medida
adotada e o fim que ela pretende atingir. Terceiro, como diretriz que exige a relação de equivalência entre
duas grandezas”.
54
Ibidem, p. 277. Aduz: “O postulado da proporcionalidade aplica-se nos casos em que exista uma relação de
causalidade entre um meio e um fim concretamente perceptível. A exigência de realização de vários fins, todos
constitucionalmente legitimados, implica a adoção de medidas adequadas, necessárias e proporcionais em
sentido estrito”.
55
“Art. 2 Nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão quando a parte ou o interessado a requerer, nos casos
e forma legais”.
56
“Art. 262. O processo civil começa por iniciativa da parte, mas se desenvolve por impulso oficial”.
57
Não se nega que se pode declarar a nulidade de uma sentença arbitral, por exemplo, por expresso texto da lei
de arbitragem. O que se quer dizer aqui é que o Poder Judiciário continuará julgando qualquer caso em razão
do livre acesso que muitas penas defendem.

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Marco Félix Jobim, Elaine Harzheim Macedo

A consagração do princípio da boa-fé processual, no sentido comportamental,58 é


agora um tema que irradia para todo o processo, o que não será de fácil administração
em seu início, como lembra Ronaldo Cramer,59 devendo todos aqueles que participam
dele agir de tal forma, sendo, pois, uma inovação que inexistia desta forma no Código
de 1973, em que pese existirem artigos que regulam o comportamento dos agentes
do processo, como o artigo 14, que dispõe sobre os deveres das partes e de todos
aqueles que de qualquer forma participam do processo. Na mesma linha, auxiliando
na construção do princípio da boa-fé, tem-se a inovação de atribuir ao texto processual
a cooperação60 entre todos os sujeitos do processo, em seu artigo 6º, para que se
tente chegar a uma decisão final justa, efetiva e tempestiva.
O princípio da igualdade está garantido nos artigos primeiros da normatividade
processual, ao trazer às partes a paridade de armas no curso do processo, sendo
que isso se deve muito em razão da garantia do contraditório que deve ser velada
pelo juiz, a partir da leitura do artigo 7º, sendo, pois, em parte, uma inovação.
Discorrendo sobre novidade, o neoprocesso trará textualizado o respeito à promoção
da dignidade da pessoa humana, elencará como diretrizes a serem seguidas pelo juiz
a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência,61 não
se esquecendo de que na aplicação deverão ser observados ainda os fins sociais e
as exigências do bem comum, tudo isso disposto na redação do artigo 8º.

58
SANTANA, Alexandre Ávalo. Os princípios do novo CPC e a tutela eficiente em tempo razoável. In: FREIRE,
Alexandre et al. (Org.). Novas tendências do processo civil: estudos sobre o projeto do novo Código de Processo
Civil. Salvador: Juspodivm, 2014. v. 2. p. 15-26. p. 23. Aduz: “No que se refere ao princípio da boa-fé adotado no
projeto, é relevante destacar que sua compreensão deve se dar, justamente, na sua acepção objetiva, uma vez
que o art. 5º aponta expressamente para um dever de conduta que se espera dos sujeitos processuais ao dispor
que, todos que de alguma forma participarem do processo, devem ‘comportar-se de acordo com a boa-fé’”.
59
CRAMER, Ronaldo. O princípio da boa-fé objetiva no projeto do novo CPC. In: FREIRE, Alexandre. et al. (Org.).
Novas tendências do processo civil: estudos sobre o projeto do novo Código de Processo Civil. Salvador:
Juspodivm, 2014. v. III. p. 634. Refere o autor: “Não há como negar que, até ser incorporado à dogmática
processual e acomodado junto a outros institutos, o princípio da boa-fé objetiva pode gerar insegurança e, até
mesmo, alguma perplexidade, sobretudo se consideradas suas inauditas consequências”.
60
Sobre o modelo processual de colaboração, leia-se MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil:
pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009; BARREIROS, Lorena Miranda
dos Santos. Fundamentos constitucionais do princípio da cooperação processual. Salvador: Juspodivm, 2013;
e DIDIER JR., Fredie. Fundamentos do princípio da cooperação no direito processual civil português. Coimbra:
Wolters Kluwer Portugal sob a marca Coimbra, 2010.
61
Sobre o princípio da eficiência, ler: RAMOS, Gisela Gondin. Princípios jurídicos. Belo Horizonte: Fórum, 2012,
p. 482-483. Refere: “O princípio da eficiência, que alguns doutrinadores preferem designar por Princípio da
Eficácia Administrativa, foi incorporado ao art. 37 da Carta Magna pela Emenda Constitucional nº 19, de
1988. Ele revela as expectativas da sociedade no sentido de que os serviços públicos sejam prestados de
boa vontade, com celeridade, segurança e conforto, regularidade, pontualidade, e de modo equânime. Exige
o aproveitamento otimizado dos recursos materiais e humanos disponíveis, de molde a que os objetivos
próprios do Estado possam ser alcançados da melhor maneira possível, tanto em termos quantitativos,
como em termos qualitativos”, e continua “O Princípio da Eficiência adquire especial relevância em face da
discricionariedade administrativa, quando se examina o respeito à ordem jurídica. De modo algum o agente
público pode se valer dele para justificar o afastamento ou sacrifício da legalidade. A eficiência, na seara
pública, representa a capacidade de resolver problemas e realizar os serviços de modo satisfatório em
consonância com os parâmetros legais estabelecidos” e finaliza: “Enfim, é possível concluir que o princípio da
eficiência exige a ampliação dos serviços públicos, com efetiva melhoria na qualidade da prestação, tudo com
vistas à realização maximizada dos direitos fundamentais”.

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Das normas fundamentais do processo e o projeto de novo Código de Processo...

Outra importante modificação a ser lembrada é a da inclusão do princípio da não


surpresa no artigo 9º, expondo o texto que não se pode decidir sem que previamente
as partes sejam ouvidas, criando, por evidente, as ressalvas legais, alargando-se
o princípio para o texto do artigo 10. Já o texto do artigo 11 é uma repetição dos
princípios da publicidade e da fundamentação das decisões judiciais que se encontra
no texto constitucional, não havendo inovação quanto aos seus conteúdos, apenas no
que concerne à publicidade há a especificação no parágrafo único sobre a quem pode
ser autorizada a presença em juízo. O artigo 12, conforme já referido alhures, traz
regras específicas de ordem cronológica para o julgamento dos processos, inovando
no texto processual.

Considerações finais
O legislador, quando optou por elencar no capítulo I as normas que devem ser
fundamentais a todo o processo civil, trabalhou bem ao textualizar algumas que já eram
consenso na própria doutrina e nos tribunais, que já estavam fazendo uso contínuo
e prolongado dos seus conceitos, como o princípio da não surpresa, o princípio da
cooperação, o princípio da boa-fé processual e o princípio da paridade de armas. Na
mesma linha, identificou o texto já nos artigos iniciais a importância de existir meios
alternativos à resolução de conflitos, elencando alguns deles, como a arbitragem, a
conciliação e a mediação e deixando em aberto o tema para que tantas outras formas
possam vir a ser incorporadas pelo ordenamento jurídico brasileiro. Também, foi salutar
dar estímulo aos profissionais do Direito que utilizem dessas técnicas.
No que concerne a alguns princípios já conhecidos do processo constitucional,
como o do acesso ao Poder Judiciário, do contraditório, da publicidade, da
fundamentação das decisões, pouco fez de novo, apenas repetindo parte do texto
da Constituição Federal, o que faz com que se pergunte se já não eram para ser
seguidos independemente de fazer parte do projeto ora em tramitação. Da mesma
forma, ao elencar como um dos escopos do processo a promoção da dignidade,
sendo ela fundamento do Estado Democrático de Direito? E a eficiência, já não era
um norte a ser seguido pela leitura do caput do artigo 37 da Constituição Federal? O
da legalidade não era para ser observado? Se seguiu os princípio da Administração
Pública, por qual razão a impessoalidade ficou de fora do texto processual?
Preocupa o Código projetado elencar a observação à proporcionalidade, a
razoabilidade, atendendo o juiz ao aplicar o Direito aos fins sociais e às exigências do
bem comum, tendo em vista que são ferramentas que não controlam, minimamente,
a construção da decisão judicial se não tomados cuidados extras com o estudo do
referido dispositivo.
Não é feliz o legislador quando vai tentar dar densidade ao princípio da
tempestividade do processo, conforme já relatado no corpo do artigo, isso em razão

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Marco Félix Jobim, Elaine Harzheim Macedo

de que, em alguns casos, seriamente prejudicada a tempestividade na atividade


satisfativa do processo. Para ilustrar melhor, uma execução de título executivo
extrajudicial será sempre frustrada se o executado não tiver patrimônio a ser alvo de
constrição judicial.
Por fim, de aplausos a iniciativa de finalmente regrar os julgamentos obedecendo
uma ordem cronológica e informar, pormenorizadamente, como ela deve ser. Note-se
que a evidência já existia previsão para tanto, de forma um pouco diferenciada, mas,
elencando como normatividade fundamental, podem aqueles privilégios concedidos
de forma dezarrazoada, finalmente, estar perto do fim, o que somente ocorrerá com
o controle do Poder Judiciário também, pela própria pessoa humana, alvo maior da
prestação jurisdicional.

Abstract: This study purports to investigate the normativity adopted by the legislators in the development
of the first articles of the new Brazilian Code of Civil Procedure bill, in an attempt to show the innovation
included, the elements that were already present in the procedural law that is about to be repealed and what
is being reproduced of the procedural principles described in the Constitution of the Federative Republic
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Key words: Code of Civil Procedure Bill. Principles. Federal Constitution.

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134 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 123-136, jul./set. 2014
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JOBIM, Marco Félix; MACEDO, Elaine Harzheim. Das normas fundamentais do


processo e o projeto de novo Código de Processo Civil brasileiro – Repetições e
inovações. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano
22, n. 87, p. 123-136, jul./set. 2014.

136 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 123-136, jul./set. 2014
Linhas básicas acerca da “liquidação de
sentença” coletiva

Rodrigo Mazzei
Mestre (PUC-SP) e Doutor (FADISP). Pós-Doutorando (UFES – bolsa CAPES-REUNI). Professor
da graduação e do mestrado da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Vice-
presidente do Instituto dos Advogados do Estado do Espírito Santo (IAEES). Presidente da
Escola Superior da Advocacia (ESA-OAB/ES).

Tiago Figueiredo Gonçalves


Mestre e Doutor em Direito pela PUC-SP. Professor do UNESC e da FUNCAB. Diretor da
Escola Superior da Advocacia (ESA-OAB/ES).

Resumo: O presente estudo possui a intenção de traçar as linhas básicas da liquidação de sentença nos
processos coletivos, segundo o ordenamento legal brasileiro.
Palavras-chave: Liquidação de sentença. Tutela Coletiva. Fluid recovery. Microssistema da tutela coletiva.
Direito coletivo. Direito difuso. Direitos individuais homogêneos.

Sumário: 1 Introdução – 2 Conceito de “liquidação de sentença” e as técnicas de viabilização da liquidação –


2.1 Liquidação-fase – 2.2 Liquidação incidental – 2.3 Liquidação como “processo autônomo” – 3 Das
“espécies” de liquidação segundo o CPC – 3.1 “Liquidação” por cálculos – 3.2 Liquidação por arbitramento –
3.3 Liquidação por artigos – 4 Liquidação de sentença no Projeto do CPC – 5 Liquidação no processo
coletivo – 5.1 O devido processo legal coletivo e o microssistema do processo coletivo – 5.2 A sentença
genérica no processo coletivo – 5.3 Alcance da liquidação de sentença em processo envolvendo os direitos
individuais homogêneos – 5.3.1 Fluid recovery – 5.4 A liquidação de sentença em processo no qual
tutelado direito difuso ou direito coletivo – Referências

1 Introdução
Do texto do artigo 286, caput, primeira parte, do Código de Processo Civil,1
extrai-se regra de acordo com a qual a pretensão deduzida pelo autor em Juízo deve

Dispositivo com inteligência reproduzida (e redação melhorada) no Projeto do “novo” CPC, consoante pode
1

se verificar do que consta no artigo 325 do texto projetado (art. 325. O pedido deve ser determinado, sendo
lícito, porém, formular pedido genérico: I - nas ações universais, se o autor não puder individuar os bens
demandados; II - quando não for possível determinar, desde logo, as consequências do ato ou do fato;
III - quando a determinação do objeto ou do valor da condenação depender de ato que deva ser praticado pelo
réu. Parágrafo único. O disposto neste artigo aplica-se à reconvenção).

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 137-158, jul./set. 2014 137
Rodrigo Mazzei, Tiago Figueiredo Gonçalves

ser certa e determinada. Ao magistrado, em contrapartida, veda-se a emissão de


sentença ilíquida no caso de formulação de pedido determinado.2
Há, contudo, enumeradas nos incisos do referido artigo 286 da codificação
processual, hipóteses excepcionais nas quais é possibilitada a formulação de pedido
genérico.3 Casos tais, em atenção ao princípio da correlação, da congruência ou
da simetria4 ensejam a prolação de sentença genérica ou ilíquida, sujeita a ulterior
atividade de liquidação; sem prejuízo de o magistrado, desde logo, mesmo diante da
formulação de pedido genérico, proferir decisão líquida.5
Considerada a vedação legal ao pronunciamento de sentença genérica, a
sentença condenatória, como regra, declara ou formula o direito pretendido pelo autor
ao mesmo tempo em que impõe sanção ao réu; daí decorrendo obrigação certa quanto
à existência — an debeatur — e determinada ou delimitada quanto ao conteúdo —
quantum debeatur. Na expressão de Pontes de Miranda, “o crédito diz-se líquido (ou
diz-se líquida a dívida) quando, além de ser claro e manifesto (= efficere claram et
manifestam probationem debiti), dispensa qualquer elemento extrínseco para se lhe
saber o importe (non requiratur aliquod extrinsecus ad probandum). Sabe-se que é e
o que é”.6
A sentença “condenatória” genérica ou ilíquida, de seu turno, seja ela decorrente
de pedido indeterminado ou não, apenas formula o direito, com a certificação de sua
existência — an debeatur. A delimitação ou quantificação do direito formulado — quantum
debeatur — resta postergada para momento processual cognitivo seguinte,7 quando,

2
A regra contida no parágrafo único do art. 459 do CPC é formulada em benefício do autor. Sendo assim,
caso formule pedido certo e determinado, fornecendo condições para o proferimento igualmente de sentença
determinada, deve o juiz fazê-lo. É, no entanto, possível a ocorrência de situações nas quais, embora deduzido
pedido certo e determinado, fique o juiz absolutamente impossibilitado de proferir sentença determinada,
ante, por exemplo, a não instrução adequada em torno dos fatos, a impedir a delimitação ou a especificação
da quantia ou da coisa pretendida. Em casos tais, a regra do art. 459, parágrafo único, do CPC vem sendo
mitigada para autorizar a prolação de sentença genérica. Nesse sentido: STJ. REsp nº 49.445. Quarta Turma.
Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar (RSTJ nº 75/386). Tanto assim, também, que o STJ firmou entendimento no
sentido de reconhecer interesse recursal apenas ao autor para reclamar eventual nulidade sentencial, pelo
fato de ter sido prolatada sentença ilíquida. Vide verbete nº 318 da Súmula do STJ: “Formulado pedido certo
e determinado, somente o autor tem interesse recursal em argüir o vício da sentença ilíquida” (STJ. Corte
Especial. J. 05.10.2005, DJ, p. 103, 18 out. 2005). MAZZEI, Rodrigo et al. Reforma do CPC: leis 11.187/2005,
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3
MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil brasileiro. 20. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense,
1999, p. 11.
4
ARRUDA, Antônio Carlos Matteis de. Lineamentos para o esboço de uma teoria geral do processo de liquidação
da sentença. A lide de liquidação. Dissertação de Mestrado sob orientação do Doutor José Manoel de Arruda
Alvim Netto. São Paulo: PUC, 1979, p. 126.
5
Vide texto do art. 475-A, §3º, do CPC.
6
PONTES DE MIRANDA. Comentários ao Código de Processo Civil, tomo IX (arts. 566-611). Rio-São Paulo:
Forense, 1976, p. 503.
7
A fase de liquidação, o incidente, ou o processo de liquidação é, inquestionavelmente, de conhecimento. Nele,
objetiva-se pronunciamento judicial que quantifique ou especifique a obrigação cuja existência foi afirmada em
sentença proferida em processo de conhecimento anterior, tornando, desse modo, integrado o título executivo
a habilitar o autor à tutela executiva. Nesse sentido: AMARAL SANTOS, Moacyr. Primeiras linhas de direito
processual civil. 18. ed. atual. por Aricê Moacyr Amaral Santos. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 257. vol. 3.

138 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 137-158, jul./set. 2014
Linhas básicas acerca da “liquidação de sentença” coletiva

então, diz-se que a obrigação é tornada líquida. Essa nova fase procedimental (incidente
da execução) ou esse novo processo de conhecimento, no bojo do qual a obrigação
é tornada líquida, é denominado de fase de liquidação ou de processo de liquidação.
Somente através da decisão proferida na fase (no incidente, ou no processo)
de liquidação é que a obrigação, tida como certa pela sentença liquidanda, torna-se
determinada. Tal procedimento é imprescindível para integrar a sentença genérica e
dar-lhe a eficácia executiva que a torna adequada para o autor promover em momento
seguinte a execução,8 o que se lhe exige caso o réu não adimpla a obrigação imposta
na sentença. Adimplemento que, ademais, o réu devedor só consegue realizar depois
de ciente tanto que está obrigado — o que é firmado pela sentença genérica —
quanto do que está obrigado — o que é estabelecido pela decisão proferida na fase,
no incidente ou no processo de liquidação.
O título executivo (judicial ou extrajudicial) é indispensável, portanto, para o autor
que pretende obter do Estado-Jurisdição tutela executiva visando à satisfação de
direito seu já declarado ou formulado, o qual deverá conter obrigação certa, líquida, e
exigível. De forma que só o título que represente, em si, obrigação líquida torna o autor
apto à via executiva.9 No particular, Luiz Rodrigues Wambier anota: “Sem, portanto,
que esteja nitidamente revestida dessa aptidão para a execução, isto é, sem que
contenha também o elemento quantitativo da obrigação a cujo cumprimento tenha
sido condenado o réu, a sentença condenatória estará, por assim dizer, incompleta,
e restará também não atendida a sua própria destinação”.10
O presente artigo tem exame panorâmico sobre o tema: liquidação de sentença.
Com efeito, depois de introduzido o conceito de liquidação, de identificados os modelos
de liquidação atualmente existentes no sistema, e de analisadas e compreendidas
suas espécies, volta-se o enfoque para o tratamento do tema no processo coletivo,
promovendo-se as devidas adaptações à principiologia que orienta aquele subsistema
ou microssistema processual.

8
DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução civil. 5. ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 520.
9
ZAVASCKI, Teori Albino. Comentários ao Código de Processo Civil, vol. 8: do processo de execução, arts. 566 a
645. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 330. Ressalta-se que a certeza, a liquidez a exigibilidade são
atributos da obrigação representada documentalmente no título executivo. Por isso que muito bem recebida a
correção técnica promovida pela Lei 11.382/2006 ao texto originário do art. 586 do CPC. Nesse sentido, um
dos autores desse artigo jurídico, em comentários às reformas implementadas no CPC, mais especificamente
em seu art. 586 do CPC, pôde observar que: “Em se tratando de obrigação pecuniária, a certeza e a liquidez
são predicados do crédito que poderá ser reclamado pelo credor, caso o devedor, superado o termo ou
condição, isto é, vencida a dívida, não venha adimplir a obrigação assumida. Diferente da redação pretérita, há
agora bom diálogo entre o caput do art. 586 do CPC com o art. 397 do CC, haja vista que a atual arquitetura
dispõe que ‘a execução para cobrança de crédito fundar-se-á sempre em título de obrigação certa, líquida
e exigível’, ou seja, a tríade de requisitos se volta não para o título executivo em si, mas para a obrigação
que está, segundo o atual art. 580 do CPC, ‘consubstanciada em título executivo’” (MAZZEI, Rodrigo; et al.
Reforma do CPC 2: leis 11.383/2006 e 11.341/2006. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 87).
10
WAMBIER, Luiz Rodrigues. Sentença civil: liquidação e cumprimento. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2006. p. 46-47.

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Rodrigo Mazzei, Tiago Figueiredo Gonçalves

2 Conceito de “liquidação de sentença” e as técnicas de


viabilização da liquidação
A expressão “liquidação de sentença” designa o procedimento ou a atividade
cognitiva voltada a conferir liquidez ou determinação à obrigação declarada e
reconhecida em anterior decisão condenatória genérica, tornando o título executivo
apto à formulação de tutela jurisdicional executiva.11
Se o atributo da (i)liquidez ou da (in)determinação se relaciona à obrigação,
logo é sobre ela — obrigação — que recai a atividade de liquidação. A decisão que
certifica a obrigação indeterminada não é objeto de liquidação, mas possibilita a
abertura da via na qual a atividade de liquidação vai ser realizada. Quando, então, o
Código alude à “liquidação de sentença”, faz uso de figura de linguagem denominada
de hipálage, que consiste em “figura de retórica pela qual se atribui a uma ou mais
palavras de uma frase o que logicamente pertence a outra ou a outras da mesma
frase”.12 Isso é o que o Código pretende referir quando utiliza a expressão “liquidação
de sentença”.13
Trata-se de atividade eminentemente de conhecimento. Não sem razão,
críticas eram dirigidas ao sistema processual pelo fato de o CPC, em sua redação
originária, haver regulamentado a matéria dentro do Livro II, que cuida do Processo
de Execução. A realocação topológica da liquidação dentro do Código, promovida pela
Lei nº 11.232/2005, inserindo-a entre os artigos 475-A e 475-H, dentro do Livro do
Processo de Conhecimento, foi, portanto, muito bem recebida em doutrina.14
Com efeito, a Lei nº 11.232/2005 pretendeu estabelecer como principal
técnica de liquidação no processo individual a instauração de fase procedimental em
processo já em curso. É a denominada fase de liquidação ou liquidação-fase, que se
desenvolve em processo no qual são deduzidas várias e subsequentes pretensões
(processo sincrético): pretensão de certificação do direito; pretensão de delimitação
(liquidação) do direito; pretensão de satisfação (efetivação) do direito.

11
Fredie Didier et al. fornecem conceito próximo: “liquidação de sentença é atividade cognitiva pela qual se
busca complementar a norma jurídica individualizada estabelecida num título judicial”. DIDIER JR., Fredie;
CUNHA, Leonardo José Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil:
execução. Salvador: Juspodivm, 2009. p. 112. v. 5.
12
ACADEMIA DAS CIÊNCIAS DE LISBOA. Dicionário da língua portuguesa contemporânea. II Vol. G-Z. Verbo,
2001, p. 1985.
13
Tecendo críticas à atecnia do legislador: SILVA, Ovídio Baptista da. Curso de processo civil: execução
obrigacional, execução real, ação mandamentais. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
p. 57. v. 2.
14
“Pensamos, por isso, que andou bem o legislador em transferir as normas relacionadas à liquidação de
sentença para a parte que o CPC dedica ao processo de conhecimento. Com efeito, trata-se de atividade
a que se aplicam os princípios do processo de conhecimento, e não do processo de execução”. WAMBIER,
Luiz Rodrigues. Sentença civil: liquidação e cumprimento. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2006. p. 75.

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Linhas básicas acerca da “liquidação de sentença” coletiva

Ao lado da fase de liquidação ou da liquidação-fase (1), remanescem vivas e


presentes no sistema a liquidação incidental ou liquidação-incidente (2), e o processo
de liquidação (3) como outras duas técnicas para sua realização.

2.1 Liquidação-fase
A liquidação-fase ou fase de liquidação é aquela que se desenvolve a partir
de demanda proposta com o específico propósito de, mediante nova cognição, em
prosseguimento a processo de conhecimento já instaurado, delimitar a obrigação
reconhecida em anterior decisão judicial, aperfeiçoando o título executivo judicial com
o qual, em outra fase subsequente do mesmo processo, o cumprimento de sentença
se realizará.
A fase de liquidação observa e se desenvolve em consonância com as regras
ou da liquidação por arbitramento (CPC, art. 475-C) ou da liquidação por artigos (CPC,
art. 475-E). Na liquidação-fase o contraditório não é precedido de citação do réu, sim
de intimação (CPC, art. 475-A, §1º), na medida em que não existe a instauração de
novo processo; sendo, inclusive, cabível diante do estado de litispendência da fase
cognitiva precedente, desde que já existente sentença recorrida (CPC, art. 475-A, §2º).
Encerra-se por sentença impugnável por agravo de instrumento (CPC, art. 475-H). É a
técnica utilizada nos processos coletivos em que a sentença condenatória genérica
reconhece direito coletivo estrito senso ou direito difuso, quando a liquidação tem por
objeto a quantificação do dano coletivo.

2.2 Liquidação incidental


A liquidação incidental é cabível quando se tem a instauração de incidente
processual da execução. Tem vez tanto na fase executiva do processo sincrético,
como no bojo de processo de execução de título executivo extrajudicial. São exemplos
de situações hipotéticas nas quais pode ocorrer: (a) quando frustrada a tutela
específica em execução de obrigação para entrega de coisa ou de obrigação de fazer
ou de não fazer, o qual se transforma em perdas e danos cuja quantificação exigirá a
atividade de liquidação (CPC, art. 461, art. 461-A, art. 627, §2º, art. 633, parágrafo
único, art. 638, parágrafo único, e art. 643); (b) quando necessário apurar o valor
das benfeitorias indenizáveis promovidas ou pelo executado ou por terceiro (CPC,
art. 628).

2.3 Liquidação como “processo autônomo”


O processo autônomo de liquidação, por sua vez, é a técnica empregada para
as situações em que há a necessidade de instauração de processo especificamente

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 137-158, jul./set. 2014 141
Rodrigo Mazzei, Tiago Figueiredo Gonçalves

destinado a promover a liquidação da decisão, seja porque não existe processo


anterior, como ocorre com a sentença arbitral, seja porque, a despeito de existir
processo anterior, nele não existe a possibilidade de se prosseguir em subsequente
fase de liquidação, tal como se vê com a sentença penal condenatória transitada
em julgado,15 com o acórdão do STJ que homologa sentença estrangeira, e
com a sentença condenatória que em processo coletivo reconhece direitos
individuais homogêneos.
Aplicam-se-lhe as disposições normativas inseridas nos artigos 475-A a 475-H
do CPC, com as devidas adaptações. Assim, exatamente porque existe a formação
de nova relação jurídica processual, a cientificação e convocação do réu não se dá
por intimação, como disposto no art. 475-A, §1º, do CPC; sim por citação, tal como
prescreve o parágrafo único do art. 475-N do CPC, de acordo com o qual, no caso
de liquidação de sentença penal condenatória, de sentença arbitral e de sentença
estrangeira homologada pelo STJ, o mandado inicial (art. 475-J) deve incluir ordem de
citação do devedor no juízo cível.16

3 Das “espécies” de liquidação segundo o CPC


Empós superado, ainda que por resenha apertada, o conceito de “liquidação de
sentença” e a apresentação das técnicas de viabilização da liquidação de sentença,
importa notar que a codificação processual civil indica a existência de 03 (três) espécies
de liquidação. Com efeito, no capítulo que versa sobre liquidação de sentença, alude
o Código de Processo à existência de três distintas modalidades suas: a) liquidação
por cálculos (CPC, art. 475-B), b) liquidação por arbitramento (CPC, art. 475-C), e
c) liquidação por artigos (CPC, art. 475-E). Sobre cada uma dessas espécies, passa-se
agora à apresentação de sucintas considerações.

3.1 “Liquidação” por cálculos17


A liquidação por cálculos, regulada no art. 475-B do CPC, não é verdadeira
espécie de liquidação. Isso porque a elaboração dos cálculos já tem como pressuposto
a existência de decisão líquida ou determinada, cujo valor nela estabelecido é
submetido a mera operação aritmética objetivando torná-lo atual ao momento da
execução. Sobre o assunto, um dos subscritores do presente artigo pôde consignar:

15
Isso quando a sentença condenatória já não trouxer.
16
“Art. 475-N. [...]. Parágrafo único. Nos casos dos incisos II, IV e VI, o mandado inicial (art. 475-J) incluirá a
ordem de citação do devedor, no juízo cível, para liquidação ou execução, conforme o caso”.
17
Analisando a “liquidação” por cálculos com ótima resenha, confira-se Fabiano Carvalho (Liquidação de
sentença: determinação do cálculo aritmético, de acordo com a lei 11.232/2005. In: HOFFMAN, Paulo;
RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva (Coord.). Processo de execução civil: modificações da Lei nº 11.232/05,
São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 47).

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Linhas básicas acerca da “liquidação de sentença” coletiva

“Respeitosamente, entendemos não ser hipótese de liquidação de sentença, pois


a liquidez já existe, sendo necessária apenas a atualização da verba reclamada”.
[...]. “Ora, somente se pode admitir ‘atualização’ daquilo que já é certo e líquido,
encaixando-se, portanto, o art. 475-B apenas na primeira hipótese do art. 475-J”.18
A posição aqui trazida não é isolada, sendo precisa a observação de Dinamarco
a respeito: “fazer contas não é liquidar, porque uma obrigação determinável por
simples conta é líquida, não ilíquida”.19
Portanto, nada obstante a opção legislativa que encarta a feitura de cálculos
como hipótese de liquidação, na realidade trata-se de situação diferenciada, muito
mais próxima a um simples incidente de deslocamento e projeção temporal do valor
pretérito para o valor atual, que é feito por contas aritméticas de uma condenação já
determinada e com os contornos bem definidos.

3.2 Liquidação por arbitramento


As hipóteses de permissão da liquidação por arbitramento estão enumeradas
no art. 475-C do CPC, devendo ocorrer quando: “I - determinado pela sentença ou
convencionado pelas partes; II - o exigir a natureza do objeto da liquidação”. É a que
acontece mediante a realização de prova pericial, em qualquer das modalidades do
art. 420 do CPC — exame, vistoria ou avaliação — produzida depois da prolação da
sentença. Tanto se desenvolve pela técnica da liquidação-fase como pela técnica do
processo autônomo.
Tal espécie de liquidação é utilizada em casos nos quais ordinariamente seria
possível que a determinação da condenação fosse efetuada antes da prolação da
sentença. No entanto, tal não ocorre em razão de ser mais viável que se profira a
sentença desde logo e se postergue a determinação da condenação, colhendo-se
prova futura, de natureza pericial. Isso porque a matéria que envolve a perícia futura
já se encontra resolvida, estando seus parâmetros fixados, mas a definição dos
limites da condenação depende de prova técnica”.20
Percebe-se que na liquidação por arbitramento há uma remessa proposital de prova
de natureza técnica para outra fase processual, que, a priori, poderia ter sido ultimada
antes da sentença, haja vista que para a sua consecução os dados poderiam ali ser
colhidos, ainda que com a juntada de elementos de apoio. Esta particularidade faz com

18
MAZZEI, Rodrigo; et al. Reforma do CPC: leis 11.187/2005, 11.232/2005, 11.276/2006, 11.277/2006 e
11.280/2006. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 167-168.
19
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 617. vol. IV.
20
MAZZEI, Rodrigo et al. Reforma do CPC: leis 11.187/2005, 11.232/2005, 11.276/2006, 11.277/2006 e
11.280/2006. São Paulo: RT, 2006, p. 182. MAZZEI, Rodrigo. A liquidação por arbitramento e a liquidação
por artigos: pontos relevantes sob a ótica das leis 11.232/05 e 11.382/06: Revista eletrônica de direito
processual, v. V, ano 4, Rio de Janeiro, 2010, p. 492.

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Rodrigo Mazzei, Tiago Figueiredo Gonçalves

que alguns autores, entre os quais Alcides de Mendonça Lima,21 afirmem que a liquidação
por arbitramento é um inusitado tipo de prova para dar acabamento à sentença.22
Não se faz no requerimento da liquidação por arbitramento postulação (para a
prova) de “fato novo”, pois o “fato”, além de já estar provado, recebeu deliberação
sentencial em toda a sua extensão, faltando apenas prova eminentemente técnica
para o seu fechamento. Sobre o assunto, traçando distinção entre a liquidação por
arbitramento e a liquidação por artigos, anota Humberto Theodoro Júnior: “Havendo
necessidade de se provar fatos novos para se chegar à apuração do quantum da
condenação, a liquidação terá que ser feita sob forma de artigos (art. 608). Quando
porém, existirem nos autos todos os elementos necessários para os peritos
declararem o valor do débito, o caso é de arbitramento”.23
Há, segundo a doutrina trazida, uma diferença no material cognitivo das
liquidações, na medida em que esta por arbitramento é guiada por elementos já
constantes nos autos, ao passo que, diferentemente, se o ambiente processual tiver
sido instaurado por liquidação por artigos, há o alargamento na prova a ser colhida
para a determinação do título, aferindo-se fatos novos. Em que pese tal análise (de
grande relevância), outras observações, em nosso sentir, ajudam a esclarecer de
forma mais clara a distinção, ao menos em boa parte das situações.
Com efeito, a liquidação por arbitramento é utilizada em casos nos quais
ordinariamente seria possível efetuar a determinação da condenação antes da
prolação da sentença. No entanto, tal não ocorre em razão de ser mais viável que
se profira a sentença desde logo e se postergue a determinação da condenação,
colhendo-se prova futura, de natureza pericial. Isso porque a matéria que envolve
a perícia futura já se encontra resolvida, estando seus parâmetros fixados, mas a
definição dos limites da condenação depende de prova técnica.
Dentre os motivos para que a perícia de determinação da condenação fique
diferida para momento futuro, podemos destacar o encadeamento progressivo dos
atos processuais. Ora, se existem elementos para se julgar procedente o pedido
indenizatório, em alguns casos é preferível que se decida logo sobre a questão
(alcançando o an debeatur), postergando-se seu aperfeiçoamento para outra fase (ou
seja, a fixação do quantum debeatur).24

21
LIMA, Alcides de Mendonça. Comentários ao Código de Processo Civil. 2. ed. Forense: Rio de Janeiro, 1977.
p. 576. v. 6. t. II.
22
MAZZEI, Rodrigo et al. Reforma do CPC: leis 11.187/2005, 11.232/2005, 11.276/2006, 11.277/2006 e
11.280/2006. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 183.
23
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo de execução. 19. ed. São Paulo: Leud, 1999. p. 223.
24
Tiago Figueiredo Gonçalves, um dos autores deste artigo, por não adotar as premissas teóricas indicadas no texto para
justificar a realização da prova técnica somente depois da prolatação da sentença genérica, já teve a oportunidade de
sustentar, de lege ferenda, que a atividade de liquidação fosse realizada concomitantemente à atividade de certificação
do direito, exigindo-se, para tanto, que o autor da demanda, na inicial, formulasse pedido de liquidação da obrigação na
mesma fase procedimental em que, a rigor, como atualmente sói ocorrer, só resulta afirmada a existência do direito
sem a sua quantificação (A “liquidação” de obrigação imposta por sentença em demanda metaindividual:
Processo civil coletivo. Coord.: Rodrigo Mazzei e Rita Dias Nolasco. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 415).

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Linhas básicas acerca da “liquidação de sentença” coletiva

3.3 Liquidação por artigos


A liquidação por artigos é aquela que se realiza quando exigida a aferição de
fato novo (fato secundário e dependente do que já foi decidido), reclamando, por isso,
dados muito acima dos já obtidos até então. Havendo necessidade de provar fato
novo, ainda que para tanto seja necessária a produção de prova pericial, observar-se-á
a liquidação por artigos.25
Apesar de não ter o condão de rediscutir ou de alterar o resultado (e limites) da
lide anterior (art. 475-G), tendo natureza acessória (já que somente existirá se houver
ação judicial anterior que criar título judicial sem determinação), em certos casos
detém autonomia de alta escala. Isto porque determinados títulos judiciais necessitam
de alta participação da liquidação de sentença por artigos para o detalhamento da
condenação, uma vez que os calibramentos indenizatórios são estranhos à própria
decisão que dará ensejo à liquidação, como ocorre no caso de sentença penal
condenatória (art. 475-N, II, do CPC). Desenvolve-se tanto pela técnica da liquidação-
fase como pela técnica do processo autônomo.

4 Liquidação de sentença no Projeto do CPC26


O Projeto do novo Código de Processo Civil trabalha com a ideia de que as
sentenças (= decisões judiciais) devem ser proferidas, sempre que possível, de
forma líquida. Tal premissa fica evidente no artigo 501 do texto projetado, em
que há previsão de que as decisões proferidas nas ações relativas à obrigação
de pagar quantia, ainda que formulado pedido genérico, deverão definir a
extensão da obrigação, o índice de correção monetária, a taxa de juros, o termo
inicial de ambos e a periodicidade da capitalização dos juros.27 Não obstante tal
linha, há uma grande quantidade de situações em que as decisões judiciais
acabarão sendo proferidas sem preencher o predicado da liquidez, razão pela
qual o tema alvo do presente ensaio (liquidação de sentença) não foi esquecido

25
DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de
direito processual civil: execução. Salvador: Juspodivm, 2009, p. 136. v. 5.
26
Texto aprovado na Câmara em novembro de 2013, com pendência de análise alguns temas controversos.
27
Art. 501. Na ação relativa à obrigação de pagar quantia, ainda que formulado pedido genérico, a
decisão definirá desde logo a extensão da obrigação, o índice de correção monetária, a taxa de
juros, o termo inicial de ambos e a periodicidade da capitalização dos juros, se for o caso, salvo
quando: I - não for possível determinar, de modo definitivo, o montante devido; II - a apuração do
valor devido depender da produção de prova de realização demorada ou excessivamente dispendiosa,
assim reconhecida na sentença. §1º Nos casos previstos neste artigo, seguir-se-á a apuração do
valor devido por liquidação. §2º O disposto no caput também se aplica quando o acórdão alterar
a sentença.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 137-158, jul./set. 2014 145
Rodrigo Mazzei, Tiago Figueiredo Gonçalves

no texto projetado, estando a matéria basicamente regulamentada no trecho dos


artigos 523 a 526.28
Percebe-se na leitura da parte dedicada ao tema que o tratamento em relação à
liquidação de sentença foi bem econômico e manteve a célula do sistema vigente na
codificação em vigor. De todo modo há pontos que devem ser realçados em corrido passeio.
De plano, o artigo 523 do texto projetado de forma explícita indica que a liquidação
de sentença poderá ser requerida tanto pelo credor quanto pelo devedor, prestigiando,
assim, a ideia da “ação liberatória” (que era extraída sem esforço do ventre do
artigo 570 do Código de Processo Civil — revogado pela Lei nº 11.232/2005).29
A novidade é positiva, pois ratifica a concepção de que o cumprimento da decisão
judicial, ainda que ilíquida, deve ser feita de forma espontânea pelo devedor, tendo,
pois, este, para tanto, legitimidade para promover a liquidação de sentença. Há,
assim, uma melhora no disposto no vigente artigo 475-A do CPC.30
As formas de liquidação previstas atualmente estão prestigiadas no Projeto,
com previsão da liquidação por arbitramento (art. 523, I), da liquidação por artigos
(artigo 523, II), sendo a apuração de simples cálculo aritmético tratada também
como liquidação “por cálculos” (artigo 523 §2º). No que se refere à “liquidação por
cálculos”, visando uma uniformidade de resultados, há previsão de uso de programa
de atualização financeira único em todo Brasil, sendo o Conselho Nacional de Justiça
o responsável pelo desenvolvimento de disponibilização do aludido programa.
Há no regramento da liquidação por arbitramento, na nossa concepção, uma
melhora em relação ao disposto no atual artigo 475-D do Código de Processo Civil,
deixando mais evidente a aplicação das regras vinculadas à perícia. No sentido, além
da expressa alusão neste sentido na parte final no artigo 524 do Projeto, percebe-se
que o texto projetado abre válvula para aplicar o previsto no vigente artigo 427 do

28
Art. 523. Quando a sentença condenar ao pagamento de quantia ilíquida, proceder-se-á a sua liquidação, a
requerimento do credor ou devedor: I - por arbitramento, quando determinado pela sentença, convencionado
pelas partes ou exigido pela natureza do objeto da liquidação; II - pelo procedimento comum, quando houver
necessidade de alegar e provar fato novo. §1º Quando na sentença houver uma parte líquida e outra ilíquida,
ao credor é lícito promover simultaneamente a execução daquela e, em autos apartados, a liquidação desta.
§2º Quando a apuração do valor depender apenas de cálculo aritmético, o credor poderá promover, desde
logo, o cumprimento da sentença. §3º O Conselho Nacional de Justiça desenvolverá e colocará à disposição
dos interessados programa de atualização financeira. §4º Na liquidação é vedado discutir de novo a lide ou
modificar a sentença que a julgou. Art. 524. Na liquidação por arbitramento, o juiz intimará as partes para a
apresentação de pareceres ou documentos elucidativos, no prazo que fixar; caso não possa decidir de plano,
nomeará perito, observando-se, no que couber, o procedimento da prova pericial. Art. 525. Na liquidação
pelo procedimento comum, o juiz determinará a intimação do requerido, na pessoa de seu advogado ou da
sociedade de advogados a que estiver vinculado, para, querendo, apresentar contestação no prazo de quinze
dias, observando-se, a seguir, no que couber, o disposto no Livro I da Parte Especial deste Código. Parágrafo
único. Contra decisão proferida na fase de liquidação de sentença cabe agravo de instrumento. Art. 526. A
liquidação poderá ser realizada na pendência de recurso, processando-se em autos apartados no juízo de
origem, cumprindo ao liquidante instruir o pedido com cópias das peças processuais pertinentes.
29
Texto revogado: Art. 570. O devedor pode requerer ao juiz que mande citar o credor a receber em juízo o que Ihe cabe
conforme o título executivo judicial; neste caso, o devedor assume, no processo, posição idêntica à do exeqüente.
30
Muito embora nos §1º e §2º do artigo 523 o texto projetado faça menção apenas ao credor, esquecendo-se
do devedor, contrariando a ideia ampla do caput.

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Linhas básicas acerca da “liquidação de sentença” coletiva

Código de Processo Civil,31 a fim de permitir a juntada de pareceres ou documentos


elucidativos para decidir a questão sem dilação probatória com expert judicial.
Em relação à liquidação por artigos merece ser destacado que o texto projetado
não utiliza tal nomenclatura, limitando-se a indicar que a liquidação seguirá “pelo
procedimento comum”, quando houver necessidade de alegar e provar fato novo
(características da liquidação por artigos), consoante se infere do disposto nos
artigos 523, II e 525 do Projeto. Registre-se, ainda, que na liquidação por artigos
(tratada como “liquidação pelo procedimento comum”) há previsão de que a intimação
do requerido deve ser efetuada na pessoa de seu advogado ou da sociedade de
advogados a que estiver vinculado, para, desejando, apresentar contestação no prazo
de quinze dias (observando, em sequência o Livro I da Parte Especial do Código),
conforme pode se notar do desenho do artigo 525 do texto projetado.
Soluções atuais e que são boas ferramentas para a duração razoável do
processo — diretriz constitucional (artigo 5º. LXXVIII, CF/88) que está recepcionada
pelo Projeto de forma explícita (artigos 6º e 139, II)32 — estão previstas no texto
projetado: (a) artigo 523, §1º — se na decisão houver parte líquida e outra ilíquida,
ao interessado é lícito promover simultaneamente a execução daquela e, em autos
apartados, a liquidação desta; (b) artigo 526 — a liquidação poderá ser realizada na
pendência de recurso (ainda que provido de efeito suspensivo), processando-se em
autos apartados no juízo de origem, cumprindo ao liquidante instruir o pedido com
cópias das peças processuais pertinentes.
Observe-se que o tema tratado no artigo 526 já era alvo de previsão no sistema
em vigor (artigo 475-A, §2º), mas pode se notar uma novidade em relação ao
“julgamento parcial de mérito”, que parecia estar fora do dispositivo atualmente em
vigência. Isso porque o Projeto prevê que a decisão que julgar parcialmente o mérito
poderá reconhecer a existência de obrigação líquida ou ilíquida simultaneamente.
Em tais condições, a parte poderá liquidar ou executar, desde logo, a obrigação
reconhecida na decisão que julgar parcialmente o mérito, independentemente de
caução, ainda que haja recurso interposto, conforme previsto no artigo 323 (e seus
respectivos parágrafos) do texto projetado.33

31
Art. 427. O juiz poderá dispensar prova pericial quando as partes, na inicial e na contestação, apresentarem
sobre as questões de fato pareceres técnicos ou documentos elucidativos que considerar suficientes.
32
Art. 6º. Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável,
decisão de mérito justa e efetiva. Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código,
incumbindo-lhe: [...] II - velar pela duração razoável do processo.
33
Art. 363. O juiz decidirá parcialmente o mérito, quando um ou mais dos pedidos formulados ou parcela deles:
I - mostrar-se incontroverso; II - estiver em condições de imediato julgamento, nos termos do art. 362. §1º A
decisão que julgar parcialmente o mérito poderá reconhecer a existência de obrigação líquida ou ilíquida. §2º
A parte poderá liquidar ou executar, desde logo, a obrigação reconhecida na decisão que julgar parcialmente
o mérito, independentemente de caução, ainda que haja recurso contra essa interposto. Se houver trânsito
em julgado da decisão, a execução será definitiva. §3º A liquidação e o cumprimento da decisão que julgar
parcialmente o mérito poderão ser processados em autos suplementares, a requerimento da parte ou a critério
do juiz. §4º A decisão proferida com base neste artigo é impugnável por agravo de instrumento.

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Rodrigo Mazzei, Tiago Figueiredo Gonçalves

Ainda com olhos na duração razoável do processo e também fora do hiato dos
artigos 523 a 526, cremos que foi positiva a inserção do §1º do artigo 113 do texto
projetado,34 que permite ao juiz limitar não apenas no processo de conhecimento,
mas também na liquidação de sentença e na execução, a formação de litisconsórcio
facultativo, caso o número de litigantes puder comprometer a rápida solução do litígio
ou dificultar a defesa ou o cumprimento da sentença.
Afora as questões já tratadas, merece consignar que fica mantido a diretriz da
“fidelidade”, não sendo assim permitido que em sede de liquidação (qualquer que
seja a modalidade) se discuta novamente a lide, a par de se vedar a modificação da
decisão que a julgou (§4º do artigo 523).
O parágrafo único do artigo 525, que dispõe que contra decisão proferida na
fase de liquidação de sentença cabe agravo de instrumento, merece ser aplicado em
todas as hipóteses de liquidação, apesar do caput do dispositivo apenas se referir à
liquidação pelo procedimento comum (liquidação por artigos).

5 Liquidação no processo coletivo


5.1 O devido processo legal coletivo e o microssistema do
processo coletivo
O processo coletivo compreende instrumento voltado à tutela de categorias
específicas de direitos, quais sejam, a dos direitos transindividuais ou coletivos
em sentido lato (difusos e coletivos em sentido estrito) e a dos direitos individuais
homogêneos (os quais, a despeito de direitos subjetivos individuais, são tutelados
coletivamente dado o interesse social subjacente aos mesmos).35 Definem-no,
Hermes Zanetti Jr. e Fredie Didier Jr., como “aquele instaurado em face de um
legitimado autônomo, em que se postula um direito coletivo lato sensu ou se afirma
a existência de uma situação jurídica coletiva passiva, com o fito de obter um
provimento jurisdicional que atingirá uma coletividade, um grupo ou um determinado
número de pessoas”.36

34
Art. 113. Duas ou mais pessoas podem litigar, no mesmo processo, em conjunto, ativa ou passivamente,
quando: I - entre elas houver comunhão de direitos ou obrigações relativamente ao mérito; II - entre as causas
houver conexão pelo objeto ou causa de pedir; III - ocorrer afinidade de questões por ponto comum de fato ou
de direito. §1º Na fase de conhecimento, na liquidação de sentença ou na execução, o juiz poderá limitar o
litisconsórcio facultativo quanto ao número de litigantes, quando este comprometer a rápida solução do litígio
ou dificultar a defesa ou o cumprimento da sentença.
35
“Já os direitos individuais homogêneos são, simplesmente, direitos subjetivos individuais. A qualificação de
homogêneos não altera e nem pode desvirtuar essa sua natureza. É qualificativo utilizado para identificar um
conjunto de direitos subjetivos individuais ligados entre si por uma relação de afinidade, de semelhança, de
homogeneidade, o que permite a defesa coletiva de todos eles” (ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo:
tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 43).
36
DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de direito processual civil: processo coletivo. 8. ed. rev., ampl.
e atual. Salvador: Juspodivm, 2013, p. 45. v. 4.

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Linhas básicas acerca da “liquidação de sentença” coletiva

As peculiaridades dos direitos que nele e por ele se busca reconhecer impõem
a adaptação dos institutos e dos fenômenos que o cercam e o delineiam, de modo a
se ter assegurado o que pode ser denominado de devido processo legal coletivo, ou
seja, de um processo pautado por um “garantismo coletivo”; sob pena de seu caráter
instrumental restar comprometido e, em consequência, de a tutela diferenciada nele
objetivada não ser alcançada.37 Daí a necessidade de regras e princípios próprios
para a regulamentação do processo coletivo.
Não existe, contudo, no âmbito do ordenamento jurídico pátrio, uma codificação
própria e específica voltada à regulamentação do processo coletivo. As normas de
processo coletivo não se encontram dispostas em uma única lei; antes, estão alocadas
em diversos diplomas legais. A despeito de fisicamente separadas, a unidade teórica
e de propósitos existentes entre tais normas faz com que integrem um microssistema
dentro do ordenamento jurídico a que se denomina de microssistema do processo
coletivo ou microssistema da tutela coletiva.
A existência do subsistema do processo coletivo possibilita que as normas
nele compreendidas se intercomuniquem, de modo a dialogarem entre si. Dentro
desse contexto, a aplicação das normas do Código de Processo Civil, de concepção
nitidamente individualista, é realizada apenas residualmente.38
Em curtas palavras, o microssistema coletivo tem sua formação marcada
pela reunião intercomunicante de vários diplomas, diferenciando-se da maioria dos
microssistemas que, em regra, recebem apenas influência de normas gerais. Por
exemplo, a Lei nº 8.245/91 (exemplo de diploma extravagante nas relações entre
locador e inquilino de imóveis) possui diálogo com o Código Civil (CC), o Código de
Processo Civil (CPC) e, obviamente, a Constituição Federal (CF). Com efeito, a
concepção do microssistema jurídico coletivo deve ser ampla, a fim de que o mesmo
seja composto não apenas do CDC e da LACP, mas de todos os corpos legislativos

37
Recorre-se mais uma vez à doutrina de Hermes Zaneti Jr. e de Fredie Didier Jr.: “O devido processo legal
precisa ser adaptado ao processo coletivo. É preciso pensar em um devido processo legal coletivo. É preciso
construir um regime diferenciado para o processo coletivo. As mudanças resultam da necessária adaptação
do princípio do devido processo legal a esses novos litígios. Com isso nasce o que se pode chamar de
‘garantismo coletivo’, que paulatinamente deverá consolidar-se na doutrina e na jurisprudência para assegurar
mais eficácia e legitimidade social aos processos coletivos e as decisões judiciais nessa matéria” (DIDIER
JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de direito processual civil: processo coletivo. 8. ed. rev., ampl. e atual.
Salvador: Juspodivm, 2013, p. 115. v. 4.).
38
O tema (microssistema da tutela coletiva) foi tratado com vagar por Rodrigo Mazzei no seguinte
texto: A ação popular e o microssistema da tutela coletiva: Ação popular – aspectos controvertidos
e relevantes – 40 anos da Lei 4717/65. Coord.: Luiz Manoel Gomes Jr. e Ronaldo Fenelon Santos
Filho São Paulo: RCS, 2006. Em razão da importância do tema, o ensaio foi republicado (com
pequenas alterações) em outras obras, a saber: Revista Forense, v. 394, p. 263-280, 2007; Tutela
jurisdicional coletiva. Coord.: Fredie Didier Jr. e José Henrique Mouta. Salvador: Juspodivm, 2009.
p. 373-395. v. 1.; Revista Jurídica da Faculdade de Direito da Universidade de Ribeirão Preto, v. 1,
p. 221-244, 2011.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 137-158, jul./set. 2014 149
Rodrigo Mazzei, Tiago Figueiredo Gonçalves

inerentes ao direito coletivo, razão pela qual diploma que compõe o microssistema
é apto a nutrir carência regulativa das demais normas, pois, unidas, formam
sistema especialíssimo.
Isso significa dizer que o CPC terá aplicação somente se não houver solução
legal nas regulamentações que estão disponíveis dentro do microssistema coletivo
que, frise-se, é formado por um conjunto de diplomas especiais com o mesmo escopo
(tutela de massa). Dessa forma, a leitura de dispositivos com redação próxima à do
artigo 19 da LACP e do artigo 22 da LAP há de ser feita de forma cuidadosa, porque
o CPC será residual e não imediatamente subsidiário, pois, verificada a omissão
do diploma coletivo especial, o intérprete, antes de angariar solução na codificação
processual, ressalte-se, de índole individual, deverá buscar os ditames constantes
dentro do microssistema coletivo. As leis que formam esse conjunto de regulação
ímpar, sem exceção, interpenetram-se e subsidiam-se, devendo o intérprete aferir —
em concreto — a eventual incompatibilidade e a especificidade de cada norma coletiva
em relação aos demais diplomas, com aplicação apenas residual do CPC, em razão
de sua dicção, repita-se, individual.39
Estão compreendidas no microssistema as normas de processo coletivo
localizadas na Lei de Ação Popular (Lei nº 4117/65), na Lei dos Portadores de
Deficiências (Lei nº 7.853/89), no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei
nº 8.069/90), na Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92), na Lei da
Ordem Econômica (Lei nº 8.884/94), no Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003),
entre outras, as quais possuem como base as disposições contidas na Constituição
Federal, na Lei de Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85), e no Código de Defesa do
Consumidor (Lei nº 8.078/90).
A concepção de microssistema da tutela coletiva, na forma aqui apresentada,
vem sendo aplicada por alguns Tribunais (inclusive pelo Superior Tribunal de
Justiça)40 em diversos temas em que ocorre o tratamento simultâneo pelo Código
Processo Civil (de índole voltada aos litígios individuais) e por leis especiais (ou
extravagantes) que versam sobre a tutela coletiva. Em tais situações, a codificação
deve ser aplicada apenas de forma residual, com prevalência das leis que formam
o microssistema coletivo. Tal premissa não pode ser afastada em se tratando
de liquidação de sentença, em que a estrutura do Código de Processo Civil está

39
Direto no tema, confira-se: Rodrigo Mazzei. Da aplicação (apenas) ‘residual’ do CPC nas ações coletivas.
MPMG Jurídico, v. 1, p. 37, 2006.
40
REsp nº 1.108.542/SC. Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma. Julgado em: 19.05.2009. DJe,
29 maio 2009; AgRg no REsp 1.219.033/RJ. Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma. Julgado em:
17.03.2011. DJe, 25 abr. 2011.

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Linhas básicas acerca da “liquidação de sentença” coletiva

afinada para a recepção das ações individuais, sendo pouco adequada para as
ações coletivas.41 42 43
Como vimos, o Projeto do “novo” Código de Processo Civil não altera o quadro
acima traçado, bastando, pois, conferir que os principais dispositivos do texto projetado,
que estão no hiato dos artigos 523 a 526, mantêm a célula individual da liquidação
de sentença codificada. De toda sorte, como vimos, o §2 º do artigo 113 do projeto —
embora não seja um dispositivo de aplicação voltada exclusivamente para a liquidação
de sentença — prevê a possibilidade de limitação de litisconsórcio facultativo nas
liquidações de sentença quando o número de litigante puder comprometer a rápida
solução do litígio ou dificultar a defesa ou até mesmo o cumprimento da sentença,
situação que de forma vulgar ocorre em liquidações coletivas com grande número de
postulantes, notadamente em hipótese de direitos individuais homogêneos.

5.2 A sentença genérica no processo coletivo


Fixadas as premissas acerca do microssistema coletivo, como é sabido o
Código de Defesa do Consumidor (CDC), no seu Título III, Capítulo II, que cuida “Das
ações coletivas para a defesa de interesses individuais homogêneos”, regulamenta o
instituto da liquidação, sobretudo no art. 97. Por força do art. 21 da Lei nº 7.347/85,
que disciplina a Ação Civil Pública (princípio do microssistema do processo coletivo),
os dispositivos do Título III do Código do Consumidor são aplicáveis à “defesa”44
dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, naquilo
que cabíveis.

41
MAZZEI, Rodrigo et al. Reforma do CPC: leis 11.187/2005, 11.232/2005, 11.276/2006, 11.277/2006 e
11.280/2006. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 192-194.
42
No Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, mais especificamente na Primeira Câmara Especial Cível, há
dezenas de acórdãos no sentido, destacando-se os de relatoria dos Desembargadores Miguel Ângelo da
Silva e Ney Wiedemann Neto. Em exemplo, confira-se: “O impulsionamento de ofício das ações individuais
anteriormente suspensas (conversão em liquidação provisória de sentença por artigos) é providência
prática pertinente que, além de se inserir no contexto do Projeto Caderneta de Poupança instituído no
âmbito do Poder Judiciário Estadual, se mostra compatível com o microssistema da tutela coletiva de
direitos. A pendência de recurso no processo coletivo não obsta a liquidação provisória da sentença, que
far-se-á, obrigatoriamente, pela modalidade de artigos. Manutenção da ordem dirigida ao banco para que
apresente os extratos de movimentação da(s) conta(s) titularizada(s) pelo(s) autor(es), porquanto viável, com
arrimo no art. 6º VIII, do CDC, a inversão do ônus da prova” (Agravo de Instrumento nº 70027687680.
J. 05.12.2008).
43
Correta, portanto, a fala de Patrícia Miranda Pizzol, quando afirma que: “A execução coletiva obedecerá às
normas constantes do CDC, da LACP e também do CPC, naquilo que os dois primeiros forem omissos e
desde que não colida com os preceitos neles contidos (que constituem, a chamada ‘jurisdição civil coletiva’)”
(Liquidação nas ações coletivas. São Paulo: Lejus, 1998. p. 240).
44
Expressão utilizada atecnicamente, vindo no texto a significar tutela. Assim: ALVIM NETTO, José Manoel de
Arruda et al. Código do Consumidor comentado. 2. ed. rev. e ampl. 2. tir. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1995. p. 345.

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Rodrigo Mazzei, Tiago Figueiredo Gonçalves

O art. 95 do CDC dispõe que a condenação deve ser genérica quando a demanda
coletiva for julgada procedente.45 Trata-se de regra geral no tocante à sentença proferida
em demanda coletiva que visa à reparação de danos em torno de direitos individuais
homogêneos. Não se aplica, contudo, nas demandas coletivas em que se busca a
condenação do réu em obrigação de fazer ou de não fazer, independentemente de
envolverem direitos coletivos, difusos, ou individuais homogêneos.
Ademais, nas demandas coletivas para reparação de danos envolvendo direito
coletivo ou direito difuso também é perfeitamente possível se vislumbrar sentença
da qual decorra condenação em obrigação líquida. Nesses casos, a obrigação
pode vir a ser quantificada no curso do processo, na medida em que a condenação
do réu decorre de violação a bem indivisível, cujo titular é a coletividade, e cuja
delimitação pode ocorrer através de prova produzida durante o curso da demanda,
sem a necessidade de, para tanto, serem comprovados eventuais danos ocorridos
na esfera individual de titulares de direitos subjetivos. Não se busca, em situações
tais, reconhecer genericamente a existência de dano, para, em momento posterior,
dividi-lo, cindi-lo entre cada cidadão individualmente lesado, como sói ocorrer nas
demandas com as quais se tutelam direitos individuais homogêneos.

5.3 Alcance da liquidação de sentença em processo


envolvendo os direitos individuais homogêneos
A liquidação proposta individualmente por cada uma das vítimas escapa à regra
geral das liquidações regidas pelas normas do processo clássico, pelo que visa não
só à comprovação do quantum debeatur, como, outrossim, à comprovação do dano —
an debeatur — individualmente sofrido, como ainda à comprovação de ser, a possível
vítima, afetada pelo dano abstratamente afirmado na sentença genérica — nexo
de causalidade.46
Com efeito, as peculiaridades que envolvem a liquidação das obrigações na tutela
de direitos individuais homogêneos decorrem, justamente, da natureza da sentença
genérica que fixa a obrigação liquidável. A eficácia dessa sentença genérica é mais

45
Art. 95. Em caso de procedência do pedido, a condenação será genérica, fixando a responsabilidade do réu
pelos danos causados.
46
Nesse sentido: ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda et al. Código do Consumidor comentado. 2. ed. rev. e ampl.
2 tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 436. GRINOVER, Ada Pellegrini. Da class action for damages
à ação de classe brasileira: os requisitos de admissibilidade. Revista de Processo 101/11. São Paulo: Revista
dos Tribunais, p. 23. DINAMARCO, Cândido Rangel. As três figuras de liquidação de sentença: Fundamentos
do processo civil moderno. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 1250. v. II. MANCUSO, Rodolfo de Camargo.
Manual do consumidor em juízo. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 147. Em sentido diverso,
Teori Albino Zavascki e Patrícia Miranda Pizzol sustentam que o autor da demanda de liquidação, além do
quantum debeatur, precisa demonstrar, sim, a sua legitimidade ativa, não a existência do dano — an debeatur —
na sua esfera individual. ZAVASCKI, Teori Albino. Comentários ao Código de Processo Civil. vol 8: do processo de
execução, arts. 566 a 645. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 338. PIZZOL, Patrícia Miranda. Liquidação
nas ações coletivas. Dissertação de Mestrado. São Paulo: PUC, 1996. p. 208, 209.

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Linhas básicas acerca da “liquidação de sentença” coletiva

restrita que a daquela prevista no Código de Processo Civil, e se assemelha, como


reporta Dinamarco, àquelas sentenças as quais a doutrina italiana afirma que se
limitam “a reconhecer a potencialidade danosa da conduta do demandado”.47 Por isso
que, nesse caso, a liquidação visa a não só reconhecer o quantum debeatur, como,
também, o dano individual, e o nexo causal com o dano geral. No particular, Hermes
Zaneti Jr. e Fredie Didier Jr. advertem: “Nesta liquidação, serão apurados: a) os fatos
e alegações referentes ao dano individualmente sofrido pelo demandante; b) a relação
de causalidade entre esse dano e o fato potencialmente danoso acertado na sentença;
c) os fatos e alegações pertinentes ao dimensionamento do dano sofrido”.48
As particularidades são tantas a ponto de se poder naturalmente questionar
quanto à verdadeira natureza desta demanda, ou seja, sobre ser ela realmente uma
demanda de liquidação.49 A realidade, pois, é que essa liquidação a que alude o CDC
longe está dos moldes da liquidação regulada no Processo Civil individual. Mais se
assemelha a processo de conhecimento que visa à declaração (concretização) de
direito e à imposição de sanção ao réu, através de formulação de pedido certo — an
e quantum debeatur.
É verdade que a sentença genérica reconhece a existência do dano — an
debeatur, mas esse dano, no caso, é geral. Assim, cada cidadão que, por suposto,
foi individualmente lesado precisa comprovar a existência do dano — an debeatur —
individual, assim como se faz em qualquer outro processo de conhecimento. A única
diferença aqui é a existência de respaldo em sentença genérica, que facilita, de certo
modo, a cognição na demanda individual de liquidação.
É natural que essa liquidação, diante de tamanha complexidade que a envolve,
seja realizada por artigos.50 É veemente a necessidade de que se faça prova de fatos
novos, pois é preciso que seja demonstrado não apenas o quantum, como, ainda,
o an debeatur, e o nexo causal do dano individual com o dano geral afirmado na
sentença genérica.51

47
DINAMARCO, Cândido Rangel. As três figuras de liquidação de sentença: fundamentos do processo civil
moderno. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 1248, 1249. v. II
48
DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de direito processual civil: processo coletivo. 8. ed. rev., ampl.
e atual. Salvador: Juspodivm, 2013. p. 408. v. 4.
49
Nelson Nery Jr. e Rosa Maria Andrade Nery tratam a hipótese como sendo de habilitação(Código de Processo
Civil comentado e legislação processual civil extravagante em vigor. 4. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1999, p. 1877). Dinamarco deixa transparecer certa medida de dúvida sobre a real natureza
dessa demanda a que o Código do Consumidor denomina como sendo de liquidação: DINAMARCO, Cândido
Rangel. As três figuras de liquidação de sentença: Fundamentos do processo civil moderno. 3. ed. São Paulo:
Malheiros, 2000, p. 1248, 1249. v. II.
50
No mesmo sentido: WAMBIER, Luiz Rodrigues. Sentença civil: liquidação e cumprimento. 3. ed. rev., atual. e
ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 380. WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda
Alvim. Anotações sobre a liquidação e a execução das sentenças coletivas: direito processual coletivo e o
anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos. Coord.: Ada Pellegrini Grinover, Aluisio Gonçalves de
Castro Mendes e Kazuo Watanabe. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 276.
51
BOTELHO, Tiago Resende; FAVA, Gustavo Crestani. Da liquidação do direito em sentenças coletivas – class
actions settlement: Revista Jurídica UNIGRAN, v. 15, n. 29. Dourados: UNIGRAN, 2013, p. 119.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 137-158, jul./set. 2014 153
Rodrigo Mazzei, Tiago Figueiredo Gonçalves

Desenvolve-se pela técnica do processo autônomo de liquidação, na medida


em que cada titular de direito individual homogêneo deverá, de posse da sentença
coletiva, promover a respectiva ação de liquidação.
As vítimas e os seus sucessores, que não possuem legitimação para a
propositura da demanda pela qual se busca afirmar a existência (an debeatur) do
dano geral, adquirem legitimação ordinária — como titulares que são do direito
subjetivo individual que pretendem ver afirmado e quantificado — para a liquidação
individual da sentença coletiva que afirma a obrigação geral. É a regra que se extrai
da primeira parte do texto do art. 97 do CDC.52
Ressalta-se que a legitimação das vítimas e a de seus sucessores é exclusiva
para a liquidação de seu direito subjetivo individual. Não possuem legitimidade para
promoverem a liquidação coletiva (CDC, art. 100), seja da sentença em que são
tutelados direitos individuais homogêneos, ou daquela em que tutelados direitos
coletivos ou difusos.
Da competência para conhecer da demanda liquidatória coletiva cuidava o
parágrafo único do art. 97 do CDC, que teve seu texto vetado. O veto tinha como
objetivo justamente impedir a possibilidade da liquidação ser proposta no foro do
domicílio do liquidante, restringindo, desta feita, a competência para o juízo onde foi
proferida a sentença genérica.53 Por força, porém, do disposto no art. 98, §2º, I, c/c
art. 101, I, ambos do CDC, depreende-se a competência não só do juízo que proferiu
a sentença genérica liquidanda, como, outrossim, a competência do foro do domicílio
do liquidante.54 Até porque, em assim não se entendendo, deixar-se-ia o art. 98,
§2º, I, do CDC, vazio de sentido.55

5.3.1 Fluid recovery


A par da liquidação e da consequente execução individual promovida por cada
titular de direito subjetivo inserido na categoria dos direitos individuais homogêneos, a
obrigação contida na sentença coletiva genérica na qual reconhecida a existência dos
direitos individuais homogêneos pode ser objeto de liquidação e posterior execução

52
Art. 97. A liquidação e a execução de sentença poderão ser promovidas pela vítima e seus sucessores, assim
como pelos legitimados de que trata o art. 82.
53
Sobre as razões do veto: MUKAI, Toshio et al. Comentários ao Código de Proteção do Consumidor. Coord.:
Juarez de Oliveira. Saraiva: São Paulo, 1991. p. 335.
54
Mais uma vez cumpre lembrar a necessidade da eficácia e utilidade da demanda coletiva. Assim, se não
houver utilidade prática em que a liquidação individual seja proposta no foro do domicílio do liquidante, melhor
é que seja proposta no juízo que proferiu a sentença genérica. Acredita-se, inclusive, que o juízo que proferiu
a sentença genérica, por já conhecer mais a fundo as questões que envolvem a demanda, ser o mais apto
também para conhecer as liquidações individuais, proporcionando-lhes maior eficácia.
55
Na mesma linha: GRINOVER, Ada Pellegrini; et al. Código brasileiro de defesa do consumidor. Forense: Rio de
Janeiro, 1991. p. 561. Em sentido diverso: ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda et al. Código do Consumidor
comentado. 2. ed. rev. e ampl. 2. tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 442.

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Linhas básicas acerca da “liquidação de sentença” coletiva

coletiva. Essa possibilidade é aberta depois de decorrido um ano, contado do trânsito


em julgado da decisão coletiva pela qual tutelados direitos individuais homogêneos,
sem que tenha havido a habilitação de legitimados individuais em número compatível
com a dimensão e a gravidade do dano. Sendo que a legitimidade para a promoção
dessa liquidação coletiva é conferida àqueles entes enumerados no art. 82 do CDC e
no art. 5º da LACP. Vide segunda parte do texto do art. 97 do CDC.56
A liquidação coletiva seguida da execução coletiva conduz à obtenção de valor,
o qual seria inicialmente dos titulares dos direitos individuais, e que é recuperado
e revertido para o Fundo de Defesa dos Direitos Difusos (FDD) (art. 13 da Lei
nº 7.347/85 e art. 100, parágrafo único, da Lei nº 8.078/90), com o que se tem por
afirmado e observado o princípio da tutela integral no âmbito coletivo.57 O valor assim
recuperado é denominado de fluid recovery (recuperação ou reparação fluída).

5.4 A liquidação de sentença em processo no qual tutelado


direito difuso ou direito coletivo
A liquidação coletiva do direito difuso ou coletivo estrito senso é promovida por
um dos legitimados enumerados no art. 82 do CDC e no art. 5º da Lei nº 7347/85.
Desenvolve-se pela técnica da liquidação-fase, dando-se prosseguimento, em uma
nova fase, ao processo coletivo já pendente, no bojo do qual proferida a decisão
liquidanda. Admite realização tanto pela modalidade por arbitramento quanto
por artigos.58
A competência para a liquidação de obrigação imposta por sentença genérica
proferida em demanda pela qual tutelado direito coletivo estrito senso ou direito
difuso é do juízo que proferiu a sentença condenatória liquidanda.59
Por derradeiro, não se pode olvidar de que, em atenção ao fenômeno do
transporte in utilibus (CDC art. 103, §3º), o titular de direito individual fica autorizado
a se apropriar da decisão de procedência proferida em processo no qual reconhecido
direito difuso ou coletivo estrito senso, mediante a propositura de ação de liquidação

56
Art. 97. A liquidação e a execução de sentença poderão ser promovidas pela vítima e seus sucessores, assim
como pelos legitimados de que trata o art. 82.
57
DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de direito processual civil: processo coletivo. 8 ed. rev., ampl.
e atual. Salvador: Juspodivm, 2013, p. 409. v. 4.
58
No mesmo sentido: WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Anotações sobre a liquidação
e a execução das sentenças coletivas: direito processual coletivo e o anteprojeto de Código Brasileiro de
Processos Coletivos. Coord.: Ada Pellegrini Grinover, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes e Kazuo Watanabe.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 277.
59
GONÇALVES, Tiago Figueiredo. A “liquidação” de obrigação imposta por sentença em demanda metaindividual:
Processo civil coletivo. Coord.: Rodrigo Mazzei e Rita Dias Nolasco. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 425.
Assim também: BOTELHO, Tiago Resende; FAVA, Gustavo Crestani. Da liquidação do direito em sentenças
coletivas – class actions settlement: Revista Jurídica UNIGRAN, v. 15, n. 29. Dourados: UNIGRAN, 2013.
p. 122.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 137-158, jul./set. 2014 155
Rodrigo Mazzei, Tiago Figueiredo Gonçalves

individual com a qual busca a individualização e a quantificação de seu direito. Nesse


caso, a liquidação se desenvolve pela técnica do processo de liquidação e observa a
modalidade por artigos.

Abstract: This article aims to outline the main rules of the award calculation phase in class actions
according to the Brazilian legal system.
Key words: Settlement sentence. Collective Custody. “Fluid recovery”. System of protection of collective
rights. Collective right. Diffuse law. “Homogeneous individual rights”.

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

MAZZEI, Rodrigo; GONÇALVES, Tiago Figueiredo. Linhas básicas acerca da


“liquidação de sentença” coletiva. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro,
Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 137-158, jul./set. 2014.

158 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 137-158, jul./set. 2014
Mutação constitucional do artigo 52,
X, da Constituição Federal – A
consagração do hibridismo no controle
de constitucionalidade brasileiro e o
seu impacto na competência do
Senado Federal

Fabiana Marcello Gonçalves


Mestre em Direito. Advogada do Escritório Gasparini, de Cresci e Nogueira de Lima Advogados.

Humberto Dalla Bernardina de Pinho


Professor Associado na UERJ e Adjunto na UNESA. Promotor de Justiça no Rio de Janeiro.

Resumo: O texto faz um exame do sistema híbrido de controle de constitucionalidade no Brasil e da teoria
da mutação constitucional, a partir de alguns precedentes em curso no Supremo Tribunal Federal, sendo
analisadas, ainda, as potencialidades e os riscos da implementação desta técnica à luz de nossa tradição
legislativa e jurisprudencial. Por fim, é examinada a norma insculpida no artigo 52, inciso X, da Carta de
1988, bem como a sua eventual inconstitucionalidade.
Palavras-chave: Mutação constitucional. Controle. Hibridismo. Senado.

Sumário: 1 Premissa inicial – A abstrativização do controle concreto como vertente da interpenetração dos
modelos difuso e concentrado – 2 O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade difuso –
3 A adaptabilidade da Constituição Federal e os perigos da tese da mutação constitucional – 4 Conclusão –
Seria inconstitucional a mutação do artigo 52, X, da Constituição Federal? – Referências

1 Premissa inicial – A abstrativização do controle concreto


como vertente da interpenetração dos modelos difuso
e concentrado
Um dos temas mais intrigantes e fascinantes do direito constitucional brasileiro
moderno diz respeito à gradual e crescente interpenetração entre os modelos
clássicos de controle de constitucionalidade até então existentes.
Dessa forma, é inegável que o velho padrão histórico, que se limita a apresentar
os sistemas americano e austríaco como modelos antagônicos, atualmente, não

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 159-180, jul./set. 2014 159
Fabiana Marcello Gonçalves, Humberto Dalla Bernardina de Pinho

mais basta para dar conta de toda gama de complexidades que gravita em torno
do assunto.
Saliente-se, preliminarmente, que, quando se opta por estudar matéria tão
profunda e polêmica, capaz de gerar implicações de diversas ordens, torna-se
imprescindível abandonar tudo aquilo que é tido como senso comum, sem
perder de vista o precioso ensinamento de José Carlos Barbosa Moreira, que
assevera não existirem fórmulas de validade universal para resolver por inteiro as
equações, devendo ser combinadas estratégias e táticas diversas, sem medo de
parecermos incoerentes.1
Em vista disso, o ponto de partida para o atual estudo do controle de
constitucionalidade deve ser o desapego à empoeirada fórmula “universalmente
válida”, que promove a seguinte síntese: “controle de constitucionalidade = modelo
americano + austríaco”.
A enraizada ideia de que o controle de constitucionalidade brasileiro (introduzido
com a Constituição de 1891) privilegiou um modelo de inspiração norte-americana,
que, posteriormente, passou a conviver com o controle concentrado de forma
harmônica (porém desvinculada), hodiernamente, não pode ser encarada como
verdade absoluta. Isso faz com que não seja mais aceitável, pelo menos sem as
devidas ressalvas, o exame superficial da temática, que insiste em resumir o assunto
na habitual dicotomia entre controle difuso e controle concentrado.
O fato é que a alusão aos modelos paradigmáticos clássicos sempre se mostrou
suficiente para o basilar delineamento e enfrentamento das matérias que dizem
respeito à origem, evolução e aplicação do controle de constitucionalidade brasileiro,
o que pode nos conduzir à falsa ideia de que a duplicidade de modelos representa
critério único. Contudo, vários são os critérios classificatórios existentes em todo o
mundo, desde aqueles mais simplistas até os mais sofisticados.
Mas, apesar da multiplicidade de critérios adotados em terra brasilis, por
questões práticas, preferiu-se por em foco a dualidade de sistemas: o difuso e
o concentrado.
O jurista italiano Lucio Pegoraro, estudioso do controle de constitucionalidade,
entende que a adoção de critérios classificatórios pode ocasionar dois graves
problemas: ou as classificações são muito simplificadas e não alcançam o objetivo
de representar, com adequada precisão, as tipologias assumidas pelo objeto de
estudo ou são tão articuladas que frustram o objetivo da atividade classificatória.2

1
MOREIRA, José Carlos Barbosa. O futuro da justiça: alguns mitos. In: Temas de direito processual. Oitava
Série. Rio de Janeiro: Saraiva, 2004. p. 7.
22
PEGORARO, Lucio. A circulação, a recepção e a hibridação dos modelos de justiça constitucional.
Universidade Federal de Santa Catarina. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/
anexos/15543-15544-1-PB.pdf>. Acesso em: 09 ago. 2012.

160 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 159-180, jul./set. 2014
Mutação constitucional do artigo 52, X, da Constituição Federal – A consagração do hibridismo no controle ...

Cientes da multiplicidade de critérios e reconhecendo, portanto, que o histórico


antagonismo entre controle difuso e concentrado não se afigura como único critério
de estudo existente, a realidade é que a análise destes dois modelos mostra-se
suficientemente apta a dar o “start” necessário, permitindo a observância, de forma
mais próxima, da problemática central que ora se propõe a analisar.
A partir disso, investigando a realidade empírica brasileira, conclui-se que a
análise dissociada e independente destes modelos, sem que seja reconhecido um
intercâmbio entre eles, não é mais suficiente para dar conta das complexidades
inerentes às hipóteses em que se postula a inconstitucionalidade de determinada
norma legal.
Tomando-se em conta tais asserções iniciais, torna-se possível dar mais
alguns passos.
É muito comum nos depararmos, nos manuais de direito constitucional, com
a afirmação de que o controle brasileiro de constitucionalidade adotaria uma forma
mista. Esta afirmação decorre, como já aludido, em virtude da coexistência do modelo
difuso (inaugurado em conjunto com o regime republicano, em uma época na qual a
utilização do sistema abstrato era praticamente uma especificidade norte-americana)
com o modelo concentrado austríaco (de inegável influência kelseniana),3 coexistência
esta que nem sempre foi uma realidade na nossa história.
Consoante destacado por Gilmar Mendes, desde 1965, passamos a conviver
com uma duplicidade de modelos, posto que o legislador brasileiro introduziu, ao
lado do controle incidental, o incipiente controle abstrato de normas perante a
Corte Suprema, que, naquele momento, mostrou-se pouco expressivo em virtude da
limitação da legitimidade para sua propositura, que era outorgada exclusivamente ao
Procurador-Geral da República.4
Nesse diapasão, destaque-se que o modelo americano, por muito tempo, foi
alvo de desconfiança mundial, principalmente em virtude da falta de credibilidade do
Judiciário, mas, ainda assim, representou, pós-Constituição de 1988, a predileção
brasileira, de forma a consagrar a competência das justiças da União e dos Estados
para conhecer da legitimidade das leis perante a Constituição.
Permitiu-se, então, que todos os tribunais, federais ou locais, discutissem a
constitucionalidade das leis da União, aplicando-as, ou não, segundo esse critério.5

3
Gilmar Mendes afirma que “o modelo austríaco traduz uma nova concepção de controle de constitucionalidade.
Outorgou-se ao Tribunal Constitucional (Verfassungsgerichtshof) a competência para dirimir as questões
constitucionais, mediante requerimento especial (Antrag), formulado pelo Governo Federal (Bundesregierung),
com referência a leis estaduais, ou pelos Governos estaduais (Landesregierungen), no tocante às leis federais
[...]” (GANDRA, Ives e MENDES, Gilmar. Controle concentrado de constitucionalidade. Comentários à Lei
9.868, de 10-11-1999. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 7).
4
MENDES, Gilmar. Jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 01.
5
MENDES, Gilmar. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. Estudos de direito constitucional.
3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 191.

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Fabiana Marcello Gonçalves, Humberto Dalla Bernardina de Pinho

Todavia, a preferência inicial pela opção americana veio a ser enfraquecida,


repise-se, com a Emenda nº 16/1965, que instituiu o controle abstrato, consagrando
o paralelismo de modelos, o que não significa dizer que o sistema de controle
brasileiro, a partir desse momento, deva ser considerado misto, porque nunca foi
regra a interpenetração entre os dois modelos existentes, vezes sendo aplicado o
controle difuso e, em outros casos, o controle concentrado.6
Logo, nunca foi difícil contrapor dois modelos paradigmáticos de controle
jurisdicional, conforme muito bem asseverado por Pegoraro,7 principalmente em
um momento no qual vigorava o paralelismo, não havendo pontos de intersecção
significativos entre o controle difuso e o concentrado. Assim, sempre foram tratados
como se fossem compartimentos estanques, com normativa e características próprias.
Por esse motivo, aduzir que o modelo brasileiro de controle de constitucionalidade
seria misto desde a Emenda nº 16/65 constitui assertiva que deve ser compreendida
com ressalvas, já que se entende por misto tudo aquilo que se apresenta como
um meio-termo entre duas coisas, o que não seria, ao menos naquele momento
histórico, o caso brasileiro.
É claro que, na atual quadra da história, há uma irrefutável tendência à
hibridação dos modelos que antes eram tidos como autônomos, fazendo com que o
sistema brasileiro de controle de constitucionalidade venha se tornando um sistema
efetivamente misto, o que pode ser observado em diversas ocasiões, inclusive com a
criação das súmulas vinculantes e do instituto da repercussão geral.8
Mais do que uma convivência harmônica entre paradigmas, hoje, o que se
tem é uma área de interseção de modelos, capaz de gerar, basicamente, 02 (dois)
fenômenos: (i) a concretização do controle abstrato e (ii) a abstrativização do controle
concreto. Nesse ínterim, pegando carona na teoria do diálogo das fontes do jurista
alemão Erik Jaime, é possível, através da sábia definição de Cláudia Lima Marques,
afirmar que a solução atual ou pós-moderna é sistemática e tópica ao mesmo tempo,
devendo ser mais fluida e flexível, a permitir maior mobilidade e fineza de distinções.9

6
Importante mencionar que, com a Constituição de 1934 surge o modelo de representação para intervenção,
que também passou a adotar, ainda que primariamente, o modelo de constitucionalidade austríaco, mas ainda
não se tratava de um controle concentrado como o que conhecemos hoje. O Supremo Tribunal Federal, na
época conhecido como Corte Suprema, ganhou, em 1934, uma competência que o fez aproximar do modelo
austríaco, mas ainda não havia uma influência europeia expressiva a ponto de se afirmar que o Brasil adotava
um controle concentrado de constitucionalidade.
7
“[...] não era difícil contrapor dois modelos paradigmáticos de controle ‘jurisdicional’: o primeiro, o histórico
— aquele realizado nos Estados Unidos, sobretudo a partir do Marbury v. Madison -, com o outro, ao mesmo
tempo teórico e empírico: o Verfassungsgerichtsbarkeit, desenhado por Kelsen e em seguida introduzido na
Constituição Austríaca de 1920” (PEGORARO, Lucio. Op. cit.).
8
A criação da repercussão geral e da súmula vinculante representam grandes exemplos do hibridismo do
controle de constitucionalidade, notadamente na vertente abstrativização do controle concreto. O que se tem
são hipóteses evidentes de objetivação dos recursos extraordinários.
9
MARQUES, Cláudia Lima. Superação das antinomias pelo diálogo das fontes: o modelo brasileiro de
coexistência entre o código de defesa do consumidor e código civil de 2002. Revista da ESMESE, n. 07, 2004,
p. 15-54.

162 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 159-180, jul./set. 2014
Mutação constitucional do artigo 52, X, da Constituição Federal – A consagração do hibridismo no controle ...

No Brasil, essa tendência ao hibridismo assumiu a seguinte faceta: não


foram fundidos os dois sistemas para proporcionar a criação de um terceiro modelo
completamente diverso dos anteriores. Apenas se passou a permitir a intersecção
dos arquétipos existentes em hipóteses específicas. E, apesar desta pesquisa voltar
os olhos para a abstrativização do controle concreto, notadamente pondo em foco a
mutação constitucional do artigo 52, X, da CF, é de bom tom registrar que o fenômeno
inverso também se faz presente, qual seja, a concretização do controle abstrato.
Tanto é assim que vem sendo possibilitada a aplicação de institutos típicos do
controle concreto no controle abstrato.
Quanto à abstrativização, este fenômeno tem como seu principal viés a
objetivação dos recursos extraordinários, visto que o principal “veículo” do controle
concreto seria o recurso extraordinário. Classicamente, o controle concreto é
exteriorizado por intermédio de um processo subjetivo, não sendo aplicáveis institutos
e efeitos típicos do processo objetivo.
Aliás, verdade seja dita, a subjetivação do controle difuso contribuiu
expressivamente para que esta modalidade de controle figurasse, por um bom
tempo, como coadjuvante do controle abstrato. Sendo assim, a declaração de
inconstitucionalidade incidental passou a ser, pós-1988, uma espécie de declaração
menos importante, ainda que igualmente proferida pelo Supremo Tribunal Federal,
justamente por gerar efeitos somente entre as partes envolvidas no processo.
Esse foi o ponto que sempre promoveu um distanciamento do controle difuso
brasileiro do modelo norte-americano. Enquanto no Brasil a decisão proferida em sede
de controle concreto somente produzia efeitos não vinculantes, nos Estados Unidos,
prevalecia a regra do stare decisis,10 gerando-se uma obediência aos precedentes.
Assim, de acordo com o modelo pátrio, sempre se defendeu que, sendo a declaração
incidental acolhida como questão prejudicial, a decisão que define se determinada lei
é constitucional ou inconstitucional, não terá autoridade de coisa julgada e nem se
projetará, ainda que inter partes, fora do processo no qual foi proferida.11
Pedro Lenza destaca, nessa toada, que respeitável parte da doutrina e até
mesmo o Supremo Tribunal Federal vêm demonstrando que o sistema clássico e
dual de controle de constitucionalidade sofre, hoje, uma tendência à abstrativização,
rumando para uma suposta nova interpretação dos efeitos da declaração de
inconstitucionalidade no controle difuso.12 Reitere-se, dessa forma, que tal fato

10
Cappelletti conceitua stare decisis como sendo “a vinculação que uma decisão proferida por uma corte de
maior hierarquia gera nas cortes inferiores” (O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito
comparado. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris editor, 1984. p. 156).
11
BUZAID, Alfredo. Da ação direta de declaração de inconstitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo:
Saraiva, 1958. p. 23.
12
LENZA, Pedro. O senado federal é um “mero menino de recado”?. Artigo publicado na página pessoal de Pedro
Lenza. Disponível em: <http://pedrolenza.blogspot.com.br/2011/05/o-senado-federal-e-um-mero-menino-de.
html>. Acesso em: 09 ago. 2012.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 159-180, jul./set. 2014 163
Fabiana Marcello Gonçalves, Humberto Dalla Bernardina de Pinho

evidencia que os modelos até então enxergados como isolados (paralelos) vêm
sofrendo irritações recíprocas, o que demonstra uma verdadeira interpenetração
de paradigmas, caminhando, cada vez mais, em direção a um controle misto
propriamente dito.
Recentemente, o recrudescimento dessa hibridação entre os modelos de controle
de constitucionalidade, mais especificamente no que diz respeito à abstrativização do
controle concreto, ganhou espaço após o ajuizamento da Reclamação nº 4.335/AC.13
Com o encerramento do julgamento da referenciada Reclamação, o qual se deu
em 21.03.2014, após um acirrado embate junto à Corte Suprema, o que antes seria
uma mera expectativa de fortalecimento do sistema híbrido de controle (que traria
consigo, no presente caso, a consagração da tese da mutação constitucional) se
tornou uma realidade.
A título de esclarecimento, imperioso se torna destacar que toda a discussão
que vinha sendo travada na Reclamação nº 4.335 teve sua origem no julgamento do
Habeas Corpus nº 82.959, no qual o Supremo Tribunal Federal (por maioria), sob a
relatoria do ministro Marco Aurélio, declarou, incidenter tantum, a inconstitucionalidade
do §1º do artigo 2º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, norma esta que previa
a impossibilidade de progressão de regime em crimes hediondos.14
Considerando a não observância da decisão proferida no citado Habeas Corpus
por um juiz de direito da vara de execuções penais, que negou a progressão de regime
a condenados pela prática de crimes hediondos, foi ajuizada a Reclamação nº 4.335,
pela Defensoria Pública do Estado do Acre. A negativa de cumprimento à citada
decisão exarada pelo Supremo Tribunal Federal, de forma coerente, valeu-se do fato
de que o Plenário do STF havia declarado incidenter tantum a inconstitucionalidade do
§1º do artigo 2º da Lei nº 8.072, não havendo, portanto, que se falar em vinculação
dos juízes e tribunais pátrios.
Nessa mesma esteira caminhou o parecer da Procuradoria-Geral da República,
que opinou pelo não conhecimento do pedido formulado em virtude inexistir qualquer
decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal cuja autoridade devesse ser preservada.15

13
“A recente polêmica que vem sendo travada no Supremo Tribunal Federal a partir da Reclamação 4335-5/
AC, cujo relator é o Ministro Gilmar Mendes, não fará da decisão que vier a ser tomada, com certeza, apenas
mais um importante julgado. Mais que isso: ao final dos debates entre os Ministros daquela Corte, poder-se-á
chegar, de acordo com o rumo que a votação tem prometido até o momento, a uma nova concepção, não
somente do controle da constitucionalidade no Brasil, mas também de poder constituinte, de equilíbrio entre
os Poderes da República e de sistema federativo”. LIMA, Martonio; OLIVEIRA, Marcelo e STRECK, Lenio. A
nova perspectiva do Supremo Tribunal Federal sobre o controle difuso: mutação constitucional e limites da
legitimidade da jurisdição constitucional. Indagação extraída de artigo publicado na página pessoal de Lenio
Luiz Streck. Disponível em: <http://leniostreck.com.br/index.php?option=com_docman&Itemid=40>.
14
HC nº 82.959/SP, Relator: Ministro Marco Aurélio. Julgamento em: 08.09.2006. Inteiro teor disponível
em:<http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2110217>. Acesso em:
22 set. 2012.
15
Recl. nº 4.335/AC. Rel. Min. Gilmar Mendes. Julgado em: 08.09.2006. Disponível em: <http://www.stf.jus.
br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2381551>. Acesso em: 22 set. 2012.

164 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 159-180, jul./set. 2014
Mutação constitucional do artigo 52, X, da Constituição Federal – A consagração do hibridismo no controle ...

Se tomarmos como base argumentativa a clássica concepção de controle


de constitucionalidade, ou seja, se levarmos em consideração o paralelismo dos
modelos concreto e abstrato, tal decisão se evidenciaria escorreita. Isso porque,
historicamente, tais modelos, mesmo sendo faces da mesma moeda, tinham uma
sistemática própria reconhecida, sistemática esta que impedia a interpenetração
entre eles.
Sendo assim, não haveria que se cogitar a possibilidade de empregar a força
vinculante inerente às decisões proferidas nos processos objetivos de controle aos
processos subjetivos, salvo se houvesse a concordância do Senado Federal.
No que diz respeito à força vinculante, deve ser feita uma ressalva importante
muito bem destacada por Eduardo Talamini. De acordo com o autor, a força vinculante
assume uma relevância autônoma merecedora de reflexão específica apenas quando
oponível em face daqueles que são terceiros em relação ao processo. Isso porque,
entende Talamini, em regra, toda decisão seria vinculante no que tange às próprias
partes do processo16 E este seria um ponto de extrema relevância: considerando que,
quando se fala em efeito vinculante quer se fazer menção a algo que vai além das
partes, poderia uma decisão proferida em sede de controle concreto ser vinculante?
Dúvidas não existem a respeito da possibilidade de uma decisão proferida à luz
do controle concreto adquirir caráter vinculante. Ademais, a Constituição Federal é
eloquente ao afirmar isto, prevendo, em seu artigo 52, X, a possibilidade de suspensão,
pelo Senado Federal, da execução da lei declarada inconstitucional. Em breves linhas,
a suspensão da execução pelo Senado Federal do ato declarado inconstitucional
pela Excelsa Corte foi a forma definida pelo constituinte para emprestar eficácia erga
omnes e vinculante às decisões definitivas sobre inconstitucionalidade.17
Por outro lado, a tese da mutação constitucional do artigo 52, X, da Constituição
Federal, arduamente defendida pelo ministro Gilmar Mendes, evidencia que a questão
não é de tão simples resolução, fazendo emergir o seguinte debate: poderia o Supremo
Tribunal Federal, a fim de evitar entendimentos conflitantes e, em nome da eficácia
de seus julgados, conferir efeito vinculante às suas decisões sem a necessidade de
atender ao disposto no artigo 52, X, da Carta Maior?
Em linhas gerais, este foi o objeto da Reclamação nº 4.335, demanda que tem
gerado relevante controvérsia perante a comunidade jurídica, o que pode ser aferido

16
“A noção de força vinculante é intuída na prática processual e constitucional. Em seu sentido estrito, concerne
à imposição de que uma dada dicção judicial seja obrigatoriamente observada e aplicada por outros órgãos
estatais à generalidade das pessoas. Mas não existem formulações conceituais precisas acerca do fenômeno,
de modo a enquadrá-lo nas categoriais jurídicas atinentes às decisões judiciais” (TALAMINI, Eduardo. Novos
aspectos da jurisdição constitucional brasileira: repercussão geral, força vinculante, modulação dos efeitos do
controle de constitucionalidade e alargamento do objeto do controle direto. São Paulo: Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo, 2008. p. 85).
17
MENDES, Gilmar. O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade – um caso clássico de mutação
constitucional. Senado Federal. Disponível em: <http://www2.senado.gov.br/bdsf/bitstream/id/953/4/R162-12.pdf>.
Acesso em: 22 set. 2012.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 159-180, jul./set. 2014 165
Fabiana Marcello Gonçalves, Humberto Dalla Bernardina de Pinho

se notarmos que o julgamento encontra-se empatado, com votos dos ministros


Gilmar Mendes e Eros Grau apregoando uma mudança na realidade fática subjacente
à norma, o que respaldaria a chamada “mutação constitucional” do artigo 52, X, da
Constituição Federal, e, na direção oposta, votos dos ministros Joaquim Barbosa e
Sepúlveda Pertence, que defenderam a manutenção da interpretação tradicional do
artigo 52, X, pois a tese da mutação constitucional encontraria como limite o próprio
texto constitucional, que não pode ser relido de forma contrária à sua literalidade, sob
forma de se tornar uma mutação constitucional inconstitucional.18

2 O papel do Senado Federal no controle de


constitucionalidade difuso
Vimos que a abstrativização do controle difuso é um dos vieses do hibridismo
entre as categorias de controle, configurando uma consequência inarredável da
interpenetração entre os modelos concentrado e difuso de constitucionalidade.
Não bastassem todas as polêmicas que o fenômeno da hibridação, por si só,
traz consigo, a Reclamação nº 4.335, proposta pela Defensoria Pública do Estado
do Acre, fez emergir um novo alvo de insurgência, invocando a Suprema Corte
a se manifestar se haveria ou não a mutação constitucional do artigo 52, X, da
Constituição Federal.19 Para que seja viabilizada a investigação do tema exposto,
deve ser realizado, antes de tudo, um breve panorama histórico do papel do Senado
no controle de constitucionalidade difuso brasileiro.
A competência do Senado Federal, no que diz respeito à suspensão das leis
declaradas inconstitucionais, foi prevista pela primeira vez na Constituição brasileira
de 1934. Sem dúvidas, a criação desta competência foi capaz de gerar alguns
embaraços que perduram até os dias de hoje, visto que, de acordo com a mais
abalizada doutrina, a aparente originalidade da fórmula dificultou o seu enquadramento
dogmático, fazendo com que se passasse a discutir sobre os efeitos e a natureza
da resolução do Senado Federal que declarasse suspensa a execução da lei ou ato
normativo. Também passou a se questionar sobre o caráter vinculado ou discricionário
do ato praticado pelo Senado e sobre a abrangência das leis estaduais e municipais,
dentre outras dificuldades.20
Apesar das incontáveis adversidades, o questionamento inicial que deve
ser realizado quando passamos a nos deparar com essa nova atribuição de

18
Recl. 4.335/AC. Op. cit.
19
Além da previsão no artigo 52, X, o art. 178 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, embora com
remissão à Constituição de 1967, a seguinte disposição: “Declarada incidentalmente a inconstitucionalidade,
na forma prevista nos arts. 176 e 177, far-se-á a comunicação, logo após a decisão, à autoridade ou órgão
interessado, bem como, depois de trânsito em julgado, ao Senado Federal para os efeitos do art. 42, VII,
da Constituição”.
20
MENDES, Gilmar. Op. cit.

166 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 159-180, jul./set. 2014
Mutação constitucional do artigo 52, X, da Constituição Federal – A consagração do hibridismo no controle ...

competência ao Senado seria: o que fundamentou a mudança implementada


em 1934?
Primeiramente, é bastante nítido que, ao trazer a reboque a competência do
Senado Federal, no sentido de suspender a eficácia de norma declarada inconstitucional
no controle difuso, o Constituinte Originário veio a corrigir um verdadeiro problema de
enquadramento que existia desde 1891, passando a prever expressamente que:

Art. 91. Compete ao Senado Federal: [...]


IV - suspender a execução, no todo ou em parte, de qualquer lei
ou ato, deliberação ou regulamento, quando hajam sido declarados
inconstitucionais pelo Poder Judiciário;21

Explique-se: durante algum tempo, o controle difuso figurou isolado no cenário


de controle brasileiro, haja vista que o controle concentrado somente entrou em cena
após a emenda constitucional nº 16/65. E isso gerou um considerável problema,
pois as decisões que eram proferidas no controle difuso não gozavam de efeito
vinculante, diferentemente do que ocorria nos Estados Unidos, onde a força vinculante
sempre foi inerente aos precedentes.22 Por isso é possível se falar em “problema de
enquadramento”, sendo certo que, quando adotamos a moldura norte-americana, não
nos demos conta de que a nossa realidade fática não se enquadrava com perfeição,
o que gerava algumas incompatibilidades de ordem prática.
Como aqui não vigorava a regra do stare decisis, a tarefa do controle de
constitucionalidade se tornara muito árdua, porquanto o Poder Judiciário somente
decidia caso a caso. E esse problema de enquadramento viria a ser “resolvido” com
a possibilidade de suspensão de execução pelo Senado, propiciando a extensão dos
efeitos dos julgados.23
Além disso, cumpre enfatizar que a expressão “suspender a execução” sempre
gerou e até hoje gera alguma divergência doutrinária, destacando parte da doutrina
que o Constituinte não foi feliz na escolha da expressão. Nada obstante, o que é
relevante in casu é que, conferir ao Senado competência para suspender a execução

21
BRASIL. Constituição brasileira de 1934. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
constitui%C3%A7ao34.htm>. Acesso em: 15 set. 2012.
22
Barbosa Moreira menciona que, nos EUA, a Suprema Corte somente declara a inconstitucionalidade mediante
a análise de hipóteses concretas, sendo que os precedentes gozam de força vinculante. Por esse motivo, a
compatibilidade ou incompatibilidade entre a lei e a Constituição nunca representam objeto do julgamento,
constituindo apenas uma etapa prévia e lógica para que se decida o caso concreto. MOREIRA, José Carlos
Barbosa. A suprema corte americana: um modelo para o mundo?. Revista Brasileira de Direito Comparado, Rio
de Janeiro, v. 26, 2003, p. 38.
23
Lenio Streck, sobre o tema, confirma que a atribuição ao Senado Federal veio a corrigir esse encaixe mal feito
do controle difuso na realidade brasileira. Isso gerava uma deficiência decorrente da utilização do controle
difuso de constitucionalidade americano em uma realidade na qual não existia a ideia de eficácia erga
omnes das decisões judiciais, importante vetor do controle difuso. STRECK, Lenio. Jurisdição constitucional e
hermenêutica: uma nova crítica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 345.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 159-180, jul./set. 2014 167
Fabiana Marcello Gonçalves, Humberto Dalla Bernardina de Pinho

das normas declaradas inconstitucionais pelo Judiciário, corrige um defeito histórico


do nosso controle de constitucionalidade, passando-se a prever a possibilidade
de as declarações de inconstitucionalidade proferidas pelo judiciário se tornarem
vinculantes, o que evitaria a tomada de decisões antagônicas. O Senado passara,
assim, a assumir a importante tarefa de preservar a segurança jurídica. Mas porque
o próprio Poder Judiciário, através da Corte Suprema, não seria hábil a realizar
essa tarefa?
No contexto de surgimento da norma, existia uma visão mais ortodoxa da
separação de poderes. Por esse motivo, conceder tal competência ao Supremo
Tribunal representaria uma verdadeira usurpação de competência inegavelmente
legislativa, pois, conceder efeitos vinculantes a uma decisão de inconstitucionalidade
equivaleria a revogar uma norma, função esta que somente caberia ao legislativo.
Superada essa visão retrógrada da separação de poderes, a justificativa para a
atuação do Senado passou a ser diversa.
Atualmente, a resposta a esta indagação não poderia ser outra: democracia.
Nesse interregno, Lenio Streck24 põe em foco que o modelo de participação
democrática no controle difuso também se dá, de forma indireta, pela atribuição
constitucional deixada ao Senado Federal.25 O papel do Senado, dessa maneira, surge
para evitar decisões conflitantes dentro do poder judiciário, de maneira a aproximar
o modelo brasileiro do stare decisis norte-americano, mas, posteriormente, passa a
ser um importante instrumento garantidor da efetiva participação popular, de modo a
legitimar as decisões do Poder Judiciário.
Saliente-se que este processo de legitimação das decisões, hoje, vem sendo
cada vez mais prestigiado junto ao Supremo Tribunal Federal, podendo ser aferido
com maior vigor nas decisões tomadas em controle concentrado, fundamentalmente
após a criação e o recrudescimento da figura do amicus curiae.26
Da mesma forma, o controle difuso necessita dessa democratização, e, nos
parece que o Senado Federal exerce papel fulcral, constituindo verdadeiro garantidor
da participação popular na tomada de decisões, ainda que de forma indireta.
Sobre o instituto do amicus curiae como forma de legitimação das decisões,
Cássio Scarpinela Bueno, com muita propriedade, justifica a sua existência sob o

24
Afinal, cabe ao Supremo Tribunal Federal “corrigir” a Constituição? In: LIMA, Martonio; OLIVEIRA, Marcelo e
STRECK, Lenio. A nova perspectiva do Supremo Tribunal Federal sobre o controle difuso: mutação constitucional
e limites da legitimidade da jurisdição constitucional. Indagação extraída de artigo publicado na página pessoal
de Lenio Luiz Streck. Disponível em: <http://leniostreck.com.br/index.php?option=com_docman&Itemid=40>.
Acesso em: 09 ago. 2012.
25
STRECK, Lenio. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Op. cit.
26
Sobre o instituto do amicus curiae, Fredie Didier destaca se tratar de verdadeiro auxiliar do juízo que tem por
objetivo o aprimoramento das decisões proferidas pelo Poder Judiciário. DIDIER JR, Fredie. Possibilidade de
sustentação oral do amicus curiae. In: Revista Dialética de Direito Processual. São Paulo: Dialética, v. 8, 2003.
p. 34.

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Mutação constitucional do artigo 52, X, da Constituição Federal – A consagração do hibridismo no controle ...

fundamento de que, diante da possibilidade de serem gerados efeitos erga omnes


e efeitos vinculantes, não haveria como se afastar a possibilidade de entidades
de classe ou outros órgãos representativos de segmentos sociais pleitearem seu
ingresso na qualidade de amicus curiae, o que se fundamentaria não somente na
legislação infraconstitucional, mas, superiormente, na ordem constitucional.27
Por iguais razões, repise-se, se justificaria a intervenção do Senado no controle
difuso, devendo ser exigido o seu “aval” (indiretamente, seria uma anuência popular)
para a concessão de efeitos vinculantes.28 Em síntese, com as devidas adaptações,
o papel do Senado no controle difuso teria a mesma finalidade do amicus curiae no
controle concentrado: a democratização do processo decisório.
Essa democratização do controle de constitucionalidade, especialmente no
controle concentrado, que, no Brasil, é exercido pelo Supremo Tribunal Federal deita
raízes no controle de constitucionalidade difuso norte-americano (caso Muller vs.
Oregon), o que, mais uma vez, denota essa tendência ao hibridismo, tendo em vista
que o amicus curiae é instituto que surge no seio do controle difuso e é amplamente
utilizado no controle concentrado brasileiro, criando uma verdadeira arena de debates
capaz de viabilizar a confluência das opiniões de diversas classes.
Por falar em arena de debates, tem-se, ainda, a realização de audiências
públicas, que vem sendo cada vez mais presente na realidade brasileira. Gilmar
Mendes, ferrenho defensor da redução do papel do Senado previsto no artigo 52, X,
da Constituição Federal, curiosamente, reconhece a existência e a necessidade de
aperfeiçoamento dos mecanismos de abertura do processo constitucional, de forma
a tornar a Jurisdição Constitucional no Brasil cada vez mais aberta à interferência de
uma pluralidade de sujeitos, argumentos e visões no processo constitucional.29
Com o controle difuso não poderia ser diferente, não devendo tal modalidade ficar
imune ao exercício da democracia, sendo o Senado Federal um ator importantíssimo
no cumprimento desse desiderato, não se configurando, portanto, como um “mero
menino de recado”.30 Compartilhando da opinião de que, ao Senado, não cabe tão só
a tarefa de promulgador das decisões do Supremo Tribunal Federal,31 Streck enfatiza:

Mas o modelo de participação democrática no controle difuso também se


dá, de forma indireta, pela atribuição constitucional deixada ao Senado

27
BUENO, Cássio Scarpinella. Amicus Curiae no processo civil brasileiro. Um terceiro enigmático. São Paulo:
Saraiva, 2006. p. 179.
28
Ver: VELOSO, Zeno. Controle jurisdicional de constitucionalidade. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 41.
29
MENDES, Gilmar. A influência do pensamento de Peter Häberle no STF. Conjur. Disponível em: <http://www.
conjur.com.br/2009-abr-10/pensamento-peter-haberle-jurisprudencia-supremo-tribunal-federal>. Acesso em:
22 set. 2012.
30
LENZA, Pedro. Op. cit.
31
“A declaração de inconstitucionalidade, só por ela, não tem a virtude de produzir o desaparecimento da
lei ou ato, não o apaga, eis que fica a produzir efeitos fora da relação processual em que se proferiu a
decisão” (BRASIL. Congresso, Senado Federal. Parecer n. 154, de 1971, Rel. Senador Accioly Filho, Revista
de Informação Legislativa, 12(48):266-8).

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 159-180, jul./set. 2014 169
Fabiana Marcello Gonçalves, Humberto Dalla Bernardina de Pinho

Federal. Excluir a competência do Senado Federal — ou conferir-lhe


apenas um caráter de tornar público o entendimento do Supremo
Tribunal Federal — significa reduzir as atribuições do Senado Federal
à de uma secretaria de divulgação intra-legistativa das decisões do
Supremo Tribunal Federal; significa, por fim, retirar do processo de
controle difuso qualquer possibilidade de chancela dos representantes
do povo deste referido processo, o que não parece ser sequer sugerido
pela Constituição da República de 1988.32

Em direção diametralmente oposta, aqueles que militam em defesa da mutação


constitucional do artigo 52, X, da Constituição Federal, conferindo ao Senado um
mero papel de publicizador das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal,
apregoam que não há motivo que respalde a criação de óbices à concessão de efeitos
vinculantes às decisões proferidas em controle difuso.
Ora, se o STF poderia conceder efeitos vinculantes no controle concentrado,
inclusive liminarmente, a exigência da atuação do Senado no controle difuso seria
desprovida de qualquer fundamento razoável. Noutras palavras, para os defensores
da redução da competência do Senado, o artigo 52, X constituiria norma que não deve
ser aplicada com rigor literal, devendo ser permitido um ajustamento às variações da
realidade circunstancial.
Na Reclamação nº 4.335, o Ministro Gilmar Mendes defendeu que a única
resposta plausível capaz de fazer com que subsista o entendimento de que cabe
ao Senado realizar a suspensão da norma declarada inconstitucional pelo Supremo
Tribunal Federal assenta-se hoje em razão de índole exclusivamente histórica,33 o
que, com todas as vênias, não procede, justamente por conta do inafastável conteúdo
democrático que a atuação do Senado traz consigo.
A propósito, esse caráter democrático seria a verdadeira base de sustentação
da competência do Senado insculpida no artigo 52, X, da Constituição vigente. Se,
historicamente, a competência do Senado surge como uma solução conveniente
para problemas jurisdicionais decorrentes da limitação dos efeitos da declaração de
inconstitucionalidade, hoje, essa justificativa deixa a desejar. Em vista disso, afirmar
que essa competência do Senado constitui mero resquício histórico não leva em
conta a conjuntura atual, na qual se privilegia cada vez mais a participação popular
nos processos decisórios julgados pela Corte Suprema.
A prova maior de que esta prerrogativa do Senado, no sentido de dotar de força
vinculante as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal (em controle difuso), vem
ao encontro do ideário da democracia é a constatação de que a única Constituição
brasileira que, após 1934, deixou de prever tal mecanismo, foi a Constituição de

STRECK, Lenio. Op. cit.


32

Recl. nº 4.335/AC. Op. cit.


33

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Mutação constitucional do artigo 52, X, da Constituição Federal – A consagração do hibridismo no controle ...

1937, Carta Constitucional de caráter fortemente autoritário (Constituição Polaca), na


qual o legislativo praticamente deixou de existir, contendo as disposições transitórias
da Constituição de 1937 uma regra que autorizava a sua dissolução:34

Art. 178. São dissolvidos nesta data a Câmara dos Deputados, o


Senado Federal, as Assembleias Legislativas dos Estados e as Câmaras
Municipais. As eleições ao Parlamento nacional serão marcadas pelo
Presidente da República, depois de realizado o plebiscito a que se refere
o art. 187.

A despeito do artigo 96 da Constituição de 1937 ressaltar que, no caso de ser


declarada a inconstitucionalidade pelo judiciário, poderia o Presidente da República
submetê-la novamente ao exame do Parlamento, a mencionada norma não surtia
qualquer efeito em um cenário no qual o legislativo se encontrava dissolvido, vigorando
a regra prevista no artigo 180 da Constituição de 1937, sublinhando que o Presidente
da República teria o poder de expedir decretos-leis sobre todas as matérias da
competência legislativa da União enquanto não reunido o Parlamento nacional.
Sobreleve-se que é normal que uma Constituição de caráter marcadamente
autoritário, como era a Constituição de 1937, prive a participação democrática,
retirando do Senado a possibilidade de dotar as decisões proferidas no controle
difuso, pelo Tribunal Supremo, de efeito vinculante.35 Mas, não há como se entender
a defesa desse posicionamento em plena vigência de um Estado Democrático
de Direito, no qual o seu conteúdo, dentre outros, seja agir como fomentador da
participação pública no processo de construção e reconstrução de um projeto de uma
nova sociedade,36 fazendo cair por terra o juízo de Eros Grau, exarado em seu voto
proferido na Reclamação nº 4.335, que preconiza que o texto original transmudou-se,
devendo ser interpretado da seguinte forma: “compete privativamente ao Senado
Federal dar publicidade à suspensão da execução, operada pelo Supremo Tribunal
Federal, de lei declarada inconstitucional, no todo ou em parte, por decisão definitiva
do Supremo”.37
Deixar de reconhecer que a suspensão da eficácia das leis declaradas
inconstitucionais pelo STF em controle difuso é tarefa do Senado geraria, mais
gravemente, uma ofensa à democracia, indo de encontro à essência do Estado

34
BRASIL. Constituição brasileira de 1937. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
constitui%C3%A7ao37.htm>. Acesso em: 15 set. 2012.
35
Clóvis do Couto e Silva, já sob a égide da Constituição de 1946 destacava que, para que a lei deixasse de
existir, seria necessário que o Senado suspendesse a sua execução. Tal assertiva continua atual à luz da
Constituição Federal de 1988 e resume bem a função do Senado, que não seria a de mero publicizador.
COUTO E SILVA, Clóvis do. Fontes e ideologia do Princípio da Supremacia da Constituição. Revista Jurídica,
1959, p. 65.
36
STRECK, Lenio. Ciência política e teoria do Estado. 3. ed. Porto Alegre: 2012. p. 98.
37
Recl. 4.335/AC, já referida.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 159-180, jul./set. 2014 171
Fabiana Marcello Gonçalves, Humberto Dalla Bernardina de Pinho

Democrático de Direito, permitindo-se a usurpação de uma importante competência


do Senado, que, nas palavras de Paulo Brossard, é o juiz exclusivo desta tarefa.38

3 A adaptabilidade da Constituição Federal e os perigos


da tese da mutação constitucional
Quando se fala em mutação constitucional, seja da norma contida no artigo 52,
X, ou de qualquer outra norma constitucional, não se pode deixar de pensar na
natureza cambiante da Constituição Federal. A normatividade constitucional nada
mais é do que uma ordem histórico-concreta,39 devendo a Carta Maior, até mesmo
por razões de estabilidade, estar umbilicalmente ligada à realidade na qual se insere.
Isso faz com que a rigidez dos textos dê lugar a uma flexibilidade de interpretações,
viabilizando a transmudação das normas sem que seja necessário modificar o texto,
desde que haja substancial alteração da realidade fática que serviu de respaldo
para consolidação do entendimento anteriormente adotado. Essa é a grande virtude
da tese da mutação constitucional: ela viabiliza um informal rejuvenescimento das
Constituições, mantendo-as atualizadas às futuras gerações, propagando perante a
sociedade um sentimento de pertencimento, o que fomenta a tradição constitucional.
Não se pode olvidar que essa solução de continuidade promovida pela tese da
mutação é sempre uma opção acertada para que se incentive aquilo que Habermas
chama de patriotismo constitucional.40 E a própria textura aberta das normas
constitucionais faz com que elas se tornem algo maior do que um instrumento de
criação de direitos, passando a ser enunciadoras de valores já existentes em uma
mesma comunidade.
Essa flexibilidade de interpretações, que variam em conjunto com as alterações
na realidade, faz com que o Supremo Tribunal Federal sinta a necessidade de se
aproximar cada vez mais dos anseios populares, não existindo ninguém mais indicado
do que o povo para refletir as mudanças fáticas ocorridas. Por isso, cada vez mais
as Constituições brasileiras se aproximam daquilo que Loewenstein chamaria de
Constituição normativa, havendo uma fusão cada vez mais evidente entre Constituição
e sociedade.41

38
“O Senado Federal é o juiz exclusivo do momento em que convém exercer a competência, a ele e só a ele
atribuída, de suspender a lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”.
BROSSARD, Paulo. O Senado e as leis inconstitucionais. Revista Informação Legislativa, v. 13, n. 50, 1976,
p. 55
39
HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. 20. ed. (tradução).
Porto Alegre: Sérgio Fabris editor, 1998. p.25.
40
A ideia de patriotismo constitucional pode ser entendida melhor na obra de Habermas. HABERMAS, Jürgen.
Ciudadanía e identidad nacional. In: Facticidad y validez. Sobre el derecho y el estado democrático derecho em
términos de teoría del discurso. 3. ed. Tradução de Manuel Jimenez Redondo. Madrid: Trotta, 2001.
41
LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la constitución. Traduzida para o espanhol por Alfredo Gallego Anabitarte.
Barcelona: Ariel, 1964. p. 216.

172 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 159-180, jul./set. 2014
Mutação constitucional do artigo 52, X, da Constituição Federal – A consagração do hibridismo no controle ...

Tendo em vista a necessidade de termos uma Constituição cada vez mais


integrada à realidade, a ordem do dia seria manter a Constituição em seu nível
máximo de efetividade. Para viabilizar essa comunicação entre Constituição e
realidade, Gilmar Mendes lança mão da doutrina de Peter Häberle, defendendo a
necessidade de que os instrumentos de informação dos juízes constitucionais sejam
ampliados, especialmente no que se refere às audiências públicas e às “intervenções
de eventuais interessados”, assegurando-se novas formas de participação das
potências públicas pluralistas como intérpretes em sentido amplo da Constituição.42
Em contrapartida, essa flexibilização constitucional não pode atentar contra a
democracia, devendo a mutação constitucional se limitar a ampliar o significado e o
alcance do texto constitucional sem que a norma seja vilipendiada em sua essência.
Esta afirmação faz com que a possibilidade de serem promovidas alterações
informais na Constituição seja passível de algumas críticas contundentes, sendo
a mais relevante delas a possibilidade de a “adaptação” promovida proporcionar,
equivocadamente, a substituição da real vontade do titular do poder constituinte
originário pela vontade do Poder Judiciário.43
Especificamente em relação ao artigo 52, X, da Constituição Federal, e à
Reclamação nº 4.335, nos parece que essa mudança de realidade da Constituição
Federal de 1988 não seria tão evidente a ponto de ensejar a mudança de
interpretação da norma constitucional em comento. É claro que, se compararmos a
realidade atual com a de 1934, veremos diferenças abismais, em especial no que
se refere à atuação do Supremo Tribunal Federal no controle de constitucionalidade,
sendo certo que, na conjuntura vigente nos anos 30, como já foi ressaltado,
conferir à Corte Constitucional a tarefa de tornar vinculantes as decisões de
inconstitucionalidade exaradas via controle difuso representaria verdadeira usurpação
de competência legislativa.
Hoje, diante da existência do controle concentrado, por uma questão de lógica,
não se pode mais falar em violação à separação de poderes, pois, se poderia o STF
declarar a inconstitucionalidade via processo objetivo, com efeitos vinculantes, por
iguais razões, seria possível a declaração com efeitos vinculantes via controle difuso.
Parece-nos, portanto, que o óbice não reside no princípio da separação de poderes, mas
sim, no fundamento democrático, consoante esposado oportunamente. Outrossim,
sendo a competência do Senado uma concretização do princípio democrático, será que
a realidade fática subjacente imporia a eliminação desse instrumento tão importante
de participação democrática?
Ao respondermos tal indagação, devemos atentar para o fato de que a mutação
constitucional representa uma mudança interior da norma constitucional, sendo

MENDES, Gilmar. Op. cit.


42

STRECK, Lenio. Op. cit.


43

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 159-180, jul./set. 2014 173
Fabiana Marcello Gonçalves, Humberto Dalla Bernardina de Pinho

visível sempre que a compreensão lógica da norma não coincidir com o seu texto.
O objetivo nodal da tese da mutação constitucional seria promover a readequação
entre a norma e a nova realidade fática vigente, o que não se encontraria presente na
hipótese do artigo 52, X.
Não nos parece razoável que, à luz de uma Constituição democrática como a
de 1988, seja promovido o afastamento de uma norma constitucional que abre as
portas para a participação democrática indireta, sob o fundamento de que a mesma
não mais seria condizente com a realidade fática atual.
Ainda, afirmou o ministro Joaquim Barbosa, em voto proferido no bojo da
Reclamação nº 4.335, que a mutação constitucional deveria consagrar uma mudança
no sentido na norma, alteração esta que encontraria limites na literalidade.44 Não
caberia ao Supremo, a pretexto da mutação constitucional e sem qualquer efetiva
modificação fática da realidade, alterar aquilo que o titular do Poder Constituinte
Originário efetivamente quis, sendo inadmissível que Supremo Tribunal Federal
possa, de forma discricionária, efetivar a mutação constitucional.45
Até porque, diante de toda a mudança de cenário ocorrida entre 1934 e 1988,
parece-nos que, se a vontade do titular do Poder Constituinte fosse tornar o Senado
um mero publicizador da vontade do Supremo Tribunal, ele assim teria feito.
Com o advento da Carta de 1988 e com o fortalecimento cada vez mais patente
da onda democrática, tendência esta que se reflete inegavelmente no controle difuso,
parece caminhar na contramão da história a defesa de mutação constitucional do
artigo 52, X da Constituição.
Se não bastassem os riscos que a discricionariedade da tese, por si só, geram,
ainda se estaria admitindo que o princípio democrático fosse ferido, com base no
duvidoso argumento da mudança na realidade fática subjacente à norma. Por todos
os motivos até aqui expostos, a possível mutação constitucional do artigo 52, X da
Carta Republicana deve servir de alerta para todos nós.
Isso porque, quando se defende a possibilidade de modificação informal da
Constituição com base em uma alteração da realidade fática, devem estar muito bem
delineados os cenários a serem observados: o preceito constitucional e a realidade.
Somente nos casos em que a realidade for gritantemente mais ampla do que a norma
constitucional é que deve ser admitida a adaptação do preceito constitucional. Mas
veja: trata-se de adaptar o preceito constitucional à realidade fática e não à vontade
discricionária do Supremo.46

44
Recl. nº 4.335/AC, já citada.
45
“Se o Supremo Tribunal Federal pode fazer mutação constitucional, em breve essa “mutação” começará a
gerar — como se já não existissem à saciedade — os mais diversos frutos de cariz discricionário (portanto,
positivista, no sentido em que Dworkin critica as teses de Hart)” (STRECK, Lenio. Op. cit.).
46
Raul Machado Horta promove essa distinção entre realidade fática e norma constitucional (HORTA, Raul
Machado. Direito constitucional. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 104).

174 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 159-180, jul./set. 2014
Mutação constitucional do artigo 52, X, da Constituição Federal – A consagração do hibridismo no controle ...

Exatamente pelas razões acima expostas, em oposição ao entendimento do


Ministro Carlos Ayres Brito (no sentido de que a emenda constitucional deve ser
a última alternativa em um processo de reforma constitucional)47 e em nome da
presunção de validade das normas constitucionais, entendemos que a mutação
constitucional deve figurar como última ratio, posto que, por ser desprovida de
maiores formalidades, a mutação constitucional acaba por fazer com que o processo
de alteração constitucional fique à mercê, apenas, do Supremo.
Como alternativa, Lenza sustenta a possibilidade de se conseguir o objetivo
pretendido mediante a edição de súmula vinculante, o que, em seu entender, seria
muito mais legítimo e eficaz, além de respeitar a segurança jurídica, evitando o
casuísmo. Lembra o autor que a súmula vinculante, para ser editada, deve preencher
os requisitos do art. 103-A, como a exigência de reiteradas decisões sobre a matéria
constitucional controvertida.48 Não há como se saber, ao certo, se a solução adotada
por Lenza seria suficiente para evitar a discricionariedade irrefreada.
O problema todo que se coloca nesse cenário de discricionariedade, portanto,
é que, se interpretar realmente constitui ato de vontade, conforme outrora afirmara
o ministro Marco Aurélio,49 a sociedade não tem como saber quais são os limites da
atividade interpretativa dos juízes.
Ora, se a interpretação é discricionária, não se sabe se há uma preocupação
primária do Poder Judiciário, especialmente do STF, em coadunar as decisões
proferidas com a Constituição Federal ou se a preocupação, por distorção,
seria em adaptar a Constituição à linha de pensamento predominante na
Corte Constitucional.

4 Conclusão – Seria inconstitucional a mutação do


artigo 52, X, da Constituição Federal?
Asseguramos, assim, que a mutação constitucional se coloca como instrumento
legítimo, embora deva ser utilizado com prudência e sem perder de vista o real
elemento propulsor das mudanças informais na Constituição Federal: a mudança da
realidade fática. Isso não significa dizer que a Corte Constitucional deva estar aberta
sem limites aos novos valores albergados pela sociedade. Mas, muito pelo contrário:
não basta a mudança casuística de vontades sociais, devendo se fazer presente uma
real, profunda e enraizada alteração fática subjacente à norma.

47
BRITTO, Carlos Ayres. O regime jurídico das emendas à Constituição. São Paulo, 1999. PUC. Tese de Doutorado.
48
LENZA, Pedro. Op. cit.
49
“É claro que haverá sempre dúvidas porque a lei é morta. Quem vivifica a lei é o intérprete e o ato de interpretar
é, acima de tudo, um ato de vontade que pode acontecer de formas diferentes”. (Disponível em: <http://www.
terra.com.br/revistadinheirorural/edicoes/61/artigo156948-2.htm#>. Acesso: 24 nov. 2011).

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 159-180, jul./set. 2014 175
Fabiana Marcello Gonçalves, Humberto Dalla Bernardina de Pinho

Nesse sentido, parece-nos bastante adequado auscultar a vontade popular,


utilizando-se as ferramentas disponíveis, tais como as audiências públicas e a
contribuição do amicus curiae.
Presentes os requisitos do art. 103-A da Carta de 1988, regulamentado pela
Lei nº 11.417/2006, deverá ser editada súmula vinculante, a fim de objetivar
aquela norma.
Ademais, deve-se restringir esta possibilidade às decisões emanadas pelo
Plenário e desconsiderar os aspectos práticos do caso, agindo-se como se estivesse
diante de um processo objetivo.
Nesse sentido, Teori Albino Zavascki manifesta o seu apoio à possibilidade de
ser conferido efeito vinculante independentemente do “aval” do Senado, destacando
que o STF não é mero órgão consultivo.50
Ainda assim, não teremos superado o problema metodológico apontado por
Lenio Streck: como se interpreta, como se aplica e se é possível alcançar condições
interpretativas capazes de garantir uma resposta correta (constitucionalmente
adequada) diante da indeterminabilidade do direito e da crise de efetividade
da Constituição.51
No que concerne a esses limites, Uadi Lâmmego Bulos acredita na
impossibilidade de serem fixadas limitações exatas às quais estaria sujeito o
poder constituinte difuso.52 A dificuldade na estipulação de parâmetros para o
reconhecimento da mutação de uma dada norma, sem dúvidas, constitui um grande
desafio a ser enfrentado pelos juristas e ainda dará azo a alguns passos errados a
serem dados do STF.
Porém, antes mesmo de serem estabelecidos os exatos parâmetros, o marco
zero pode e deve ser estabelecido e, quanto a este, não pairam quaisquer dúvidas: a
mutação deve ser excepcional, incidindo em casos nos quais, inegavelmente, a nova
realidade imponha uma nova interpretação.
Por isso, não se pode encarar a alteração informal da Constituição como uma
ferramenta de adequação entre a norma e aquilo que o STF entende que precisa
ser mudado, devendo, antes de qualquer coisa, ser um caminho mais curto para
conectar a norma constitucional às realidades de um período histórico. Ao cumprir

50
ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2001. p. 54.
51
Nesse sentido, Lenio Streck ainda afirma que “a resposta exsurgirá de uma opção paradigmática: fundamentar/
justificar discursos ou compreender (fenomenologicamente) Enfim, a escolhe entre consenso e verdade e
todas as consequências daí exsurgentes. [...] Diante dessa verdadeira revolução copernicana que atravessou
o direito a partir do segundo pós-guerra, as diversas teorias jusfilosóficas tinham (e ainda têm) como objetivo
primordial buscar respostas para a seguinte pergunta: como construir um discurso capaz de dar conta de tais
perplexidades, sem cair em decisionismos e discricionariedades do intérprete (especialmente dos juízes)?”
(STRECK, Lenio. Hermenêutica e applicatio jurídica: a concreta realização normativa do direito como superação
da interpretação jurídico-metafísico-objetificante. Coimbra: Coimbra Ed., 2008. p. 1103-1153).
52
BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 87.

176 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 159-180, jul./set. 2014
Mutação constitucional do artigo 52, X, da Constituição Federal – A consagração do hibridismo no controle ...

esse desiderato, a mutação constitucional não somente se faz necessária, mas,


também, imprescindível à própria sobrevivência da Constituição.
Por fim, questão de relevo a qual devemos nos debruçar, ainda que de forma
sucinta, diz respeito à decisão da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal (Reclamação
nº 11.477),53 noticiada no Informativo nº 668, no sentido de rejeitar a chamada
transcendência dos motivos determinantes, teoria que se afigura como peça
fundamental de suporte para se conferir efeito vinculante às decisões proferidas em
controle difuso independentemente do crivo do Senado.
Por transcendência dos motivos determinantes, entende-se que não apenas a
parte dispositiva do julgado, mas também os próprios fundamentos que embasam
uma decisão, são dotados de eficácia vinculante.54 Deixa-se, portanto, de reconhecer
que somente o dispositivo seria capaz de gerar vinculação, alcançando os motivos
que fomentaram a decisão (ratio decidendi). Nessa esteira, o artigo 102, parágrafo 2º,
da Carta Maior, assim dispõe:

As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal


Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações
declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e
efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e
à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual
e municipal.

Ao falar em efeito vinculante, a norma supracitada abre ensejo para a seguinte


discussão: o efeito vinculante se restringe ao dispositivo ou seria capaz de alcançar
a ratio decidendi? Observe-se, aprioristicamente, que a norma constitucional acima
transcrita faz referência ao processo objetivo (controle concentrado). No caso, ainda
que reconheçamos a impossibilidade de ser concedida vinculatividade quanto aos
fundamentos, a sujeição obrigatória quanto à questão constitucional decidida seria
preservada, já que a mesma se faz presente na parte dispositiva da sentença.

53
A 1ª Turma do STF, na Reclamação nº 11.477, de forma unânime, fixou o entendimento de que somente
o dispositivo da decisão produz efeito vinculante, efeito este que não incidiria sobre a fundamentação da
decisão. Na presente hipótese, a Constituição do Ceará continha norma idêntica à Constituição do Tocantins,
que, previamente, teve o seu dispositivo declarado inconstitucional. O Ministro Marco Aurélio, em seu
voto conducente, assim decidiu: “Descabe emprestar a essa via excepcional os contornos de incidente de
uniformização de jurisprudência. A reclamação pressupõe a usurpação de competência do Supremo ou o
desrespeito a decisão por ele proferida, o que não ocorre na espécie. Conforme apontado na própria inicial, em
situação regida por leis do Estado do Ceará, tem-se como olvidados acórdãos deste Tribunal que implicaram
a declaração de inconstitucionalidade de normas dos Estados do Tocantins, Pernambuco e Mato Grosso. Em
síntese, está baseada a reclamação na transcendência dos motivos determinantes dos atos formalizados
e não na inobservância dos dispositivos deles constantes”. Recl. nº 11.477/CE. Rel. Min. Marco Aurélio.
Julgado em: 29.05.2012. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.
asp?incidente=4051797>. Acesso em: 22 set. 2012.
54
BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva,
2007. p. 184.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 159-180, jul./set. 2014 177
Fabiana Marcello Gonçalves, Humberto Dalla Bernardina de Pinho

Em sentido reverso, na hipótese de se excluir o papel do Senado Federal previsto


no artigo 52, X, da Constituição Federal, para que a decisão proferida pelo STF viesse
a gerar efeitos práticos, tornar-se-ia impreterível a adoção da transcendência dos
motivos determinantes, porquanto a questão constitucional, nesse caso, é decidida
incidenter tantum, não constando na parte dispositiva da sentença, mas sim,
na fundamentação.
Como visto, parece que a complexidade das relações contemporâneas vem
desafiando os institutos tradicionais dos direitos constitucional e exigem, cada vez
mais, de nosso Tribunal Maior, um grau mais profundo de amadurecimento desses
institutos, de forma a extrair o máximo de efetividade dos mesmos.
Paralelamente a isso, novas ferramentas foram inseridas e estão ao alcance
do Pretório Excelso. Quer nos parecer que temos que levar esses elementos em
consideração a fim de viabilizar a aplicação segura, equânime e efetiva da mutação
constitucional em determinados casos.

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DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

178 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 159-180, jul./set. 2014
Mutação constitucional do artigo 52, X, da Constituição Federal – A consagração do hibridismo no controle ...

GANDRA, Ives e MENDES, Gilmar. Controle concentrado de constitucionalidade. Comentários à


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R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 159-180, jul./set. 2014 179
Fabiana Marcello Gonçalves, Humberto Dalla Bernardina de Pinho

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 411.156/SP, Relator: Ministro Celso de Mello. Julgado em: 28.02.2012.
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STRECK, Lenio. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Porto Alegre:
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VELOSO, Zeno. Controle jurisdicional de constitucionalidade. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
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ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2001. p. 54.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

GONÇALVES, Fabiana Marcello; PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Mutação


constitucional do artigo 52, X, da Constituição Federal – A consagração do hibridismo
no controle de constitucionalidade brasileiro e o seu impacto na competência do
Senado Federal. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte,
ano 22, n. 87, p. 159-180, jul./set. 2014.

180 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 159-180, jul./set. 2014
Princípio processual da objetividade
argumentativa

Dhenis Cruz Madeira


Doutor, Mestre e Especialista em Direito Processual pela PUC Minas. Coordenador
do Curso de Direito da PUC Minas Contagem. Professor do curso de Pós-Graduação
Lato Sensu em Direito Processual do Instituto de Educação Continuada da PUC
Minas (IEC-PUC Minas). Professor Adjunto IV (concursado) de Teoria Geral do
Processo, Direito Processual Civil e Prática Jurídica Cível do curso de graduação em
Direito da PUC Minas. Professor convidado de diversos cursos de pós-graduação em
Direito no país. Membro da Comissão de Articulação e Acesso ao CNJ da OAB/MG.
E-mail: <cruzmadeira@hotmail.com>.

Resumo: Trata-se de artigo em que o autor defende a aplicação do conhecimento objetivo popperiano
ao discurso processual democrático. Afirma, em suma, que todos os argumentos utilizados no discurso
processual devem ser capazes de se ofertar à crítica, isto, para que o princípio do contraditório possa
ser plenamente exercido por aqueles que sofrerão os efeitos do provimento jurisdicional ou, em outras
palavras, pelas partes.
Palavras-chave: Discurso. Processo. Democracia. Conhecimento objetivo. Contraditório. Argumentação. Popper.

Sumário: 1 Considerações iniciais – 2 Breves palavras sobre o discurso – 3 Algumas palavras sobre o
discurso processual – 4 Princípio processual da objetividade argumentativa e a rejeição do solipsismo pelo
Estado Democrático de Direito – 5 Considerações finais – Referências

1 Considerações iniciais
O presente escrito tem por objetivo apresentar, em breves linhas, uma
introdução ao que nominei de princípio processual da objetividade argumentativa.
Para tanto, será necessário tecer algumas breves palavras sobre o discurso em
geral (item 2 infra), sobre o discurso processual (item 3), para, enfim, enfrentar
as bases teóricas do princípio sobredito (item 4), este, erguido sobre as
matrizes popperianas.
O objetivo deste ensaio é fazer uma abertura para pesquisas futuras, e
não, propriamente, aprofundar no tema, o que exigiria um espaço mais extenso
de publicação.
Sem delongas, passa-se ao enfrentamento do tema proposto.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 181-202, jul./set. 2014 181
Dhenis Cruz Madeira

2 Breves palavras sobre o discurso


Em outra oportunidade,1 afirmamos que todo discurso abriga um movimento,2
quer-se dizer, todo discurso possui um termo inicial e um termo final, um deslocamento
de um ponto a outro, de uma proposição a outra, passando por premissas até se
chegar a uma conclusão.
É preciso perceber, também, que todo orador, independentemente da modalidade
discursiva que utilize, dirige seu discurso a alguém, a quem se costuma chamar de
ouvinte, auditório ou interlocutor.
Em todos os tipos de discurso, o orador sempre pretende modificar o ouvinte,
o auditório ou o interlocutor de algum modo,3 quer seja lhe passando alguma
informação, aumentando seu conhecimento, alterando sua opinião, fazendo-o sentir
alguma emoção etc.
Em alguns discursos, o ouvinte possui uma participação mínima, adota uma
posição mais passiva, recebendo do orador as orações, as premissas e, até mesmo,
as conclusões, cabendo ao auditório simplesmente aderir ou não às propostas do
orador. É o que ocorre, por exemplo, numa grande palestra, em congressos, em
discursos proferidos na TV etc. Nestes casos, caberá ao ouvinte, simplesmente,
concordar ou não com o orador, sem que tenha qualquer participação ativa no
estabelecimento de premissas, na refutação de argumentos ou no questionamento
da conclusão: o ouvinte, tão somente, concorda ou não com o orador. Como se
percebe, esses tipos de discursos se aproximam mais da unilateralidade do que
da bilateralidade.
Em outros casos, ter-se-á uma interlocução plena, com a efetiva contribuição de
todos os participantes do discurso. Isso ocorre quando todos debatem o propósito
do discurso, as premissas de apoio, os critérios a serem utilizados, o caminho a
seguir e o (des)acerto da conclusão. Nesses discursos, há uma bilateralidade plena,
uma efetiva participação de todos, quando então o ouvinte e o auditório assumem
verdadeira função de interlocutores.
Vê-se, portanto, que os discursos podem ser classificados e avaliados sob o
prisma da contribuição argumentativa de seus interlocutores.

3 Algumas palavras sobre o discurso processual


Ontem e hoje, não é difícil perceber que o discurso faz parte da prática jurídica,
ou, se se quiser dizer assim, da prática forense. No dia a dia, advogados, juízes e o

1
Cf. MADEIRA, Dhenis Cruz. O discurso processual democrático. In: CASTRO, João Antônio Lima. (Org.). Direito
processual. Belo Horizonte: PUC Minas, 2012. p. 999-1016.
2
Dentre outros: CARVALHO, Olavo de. Aristóteles em nova perspectiva, p. 74.
3
CARVALHO, Olavo de. Aristóteles em nova perspectiva, p. 75.

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Princípio processual da objetividade argumentativa

promotores de justiça, ainda que tenham objetivos distintos, argumentam em suas


petições, sentenças, recursos, pareceres, audiências e sustentações orais. Apesar
disso, poucos são os juristas que dominam as técnicas discursivas ou que, pelo
menos, já refletiram sobre o tema, porquanto, mesmo nos cursos jurídicos, o estudo
da teoria da argumentação jurídica não é, pode-se dizer, algo corriqueiro e, talvez
por isso, a prática discursiva empregada nos fóruns e tribunais quase sempre se
resuma à repetição da tradição, de acórdãos, de chavões ou mesmo de experiências
pessoais anteriormente vividas pelos interlocutores.
Neste sentido, o raciocínio indutivo, baseado em exemplos, experiências vividas
e decisões judiciais anteriores, costuma prevalecer sobre o raciocínio dedutivo, já
que, por ausência de conhecimento sobre o tema, advogados, juízes e promotores de
justiça costumam utilizar os lugares-comuns (topoi) como uma espécie de repouso
seguro de sua argumentação, empobrecendo e limitando o próprio discurso jurídico.
Não é a esmo que os fóruns e tribunais costumam ser espaços em que o costume,
a tradição e a autoridade solipsista4 são preservados e velados, o que faz com que o
próprio Direito seja resistente à crítica, às mudanças e à evolução.
Atualmente, em livros, artigos e palestras jurídicas, é comum ouvir expressões
como “discurso jurídico”, “teoria da argumentação jurídica”, “linguagem jurídica”,
“discurso processual” etc. Costuma-se dizer — aliás, com toda razão — que o Direito
é linguagem.5
Ocorre que a construção do Estado Democrático de Direito passa a exigir uma
reflexão crítica sobre a própria prática discursiva e uma reconstrução da teoria da
argumentação jurídica, pois, numa sociedade sem centro,6 o discurso jurídico não
pode se limitar à tradição ou à autoridade estatal.
Seguindo este raciocínio, o discurso processual democrático possui o objetivo
de permitir a construção compartilhada do provimento (decisão) jurisdicional,7
fazendo com que o cidadão, que é destinatário de toda decisão estatal, também
construa e fiscalize a atuação dos agentes públicos. Nesta linha, tal discurso, para
ser democrático, precisa que os argumentos sejam encaminhados de forma livre,
isonômica e sob a regência do devido processo legal e constitucional. Trata-se não
propriamente de um discurso em que figuram, de um lado, o orador, e de outro, o
ouvinte, mas, diferentemente, um discurso onde só existem interlocutores, todos
eles situados no mesmo plano de argumentação.

4
Sobre o solipsismo judicial, dentre outros: DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo Constitucional e
Estado Democrático de Direito, LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidade do processo em crise; LEAL, Rosemiro
Pereira. Teoria Processual da Decisão Jurídica; NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático;
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência?
5
Aqui me recordo das palavras do saudoso processualista baiano Calmon de Passos, quando, em suas
palestras, costumava dizer que o Direito era – como ainda é - linguagem.
6
Cf. CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido processo legislativo, p. 13
7
Dentre outros: GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 181-202, jul./set. 2014 183
Dhenis Cruz Madeira

O discurso processual é, portanto, dialogal.


Por tudo isso e, sendo um assunto marcado por alguma dose de novidade, é
preciso compreender e esclarecer quais as características do discurso processual
democrático — como já fizemos em outro lugar8 — e, mais ainda, quais são os
princípios que devem reger a argumentação jurídica. Neste trabalho, pretende-se
apresentar apenas um dos princípios que devem reger o discurso processual, com o
fito de, justamente, permitir a plena participação daqueles que sofrerão os efeitos do
provimento (decisão) jurisdicional.
Apresentar-se-á, portanto, o princípio processual da objetividade argumentativa.

4 Princípio processual da objetividade argumentativa e


a rejeição do solipsismo pelo Estado Democrático
de Direito
Para evitar erros de compreensão, advirta-se desde já que a palavra objetividade
a que se faz referência neste princípio se liga à ideia de conhecimento objetivo.9 O
argumento objetivo que aqui se quer defender é aquele que pode ser submetido à
crítica por meio de um teste intersubjetivo — não é subjetivo e sua compreensão passa
pelo teste crítico do outro, trata-se de uma crítica intersubjetiva —,10 propiciando um
mútuo controle racional entre os envolvidos no discurso.
Portanto, neste texto, empregam-se os termos “objetivo” e “objetividade” no
sentido atribuído por Karl Popper, e não em qualquer outro.
Sendo assim, o princípio da objetividade argumentativa se refere à necessidade
de só se utilizar argumentos que, primeiro, sejam técnicos, ou seja, tenham alguma
finalidade para a construção do(s) provimento(s), e segundo, possam ser ofertados
à crítica ou, fazendo uma comparação com o enunciado científico,11 que seja apto a
se submeter a testes.
Não basta, assim, que o juiz se valha de um argumento subjetivo ou não
explícito como fundamento de sua decisão, devendo objetivar sua argumentação,
ofertando-a às partes e interessados. A decisão apoiada em cláusulas gerais, em
preceitos abertos ou mesmo em princípios jurídicos, sem que se esclareça o porquê
de se aplicar este ou aquele princípio, é, na verdade, desprovida de fundamentação,
sendo, por força da Constituição Brasileira (art. 93, IX), nula.

8
Cf. MADEIRA, Dhenis Cruz. O discurso processual democrático.
9
Ou seja, trata-se de uma proposta teórica que se apoia em Popper, ainda que não integralmente, haja vista
a necessidade de adaptação das propostas popperianas ao Direito Processual Civil, o que é, como será
visto, possível.
10
Cf. POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica, p. 46.
11
Cf. POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica, p. 50.

184 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 181-202, jul./set. 2014
Princípio processual da objetividade argumentativa

Parece ser nesse rumo que caminhou uma das versões do Projeto do Novo
CPC brasileiro, atualmente em trâmite na Câmara dos Deputados, quando, em
determinado ponto do procedimento legislativo, chegou a consignar num parágrafo:

Art. 477. [...]


Parágrafo único. Fundamentando-se a sentença em regras que contiverem
conceitos juridicamente indeterminados, cláusulas gerais ou princípios
jurídicos, o juiz deve expor, analiticamente, o sentido em que as normas
foram compreendidas.12

A redação do Projeto do Novo CPC foi substancialmente alterada, mas, em todo


caso, mostra a preocupação de alguns juristas com a possibilidade de o julgador se
afastar da lei para aplicar aquilo que entende como certo e errado, de forma genérica,
sem que exponha com clareza o porquê de decidir de um modo ou de outro.
Especificamente quanto à necessidade de oferta dos argumentos à crítica,
algumas ideias podem auxiliar na melhor compreensão do tema.
Para a instalação de um discurso processual democrático, é possível indicar
três proposições que, inclusive, relacionam-se entre si e que interessam não somente
aos argumentos das partes, mas, sobretudo, à fundamentação judicial das decisões.
São elas:
a) não se pode utilizar argumentos de índole meramente subjetiva;
b) os argumentos devem habitar o Mundo 3 (popperiano);
c) os argumentos devem ser estritamente jurídicos, ou, em se tratando de
alegações fáticas, estas devem possuir vínculo com alguma norma jurídica
(princípios ou regras).
Estes três cuidados, que devem ser levados em conta pelos participantes do
discurso, podem ser sintetizados numa só ideia: os argumentos utilizados no discurso
processual devem se ofertar, objetivamente, ao princípio do contraditório.
Sobre a proibição de utilização de argumentos de índole subjetiva, reporta-se,
dentre outras espécies, à subjetividade trazida pelo método cartesiano.13 O que se
quer dizer, para que fique mais claro, é que o discurso processual é incompatível
com o conhecimento subjetivo,14 eis que este, por habitar somente a mente do ser
pensante, é impassível de crítica e, portanto, do contraditório.

12
Trata-se de uma das versões, ainda, do Senado Federal, quando ainda em trâmite naquela Casa Legislativa.
13
Tratando um pouco sobre o confronto entre a ciência jurídica moderna (cartesiana) e dos antigos (retórica,
dialética, tópica), conferir: MADEIRA, Dhenis Cruz. Giambattista Vico, a retórica e a tópica jurídica: reflexões
sobre a ciência jurídica moderna e contemporânea. In: VILELA, Alexandra; MADEIRA, Dhenis Cruz; LEITE, Jorge;
MEIRA, José Boanerges; COSTA, José Francisco Faria; ROCHA, Lindomar. (Org.). Temas contemporâneos de
direito: Brasil e Portugal. Belo Horizonte: Arraes, 2012. p. 216-237.
14
Cf. POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo, p. 77-78.

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Dhenis Cruz Madeira

Por isso é que argumentos de cunho estritamente moral ou mesmo argumentos


de cunho puramente filosóficos — e que, portanto, tendem à subjetividade e não
guardam relação direta com alguma norma jurídica — são impassíveis de utilização
no discurso processual.
Quando à proibição de utilização de argumentos puramente filosóficos nas
petições e sentenças, é possível concordar com uma passagem específica do texto
escrito por Humberto Theodoro Júnior quando, alinhavando o Direito ao seu caráter
prático, afirmou:

Assim visto o Direito, seus intérpretes e operadores não podem se perder


em abstrações e generalizações despidas de efeitos práticos para a vida
juridicamente organizada. Como repositório de normas do que deve ser
melhor para o convívio social, o direito há de ser estudado e compreendido
funcionalmente, ou seja, em estrita conexão com os efeitos práticos que
o sistema e cada um de seus princípios, institutos, remédios e normas
estão predispostos a produzir.
Tratar o fenômeno jurídico como objeto de especulação puramente teórica
e abstrata não é adequado ao trabalho jurídico propriamente dito. Pode
acontecer no plano filosófico, sociológico, psicológico e econômico, não
no plano específico do direito.15

Sendo assim, nesse ponto específico, concorda-se com o Humberto Theodoro


Júnior quanto ao caráter prático da Ciência Jurídica acrescentando que todo estudo
jurídico, ainda que passando por reflexões jusfilosóficas, deve se voltar para a
resolução de problemas de cunho prático, deve se preocupar com a efetividade,
sobretudo, das normas constitucionais.
Esclarece-se, contudo, que quando se disse, antes da transcrição anterior, que
“é possível concordar com uma passagem específica do texto escrito por Humberto
Theodoro Júnior”, quer-se dizer que, embora se consinta com a opinião externada
pelo processualista mineiro no sobredito trecho, não se concordar com sua defesa da
tópica jurídica — feita no mesmo texto — e nem com a afirmação de que o Direito é a
“lógica do razoável”16 ou que “a prudência deve ser utilizada para superar problemas
das ciências humanas, como o Direito”.17 O dissenso ocorre porque é preciso deixar
claro que o caráter prático da Ciência Jurídica deve se pautar, principalmente, pela
efetividade do próprio Estado Democrático de Direito e, sendo assim, não há margem
na interpretação jurídica para a criação de espaços infiscalizáveis do soberano. Isso
porque, ao defender a tópica jurídica, o jurista mineiro — e provavelmente essa nem

15
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Interpretação e aplicação das normas jurídicas. DIDIER JR., Fredie Souza;
JORDÃO, Eduardo Ferreira (Coord.). Teoria do processo: panorama doutrinário mundial. Salvador: JusPodivm,
2007. p. 387.
16
THEODORO JÚNIOR, Interpretação e aplicação das normas jurídicas, p. 380.
17
THEODORO JÚNIOR, Interpretação e aplicação das normas jurídicas, p. 381.

186 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 181-202, jul./set. 2014
Princípio processual da objetividade argumentativa

fosse sua intenção — acabou por defender uma técnica argumentativa solipsista, o
que agride o próprio conjunto de sua respeitável obra.
Por isto é que é possível consentir com a ideia de que a Ciência Jurídica possui o
caráter predominantemente prático e que, para ela, é inútil se perder em argumentos
puramente filosóficos e que não possuem repercussão prática mediata ou imediata.
Entretanto, não é possível concordar que a tópica jurídica seja compatível com a
Hermenêutica Jurídica do Estado Democrático de Direito, isso porque, os topoi
fazem com que o intérprete caia na vida nua,18 num espaço não procedimental e,
portanto, antidemocrático.
É claro que a Filosofia em geral e, especificamente, a Filosofia do Direito são
úteis ou, pode-se dizer, até essenciais para a Hermenêutica Jurídica. Aliás, seria
paradoxal, neste ponto do trabalho, dizer que a Filosofia do Direito é dispensável.
Sendo assim, quando se afirmou anteriormente que uma sentença não pode
conter argumentos puramente filosóficos quer-se dizer, simplesmente, argumentos
filosóficos totalmente desvinculados do texto normativo. Neste tom, parece-nos que
a Filosofia do Direito pode ser auxiliar — e quase sempre o é — da atividade de
interpretação jurídica e, sendo assim, da atividade judicial. Contudo, há que se deixar
claro que o provimento (decisão) é um ato jurídico e que ninguém pode ser obrigado
a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (princípio da reserva
legal). Por isso, ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer algo por outro
fundamento que não seja extraído da própria normatividade jurídica, daí a razão de
se recusar, no discurso processual democrático, o uso de argumentos puramente
filosóficos, ou melhor, não se pode utilizar em tais discursos, sob pena de violação
do devido processo, um argumento filosófico totalmente afastado da lei ou que não
se preste a interpretá-la.
Ainda no que concerne aos argumentos puramente filosóficos, para que se
entenda melhor a questão, parece ser fácil projetar a imagem de advogados que,
ao invés de utilizarem argumentos jurídicos, valem-se de, por exemplo, lições
estritamente filosóficas e que não guardam, na prática, qualquer relação com o
Direito. Um diálogo entre, por exemplo, um advogado hegeliano, de um lado, e um
kantiano, de outro, ou um autor platônico frente a um réu protagórico etc., cairá no
espaço nu, no espaço sem demarcação normativa, impedindo, por consequência, o
compartilhamento procedimental. A tendência é que esse diálogo se transforme em
monólogos intercalados,19 pois será impossível se estabelecer um contraditório pleno
nestes casos.

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua.


18

Lembrando aqui do poeta Mario Quintana.


19

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 181-202, jul./set. 2014 187
Dhenis Cruz Madeira

Vale lembrar que algumas teorias filosóficas são irrefutáveis (acríticas) e, ao


mesmo tempo e por conta disso, falsas.20
Como o discurso processual é baseado no princípio do contraditório, na
possibilidade de refutação dos argumentos, mostra-se inviável a utilização de,
como dito, argumentos puramente filosóficos. Do ponto de vista prático, seria uma
atecnia e uma irracionalidade se instaurar um debate forense puramente filosófico,
no qual, em cada lado, demandante e demandado sustente, cada um, uma corrente
filosófica, com a possibilidade de o juiz julgar com base numa terceira. Para que
o discurso processual seja racional e técnico, os argumentos devem girar em
torno da interpretação dos textos normativos, ainda que cada um apresente uma
interpretação distinta.
Assim, a utilização de argumentos metajurídicos agride a previsibilidade
decisional e o princípio do contraditório, porquanto este se baseia na não surpresa.21
Isso quer dizer que, para a instalação do discurso processual, não é mais possível
utilizar os brocardos latinos22 iuria novit curia23 ou da mihi factum dabo tibi ius,24
pois todas as matérias a serem decididas, mesmo as de ordem pública,25 só
podem ser enfrentadas mediante a manifestação prévia daqueles que sofrerão os
efeitos da decisão (partes), salvo excepcional hipótese de contraditório posticipado
(ou diferido).26
Com isso, difícil é admitir a hipótese das partes ou o juiz utilizarem argumentos
puramente morais ou filosóficos, porquanto o discurso processual perderá totalmente
sua previsibilidade (não surpresa), haja vista a total impossibilidade das partes
conhecerem e anteverem a posição moral ou a corrente filosófica assumida pelos
participantes discursivos.
Sobre a recusa de utilização de argumentos de cunho moral, basta imaginar
a hipótese de um juiz que, por ser adepto de determinada religião, procura, como

20
Cf. POPPER, Karl Raymund. O status da ciência e da metafísica. In: POPPER, Karl Raymund. Conjecturas e
refutações, p. 219-226.
21
Cf. DELFINO, Lúcio. O processo democrático e a ilegitimidade de algumas decisões judiciais. In: ROSSI,
Fernando; RAMOS, Glauco Gumerato; GUEDES, Jefferson Carús; DELFINO, Lúcio; MOURÃO, Luiz Eduardo
Ribeiro. O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica ao Projeto do Novo CPC. Belo Horizonte: Fórum,
2011, p. 367-405; NUNES, Dierle José Coelho. O princípio do contraditório: uma garantia de influência e de
não surpresa. In: TAVARES, Fernando Horta (Coord.). Constituição, direito e processo. Curitiba: Juruá, 2007.
p. 145-165.
22
Na mesma linha: MADEIRA, Dhenis Cruz. Medida cautelar ex officio e legitimidade decisória. In: TAVARES,
Fernando Horta (Coord.). Urgências de tutela. Curitiba: Juruá, 2007. p. 74; NUNES, Dierle José Coelho.
Processo jurisdicional democrático, p. 244-247.
23
Que é traduzido com o significado semelhante a “o juiz sabe o direito”.
24
Traduzido, no campo jurídico, na parêmia em que o juiz diria à parte: “dê-me os fatos que lhe dou o direito”.
25
Neste sentido, dentre outros, encontra-se: NUNES, Dierle José Coelho. O princípio do contraditório. Boletim
técnico da Escola Superior de Advocacia da OAB/MG. Belo Horizonte, v. 1, jan./jun. 2004, p. 51.
26
Acerca da possibilidade restrita do contraditório posticipado: MADEIRA, Dhenis Cruz. Medida cautelar ex officio
e legitimidade decisória. In: TAVARES, Fernando Horta (Coord.). Urgências de tutela. Curitiba: Juruá, 2007;
VIEIRA, José Marcos Rodrigues. A nova ordinariedade: execução para a cognição. Revista da Faculdade Mineira
de Direito. Belo Horizonte: PUC Minas, v. 3, n. 5 e 6, 1º e 2º sem. 2000.

188 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 181-202, jul./set. 2014
Princípio processual da objetividade argumentativa

fundamento de sua decisão, impor sua crença às partes mediante a utilização de


argumentos religiosos na sentença.27 Trata-se da imposição da crença do magistrado
às partes, o que fere de morte a laicidade da República Federativa do Brasil.
Por tudo isso é que, no Estado Democrático de Direito, não se pode defender a
metajuridicidade do processo ou abraçar a ideia de que o processo possui escopos
metajurídicos,28 já que, ao sair da normatividade, cai-se no espaço indemarcado,
no espaço subjetivo, em que a objetividade não existe e, portanto, a fiscalização
é impossível. Talvez por isso, Aroldo Plínio Gonçalves, ao final de sua cuidadosa
pesquisa, chega à conclusão de que não existe uma realidade que deve ser captada
pelo julgador fora do Direito:

Os fins metajurídicos do processo não possuem critérios objetivos de


aferição no Direito Processual Civil. Se o exercício da função jurisdicional
se manifesta sob a disciplina do ordenamento jurídico, e nos limites por
ele definidos, “qualquer fim do processo só pode ser jurídico”.
A concepção do processo como procedimento realizado em contraditório
não comporta fins extrajurídicos, porque a preparação participada do
provimento válido é juridicamente disciplinada. O provimento se forma
sob a regulamentação de toda uma estrutura normativa que limita a
manifestação da jurisdição e assegura às partes o direito de participação
igual, simétrica e paritária, na fase que prepara o ato final.29

Percebe-se que Aroldo Plínio Gonçalves, ainda que de forma sucinta, defendeu a
objetividade argumentativa, objetividade esta que se pautava no próprio ordenamento
jurídico, e não fora dele. Aliás, o processualista mineiro recusa, de forma bem clara, a
possibilidade de se buscar escopos para o processo que não estejam no ordenamento
jurídico, rejeitando, pois, a metajuridicidade:

Não há outra base na ciência do Direito Processual Civil, para se afirmar


a existência de escopos da jurisdição e do processo, como instrumento
de sua manifestação, a não ser o próprio ordenamento jurídico, dentro
do qual se acomodam as ideologias, e, nesse caso, os escopos são
todos jurídicos.
A reflexão sobre os chamados escopos pré-jurídicos do processo escapa,
por certo, ao objeto de investigação do Direito Processual Civil, como
ciência que estuda a norma que disciplina a jurisdição.30

27
Algo que, no Brasil, infelizmente, tem sido cada vez mais frequente, conforme divulgado no meio jurídico. Ficou
famosa uma sentença de um juiz do Estado de Minas Gerais que, justificando a absolvição de um homem
que agrediu fisicamente à sua mulher, valeu-se de várias passagens bíblicas, interpretando e aplicando o livro
religioso ao seu modo.
28
Em sentido contrário, defendendo os escopos metajurídicos do processo, dentre outros, destaca-se:
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo, p. 181-188.
29
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo, p. 195-196.
30
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo, p. 185-186.

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Dhenis Cruz Madeira

Os argumentos metajurídicos são pré-jurídicos, não jurídicos, infiscalizáveis,


e, portanto, impassíveis de utilização no discurso processual democrático. Tais
argumentos metajurídicos são subjetivos, solipsistas, residem tão somente na
consciência ou na experiência pessoal do intérprete (v.g. o julgador), e, por isto, são
imunes ao princípio do contraditório, blindam o argumento da crítica, daí porque os
participantes do discurso processual não podem utilizá-los, a não ser que se queira
ferir de morte a legitimidade democrática do próprio processo. Isto quer dizer que a
utilização dos argumentos metajurídicos torna inviável a construção compartilhada
das decisões (provimentos) jurisdicionais.
Outrossim, o discurso processual, por se apoiar no princípio do contraditório,
inadmite o uso de argumentos irrefutáveis de per si. Por isso é que, para a instalação
de um diálogo, há que se ter um medium linguístico31 comum entre os participantes
discursivos, ainda que entre eles existam profundas diferenças de entendimento.
Com isso se quer dizer que a norma jurídica — que é extraída da interpretação da lei
em sentido amplo — deve pautar o discurso processual e este, por sua vez, deve ser
orientado pelo devido processo legal e constitucional.
Por isto é que Ítalo Andolina e Giuseppe Vignera andaram bem ao dizer que:

Na nova perspectiva pós-constitucional, portanto, o problema do processo


não diz respeito somente ao ser (isto é, à sua concreta organização,
segundo a lei ordinária vigente), mas também ao seu dever-ser (isto
é, a conformidade de seu ordenamento positivo com a normatividade
constitucional sobre o exercício da atividade jurisdicional).32

O que é certo é que, ainda que as partes tenham compreensões distintas sobre
a interpretação de determinado texto legal, ambas devem partir do texto normativo,
dialogar sobre a, segundo entendem, melhor interpretação da lei, aumentando sua
carga de objetividade, porquanto, se o referido diálogo se apoiar em discussões
puramente filosóficas ou morais, cairá, fatalmente, na subjetividade, tornando inviável
a construção compartilhada do provimento (decisão). Como dito, o procedimento é
técnico, tem por finalidade construir uma decisão, sendo que um diálogo puramente
filosófico, que saia da normatividade jurídica ou que não volte seu foco para a
interpretação da lei, perderá sua finalidade prática e poderá se transformar em
verborragia inútil ao discurso processual, ou melhor, numa discussão que não refletirá
no provimento final.

31
Cf. LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática, p. 271-283; MADEIRA, Dhenis Cruz.
Processo de conhecimento & cognição, p. 21-45.
32
Tradução livre: “Nella nuova prospettiva post-costituzionale, quindi, il problema del processo non riguarda
soltanto il suo essere (idest: la sua concreta organizzazione secondo le leggi ordinarie vigenti), ma anche
il suo dover essere (idest: la conformità del suo assetto positivo alla normativa costituzionale sull’esercizio
dell’attività giurisdizionale)” (ANDOLINA, Ítalo; VIGNERA, Giuseppe. Il modelo costituzionale del processo civile –
corso di lezioni. Torino: Giappichelli, 1990, p. 11).

190 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 181-202, jul./set. 2014
Princípio processual da objetividade argumentativa

Com um diálogo puramente filosófico ou moral, repisa-se, cair-se-á na


subjetividade, impedir-se-á o contraditório e não se terá, propriamente, um
discurso processual.
Nesta toada, o discurso processual deve ser demarcado pelas normas jurídicas
e operacionalizado pelo Devido Processo.
Por isso é importante o alerta de Habermas33 sobre o risco de abuso de
discursos universalistas da moralidade, que podem, para se alcançar (ardilosamente)
a legitimação, esconder-se sob um falso traje legal. Por outro lado, não é possível
se ter um discurso processual democrático sem que se considere, por exemplo,
que o texto constitucional possui força normativa e que não deve ser desprezado.
A interpretação da lei — incluindo aí o texto constitucional — deve ser um ponto de
apoio comum dos argumentos a serem utilizados no discurso processual.
No Estado Social — que Habermas também chamou de Estado Republicano —
há uma hipervalorização do debate moral, o que pode esconder, em realidade, uma
crise profunda.34
Não custa recordar que é absolutamente impossível exercer a fiscalização ou
a contra-argumentação racional sobre argumentos puramente morais, pois cada
indivíduo constrói sua moral individualmente. Não há, ao menos no plano jurídico,
uma moral melhor do que a outra. O Estado Democrático de Direito não acolhe a ideia
de que a moral da maioria seja, por exemplo, imposta à minoria. Todas as decisões
morais são igualmente válidas, não havendo hierarquia entre elas no âmbito jurídico.
Assim, por exemplo, do ponto de vista moral, é possível sustentar que a guerra
é justa ou injusta, que a descriminalização do aborto pode ocorrer ou não,35 que
determinada religião é boa ou ruim, já que cada pessoa pode se posicionar de forma
distinta quanto ao tema e, no Direito Democrático, há que se respeitar o direito à
diferença e a opinião das minorias.
Na contemporaneidade, as pessoas pensam e atuam de forma diferente,
havendo um desacordo moral em nossa cultura, ou seja, a linguagem atual da
moralidade se encontra em grave desordem.36
O respeito e a tolerância devem ser, portanto, os elementos comuns entre
aqueles que pensam e atuam de forma diferente.
Isto não quer dizer que se pode cair no relativismo, muito pelo contrário: a
utilização de argumentos puramente morais é que tornam o debate processual

33
HABERMAS, Jürgen. Fundamentalismo e terror – Um diálogo com Jürgen Habermas, p. 54-55.
34
Também desconfiando da hipervalorização do debate moral na cultura corrente e ligando-a à crise de
fundamentação racional, tem-se: CARVALHO, Helber Buenos Aires de. Alasdair MacIntyre e o retorno às
tradições morais de pesquisa racional, p. 31-64. In: OLIVEIRA, Manfredo A. de (Org.). Correntes fundamentais
da ética contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 32.
35
Os exemplos da (in)justiça da guerra e da (im)possibilidade do aborto foram apresentados por Alasdair
MacIntyre (Depois da virtude, p. 21-23) para representar o desacordo moral contemporâneo.
36
Neste sentido: MACINTYRE, Alasdair. Depois da virtude, p. 15.

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Dhenis Cruz Madeira

relativista, indemarcado, metajurídico e — pode-se dizer mais — autoritário, pois,


como se disse, é uma perda de tempo exercer o contraditório sobre argumentos
estritamente morais, a não ser que o interlocutor queira impor sua moral ao outro, o
que é, como dito, ditatorial. Ademais, se não se pensar assim, os que adotam uma
postura moral considerada minoritária sempre seriam subjugados pela postura moral
majoritária, o que formaria uma sociedade atitude antidemocrática.
Por isso, não deixa de ser surpreendente que vários processualistas, ainda
hoje, adotem explicitamente o solipsismo judicial, colocando o juiz como um locutor
privilegiado da lei ou, para ser mais claro, um participante privilegiado do discurso
processual. Espanta, por exemplo, ver que Kazuo Watanabe crê que o juiz possui uma
“sensibilidade necessária para avaliar em toda dimensão a conduta do acusado”.37
Nesta mesma linha, outro processualista brasileiro, Cândido Rangel Dinamarco, diz
que o juiz deve julgar “com o espírito suficientemente iluminado e consciente da
realidade sobre a qual decidirá”38 e que “conhecer é captar pelos sentidos e receber
no espírito a justa representação da realidade”.39
Todas essas ideias mostram que grande parte dos processualistas ainda
confia numa especial capacidade subjetiva do julgador, depositam sua esperança
na experiência pessoal e na sensibilidade dos magistrados. Tem-se, aí, um ato de
fé, uma crença nesta capacidade imanente dos juízes, como se eles fossem seres
especialmente dotados para decidir, compreender os fatos e interpretar as leis. Não
se cogita, nesta concepção, que o juiz está em plano homotópico com as partes e
que estas também são responsáveis pela construção do provimento final.
Além disso, percebe-se que essas proposições, além de abraçar o solipsismo
judicial e o mito da autoridade do Estado Social, abrigam o dogma do observacionismo
de Bacon.
Esta concepção observacionista, muito bem descrita e criticada por Popper,40
gerou uma crença, de índole religiosa, de que algumas pessoas podem, pela
observação, captar uma verdade que está impregnada nas coisas, nos fatos, na
natureza etc. Tal crença ocorre pela suposta pureza da mente do observador, como
se ele pudesse, de uma só vez, livrar-se de todos os preconceitos que carregasse,
passando a extrair a verdade e a essência das coisas por mera observação, numa
prática indutiva.
Além disso, é preciso lembrar, com o apoio de Alasdair MacIntyre,41 que a
linguagem moral vem sendo muito empregada para expressar discordâncias e uma

37
WATANABE, Kazuo. Da cognição no processo civil. 2. ed. Campinas: Bookseller, 2000. p. 64-65.
38
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros,
2004. v. 3, p. 30.
39
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil, p. 33.
40
Cf. POPPER, Karl. O mito do contexto – em defesa da ciência e da racionalidade, p. 109-117.
41
MACINTYRE, Alasdair. Depois da virtude, p. 21.

192 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 181-202, jul./set. 2014
Princípio processual da objetividade argumentativa

característica marcante desses debates morais é seu caráter interminável, ou seja,


que não tem um fim.
Entretanto, o discurso processual se desenvolve num espaço procedimental que,
por sua vez, tem a finalidade de construir argumentativamente o provimento final. Não
se pode eternizar o discurso processual e o contraditório não é exercido eternamente,
já que o próprio devido processo legal limita o momento de encaminhamento da
argumentação por institutos como o prazo, preclusão, prescrição, decadência etc.
O debate moral não possui fim, daí porque os argumentos estritamente morais não
podem ser utilizados no discurso processual democrático, especialmente devido
ao risco de se sobrecarregar eticamente o discurso jurídico, fazendo com que uma
autoridade solipsista imponha sua moral, que é a única forma de se encerrar a uma
decisão final. Não é outra coisa que faziam os juízes no Estado hitlerista, que queriam
impor, por meio de suas decisões, a moral ariana.42
Este desacordo moral também costuma gerar dificuldades de interpretação da
norma jurídica. Isso ocorre porque, se se pretende determinar o alcance de uma norma
pela via discursiva da moralidade, diante de uma sociedade considerada complexa,43
restará impossível se chegar a um consenso moral universal sem desrespeitar
individualmente o direito de pensar de forma diferente, ou, para ser mais claro, sem
se desrespeitar a construção moral do outro. Na prática, o que habitualmente ocorre
nestes casos é que, quase sempre, a posição moral adotada pelas minorias costuma
ser massacrada em nome de uma moral majoritária, sendo a interpretação jurídica
realizada pela maioria um forte instrumento de opressão tópica, pois, neste caso,
o topos de que a maioria decide44 costuma ser utilizada para calar o direito das
minorias. Não se tem, aí, uma postura democrática.
Este é o motivo pelo qual a hermenêutica jurídica não pode se basear na
proposta de acordo moral universal ou na tentativa de se apreender uma posição
moral majoritária ou superior. O consenso moral nas sociedades complexas parece
ser mesmo inviável.
Em sentido próximo, Luís Roberto Barroso também apresenta esta dificuldade
de interpretação da norma jurídica pela via do acordo moral:

Além dos problemas de ambiguidade da linguagem, que envolvem a


determinação semântica de sentido da norma, existem, também, em
uma sociedade pluralista e diversificada, o que se tem denominado de
desacordo moral razoável. Pessoas bem intencionadas e esclarecidas,
em relação a múltiplas matérias, pensam de maneira radicalmente
contrária, sem conciliação possível. Cláusulas constitucionais como

42
Cf. COUTURE, Eduardo J. Trayectoria y destino del derecho procesal civil hispanoamericano, p. 72-73.
43
Também chamada de hipercomplexa, sem centro, plural etc.
44
A ideia de que a maioria decide constitui um topos da argumentação pode ser encontrada, dentro outros textos,
em: FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Prefácio do tradutor. In: VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. p. 4.

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Dhenis Cruz Madeira

direito à vida, dignidade da pessoa humana ou igualdade dão margem a


construções hermenêuticas distintas, por vezes contrapostas, de acordo
com a pré-compreensão do intérprete. Esse fenômeno se revela em
questões que são controvertidas em todo o mundo, inclusive no Brasil,
como, por exemplo, interrupção de gestação, pesquisas com células-
tronco embrionárias, eutanásia/ortotanásia, uniões homoafetivas,
em meio a inúmeras outras. Nessas matérias, como regra geral, o
papel do direito e do Estado deve ser o de assegurar que cada pessoa
possa viver sua autonomia da vontade e suas crenças. Ainda assim,
inúmeras complexidades surgem, motivadas por visões filosóficas e
religiosas diversas.45

Esta hipótese de desacordo moral em torno da interpretação de uma norma


jurídica faz com que o caso apresentado em juízo seja reconhecido como um
caso complexo.
Na esteira de Dworkin,46 costuma-se dizer que quando um caso (rectius, o
mérito de uma ação) não pode ser decidido por meio da aplicação de uma regra de
direito clara e estabelecida de antemão, não se estará diante de um caso fácil, mas
sim de um caso complexo — também chamado de caso difícil ou um hard case, para
utilizar aqui uma expressão de Dworkin, também empregada pelos estudiosos do
tema.47 Nos casos fáceis (ou casos simples), há uma mera operação de subsunção
na identificação dos efeitos jurídicos existentes entre os fatos narrados em juízos
e as normas jurídicas a eles aplicadas.48 Nos casos complexos, tal operação não
ocorre do mesmo modo, exigindo maior esforço do intérprete. Dizer qual é o limite
de velocidade de um automóvel em determinado local e diante de um fato narrado
em juízo parece ser, diante da análise da legislação de trânsito, um exemplo de caso
fácil,49 ao passo que estabelecer os limites entre a liberdade de expressão e o direito
à privacidade parece ser um exemplo de caso complexo.

45
BARROSO, Luís Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil
contemporâneo. JUS, Belo Horizonte, ano 42, n. 25, p. 127-163, jul./dez. 2011, p. 146.
46
Cf. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 127.
47
Sobre os casos difíceis (hard cases) em Dworkin, dentre outros estudos, recomenda-se: BARROSO, Luís
Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo, p. 146;
DIAS, Jean Carlos. O controle judicial de políticas públicas. São Paulo: Método, 2007, p. 136-141; OMMATI,
José Emílio Medauar. Paradigmas constitucionais e a inconstitucionalidade das leis. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris, 2003, p. 40; PEDRON, Flávio Quinaud. Reflexões sobre o “acesso à justiça” qualitativo no
Estado Democrático de Direito. In: THEODORO JÚNIOR, Humberto; CALMON, Petrônio; NUNES, Dierle. (Coord.).
Processo e Constituição: os dilemas do processo constitucional e dos princípios processuais constitucionais.
Rio de Janeiro: GZ, 2010, p. 142.
48
Neste sentido: BARROSO, Luís Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no
Brasil contemporâneo, p. 147; DIAS, Jean Carlos. O controle judicial de políticas públicas, p. 136-137.
49
Seguindo aqui o exemplo do próprio Dworkin, quando afirma que “É evidente que o limite de velocidade na
Califórnia é de 90 quilômetros por hora, pois é óbvio que qualquer interpretação competente do código de
trânsito desse Estado leva a essa conclusão”. Vale lembrar, porém, que Dworkin não deixa de afirmar que os
casos fáceis, em sua teoria, são casos especiais de casos difíceis. Cf. DWORKIN, Ronald. O império do direito
(Law’s Empire). Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 317.

194 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 181-202, jul./set. 2014
Princípio processual da objetividade argumentativa

Por isto é que, acertadamente, costuma-se dizer50 que a ambiguidade da


linguagem empregada na lei, o desacordo moral e a colisão de normas jurídicas
incluem-se em categorias de casos complexos (hard cases), justamente por
precisarem ser construídas argumentativamente e não se resumirem à subsunção
entre fato e regra jurídica.
Neste sentido, a utilização de argumentos puramente morais na interpretação
de uma lei pressupõe a possibilidade de que se os interlocutores jurídicos cheguem
a um acordo moral, o que parece ser inviável numa sociedade sem centro. Resolver
um caso complexo pela imposição da moral do agente governativo (v.g. o juiz, o
governador, o presidente, o ministro) aos destinatários da decisão parece ser, em
todo caso, um ato de violência, o que não se admite nas democracias.
Além disso, de se ressaltar que a impossibilidade de utilização de argumentos
puramente morais ou filosóficos ocorre pela necessidade de observância do princípio
da legalidade (reserva legal), já que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer
alguma coisa senão em virtude de lei, sendo assim, não é possível condenar ou
absolver alguém com base em argumentos estritamente morais ou filosóficos. Toda
lei anseia por uma interpretação, mas isso não autoriza aos participantes do discurso
processual, lembrando aqui as palavras de Lenio Streck,51 afirmarem qualquer coisa
sobre qualquer coisa, já que a intersubjetividade existente da linguagem processual,
resultado da superação (linguistic turn, virada linguística) da subjetividade imposta
pela Filosofia da Consciência, exige o controle hermenêutico realizado por todos
os participantes do discurso, sendo que este controle, no âmbito jurídico, dá-se,
sobretudo, levando o texto normativo (lei) a sério.52 O discurso processual, que
não se enquadra na subjetividade da Filosofia da Consciência, também não é uma
ferramenta nas mãos de uma autoridade solipsista, tratando-se de um discurso que
supera a subjetividade rumo a intersubjetividade.
No início deste item, foi dito que os argumentos a serem utilizados no discurso
processual devem habitar o Mundo. Para entender o que é o Mundo, é necessário
passar por Popper, iniciando, primeiro, por sua conceituação de conhecimento
subjetivo e objetivo:

Conhecimento subjetivo, que consiste de certas disposições inatas para


agir e de suas modificações adquiridas.
Conhecimento objetivo, por exemplo, conhecimento científico, que consiste de
teorias conjecturais, problemas abertos, situações de problemas, e argumentos.53

50
E aqui se recorda especificamente da passagem do texto de Luís Roberto Barroso (Cf. Constituição, democracia
e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo, p. 147).
51
Lembrando aqui as palavras encontradas na obra de Lenio Streck: Verdade & consenso, p. 574.
52
Trata-se de uma reflexão, útil à compreensão do discurso processual democrático, contida no último parágrafo
da obra: STRECK, Lenio Luiz. Verdade & consenso, p. 574.
53
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo, p. 122.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 181-202, jul./set. 2014 195
Dhenis Cruz Madeira

Vê-se que as ideias antes defendidas estão afinadas com o conceito


popperiano que se ofertou, especialmente pelo fato de que, como dito, defendeu-se
que os argumentos subjetivos são imanentes, blindados da crítica, ao passo que os
argumentos objetivos são problemas e argumentos abertos ao contraditório.
Popper54 afirma ainda que todo o trabalho científico objetiva fazer crescer o
conhecimento objetivo, e não o subjetivo.

As mais importantes criações humanas, com os mais importantes efeitos


de retrocarga sobre nós mesmos e especialmente sobre nossos cérebros,
são as funções mais altas da linguagem humana; mais especialmente, a
função descritiva e a função argumentativa.55

É claro que Popper, nos trechos acima, não trata propriamente do Direito, mas
da argumentação científica. Entretanto, não se costuma dizer que existe uma Ciência
Jurídica, uma Ciência do Direito e uma Ciência Processual? Se é assim, mostra-se
importante, para que a prática jurídica não seja somente um fazer desordenado
e irrefletido de atos processuais, porquanto a Ciência Jurídica deve se prestar a
repensar e reformular a técnica jurídica.56
As reflexões de Popper podem ser aplicadas à Ciência Processual, especialmente
no que concerne à Teoria da Argumentação Processual.
A função descritiva e argumentativa descrita acima não está presente somente
no discurso científico em si, mas também ao discurso processual, porquanto
o que fazem as partes senão descrever fatos e argumentar juridicamente?
Como não reconhecer que a descrição e a argumentação também integram a
linguagem processual?
O discurso processual não deixa de ser um discurso em que são formulados
e apresentados problemas (v.g. lide, a alegação de inconstitucionalidade de
uma lei), há disputas entre teorias concorrentes (v.g. cada parte apresenta sua
teoria sobre a melhor interpretação do texto legal), uma crítica mútua pela via da
argumentação (v.g. cada parte apresenta o argumento que considera mais resistente
à crítica) etc. Daí porque, mais uma vez, a proposta de Popper para a utilização
de conhecimentos em sentido objetivo parece se ajustar perfeitamente ao discurso
processual. Transcreve-se:

A linguagem, a formulação de problemas, a emersão de novas


situações de problemas, teorias concorrentes, crítica mútua por meio de
argumentação, tudo isto são os meios indispensáveis do crescimento
científico. As funções ou dimensões mais importantes da linguagem

54
Conhecimento objetivo, p. 122.
55
POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo, p. 122.
56
Cf. LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, p. 41-47.

196 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 181-202, jul./set. 2014
Princípio processual da objetividade argumentativa

humana (que as linguagens animais não possuem) são a função descritiva


e a argumentativa. O crescimento dessas funções é, naturalmente,
obra nossa, embora elas sejam conseqüências não pretendidas de
nossas ações. Só dentro de uma linguagem assim enriquecida é
que a argumentação crítica e o conhecimento no sentido objetivo se
tornam possíveis.57

Para tentar explicar como o homem argumenta e como se dá esta passagem


do mundo subjetivo para o objetivo, Popper formulou a teoria dos três mundos.
O Mundo 1 (ou Primeiro Mundo) seria o mundo material, o mundo dos estados
materiais. O Mundo 2 (ou Segundo Mundo) seria o mundo mental, dos estados
mentais ou o mundo das experiências subjetivas ou pessoais. Por fim, o Mundo 3
(ou Terceiro Mundo)58 seria o mundo dos inteligíveis, o mundo das ideias em sentido
objetivo, o mundo das teorias e de suas correlações lógicas, dos argumentos, dos
problemas formulados.
No presente trabalho e para a compreensão do discurso processual, interessa
sobremaneira os Mundos 2 e 3. Diz-se isso porque, como já afirmado, os argumentos
subjetivos que habitam o Mundo 2, os pensamentos que não se exteriorizam pela fala
ou pela escrita (o sujeito pensante não manifesta o que pensa aos demais) não são
úteis ao discurso processual. Somente a partir da exteriorização desse pensamento
pela fala ou pela escrita e sua oferta ao contraditório, mediante a apresentação de
uma descrição ou uma argumentação objetiva, é que se pode dizer que esta narrativa
exteriorizada comporá o discurso processual. É importante frisar que não basta dizer
ou escrever algo, afinal, o argumento deve ser, como dito, acessível à crítica e, para
tanto, não poderá ser subjetivo. Este é o motivo pelo qual os argumentos, as teorias
e as asserções utilizadas no discurso processual devem integrar o Mundo 3, daí a
imprescindibilidade de seu caráter objetivo.
O Mundo 3 é um muito em que há confronto de teorias e argumentos objetivos,
o que ocorre — ou, ao menos, deveria ocorrer — no discurso processual, em que
cada parte apresenta as teorias ou argumentos que lhe são mais favoráveis na
interpretação de determinado texto legal.
Por isso, o argumento utilizado no discurso processual deve ser estritamente
jurídico e, quando se tratar de alegações fáticas, deve possuir um vínculo com
alguma norma jurídica (princípios ou regras), pois só assim se poderá instalar o
compartilhamento argumentativo exigido pelo princípio do contraditório. Se uma parte
usa um argumento que não pode ser conhecido, compreendido e testificado pelos
demais integrantes do discurso processual (v.g. contraparte, juiz), este argumento

POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo, p. 123.


57

Frise-se que as locuções Primeiro, Segundo e Terceiro Mundo não se ligam à divisão geopolítica dos países.
58

Sobre o conceito aqui apresentado, conferir: POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo, p. 152.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 181-202, jul./set. 2014 197
Dhenis Cruz Madeira

não será um argumento apto a garantir uma legitimidade democrática, justamente,


por se ocultar ao contraditório, já que, como dito, não é possível refutar plenamente
um argumento pautado na subjetividade.
Hoje, já se sabe que o Estado Democrático de Direito se apoia, principalmente,
na necessidade de conferir legitimidade ao poder que se exerce,59 motivo pelo qual há
a necessidade de se legitimar tanto a aplicação do direito na esfera judicante, quanto
a produção desse direito no âmbito legiferante. Tal legitimação se dá, justamente,
pela comparticipação argumentativa entre aquele que aplica/produz o direito e aquele
que sofre os efeitos desta aplicação/produção.
Os argumentos ou fundamentos subjetivos acabam criando um espaço
infiscalizável do soberano, daí porque, para evitá-lo, é preciso aplicar ao discurso
processual o princípio da objetividade argumentativa, nos moldes já descritos.
Além do que já foi dito, a objetividade no discurso processual também exige
a utilização de termos técnico-científicos precisos, devendo os interlocutores
explicitarem o significado das expressões que utilizam, isso, para que possam ser
compreendidos e, se for o caso, criticados.
Lembre-se de que mesmo Carnelutti60 já se insurgia com a promiscuidade com
que os juristas utilizavam vários termos, especialmente as expressões processo
e procedimento. O processualista italiano recomendava que os significados das
expressões fossem esclarecidos.
Por isso, não se pode falar e escrever, tal como hoje é comum no ambiente
forense brasileiro, dizer-se que se dará “carga do processo”, que “pegarão o processo”,
que ajuizarão o “processo”, “extinguirão o processo”, ou “remédios processuais”,
“dá-se provimento”, “nega-se provimento” sem explicar o que representa a expressão
“remédio”, processo, ação, provimento para a teoria do processo. A promiscuidade
no uso das expressões processo, procedimento, ação, juiz, juízo é tamanha que, não
raro, é até difícil de compreender o que advogados, promotores de justiça e juízes
querem dizer nas petições e decisões.
Cada campo do saber — e o Direito não foge disto – se vale de algumas
expressões técnicas específicas e que possuem significados próprios. Assim,
num exemplo vulgar, se um médico trocar a expressão pulmão por coração num
diagnóstico, errar o nome de um medicamento, certamente dificultará a compreensão
de seu parecer e prejudicará seu paciente, sendo tal erro inadmissível, quer seja pela
omissão, quer seja pela imperícia.

59
Neste sentido: CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 100;
TAVARES, Fernando Horta; CUNHA, Maurício Ferreira. O direito fundamental à prova e a legitimidade dos
provimentos sob a perspectiva do direito democrático. Revista de Processo, ano 36, v. 195, maio 2011. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 118.
60
Cf. CARNELUTTI, Francesco. Sistema de direito processual civil. v. 4. Tradução de Hiltomar Martins Oliveira.
1. ed. São Paulo: Classik Book, 2000, p. 477.

198 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 181-202, jul./set. 2014
Princípio processual da objetividade argumentativa

Por que então, na prática judiciária brasileira, advogados e juízes se descuidam


tanto no uso das expressões técnico-jurídicas? Essa falta de cuidado, certamente,
denota uma imperícia no exercício da profissão, sendo que, pela falta de cuidado no
emprego dos termos técnicos, algumas petições beiram a inépcia,61 enquanto as
decisões margeiam a obscuridade.62

5 Considerações finais
Em síntese, viu-se que o discurso processual democrático exige um afastamento
de toda forma de argumentar solipsista, afinal, o provimento jurisdicional deve ser
construído de forma comparticipada — com as partes —, e não mais, apenas,
pelo julgador.
Tal exigência advém do paradigma constitucional do Estado Democrático de
Direito, que atribui ao povo toda a fonte do poder estatal — todo poder emana do
povo —, obrigando-nos a repensar o próprio Direito Processual, não mais construído
sobre o mito da autoridade63 do Estado Social.
Porém, abandonar a subjetividade de origem cartesiana não é tarefa fácil e nem
algo que se faz da noite para o dia. Tal abandono exige, ao revés, esforço científico,
na medida em que anseia uma reflexão sobre o papel do Estado, do agente público,
do cidadão, da lei e do próprio Direito na Democracia, afinal, no Estado Democrático
de Direito, preocupamo-nos com o respeito às minorias, isto, para que não se instaure
uma ditadura da maioria.
Esse é o motivo pelo qual se valorizou neste trabalho a ideia de conhecimento
objetivo de Karl Popper, pois, por meio dela, é possível pensar numa forma de discurso
processual — e uma forma de argumentar em geral — compatível com a Democracia.
Nesta linha, o princípio processual da objetividade argumentativa possibilita
que os argumentos das partes e os fundamentos das decisões judiciais sejam,
efetivamente, ofertados ao crivo do contraditório, afastando os argumentos de
índole meramente subjetiva, tais como são, verbi gratia, os argumentos de cunho
estritamente moral, os meramente filosóficos, ou mesmo, as preferências pessoais
do magistrado, advogados e promotores de justiça.
O princípio processual da objetividade argumentativa – ou outro nome que se
queira atribuir a ele ou às ideias aqui defendidas —, permite a ampliação e a efetivação
do princípio do contraditório, este último, não visto apenas como mera bilateralidade
de audiência, mas, muito mais do que isso, como um princípio medular do próprio

61
Causa de indeferimento da petição inicial.
62
Motivo para interposição dos embargos de declaração.
63
Sobre o mito da autoridade no Estado Social, no sentido aqui empregado, conferir: MADEIRA, Dhenis Cruz.
Processo de conhecimento & cognição, p. 95.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 181-202, jul./set. 2014 199
Dhenis Cruz Madeira

discurso processual democrático, afinal, sem contraditório não há processo e, por


consequência, não há democracia.

Referências
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MADEIRA, Dhenis Cruz. Princípio processual da objetividade argumentativa.


Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 22, n. 87,
p. 181-202, jul./set. 2014.

202 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 181-202, jul./set. 2014
NOTAS E COMENTÁRIOS
Novo CPC, o “caballo de Tróya” iura
novit curia e o papel do juiz

Dierle Nunes
Advogado. Doutor em Direito Processual. Professor Adjunto na UFMG e PUC Minas. Sócio do
escritório Camara, Rodrigues, Oliveira & Nunes Advocacia (CRON Advocacia).

Lúcio Delfino
Advogado. Doutor em Direito (PUC-SP). Pós-Doutorando em Direito (Unisinos).

A linguagem técnica do Direito em geral, e a do Direito Processual em particular,


ganha a cada dia mais volume e é incrementada sobremodo pelo sopro que amiúde a
filosofia ali faz chegar. É que há fenômenos cuja descrição não se apresenta apropriada
via palavras empoeiradas, alguns que sequer eram, e sequer são ainda hoje, bem
explicitados pelo linguajar corrente, forjado por uma dogmática cega e entorpecedora.
Então aparece a filosofia e acode os descalçados, impinge questionamentos, derruba
dogmas e enriquece vocabulários permitindo uma investida linguística mais honesta,
precisa e abarcante de muito do que se observa na realidade forense.
O termo solipsismo é um desses importado do domínio filosófico e encerra, em
sua acepção antiga, a ideia de egoísmo, tendo sido empregado por filósofos do calibre
de Baimgarten, Kant, Schopenhauer e Wittgenstein. É ilustrativo, a respeito disso, o
pensamento de Descartes, seu dualismo corpo-mente, que isola o eu em relação a
tudo mais, ao mundo exterior e ao próprio corpo, um solipsismo consequência direta
do argumento do cogitio e que para ele revelaria a existência do pensamento puro
evidenciado pelo próprio ato de pensar.1
Na literatura jurídica a expressão, malgrado seus contornos peculiares, não
perde em essência aquilo que se trabalha em filosofia: fala-se em solipsismo
judicial para expressar um espaço de subjetividade blindado ao exercício pleno do
contraditório, donde decisões judiciais nascem do labor solitário do juiz, ao arrepio
do contraditório. O juiz solipsista é o arquétipo do decisor que não se abre ao debate
processual, aquele que se basta, encapsulado. Atua isoladamente, compromissado
com a sua própria consciência, sem perceber as benesses que o espaço processual
pode viabilizar em termos de legitimidade e eficiência.2

MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia. 13. ed. Rio de Janeiro: J. Zahar Editor, 2014. p. 291.
1

Sobre o fenômeno e seu impacto para o fomento da técnica recursal: NUNES, Dierle. Direito constitucional ao
2

recurso. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006. p. XXVI. Cf. NUNES, Dierle. Processo jurisdicional democrático:
uma análise crítica das reformas processuais. Curitiba: Juruá, 2008.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 205-210, jul./set. 2014 205
Dierle Nunes, Lúcio Delfino

E os riscos de tal postura geram problemas práticos que vêm induzindo o reforço
do contraditório em outros países. Estudos empíricos (psicológicos e jurídicos),
realizados com magistrados americanos, demonstram que o juiz sofre propensões
cognitivas que o induzem a usar atalhos para ajudá-lo a lidar com a pressão da
incerteza e tempo inerente ao processo judicial. É evidenciado que mesmo sendo
experiente e bem treinado, sua vulnerabilidade a uma ilusão cognitiva no julgamento
solitário influencia sua atuação.3
Um exemplo singelo encontrado nas pesquisas, que aclara esta situação, é a
propensão do magistrado que indefere uma liminar a julgar, ao final, improcedente o
pedido. Por um efeito de bloqueio ficou demonstrado que o juiz fica menos propenso
à mudança de sua decisão, mesmo à luz de novas informações ou depois de mais
tempo para a reflexão. Tal bloqueio cognitivo ocorre por causa da tendência a querer
justificar a alocação inicial de recursos, confirmando que a decisão inicial estava
correta.4 Isto induz o fomento ao debate como ferramenta de quebra das ilusões e
propensões cognitivas.
Constata-se, assim, que solipsismo judicial, ao ser prática corrente, apesar de
absolutamente antidemocrática, e aceita de forma irrefletida em muitas das etapas
processuais, traz enormes riscos para a atividade do julgador.5
Ademais, não é nada difícil elencar exemplos corriqueiros de decisões surpresa
(= solipsistas): (i) aplicação ex officio de enunciados de súmula e ementas, como
motivação decisória, descontextualizados de seus fundamentos determinantes,
tornando necessária a interposição de recursos em decorrência do equívoco; (ii) a
condenação à multa por litigância de má fé (ou alguém já presenciou juiz instaurar
incidente para possibilitar aos litigantes debaterem sobre a questão)?; (iii) a condenação
em honorários sucumbenciais, ausente debate sobre os critérios previstos em lei
para o seu arbitramento; (iv) a aplicação abrupta da disregard doctrine, sobretudo na
Justiça do Trabalho, em que a ausência patrimonial da pessoa jurídica devedora é
condição única e suficiente para que o Estado-Juiz sinta-se autorizado a redirecionar
seus canhões ao patrimônio pessoal dos sócios; (v) aplicação ex officio da prescrição
equivocamente em face de ocorrência de causa suspensiva ou interruptiva, obrigando
a interposição de recurso, que seria desnecessário; entre outros. Na maioria
desses casos constata-se, ao menos em primeiro grau de jurisdição, um desdém ao
contraditório, como influência e não surpresa.

3
GUTHRIE, Chris, RACHLINSKI, Jeffrey J., WISTRICH, Andrew J.. Inside the judicial mind. Cornell Law Review,
777, May, 2001, p. 778-829.
4
Lynch, Kevin J. The lock-in effect of preliminary injunctions. Florida Law Review, v. 66. Ap. 2013. p. 779 -821.
5
Não se pode deixar de frisar que muito do que se obteve em ganhos democráticos no Brasil deve-se à doutrina
desenvolvida por Lenio Streck, em sua verdadeira cruzada contra o solipsismo judicial e seus males.

206 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 205-210, jul./set. 2014
Novo CPC, o “caballo de Tróya” iura novit curia e o papel do juiz

E por detrás de todas essas ocorrências funciona um raciocínio robótico,


consolidado pela tradição, de origem medieval6 e que de lá para cá experimentou
notável transformação de conteúdo: a máxima iura novit curia, no processo significando
a presunção de que o direito é conhecido pelo juiz, além de ressaltar o poder a ele
reservado para investigar e aplicar oficiosamente esse direito na solução do caso.
É curioso constatar que a praxe forense confere ao aforismo vigor deontológico
negligenciando que a CF/88 estabelece a obrigatoriedade do devido processo legal
(art. 5º, LIV), do contraditório e a ampla defesa (art. 5º, LV). Nada disso importa
porque é o magistrado que possui livre-convencimento, cuja fundamentação, apesar
de exigida, não o prende aos argumentos das partes: é sua função, à distância de
todos, conhecer o direito e enquadrá-lo aos fatos apresentados, a ponto de vez ou
outra extrapolar o objeto do debate processual e impor uma escolha preconcebida
desligada do procedimento em contraditório.
O que se vê de tal posicionamento concerne não apenas ao direito objetivo, a
referir que o julgador conhece o ordenamento jurídico como um todo (direito objetivo),
algo por si impraticável. Ainda mais grave: o adágio ambiciona hipotecar que ele, o
juiz, tem condições plenas de, avocando postura de monge, enquadrar juridicamente
os fatos e daí chegar à decisão que colocará termo ao conflito. Não por outra razão,
o STJ já entendeu que a atividade jurisdicional está adstrita aos limites do pedido
e da causa de pedir, porém o magistrado aplica o direito à espécie sem qualquer
vinculação aos fundamentos jurídicos deduzidos na petição inicial.7
Esse panorama comprova a aquiescência pela jurisprudência de um entendimento
responsável por aguda lesão ao contraditório, a permitir que lides sejam resolvidas
segundo fundamento jurídico diverso daqueles debatidos ao longo do procedimento,
à revelia das partes e impenetrável à fiscalização técnica dos advogados, prática que
além disso ulcera a regra da congruência, cuja extensão deveria vincular a decisão final
não só ao pedido mas também à própria causa de pedir (fática e jurídica). A lesão ao
contraditório é evidente, em especial ao direito das partes de que seus argumentos
sejam levados em consideração (Recht auf Berücksichtigung von Äußerungen),
que atribui ao magistrado não apenas o dever de tomar conhecimento das razões
apresentadas (Kenntnisnahmepflicht), como também o de considerá-las séria e
detidamente (Erwägungspflicht). Tal figura, equivocada e avessa ao publicismo, induz
o julgador a escolhas decisórias privadas sem influências “externas” provenientes do
debate, do qual participam os litigantes e de seus advogados.
Os problemas aí são variados: (i) O adágio congelou no tempo, trasmudou-se em
espécie de dogma e desprezou a filosofia que desde há muito interroga se é possível

6
SÁNCHEZ, Guillermo Ormazabal. Iura novit curia. La vinculación del juez a la calificación jurídica de la demanda.
Barcelona: M. Pons, 2007. p. 22-23.
7
STJ. AgRg no REsp nº 281.594/SC. No mesmo sentido: STJ, REsp nº 819.568/SP.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 205-210, jul./set. 2014 207
Dierle Nunes, Lúcio Delfino

alguém conhecer algo, como se dá o conhecimento e quais evidências possuímos


de que nossas percepções são reais. Contudo, a jurisprudência impermeabilizou
os juízes da influência dos questionamentos filosóficos e optou por uma postura
pragmática e ilusória: fez deles autoridades indiferentes a toda essa investida
filosófica, capazes sozinhos de conhecer o direito, imunizados da síndrome Matrix;
(ii) Na alta modernidade o fenômeno jurídico é repensado através de uma terceira via
radicalizadora do problema interpretativo que compõe a experiência jurídica. A partir
daí surge uma dimensão de revisão dos postulados jusnaturalistas e juspositivistas8
(Ronald Dworkin, Friedrich Muller, Cattoni de Oliveira, Lenio Streck). Ora, raciocinar
sobre o iura novit curia segundo perspectivas teóricas de tal jaez conduz à conclusão
inexorável de que, no mínimo, paira certo arcaísmo em nossa jurisprudência; (iii) É
realidade a convergência entre os sistemas Common Law e Civil Law. A jurisprudência
no Brasil é inquestionavelmente uma peculiar fonte de Direito. E com a aprovação do
novo CPC se fará indispensável a elaboração de uma teoria dos precedentes amoldada
à nossa realidade. Muitas serão as questões a se considerar, mormente a aplicação
do contraditório substancial na formação, distinção e revogação do precedente. O
iura novit curia, em seu colorido despótico, não se enquadra nesse cenário; (iv) É
pura afetação demarcar quem efetivamente conhece o Direito, se juiz ou advogados.
Qualquer profissional pode se especializar e ficar vigilante às novidades da sua área
de exercício profissional, mantendo-se atualizado às interpretações elaboradas pela
doutrina e aos pormenores da jurisprudência. Assim, o adágio está em descompasso
com a realidade constitucional porque sugere algo adverso daquilo que tanto se
prega atualmente: a democracia processual sob o signo da comparticipação,9 cuja
mecânica impõe a colaboração conjunta de ouriços e raposas, na medida dos limites
impostos a cada qual deles, na construção do provimento jurisdicional; (v) É preciso
ainda questionar se o aforismo acomoda-se a uma justiça de assessores como a
hodierna. Nos corredores de alguns fóruns corre à boca miúda, talvez a título de
anedota, notícias sobre processos que nunca foram examinados por um magistrado
sequer, pois julgados, em todos os graus de jurisdição, tão somente por assessores...
também os assessores conhecem o Direito?
Não é então que surge, como benfazejo alento, o Novo CPC e propõe a regra
de que o órgão jurisdicional, em qualquer grau de jurisdição, não está autorizado a
decidir com base em fundamento a respeito do qual não se tenha oportunizado a
manifestação das partes, ainda que se trate de matéria apreciável de ofício (art. 10).
O dispositivo é arrebatador, concretiza o contraditório substancial e o faz de modo a
não deixar dúvidas: as partes (e seus advogados) devem participar das discussões

8
ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique G.; OLIVEIRA, Rafael T. de. Introdução à teoria e à filosofia do direito. 2.
ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 232.
9
NUNES, Dierle. Processo jurisdicional democrático: uma análise crítica das reformas processuais. cit.

208 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 205-210, jul./set. 2014
Novo CPC, o “caballo de Tróya” iura novit curia e o papel do juiz

sobre fatos e direitos — afinal, a palavra fundamento é expressão genérica e por isso
abrange fundamentos fáticos e jurídicos.
Isso significa que juízes e tribunais não estão autorizados a julgar com base
em fundamento jurídico (e também fático) sobre o qual as partes não tenham
controvertido, incluídas até as questões de ordem pública. Assim já deveria ser,
aliás.10 Bastaria submeter o adágio à uma filtragem constitucional para se constatar
o quanto é obsoleto! Mas como filtragens constitucionais e coisas do gênero dão
muito trabalho, a solução teve que vir legislativamente. E veio em boa hora, bem
formulada e desejosa de oxigenar com ares democráticos a atividade jurisdicional:
sobreleva o devido processo legal, valoriza as partes (e seus advogados) e também
lhes inflige a devida responsabilidade, proscreve a ideia de liberdade decisória,
traz segurança ao estabelecer esteios mais precisos à atuação dos juízes, além de
assolar o autoritarismo característico das tão malvistas decisões-surpresa.
E o que é assaz interessante: uma leitura atenta do dispositivo pode conduzir-nos,
indiretamente, à revisão das teorias que almejam elucidar a causa de pedir. Insistimos
em teses antigas elaboradas para distinguir fato e direito, como se fatos puros sem o
devido enquadramento jurídico tivessem alguma serventia para quem pensa a ciência
jurídica. É hora de darmos crédito a Castanheira Neves, cujos ensinamentos mostram
que fato puro e puro direito nunca se encontram na vida jurídica: enquanto o fato não
tem existência senão a partir do momento em que se torna matéria de aplicação do
Direito, o Direito não tem interesse senão no momento em que se trata de aplicar o
fato. Quando o jurista pensa o fato o faz sempre como matéria do Direito e quando
reflete sobre este está a pensar como forma destinada ao fato.11
O iura novit curia, entretanto não deve ser esquecido no sótão onde jazem as
coisas amarelecidas e cujo tempo tratou de tornar supérfluas. Há que encará-lo com
lentes ajustadas à normatividade constitucional e afastar de seu âmago a arrogância
estatal monopolizadora do saber jurídico. Não é crível conservá-lo em seus contornos
atuais, como um “caballho de Tróya”12 serviente a toda sorte de excessos potenciais
e voluntarismos por parte daqueles que exercem o poder jurisdicional. Nada justifica
mantê-lo enfim como álibi para que o juiz, ou qualquer um solitariamente, transite com
liberdade na interpretação e qualificação jurídica dos fatos que embasam a demanda.
De toda sorte, se interpretado sistematicamente — em atenção a tudo aquilo
que com ele esteja conectado: devido processo legal, regra da congruência, regras de

10
Já demonstramos, nas obras indicadas acima, a incoerência do modo como o aforismo é aplicado no atual
regime constitucional.
11
NEVES, Antonio Castanheira. Questão de fato, questão de direito. O problema metodológico da juridicidade
(ensaio de uma reposição crítica). Coimbra: Almedina, 1967. p. 586.
12
A expressão de Roberto Gargarella, tomada de empréstimo pelo processualista paraguaio Robert Marcial
González em palestra proferida no 11º Congresso Nacional de Direito Processual Garantista, realizado nos dias
21 e 22 de outubro de 2010, no Colégio de Advogados da cidade de Azul, Argentina.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 205-210, jul./set. 2014 209
Dierle Nunes, Lúcio Delfino

estabilização da demanda, como singelos exemplos —, o aforismo ganha importância


por colocar em relevo: (i) a impossibilidade de o julgador aduzir ignorância normativa
a fim de eximir-se do seu mister jurisdicional; e (ii) o fato de que o Judiciário deve
pautar seus julgamentos sempre no ordenamento válido, sobretudo em atenção
as garantias constitucionais. Em síntese: de ferramenta adaptada para viabilizar o
arbítrio estatal, o aforismo ganha força de garantia do debate processual e decorrente
melhoria qualitativa das decisões, um relampejo de esperança num mundo em que
a técnica converte o homem em estatística, num ser sem rosto e tudo que importa
são metas e produção.
Ainda que sejam outros os tempos não sendo o juiz mais considerado algoz da
sociedade, o só motivo de concentrar em si parcela significativa do poder estatal é
suficiente para que, numa democracia, mantenha-se viva a preocupação em evitar
consequências deletérias oriundas da atuação de alguns desses agentes estatais
que, como o mago da fábula, arrogam para si o poder sobre-humano de fazer no
mundo do direito as mais monstruosas metamorfoses e de dar às sombras as
aparências eternas da verdade.13 O juiz de hoje deve ser visto como um garantidor de
direitos fundamentais, nada mais, nada menos.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

NUNES, Dierle; DELFINO, Lúcio. Novo CPC, o “caballo de Tróya” iura novit curia e
o papel do juiz. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte,
ano 22, n. 87, p. 205-210, jul./set. 2014.

CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados. São Paulo: Pilares, 2013. p. 22.
13

210 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 205-210, jul./set. 2014
O novo CPC contra o advogado diligente

Lúcio Delfino
Doutor em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Pós-Doutorando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Membro do
Instituto Pan-Americano de Direito Processual. Membro do Instituto Ibero-Americano de Direito
Processual. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Membro do Instituto dos
Advogados Brasileiros. Membro do Instituto dos Advogados de Minas Gerais. Diretor da Revista
Brasileira de Direito Processual – RBDPro. Professor universitário (UNIUBE). Advogado.

Ao que tudo indica, logo mais teremos entre nós um novo CPC. E provavelmente
já este ano, pois a Câmara dos Deputados concluiu a votação que lhe cabia do CPC
projetado, com aprovação de sua redação final em 26.03.2014, texto que agora
retornou ao Senado Federal para formatação definitiva.
Na atual fase do processo legislativo, a tarefa dos senadores é menos
espinhosa. É que, como a proposição, teve início no Senado Federal, seu regresso a
essa Casa tem por finalidade unicamente a deliberação sobre as emendas sugeridas
pela Câmara dos Deputados, as quais poderão ser ou não acatadas.1
Há, nessas mudanças consideradas em sua generalidade, avanços de quilate,
dignos de elogios;2 não obstante, também abrolham delas problemas, alguns nem
um pouco desprezíveis, e que colocam os mais atentos em estado de alerta. Aqui
o objetivo concentra-se no ataque a um deles, na intenção única de colaborar para
o aperfeiçoamento da nova legislação que se avizinha, como, aliás, tem sido meu
propósito desde o início.
O substitutivo ao Projeto do novo CPC, apresentado pelo senador Valter Pereira,
trouxe como uma de suas inovações a inserção de uma técnica obrigando juízes
e tribunais a decidiriam segundo ordem formada de acordo com a conclusão dos

1
Como leciona Manoel G. Ferreira Filho, no processo legislativo as Câmaras não estão em pé de igualdade,
prevalecendo a vontade daquela que primeiro apreciou o projeto. A Câmara Revisora, por conseguinte,
encontra-se em posição de inferioridade perante à Câmara Iniciadora, havendo na feitura da lei não fusão de
vontades, e sim integração. Ou em outros termos: a Casa Revisora concorda com o projeto, ainda que lhe
ponha emendas, e a sua concordância geral é suficiente para tornar aprovado o projeto, mesmo que suas
emendas sejam eliminadas. Indo mais longe: em virtude de, por disposição constitucional (art. 64), os projetos
de iniciativa do Presidente terem sua discussão necessariamente iniciada na Câmara dos Deputados e serem
os mais importantes, comumente tende a lei a ser um ato em que a vontade principal da Câmara se soma
à secundária do Senado e, quase sempre, à secundária também do Presidente (FERREIRA FILHO, Manoel
Gonçalves. Do processo legislativo. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 224-225).
2
Cito três desses ganhos qualitativos advindos diretamente do trabalho realizado pela Câmara dos Deputados,
sobremodo relacionados às sugestões e críticas elaboradas por Lenio Streck: (i) a expulsão do “princípio do
livre convencimento”, verdadeira conquista hermenêutica sem precedentes no campo da teoria do direito
no Brasil; (ii) a exigência, de inegável caráter dworkiniano, no sentido de que os tribunais estão obrigados
a uniformizar sua jurisprudência, vale dizer, mantê-la estável, íntegra e coerente (art. 520); e iii) o dever
de o órgão jurisdicional observar o disposto nos arts. 10 e 499, parágrafo 1º, na formação e aplicação do
precedente judicial (art. 521, parágrafo 1º).

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 211-217, jul./set. 2014 211
Lúcio Delfino

processos, disponibilizada em lista pelos cartórios para consulta pública (art. 12).
A novidade, que gerou acalorada polêmica, obteve força suficiente e, por isso,
permaneceu no Projeto de Lei nº 166/2010.3
Na Câmara dos Deputados o debate envolvendo o art. 12 regressou a plenos
pulmões, a despeito de sua impopularidade entre muitos juristas: o dispositivo foi
reformulado, melhorado e igualmente aprovado.4 E como se a técnica processual
sugerida já não fosse ruim,5 a ela se somou, talvez na intenção de obter alguma
sistematização normativa, outro dispositivo ainda mais problemático, e cujas
consequências, salvo melhor juízo, prenunciam-se calamitosas.
A referência acima, que se situa na base da crítica ora elaborada, é ao
art. 1536 dessa versão aprovada pela Câmara, o qual infunde o dever de obediência

3
Na versão original deste ensaio, publicada na conceituada revista Consultor Jurídico, há um deslize que mereceu
a devida retificação. Ao contrário do que se lê lá, o art. 12 foi sim aprovado pelo Senado Federal, sofrendo
reformulação na Câmara dos Deputados. Isso significa que inexiste possibilidade agora, no retorno do projeto ao
Senado, de extirpá-lo por completo. Apenas as mudanças que lhe foram feitas é que poderão ser suprimidas.
4
O citado dispositivo ganhou a seguinte redação na Câmara dos Deputados: “Art. 12. Os órgãos jurisdicionais
deverão obedecer à ordem cronológica de conclusão para proferir sentença ou acórdão. §1º A lista de
processos aptos a julgamento deverá estar permanentemente à disposição para consulta pública em cartório
e na rede mundial de computadores. §2º Estão excluídos da regra do caput: I - as sentenças proferidas em
audiência, homologatórias de acordo ou de improcedência liminar do pedido; II - o julgamento de processos em
bloco para aplicação da tese jurídica firmada em julgamento de casos repetitivos; III - o julgamento de recursos
repetitivos ou de incidente de resolução de demandas repetitivas; IV - as decisões proferidas com base no
art. 945; V - o julgamento de embargos de declaração;
VI - o julgamento de agravo interno;
VII - as preferências
legais. §3º Após elaboração de lista própria, respeitar-se-á a ordem cronológica das conclusões entre as
preferências legais. §4º O requerimento formulado pela parte após a inclusão do processo na lista de que trata
o §1o. não altera a ordem cronológica para a decisão, exceto quando implicar a reabertura da instrução ou a
conversão do julgamento em diligência. §5º Decidido o requerimento previsto no §4º, o processo retornará à
mesma posição em que anteriormente se encontrava na lista”.
5
Indico apenas dois problemas técnicos que serão seguramente enfrentados pela praxe forense na aplicação
do art. 12 do CPC projetado: (i) como compatibilizar o julgamento conforme o estado do processo com aquilo
que reza o art. 12, este último a exigir o julgamento de acordo com a ordem cronológica de conclusão para
proferir sentenças? O julgamento conforme o estado do processo, cumpridas as providências preliminares,
ou não havendo necessidade delas (art. 360), não poderá ser realizado de imediato? Ou seja, percebendo
o juiz que o processo comporta julgamento antecipado não estará ele, no entanto, autorizado a fazê-lo, pois
deve antes remeter os autos ao escrivão para que este o inclua na ordem legal de conclusão? Quer dizer que
uma das finalidades do julgamento conforme o estado do processo, precisamente a agilidade na prestação
jurisdicional, se esfumaça?; (ii) e como fazer em caso de julgamento antecipado parcial do mérito (art. 363),
admitido nas hipóteses em que um ou mais pedidos formulados, ou parcela delas, mostrar-se incontroverso
ou estiver em condições de imediato julgamento (art. 363)? Afinal, o art. 12 obriga os órgãos jurisdicionais
a obedecer a ordem cronológica de conclusão apenas para proferir sentenças ou acórdãos, e o julgamento
antecipado parcial de mérito implica decisão interlocutória — há quem pense de maneira diversa, é verdade! (e
só isso já é um problema) —, desafiada, por expressa disposição, mediante agravo de instrumento (art. 363,
parágrafo 4º). Percebendo o juiz que o caso comporta julgamento antecipado parcial não poderá fazê-lo de pronto,
cumprindo-lhe, por obediência à lei, devolver os autos à secretaria para que seja incluído na ordem legal?
6
“Art. 153. O escrivão ou chefe de secretaria deverá obedecer à ordem cronológica de recebimento para
publicação e efetivação dos pronunciamentos judiciais. §1º A lista de processos recebidos deverá ser
disponibilizada, de forma permanente, para consulta pública. §2º Estão excluídos da regra do caput: I - os
atos urgentes, assim reconhecidos pelo juiz no pronunciamento judicial a ser efetivado; II - as preferências
legais. §3º Após elaboração de lista própria, respeitar-se-á a ordem cronológica de recebimento entre os
atos urgentes e as preferências legais. §4º A parte que se considerar preterida na ordem cronológica poderá
reclamar, nos próprios autos, ao juiz da causa, que requisitará informações ao servidor, a serem prestadas
no prazo de dois dias. §5.o Constatada a preterição, o juiz determinará o imediato cumprimento do ato e a
instauração do processo administrativo disciplinar contra o servidor”.

212 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 211-217, jul./set. 2014
O novo CPC contra o advogado diligente

pelo escrivão ou chefe de secretaria à ordem cronológica de recebimento para


publicação e efetivação dos pronunciamentos judiciais. O que se propõe, como
restará claro adiante, é um violento golpe contra o advogado diligente.
Ao rezar que as publicações e efetivações dos pronunciamentos judiciais
devem respeitar a ordem cronológica de recebimento, o que pretendeu o legislador
foi elaborar um arranjo formal que obtenha sucesso em organizar a burocracia interna
dos cartórios judiciais e talvez promover, por pouco que seja, um caminho hábil para o
combate ao represamento de processos, mas isso de modo que a impessoalidade e
a isonomia sejam asseguradas, apostando-se no acaso e não numa possível escolha
arbitrária feita pelos serventuários, que acabam tendo algum poder de decisão sobre
aquilo que merece ou não agilidade, seja por desejo próprio, seja porque admoestados
a fazê-lo por qualquer um que opere nos autos, em especial os advogados.
Nem de longe se nega as boas intenções do legislador. A questão contudo
é que não se percebeu a gravidade das implicações que o dispositivo aludido, de
duvidosa constitucionalidade, poderá acarretar no dia a dia do foro. Basta pensar
que uma das atividades mais comuns e de longa data integrada à nossa tradição,
praticada pelos advogados em diligência, preocupados com os interesses dos seus
constituintes, é cobrar a atuação dos servidores responsáveis pelo cumprimento de
atos processuais, como (i) a publicação de despachos ou decisões; (ii) a prática de
citações ou intimações pessoais; (iii) a lavratura e expedição de alvarás; (iv) a lavratura
e assinatura de termos; (v) o aperfeiçoamento da penhora e a designação de hasta
pública; (vi) a conclusão de processos estagnados nos escaninhos; vii) a manifestação
sobre proposta de honorários periciais em que o advogado, no próprio balcão da
secretaria, lança seu “de acordo”; (viii) a remessa dos autos ao representante do
Ministério Público; (ix) audiência junto ao relator perante os tribunais para que o
processo seja colocado em pauta. Não é à toa que, no meio forense, o advogado já
tenha sido apelidado, com uma ponta de sarcasmo, de pedinte qualificado, tamanhas
são as atribuições que exigem sua atenção contínua, às vezes, a bem da verdade,
incômodo para os servidores que com ele lidam no cotidiano.
Ninguém nega que o mundo seja imperfeito. Ele o é, em abundância, o que de
fato também se aplica à realidade forense, onde a lida diária, a envolver, no final
das contas, contato entre pessoas, muitas vezes exige a atuação mais próxima do
profissional da advocacia — atuação essa que, não obstante invisível nas laudas
dos autos, é assaz positiva exatamente por acelerar o trâmite e o fecho da atividade
jurisdicional. O art. 153 representa, nessa ótica, uma ação avessa ao advogado
diligente, quem, com o seu trabalho zeloso e atento, coopera e faz com que a marcha
processual permaneça viva, isto é, aquele profissional que, ao perceber que um
processo sob seu patrocínio encontra-se na vala comum das escrivanias, sujeito à
inércia indefinida, usa do corpo a corpo para garantir que a prestação jurisdicional
dê-se em tempo satisfatório.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 211-217, jul./set. 2014 213
Lúcio Delfino

Há, ainda, incompatibilidade entre o art. 153 e a própria principiologia que


confere alicerce ao CPC projetado. É suficiente afirmar que ali, em seu corpo normativo,
fazendo eco à Constituição Federal, lê-se um artigo estabelecendo que as partes
têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do processo, incluída
naturalmente a atividade satisfativa (art. 4º). Embora desnecessário, o dispositivo
é bem-vindo, encerra valor simbólico, realça o comando constitucional, dá-lhe força
e elucida que os direitos fundamentais que conferem conteúdo ao devido processo
legal não são promessas vazias por possuírem caráter deontológico. Mas importa
aqui é o antagonismo entre “direito fundamental à duração razoável” e “dever do
escrivão (ou chefe de secretaria) em obedecer à ordem cronológica de recebimento
para publicação e efetivação dos pronunciamentos judiciais”.
Como já se disse, o art. 153 desdenha o papel do próprio advogado e a sua
condição de agente indispensável à administração da justiça (CF/88, art. 133), mina
a sua liberdade de performance em prol de um arranjo matematizado que relega ao
nada a inteligência dos escrivães e chefes de secretaria em controlar e administrar
o próprio meio em que exercem seu ofício. Com isso não é difícil perceber que se
impedirá o advogado de quebrar a burocracia interna dos cartórios judiciais e, por
meio de sua peleja habitual, provocar e conservar a marcha processual dos feitos
que patrocina. Enfim, o dispositivo em comento tem plenas condições de anular
um fenômeno que, observado de ponto privilegiado, é assaz benéfico: afinal, são
milhares de advogados que obraram como pedintes qualificados, cujos esforços
reunidos alavancam uma força invisível empenhada, com perfeição, à garantia de
duração razoável do processo.
E mais que isso, e não menos grave: o art. 153 privilegia o litigante que não
tem interesse em uma justiça ágil, além de sustentar uma possível comodidade
que, vez ou outra, distingue a atuação de alguns servidores: a partir de agora, afora
os casos nos quais a intimação se der automaticamente por meio da retirada dos
autos em carga, sempre que cobrados pelos advogados operantes nos autos, terão
os escrivães (ou chefes de secretaria), por dever funcional, que se apegarem ao
inexorável respeito à ordem contida em lista. Dirão, com voz segura: “Veja a lista,
doutor! Seu processo ainda está lá atrás, e, como o senhor bem sabe, é nosso dever
aguardar o momento certo para atender ao que foi determinado pelo juiz. Não é má
vontade minha. Está na lei, e não fui eu quem a criou! E não alimente esperanças de
rapidez, pois vai demorar um pouquinho para o seu cliente ser atendido; olhe como
está a nossa secretaria: abarrotada, sem espaço sequer para andarmos; estamos
praticamente pisando sobre processos”.
É o Estado, uma vez mais, interferindo onde não deveria, enfiando seu longo e
pontudo nariz em esfera na qual a liberdade de atuação daqueles que funcionam no
processo, onde operam e sempre operaram os advogados, é de longe a melhor opção.
Corre-se, por isso, o risco real de o novo CPC arruinar esse ganho em rendimento,

214 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 211-217, jul./set. 2014
O novo CPC contra o advogado diligente

cuja conquista se deve também ao advogado diligente, atento ao trâmite dos seus
processos e preocupado em cumprir, da forma mais expedita possível, seu mandato,
e atender aos interesses daquele que o contratou.
Mas não fiquemos nisso. Em voo de águia, sigo reforçando os argumentos
anteriores e pontuando alguns outros, que assinalam intempéries já possíveis de
antever caso a opção legislativa seja mesmo a de conservar o infeliz dispositivo:
1) A atividade de boa parte dos advogados, com a publicação e vigência do novo
CPC será limitada sobremaneira, em especial a daqueles que atuam e aferem
seus rendimentos na qualidade de correspondentes ou apoiadores de outros
advogados ou bancas de advocacia. Não se olvide, ademais, que alguns
profissionais da advocacia são contratados especialmente para diligenciar
em secretarias judiciais e agilizar julgamentos, sobretudo em segundo grau,
mercado de trabalho que tende a diminuir bastante caso mantida a atual
redação do art. 153.
2) Já se disse que o art. 153 teve talvez por motor a intenção de sistematização:
pretendeu-se promover um diálogo entre ele e o citado art. 12. Contudo,
falhou o legislador porque o rol de exceções, previsto no parágrafo 2º do
art. 153, ao que tudo indica taxativo, não prevê algumas hipóteses que ali
deveriam figurar. Dois exemplos servirão aqui: (i) não estão entre as exceções
as cartas precatórias, o que leva a crer que deverão elas ser inseridas
na lista geral e comum à totalidade dos casos. Imagine-se então cartas
precatórias, cujo propósito se volta à oitiva de uma única testemunha, ou
mesmo a citação de alguém. Ficarão elas a depender da ordem contida em
lista para cumprimento e, enquanto isso, os autos principais permanecerão
aprisionados no juízo deprecante; e (ii) reza o art. 626 que o processo de
inventário e de partilha deve ser instaurado dentro de dois meses, a contar
da abertura da sucessão, ultimando-se nos doze meses subsequentes,
podendo o juiz prorrogar esses prazos, de ofício ou a requerimento da parte.
Nada há no rol do §2º do art. 153 sobre os processos de inventário. Não
são, de regra, urgentes e tampouco incluem-se nas preferências legais.
Significará isso que muito raramente um inventário será cumprido dentro de
doze meses, porquanto, por imposição legal, as publicações e efetivações
das decisões proferidas nos autos obrigatoriamente dependem da ordem
contida na lista. Quis-se, portanto, sistematizar, mas o que se conseguiu foi
criar embaraços ao ordenamento processual projetado.
3) O dispositivo em exame reza que a ordem cronológica dos pronunciamentos
judiciais, recebidos na secretaria, será registrada em duas listas: a primeira
destinada à generalidade dos casos, enquanto a outra reservada às exceções
(atos urgentes e preferências legais). Ocorre que essa é uma racionalidade

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 211-217, jul./set. 2014 215
Lúcio Delfino

estranha às funções desempenhadas pelas serventias judiciais. Não


há sentido em se estabelecer uma ordem legal para o cumprimento de
decisões urgentes. Noutras palavras: decisões urgentes, a envolver com
frequência questões alusivas à própria saúde ou à vida das pessoas, exigem
cumprimento imediato e ao mesmo tempo, sejam quantas forem e pouco
importando a energia despendida para tanto. A lógica da vida é diversa da
matemática que se pensou para a elaboração do art. 153 do CPC-2014.
4) Prevê o inciso I do art. 153 que os atos urgentes, assim reconhecidos pelo
juiz no pronunciamento judicial a ser efetivado, não se sujeitarão à ordem
prevista no caput, mas à segunda ordem, esta a envolver exatamente
atos urgentes e preferências legais, como já mencionado no item anterior.
Interpretado ao pé da letra, atribui-se ao juiz poder (discricionário) para que
defina, segundo seu próprio talante, quais dos seus pronunciamentos são
ou não urgentes. E por consequência, é ele, o juiz, quem decidirá o destino
a ser dado aos seus despachos e decisões: uns serão alocados à lista de
ouro, ao passo que os demais serão inseridos na ordem comum. Trocando
em miúdos: desrespeito à democracia por uma prática judicial solipsista
autorizada nas dobras da lei. Mas interessa sobretudo é refletir sobre a
prática forense: não é difícil imaginar a quantidade de pedidos dirigidos aos
juízes para que considerem e decidam como urgentes a efetivação de muitos
pronunciamentos judiciais. Tampouco é excessivo pressagiar uma gama de
mandados de segurança tendo por alvo, precisamente, o ataque às decisões
sem o rótulo “urgente”. Não deve o legislador subestimar a criatividade
dos advogados, que atuarão, de maneira plena e legítima, para garantir as
pretensões de seus constituintes — trata-se de uma advertência que merece
ser levada a sério, pois uma ação inesperada não raramente surge como
resultado de estímulos originários de leis produzidas sem maiores reflexões,
uma espécie de efeito rebote cujas consequências às vezes são nefastas.
Por tudo isso, e por outras considerações que decerto me escaparam, não é
exagerada a afirmação de que o art. 153, oriundo da Câmara dos Deputados, pode
revolucionar o âmbito forense, transformando (ou deformando?) visceralmente nosso
jeito de lidar com as coisas do foro, mas infelizmente não para o lado positivo. Bem
ao revés, o que se experimentará, caso vingue a sugestão, é um retrocesso social
cujas sequelas logo serão percebidas: a máquina jurisdicional, submetida hoje a uma
demanda que supera 90 milhões de processos em todo o Brasil, se verá diante de
mais um obstáculo, agora de ordem legal, a emperrar seu funcionamento, em repulsa
a outro comando constitucional, com lugar certo no próprio CPC projetado (art. 6º),
que impele obediência, por parte do Judiciário, à tão menosprezada eficiência dos
serviços públicos (CF/88, art. 37).

216 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 211-217, jul./set. 2014
O novo CPC contra o advogado diligente

Para a alegria de todos o processo legislativo não se concluiu. E é alvissareiro


o fato de que, nesse particular, ainda há esperanças, porquanto o Senado possui
plenas condições de avaliar, com a atenção exigida, as vantagens e desvantagens de
se inserir no ordenamento processual o texto normativo ora criticado. E, ao menos
em minhas ponderações, o melhor mesmo é extirpá-lo por completo, como também
se deveria proceder, caso o processo legislativo o permitisse,7 com relação ao seu
primo-irmão, o teimoso e valente art. 12, cuja história, tão curta, puída e cheia de
mossas, já é entrecortada por tantas críticas e polêmicas.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

DELFINO, Lúcio. O novo CPC contra o advogado diligente. Revista Brasileira de Direito
Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 211-217, jul./set. 2014.

Como afirmado em nota de rodapé anterior, não é mais possível eliminar o art. 12 do projeto do novo CPC. O
7

que se pode fazer é afastar as mudanças que lhe foram impingidas pela Câmara dos Deputados, o que seria
uma infelicidade ainda maior, uma vez que a versão da Casa Revisora é superior em qualidade àquela da
Casa Iniciadora.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 211-217, jul./set. 2014 217
Pronunciamento do Advogado Dr. José
Anchieta da Silva, homenageado no
Congresso de Direito Processual de
Uberaba – 8. ed. no dia 11 de setembro
de 2014

José Anchieta da Silva


Membro nato do Conselho Superior do IAMG.

Cumprimentos,
A comunidade científica do Direito do Triângulo Mineiro se reúne pelo oitavo
ano, na realização do seu Congresso de Direito do Processo, empresa vitoriosa,
cujo sucesso já ecoa pelo Brasil e pelo mundo. É uma celebração que faz justiça
a tantos quanto dele se ocuparam, com destaque para os pró-homens do Instituto
dos Advogados de Minas Gerais (cujo centenário se celebra em 07 de março de
2015); da Ordem dos Advogados de Minas Gerais, subsecção de Uberaba; das
Faculdades de Direito da região. É maneira votiva de manter inesquecível Escola
de Processualistas do Triângulo Mineiro, movimento de pensadores do Direito do
Processo, cuja caminhada se iniciou nos idos dos anos setenta da centúria passada,
quando veio a lume o Código de Processo Civil de Alfredo Buzaid (1973).
Com esta celebração, tornou-se hábito prestar homenagem a figuras que
tenham, de alguma forma, participado ou contribuído na caminhada do Direito (o
Direito caminha), da advocacia, do magistério jurídico, das atividades forenses. A
lembrança de meu nome para receber a homenagem, tenho certeza, se deve apenas
à generosidade de amigos. Tenho, todavia, o orgulho de ter ocupado a presidência do
Instituto dos Advogados de Minas Gerais (IAMG), no momento em que concebida e
gerada foi a primeira edição desse Congresso. Nesse período, aqui compareci como
palestrante, me ocupando de temas que me são caros, dentre os quais recordo: “A
carreira do advogado”; “O projeto do novo Código de Processo Civil – andanças do
Colégio de Presidentes dos Institutos dos Advogados do Brasil”; “O Processo na Ação
de Recuperação Judicial da Empresa”; “A desconsideração da personalidade jurídica
e o processo”; “O princípio da oralidade no projeto de Código de Processo Civil”. Em
edição anterior desse Congresso tive a honra de receber a “Comenda Edson Prata”
que, neste ano está sendo outorgada, nesta assentada, e com justiça, ao professor
Leone Trida Sene, associado de nosso IAMG, advogado, professor universitário e
autor do livro Seguro de pessoas; ao magistrado Fabiano Rubinger de Queiroz, juiz

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 219-224, jul./set. 2014 219
José Anchieta da Silva

de Direito da 2a Vara Cível da Comarca de Uberaba e Diretor do Fórum, cujo trabalho


acompanhamos à distância; ao advogado Sérgio Murilo Braga, diretor da Caixa de
Assistência dos Advogados, da Ordem dos Advogados, em Minas Gerais. A esses, os
meus cumprimentos especiais.
O espaço conferido ao homenageado nesta celebração há de ser usado para
evocar a presença de um gigante que habitou esta terra e que inspirou realizações de
peso e de vulto na área do Direito, sobretudo. Refiro-me à figura ímpar de Edson Prata,
fazendo desde logo e desde pronto uma revelação pessoal. Tenho ciúme daqueles
que com ele conviveram. O meu currículo carrega este vácuo e esta deficiência
incontornáveis: a de não ter nem conhecido e nem convivido pessoalmente com Edson
Prata, como jurista, como homem de visão, como realizador, como intelectual, já que
ele, sem nos avisar, faleceu muito cedo, antes que eu frequentasse e convivesse
com os amigos desta aprazível Uberaba. Conheci Edson Prata da maneira que se
conhece os grandes mestres, através de seus escritos e através de depoimentos de
seus amigos e discípulos, vários deles aqui presentes.
Passo, assim e então, a discorrer sobre a bula, uma breve anamnésia de Edson
Prata, fazendo-o a partir daquilo que disseram e dizem, escreveram e escrevem,
os que com ele conviveram, e me refiro, nominalmente, aos amigos João D’Amico,
Claudiovir Delfino, Gilberto Vasconcelos, Valentin Carrion, André Delfino, Lídia Prata.
Devo, portanto, dizer-lhes coisas velhas. Conto o que me contaram. E subscrevo.
A utilidade desse apanhado, desse resumo, está na reunião de depoimentos
insuspeitos, harmônicos, com relação aos registros da vida e da obra de Edson Prata,
cuja história não pode perecer, necessitam ser renovados, evocados.
Lídia Prata, sua filha, traz a texto o patronímico de seu progenitor: Edson
Gonçalves Prata, nascido em Conceição das Alagoas (1927), filho de Ranulfo
Gonçalves Prata e Marieta de Sene Prata que, viúva, veio com seus cinco filhos para
Uberaba, onde Edson, ainda criança, trabalhou como entregador da Farmácia Santa
Teresinha, colaborando no sustento da família. Aqui, estudou na Escola de Comércio
José Bonifácio, onde retornaria como professor. Trabalhou no Banco do Triângulo
Mineiro e, mais tarde, por concurso público no qual lograria o primeiro lugar nacional,
trabalhou no Banco do Brasil, na carteira rural. Graduou-se na primeira turma da
recém-implantada Faculdade de Direito do Triângulo, que integraria a Universidade de
Uberaba, fundada esta por Mário Palmério.
Lecionou por mais de duas décadas na Faculdade de Direito do Triângulo Mineiro,
como titular da cadeira de “Processo Civil”, na Universidade Federal de Uberlândia
e no curso de Comunicação da antiga Fista – Faculdades Integradas Santo Tomás
de Aquino. Dentre suas obras jurídicas figuram: Petição inicial e seus requisitos; Da
contestação; Processo de conhecimento; História do processo civil e sua projeção
no direito moderno; Embargos de terceiro; A revelia no direito brasileiro, e ainda,

220 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 219-224, jul./set. 2014
Pronunciamento do Advogado Dr. José Anchieta da Silva, homenageado no Congresso de Direito Processual de...

Desquite amigável. Observem a linha adotada por Edson Prata na ordem de seus
escritos, reveladora do grande lente que foi — o dizem todos os seus ex-alunos —.
Trabalhou ordenadamente os temas de processo, começando pela petição inicial,
passou pela contestação, pelo processo de conhecimento, pelos embargos e chegou
à história do processo. São textos que correspondem às aulas reescritas a partir da
palavra do mestre. Escreveu, também, obras de cunho literário, como Machado de
Assis – O homem e a obra; Contos miúdos, Estórias de gente mineira. Fundou em
Uberaba a “Editora Vitória Limitada”, dentre cujos títulos estão obras de Humberto
Theodoro Junior, Ronaldo Cunha Campos, Sálvio de Figueiredo Teixeira, Jacy de Assis,
Ernane Fidelis. Dessa empreitada, se pode dizer que Edson Prata cuidou do púlpito e
do parlatório oficial do que viria a ser consagrada como a Escola de Processualistas
do Triângulo Mineiro.
Edson Prata teve tempo para tudo. No campo da empresa, participou como sócio,
da Sociedade de Máquinas e Implementos Agrícolas Limitada (Somil); da Mogiana
Veículos Limitada; da Sociedade Distribuidora de Títulos e Valores Limitada(Sotil); da
Agropecuária Santa Vitória Limitada; da Rádio Sete Colinas de Uberaba e da Talulah
Modas e Presentes Limitada. Tinha fôlego.
De Lídia Prata passamos a Gilberto Vasconcelos (com seu discurso de 2012)
que chama a atenção para as qualidades peculiares de Edson Prata, dele destacando
o seu “pluralismo”; a sua condição de democrata sem afetações. São conclusões
autorizadas que merecem ser compreendidas dentro de seu contexto. O Brasil vivia
os mais turvos dias da ditadura militar e o testemunho de Gilberto, sobrevivente das
maiores violências que o regime imprimiu aos homens de pensamento livre, tem,
portanto, a autoridade de quem sofreu na carne os horrores dos presos políticos
de então. Prossegue Gilberto a afirmar que Edson Prata foi o condutor da “Escola
Processual do Triângulo Mineiro”, tendo sido o editor da Revista Brasileira de Direito
Processual, e, depois, da Revista Crítica Judiciária, o Digesto de Processo. De espírito
irrequieto, Prata criou o Jornal da Manhã, nele mantendo espaço para promover
debates sobre temas jurídicos, coisa rara até mesmo nos grandes jornais dos
grandes centros brasileiros. Para o seu jornal, trouxe ninguém menos do que Mauro
Santayana, jornalista já então de renome internacional, autodidata e um dos pais do
bom jornalismo político brasileiro. Edson Prata foi um homem adiante de seu tempo.
De Lídia Prata e de Gilberto Vasconcelos vamos a Claudiovir Delfino (em seu
discurso de 2011), que traz outra informação ratificadora da anterior. Edson Prata
trouxe para junto de si, em seu escritório profissional, seu ex-colega de trabalho no
Banco do Brasil, José Raimundo Alves Pinto, de onde fora injustamente demitido, em
razão de sua militância política. Apesar dos riscos que essa empreitada compreendia,
o Professor Edson Prata não se fez de rogado, trouxe o José Raimundo proscrito
e fez mais, desfilou com o amigo pelo centro e pelos endereços mais oficiais de

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 219-224, jul./set. 2014 221
José Anchieta da Silva

Uberaba. Estava, assim, a dizer e a ensinar, que não há exercício da democracia sem
destemor. Edson Prata, um homem livre, proporcionava liberdade. Os depoimentos
de Gilberto e de Claudiovir são testemunhos da História e para a História.
André Menezes Delfino (em seu discurso de 2009), também biografa o grande
alagoano-uberabense. Anota que ele foi o fundador da Sociedade Rural do Triângulo
Mineiro, precursora da Associação Brasileira dos Criadores de Zebu. Escritor e
contista, foi cofundador da Academia de Letras do Triangulo Mineiro. É dele, segundo
André Delfino, a feliz expressão segundo a qual “dividir conhecimentos é uma das
maneiras de se tornar imortal”.
João D’Amico (discurso de 2008), sempre lembrado dirigente do Instituto
dos Advogados de Minas Gerais, denuncia de Edson Prata o seu forte caráter, a
sua marcante personalidade e registra ter sido Prata o criador da primeira secção
do IAMG.
Para Valentin Carrion (em discurso de 1978, transcrito em O Diário de Ribeirão
Preto), Edson Prata era um homem que não sabia exatamente a que veio e enquanto
não descobria seu destino fez de tudo um pouco, e muito bem.
De tudo quanto nos legou Edson Prata, sobressai a sua condição de intrépido
realizador, de homem irrequieto como devem ser os que se dedicam ao estudo e à
profissão do Direito. É em homenagem a ele que trago à reflexão dois temas que nos
assaltam nesta hora presente e em relação aos quais a comunidade dos juristas,
principalmente dos advogados, não pode fazer silêncio.
Nos últimos dias percebemos nos fóruns de São Paulo e de Belo Horizonte,
comportamento equivocado de magistrados, ao adotarem o instituto do “segredo de
justiça” para casos comuns, como os de penhora em execução de título executivo
extrajudicial, em processo de busca e apreensão, e em incidente de extensão
de falência. São precedentes perigosos e, ao que parece, fazem parte de um
comportamento orquestrado. O instituto do segredo de justiça é instituto submetido
à regração legal. Tem por destinatários os terceiros em relação à lide, mas não tem
cabida em relação às partes. A surpresa não é, e não pode ser, nem princípio e
nem regra de processo, pelo contrário. Querem inaugurar, no Brasil, e certamente
enriquecerá o anedotário forense, um novo tipo de justiça justiceira, como no velho
oeste, iniciando-se o processo a partir da ação do xerife que surpreende o incauto
cidadão ao decretar-lhe, sem qualquer chance de reação, aquele: Teje preso!
O saudável e nobre instituto do “segredo de justiça” serve aos interesses do
Estado, em favor de legítimo interesse público. Tem cabida em situações que a lei
descreve, como, por exemplo, nas ações próprias das varas de família, em face da
proteção desse bem maior, já que as querelas familiares interessam estreitamente
aos demandantes e a mais ninguém. Imprimir ou adotar o “segredo de justiça” em
ações de viés patrimonialista corresponde a conspurcar texto expresso da Constituição

222 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 219-224, jul./set. 2014
Pronunciamento do Advogado Dr. José Anchieta da Silva, homenageado no Congresso de Direito Processual de...

da República, além de regras e princípios próprios do processo civil, aos quais não
se pode renunciar.
Para a segunda reflexão, ponho à mesa o Projeto de Lei nº 5.479/2013, que
tramita no Congresso acional, através do qual se pretende conceder o diploma e a
profissão de “paralegal” aos bacharéis em direito que não tenham logrado êxito no
exame de Ordem. Com esse Frankenstein, se transformado em lei, o próximo passo
seria, acreditem, a criação de um sindicato com capacidade de abrigar mais de um
milhão de bacharéis reprovados pela OAB e, o passo final, não duvidem, será um ferir
de morte o exame de Ordem.
O Brasil não conhece, por tradição, a profissão dos “paralegais”. Poderá,
todavia, vir a conhecê-la. Mas esta não é a questão. Ocorre que bacharel em direito
não é um “paralegal”. Os cursos de direito não conferem a seus bacharéis essa
qualificação. Com a péssima formação que o ensino jurídico dedica aos estudantes
em geral — e ressalvemos, há ilhas de excelência de ensino jurídico no Brasil — já são
mais de um milhão de pessoas reprovadas no exame da OAB. Este número cresce,
geometricamente, a cada nova edição desse exame de habilitação, indispensável, no
Brasil, à admissão como advogado.
A solução simplista e equivocada de abrigar esses bacharéis como “paralegais”
leva a questão à situação do inusitado. Nas provas e nos concursos em geral,
de aferição de conhecimento, premia-se o saber dos vencedores. Com esses
“paralegais”, seria, o Brasil, o único lugar no mundo onde a pessoa, reprovada, é
promovida, ganhando uma profissão. Na maioria dos casos, esses pobres bacharéis
já foram enganados por uma vez, ao frequentarem cursos desprovidos de condições
mínimas de ensino. Não podem, com rótulo novo, ser enganados mais uma vez.
Na medida em que tal projeto se convole em lei — vade retro — os próximos
passos, já se antevê: esses mais de um milhão de diplomados nos cursos de direito
(exatamente os que demonstraram inaptidão para o exercício da advocacia) formariam
um “sindicato” ou algo do gênero. Em seguida, viria uma pressão sobre a OAB e
assim, de novo, se reabre a demanda sobre a manutenção do exame de Ordem. O
risco de se comprometer a advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil é maior do
que parece.
É falsa a argumentação de que esse contingente de bacharéis estaria nos
escritórios de advocacia. Ao contrário, a esses escritórios só interessa o profissional
capaz, habilitado na Ordem dos Advogados do Brasil. De outro modo, a qualidade de
seus serviços estaria posta em cheque, já que realizado por mãos inabilitadas.
É preciso trazer a texto que a função dos “paralegais” não pode se confundir
com a função do advogado. O radical “para”, de origem grega, corresponde a estar
ao lado, não no mesmo lugar. Para o exercício de suas funções, necessariamente
auxiliares, presume-se, a pessoa deve deter habilidades variadas, como a

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 219-224, jul./set. 2014 223
JOSÉ ANCHIETA DA SILVA

organização de agenda, o manuseio de computadores e sistemas de comunicação, a


confecção de relatórios; são trabalhos que reclamam outro tipo de formação. Dessa
equivocadamente pretendida acomodação do exército de bacharéis frustrados como
“paralegais”, resultaria, na verdade, uma humilhação desse contingente, a todos
ludibriando, inclusive a si próprio.
O Brasil detém, hoje, aproximadamente 1.260 Faculdades de Direito, e o resto
do mundo, somado, possui 1.100 (dados da OAB/SP). Está aí, certamente, a origem
do problema. É preciso impedir que esse projeto, que já venceu a etapa da Comissão
de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, em Brasília, vire lei.
Certamente, os presentes perguntariam o que é que tais questões teriam de
pertinentes, numa sessão em que o orador se comprometera com a homenagem
a Edson Prata. Tenho certeza que se o homenageado, Professor Edson Prata, aqui
estivesse presente, não se furtaria a este debate. Edson Prata foi plantador de
plantio em cova funda; vejo-o ali, na primeira fila, como se vivo fosse e presente aqui
estivesse, porque as pessoas que constroem a partir de exemplos de vida e de obras
intelectuais não morrem, nem nos assombram, apenas respondem: “presente”, cada
vez que seus exemplos e seus ensinamentos são de alguma forma postos à mesa.
Perdoem-me os amigos diletos e a distinta plateia, mas não consigo participar
de debates científicos sem contribuir com algum tipo de provocação. Muito obrigado.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

SILVA, José Anchieta da. Pronunciamento do Advogado Dr. José Anchieta da Silva,
homenageado no Congresso de Direito Processual de Uberaba – 8. ed. no dia 11
de setembro de 2014. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo
Horizonte, ano 22, n. 87, p. 219-224, jul./set. 2014.

224 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 219-224, jul./set. 2014
RESENHAS
ALVIM, Arruda et al. (Coord.). Execução
e temas afins – Do CPC/1973 ao novo
CPC – Estudos em homenagem ao Prof.
Araken de Assis. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2014

Marcelo José Magalhães Bonicio


Professor Doutor da USP. Pós-Doutor pela Universidade de Lisboa. Membro do IBDP e do
IASP. Procurador do Estado de São Paulo.

O estudo do processo, ou da fase de execução, sempre lança luzes sobre a


efetividade do processo, um dos mais tormentosos temas de direito processual das
últimas décadas.
Se a fase de conhecimento está vocacionada para a análise das questões de
mérito, a fase de execução não tem, ou não deveria ter, nenhuma vocação para isso,
porque na execução busca-se apenas um resultado prático, que nada mais é do que
a entrega, no mundo real, do bem que o autor deseja.
É nesse contexto que os autores do livro Execução civil e temas afins – Do
CPC/1973 ao novo CPC assumiram a tarefa de homenagear Araken de Assis, um dos
mais importantes processualistas do direito pátrio, que tanto se dedicou ao estudo
da execução civil brasileira.
Na linha do pensamento desse ilustre mestre, os autores enfrentaram boa parte
das mais angustiantes questões que a execução apresenta na atualidade, como, por
exemplo, o problema da impenhorabilidade de determinados bens; os honorários de
advogado no cumprimento de sentença face ao projeto do novo CPC; a adjudicação;
a prescrição intercorrente; a coisa julgada e o cumprimento da sentença em sede de
ação civil pública; os problemas e as perplexidades do processo contemporâneo; e os
princípios do processo de execução, apenas para mencionar alguns dos importantes
estudos que foram alinhavados na obra mencionada.
Participaram da justa homenagem os seguintes autores: Adriana Aparecida
Giosa Ligero, Alexandre Freire, Alexandre Freitas Câmara, Angélica Arruda Alvim,
Antonio Janyr Dall’Agnol Junior, Antonio Notariano Jr., Arlete Inês Aurelli, Arnaldo
Rizzardo, Arruda Alvim, Athos Gusmão Carneiro, Bruno Garcia Redondo, Carlos
Alberto Molinaro, Carlos Eduardo Jorge Bernardini, Cassio Scarpinella Bueno, Daniel
Bittencourt Guariento, Daniel Colnago Rodrigues, Daniel Marques de Camargo, Daniel
Mitidiero, Daniel Willian Granado, Denis Donoso, Dierle Nunes, Eduardo Arruda Alvim,

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 227-228, jul./set. 2014 227
Marcelo José Magalhães Bonicio

Eduardo de Avelar Lamy, Eduardo Talamini, Elaine Harzheim Macedo, Emmanuel


Gustavo Haddad, Ernane Fidélis dos Santos, Fábio Luiz Gomes, Fábio Victor da Fonte
Monnerat, Fátima Nancy Andrighi, Felipe Froner, Fernanda Tartuce, Fernando da
Fonseca Gajardoni, Flávio Luiz Yarshell, Fredie Didier Jr., Geraldo Fonseca de Barros
Neto, Gerson Fischmann, Gilberto Gomes Bruschi, Gilberto Notário Ligero, Glauco
Gumerato Ramos, Gustavo Milaré Almeida, Heitor Vitor Mendonça Sica, Helder
Moroni Câmara, Helena Najjar Abdo, Humberto Theodoro Júnior, Jaqueline Mielke
Silva, Jefferson Carús Guedes, João Batista Lopes, Joel Dias Figueira Júnior, José
Maria Tesheiner, José Miguel Garcia Medina, Leonardo Carneiro da Cunha, Lucas
Rister de Sousa Lima, Luciano Pasoti Monfardini, Luiz Fernando do Vale de Almeida
Guilherme, Luiz Guerra, Luiz Guilherme Marinoni, Luiz Guilherme Paiva Vianna, Luiz
Manoel Gomes Júnior, Marcello Soares Castro, Márcio Manoel Maidame, Marcus
Vinícius Motter Borges, Maria Berenice Dias, Maria Cristina Zainaghi, Maria Elizabeth
de Castro Lopes, Mariangela Guerreiro Milhoranza, Maristela Basso, Mônica Bonetti
Couto, Olavo de Oliveira Neto, Paulo de Tarso Sanseverino, Paulo Eduardo D’Arce
Pinheiro, Paulo Henrique dos Santos Lucon, Paulo Magalhães Nasser, Pedro Henrique
Pedrosa Nogueira, Pedro Miranda de Oliveira, Ravi Peixoto, Renato Montans de Sá,
Ricardo Sayeg, Rodolfo de Camargo Mancuso, Rodolpho Vannucci, Rodrigo Mazzei,
Rolf Madaleno, Rosane Pereira dos Santos, Ruy Rosado de Aguiar Júnior, Sérgio Cruz
Arenhart, Sérgio Gilberto Porto, Sérgio Luiz de Almeida Ribeiro, Sérgio Shimura, Sidnei
Amendoeira Jr., Silvio Pereira da Silva, Teori Albino Zavascki, Vasco Della Giustina,
Washington Rocha de Carvalho e Welder Queiroz dos Santos.
Trata-se, portanto, de uma coletânea muito oportuna para esta época de transição
para um novo CPC, que em nenhum momento descuida das linhas tradicionais do
sistema processual.
Para arrematar, é importante lembrar que a obra afigura-se útil para alunos
de graduação e de pós-graduação, advogados, promotores e juízes que tenham,
direta ou indiretamente, interesse em entender o complexo sistema da execução
civil brasileira, e essa característica é, talvez, um dos pontos fortes dessa obra, ou
seja, para estudar aquilo que necessariamente precisa ser efetivo (a execução), nada
melhor do que um obra que consegue, ao mesmo tempo, ser didática, e não fugir dos
temas mais complexos.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

ALVIM, Arruda et al. (Coord.). Execução e temas afins – Do CPC/1973 ao novo CPC –
Estudos em homenagem ao Prof. Araken de Assis. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2014. Resenha de: BONICIO, Marcelo José Magalhães. vista Brasileira de Direito
Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 227-228, jul./set. 2014.

228 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 227-228, jul./set. 2014
KHALED JR., Salah H. A busca da
verdade no processo penal: para além
da ambição inquisitorial. São Paulo:
Atlas, 2013

Aury Lopes Jr.


Doutor em Direito Processual Penal. Professor Titular de Direito Processual Penal (PUC-
RS). Professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais. Mestrado e
Doutorado da PUC-RS.

Alexandre Morais da Rosa


Doutor em Direito (UFPR). Professor de Processo Penal (UFSC). Juiz de Direito em
Santa Catarina.

Em pleno 2014, há gente que defende que a verdade real é buscada no Processo
Penal. Recém-lançada pela editora Atlas, a obra A busca da verdade no processo
penal: para além da ambição inquisitorial é fruto da tese de doutorado em Ciências
Criminais de Salah H. Khaled Jr, professor da Faculdade de Direito e do Mestrado em
Direito e Justiça Social da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Dividida em
quatro capítulos totalizando 624 páginas, não resta dúvida de que se trata de um
trabalho de peso, em muitos sentidos.
Trata-se de uma obra multidisciplinar, que trata da temática em questão de forma
rica, aprofundada e condizente com a trajetória acadêmica do autor, que também é
mestre em História pela UFRGS. Salah não só dialoga com a dogmática processual
penal contemporânea e clássica (passando por Goldschmidt. Bulow, Calamandrei,
Carnellutti, Aragoneses Alonso, Fazzalari e muitos outros) como conecta o tema
com Heidegger, Gadamer, Ricoeur, Morin, Prigogine, Bachelard, Nietzsche e outros
pensadores. As citações são abundantes, de modo que o livro acaba sendo também
um convite para conhecer autores e obras com que os juristas normalmente tomam
pouco contato. Nesse sentido, cuida-se de uma oportunidade inestimável, não só
para discussão do tema proposto, como para rompimento do monólogo jurídico e da
cegueira normativa que ele provoca.
Salah enfrenta a grande questão do Processo Penal: a busca da verdade.
Denuncia o que chama de ambição de verdade — expressão que posteriormente
foi adotada também por seu orientador, Aury Lopes Jr — que para ele designa uma
ideologia que conforma um Processo Penal do inimigo, manifestamente contrário ao
nosso cenário democrático-constitucional. Para ele, a escolha é clara: temos que

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 229-232, jul./set. 2014 229
Aury Lopes Jr., Alexandre Morais da Rosa

defender o Processo Penal democrático fundado na presunção de inocência e lutar


contra o Processo Penal do inimigo, fundado na ambição de verdade.
Salah destaca que para muitos autores, o que caracteriza o Processo Penal e
que por excelência o distingue do processo civil é a busca pela verdade. Ele aponta
que são duas as correntes doutrinárias que designam ao Processo Penal essa função.
De um lado, uma corrente que estrutura o Processo Penal em torno do princípio da
verdade real e que assume que a verdade deve implacavelmente ser perseguida
pelo juiz. De outro lado, uma corrente que relativiza essa busca, considerando que a
verdade não pode ser integralmente atingida pelo magistrado, o que faz com que a
atuação do juiz no que se refere à gestão da prova deva ser tida como complementar.
Para Salah, apesar da aparente diferença, as duas correntes relegitimam
a ambição de verdade inquisitória, pois uma ideologia de busca da verdade —
mesmo relativizada — inevitavelmente conforma um Processo Penal do inimigo,
manifestamente contrário ao sistema acusatório delineado pela Constituição Federal
de 1988. É nesse sentido que Salah afirma que o livro parte de um compromisso
fundamental: a conformidade constitucional do direito processual penal e a
rejeição explícita à ideologia inquisitória, que conforma violenta e insaciável ambição
de verdade.
No primeiro capítulo encontramos uma história dos sistemas processuais
penais, que pela riqueza da abordagem, poderia se sustentar por si só: é a mais
completa síntese da faceta histórica dos sistemas processuais em língua portuguesa.
Para os alunos da graduação, trata-se de uma contribuição inestimável. Afinal,
todos estamos cansados de trabalhos de conclusão de curso que trazem uma parte
histórica completamente incipiente, que depõe contra o conjunto do TCC. Mas essa
análise — que também contempla a polêmica em torno do caráter acusatório, misto
ou inquisitório do sistema processual penal brasileiro — é apenas uma introdução
para a contribuição significativa que o autor traz nos capítulos posteriores.
Salah sustenta, na esteira de Rui Cunha Martins, que a verdade no Processo
Penal é uma questão de lugar. Portanto, não se trata de expulsar a verdade, mas de
definir qual o regime de verdade adequado para o Processo Penal. Nesse sentido,
na introdução ele refere-se a Ferrajoli, que aponta que “sem uma adequada teoria da
verdade, da verificabilidade e da verificação processual, toda a construção do direito
penal do iluminismo [...] termina apoiada na areia; resulta desqualificada, enquanto
puramente ideológicas as funções políticas e civis a ela associadas”.1
Mas a discussão proposta não se contenta com a mera reprodução do que
propôs Ferrajoli. Pelo contrário. Salah afirma que Ferrajoli e Taruffo permaneceram
presos aos limites discursivos da verdade correspondente, que para ele é

1
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 39.

230 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 229-232, jul./set. 2014
KHALED JR., Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo...

inteiramente inadequada para definir o horizonte de sentido da verdade no Processo


Penal. A proposta é ousada: discutir o regime de verdade do Processo Penal para
além do que propuseram os autores que romperam parcialmente com a verdade
absoluta (real, material, substancial etc.) mas que para Salah apenas matizaram
o conceito, preservando sua estrutura como verdade correspondente relativa. Para
ele, “argumento da verdade correspondente relativa permanece sendo utilizado para
sustentar a busca da verdade pelo juiz, conformando um inaceitável ativismo judicial,
que rompe com a estrutura acusatória do devido processo legal”.2
Salah demonstra no segundo capítulo como a cientificidade moderna reestruturou
e refundou de forma velada a epistemologia inquisitória. Para ele, entre inquisidor
(que busca implacavelmente a verdade) e sujeito do conhecimento (que atinge a
verdade através da aplicação de um método) não há uma relação de afastamento e
sim de proximidade. Como autêntico discípulo da professora Ruth Gauer (historiadora
que coordena o renomado Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da
PUCRS), Salah analisa a questão no âmbito da história das ideias e demonstra
como a ciência assumiu para si uma função outrora desempenhada pela religião: a
revelação da verdade.
Ao longo da obra e de forma decidida a partir do terceiro capítulo, Salah
argumenta que a verdade é produzida analogicamente no Processo Penal através
de uma narrativa sustentada em rastros do passado. Isso faz da verdade algo
contingente, demonstrando a necessidade de ênfase nas regras do jogo do devido
processo legal em detrimento de qualquer ambição de verdade.
Não temos aqui a pretensão de discutir a tese do autor, por evidentes restrições
de espaço. Mas podemos mencionar que dizer que a verdade é produzida é muito
diferente de afirmar que ela é encontrada: ela é produzida como artefato narrativo —
exteriorização textual da convicção do juiz, enquanto ser-no-mundo — e sustentada
em rastros do passado, o que permite afirmar que o regime adequado ao Processo
Penal é o da analogia e não o da correspondência. Para Salah, se o Processo Penal
deve ser concebido a partir de uma conexão com o direito penal, reside aí uma
pertinente provocação, já que o direito penal proíbe a analogia e as condenações
são fundamentalmente analógicas. Nesse sentido, sempre restará uma irredutível
margem de incerteza em todas as condenações, mesmo nas que são aparentemente
inequívocas. Por isso o sistema somente pode encontrar qualquer legitimação como
contenção do poder punitivo e da ambição de verdade, restringindo os espaços
potestativos de discricionariedade. Depois da leitura quem acredita em Verdade Real
não entendeu o livro ou está de má vontade.

2
KHALED JR, Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo:
Atlas, 2013. p. 2.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 229-232, jul./set. 2014 231
Aury Lopes Jr., Alexandre Morais da Rosa

Não há como enfrentar aqui toda a riqueza de sentidos da obra. Sem dúvida é
um trabalho único no mercado editorial brasileiro. Com isso não se quer dizer que é
o melhor, ou que traga a resposta definitiva sobre a questão — Salah explicitamente
rejeita essa possibilidade no final do livro, afirmando que todo conhecimento é
biodegradável — mas de uma obra fundamentalmente diferente do que costumamos
encontrar. Um texto que provoca e exige do leitor mais do que ele está acostumado
a dar e que por excelência se insurge contra a barbárie nas práticas punitivas
contemporâneas. Um texto como eu gosto de ler. Sinta-se convidado a fazer o mesmo.
Forte abraço!

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

KHALED JR., Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição
inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013. Resenha de: LOPES JR., Aury; ROSA, Alexandre
Morais da. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte,
ano 22, n. 87, p. 229-232, jul./set. 2014.

232 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 229-232, jul./set. 2014
MAZZEI, Rodrigo (Org.). Código de
Processo Civil do Espírito Santo: texto
legal e breve notícia histórica.
Vila Velha: ESM (Eppur Si Muove), 2014

Mônica Pimenta Júdice


Mestre em Direito Processual Civil na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/
SP). LLM em Direito Marítimo pela Universidade de Oslo – Noruega (UIO). Pós-Graduada
em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Membro da
Associação Brasileira de Direito Marítimo (ABDM). Membro do Instituto Panamericano de
Direito Processual Civil (IPDP). Membro do Comité Editorial de la Revista Latinoamericana de
Derecho Procesal (RLDP). Advogada.

O livro Código de Processo Civil do Espírito Santo: texto legal e breve notícia
histórica é parte de um trabalho inédito realizado pela Escola Superior da Advocacia –
Ordem dos Advogados (Seccional Espírito Santo), em razão do resgate histórico
realizado do Direito Processual Civil até a edição do Código de Processo Civil Estadual
que completa seu centenário nesse ano. É importante mencionar que não é o único
código estadual que existiu, tendo sido adotado por outros Estados federativos,
quando então vigorava a Constituição Federal de 1891.
Em razão disso, a obra resenhada, além de apresentar os dispositivos do
Decreto nº 1.882, de 17 de Setembro de 1914, que promulgava o Código de Processo
Civil e Comercial do Estado, traz ainda uma introdução rica a respeito da evolução
do Direito Processual Civil no Brasil até o início do Século XX, de autoria do capixaba
organizador da obra, Prof. Rodrigo Mazzei, com o seguinte título: Código de Processo
Civil do Espírito Santo: breve notícia histórica (p. 05-18).
Sabe-se que vigia no nosso país, até a sua independência, as Ordenações
Filipinas, quando editou-se o Código Comercial de 1850 (em vigor ainda a legislação
marítima) e o Regulamento nº 737 que imiscuía regras de processo com o intuito de
dar aplicabilidade à lei material.
Não obstante, aplicava-se subsidiariamente a ordenação portuguesa até a
consolidação das principais normas processuais, denominada de “Consolidação
Ribas”, e posteriormente o Regulamento nº 763 de 1890, em razão da incompletude
do regulamento comercial diante de casos de materialidade civil.
Então veio a primeira constituição de origem republicana (com o fim definitivo da
monarquia), que se denominava Constituição Federal dos Estados Unidos do Brasil
de 1891, inspirada no texto constitucional da América do Norte, Suíça e Argentina,
que adotavam um modelo amplamente federalista.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 233-235, jul./set. 2014 233
Mônica Pimenta Júdice

Formava-se aqui um Estado descentralizador que previa que competia


privativamente à legislação federal tratar do “direito civil, comercial e criminal da
República e processual da Justiça Federal” (CF/1891, art. 34), facultando-se aos
Estados “todo e qualquer poder ou direito, que lhes não for negado por cláusula
expressa ou implicitamente contida nas cláusulas expressas da Constituição”
(CF/1981, art. 63 e 65), de modo que os entes federativos puderam editar suas
codificações processuais locais — como fez o Estado do Espírito Santo.
Cumpre aqui retificar um dado histórico que, por vezes, aduz que “o Código de
Processo Civil da Bahia teria sido o primeiro diploma codificado de Direito Processual
Civil”,1 editado no ano de 1915, enquanto que, na verdade, olvida-se que o Código
de Processo Civil do Espírito Santo arrima-se no Decreto 1.882, de 17 de setembro
de 1914, data anterior àquela, que, após passar pela aprovação na casa legislativa
(frise-se: sem prejuízo de sua eficácia imediata), tornou-se a Lei nº 1.055, de 23 de
dezembro de 1915.2
Nesse passo, o primeiro diploma codificado possui a seguinte estrutura: Título I
(Da Ordem do Juízo), Título II (Da Prova), Título III (Da Acção), Título IV (Da Divisão das
Acções), Título V (Das Acções Especiaes), Título VI (Das Acções Executivas), Título
VII (Dos Processos Administrativos), Título VIII (Dos Processos Preventivos), Título IX
(Dos Processos Orphanologicos e Equiparados), Título X (Do Processo Arbitral), Título
XI (Das Nulidades), Título XII (Da Execução), Título XIII (Dos Recursos), Título XIV (Da
Disciplina Forens).3
Ocorreu que, com o advento da Constituição Federal de 1934, que reservou
apenas ao Congresso Nacional a competência para legislar sobre material processual,
o Código Estadual acabou sendo pouco explorado (e parcialmente revogado),
principalmente após a edição do Decreto-Lei nº 1.608/1939, o Código de Processo
Civil do Brasil, que tinha como objetivo a uniformização da legislação processual.
Hodiernamente, muito tem se debatido sobre o conceito de regras de “processo”
e regras de “procedimento” em matéria processual.
Isso porque a Constituição Federal (CF/88), determina que a competência
legislativa em matéria de procedimentos é de natureza concorrente, ainda que em
níveis distintos, na medida em que a União Federal limita-se a estabelecer “normas
gerais” e o Estado e Distrito Federal “normas especiais” para atender seus interesses
locais, conferindo-lhes, no interior do ente federativo, a maior efetividade possível.
Daí, exsurge o problema hermenêutico: regras de processo x regras de procedimento.
Em tempos de um Novo Código de Processo Civil (NCPC), é evidente que o

1
OLIVEIRA JR. Waldemar Mariz de. Curso de direito processual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968. p. 55.
2
VIGANO NETO, Sebastião. Evolução histórica dos procedimentos especiais: do regulamento nº 737/1845 ao
Projeto do Novo Código de Processo Civil.
3
Têm-se: o Capítulo I - das audiências; Capítulo II - dos “prasos”; Capítulo III - dos actos e termos; Capítulo IV
- das correições; Capítulo V - das penas disciplinares; Capítulo VI - disposições geraes.

234 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 233-235, jul./set. 2014
MAZZEI, Rodrigo (Org.). Código de Processo Civil do Espírito Santo: texto legal e breve notícia histórica...

debate sobre uma descentralização procedimental renasce e um resgate histórico


do tema de estudo permitirá a construção de um futuro com base sólida que
tenha por escopo uma solução interpretativa para a melhor aplicação do direito,
de modo que o passado sirva de inspiração, entre erros e acertos, para novas
codificações estaduais.
Veja que a reflexão é tão atual que, na verdade, trata-se de um problema
estrutural do próprio federalismo brasileiro, do Império até a República.
É o que o ora se propõe: uma leitura fácil, que elucubra raízes profundas.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

MAZZEI, Rodrigo (Org.). Código de Processo Civil do Espírito Santo: texto legal
e breve notícia histórica. Vila Velha: ESM (Eppur Si Muove), 2014. Resenha de:
JÚDICE, Mônica Pimenta. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo
Horizonte, ano 22, n. 87, p. 233-235, jul./set. 2014.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 87, p. 233-235, jul./set. 2014 235
SANTOS RODRIGUES, Marco Antonio
dos. A modificação do pedido e da
causa de pedir no processo civil.
Rio de Janeiro: GZ, 2014

Lúcio Delfino
Doutor em Direito Processual Civil (PUC-SP). Pós-Doutorando em Direito (UNISINOS). Membro
do Instituto Pan-Americano de Direito Processual. Membro do Instituto Ibero-Americano
de Direito Processual. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Membro
do Instituto dos Advogados Brasileiros. Membro do Instituto dos Advogados de Minas
Gerais. Diretor da Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro. Professor universitário
(UNIUBE). Advogado.

O livro A modificação do pedido e da causa de pedir no processo civil corresponde


à tese de doutorado do autor, Marco Antonio dos Santos Rodrigues,1 aprovada com
grau dez com distinção na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
O autor parte da premissa de que a rígida sistemática de modificação da
demanda prevista nos artigos 264 e 294 do Código de Processo Civil muitas vezes
não se revela adequada à obtenção de uma prestação jurisdicional justa, pois pode
impedir a análise de causa de pedir ou de pedido que seja o que efetivamente traduza
as necessidades do conflito de interesses. Assim sendo, o impedimento à alteração
dos elementos objetivos da ação pode conduzir a uma decisão final que não cumpra
o papel de pacificação, um dos escopos da jurisdição.
Para analisar os limites à modificação da demanda, o autor inicia pela definição
do objeto do processo, questão que de longa data é objeto de estudo na doutrina
processual alemã, e chega à conclusão de que, embora o pedido seja o objeto do
processo, a causa de pedir também possui relevância nessa definição, pois esta
última contribui para a delimitação do pedido.
Em seguida, o livro cuida da identificação dos elementos da ação, definindo
quais são os componentes da causa de pedir e do pedido, tendo em vista que apenas
a alteração daquilo que integre tais elementos da demanda pode ser considerada
mudança objetiva da ação.
A partir da delimitação da causa de pedir e do pedido, passa-se à análise dos
sistemas de modificação da demanda, que são classificados em rígidos — aqueles

Procurador do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Direito Público e Doutorando em Direito Processual pela
1

Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professor Assistente de Direito Processual Civil da Faculdade de
Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e professor de cursos de pós-graduação em Direito.
Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual e do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual.

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Lúcio Delfino

que proíbem ou fazem grande limitação temporal à mutatio libelli — e flexíveis,


aqueles que dão ao autor ampla possibilidade de mudança dos elementos objetivos
da ação. Para tanto, são analisados regimes estrangeiros — Estados Unidos,
Portugal, Espanha, Itália e Alemanha. Embora os regimes rígidos e flexíveis tenham
vantagens e desvantagens em sua utilização, verifica-se que o sistema flexível se
revela mais adequado à obtenção de uma prestação jurisdicional justa, já que permite
ao autor e mesmo ao réu uma progressiva construção do thema decidendum, levando
à possibilidade de prolação de decisão final que seja mais adequada à solução do
conflito de interesses.
No entanto, tendo em vista que o Código de Processo Civil é expresso, trazendo
um regime próprio para alteração da causa nos artigos 264 e 294, o autor entende
que sua eventual superação precisa se fundar na constitucionalização do processo
civil, a partir dos direitos fundamentais processuais e da filtragem constitucional das
normas infraconstitucionais do processo, já que os direitos fundamentais processuais
irão informar a interpretação e aplicação das demais regras e princípios processuais.
Parte o autor, então, do direito fundamental de acesso à justiça, entendendo
que o acesso a uma prestação jurisdicional justa permite que haja uma flexibilidade
na modificação da causa de pedir e do pedido. O devido processo legal, por sua
vez, não representa a imposição de um processo rígido e expressamente definido
em lei, mas um direito de obtenção do processo justo e adequado, o que justifica
uma flexibilização procedimental, a fim de que as exigências procedimentais
abstratas não atuem de forma excessiva, impedindo a obtenção de uma prestação
jurisdicional justa.
O contraditório também é visto como fator de legitimação da mudança objetiva
da ação, uma vez que qualquer alteração no pedido ou na causa de pedir, ainda que
de ofício, deve ser submetida ao amplo direito de influência de ambas as partes. A
boa fé objetiva, por seu turno, limita a mutação da demanda, pois esta somente será
admissível se o autor não buscá-la em ofensa aos deveres da boa fé.
Da mesma forma, a autonomia da vontade possui relevância na alteração da
causa de pedir e do pedido, pois a modificação objetiva da ação pode ser objeto
de concordância entre as partes, já que o artigo 475-N do Código de processo
Civil consagra ser título executivo judicial o acordo celebrado entre autor e réu e
homologado judicialmente, ainda que trate de matéria não posta em juízo. Ademais, o
autor sustenta uma flexibilidade do sistema de preclusões, como forma de promoção
dos fins do processo.
Na última parte do livro, o autor enfrenta situações de mudança do pedido
e a causa de pedir, aplicando os direitos fundamentais processuais para permitir
situações de flexibilização na alteração dos elementos da ação. Destacam-se, nesses
capítulos, o enfrentamento de diversas situações em que a lei ou a interpretação

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SANTOS RODRIGUES, Marco Antonio dos. A modificação do pedido e da causa de pedir no processo civil...

efetuada pelos tribunais possibilitam julgamento em que não há estrita observância


da congruência, bem como a definição dos limites da mudança da causa de pedir em
virtude de fato superveniente.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

SANTOS RODRIGUES, Marco Antonio dos. A modificação do pedido e da causa de


pedir no processo civil. Rio de Janeiro: GZ, 2014. Resenha de: DELFINO, Lúcio.
Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 22, n. 87,
p. 237-239, jul./set. 2014.

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