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Juristas entre oligarcas e plebeus: o poder independente

das instituições judiciais como solução e como problema


para a democracia brasileira

Andrei Koerner
Docente, Unicamp, Cedec, INCT-Ineu

Celly Cook Inatomi


Pós-doutoranda, Unicamp, INCT-Ineu

Resumo: O presente artigo apresenta um panorama histórico das formas de investimento


político na independência do Judiciário no Brasil. O foco recai sobre as relações entre programas
políticos, suas formas de investimento na independência judicial e o contexto político e social.
Inicialmente distinguem-se os modelos de independência judicial nos programas políticos con-
servador, republicano e liberal. Em seguida, apresentam-se os principais momentos, na trajetória
histórica do país, da aposta na independência das instituições judiciais. Noutra secção, analisam-
-se as inflexões nas relações entre juristas e governo democrático a partir do governo Lula e as
tendências críticas mais recentes. Enfim, colocam-se os problemas atuais e indicam-se os pontos
de discussão sobre juízes e instituições judiciais na reconstrução da democracia brasileira.

Palavras-chave: Independência judicial / Instituições judiciais / Pesquisa histórica / Governo


democrático

Toda nossa política, assim monárquica como republicana, mostrou-se ge-


ralmente ou duvidosa da capacidade do povo, ou suspeitosa do caráter de suas
manifestações, de tal maneira que, entre nós, o povo foi sempre mais um símbolo
constitucional do que fonte de autoridade em cujo contato dirigentes, represen-
tantes e líderes partidários fossem retemperar o ânimo e o desejo de servir. A
política brasileira tem a perturbá-la, intimamente, secretamente, desde os dias
longínquos da Independência, o sentimento de que o povo é uma espécie de vul-

Scientia Iuridica – Tomo LXVII, 2018, n.º 347


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cão adormecido. Todo perigo está em despertá-lo. Nossa política nunca apren-
deu a pensar normalmente no povo, a aceitar a expressão da vontade popular
com base da vida representativa.
(HERMES LIMA, “Notas à Vida Brasileira”, apud RAYMUNDO FAORO, Os Donos
do Poder, Porto Alegre, Globo, 1987, 7.ª ed., v. 1, p. 323).

Eu não sei bem com certeza, porque foi que um belo dia
Quem brincava de princesa acostumou na fantasia.
(CHICO BUARQUE, Quem te viu, quem te vê)

1. Introdução

Na crise política atual, as instituições judiciais passaram ao centro do palco


político e da atenção midiática. Os agentes políticos inevitavelmente incorporam,
nos seus cálculos de curto prazo, os possíveis lances e estratégias de juízes, pro-
motores, advogados e outros juristas, ao mesmo tempo em que jornalistas e colu-
nistas esmeram-se num contínuo comentário futebolístico sobre as jogadas nos
processos judicias. Mas a crise política colocou em questão o poder independente
das instituições judiciais1, ao se evidenciarem as suas debilidades, os limitados
instrumentos de accountability sobre os juristas2, o uso e abuso de suas prerroga-
tivas profissionais transformadas em privilégios pessoais, as suas práticas arbi-
trárias, repressivas e criminalizadoras de adversários políticos.
Ao mesmo tempo em que as instituições judiciais concentram as atenções, au-
mentam as críticas públicas a elas. Essas críticas têm visibilidade e alcance sem
precedentes na ordem constitucional de 1988, questionando a sua credibilidade e
legitimidade. No campo acadêmico e no debate público, críticas já vinham sendo
tecidas nos anos noventa, formulando-se diagnósticos sobre os problemas do Ju-
diciário e denúncias não esclarecidas de corrupção de juízes. Mas prevaleceu o

1
No texto, este termo é sinônimo de Poder Judiciário, mas implicitamente remete a outras insti-
tuições, como o Ministério Público, Procuradoria.
2
Usamos esta palavra para designar genericamente os profissionais do direito e não apenas os
teóricos ou doutrinadores.

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movimento defensivo da independência das instituições judiciais, que deu força


para que os problemas fossem colocados de maneira distorcida, resultando, como
veremos mais adiante, numa reforma de caráter neoconservador, centrada em
medidas racionalizadoras da gestão do Judiciário.
O que parece importante no contexto atual é a volta da discussão sobre o mo-
delo das instituições judiciais e do papel dos juristas na sociedade brasileira. Parece
debilitar-se o apoio de dirigentes políticos, elites e opinião pública a um padrão de
independência judicial, padrão de longa duração que se construiu em momentos
de crise política e mudança constitucional em nosso país. O poder independente
das instituições judiciais foi visto como garantia contra arbitrariedades da monar-
quia, como engrenagem para equilibrar as relações entre oligarcas e como canal
capaz de assegurar a incorporação controlada da plebe no espaço público. Elas se-
riam instrumentais para a construção dos mercados, a pacificação da competição
política, a ampliação da cidadania e o reconhecimento dos direitos sociais. Seriam
indispensáveis para alcançar uma ordem social virtuosa, pela correção dos costumes
políticos e a punição de abusos. Nesse sentido, as instituições judiciais independen-
tes estariam no cerne da construção de uma ordem democrática social no país.
O presente artigo apresenta um panorama histórico das formas de investi-
mento político na independência do Judiciário. A discussão apresenta formatos e
práticas institucionais do ponto de vista das suas relações com programas políti-
cos que investiram na independência judicial (a “aposta”) e mudanças no contexto
político e social, em particular as relações entre juristas, oligarcas e plebe. Inicial-
mente distinguem-se os modelos de independência judicial nos programas polí-
ticos conservador, republicano e liberal. Em seguida, apresentam-se os principais
momentos, na trajetória histórica do país, da aposta na independência das insti-
tuições judiciais. Adicionalmente, analisam-se as inflexões nas relações entre ju-
ristas e governo democrático a partir do governo Lula e as tendências críticas mais
recentes. Enfim, colocam-se os problemas atuais e indicam-se os pontos de dis-
cussão sobre o problema.
Uma palavra sobre a forma de análise e as fontes. O artigo é um ensaio explo-
ratório e polêmico que abarca um período temporal bastante amplo. Ele tem como
base nossas pesquisas sobre o Judiciário no Brasil, parte delas publicadas nos tra-
balhos referidos na bibliografia que indicamos em notas ao longo deste artigo.
Por isso, citamos apenas estudos e pesquisas acadêmicas, limitando a remissão a
fontes primárias apenas aos debates atuais.

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2. Estrutura social, instituições estatais e os programas políticos de inde-


pendência judicial

A estrutura social e política brasileira pode, genericamente, ser caracterizada


como a de uma sociedade formada na semiperiferia do sistema capitalista mun-
dial, a ele integrada pela sua especialização na exportação de produtos primários.
A unidade básica de produção é a propriedade rural – e, mais tarde, de extração
mineral, fabril – de médio a grande porte, que organiza relações de super-explo-
ração da força de trabalho. Por sua vez, a maioria da população, distribuída em
grandes espaços, vive em economia de subsistência ou marginal urbana. As ins-
tituições estatais conformam-se por organizações inchadas na cúpula, com práti-
cas (neo)patrimonialistas e limitada capacidade de ordenação das relações sociais.
A partir da segunda metade do século XX, o Estado se fortalece e a economia se
diversifica, com a internalização de um parque industrial integrado e um sistema
financeiro, impulsionados pelo Estado em associação com capitais internacionais,
permanecendo, no entanto, subordinada aos centros de decisão externos. A di-
versificação da estrutura social não modifica substancialmente as marcadas desi-
gualdades sociais criadas pela super-exploração nem os padrões de dominação,
que mantêm o discurso paternalista de disciplinamento social pelo favor e obe-
diência, combinado com práticas violentas tanto na contenção direta exercida pela
polícia e outros agentes estatais, como nas relações entre classes sociais.
A partir deste pano de fundo, a secção apresenta um contraste estilizado dos
modelos de independência judicial nos programas políticos conservador, repu-
blicano e liberal. Eles são distinguidos em função de quatro pontos: os fundamen-
tos da ordem política, o formato institucional, o perfil do juiz e a prática do Direito.
O programa liberal é discutido quando ele se coloca como efeito de mudança re-
volucionário ou reformismo gradual da sociedade. Aprecia-se também a relação
entre o reformismo liberal e as condições da experiência social e política brasileira.
O programa conservador assume que a ordem política repousa sobre um fun-
damento teológico, segundo o qual o mundo criado tem Deus por juiz supremo
e o rei como seu representante terreno. O principal atributo do monarca é a dis-
tribuição da justiça, ponto de vista a partir do qual não haveria separação dos pa-
péis de governar, legislar, administrar ou julgar. As instituições judiciais estão
aninhadas na estrutura do Estado, dentro da qual adquirem especialização funcio-
nal. Os magistrados, juízes letrados e nobiliarquizados, constituem a espinha dor-

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sal do poder real, ao lado dos agentes do fisco e dos militares. Funcionários por
excelência do Estado, eles são mais do que juízes, pois, além de julgar, assumem
diferentes papéis e responsabilidades. Eles exercem a justiça do ponto de vista do
bem-estar geral do reino, e na prática mantêm a ordem social pela sua imersão
na teia de relações de dependência social. Por serem corresponsáveis no exercício
do poder político, os magistrados não são, nem podem ser, propriamente inde-
pendentes em relação a ele. A sua autonomia se manifesta no exercício das suas
funções, em decorrência do seu estatuto social, das suas qualidades morais, do
prestígio, prerrogativas e vantagens de seu cargo, de seus conhecimentos do Di-
reito escrito. O seu ethos caracteriza-se pela sua imparcialidade e profissionalismo
no tratamento dos litígios, mas sua prática se realiza de maneira ‘prudencial’,
dado que, ao enunciar o Direito da monarquia, utiliza fontes e técnicas variadas
(inclusive a não-decisão) para alcançar soluções compatíveis com a preservação
da ordem social hierárquica, mantendo as redes de compromissos que a susten-
tam e das quais o próprio magistrado faz parte3. No Brasil, o programa conserva-
dor aparece, por exemplo, no centralismo imperial, no ultra-federalismo
republicano e, mais recentemente, no neoliberalismo. Eles têm em comum a na-
turalização das relações de poder social às quais se devem acomodar as institui-
ções estatais, incluídas as judiciárias, e a prática do Direito.
Os programas republicano e liberal colocam como fundamento da ordem po-
lítica a igualdade e a liberdade natural dos indivíduos. Para o primeiro, a ordem
política (independentemente da forma monárquica ou republicana de Estado) tem
como objetivo assegurar e promover a autonomia ativa dos cidadãos. A atuação
dos cidadãos como juízes leigos ou jurados é uma das formas da sua participação
política enquanto eleitores, governantes, legisladores ou dirigentes locais. A in-
dependência judicial é emergente de processos de deliberação coletiva, o que de-
pende de condições institucionais análogas às que asseguram a autenticidade da
representação política. O juiz é corresponsável pelo poder político, não na condi-
ção de funcionário, mas como cidadão. Essa condição é determinante do seu ethos
de julgador, pois, ao deliberar sobre as questões concretas, ele adota o ponto de

3
A. M. HESPANHA, Vísperas del Leviatán – Instituciones y poder político (Portugal, siglo XVII), Madrid,
Taurus, 1989; S. SCHWARTZ, Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial – A Suprema Corte da Bahia e seus juí-
zes: 1609-1751, São Paulo, Perspectiva, 1979; A. WEHLING/M. J. WEHLING, Direito e Justiça no Brasil Co-
lonial – O Tribunal da Relação do Rio de Janeiro (1751-1808), Rio de Janeiro, Renovar, 2004.

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vista do exercício autônomo da razão pública enquanto cidadão/juiz genérico.


Isso significa que a sua imparcialidade não é bloqueada pela sua imersão nas
redes de relações na sociedade. Pelo contrário, a sua experiência direta das con-
dições locais e as circunstâncias subjacentes aos litígios o torna capaz de alcançar
a solução mais justa, relacionando da forma mais adequada a regra geral ao caso.
No Brasil, este programa foi o dos liberais-radicais do início do Império e de so-
cialistas democráticos na década de 1920 e na constituinte de 1987-1988.
O programa liberal defende que a liberdade dos indivíduos é assegurada pela
lei geral e abstrata. As instituições judiciais devem ser separadas dos outros ramos
do poder estatal por meio de uma série de mecanismos, tais como a definição
constitucional de suas atribuições, autonomia organizacional e regras sobre os juí-
zes. As relações entre “o direito” e “a política” são pensadas em termos de tensões
e antagonismo, enquanto polos que acabam por configurar dois campos distintos,
o jurídico e o político. O juiz é funcionário do Estado, mas de uma espécie dife-
renciada, com papel e atribuições exclusivamente ou, sobretudo, judiciais, dotados
de salvaguardas, prerrogativas e vedações. A sua responsabilidade política se
volta à realização do Direito, em abstração e mesmo contra as necessidades e ob-
jetivos imediatos da direção política da sociedade. O ethos do juiz valoriza a sua
capacidade intelectual, a qualidade técnica da sua atuação, e a objetividade e coe-
rência dos seus julgamentos. A prática judicial é a de que a imparcialidade do
juízo é alcançada pela neutralidade na aplicação da lei.
A aposta liberal no Judiciário é diferente em processos de ruptura ou de mu-
dança gradual da ordem social. Num momento revolucionário, a lei abstrata é ins-
tituída quando foram quebradas, pelo menos em sua legitimidade, as relações
hierarquizadas de poder social. As mudanças são promovidas pelas mais variadas
formas de ação política, realiza-se um rearranjo institucional global, no qual as ins-
tituições judiciais são reconhecidas como independentes. As instituições judiciais
não têm papel central nem preponderante na promoção das mudanças, elas são antes
complementares a ações tomadas em outras arenas institucionais, que produzem
efeitos mais diretos e de alcance geral. Esse é o caso, por exemplo, de políticas sociais
implementadas pelo Estado, com o apoio de partidos ou movimentos sociais. No se-
gundo tipo de situação, tem-se uma ordem social e política estável, ao menos apa-
rentemente, diante da qual programas reformistas propõem reformas graduais.
No Brasil, o reformismo liberal apostou repetidamente, desde os anos 1860,
nas instituições judiciais independentes para instituir a ordem da lei abstrata e

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mudar a sociedade. O Judiciário independente corrigiria os seus problemas orga-


nizacionais e práticos, para melhorar a distribuição da justiça, produzir nova re-
lação das autoridades políticas com a lei, e difundir, pela efetividade da lei,
reformas sociais. Dada a estruturação do poder político e social no Brasil, essa
aposta é um “reformismo fraco”, que se volta contra a situação existente, mas co-
loca o Judiciário independente em substituição, ou em competição, a programas
que propõem realizar mudanças por ações mais diretas e imediatas.

3. Instituições judiciais independentes no Brasil – programas políticos e


modelos de reforma em perspectiva histórica

Esta secção apresenta os padrões das instituições judiciais e os programas po-


líticos de independência judicial, expressos, sobretudo, em momentos de crise po-
lítica e mudança constitucional. A independência judicial aparecerá nos
programas políticos de forma ‘pura’ ou em novas formulações.

3.1. Do regresso ao reformismo no Segundo Reinado

A Independência abre um processo de (re)organização político-constitucional


do novo Estado. Uma parcela importante dos novos dirigentes considera que o
modelo aninhado das instituições judiciais da monarquia portuguesa é incompa-
tível com os princípios constitucionais do novo Estado. Criticam os magistrados
por sua venalidade ou corrupção, e por serem identificados tanto à Coroa como
às elites que a apoiam. Aliados aos setores dominantes locais, os magistrados sus-
tentariam a reprodução das relações sociais de dominação e exploração, vistas
como produtos da sociedade colonial. As leis e formas processuais não protege-
riam os direitos dos cidadãos, e a prática judicial prudencial teria decisões casuís-
ticas, incoerentes e discriminatórias4.
No processo político conflituoso do Primeiro Reinado e da Regência, o pro-
grama republicano avança e é capaz de promover a descentralização política e a
reorganização das instituições judiciais. Reformas legislativas fortalecem as atri-

4
T. H. FLORY, Judge and Jury in Imperial Brazil, 1808-1871. Social Control and Political Stability in the
New State, Austin, University of Texas Press, 1975; A. SLEMIAN, Sob o Império das Leis – Constituição e
Unidade Nacional na Formação do Brasil (1822-1834), São Paulo, Hucitec, Fapesp, 2009.

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buições dos juízes de paz e do tribunal do júri, que se tornam os agentes mais re-
levantes para o exercício de funções judiciais, policiais e eleitorais. Mas essas fun-
ções são apropriadas pelos setores sociais dominantes que as utilizam para
reproduzir relações de compromisso e dependência pessoal. Afirma-se que, ao
invés de espaços de autonomia dos cidadãos, os tribunais locais seriam marcados
por práticas discriminatórias, decisões parciais, provocando a fragmentação do
Direito e do poder político do Império5.

a. A magistratura na política e sociedade imperial


A partir de 1837, com o Regresso, o núcleo dirigente estatal se recompõe e res-
taura a centralização política e judiciária do Império. As reformas realizam o pro-
grama conservador e os magistrados passam a desempenhar papel análogo aos
seus antecedentes da monarquia portuguesa: o exercício de diferentes funções po-
líticas, judiciais e administrativas, a mediação das relações entre centro e periferia,
a acomodação dos conflitos locais6. Assim, na segunda metade do século XIX, ape-
sar da forma de monarquia constitucional e representativa, as instituições judiciais
estão aninhadas nas instituições estatais, e os magistrados são ativos na política e
relações de poder da sociedade escravista. Os juízes de direito são sucedâneos
dos juízes de fora e a prática judicial local continua ser encargo de juízes leigos,
como substitutos de juízes municipais, juízes de paz e jurados ou como delegados
de polícia. Essa combinação se manterá até a Revolução de 1930, quando as atri-
buições dos juízes leigos serão bastante reduzidas.
Os magistrados exercem formalmente a jurisdição civil e penal, mas são agen-
tes políticos com ampla autonomia de decisão, embora sujeita a controles infor-
mais. Sua autonomia é pensada como independência pessoal, necessária para
determinar cada decisão, configurando uma espécie de produção artesanal do Di-
reito. A decisão judicial realiza a mediação entre princípios de direito natural, pre-
ceitos de direito histórico, normas legais nacionais e estrangeiras, e convenções
sociais. Ele é capaz de definir o sentido dos direitos subjetivos de forma diferen-
ciada e hierarquizada, em função das circunstâncias concretas de situação, mas

5
T. H. FLORY, Judge and Jury in Imperial Brazil, 1808-1871. Social Control and Political Stability in the
New State, cit.; A. P. CAMPOS/A. SLEMIAN et al., Juízes de Paz – Um Projeto de Justiça Cidadã nos Primórdios
do Brasil Império, Curitiba, Juruá, 2017.
6
J. M. D. CARVALHO, A Construção da Ordem, RJ, Campus, 1980; R. GRAHAM, Clientelismo e Política
no Brasil do Século XIX, RJ, UFRJ, 1997.

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JURISTAS ENTRE OLIGARCAS E PLEBEUS

por isso mesmo, o efeito normativo de cada decisão deveria ser limitado ao pró-
prio caso. Essa prática tensiona com os princípios da separação dos poderes e da
prevalência da lei, e reproduz as relações sociais hierárquicas, assim como as de-
sigualdades estruturais da sociedade brasileira.

b. O reformismo liberal dos anos 1860 e seus críticos


No final da década de 1860, os liberais atribuem novo papel à magistratura.
Suas propostas de reformas têm alguns pontos em comum: a descentralização po-
lítica, a moralização das eleições, a emancipação gradual dos escravos e a reforma
judiciária7. O principal formulador das propostas liberais foi, sem dúvida, NABUCO
DE ARAÚJO, cuja maior esperança estava “nos juízes de direito que oferecem maior ga-
rantia em razão de serem magistrados perpétuos”8. Em 1866, como Ministro da Justiça,
ele propõe reformas para “despertar e alimentar a vocação do magistrado, de elevar
a magistratura no Estado, de cercar de garantias o cidadão”. As propostas de re-
forma visam constituir a autonomia de julgamento do Poder Judiciário9, e a inde-
pendência dos magistrados em relação ao governo e aos poderes locais, com carreira
burocrática própria. A magistratura, uma aristocracia letrada, aparecia como uma
fórmula para acomodar as tensões federativas e promover mudanças graduais ao
assegurar as liberdades públicas, garantir a lisura das eleições, promover a ordem
de mercado e atuar na transição gradual da escravidão para o trabalho livre.
Contra essa proposta, os conservadores monárquicos e republicanos ultra-fe-
deralistas defendem que as relações sociais devem permanecer reguladas pela
ordem ‘natural’ da sociedade escravista. Os conservadores apoiam a profissiona-
lização dos juízes, mas não eliminam o controle governamental sobre suas ativi-
dades e mantêm-nos afastados dos conflitos sociais e do processo eleitoral. Eles
se opõem à extensão da mediação legal, realizada por juízes profissionais, sobre
as relações sociais baseadas na autoridade paternalista dos proprietários e sobre
a formação da representação eleitoral, controlada localmente. Os republicanos

7
J. M. D. CARVALHO, A Construção da Ordem, cit., pp. 160-161.
8
JOAQUIM NABUCO DE ARAÚJO, Um Estadista do Império, São Paulo, Nacional, Rio de Janeiro, Civi-
lização Brasileira, 1936, I vol., p. 90, destaque do Autor.
9
Os liberais denunciavam que o governo editava avisos para a interpretação das leis, o que vio-
lava a Constituição por ferir a separação de poderes e invadir atribuição do Parlamento. Por sua vez,
os magistrados deixavam de julgar questões legais controvertidas, submetendo-as como dúvidas ao
Ministro da Justiça.

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SCIENTIA IVRIDICA

ultra-federalistas adotam lógica semelhante, mas com outra base política, os Es-
tados, e outras referências intelectuais, como as doutrinas de Spencer10.

c. A profissionalização da magistratura e tensões sociais da escravidão


Até o final do Império o programa liberal realiza-se parcialmente. Mudanças
na carreira, noções de profissionalismo e incompatibilidades com cargos eletivos
e de nomeação aumentam a diferenciação entre magistrados e dirigentes políticos.
Mas eles continuam a exercer atribuições judiciais, políticas e administrativas, a
atuar em sintonia com o governo, que acompanha suas atividades por meio de
controles sobre as suas atividades, e a participar dos esquemas de troca de apoio
político entre o governo central e os poderes locais. Eles recebem importantes atri-
buições para implementar mudanças econômicas e sociais pela Lei do Ventre
Livre de 1871 e a Lei de Locação de Serviços de 1879.
Do ponto de vista do ethos e prática dos juízes, as tensões da escravidão pare-
cem ter ampliado o seu compromisso com o liberalismo. Advogados e outros prá-
ticos do direito valem-se de princípios do direito natural à liberdade individual,
para propor soluções favoráveis à libertação dos escravos11. Para o governo, os
juízes não poderiam examinar essas questões sem considerar a razão do Estado e
os imperativos de manutenção da ordem e da segurança públicas. Mas alguns juí-
zes acolhem essas interpretações e decidem em favor da liberdade de inúmeras
pessoas escravizadas ilegalmente, em situação irregular, filhos de libertas, etc.

3.2. A ruptura republicana, dualidade do Judiciário e propostas reformistas

Com a crise do Império, a queda da monarquia e a Constituição de 1891 ocorre


a quebra da unidade do direito e da magistratura, que passam a se organizar em
bases federativas. Os estados recebem atribuições de organizar o Poder Judiciário,
de editar o código de processo e poderes substantivos em temas como política
agrária e de imigração.

10
C. C. LYNCH, Da monarquia à oligarquia. História institucional e pensamento político brasileiro (1822-
1930), SP, Alameda, 2014.
11
E. AZEVEDO, Orfeu de carapinha: a trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo, Campinas,
Ed. Unicamp, 1999.

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JURISTAS ENTRE OLIGARCAS E PLEBEUS

a. Instituições judiciais, política oligárquica e conflito social


Os estados organizam suas instituições judiciais segundo o modelo aninhado
do Regresso. A maior parte deles elimina as normas de carreira e limita as garantias
dos juízes, sem, no entanto, extinguir as incompatibilidades do cargo de juiz com
os de outros poderes, eletivos ou de nomeação. Quebrada a unidade da magistra-
tura imperial, os juízes, tal como outros juristas, são incorporados aos esquemas
oligárquicos locais e estaduais. O controle da política nacional por um clube de oli-
garcas estaduais, com relações instáveis e marcadas por conflitos de toda ordem,
impõe pressões sobre os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), eles próprios
integrantes do clube. Isso resulta na provocação constante do tribunal para julgar
conflitos políticos, a oscilação das decisões segundo os interesses das oligarquias e
debilidades de sua jurisprudência, em que a tendência geral é delegar aos próprios
governantes a atribuição de interpretar e aplicar a Constituição.
Ao mesmo tempo, a ativação política da plebe urbana coloca o problema da
sua incorporação. Diferentemente da difundida noção da apatia popular, jornais,
associações e sindicatos para a promoção dos direitos cívicos, políticos e sociais
de trabalhadores e da população urbana. Os tribunais, em cujo cotidiano atuam
juízes leigos, veem-se às voltas com demandas de cidadãos pelo respeito a seus
direitos em situações cotidianas, como a locação de serviços, aluguéis ou prisões12.
A prática judicial prudencial de acomodação dos conflitos em favor dos interesses
das classes dominantes é tensionada por essas demandas. Ela é criticada por teo-
rias que propugnam a aplicação ‘científica’ do direito, seja pela dedução das nor-
mas jurídicas, seja pelo conhecimento empírico da sociedade.

b. Perspectivas de reforma constitucional nos anos 1920


Nos anos vinte as distintas perspectivas sobre a reforma constitucional defi-
nem os programas para as instituições judiciais nas décadas seguintes. Os ultra-
federalistas mantêm sua oposição a qualquer mudança que restrinja a autonomia
estatual e a extensão da lei sobre as convenções sociais que ordenam as relações

12
G. S. RIBEIRO, “Cidadania e luta por direitos na Primeira República: analisando processos da
Justiça Federal e do Supremo Tribunal Federal”, in Tempo – Revista do Departamento de História da UFF,
v. 13, n. 26, 2009, pp. 101-117; A. C.-L. SEELAENDER, “Pondo os pobres no seu lugar–igualdade consti-
tucional e intervencionismo segregador na Primeira República”, in J. Coutinho e M. M. B. Lima (ed.),
Diálogos constitucionais: direito, neoliberalismo e desenvolvimento em países periféricos, RJ, Renovar, 2006.

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entre classes sociais. Tal como os conservadores no final do Império, promovem


melhorias na administração da justiça e a estruturação das carreiras dos juízes,
mas não abrem mão da inserção dos juízes nos esquemas oligárquicos.
Com baixa capacidade de influência, socialistas democráticos, como Evaristo
de Moraes, adotam o programa republicano. Defendem a unidade do direito, com
a promoção de reformas sociais e o reconhecimento dos direitos sociais. A organi-
zação do Judiciário também seria unitária, com participação ampla dos cidadãos.
Liberais, na linha de Rui Barbosa, propõem, em continuidade com os seus an-
tecessores monárquicos, que juízes profissionais atuem para instituir a ordem
competitiva no país. Defendem um federalismo mitigado, com a formação de ins-
tituições judiciais nacionais independentes, dotadas de atribuições amplas. O Ju-
diciário teria o papel de controlar os outros poderes, federais e estaduais, de
regular as eleições, de assegurar os direitos da oposição e dos cidadãos, de reco-
nhecer os direitos sociais e de contribuir na construção de uma ordem de mercado.
O presidente Artur Bernardes (1923-1926) combina política oligárquica e refor-
mismo social. Com um discurso paternalista, faz aprovar reforma constitucional que
reforça o executivo federal e os poderes da União, com maior controle sobre as oli-
garquias dos Estados menores, limita os direitos da oposição política e dos cidadãos,
promove algumas reformas sociais e proíbe os juízes de decidirem sobre questões
políticas. O sistema de governo é modificado e as instituições judiciais se mantêm
aninhadas nas instituições estaduais e os juízes enredados na política oligárquica.
Nacional-corporativistas, como Oliveira Vianna, tomam a nação como a base
da ordem política. O Estado deveria passar por uma reordenação global para al-
cançar a unidade política e o governo ter maior capacidade de direção. A repre-
sentação democrática combinaria sufrágio universal e organização corporativa, e
a administração seria reforçada para se promover mudanças econômicas com har-
monia social. As instituições judiciais seriam inseridas nas instituições estatais,
identificadas às bases e finalidades da nacionalidade, de modo análogo ao pro-
grama conservador, mas teriam sua esfera própria de atuação, com atribuições,
padrões de organização e carreira burocrática dos juízes. Os juízes atuariam como
agentes do poder central, independentes em relação aos dirigentes estaduais, e
sua prioridade seria a proteção dos direitos cívicos do povo contra os poderes lo-
cais. A prática judicial seria nos moldes do instrumentalismo, segundo o qual o
juiz examina os casos e toma a decisão em função de objetivos coletivos. Agências
administrativas exerceriam funções jurisdicionais nos campos do direito público

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JURISTAS ENTRE OLIGARCAS E PLEBEUS

e do direito social. Esse modelo corporativo foi defendido pelos protagonistas da


Revolução de 1930, e implantado parcialmente no Estado Novo. Ele deixou mar-
cas na organização judicial e na prática dos juristas, embora sua realização mais
efetiva tenha sido no campo do Judiciário trabalhista. Depois de 1964, ele esteve
presente nos programas dos militares e foi instrumentalizado pelo governo Geisel
na sua estratégia de transição controlada.

3.3. Da Revolução de Trinta ao golpe de 1964

No processo permeado de confrontos que sacodem o país a partir dos anos 1920
redefinem-se as bases do Estado, da economia e da sociedade brasileira. A assunção
ao governo federal de uma aliança política com viés industrialista desloca os setores
agroexportadores da direção do Estado, e se promove um conjunto de políticas
pelas quais o capitalismo financeiro e industrial se estabelece no país. O Estado de-
senvolvimentista implica maior centralização política e intervenção na economia e
na sociedade, mas acomoda os interesses das elites estaduais e frações de classe
menos dinâmicas. Ao mesmo tempo, organizam-se as bases da democracia com-
petitiva, com forte presença de burocratas civis e militares nos postos de direção
estatal, dada a frágil organização de partidos políticos nacionais e a baixa capaci-
dade de ação autônoma dos trabalhadores. São reconhecidos direitos sociais, arti-
culados num esquema corporativista estatal, mas são mantidas as relações de
exploração e dominação dos trabalhadores marginais urbanos e do campo.
A Constituinte de 1933-1934 resulta num compromisso das forças políticas a
respeito da organização do Estado. Com o golpe de 1937 e o Estado Novo, os na-
cional-corporativistas reorganizam o Estado segundo o seu projeto. Por sua vez,
seus opositores ganham força ao derrubar o Estado Novo em 1945 e são capazes
de promover importantes mudanças para redemocratizar o regime político e re-
compor a organização federativa do Estado. Na Constituinte de 1946, os repre-
sentantes liberais, agrupados em partidos como a UDN, o Partido Libertador e
setores do PSD, investem no Poder Judiciário para limitarem os poderes do Es-
tado. No entanto, não conseguem alterar as linhas básicas da intervenção estatal
na economia e na sociedade, nem desalojar os quadros associados a Getúlio Var-
gas, seja na burocracia estatal seja na política de boa parte dos Estados.
Nos sucessivos e instáveis compromissos políticos, são atribuídos novos pa-
péis de relevo ao Poder Judiciário. Os juízes têm o poder de atuar para garantir o

33
SCIENTIA IVRIDICA

equilíbrio das relações entre os poderes da União e da Federação, organizar a com-


petição política, garantir os direitos cívicos da oposição política e dos movimentos
sociais, proteger os direitos individuais perante a administração pública, e pro-
mover direitos sociais. O Judiciário passa a ser organizado de forma indepen-
dente, com a reforma de sua organização, as garantias e carreiras dos juízes e
novos instrumentos processuais. Seu formato institucional e atribuições na Cons-
tituição de 1946 revelam a combinação dos modelos conservador, liberal e nacio-
nal-corporativista, o que se verifica na justiça eleitoral, na unidade da jurisdição
e na dualidade de organização do Judiciário. Ela se traduz em tensões para o mo-
delo da prática judicial e o ethos dos juízes.

a. “Representação e Justiça”: as bases revolucionárias das atribuições políticas e da


independência judicial no Brasil contemporâneo
“Representação e Justiça” é a palavra de ordem dos revolucionários de trinta.
Eles propugnam que a verdade das eleições deveria ser assegurada pela sua su-
pervisão por juízes independentes. O Manifesto da Revolução afirma que seria
convocada uma Constituinte para modificar o Pacto fundamental, “assegurando
a verdade e a liberdade do sufrágio, a supressão da ascendência do Presidente da
República sobre o Congresso e o fortalecimento do Poder Judiciário, armando-o
de recursos contra os excessos do Executivo”.
A partir do evento revolucionário, vencedores e vencidos associam a verdade
da competição eleitoral à independência do Judiciário. Nas Constituintes de 1933-
1934 e de 1946, liberais e conservadores defendem a dualidade de organização do
Judiciário, a justiça eleitoral e a ampliação das atribuições do STF para assegurar
os direitos políticos e cívicos. Consideravam este ponto indispensável, porque as
“condições do meio brasileiro aconselham reservar à instância federal, cujas con-
dições teóricas de isenção e superioridade no julgar contra o Estado, impõem
maior confiança nos jurisdicionados”13.
A instituição do Judiciário independente no Brasil é, pois, coetânea à criação
da justiça eleitoral e a ampliação de suas atribuições políticas. Foi com a garantia
das oposições, a organização das eleições, a supervisão do processo eleitoral e o

13
M. S. FAGUNDES, “A Organização do Funcionamento do Poder Judiciário”, em AA.VV., Estudos
sobre a Constituição Brasileira, RJ, Fundação Getúlio Vargas/Instituto de Direito Público e Ciência Po-
lítica, 1954, p. 155.

34
JURISTAS ENTRE OLIGARCAS E PLEBEUS

julgamento dos litígios por um Judiciário independente que se criaram as condi-


ções para permitir a verdade da representação eleitoral e, portanto, a competição
política democrática.

b. As instituições judiciais no Estado intervencionista


A combinação dos modelos do Judiciário se evidencia pela comparação da
Constituição de 1946 com as inovações produzidas no período anterior. Os nacio-
nal-corporativistas promovem após 1930 mudanças na lógica de funcionamento da
administração pública e de suas relações com o Judiciário. Criam-se agências ad-
ministrativas nos campos tributário, previdenciário, trabalhista e da administração
pública. A representação corporativa dá caráter público aos interesses privados,
uma vez que os seus representantes têm assento e poder de decisão. Elas têm atri-
buições administrativas, consultivas, normativas e jurisdicionais, e assim podem
formular pareceres, expedir diretivas normativas e julgar litígios, de cujas decisões
só caberia recurso ao Judiciário sobre questões legais14.
A Constituição de 1946 restaura o princípio da separação de poderes, proíbe
a delegação de poderes, fixa o princípio da inafastabilidade da jurisdição de qual-
quer controvérsia e suprime a restrição das questões políticas à jurisdição do STF.
Esses pontos representam importante vitória dos liberais, pois bloqueiam as ino-
vações na organização do Estado promovidas no período anterior. Eles implicam
o retorno à unidade da jurisdição e, pois, a supressão da jurisdição administrativa.
Assim, o Judiciário passaria a apreciar em primeira instância as decisões litigiosas
daquelas agências e deixaria de aplicar as normas por elas expedidas. Mas, se o
exercício da jurisdição é indelegável, a interpretação judicial das normas não pro-
duz efeitos para além do caso julgado. Não só se eliminam os mecanismos de
coordenação da produção normativa, como também as relações dos poderes do
Estado são postas como de antagonismo15.
A inclusão da justiça do trabalho na estrutura do Judiciário é outra vitória dos
liberais. Eles visam bloquear os laços entre conflitos individuais e coletivos, su-
bordinar a gestão dos litígios trabalhistas às formas do processo judicial e limitar

14
J. G. D. ARAGÃO, La Juridiction Administrative au Brésil, RJ, Serviço de Documentação DASP,
Seção de Publicações, 1955.
15
J. G. D. ARAGÃO, La Juridiction Administrative au Brésil, cit.; A. VENÂNCIO FILHO, A Intervenção do
Estado no Domínio Econômico, RJ, FGV, 1968.

35
SCIENTIA IVRIDICA

o poder normativo. É institucionalizado um espaço especializado de direito pri-


vado para a resolução dos conflitos laborais, mas com jurisdição limitada às rela-
ções de emprego urbanas, ficando na alçada da justiça comum os litígios sobre
prestação de serviços, funcionalismo público e de trabalhadores rurais. O campo
do direito social é fragmentado, pois conflitos sobre questões como acidentes de
trabalho e previdenciários tornam-se um subtipo de litígio judicial com a admi-
nistração pública e são tratados sob essa ótica pela justiça comum16.
Sobre a forma de organização do Judiciário, o Estado Novo realiza um ensaio
de nacionalização, ao extinguir a justiça federal e limitar os poderes de auto-or-
ganização dos Estados. Os juízes aproximam-se do papel de agentes políticos do
Estado, ao receberem novos poderes na condução dos processos e maior liberdade
de decisão.
Em 1946, a justiça dos Estados é a mais fortalecida, em vitória dos conserva-
dores. A justiça estadual volta a exercer ampla jurisdição em todos os campos do
direito público e privado, com exceção dos litígios trabalhistas. Cabe aos juízes es-
taduais apreciar a validade de toda a legislação federal. Com a extinção da justiça
federal de primeira instância, eles julgam as causas de interesse da União e os lití-
gios administrativos dos Estados e dos municípios. Enfim, cabe a eles organizar
as eleições para cargos de todos os níveis. A sua carreira é organizada segundo o
modelo burocrático e os controles institucionais internos têm caráter formal e pu-
nitivo, enquanto os controles externos são exclusivamente corporativos (o quinto
constitucional). Configura-se, portanto, um novo modelo de juiz, em comparação
com a primeira metade do século XX. É um juiz burocrata, que tem atribuições am-
plas, dispõe de garantias e vedações correspondentes, instrumentos para exercer
papel ativo nos processos e é integrado a uma carreira hierarquizada.
Mas esse arranjo traz uma combinação sui generis de características, pois, se-
gundo o modelo “continental”, o papel do Judiciário se define pela separação dos
poderes, com o juiz-funcionário que decide sobre legislação nacional, moldado
pelo ideal da aplicação da lei ao litígio, cujas decisões produzem efeitos indivi-
duais. No entanto, segundo o modelo norte-americano, a base dessa organização
é estadual e a jurisdição é unitária, isto é, os juízes decidem questões de direito
público e privado e têm, ainda, poderes de judicial review. Mas no Brasil não há
mecanismos de coordenação para dar generalidade normativa às decisões, de ca-

16
J. G. D. ARAGÃO, La Juridiction Administrative au Brésil, cit., pp. 136-137, p. 140.

36
JURISTAS ENTRE OLIGARCAS E PLEBEUS

ráter judicial (efeito erga omnes pelo stare decisis ou decisão em cassação) ou político
(procedimentos de interpretação das leis pelo Congresso).

c. Tensões na prática judicial e no ethos do juiz


A combinação de modelos implica tensões para a prática judicial e o ethos do
juiz. O juiz é investido pelo modelo liberal no papel de garantir os direitos do ci-
dadão, indiferente em princípio aos imperativos da administração pública. A ex-
clusividade da jurisdição significa que ele atua como fiscal, controlador da
legalidade das decisões da administração pública. Os nacional-corporativistas in-
vestem no juiz como agente público, que recebe poderes de direção do processo
judicial e tem o instrumentalismo como modelo de julgamento. Ele deve ser sen-
sível à lógica governamental, admitir a legitimidade prima facie dos atos adminis-
trativos, válidos por visarem a realização dos interesses coletivos. Assim, o juiz
burocrata acaba por exercer suas atribuições no campo do direito público apenas
na medida do que é compatível com o espaço de decisão esperado pelos seus su-
periores hierárquicos.
As relações de juízes, particularmente os da cúpula do Judiciário estatual, com
os dirigentes políticos e elites estaduais são marcadas pela permeabilidade. A con-
vergência entre os padrões de decisão judicial e a orientação da política estadual
se produz de modo informal, dadas as atribuições judiciais no campo do direito
público sem haver mecanismos federais de generalização normativa. Isso significa
acomodações de juízes com interesses políticos, práticas patrimonialistas e deci-
sões indiferentes ou produtoras de arbitrariedades. Na prática, os juízes perma-
necem ligados por compromissos com elites e classes dominantes, atuando como
mediadores entre política nacional e os interesses regionais e locais17. Assim, a
descentralização do Poder Judiciário mantém os vínculos dos juízes com a política
estadual para atuarem como freio às transformações econômicas e sociais patro-
cinadas pelo governo federal.

d. O problema da reforma judiciária no início dos anos 1960


No início dos anos 1960 há novas propostas sobre a competência do STF e a
forma de organização do Judiciário. Os programas políticos são reformulados e

17
F. N. R. ALMEIDA, A nobreza togada: as elites jurídicas e a política da Justiça no Brasil, PPGCP/USP,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

37
SCIENTIA IVRIDICA

os juristas passam a atuar coletivamente para se posicionarem na esfera pública


sobre os problemas do Judiciário.
A eliminação dos mecanismos de coordenação da produção normativa no Es-
tado intervencionista e o fortalecimento do Judiciário estadual na República de
1946 produzem dois problemas correlatos: o número excessivo de processos re-
petitivos no STF e a fragmentação da jurisprudência dos tribunais estaduais sobre
a legislação federal. Os problemas são vistos como efeitos do excesso de atribui-
ções do STF e da influência dos governadores sobre os juízes estaduais.
Para neutralizar a pressão dos governadores sobre os juízes estaduais, apre-
sentam-se propostas que superam a oposição da organização dual ou unitária do
Poder Judiciário. A Ordem dos Advogados do Brasil, cujo núcleo dirigente na-
cional é vinculado à União Democrática Nacional, defende o fortalecimento da
justiça federal, com a participação ampliada de advogados e promotores18. Por
sua vez, o Partido Trabalhista Brasileiro, a esquerda nacionalista e o movimento
de juízes e desembargadores defendem a nacionalização das regras sobre o judi-
ciário federal separado e independente, com atribuições políticas ampliadas, e
propõem a adoção de princípios da autonomia financeira e administrativa para o
Poder Judiciário, demanda que teria alta relevância nas décadas seguintes.
O número de processos no STF parece resultar de sua competência ampla e
da ausência de mecanismos de generalização normativa das decisões judiciais.
Para enfrentar o problema, defendem-se, desde o final do Estado Novo, restrições
ao acesso, a generalização dos efeitos das decisões ou o aumento da capacidade
dos tribunais de processarem as demandas. Juristas conservadores, como Alfredo
Buzaid, privilegiam a organização de câmaras especializadas e a racionalização
dos métodos de trabalho dos tribunais, contra a criação de tribunais federais re-
gionais. Para a Ordem dos Advogados do Brasil/União Democrática Nacional, o
problema seria resolvido com a criação de tribunais federais com participação
ampliada de advogados e promotores.

M. A. VANNUCCHI, Os Cruzados da Ordem Jurídica – A atuação da Ordem dos Advogados do Brasil


18

(OAB), 1945-1964, São Paulo, Alameda, 2013.

38
JURISTAS ENTRE OLIGARCAS E PLEBEUS

3.4. Do regime autoritário à transição democrática

Em março de 1964 uma coalizão civil e militar derruba o Presidente João Gou-
lart, instaurando o que seria o mais longo período de exceção constitucional na his-
tória do país. Os objetivos manifestos da coalizão golpista são o combate ao
comunismo e à corrupção, e a promoção de alterações nas instituições políticas e
econômicas do país. Porém, há pouco consenso entre os golpistas sobre o conteúdo
dessas alterações e são tênues as articulações entre eles. Eles se dividem sobre a du-
ração do período de exceção bem como a profundidade e direção das mudanças.
Políticos civis veem o golpe como uma intervenção tópica, voltada para afastar os
trabalhistas e a esquerda, a que se seguiria o retorno à Constituição de 1946. Outros
propugnam a instituição de uma ditadura com tendências nacionalistas, mas o seu
programa não é claro. Enfim, há os chamados castelistas, que assumem a direção
do Estado e têm um programa mais definido. Combinam a repressão e o controle
das lideranças populares e organizações de esquerda com reformas institucionais
para racionalizar o poder político e promover a expansão acelerada da economia19.
Os governos militares são capazes de promover mudanças importantes, mas
sucedem-se tentativas infrutíferas de institucionalização do regime. O processo
político é marcado pela opacidade, devido às relações tensas e disputas entre os
participantes da coalizão golpista, a alternância de táticas governamentais de coo-
peração e de repressão com as oposições políticas, além da apatia política que se
sucede, mais tarde, à crescente mobilização da sociedade civil.

a. Judiciário e regime autoritário


Nas condições de autoritarismo e instabilidade política, caracterizar o pro-
grama dos militares para o Judiciário e os juízes com base em textos legislativos
e modelos institucionais é apenas como um ensaio. A orientação geral dos gover-
nos militares parece ser a de um Estado segundo o direito, instaurado por um
movimento soi-disant revolucionário cuja força normativa teria estabelecido uma
ordem constitucional encarnada em seus dirigentes militares, capazes de conduzir
a nação e corrigir os seus rumos. Os demais poderes do Estado seriam derivados,

19
R. M. SCHNEIDER, The political system of Brazil: emergence of a “modernizing” authoritarian regime,
1964-1970, New York, Columbia University Press, 1971; S. C. V. CRUZ/C. E. MARTINS, «De Castello a Fi-
gueiredo: Uma Incursão na Pré-História da “Abertura”», in B. Sorj e M. H. T. D. Almeida (ed.), Sociedade
e Política no Brasil Pós-64, São Paulo, Brasiliense, 1983, pp. 13-61.

39
SCIENTIA IVRIDICA

por terem sido preservados pelo movimento no seu momento de autolimitação.


Assim, os dirigentes políticos, que ocupam cargos no governo e na cúpula das
Forças Armadas, detêm poderes e prerrogativas não delimitados constitucional-
mente e não controláveis legal ou politicamente. Exercem esses poderes para de-
finir os objetivos nacionais estratégicos (que se expressam no binômio “segurança
e desenvolvimento”), elaborar políticas e atos legais para sua realização e adotar
atos de defesa do Estado. Os representantes eleitos têm atribuições limitadas e
são sujeitos a estritos controles políticos e jurídicos. O serviço público civil e mi-
litar é reorganizado para assumir feição burocrática, de modo a conter práticas
patrimonialistas e quebrar suas alianças com as elites políticas regionais e locais.
Ao mesmo tempo, o regime assume uma face política “modernizadora”, ado-
tando regras constitucionais de coordenação dos poderes do Estado e os entes fede-
rativos, novas leis para o orçamento, a administração pública, o sistema financeiro e
as telecomunicações; bem como a reforma da previdência e da legislação trabalhista.
Mas a racionalização é parcial, em virtude de debilidades dos sistemas de controle,
de arbitrariedades e acomodações com os poderes estaduais e o clientelismo.
Desde o pós-1964, a coalizão golpista investe num Judiciário inserido nas insti-
tuições estatais, afinado com as bases e objetivos da ordem política, tal como revela-
dos pelos seus dirigentes. A situação de exceção viola o princípio da independência
do Judiciário, mas este detém autonomia enquanto organização burocrática. De
modo geral, a organização e a administração judicial permanecem estagnadas ao
longo do período e são comuns as reclamações em relação aos salários, à carreira e
às condições de trabalho dos juízes e de outros profissionais do direito. Os juízes
mantêm as prerrogativas e vantagens do seu cargo, e as suas qualidades intelectuais
e morais são valorizadas como forma de relativizar a suspensão das suas garantias
constitucionais. A prática judicial assume caráter instrumental e se privilegia o ethos
dos juízes como agentes da ordem, afinados com os objetivos estratégicos dos diri-
gentes estatais e seus coadjuvantes na gestão dos conflitos das elites regionais e locais,
e no controle da legalidade na administração. De modo geral, os juristas perdem
prestígio enquanto profissão, e passam a ser encarados como administradores num
regime cujo discurso tecnocrático valoriza os saberes de engenheiros e outros técni-
cos para o desenvolvimento acelerado20.

20
J. GARDNER, Legal Imperialism – American Lawyers and Foreign Aid in Latin America, Madison, The
University of Wisconsin Press, 1980.

40
JURISTAS ENTRE OLIGARCAS E PLEBEUS

Os governos militares colocam a reforma do Judiciário na agenda, para ade-


quá-lo às “necessidades do desenvolvimento”. Entre 1964 e 1974 realizam-se mu-
danças importantes, mas que são ditadas por movimentos táticos para alcançar
objetivos imediatos nos embates internos do governo, em suas relações com a
oposição ou para a repressão política. Os políticos arenistas opõem-se à naciona-
lização do Judiciário, a linha dura quer carta-branca para os órgãos de segurança,
e os ‘castelistas’ pretendem reforçar os controles sobre a administração21. Assim,
é suprimido o controle judicial sobre atos tomados em nome da “revolução” e ou-
tros atos de defesa do Estado, limitando-se os poderes do STF para a garantia dos
direitos da oposição política e da contestação social. São ampliadas as atribuições
do STF para controlar da validade de atos do Congresso, dos Estados e da admi-
nistração pública, mas não do Presidente da República. É aumentado o número
de ministros do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Federal de Recursos,
que passam a julgar em turmas, ao invés de serem criados novos tribunais regio-
nais. É recriada a justiça federal de primeira instância, que recebe a competência
de julgar as causas de interesse da União, incluídas as questões previdenciárias,
atuar na organização das eleições, julgar crimes políticos e de corrupção. A com-
petência para julgar os crimes contra a segurança nacional é transferida à justiça
militar, por pressão dos militares de linha-dura. Não é promovida a unidade de
organização do Judiciário, mas se propugna a criação de instâncias federais de
controle da disciplina dos juízes e das decisões judiciais de interpretação e exame
da validade constitucional das leis. A justiça do trabalho é mantida, mas seus po-
deres normativos em dissídios coletivos passam a ser limitados pelos parâmetros
da política econômica.
A redemocratização e a volta ao Estado de direito são reivindicadas por políti-
cos de centro, nacionalistas, trabalhistas e de centro-esquerda, aliados aos dissiden-
tes do regime. Eles convergem no campo comum de eliminar o poder arbitrário do
governo, fazendo, para tal, o elogio à independência do Poder Judiciário. Eles as-
sumem em graus diversos o modelo separado de instituições judiciais, a ampliação
das atribuições do Judiciário, as garantias dos juízes, a sua autonomia de julgamento
e o seu compromisso ético com princípios de direitos fundamentais.

21
M. H. MOREIRA ALVES, Estado e Oposição no Brasil (1964-1984), Petrópolis, 1984, p. 84.

41
SCIENTIA IVRIDICA

b. A reforma judiciária de 1974 e o Pacote de Abril


Os governos militares projetam ampliar a capacidade organizacional do Ju-
diciário, reforçar seus instrumentos de coordenação e tornar efetivos os controles
sobre os juízes. Para isso, cogitam criar mecanismos centralizadores como a avo-
catória, a representação para a interpretação de lei em tese, um Conselho da Ma-
gistratura e uma lei orgânica nacional com as regras de carreira e disciplina dos
juízes. No entanto, as propostas não chegam a ser aprovadas até ao início do go-
verno Geisel, quando elas passarão ao centro dos embates políticos sobre a re-
forma judiciária.
Desde o início do seu governo, em março de 1974, Geisel toma a iniciativa de
promover uma reforma do Judiciário. Como parte de sua estratégia de liberaliza-
ção do regime, ‘convida’ os juízes a formularem propostas, ao mesmo tempo em
que acena ao diálogo com a oposição para realizar reformas políticas. A estratégia
do governo é incentivar a oposição a aprovar no Congresso mecanismos centrali-
zadores no Judiciário e eleições indiretas para cargos majoritários sem, no entanto,
eliminar os poderes de exceção do regime. Os temas ficam na agenda política du-
rante três anos, até que, no final de março de 1977, o governo não obtém, na Câ-
mara dos Deputados, votos suficientes para aprovar a sua proposta de reforma do
Judiciário. Em reação, o general Geisel decreta o fechamento do Congresso e baixa
o “Pacote de Abril”, que outorga as emendas constitucionais de reforma política e
do Judiciário.
O cerne do projeto do governo Geisel é fortalecer o STF como seu coadjuvante
no controle do processo político de liberalização do regime no sentido de uma de-
mocracia tutelada. Seria consolidado um Judiciário inserido, centralizado e ins-
trumental para os dirigentes estatais controlarem as demais esferas
governamentais. A proposta enfrenta críticas diversas do Movimento Democrá-
tico Brasileiro, da Ordem dos Advogados do Brasil e outras associações de juízes,
alinhados num movimento de resistência que propugna uma democracia consti-
tucional com Judiciário separado, descentralizado e voltado à mediação entre as
diferentes esferas estatais e sociais, que restaura, grosso modo, o retorno ao mo-
delo da Constituição de 1946 com as reformas cogitadas pela Ordem dos Advo-
gados do Brasil e a União Democrática Nacional no início dos anos sessenta. As
suas propostas foram sintetizadas no substitutivo preparado pelo relator, o sen.
Accioly Filho (Arena-Pr), durante a tramitação do projeto de reforma judiciária
no Congresso.

42
JURISTAS ENTRE OLIGARCAS E PLEBEUS

Com a imposição das reformas pelo “Pacote de Abril”, o governo assegura,


no curto prazo, o seu projeto de liberalização. Mas o episódio provoca o isola-
mento do STF em relação aos demais juízes, a dessolidarização dos juristas com
o regime, a sua organização em grupos de interesse e a sua aproximação com a
oposição política na frente pela redemocratização. Os efeitos dessa aproximação
se veriam na Constituinte, em que as lideranças associativas dos juristas foram
capazes de identificar o restabelecimento do Estado de direito com fortalecimento
de instituições judiciais independentes. Com isso, associavam a promoção dos in-
teresses dos juristas ao bem coletivo22. Na Constituinte, seus representantes terão
assento nas comissões, e seus anteprojetos, que reproduziam em parte o substi-
tutivo Accioly Filho, serão aprovados quase sem mudanças23.

3.5. Da Constituinte de 1987-1988 à crise de 2014

Na transição para a democracia, a crise do regime autoritário se entrelaça com


a do Estado desenvolvimentista. Forças políticas divididas entre lideranças regio-
nais e fracamente organizadas em numerosos partidos enfrentam-se em diversas
frentes. No processo político, acumulam-se os efeitos dos fracassos de sucessivas
coalizões que pretendem dirigir a transição. Políticos comprometidos com o au-
toritarismo se travestem em democratas convictos, ao mesmo tempo em que bu-
rocratas civis e militares mantêm o controle de setores do Estado e deles se valem
para preservarem suas posições e interesses.
No final dos anos oitenta há uma situação de relativo equilíbrio entre progra-
mas conservadores, liberais e progressistas, ao mesmo tempo em que emerge a
agenda neoliberal. A vitória de Fernando Collor em 1989 impulsiona essa agenda,
mas é a partir da ‘regência’ de Fernando Henrique Cardoso no governo Itamar
Franco, em 1993-1994, que se forma a aliança de centro-direita que irá aprová-la
nos anos seguintes.

22
D. A. MACIEL/A. KOERNER, “O processo de reconstrução do Ministério Público na transição po-
lítica (1974-1985)”, in Revista Debates, v. 8, n. 3, set.-dez., 2014, pp. 97-117.
23
E. CARVALHO, “O Supremo Tribunal Federal: das trincheiras de defesa dos direitos individuais
ao processo decisório do Estado”, in S. Praça e S. Diniz (ed.), Vinte anos de Constituição, São Paulo, Pau-
lus, 2008, p. 87.

43
SCIENTIA IVRIDICA

a. Políticos e Juristas na Constituinte: ampliação das atribuições e insulamento ins-


titucional do Judiciário
Os programas políticos para a nova Constituição podem ser caracterizados,
simplificadamente, numa escala de direita à esquerda, em função do grau de de-
mocratização do regime, a centralização política, o sentido da intervenção estatal
na economia e a ampliação dos direitos individuais e coletivos24. Quanto às insti-
tuições judiciais, os programas se distinguem em função da concepção de Cons-
tituição, do modelo do Tribunal Constitucional, os instrumentos para dar eficácia
imediata aos dispositivos constitucionais e a participação popular no Judiciário.
Distinguem-se quatro programas: a direita defende a continuidade do modelo
inserido e centralizado do Judiciário pós-1964, rejeitando inovações nas atribuições
e papel do juiz; a centro-direita e associações de juízes defendem a volta ao arranjo
de 1946, com um Judiciário separado, com forte base estadual, independência ad-
ministrativa e financeira, bem como a ampliação das garantias e prerrogativas dos
juízes, sem defender a ampliação das atribuições constitucionais do Judiciário; a
centro-esquerda, com apoio da OAB, e de associações do Ministério Público, pro-
curadores e juízes trabalhistas, defende inovações segundo o modelo democrático
europeu, com a criação de um tribunal constitucional, a ampliação das atribuições
do Judiciário para tornar efetiva a Constituição, composto por juízes profissionais,
mas com a abertura das instituições judiciais aos controles democráticos; enfim, a
esquerda propõe uma Constituição dirigente com um programa de amplas refor-
mas econômicas e sociais a serem realizadas imediatamente. Instâncias de caráter
judicial teriam papel ativo para controlar desvios ou omissões na implementação
do programa constitucional. Haveria um Tribunal das Garantias Constitucionais,
ou um Tribunal da Cidadania, nomeado pelo Congresso Nacional, com poderes
exclusivos para a defesa dos direitos fundamentais. O controle da constitucionali-
dade seria aberto a todos os indivíduos, seria ampliada a ação popular e criado o
mandado de injunção para o controle das omissões legislativas. Os conselhos de
direção do Judiciário e de controle disciplinar dos juízes teriam a participação de
representantes do povo. O Judiciário seria composto por juízes togados, concur-
sados, e juízes leigos, eleitos e jurados, com mandatos temporários, eleitos ou con-
cursados. Ao defender a quebra do monopólio dos juristas letrados no exercício

24
M. D. A. G. KINZO, “O quadro partidário e a constituinte”, in B. Lamounier (ed.), De Geisel a
Collor: o balanço da transição, São Paulo, IDESP/Sumaré, 1990.

44
JURISTAS ENTRE OLIGARCAS E PLEBEUS

da jurisdição, o programa da esquerda traz de volta à tona o modelo republicano,


por longo tempo secundário na reflexão sobre as instituições judiciais no Brasil.
Porém, mais uma vez na nossa história política, as propostas democráticas e par-
ticipativas são suprimidas pelas forças que dão o rumo da Constituinte.
A Constituição de 1988 é elaborada num processo marcado por pactos pon-
tuais, com fórmulas de compromisso cujo sentido haveria de ser determinado no
futuro. No processo constituinte, as forças políticas de direita e centro-direita de-
fendem uma concepção de Constituição garantia, com insulamento institucional
do Judiciário dotado de atribuições limitadas, enquanto as de centro-esquerda e
esquerda defendem uma Constituição dirigente, propugnam a ampliação das atri-
buições do Judiciário, com participação externa e controle democrático. O projeto
elaborado pelo Centrão é determinante para as regras da Constituição de 1988,
pois amplia os poderes constitucionais de instituições judiciais separadas e insu-
ladas burocraticamente e as vantagens das carreiras jurídicas, sem adotar qual-
quer forma de participação ou controle democrático. Foram derrotadas em ple-
nário emendas que propunham a participação popular no Judiciário, a criação do
tribunal constitucional e de conselhos da magistratura. O texto constitucional
acaba por combinar princípios do constitucionalismo comunitário que amplia os
direitos fundamentais e as garantias para protegê-los, assegurados por instituições
judiciais separadas, dotadas de atribuições amplas de controle dos outros poderes
do Estado. Ao mesmo tempo, assegura a autonomia administrativa e financeira
do Judiciário, assim como as garantias e vantagens dos juízes e outras carreiras
jurídicas. Essa combinação reforçou o insulamento burocrático e incentivou a que
seus integrantes se tornassem autorreferenciados.

b. Debates constitucionais e reforma do Judiciário nos anos 1990


Ao longo da Constituinte e no início dos anos noventa o equilíbrio entre as
forças fragmentadas bloqueia transformações mais amplas do Estado. Os progra-
mas políticos condensam duas racionalidades governamentais, a social-desenvol-
vimentista e a neoliberal, que se opõem sobre inúmeras questões, como a globa-
lização, as formas de intervenção estatal e de representação política, assim como
as relações entre direito e subjetivação. A primeira tem como modelo o direito so-
cial para promover a solidariedade coletiva, enquanto a segunda aposta no mo-
delo contratual para que a concorrência entre indivíduos autônomos e auto-
-interessados produza a maior eficiência.

45
SCIENTIA IVRIDICA

O desfecho do equilíbrio se dá com a aliança em apoio a Fernando Henrique


Cardoso nas eleições presidenciais de 1994. Transformismo político e reformismo
econômico se combinam para promoverem um conjunto de reformas segundo a
racionalidade governamental neoliberal25. A implantação do programa significa
um processo “reconstituinte” que elimina virtualidades discursivas da ordem
constitucional e conforma um regime constitucional neoliberal. Os juristas que se
posicionam a favor do novo regime constitucional adotam o conceito de Consti-
tuição como garantia de direitos e quadro formal para a concorrência, uma con-
cepção majoritária de democracia, e criticam a amplitude dos direitos funda-
mentais e dos poderes das instituições judiciais estabelecidos pela Constituição.
Os juízes deveriam adotar um modelo consequencialista de decisão, sendo defe-
rentes em relação às autoridades eleitas na promoção das reformas econômicas,
ao mesmo tempo em que deveriam ativamente “podar” as normas constitucionais
incompatíveis com o regime. O STF dá sustentação a esse regime, como se vê pelo
padrão de suas decisões em temas como a política econômica, as privatizações e
os poderes dos Estados.
Em contraposição, outros juristas adotam o discurso do constitucionalismo co-
munitarista para criticar o regime constitucional. Interpretam as reformas como
uma mudança de substância que traiu o sentido original do compromisso consti-
tucional. As instituições judiciais ofereceriam espaço para a resistência, a ser pro-
movida pelos juristas em aliança com a oposição política e os movimentos sociais.
O ativismo judicial seria uma forma de confronto político contra reformas antipo-
pulares. Nesse sentido, elogiam a interpretação baseada nos princípios e diretivas
da Constituição e preconizam o uso das atribuições, a exploração das possibilidades
interpretativas do texto constitucional, potencializadas por conceitos, técnicas e pro-
cedimentos para opor barreiras de resistência às reformas neoliberais. Esses juristas
têm em comum a trajetória de luta pela democratização e a aliança com os setores
populares e não investem no Judiciário como substituto da política. O ativismo é
uma tática imposta pela situação política e visa promover uma aliança política pró-
democracia social a longo prazo. Em seu horizonte, o ativismo é indissociável da
ampliação da participação popular e do controle democrático do Judiciário.

25
P. DARDOT/C. LAVAL, La Nouvelle Raison du Monde – Essai sur la Societé Néolibérale, Paris, La Dé-
couverte, 2010; M. FOUCAULT, Naissance de la Biopolitique – Cours au Collège de France, 1978-1979, Paris,
Gallimard, Seuil, 2004.

46
JURISTAS ENTRE OLIGARCAS E PLEBEUS

Nesse momento, são nítidas as relações entre as posições políticas e teóricas dos
juristas. Os que apoiavam o regime constitucional neoliberal adotam o conceito de
Constituição-garantia ou quadro, uma democracia representativa com baixa parti-
cipação e a atuação do Judiciário nas políticas públicas voltada, por meio de inter-
pretação consequencialista das normas, à sustentação das reformas. Os que criticam
o regime constitucional convergem com os partidos de oposição, sublinhando a di-
mensão comunitário-participativa da democracia, adotam conceitos substantivos de
Constituição, interpretações principistas das normas e reformas sociais-igualitárias.
Os debates sobre a organização judiciária e o ethos do juiz assumem outra fei-
ção. Desde o início do governo Fernando Henrique alardeia-se a “crise do judi-
ciário”, que coloca a reforma como imprescindível e emergencial, sustentando
uma agenda pública em que se combinam críticas aos poderes constitucionais do
Judiciário, depreciações do seu desempenho e denúncias de corrupção de juízes.
A ampliação das atribuições do Judiciário permitiria aos juízes intervirem em po-
líticas públicas em nome da proteção de direitos fundamentais, sem terem capa-
cidade, informações ou poderes para tal. As instituições judiciais seriam morosas,
custosas e produtoras de incertezas para os cidadãos. Seus poderes e opacidade
permitiriam aos juízes utilizarem-nos em benefício próprio, o que estaria na raiz
dos casos de corrupção26. Mas, em seu conjunto, esses fatores provocariam efeitos
perversos, aprofundando os problemas de governabilidade do país e minando a
ordem de mercado. Assim, o reformismo neoliberal associa a independência do
Judiciário e dos juízes profissionais à eficiência dos seus serviços, a ser alcançada
por controles externos, métodos gerenciais e a supervisão do desempenho dos
juízes e funcionários. Além disso, os juízes deveriam assumir o ethos neoliberal,
adotando em sua prática uma racionalidade instrumental para disseminar a con-
corrência na sociedade. As instituições judiciais poderiam ser separadas das de-
mais instituições estatais, mas a racionalidade neoliberal deveria ser incubada na
própria lógica de seu funcionamento e nas decisões de seus agentes.

26
A esse respeito, destaca-se a “CPI do Judiciário”, criada em março de 1999 a pedido do então
senador Antônio Carlos Magalhães com o objetivo de apurar denúncias de irregularidades praticadas
por integrantes de tribunais. Frederico Vasconcelos relata em Juízes no banco dos réus as dificuldades
da imprensa para conseguir tratar publicamente de casos de corrupção, dado o medo de sofrer reta-
liações por parte dos juízes. O jornalista fala, ainda, da demora no julgamento dos casos, das “apo-
sentadorias-prêmios” de juízes para abafar casos de corrupção, além da clara resistência do poder
judiciário a qualquer tipo de controle externo de suas atividades.

47
SCIENTIA IVRIDICA

Os juízes cerram fileiras em defesa de suas prerrogativas. Eles são capazes de


dar feição negativa às propostas neoliberais e isolar as vozes pela democratização
do Judiciário, ao identificar alterações institucionais com ameaças à autonomia
dos juízes. Associam o arranjo institucional existente com o Estado democrático
de direito, de modo que reformas como a centralização da jurisdição constitucio-
nal no STF, o ‘controle externo’ do Judiciário e melhorias na gestão aparecem
como repetições do ‘autoritarismo’ do governo Geisel. As atribuições constitucio-
nais amplas, a independência financeira e administrativa, as garantias dos juízes
seriam inseparáveis do insulamento burocrático, notadamente a ausência de par-
ticipação cidadã democrática na gestão do Judiciário e no exercício da jurisdição.
O ímpeto reformista se enfraquece no segundo mandato de Fernando Henri-
que Cardoso e a reforma do Judiciário sai da agenda política. Mas se mantém o
debate sobre os problemas de gestão no Judiciário e voltam, de tempos em tem-
pos, as críticas públicas a casos não esclarecidos de corrupção no Judiciário.

3.6. Os governos Lula e Dilma: reforma gerencial do Judiciário, neoconsti-


tucionalismo e ativismo judicial

A oposição vence as eleições presidenciais de 2002 e uma nova coalizão as-


sume o governo federal. O governo Lula se opõe à racionalidade governamental
neoliberal, mas tem baixa capacidade de reorganizar o regime constitucional exis-
tente, dadas a sua frágil base de apoio no Congresso, a presença no aparelho es-
tatal de atores comprometidos com a coalizão derrotada e a desconfiança dos
detentores do capital e dos controladores da mídia. A política do governo Lula,
caracterizada por André Singer27 como um “reformismo fraco”, é um compro-
misso entre frações de classes, com a incorporação subordinada do subproleta-
riado e a lenta promoção de reformas. O governo redireciona a política econômica
e impulsiona políticas sociais, por meio da redução da pobreza e da ativação do
mercado interno, do fortalecimento das capacidades estatais e da “política dos di-
reitos”. O governo promove direitos por meio de programas sociais, contornando
eventuais bloqueios no Congresso contra inovações legislativas. Desse modo, rea-
liza virtualidades enunciativas da ordem constitucional e altera pelas bordas o
regime constitucional neoliberal.

27
A. SINGER, Os Sentidos do Lulismo – Reforma Gradual e Pacto Conservador, SP, Comp. das Letras, 2012.

48
JURISTAS ENTRE OLIGARCAS E PLEBEUS

A reforma do Judiciário é parte da política dos direitos. O governo Lula cons-


trói apoios entre os juristas, ao promover uma reforma consensual do Judiciário,
materializada na Emenda Constitucional n.º 45, de 2004. Para os dirigentes do Ju-
diciário e associações de juristas, a iniciativa é uma oportunidade para realizarem
suas pautas, suspendendo divergências que bloqueavam as reformas desde os
anos noventa. O governo atua consistentemente na promoção de reformas jurídi-
cas para ampliar o acesso aos tribunais, aumentar a sua eficiência e a efetividade
dos direitos.
Porém, mantém-se o insulamento burocrático do Judiciário. A emenda reforça
o poder independente das instituições judiciais, mas os juízes neutralizam as ten-
tativas de criar controles externos e reforçar a sua responsabilidade. O órgão de
controle tem reduzido número de membros externos à profissão e os frágeis ins-
trumentos de que dispõe são imunizados e não funcionam28.
Predomina um enfoque gerencial da reforma do Judiciário, que busca obter
maior eficiência na prestação jurisdicional. Um programa de reforço dos controles
internos e racionalização da gestão vem sendo realizado de forma consistente
desde 2004. Essa consistência indica que se consolidou uma coalizão dirigente no
Judiciário, que encontra alianças no governo e no Congresso e tem o respaldo de
juízes e servidores. O seu programa conseguiu superar o modelo formal, legalista
e burocrático do Judiciário, fortalecendo o discurso que aponta a reforma como
promotora do acesso à Justiça e da eficiência na prestação jurisdicional. Porém, a
ênfase na eficiência leva à busca de meios rápidos para eliminar os processos, sem
considerar violações sistemáticas de direitos produzidas não só pelas desigual-
dialoga com
o texto da IA

dades estruturais, mas também pelos efeitos de sua própria política. O enfoque
gerencial prevaleceu sobre visões alternativas, que tinham concepções distintas
do Judiciário enquanto poder político, que propunham controles democráticos,
participação cidadã e formas mais abertas de deliberação nos processos judiciais.
Nos debates jurídico-constitucionais ocorre importante redefinição dos dis-
cursos, pois ganham peso doutrinas do pós-positivismo jurídico e do neoconsti-
tucionalismo. Elas destacam a força normativa da Constituição, o caráter criativo
da interpretação judicial e exaltam o protagonismo dos juízes, em contraste, subs-
tituição ou oposição com os representantes eleitos. O neoconstitucionalismo des-

28
R. FRAGALE FILHO, “Conselho Nacional de Justiça: desenho institucional, construção de agenda
e processo decisório”, in Dados, v. 56, n. 4, 2013.

49
SCIENTIA IVRIDICA

vincula o conceito material de Constituição da participação democrática, em pro-


veito do ativismo judicial. Juristas de centro e de direita acolhem o ativismo judi-
cial para controlar as políticas governamentais em sentido amplo, mas não para
defender a participação democrática ou proteger os direitos sociais.
Os ministros do STF assumem o discurso do ativismo, exaltando o papel do
Tribunal na promoção dos direitos constitucionais, dada a omissão ou desvio dos
demais poderes. O STF encarnaria o poder constituinte e atuaria como coparticipe
da modernização do Estado brasileiro. A criatividade interpretativa do juiz seria
positiva e as mudanças na jurisprudência seriam resultado de processo evolutivo,
ajustando a Constituição às novas exigências históricas e necessidades sociais. O
discurso público sobre o STF destaca o seu papel de foro constitucional, voltado
à deliberação racional das grandes questões da sociedade. Porém, a prática dos
ministros do STF revela o seu ethos. Eles reinterpretam o seu papel constitucional
e atribuições com base em poderes implícitos, mas relaxam as exigências sobre as
suas próprias decisões, abandonando o cuidado em justificar suas escolhas, em
manter a coerência temporal em casos iguais e a consistência “transversal” em
questões diferentes.
Assim, a partir do primeiro mandato de Lula, governo, oposição, juristas e
mídia investem no poder independente das instituições judiciais para promover
os valores da Constituição, reformar a política e purificar a sociedade brasileira.
Reformas legislativas ampliam os instrumentos judiciais de controle da adminis-
tração e sua legitimidade é reforçada pelo discurso público. Os juízes parecem
afinados com as ações do governo federal na promoção dos direitos sociais e de
medidas de combate aos malfeitos na política e na administração. Não é nítido o
potencial conflito entre um governo de base popular voltado à promoção de re-
formas sociais e o poder independente de instituições judiciais separadas e insu-
ladas. Retrospectivamente, nota-se que a convergência era tática e que havia
movimentos que levariam aos confrontos tornados públicos a partir de 2012, com
o julgamento da Ação Penal n.° 470, conhecida como o caso do Mensalão, e ao apoio
judicial ao golpe parlamentar que afastou por impeachment a presidenta Dilma
Rousseff.

50
JURISTAS ENTRE OLIGARCAS E PLEBEUS

4. Rumo a um impasse? Limitação das atribuições constitucionais e fim do


insulamento

O investimento pela mídia e a oposição de instituições judiciais independen-


tes, investidas no papel salvacionista de restaurar a virtude da República, está no
centro de um golpe parlamentar em que se promoveu a desqualificação da política
e a criminalização de adversários. Mas o processo coloca em primeiro plano o
problema político das instituições judiciais e dos juízes na (re)construção da de-
mocracia constitucional brasileira.

4.1. Críticas e problemas atuais

Alguns analistas continuam a discutir temas pontuais sobre o Judiciário, como


se a questão atual fosse resultado de questões como o desequilíbrio nas relações
entre os poderes ou o excesso do número de processos e pudesse ser resolvida com
ajustes técnicos. Nos últimos anos, os críticos mostram a natureza e a extensão do
problema. Juízes denunciam abusos de poder de seus superiores hierárquicos29 e a
incapacidade do Conselho Nacional de Justiça de controlá-los30. Critica-se a promo-
ção da imagem do Judiciário pela mídia31, o caráter seletivo da operação Lava-Jato,
o abuso da independência judicial por juízes que contrariam o Estado de direito no
combate à corrupção32 e as violações de direitos praticadas por seus agentes33. Arno

29
Carta pública da Associação dos Juízes para a Democracia, de 2013. Disponível em https://
www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Juizes-para-a-Democracia-o-povo-nao-aceita-mais-o-coronelismo-
no-Judiciario/4/29641.
30
Entrevista de João Ricardo dos Santos Costa, presidente da Associação dos Magistrados Brasi-
leiros, em 3/4/2014. Disponível em https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Estado-Democratico-de-Di-
reito/Joao-Ricardo-dos-Santos-Costa-Judiciario-nao-pode-deixar-que-as-maldades-feitas-contra-a-sociedade-brasil
eira-sejam-esquecidas/40/30651.
31
Artigo de Hamilton Octavio de Souza para o site Carta Maior, “Adendo ao artigo ‘Show do
Mensalão é pura distração’”, publicado em 30/9/2013. Disponível em https://www.cartamaior.com.br/
?/Coluna/Adendo-ao-artigo-%27Show-do-mensalao-e-pura-distracao%27/29106.
32
Ele foi levantado, inclusive por observadores internacionais, como Herta Däubler-Gmelin, ex-
ministra da Justiça da Alemanha. Ver https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/A-luta-do-Judi-
ciario-brasileiro-contra-a-esquerda/4/39225.
33
Ver entrevista com Raúl Zaffaroni: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/-O-Judicia-
rio-brasileiro-e-seletivo-contra-o-PT-/4/36096; e artigos de Marco Weissheimer: https://www.cartamaior.com.
br/?/Editoria/Politica/Desembargador-critica-adocao-de-estado-de-excecao-pelo-Poder-Judiciario/4/36896; Ro-

51
SCIENTIA IVRIDICA

Wehling34, ao concluir a sua pesquisa sobre o Tribunal da Relação do Rio entre a se-
gunda metade do século XVIII e o início do século XIX, notava a continuidade de
problemas como a morosidade dos processos, as decisões conflitantes, o absenteísmo
e atos irregulares dos desembargadores, as dificuldades em responsabilizá-los.
A glorificação dos juízes para a salvação da República potencializou os efeitos
da combinação do insulamento institucional, o consequencialismo do enfoque ge-
rencial e os poderes discricionários dos instrumentos das autoridades policiais e
judiciais no combate à corrupção. O insulamento institucional impede a respon-
sabilização dos juízes e permite que eles mantenham alianças com lideranças po-
líticas e classes dominantes para que utilizem os espaços e recursos judiciais para
promoverem seus interesses privados. Juízes e juristas continuam a praticar ile-
galidades, associam-se a esquemas de poder informais, acomodam-se com a vio-
lência e arbitrariedades estatais, o patrimonialismo na administração pública e o
clientelismo eleitoral35.
O enfoque gerencial amplia o poder de decisão dos agentes judiciais, ao focar
os controles nos resultados de sua ação. O juiz torna-se um gestor de processos
sob sua responsabilidade e atua para manter o ‘estoque’ sob controle, por um con-
junto de medidas que aumentam a eficiência de sua vara e decisões judiciais vol-
tadas a atender às expectativas dos seus superiores. Ele contrasta com o consti-
tucionalismo democrático, no qual poderes dos juízes são ampliados tendo em
vista a concretização dos direitos. Os riscos de arbitrariedade são controlados por
padrões técnicos e éticos, segundo os quais a objetividade dos juízos é buscada
pela apuração técnica da linguagem, a apreciação exaustiva das provas, a justifi-
cação de escolhas, o exame argumentado de alternativas, o escrutínio crítico e pú-
blico pela “comunidade de intérpretes”, etc.

berto Amaral: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Judiciario-um-ponto-fora-da-curva-demo-


cratica/4/37010; e Dalmo de Abreu Dallari: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Estado-Democratico-
de-Direito/Condenacao-sem-prova-degradacao-do-judiciario/40/39268.
34
A. WEHLING/M. J. WEHLING, Direito e Justiça no Brasil Colonial – O Tribunal da Relação do Rio de
Janeiro (1751-1808), cit., pp. 587-588.
35
R. B. ARANTES, “Polícia Federal e Construção Institucional”, in L. Avritzer e F. Filgueiras (ed.),
Corrupção e sistema político no Brasil, RJ, Civilização Brasileira, 2011, pp. 99-132; L. ZAFFALON, Uma espiral
elitista de afirmação corporativa: blindagens e criminalizações a partir do imbricamento das disputas do sistema
de justiça paulista com as disputas da política convencional, (doutorado), Administração de empresas FGV,
São Paulo, 2017.

52
JURISTAS ENTRE OLIGARCAS E PLEBEUS

Enfim, o fortalecimento das instituições de controle policial reforça práticas ju-


rídico-penais da tradição inquisitorial, usadas para fins privados36. Na crise atual,
autoridades policiais e judiciais utilizam seus poderes para produzir efeitos preci-
sos no jogo político, segundo suas alianças facciosas. Esse viés não apenas evidencia
a fragilidade dos instrumentos jurídicos de proteção aos direitos, dos mecanismos
de responsabilidade funcional, mas também os problemas na construção do ethos
profissional de juízes, policiais e outros juristas na democracia brasileira.
A atuação dos juristas brasileiros é criticada como governo dos juízes, ati-
vismo judicial, etc. Parece-nos que, ao invés de supremacia, o processo mostra a
imersão dos juízes no jogo político-partidário, com o embaralhamento das fron-
teiras das esferas política e jurídica37. A crise redefiniu essas fronteiras e é provável
que os conflitos permaneçam frequentes, produzindo repetidas situações de in-
certeza jurídica em casos de alta relevância, que podem levar a propostas de li-
mitação das atribuições do Judiciário e a formas punitivas de responsabilização
dos juízes.

4.2. A necessária discussão sobre instituições judiciais e juízes na democra-


cia brasileira

Instituições judiciais dotadas de amplas atribuições políticas e alta capacidade


organizacional, com profissionais qualificados tecnicamente, dotados de instru-
mentos poderosos para a promoção de bens públicos. Ao invés de promover di-
reitos e garantias fundamentais, reproduzem e ampliam a escala de práticas que
os violam, e assim produzem efeitos inversos aos objetivos manifestos para os
quais foram criadas.
Na crise atual, o poder independente das instituições judiciais deixa de ser
parte da solução da democracia brasileira para se tornar o problema central para
a sua reconstrução. O desafio é pensar o problema em todas as suas dimensões
constitucionais, políticas e sociais, levando em conta o caráter historicamente ar-
raigado das práticas e convenções em que eles se sustentam.

36
R. K. LIMA/G. MOUZINHO, “Produção e reprodução da tradição inquisitorial no Brasil: entre de-
lações e confissões premiadas”, in Dilemas – Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 9, n. 3, pp.
505-529, 2017.
37
M. DOBRY, Sociologia das Crises Políticas, São Paulo, Editora da Unesp., 2014.

53
SCIENTIA IVRIDICA

A reconstrução da democracia brasileira depende da formação de uma ampla


coalizão política capaz de promover mudanças políticas e sociais de grande al-
cance. Uma questão política de primeiro plano é a redefinição da independência
judicial e das atribuições do Judiciário, a criação de formas de controle e de gestão
democrática do Judiciário. Ela é indissociável da discussão do modelo de prática
judicial responsável e do ethos dos juízes. É preciso revalorizar concepções que
pensam formas mais dialógicas de deliberação nos processos judiciais, a plurali-
zação dos julgadores, que sejam indivíduos com outros perfis do que os juízes to-
gados ou profissionais, que buscam compromissos efetivos para a realização dos
direitos sociais, em cooperação com outras agências do Estado, com as outras or-
ganizações jurídicas e com organizações e movimentos da sociedade.

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