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Resumo:
O capítulo apresenta um ensaio sobre “política constitucional” que explora a centralidade e
ambivalências do jurídico na ordem constitucional de 1988. Argumenta-se que elas podem ser
entendidas em função das disputas entre políticos e juristas sobre os programas governamentais
e modelos constitucionais para a direção da sociedade, e os padrões de atuação do Judiciário.
Analisam-se, primeiro, o tema do constitucionalismo democrático e a trajetória constitucional
brasileira até a transição. Em seguida, as relações do jurídico e a política em três momentos,
referentes à longa constituinte, à formação de um regime constitucional neoliberal no governo
de Fernando Henrique Cardoso e suas variações, promovidas a partir de 2003. O capítulo
termina com a discussão sobre a corrupção como arma política no judiciário, os impasses do STF
e os desdobramentos possíveis das relações entre o jurídico e a política, cuja permeabilidade foi
acentuada pela crise atual.
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Agradeço aos colegas que participaram do Colóquio “Questões emergentes e perspectivas para
pesquisas sociais e históricas sobre direito e política no Brasil", realizado na UnB nos dias 24 e 25 de
julho de 2017, organizado pela AT “Política, Direito e Judiciário” da Associação Brasileira de Ciência
Política, o Programa de Pós-Graduação em Direito e a Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.
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Professor do DCP do IFCH/Unicamp, presidente do Cedec, pesquisador do INCT/Ineu e integrante do
GPDH-IEA/USP.
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Introdução
Certo dia, no centro da cidade, ouvimos conversa entre dois ambulantes, indignados
com a ação dos fiscais da prefeitura: “eles só vão parar quando a gente tacar um mandado de
segurança contra eles”. De fato, a linguagem do direito entrou nas falas cotidianas dos cidadãos
e a mobilização dos direitos incorporou-se às suas estratégias para defenderem e promoverem
seus interesses e valores. O aumento exponencial do número de processos indica expectativas
otimistas de um sistema judicial aberto e responsivo às demandas sociais. Os juristas3
demonstram maior protagonismo político e social, e o mundo do direito oficial não mais parece
desconectado dos conflitos sociais, embora se mantenha custoso, opaco, demorado e
indiferente à auto-compreensão normativa dos cidadãos.
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O termo refere-se genericamente aos profissionais de direito e não apenas a teóricos e doutrinadores.
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“Ordem constitucional” designa aquilo – que se dá no plano dos discursos, mas também
das tecnologias de poder e práticas – que liga, enlaça, saberes, instituições, espaços e relações
sociais para a direção da multiplicidade de agentes, conferindo-lhes uma referência jurídico-
normativa objetiva e conformando-os como sujeitos de direitos. “Regime constitucional”
designa a forma que a ordem constitucional assume numa sociedade em período determinado.
“Jurídico” refere-se tanto a um campo ou esfera social diferenciada como a uma instância de
discursos e práticas referidos à problemática da elaboração de juízos públicos e dotados de
objetividade sobre as relações entre os agentes e destes com a totalidade social, ao tratar de
situações particulares e deliberar sobre as contestações na cidade (Ewald, 1993; Foucault, 2004).
naturais e sociais. O princípio da dignidade do ser humano traduz-se na prioridade dos seus
direitos e garantias em relação aos fins coletivos, enquanto o equilíbrio dos direitos de muitos
formula-se em termos de justiça. A jurisdição assume funções positivas de assegurar o equilíbrio
dos poderes e a promoção dos objetivos comuns, ao mesmo tempo em que mecanismos
institucionais asseguram a articulação dos juízes com os representantes políticos eleitos (Bell,
2006).
Esse programa é tensionado pelo neoliberalismo de mercado4, que emerge no final dos
anos setenta. A Constituição e leis gerais são colocadas como quadro formal para assegurar os
direitos de propriedade e de contrato, e manter as condições do mercado. O agente e
destinatário das normas é pensado segundo o modelo abstrato do indivíduo maximizador de
utilidades, o sujeito-empreendedor de si mesmo, que estabelece relações contratuais com
outros e com as agências estatais. O jurista torna-se um gestor, que utiliza as margens de
apreciação de sua atividade para coadjuvar outros técnicos estatais. A análise econômica
modela a sua prática, ao colocar a interpretação das normas como uma espécie de cálculo,
avaliadas do ângulo da eficiência. O próprio Estado, incluindo as instituições judiciais, é
apreciado desse modo, o que leva a reformas de suas organizações, métodos de trabalho e
objetivos.
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O termo é utilizado para distinguir o programa de matriz austríaca, adotado pelos governos inglês e
norte-americano, do programa europeu do pós-2ª Guerra, em particular o ordoliberalismo, que dava
maior peso à Constituição, à regulação estatal e aos direitos sociais.
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Nesta seção serão analisadas as relações entre os programas constitucionais das forças
que disputam a direção política da sociedade brasileira e os saberes e práticas sobre o jurídico
na ordem constitucional de 1988.
instituições judiciais e seu insulamento institucional, o que não fazia parte de nenhum dos
programas constitucionais relevantes. As forças de centro-direita defendiam atribuições
limitadas e insulamento institucional do Judiciário, enquanto as de centro-esquerda
propugnavam atribuições amplas e o controle democrático por meio da participação externa no
Judiciário. O resultado foi produzido pela aprovação, desde os trabalhos das comissões, da
ampliação dos direitos e garantias, da autonomia do Judiciário e das vantagens das carreiras
jurídicas5. O projeto do Centrão incorporou essas regras, mas não as inovações polêmicas, como
o Tribunal Constitucional, o controle da magistratura e a participação popular no Judiciário. O
projeto foi aprovado em bloco, enquanto as emendas polêmicas foram rejeitadas quando
votadas em separado (Carvalho, 2008; Koerner & Freitas, 2013).
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Essas vantagens foram patrocinadas pelas elites jurídicas desde o debate sobre a reforma judiciária de
1974-7 e incorporadas ao programa da frente democrática.
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Por sua vez, juristas de esquerda, como Clémerson Merlin Clève, Antônio Carlos
Wolkmer e Amilton Bueno de Carvalho veem a nova Constituição como a oportunidade de lutar
pela construção de uma democracia igualitária. Com base em teorias críticas do direito,
privilegiam o papel criativo dos juristas para atuarem nos espaços institucionais e inovarem a
conceituação e os usos dos institutos jurídicos e das próprias comunidades populares, em cujo
seio se criaria um direito alternativo, de caráter instituinte ou insurgente (Arruda Jr, 1991).
A orientação do STF, e de outros tribunais superiores, contrasta com a dos demais juízes.
Em centenas de milhares de ações estes acolhem demandas dos cidadãos sobre os mais variados
temas (Arantes, 1997). Mobilização do direito e protagonismo de juristas estão em fase para
realizar potenciais sentidos do texto constitucional. Mas, tal como as ações de combate à
corrupção, eles são bloqueados pelas instâncias superiores. Estas são questionadas por seu
alinhamento com o governo federal e o apoio ao regime constitucional neoliberal (Lima, 2001).
Nos anos 2000 esse quadro se modificará.
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Como ocorreu com a decisão do TSE sobre a verticalização de coalizões em 2002.
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fortalecem sua autonomia para promoverem sua agenda e reforçarem sua imagem pública.
Embora convergente naquele momento com a agenda do governo federal, ela se coloca em
virtual concorrência, pois prioriza questões relativas a padrões de comportamento individual e
a moralidade pública.
Assim, o discurso do ativismo judicial não é efeito direto do constitucionalismo
democrático ou do texto da Constituição de 1988 e não é exclusivamente gerado por
propensões açambarcadoras de juristas e ministros do STF. Ele é uma potencialidade da ordem
constitucional de 1988 que foi promovida nos governos de Lula e Dilma. Ele foi difundido por
doutrinas jurídicas, efetivado pelos ministros do STF, apoiado pelos dirigentes judiciais e líderes
associativos, e celebrado pela mídia com o beneplácito da oposição política. De sua emergência
resulta uma agenda concorrente com a do governo, que limita a sua amplitude de ação e poderia
ser voltada contra ele.
As relações entre a linguagem dos direitos e os saberes dos juristas são ambíguas, pois
aquela é construída em processos políticos e sociais amplos, e os juristas conformam-nas com
seus saberes para que demandas de direitos veiculem seus interesses e posições políticas. O
reformismo dos juristas no governo Lula tem essa ambiguidade, pois eles passaram a reivindicar
seu protagonismo na promoção de mudanças. Embora governo e juristas convergissem, eles
não compartilhavam as mesmas alianças políticas, interesses e posições sobre questões
substantivas. Os juristas poderiam eventualmente se aliarem com a oposição.
princípios constitucionais pelos juízes, passaram a ser utilizados para relativizar direitos
individuais e justificar intervenções judiciais na política. O combate à corrupção justifica a livre
atuação das autoridades policiais e judiciais, cujo campo de atuação passa do controle da
administração pública às eleições e práticas políticas, incidindo sobre prerrogativas
parlamentares, as atribuições do Congresso e a autoridade da Presidência.
A mobilização pela Lei da Ficha Limpa, o julgamento da AP n° 470 e a operação Lava-Jato
estão em continuidade. Eles abrem caminho ao golpe parlamentar de 2016, realizado pelo
impeachment da Presidenta Dilma Rousseff.
A mobilização pela ética na política existe desde os anos noventa, mas foi a partir das
eleições de 2006, que juízes e tribunais eleitorais impugnam os registros de candidatos com
condenações judiciais. Eles aplicam diretamente o dispositivo constitucional que, no entanto,
prevê lei complementar para tal (art. 14, § 9° da Constituição), mas suas decisões são
bloqueadas pelo TSE (Koerner, 2013b). Em 2008, a Associação dos Magistrados do Brasil (AMB)
propõe a ADPF nº 144 na qual demanda ao STF a declaração da inelegibilidade dos condenados
por crime grave ou desabonador, mas ela é rejeitada, por nove votos a dois (vencidos Ayres
Britto e Joaquim Barbosa). Uma frente de agrupamentos cívicos, liderado por juristas e
incentivada por autoridades judiciais, inclusive do STF, promove uma campanha pela edição da
lei, conhecida como Ficha Limpa, aprovada em 2010.
A constitucionalidade da lei é questionada porque feriria o princípio da presunção de
inocência, ao tornar inelegíveis condenados em segunda instância e não poderia ser aplicada
nas eleições de 2010 por ter alterado as regras a menos de um ano do pleito. Mas o STF não é
capaz de decidir a questão antes das eleições, porque o julgamento termina empatado e o seu
presidente se recusa a dar o voto de Minerva. Em março de 2011, com o voto do ministro recém-
empossado, Luis Fux, o STF decide que a lei valeria apenas para as eleições de 2012, permitindo
a posse dos candidatos impugnados. No caso, cinco ministros, engajados no movimento de
moralização da política, deram prioridade ao princípio da moralidade sobre o da anualidade, um
dos pontos fundamentais do pacto para a eliminação de casuísmos eleitorais desde a Revolução
de Trinta. Eles se distanciaram da tradição jurídica que estabilizou as normas e procedimentos
eleitorais, garantidas pelo Judiciário, como a base da ordem eleitoral competitiva no Brasil.
O julgamento da AP n° 470, conhecido como o caso do mensalão, leva ao paroxismo a
exibição do STF na mídia, centrada no combate à corrupção (Oliveira, F.L., 2017). A propaganda
era a de restauração dos costumes e de renovação política (Pereira, M., 2013), mas as
debilidades da atuação do STF como alta corte de justiça evidenciam o viés político-partidário
de seus ministros. No primeiro semestre de 2012, já se mostram diversos problemas, a começar
pela diferença de tratamento com outro caso idêntico, o chamado mensalão mineiro. Ao
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O sentido das ações e omissões do STF durante a crise política de 2014 a 2016 é o de dar
sustentação à ofensiva política do impeachment. Ao longo do processo o STF manipula, ad
libitum, o tempo, as modalidades e o conteúdo das suas decisões, contrariando suas próprias
orientações jurisprudenciais. Mas o STF é composto por uma pluralidade de ministros e a sua
orientação global evidencia, nesse contexto, a incapacidade de formar uma maioria que ofereça
a referência constitucional para a sociedade, mantendo o equilíbrio entre os atores políticos,
controlando os juízes e assegurando os direitos fundamentais. Isso ocorre tanto pela sua
paralisia enquanto tribunal coletivo quanto pela fragmentação das decisões, tomadas
oportunisticamente pelos seus ministros em função de suas alianças com os grupos políticos
(Fernandes, 2017; Arguelhes & Ribeiro, 2015 e 2017). Essa situação é um elemento pleno da
crise política, pois, se o STF esteve na raiz dela, ela produziu o seu colapso. Ao atuar em fase
com os interesses da oposição, ingressou nos tempos e movimentos do jogo político, a ponto de
com ele se fundir.
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