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Excerto do Livro intitulado “Fundamentos da Regulação”, de

Othon de Azevedo Lopes, p. 69-118

Capítulo 2 – Juridificação e Paradigmas de Estado

A regulação como processo de produção artificial de normas por entidades


autônomas incrustadas no Estado deve sua existência a uma concepção moderna de
direito e instituições políticas. Esse fenômeno de deslocamento de poder normativo
ocorre a partir de alguns pressupostos: 1) a consolidação de um sistema político-
burocrático, 2) a constituição de um sistema econômico, 3) a positivação do direito
como sua produção artificial em regras formais com hipóteses de incidência e sanções
que visavam a regular comportamentos, 4) instituições jurídicas e políticas concebidas
funcionalmente para a consecução de utilidades sociais, como por exemplo o
estabelecimento da paz, do bem-estar social, da vida mais agradável possível e 5) o
estabelecimento de aplicações técnico-científicas como meio para consecução dessas
finalidades sociais.
Essa produção de regras por entes autônomos emergiu de disputas sociais
que levaram a diferentes configurações de Estado e de instituições jurídicas. Não se
pode esquecer que a ênfase regulatória é um grande problema para o Estado
Democrático de Direito e que seu cenário é o do conflito de classes amortecido por
diretrizes compensatórias típicas do Estado de Bem-estar Social. Daí a importância de
uma reconstrução das diferentes fases de juridicificação e dos paradigmas do Estado a
partir da Modernidade.
A partir das grandes codificações do século XVIII o direito materializa-se na
forma de textos. O câmbio estrutural da sociedade remete a uma mudança no próprio
direito, por meio da cultura jurídica. Surge um sistema jurídico e seu entorno social do
qual emergem os juristas. Com isso, inicia-se um processo de juridicização. Essa
compreensão histórica do direito e da sociedade aparece como noção polêmica no
debate sobre o direito do trabalho na República de Weimar, tendo Kirchheimer o
utilizado para criticar a formalização jurídicas das relações de trabalho1 que levaria à
sua petrificação, com riscos para o movimento obreiro, em razão da neutralização do
conflito de classes. É um processo de desapropriação dos conflitos, sua despolitização
e de fluxo de normas.
Há desapropriação dos conflitos no momento em que eles são arrancados de
seu contexto com a sua desnaturação pela formalização jurídica. Ocorre, em verdade,
uma alienação dos conflitos sem exatamente a sua solução, em razão da lentidão da
justiça, dos custos dos procedimentos, da desigualdade nas chances de sucesso e
também das barreiras de acesso e compreensão da Justiça.
A despolitização, como característica da juridicização, dá-se pelo tratamento
jurídico e técnico dos conflitos que ao mesmo tempo que protege interesses restringe as
possibilidades políticas de ação, colocando os indivíduos numa posição colaborativa. É
exemplo o direito do trabalho, no Estado de Bem-estar Social, em que a salvaguarda
dos interesses da classe trabalhadora restringiu o âmbito de ação política dos sindicatos,
inserindo-os numa posição de cooperação com as instituições jurídicas e estatais.
A juridicização também reflete um fluxo crescente de normas, especialmente
no mundo empresarial e do trabalho, como um problema típico do avultamento da
dinâmica intervencionista. Há dois movimentos na juridificação: a expansão do direito
com a regulação formal de, até então, situações sociais informalmente regradas; e a
densificação que é a depuração de regramentos sociais em conceitos e definições
especializados típicos do sistema jurídico. A miséria singular e progressiva do direito
escrito e positivo contemporâneo reside no aumento da massa de leis e normas que vão
tornando o direito progressivamente incoerente, dificultando compilações de normas e
elaboração de material intelectual adequado para o seu enfrentamento. A doutrina no
seu trabalho de controle da consistência do material normativo e decisional e de
elaboração sistemática do conhecimento vai progressivamente cedendo espaço a um
positivismo jurisprudencial.

1
TEUBNER, Gunther. Droit et réflexivité. Paris: L.G.D.J., 1996, p. 57.
Esse processo de juridicização reflete uma cadente destruição do ambiente
do mundo da vida, por meio da poluição jurídica e de sua burocratização. O direito,
como meio regulação do Estado de Bem-estar social e mesmo do Estado Regulador,
funciona a partir de critérios de racionalidade e formas de organização que não são
apropriadas ao mundo da vida, com o seu assujeitamento à lógica sistêmica2. É um
processo já explicado de colonização do mundo da vida, com um alto nível de
generalização, em que: 1) há o desmantelamento das formas tradicionais de vida, em
que os componentes do mundo da vida (cultura, sociedade e personalidade), em grande
extensão, acabam diferenciados; 2) as relações de troca entre os subsistemas e o mundo
da vida passam a ser reguladas por papéis sociais específicos (empregado, consumidor,
cliente, etc.); 3) a disponibilização do trabalho e a participação política pelo voto são
mobilizadas por verdadeiras abstrações que encerram uma troca tolerada por
recompensas e compensações sistêmicas; 4) as compensações são financiadas pelo
crescimentos capitalista conformando-se padrões de bem-estar, canalizados pelos
papéis sociais específicos de consumidor e cliente, sobrepondo-se a desejos de
autorrealização, no mundo do trabalho, e autodeterminação, na esfera pública3.
Esse fenômeno é o resultado da implantação de um bem sucedido programa
de Estado de Bem-Estar Social e sua evolução como Estado Regulador, com efeitos
patológicos na reprodução cultural, na integração social e na socialização, que acabam
assimiladas por um processo formalizador por parte do direito moderno, havendo o
deslocamento da integração social, como entendimento no âmbito da vida, para
integração sistêmica, como uma dependência de prestações materiais fornecidas pelo
sistema político-burocrático e pelo sistema econômico.
De outro lado, as jornadas de juridificação caracterizam-se por novas
instituições legais que se refletem na formação da consciência jurídica cotidiana. A
primeira jornada marcou-se por ser garantidora de liberdades ao estender o direito civil
burguês e a dominação burocrática exercidos legalmente, significando ao menos
emancipação em relação ao poder e a relações de dependência pré-modernos. As três

2
TEUBNER, Gunther. Droit et réflexivité. Paris: L.G.D.J., 1996, p. 51.
3
HABERMAS, Jürgen. Law as Medium and Law as Institution. In: TEUBNER, Gunther. Dilemmas of Law in
the Welfare State. Berlim/Nova Iorque: Walter de Gruyter, 1988, p. 203.
subsequentes jornadas de juridificação garantiram um incremento de liberdade, ao
procurar domar a dinâmica política e econômica, marcadas pelos meio poder e dinheiro.
As jornadas seguintes ao Antigo Regime construíram sobretudo discursos de
emancipação, com a constitucionalização e a democratização da dominação
burocrática, inicialmente absolutista. As instituições jurídicas que solidificaram a
soberania passaram a ter sentido inequivocamente4 garantidor de liberdades. Nesse
cenário, sempre que o direito formal burguês faz prevalecer as pretensões do mundo
da vida em face da dominação burocrática perde a ambivalência inerente a uma
realização de liberdades conseguida ao preço de efeitos laterais destrutivos5.São,
assim, quatro jornadas de juridificação: 1) o Estado Burguês Absolutista; 2) o Estado
de Direito acompanhado do Estado Liberal; 3) o Estado Social no seu desdobramento
em Estado de Bem-estar Social; e 4) o Estado Democrático de Direito acompanhado do
Estado Regulador.
Essa descrição do processo de juridicização tem um caráter
predominantemente descritivo e crítico, sendo necessário complementá-lo com a
concepção de paradigma jurídico, que fornece elementos para um diagnóstico da
situação social, como um mapa orientador da ação. Aclaram, ainda, o horizonte de um
projeto de realização de um sistema de direito como abertura de perspectivas
interpretativas, revelando as restrições e âmbitos de concretização dos direitos
fundamentais, a serem interpretados, desenvolvidos e configurados, por se
apresentarem como “princípios não saturados”.6 Os paradigmas encerram, assim,
possibilidades descritivas e prescritivas.
A interpretação do direito procura, por meio dos paradigmas, responder a
desafios sociais delimitados no tempo e no espaço. São ideais sociais, modelos e visões
sociais com descrição e valoração de fatos sociais e também funcionamento dos
sistemas sociais. Não são propriamente os acontecimentos sociais, mas as
representações que os tribunais fazem desses acontecimentos sociais. O paradigma

4
Idem. Ibidem, p. 510.
5
Idem. Ibidem, p. 508.
6
JÜRGEN, Habermas. Facticidad y Validez. Madri: Trota, 2010, p. 523.
contém uma proposta de explicação e justificação das referências assumidas pelos
juristas na sua compreensão da sociedade.
Dentro de um paradigma busca-se um processo de racionalização com as
seguintes dimensões: 1) sistematização interna do material jurídico (racionalidade
interna); 2) Organização das pretensões de validade e justificação normativa
(racionalidade normativo); e 3) contribuição para a manutenção da sociedade complexa
(racionalidade sistêmica).
Um novo paradigma pode resultar do aclaramento, em termos de ciências
jurídicas sociais, assentadas em convicções comuns, que os juízes têm dos processos
sociais, os padrões de expectativas e os mecanismos de integração social. São teorias
dispositivas, estabelecendo o que se entente por e como se interpreta a lei e em que
direção o direito legislado deve ser complementado e modificado, apresentando-se
como responsáveis pelo futuro da existência social.
Os paradigmas reduzem a complexidade da tarefa de decidir um caso
particular por consistirem em sistemas coerentes e racionalmente ordenados. Não são
apenas uma autocompreensão, mas também uma justificação por parte dos tribunais nos
seu trato com os seus clientes. No entanto, os paradigmas não dizem respeito apenas a
experts, mas também ao conjunto da sociedade, embora estejam os primeiros em
posição privilegiada na compreensão paradigmática, eles não podem impor a sua visão.
É que, a par do direito desenvolvido por jurista, os direitos fundamentais formam-se
como uma instituição social que denuncia injustiças padecidas com as violações da
dignidade da pessoa humana.
Sobre o assunto da juridificação e dos paradigmas de direito e Estado, é
necessário fazer uma última advertência. A temática envolve sobretudo uma perspectiva
eurocêntrica, em que predominam países de capitalismo avançado. O seu estudo, no
entanto, é válido para o cenário brasileiro, eis que se trata de formas de ordenação social,
com uma tecnologia subjacente, que foi absorvida pelas instituições nacionais.
A questão é que a análise e aplicação desses modelos não pode ocorrer de
forma ingênua, desconsiderando o contexto brasileiro, como país que se insere
tardiamente no capitalismo. Antes da década de 30 do século XX, com a emergência do
Estado Novo, a economia brasileira era baseada em monoculturas, com os sucessivos
ciclos econômicos dos quais o último da maior importância foi o do café. Outra coisa
que não pode ser esquecida é que, durante, o século XIX, a produção nacional era
escravagista. Com isso, fica muito claro que o Brasil não experienciou o Estado Liberal.
No mesmo sentido, a industrialização brasileira deu-se em período posterior
e foi capitaneada pelo Estado, sem a prévia acumulação de capital nas mãos da iniciativa
privada como ocorrera na Europa. Isso fez com que a complexificação da sociedade
brasileira ocorresse apenas com o advento de um Estado Social, eminentemente
coorporativo. De igual modo, as políticas de bem-estar social, ampliadas pela
Constituição Federal de 1988, ocorrem num contexto de acanhada formação de capital,
em comparação com os países de capitalismo avançado, o que obviamente limita as
possibilidades compensatórias e redistributivas, ínsitas a um Estado de Bem-estar
Social.
O caso brasileiro é de modernidade periférica, “em que os sistemas jurídico
e político são bloqueados generalizadamente na sua autoprodução consistente por
injunções heterônomas de outros códigos e critérios sistêmicos, assim como
particularismos difusos que persistem na ausência de uma esfera pública pluralista.” 7
Há, em tais casos, um processo que nas teorias funcionalistas é conhecido como
“corrupção sistêmica”, em que o princípio da diferenciação funcional, que pressupõe a
autopoiese, a autonomia, dos sistemas é atingida, de modo que questões econômicas e
políticas acabam decididas por critérios ilegítimos oriundos de particularismos
corporativistas8, e não exatamente por um funcionamento autopoiético do sistema
econômico e político-burocrático.
Essas observações perfunctórias são feitas como mera advertência, para
evitar a aplicação irrefletida dos modelos descritos nesse capítulo. Como dito, eles são
modelos internalizados em boa parte pelas instituições nacionais, mas o contexto
brasileiro é significativamente diferente.

2.1 O Estado Burguês Absolutista

7
NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 239.
8
NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 240/241.
Como já ressaltado, nas sociedades europeias, após o advento da
modernidade, o exercício da Soberania, como adensamento do poder político, redundou
em sua centralização e em aumento de sua abrangência. Foi o contexto da irrupção da
razão de Estado9, como uma arte para afirmação da potência do poder do soberano sobre
o seu território e população. O meio, para isso, era a polícia10, como um minucioso
controle da vida e do específico, caracterizando um regime de poder, chamado por
Foucault de omnes et singulatim11, como um controle de todos e de cada um.
No Estado de polícia, os fins justificam os meios. Há o culto da força, como
expressão da consolidação da Soberania e como forma de expressão da razão de Estado.
É coerente com esse paradigma o exercício do poder de polícia como restrições e
medidas, consistente em regramentos minudentes, que se impõem ao cidadão para
realizar os desígnios considerados necessários pela autoridade. Apresenta-se aí um
domínio por parte da estrutura político-burocrática que se forma durante esse período,
como manifestação da potência do Soberano.
O poder no Ocidente passa a ser um poder de gerir, de incitar de reforçar, de
controlar e de vigiar, de melhorar e organizar e de produzir. Supera-se o mero poder de
impedir, proscrever, destruir, de dizer o não, e. É o governo e o controle da vida, com o
poder de fazer viver e deixar morrer.
Sob o ponto de vista econômico, o mercantilismo não era uma doutrina, mas
uma arte de gestão da produção e de canais comerciais para que os Estados pudessem
enriquecer pela acumulação de metais e moeda, fortalecer-se pelo crescimento da
população e robustecer-se militarmente, diante de outros Estado, por estarem em
concorrência permanente com outras nações. Era uma materialização econômica da
razão de Estado com o incremento nacional de riquezas, a partir do exercício da polícia,
no âmbito interno, e da tentativa de avolumar o poder da soberania pelo controle do
comércio, pela centralização do exército e pelo exercício da diplomacia, no âmbito
externo.

9
FOUCAULT, Michel. Securité, territoire, population. Paris: Gallimard-Seuil, 2006, pp. 261 e seg.
10
Idem. Ibidem, pp. 319 e seg.
11
FOUCAULT, Michel. Omnes et singulatim: por uma crítica da razão política. Trad. Heloísa Jahn. In:
https://joaocamillopenna.files.wordpress.com/2015/11/foucault-omnes-et-singulatim.pdf, acesso em 27/02/2017.
Nesse contexto, o despotismo ilustrado trouxe um projeto de redução do
pluralismo pelo reforço do poder real com a valorização da lei como ato de vontade do
monarca. O volume de produção legislativa aumentou e se afirmou a precedência da lei
sobre as outras fontes do direito. O próprio estilo legislativo refletiu isso com o uso de
fórmulas retóricas com o intuito de reforçar o poder central.
O Antigo Regime legou uma sociedade dualista do ponto de vista dos
controles jurídico-políticos. Uma parcela da sociedade, claramente minoritária, vivia à
sombra do direito escrito oficial, que foi aos poucos se deslocando do direito judicial-
doutrinário para a lei. Uma outra parte, francamente majoritária, mantinha com este
último direito um contato frouxo, regrando-se basicamente por práticas e tradições.
A esse dualismo jurídico correspondia também um dualismo político. O
universo político liberal situava-se nos estratos urbanos e alfabetizados que viviam sob
os ditames do direito oficial. A vontade geral da teoria política liberal estava
circunscrita a esse âmbito. Por isso, a lei escrita só produzia sentido nesse setor liberal,
até mesmo porque os analfabetos estavam excluídos pela disciplina do voto. O apoio da
sociedade liberal exclusivamente na lei criava um curto-circuito com os iletrados e as
comunidades tradicionais, mas ao mesmo tempo confirmava um modelo de organização
política burguesa. Abandonava-se a maioria que estava na periferia social, deixando o
seu controle para o “caciquismo” político.12 Em que pesem os ideais universalistas e
democráticos, o Estado de configurações liberais e o primado da lei diziam respeito
apenas a uma minoria de “assimilados”.
A evolução da razão de estado vinculava-se a uma tentativa de monopolizar
a coerção, constituindo-se o Estado a única forma de dominação legal e burocrática,
fazendo a lei o papel viabilizador de uma dominação organizada, em parâmetros de
universalidade, positividade e formalidade.
Isso não impediu que se falasse num processo de juridicização
(Verrechtlichung) que se referia a uma tendência ao aumento do direito escrito a partir
da Modernidade. Assuntos que eram regulados informalmente pela tradição e pelos
costumes foram assimilados pelo direito escrito que se adensou, desmembrando

12
HESPANHA, A. M. Lei e justiça: história e prospectiva de um paradigma. In: HESPANHA, A. M. Justiça e
litigiosidade: história e prospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 14., p. 18.
progressivamente matérias jurídicas globais em particulares. O Estado Absolutista que
se desenvolveu na Europa Ocidental foi uma primeira etapa desse fenômeno13.
O Estado Absolutista constituiu uma ordem dentro da qual se efetuou a
transição da sociedade estamental para a sociedade capitalista. O comércio e as relações
mercantis receberam um regramento de direito privado que permitia sua organização
em corporações e pessoas jurídicas que estabeleciam entre si contratos e transmitiam
livremente suas propriedades. Para isso, absorvia-se o conceito moderno de lei, já com
características de positividade, universalidade e formalidade.
No plano do direito público se estabeleceu uma única fonte de dominação
juridicamente legítima, reservando-se ao Soberano o monopólio da violência. O poder
do monarca desvinculou-se de conteúdos concretos, passando a ser definido
instrumentalmente com os meios do exercício de uma organização da dominação
burocrática.
Emergiram visivelmente, nesse período, a sociedade civil e formas de atuar
sistêmicas como a da economia e a do Estado, restando ao indivíduo uma esfera de
autodeterminação definida informe e negativamente, no modelo hobbesiano, como a
não abrangida pelo Estado. O mundo da vida sediou a emancipação do indivíduo pelo
direito civil e a dominação burocrática, tendo sua essência nos vínculos coorporativos
feudais, no direito concernente às pessoas, profissão, trocas e terras. O que ficou
assegurado foi uma esfera privada, caracterizada por um mínimo de paz que permitia a
sobrevivência física e por uma competição, segundo leis de mercado, pelos escassos
recursos materiais para a satisfação das necessidades, estando franqueado à economia
extrair o trabalho dos indivíduos e ao Estado garantida a obediência dos súditos.
A construção do Estado de inspiração hobbesiana inaugura o necessário
nível de abstração, por meio de um sistema legal, para a institucionalização do dinheiro
e do poder. Sem o substrato do mundo da vida, o Estado Absolutista não teria
encontrado uma base de legitimação, nem poderia ter funcionado. O mundo da vida que
estava inicialmente à disposição do mercado e do poder absolutista passa aos poucos a
fazer suas demandas. Depois disso, tanto o poder como o mercado passaram a estar

13
HABERMAS, Jürgen. Teoría de La acción comunicativa, II – crítica de La razón funcionalista. Trad. Manuel
Jiménez Redondo. Madri; Taurus, 2001, p. 505.
ancorados no mundo da vida, estruturalmente diferenciado14, que passa a ser a única
fonte de legitimação.
No Estado Absolutista, tudo o que não estava regulado pelo Poder Político
com as formas jurídicas encontrava-se disforme15, entregue a um âmbito de
autodeterminação ou às coerções oriundas das comunidades tradicionais que
mantinham seus espaços de dominação.
A primeira jornada de juridicização, no Estado Absolutista, quando se
formou a sociedade civil, mostrou-se dominada pelas ambivalências expostas por Marx
sobre o trabalho livre. Ao mesmo tempo em que se emancipavam os trabalhadores
assalariados, conferindo-lhes liberdade de movimento e voluntariedade para aderir ao
emprego e às organizações, ocorria a proletarização dessa forma de vida, que não foi
objeto de regulação jurídica.
Nesse primeiro momento de organização do Estado, o conjunto dos seus
poderes tinha raízes na pessoa do Rei, que centralizava as funções que posteriormente
seriam decompostas em judicial, executiva e legislativa16. No exercício dessa última
atividade, cabia ao soberano, pela edição de leis, limitar direitos em prol de um bem
maior, como por exemplo a paz, no caso da obra de Hobbes. Todavia, o aparecimento
da figura do Soberano significou a centralização de poderes, assim como de uma
legitimação do poder real que não estava na sua burocracia ou na técnica, mas apenas
na proeminência de uma vontade que se sobrepunha às demais, evitando conflitos 17. O
Estado Absolutista consolidou seu poder com a expansão do direito escrito.
Dessa forma, essa primeira jornada de juridificação deu-se em torno da razão
de Estado, como adensamento da potência do Soberano, utilizando-se como
instrumento do poder de polícia, entendido como um domínio de todos e cada um, em
que sobressaia uma regulação minuciosa da vida dos súditos. No direito público,
reservou-se ao Rei o monopólio da coerção, com a dominação legal e burocrática. No
direito privado, garantiu-se um mínimo de paz que permitia a competição e a extração

14
HABERMAS, Jürgen Teoría de La acción comunicativa, II – crítica de La razón funcionalista. Trad. Manuel
Jiménez Redondo. Madri; Taurus, 2001, p. 206.
15
HABERMAS, Jürgen. Teoría de La acción comunicativa, II – crítica de La razón funcionalista. Trad. Manuel
Jiménez Redondo. Madri; Taurus, 2001, p. 507.
16
MONCADA, Luís S. Cabral. Lei e regulamento. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 31.
17
HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 197.
do trabalho dos indivíduos. Esse contexto permitiu o surgimento de uma sociedade com
formas sistêmicas de atuar como a economia e o Estado.

2.2 O Estado Liberal e o Estado de Direito

Tanto o Estado Liberal e como o Estado de Direito emergiram do movimento que


levou às Revoluções Liberais dos séculos XVII e XVIII, como esgotamento do modelo
absolutista de sociedade. Em ambos, houve um movimento de controle e domesticação da
estrutura político-burocrática organizada nos moldes do Antigo Regime. Do mesmo modo,
ambos são fenômenos contemporâneos e simbióticos. Todavia, a separação analítica de seu
estudo permite entender duas ênfases de ordenação de sociedade: a político-econômica,
constituindo o modelo de Estado Liberal e a jurídico-política, constituindo o Estado de Direito.

O Estado Liberal trouxe uma contenção interna do poder e do governo, levando em


conta que, pela ideologia, o governo deveria ser frugal para moldar-se a ao mercado, regido
por leis quase-naturais. Às autoridades cabia um governo competente e parcimonioso para
adequar-se à economia, como instância de veridição. Outro aspecto é que o mercado constitui
um mecanismo liberal distribuição de bens, baseado na busca racional e egoística da satisfação
do autointeresse, levando a uma integração sistêmica da sociedade pelo dinheiro como meio
que se configurou paradoxal e instável.

Já o Estado de Direito configura uma contenção do poder pelo direito formalizado,


em termos de lei positivadas, como veículo da vontade do Estado, e também nos moldes de
direitos subjetivos, oponíveis inclusive ao Estado, como invólucro de interesses
autodeterminados pela cidadania burguesa. Não se tratavam apenas de instituições jurídicas
adequadas a uma economia capitalista, mas sobretudo constituidoras de um estatuto de
proteção ao cidadão, como espaço para a livre constituição da personalidade. A proteção de
direitos como a liberdade, a propriedade e a igualdade formal constituiu um âmbito de
integração social legítima, com a constituição de âmbitos de exercício autônomo de
entendimentos.
2.2.1 O Estado Liberal

O Estado Liberal situou-se numa confluência da filosofia política do


jusnaturalismo, em que se destacavam a sociedade civil, o contrato social e a sacralidade
da propriedade e da economia política no século XVIII. Ele inscreveu-se num cenário
de forma jurídica em que se objetivava impedir medidas particulares e individuais,
típicas do poder de política do absolutismo, para constitui um ambiente favorável para
uma economia governada, mas autônoma. Nesse contexto, o Estado de Direito foi muito
mais uma questão de técnica governamental do que exatamente de legitimação política.
Foi o resultado da transformação sociedade feudal da primeva modernidade
na sociedade de mercado capitalista. A evolução do sistema capitalista acompanhou-se
de um desenvolvimento social em que se acentuou a diferenciação entre os sistemas
sociais, especialmente a economia e o sistema político-burocrático. Foi após revoluções
liberais como a Revolução Gloriosa na Inglaterra e a Francesa que essa autonomização
entre o sistema jurídico, o sistema político-burocrático e o sistema econômico tornou-
se mais perceptível.
Para que essa separação ocorresse, uma nova razão interna apresentou-se
como estratégia de governo. O mercado passou a ser uma instância de veridição, com
leis quase-naturais, que deveriam ser respeitadas inclusive pelo Estado. O governo
pautava-se por cálculos racionais de utilidade, medindo as oportunidades de agir e não
agir. O governo tornou-se frugal, contendo-se, para ser adequado à dinâmica da
economia. Essa limitação governamental não era fruto tão-somente de limites externos,
impostos pelo sistema jurídico, em termos de Estado de Direito, mas sim interna à
racionalidade de governo que deveria ser adequada aos imperativos de uma economia
autonomizada e, portanto, com leis próprias.
Nesse ambiente, ocorria um contínuo questionamento da norma e da
intervenção. O Estado Liberal põe a questão “por que legislar?”, já que a economia tem
suas próprias leis quase naturais. Por isso, uma constante crítica que se desdobra em:
“quem tem autoridade para normatizar?”; “em que condições isso é adequado?”.
Respostas que passam a ser dadas em termos técnicos, sejam jurídicos, econômicos ou
de outra ordem de expertise. Era uma nova relação entre governo e saber. O governo
devia manejar fatos (registros numéricos, teorias, diagramas, reforma sanitária,
currículo escolar etc.) e técnicas (partidas dobradas na contabilidade). Especialistas
passaram a falar em nome da sociedade (sociólogos, estatísticos, epidemiologistas,
cientistas sociais, etc.). Ganharam importância aparatos para gerir, produzir, circular,
acumular, autorizar e realizar verdade: academia, institutos de pesquisa, burocracia para
tornar dóceis os indomados domínios sobre os quais o governo deve se exercitar 18.
O governo econômico assumiu dois sentidos: um governo impulsionado por
preceitos de política econômica e um governo que economizava os seus custos por meio
de um esforço menor da força e da autoridade. Com isso, ao governo não mais bastava
ser justo, constitucional ou legítimo. Era necessário que fosse hábil e adequado, sendo
capaz de movimentar-se de acordo com fronteiras delimitadas por verdades construídas
a partir do funcionamento do mercado, especialmente a teoria dos preços. A insatisfação
com o governo passou a estar vinculada aos resultados que esse modo frugal de orientar
a economia permite que ela atinja. Era uma avaliação em termos de êxito nas condições
para propiciar riqueza, o governo pode sempre ser melhor.
Como correlativo de economia de governo, houve uma transferência de
poderes para a microesfera próxima em que se situa o empregador que passou a ter
também instrumentos jurídicos para exercer controle sobre seus empregados, além do
uso da disciplina para dominá-los.19 O poder de inspeção e vigia deslocou-se do
governo, como outrora no Antigo Regime, para o patrão.
Era preciso da escola, além do asilo, da prisão e da família organizada, para
formar indivíduos que possam se autogovernar e cuidar de si próprios. Havia uma
proliferação de normatividades. Esse era o momento das disciplinas que especificam os
indivíduos em relação a certas normas civilizatórias. Houve uma forte e dolorosa
migração das formas sociais de veridição que antes eram do direito e da teologia para
novas disciplinas que formaram novas condições disciplinares para essa nova forma de
governar.

18
BARRY, Andrew, OSBORNE, Thomas & ROSE, Nikolas. Foucault and Political Reason – liberalism, neo-
liberalism and rationalities of governement. Chicago: The University of Chicago Press, 1996, p. 44 e seg.
19
Idem. Ibidem, p. 22.
A decisão econômica ficou reservada principalmente aos agentes privados.
Fixa-se com isso a delimitação entre a atividade política e a econômica. A sociedade
econômica que estava circunscrita à atuação espontânea dos mecanismos de mercado e
institucionalizada em termos de direito privado deveria estar separada do Estado.
Houve, então, uma nova especificação dos sujeitos a serem governados.
Eramindivíduos ativos no em conformar a sua própria conduta, devendo ser respeitados
a liberdade, a autonomia e os direitos dos indivíduos. A arte de governar liberal era
gestora de liberdade, produzindo-a e consumindo-a dentro de um processo econômico
em que se afirma o novo sujeito de interesses, o homo oeconomicus, movimentando-se
no espaço do mercado.
Assim, em espaços juridicamente definidos, apresentou-se o sujeito de
interesses, que exerce suas escolhas e preferências que eram irredutíveis e não
transferíveis, em face da fixação de um espaço de não intromissão garantido pelo
Estado. O mercado era o âmbito em que esses interesses se encontravam.
Exemplificativamente, na filosofia de Bentham, a economia seria uma natural
harmonização dos interesses, ao passo que o direito faria o mesmo de forma artificial.
Era uma dissociação de racionalidades.20
A intervenção do Estado deu-se justamente para que esse sujeito de
interesses que ocupava boa parte do espaço da cidadania burguesa pudesse afirmar-se e
exercer suas escolhas. O Estado tornou-se uma instância de cálculo de risco e segurança
para que, nos âmbitos delimitados de liberdade, interesses fossem protegidos e
realizados. É o que se denomina intervencionismo negativo que delimita um mercado
supostamente autorregulável.
A integração social girava em torno das relações de trocas. Era
eminentemente uma integração sistêmica, baseada na distribuição de recursos pelo
mercado e mediada pelo meio dinheiro, num processo social de produção de
desigualdade, já que centrado no capital e sua acumulação. A assimetria constitutiva do
capitalismo que se baseava numa relação entre capitalistas proprietários e trabalhadores

20
GORDON, Colin. Governamental Racionality: an Introduction. In: GRAHAM, Burchell & GORDON,
Collin. The Foucault Efect: studies in governmentality. Chicago: University of Chicago Press, 1991, p. 22.
subordinados acentuou o caráter paradoxal desse integração social, que era baseada
numa relação de exclusão no que se refere à propriedade.
A solidariedade era exercida, assim, dentro desse ambiente paradoxal, já que
exsurgia de um âmbito em que se protegia o egoísmo. O indivíduo era responsável por
tudo que lhe acontece. A pobreza não confere direitos: ele confere deveres 21. As
atividades de assistência e previdência social desenvolveram-se no âmbito privado e
dentro de uma mentalidade pouco favorável, pois os desvalidos seriam os responsáveis
pela sua condição.
Mesmo quando o Estado Liberal abriu-se para fins coletivos, como a
tributação e a política militar, essas ações inserem-se num contexto de intervenção do
Estado e de dispêndio de recursos públicos para a proteção de proteção de interesses
privados, mediante a realização de liberdades.22 O mesmo se dá no que diz respeito à
criação de infraestrutura.
Dessa maneira, foi marca distintiva do Estado Liberal um governo frugal,
autolimitado pela necessidade de adequação a um mercado, como instância de
veridição, regido por leis quase naturais, o que resultou numa separação entre política e
economia e também à dependência do saber de especialistas. No seu centro, estava o
sujeito de interesses, homo oeconomicus, calculador egoístico do autointeresse. A
decisão econômica era, portanto, dos agentes privados, havendo uma integração
sistêmica paradoxal por meio de uma economia baseada no egoísmo.

2.2.2 O Estado de Direito

Esse paradigma foi resultado do amadurecimento das preocupações


libertárias no jusnaturalismo moderno e no iluminismo que levaram às revoluções
liberais, mas a literalidade das Declrações de direitos, especialmente a Declaração dos
direitos do homem e do cidadão, de 26 de agosto de 1789, não comportava a expressão.

21
EWALD, François. L’Etat Providence. Paris: Grasset, 1986, p. 66.
22
JÜRGEN, Habermas. Facticidad y Validez. Madri: Trota, 2010, p. 513
O Estado de Direito encontrou sua melhor expressão no constitucionalismo alemão do
século XIX. Foi aí que se desenvolveu o conceito de Rechtsstaat, traduzido como État
de Droit, Law State, Stato de Derecho23, entendendo-se que o Estado deveria assegurar
por via do direito, tanto as formas como os limites de sua atuação, assim como a livre
esfera dos cidadãos.
O Estado de Direito é uma limitação externa da Soberania, remetendo a ideia
de dominação à lei e a proteção dos direitos por um Judiciário independente. Ao passo
que, no Antigo Regime, um elemento central era a razão de Estado, como expressão da
potência do Soberana, o Estado de Direito volta-se para a proteção dos interesses do
cidadão24, inclusive contra as autoridades e suas eventuais arbitrariedades
Foi uma segunda expansão de juridificação em que ocorreu a limitação
constitucional do Poder Executivo, que até então encontrava-se limitado apenas pela lei
e pelo exercício burocrático do poder. Os indivíduos privados passam a desfrutar de
direitos públicos subjetivos, acionáveis judicialmente, contra o soberano. A proteção
judiciária da liberdade, da propriedade e da segurança, enfim do estatuto jurídico, estava
no cerne do Estado de Direito.
Direitos como vida, liberdade e propriedade não eram mais apenas efeitos
colaterais de um mercado institucionalizado pelo direito privado, mas também “normas
constitucionais moralmente justificadas”25, com reflexos por toda a estrutura de
dominação. A uma ordem burguesa de direito civil agregou-se um aparato de controle
de poder com base no princípio da legalidade que formou o cerne do Estado de Direito,
limitando especialmente a Administração.
A ideia de liberdade burguesa estava no fundamento da Constituição. A
liberdade pessoal, a propriedade privada, a liberdade contratual e a liberdade de
comércio eram esferas da sociedade. Eram zonas de neutralidade, constituindo reservas
de intervenção do Estado, para permitir aos indivíduos o exercício de sua autonomia e
de seu poder de autodeterminação. Nesse âmbito, o Estado, como mero servidor da

23
GOYARD-Fabre, Simone. Os Princípios do Direito Filosófico Moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.
312.
24
GOYARD-Fabre, Simone. Os Princípios do Direito Filosófico Moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.
313.
25
HABERMAS, Jürgen Teoría de la acción comunicativa, II – crítica de La razón funcionalista. Trad. Manuel
Jiménez Redondo. Madri; Taurus, 2001, p. 207
sociedade, estritamente controlado, submetia-se a um “sistema acabado de normas
jurídicas ou simplesmente identificado com esse sistema de normas, não sendo mais
que norma e processo. Isto, de resto, estava de acordo com ‘aquela contenção de
finalidades’ que corresponde ao ideário liberal.” 26
A autoridade deveria agir sob a legalidade estrita, não podendo fazê-lo
contra, praeter, nem ultra legem. A ordem jurídica privada era coordenada de tal forma
que a dominação se consubstanciasse em domínio da lei, encadeada hierarquicamente
tendo em seu ápice nas leis constitucionais que erigiam uma cadeia de subordinação em
que as leis ordinárias sobrepunham-se a atos administrativos normativos, ordenados
segundo a gradação da autoridade que os editara. Era a organização racional e
sistemática de um direito impessoal, em que as normas, especialmente as legais,
deveriam ser positivadas, gerais, abstratas, prospectivas, conhecidas, certas a
aplicadas de maneira equânime27.
O direito formal do Estado de Direito foi propício ao desenvolvimento do
capitalismo em face de “seu relativo grau de calculabilidade”28 e de “sua capacidade de
desenvolver provisões substantivas – principalmente relacionadas à liberdade de
contratar – necessárias ao funcionamento do sistema de mercados”29. A concepção de
direito como ordenamento formal possibilitava o cálculo de custos e benefícios para o
exercício da atividade econômica, ao tornar o exercício do poder abstratamente
previsível e, portanto, planejável financeiramente. De outro lado, o contrato concebido
como acordo de vontades deixava para o exercício da liberdade a determinação de seu
conteúdo e substância, fornecendo um invólucro jurídico para as relações voluntárias
de trocas30.
A instauração de uma sociedade entre cidadãos-burgueses idealmente
concebidos como livres e iguais, deu-se a partir da distinção entre direito privado e
público. No âmbito privado, as relações, baseadas na igualdade, seriam horizontais,

26
VAZ, Manuel Afonso. Lei e reserva de lei. Porto, 1996, p. 124.
27
GALVÃO, Jorge Octávio Lavocat. O neoconstitucionalismo e o fim do estado de direito. São Paulo, Saraiva,
2014, p. 241.
28
TRUBEK, David M. Max Weber sobre direito e ascensão do capitalismo. In: Revista Direito FGV, v.3, nº 1,
jan-jun, 2007, p. 168 em http://direitosp.fgv.br/sites/direitogv.fgv.br/files/rdgv_05_pp151-186.pdf, acesso em
27/03/2017.
29
Idem. Ibidem.
30
Sobre o assunto WEBER, Max. Economia e sociedade. v. 1. Brasília: Ed. UnB, pp.226/7.
dentro de um âmbito de indeterminação, em que a ausência de proibição redundaria em
permissão. Ao direito público reservavam-se as relações de autoridade que, como
garantia de liberdade, estariam subordinadas à lei, de modo que só seria possível
qualquer intervenção, se autorizada legal e expressamente. Apenas com a Constituição
de Weimar, no século XX, caiu a autarquia do direito privado dentro do direito
constitucional, não sendo mais possível opor o direito privado, como reino da liberdade,
ao direito público, como âmbito da coerção. Foi o fim da primazia material do direito
privado sobre o direito constitucional.
Nessa ordem de ideias, o direito privado baseava-se na premissa de
separação entre Estado e sociedade, com a sua elaboração dogmática, densificando a
propriedade e liberdade em espaços abstratos para escolha e decisões do cidadão
burguês, como liberdade negativa, dentro de uma sociedade despolitizada e centrada na
economia. Já o direito público circunscrevia-se à esfera do Estado autocrático31,
objetivando frear uma Administração submetida à reserva de intervenção, com a
proteção dos direitos individuais, garantidores do status positivo dos cidadãos. Era um
Executivo submetido ao império da lei e da sua proeminência em face de quaisquer
outros atos normativos expedidos pela Administração.
No Estado de Direito, o ordenamento jurídico passou a apresentar elementos
que tornaram visíveis a proteção do cidadão, no âmbito do mundo da vida, que tornou-
se uma fonte de legitimação estruturada. Consolidou-se o status de sujeito jurídico,
constituído por uma totalidade de direitos de ação autônoma, em que estava subjacente
um conteúdo ético, vinculado à autonomia, à autorresponsabilidade e ao livre
desenvolvimento da personalidade, possibilitando a construção da própria biografia
individual.
Enquanto o Estado Absolutista havia deixado a sociedade civil como uma
matéria informe, orientando legislativamente apenas a economia e o poder
administrativo-burocrático, o ordenamento do Estado de Direito se enriqueceu para
regular também a sociedade civil, e o mundo da vida passou a ser objeto de
reconhecimento e proteção32. Nas palavras de Habermas, nesse paradigma o Estado

31
JÜRGEN, Habermas. Facticidad y Validez. Madri: Trota, 2010, p. 478.
32
Idem. Ibidem, p. 509.
Moderno adquire uma legitimidade por direito próprio, adquire legitimações baseadas
no mundo da vida33.
A racionalidade formal do direito manifestara-se numa interação entre
mercado desenvolvido, um sistema formal de direito privado, um Estado fiscal e uma
administração burocrática. Era um cenário de separação do direito e da política,
profissionalização jurídica, estrita orientação pela regra, universalismo, precisão, e
argumentação artificial, acompanhada por um conceito de justiça procedimental.34
O direito formal, autonomizado em face dos outros sistemas, afastou-se de
questões morais e de verdade, consideradas metajurídicas, orientando-se estritamente
pela regra, como programas condicionais, com uma estrutura, “se..., então,...”. Juristas
profissionais passam a referir-se a estruturas normativas universalistas, tendente a
formar procedimentos a partir de uma sublimação lógica e do rigor dedutivo.
Estruturam-se, dessa forma, argumentações baseadas em construções artificiais
desenvolvidas no âmbito da ciência e da técnica jurídica e aplicadas por procedimentos.
É assim que ocorre a “completude e clausura sistemáticos de um âmbito jurídico
autônomo e fechado”35.
Esse direito formal definia-se a partir da seguinte conformação de suas
dimensões: 1) a racionalidade interna está nas estruturas conceituais do direito, com um
direito analítico, com rigor dedutivo e com orientação unívoca aos fatos; 2) a
racionalidade normativa expressa-se na delimitação da esfera para a persecução do
interesse privado, como eixo dos direitos subjetivos, em que aparece em primeira
dimensão a figura universal do sujeito de direitos, protegido pelo Judiciário, inclusive
em face do Estado; 3) a racionalidade sistêmica, como problema de controle da
sociedade, responde aos imperativos de uma sociedade de mercado que favorece a
exploração, a mobilização e a alocação dos recursos naturais e da força de trabalho,
conformando uma economia, como sistema social diferenciado e autônomo36.
De tal modo, o Estado de Direito constituiu um paradigma jurídico em que
o status de cidadão estava protegido constitucionalmente por direito individuais

33
Idem. Ibidem.
34
TEUBNER, Gunther. Droit et réflexivité. Paris: L.G.D.J., 1996, p. 30.
35
Idem. Ibidem, p. 30.
36
Idem. Ibidem, p. 14.
formais, especialmente a propriedade e a liberdade de contratar, como âmbitos de
autodeterminação. As relações de autoridade estavam limitadas pela lei e pelo acesso
irrestrito a um Judiciário independente. O direito privado assentava-se na separação
entre Estado e sociedade, protegendo o cidadão proprietário, numa sociedade centrada
na economia. Esse era um ambiente favorável a calculabilidade necessária ao
desenvolvimento do capitalismo.

2.3 O Estado Social e o Estado de Bem-estar Social

O Estado Social desenvolveu-se no início do século XX, representando um


novo movimento de juridicização para pôr freios ao sistema econômico37, adequando-
o a demandas sociais formuladas no âmbito do mundo da vida. Problemas que surgiram
no âmbito das vivências privadas, como nas relações de trabalho, deslocaram-se para a
esfera pública, atingindo a formação coletiva das vontades pelos partidos políticos, para
formar hipotecas de legitimação.
Na origem do Estado de Bem-estar Social, estava o Estado Social, que se
caracterizava por medidas de previsão social tomadas para controlar as consequências
deletérias da industrialização. O Estado Social valia-se para o seu desiderato
principalmente de estratégias coorporativas.
O Estado de Bem-estar Social, que tem o seu melhor modelo nos Estados
europeus pós Segunda Guerra Mundial, com o plano Marshall de reconstrução europeia,
não reagiu apenas às consequências da industrialização, abrangendo outras esferas de
vivência, e utilizando-se principalmente de estratégias compensatórias que se
sobrepunham às coorporativas do Estado Social. É que, numa sociedade complexa, o
condicionamento social da ação e do destino humano leva a uma gestão da sociedade
em que os infortúnios dos indivíduos consideram-se imerecidos e atribuíveis a esferas

37
Ideia semelhante está em Vital Moreira (MOREIRA, Vital. A ordem jurídica do capitalismo. Coimbra:
Centelho, 1978, p. 119): A ideia subjacente à concepção do estado social é, sem dúvida, a de que este se propõe
fazer valer perante o econômico valores próprios do político e do jurídico (justiça, igualdade, paz social).
de intervenção sistêmica, tais como o Estado e grandes empresas, aos quais impunham-
se deveres compensatórios dos padecimentos e debilidades individuais38.
O Estado de Bem-Estar Social impulsionou a linha de juridificação
garantidora das liberdades. Ele tematizou o sistema econômico de uma forma
semelhante a que os dois paradigmas precedentes cuidaram do sistema político-
burocrático. A dinâmica do processo de acumulação reconciliou-se com estruturas
racionalizadas do mundo da vida. Houve a constitucionalização de relações privadas,
sob uma perspectiva social, que significou, em verdade, institucionalização de
mecanismos compensatórios e críticos das relações econômicas situadas no direito
privado, com garantia de direitos como salário mínimo, jornadas de trabalho reguladas,
restrições à demissão etc. É a limitação de poderes irrestritos que antes eram exercidos
pelos proprietários capitalistas, com a juridicização das relações industriais e do
trabalho.
No contexto do Estado de Direito, a liberdade de fazer ou omitir-se como
expressão da vontade, estava garantida suficientemente com os direitos relativos às
pessoas, a proteção contra ilícitos, a liberdade de contratar, o direito de propriedade e a
instituição do matrimônio. Essa situação mudou radicalmente com outros ramos do
direito, como o direito do trabalho, o direito previdenciário e o direito econômico.
Nesse último cenário, o próprio direito privado passou a estar além da
autodeterminação formal individual, servindo à realização da justiça social, em face da
insuficiência da igualdade formal e da necessidade de promoção da igualdade material,
operacionalizada pela construção de papéis sociais reveladores de relações sócias
assimétricas, como, por exemplo, o de empregado e empregador, o de fornecedor de
produtos e serviços e o de consumidor, evidenciando situações em que o indivíduo
diante de empresas e de grandes organizações sociais estaria confrontado pelo poder
econômico e o poder político-burocrático, como imposições concretas de
heterodeterminação.
O Estado Liberal e o Estado de Bem-estar Social compartilham uma imagem
produtivista de sociedade assentada numa economia capitalista industrial. Na

38
LUHMANN, Niklas. Teoria política em el Estado de Bienestar. Madri: Alianza Universidad, 1997, p. 31.
perspectiva liberal, a economia satisfaria a expectativa de justiça social por meio da
persecução privada e autônoma dos interesses individuais. No Estado de Bem-estar
Social, a economia domada pela política levaria a uma justa repartição com a entrega
compensatória de bens de consumo. Era um reposicionamento da sociedade que buscou
ultrapassar a centralidade do mercado como ordem de distribuição espontânea de bens
para uma nova organização intencional de sociedade com base em critérios políticos de
equalização de assimetrias determinadas por papéis sociais. Em ambos os paradigmas,
a questão central é a de satisfação de interesses, seja pela sua busca egoística, seja pela
sua entrega compensatória.
Na emergência do Estado Social, o discurso jurídico voltou-se para a fixação
de salários e condições de emprego, que estavam na base de uma política reformista que
visava à pacificação do conflito de classes. Com isso, o elemento nuclear foi uma
legislação trabalhista e social em que se cuidou de cobrir os riscos básicos da existência
dos assalariados, inclusive com compensações das desvantagens de posições
hipossuficientes no mercado, como consumidores, inquilinos, segurados etc. As
sequelas dos conflitos de classe acabaram por se converter no tema das democracias de
massas. A adesão da população ao sistema político ficou sujeita a “ofertas de
legitimação sujeitas a falsificação”39, consistentes especialmente em intervenções e
prestações compensatórias.
Com a evolução do Estado Social para o Estado de Bem-estar Social, a
política social selecionou situações de debilidades extremas para absorvê-las, deixando
intactas as relações de propriedade, receitas e dependência. Regulações e prestações
estatais dirigiam-se para a consecução de um equilíbrio social por meio de
compensações40, mas também para a correção de externalidades coletivamente
sensíveis, como meio ambiente, cidades, políticas sanitárias etc.

39
JÜRGEN, Habermas. Facticidad y Validez. Madri: Trota, 2010, p. 491
40
É interessante assinalar que, para Luhmann, é no caminho da compensação para a sua reflexividade que se dá
a passagem do Estado Social para o Estado de Bem-Estar Social (LUHMANN, Niklas. Teoria política em El
Estado de Bienestar. Madri: Alianza Universidad, 1997, p. 31): Em certo modo parece então como se tudo o que
afeta ao indivíduo estivesse condicionado socialmente e, em tanto que destino imerecido, devesse ser
compensado, inclusive aquilo que se deve à sua própria ação.
[...]
Se é possível falar de uma ‘lógica do Estado de Bem-Estar’, esta pode ser compreendida mediante o princípio da
compensação. Trata-se da compensação daquelas desvantagens que recaem sobre cada qual como consequência
de um determinado sistema de vida. A experiência nos ensina, no entanto, que o conceito de compensação tende
A extensão do Estado de Bem-estar Social ocorreu sob incômodos limites
em que os tributos públicos destinados a tarefas de política social estavam restritos a
condicionamentos ligados funcionamento do mercado e ao seu crescimento. Os tipos
de políticas redistributivas deveriam, ainda, adequar-se à forma de uma economia
baseada na acumulação de capital. Além do estreitamento vinculado aos problemas
sociais, ao Estado se impunha a tarefa de absorver os efeitos disfuncionais do mercado.
De outro modo, estaria rompido o equilíbrio de classes ao se pôr em risco os grupos
sociais privilegiados. Em suma, tributos, tipo de prestações e a organização da
seguridade social tinham de se adaptar ao funcionamento sistêmico da economia e
mesmo da política. O processo de acumulação de capital deveria ficar intocado pelas
intervenções do Estado que, além do mais, assumia a função de coordenar os riscos e
as disfuncionalidades da economia capitalista. Nos países ocidentais, isso constituiu o
cerne do reformismo keynesiano.
O ponto central do conflito de classes que se institucionalizou a partir da
capacidade de disposição privada dos meios de produção de riqueza social deslocou-se
exclusivamente para o sistema econômico, perdendo seu sentido nas relações de
vivência social do cotidiano, quando da solidificação das relações capitalistas. A
estrutura de classes desvinculou-se de seu sentido histórico, esmaecendo-se a tensão
entre capital e trabalho.
O desnivelamento na distribuição de compensações sociais remetia a uma
estrutura de privilégios que não mais derivava diretamente da estrutura de classes. De
forma alguma, as desigualdades sociais esmaeceram no capitalismo avançado.
Ganharam outra conformação pela distribuição de compensações do Estado e pela
formação de novos grupos marginais, como imigrantes e jovens não inseridos no
sistema econômico que não provinham diretamente dos conflitos de classe, que se
encontravam amortizados e circunscritos de forma privada no sistema econômico.
A democracia de massas, com o Estado de Bem-estar Social, freou o
antagonismo de classes circunscrito ao sistema econômico sob a condição de que o

a se universalizar, já que, como se formulam os problemas, todas as diferenças podem ser compensadas e, ainda
assim, sempre ficam diferenças ou aparecem novas carências que, por sua vez, exigem ser compensadas. Quando
tudo deve ser compensado, haverá de ser também o mesmo compensar. O conceito e o processo de compensação
tornam-se reflexivos.
crescimento capitalista garantido pelo Estado se mantivesse. Era só assim que se podia
efetivar a massa de compensações aos consumidores e, especialmente, aos clientes da
burocracia, amortecendo os efeitos perversos do trabalho alienado e da codecisão
pauperizada.
Surgiu também uma outra coisificação não especificamente oriunda da
estrutura de classes. O Estado de Bem-estar Social cristalizou papéis sociais como o de
trabalhador, consumidor, cliente das burocracias públicas e de cidadão. O marxismo se
concentrara na troca da força de trabalho por salário, esquadrinhando a coisificação
apenas no mundo do trabalho41 pela alienação das classes trabalhadoras. Esse tipo de
alienação, com o desenrolar do Estado Bem-estar Social, ficou em segundo plano.
Os efeitos mais incômodos da relação de trabalho desapareciam com sua
humanização ou mesmo com compensações, retirando-lhe o caráter explosivo e
colocando um novo equilíbrio entre o papel de trabalhador e consumidor. Na
configuração dos papéis de cidadão universalizado e neutralizado e no inflado papel de
cliente se situava um dos grandes problemas desse paradigma do Estado de Bem-estar
Social.
As normas que circunscreveram o conflito de classes tiveram caráter
garantidor de liberdades, moldando-o por meio de estratégias compensatórias. Todavia,
isso não se aplica de forma unívoca às regulações de Estado de Bem-Estar Social. Os
efeitos negativos da juridificação no Estado Social não se apresentaram apenas
colaterais, como os do Estados Liberal, em que a liberdade significou para os
trabalhadores proletarização. Foi a própria estrutura de juridificação que ameaçou a
liberdade dos beneficiários com a implementação burocrática e redenção monetária das
fruições sociais com a estrita especificação de pressupostos em forma de tipicidade
legal, encerrando em juízos condicionais, situações de vida que são alheias a essa lógica,
como por exemplo relações familiares e pedagógicas, que acabaram transformadas em
relações sociais de dependência para com o Estado.
Quanto mais densa apresentava-se a rede de garantias formada pelo Estado
Social, para absorver os efeitos deletérios de um processo de produção baseado no

41
HABERMAS (Op. cit., p. 493).
trabalho assalariado, mais dubiedades de outra ordem apareciam. Os próprios meios
garantidores de liberdade a colocavam também em risco. Esse fenômeno pôs em
destaque os limites da juridicização e da burocratização como meios para implantar as
políticas do Estado de Bem-estar Social42.
A assunção, por discursos jurídicos e burocráticos, dos riscos da existência,
teve como preço a intervenção na esfera de vivência dos indivíduos. Em casos como o
da percepção de benefícios de assistência e previdência social, o cotidiano dos
implicados passou a ter sua casuística violentada, levando a uma distribuição de bens
regulada pela estrutura se-então do direito condicional, a qual resulta ‘estranha’ às
relações cotidianas, às causas sociais do caso a ser protegido e às dependências e
necessidades que o caracterizam43.
O caso passou a ser tratado na perspectiva de tipificações que se amoldam
ao seu tratamento burocrático. O direito do afetado era analisado a partir de critérios de
mensuração administrativa que resultavam em regras de caráter jurídico. A situação que
merecia regulação e estava inserida numa biografia e numa forma concreta de vida viu-
se submetida a uma violenta abstração, não só por imperativos jurídicos, mas também
burocráticos, para poder ser administrativamente tratada.
As burocracias encarregadas de atuar na distribuição de bens e serviços têm
de proceder a partir de procedimentos legais próprios de uma dominação burocrática,
valendo-se de discursos jurídicos de compensação/indenização de prejuízos e
desvantagens44. Assim, na medida em que o Estado vai além da pacificação do conflito
de classes e atua sobre âmbitos privados, estendendo uma rede de assistência
clientelista, mais fortemente apresentam-se os efeitos de uma juridicização que
simultaneamente burocratiza e monetariza. Essa é a essência da regulação. Era um
dilema que se apresentava. As garantias do Estado de Bem-estar Social deveriam
dirigir-se à integração social, mas desintegram formas de vida pelo seu contato com o
dinheiro e o poder, como podem ser exemplo as relações de família e as educacionais.

42
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa, II – crítica de la razón funcionalista. Trad. Manuel
Jiménez Redondo. Madri; Taurus, 2001, p. 496.
43
Idem. Ibidem, p. 512
44
Idem. Ibidem, p. 513.
Tratou-se de um processo acondicionamento burocrático da vida social, em
que situações da vida cotidiana e concreta tem de ser violentadas para que sejam
administrativamente manipuladas, em que as necessidades sociais acabam formatadas
em meios compensatórios. Isso exigiu uma administração centralizada e
computadorizada dos clientes usuários estatal por grandes e distantes organizações.
Mesmo, nas estreitas situações, em que pode haver amparo de técnicos de serviço social,
o que se tem é uma terapeutocracia45.
Ocorreu a burocratização e a monetarização de vivencias sociais inscritas no
mundo da vida. Ao mesmo tempo que as garantias do Estado de Bem-Estar Social
procuravam a integração social por meio de compensações, dissolveram-se modos de
vida com sua burocratização e monetarização, desintegrando-os. Processo que foi
acompanhado pela substituição do consenso por uma intervenção estatal que submeteu
modos de vida à artificialização produzida por um poder que se expressava, e ainda se
expressa, em burocracia e dinheiro. A crise do Estado de Bem-Estar Social foi uma crise
de integração46, em que se substituíram consensos e entendimentos, por uma agregação
social baseada nos meios deslinguisticizados do dinheiro e do poder.
Dentro desse contexto de prestação de direitos sociais pelo Estado, até
mesmo os direitos de participação política e democrática se viam esvaziados. A
organização das liberdades cidadãs acabou atingida por fenômenos como segmentação
do papel de eleitos, pelas lutas nas elites partidárias, pela estrutura vertical dos
processos de formação da opinião pública dentro de partidos providos de uma crosta
burocrática, pela autonomização das corporações partidárias, pelo poder incrustado
nos meios de comunicação47. A perda de liberdade que se experimentou não se devia
principalmente às formas jurídicas, porém ao modo burocrático pelos quais esses
direitos eram fruídos. Nessa linha, ao direito de voto universal e às liberdades de
associação, imprensa e opinião, só se podia atribuir um caráter unívoco de garantia de
liberdade, em nada lhe obstaculizando as formas jurídicas.

45
HABERMAS, Jürgen Teoría de La acción comunicativa, II – crítica de La razón funcionalista. Trad. Manuel
Jiménez Redondo. Madri; Taurus, 2001, p. 210.
46
HABERMAS, Jürgen. Law as Medium and Law as Institution. In: TEUBNER, Gunther. Dilemas of Law in
the Welfare State. Berlim/Nova Iorque: Walter de Gruyter, 1988, p. 211.
47
Idem. Ibidem, p. 515.
O Estado de Bem Estar trouxe embaraços para o âmbito da autonomia
privada, viabilizadora da configuração de uma vida individual própria. O trabalho e a
vida acabaram sequestrados por novas formas de dominação de uma burocracia
racionalizada em termos de disciplina hierarquizada e de expertise. Isso desafiou a
tripartição de poderes ao encerrar questões de vivências privadas no âmbito de
tratamento administrativo, colocando em segundo plano acordos gerais produzidos pela
representação democrática no âmbito do legislativo.
No Estado de Bem-estar Social, houve uma rematerialização do direito com
uma particularização que implicou uma extensão do controle legislativo e judicial dos
conteúdos contratuais e inserção de preocupações redistributivas no âmbito do direito
de propriedade. Surgiu uma crítica reformista ao direito formal burguês e sua referência
a uma sociedade econômica institucionalizada pelo direito privado, primordialmente a
partir da propriedade e da liberdade de contratar. A autonomia dos indivíduos era
percebida, no Estado Liberal, no exercício da busca, dentro do mercado, do seu bem
estar e da realização de seu autointeresse por meio das condutas racionais. A expectativa
era a de que, por meio da garantia de um status jurídico negativo, seria estabelecida a
justiça social.48 No entanto, essa premissa dependia da suposição de que existiram
condições não discriminatórias para o efetivo exercício das liberdades. Ocorre que, para
a garantia efetiva do direito geral a iguais liberdades positivas, não era suficiente o status
negativo de sujeito jurídico, havendo a necessidade de se introduzir uma nova categoria
de direitos fundamentais cuja finalidade era a de propiciar uma distribuição mais justa
da riqueza socialmente produzida. Apareceu uma materialização do direito derivada da
consideração de que a liberdade de fazer ou omitir algo não tinha valor sem a
possibilidade efetiva de fazer valer escolhas dentro daquilo que permitido.
As mutações no direito de propriedade e a liberdade contratual foram
exemplos ilustrativos. A garantia de proveito material, outrora restrita a um direito de
propriedade consistente na fruição patrimonial de coisas, deslocou-se para outro
âmbitos de proveitos, como os previdenciários e securitários. De outro lado, o gozo
individual protegido pelo direito de propriedade viu-se comprimido por uma

48
JÜRGEN, Habermas. Facticidad y Validez. Madri: Trota, 2010, p. 483.
heterodeterminação, consistente em cogestões, expropriações, intervenções e deveres
de redistribuição em proveito de terceiros.
As mudanças no direito dos contratos também foram muitas, diminuindo a
possibilidade de cálculo do proveito econômico, em favor do reequilíbrio de posições
assimétrica, como a contratação forçada, os erros, a vulneração positiva do contrato, o
direito à informação, a proteção da confiança, o controle dos conteúdos contratuais e
diversos outros expedientes que visavam a uma relação heterodeterminação das
relações contratuais.
De outro lado, a sustentação política do sistema econômico por medidas
intensamente interventoras teve como efeito um contínuo aumento de sua
complexidade, que se acompanhou de uma expansão e densificação interna dos campos
de ação formalmente organizados. Isso explica “os processos de concentração nos
mercados de bens, capitais e trabalho, a centralização das empresas e institutos, e
também uma boa parte do crescente número de funções que nascem para o Estado e a
expansão da atividade estatal”49. Era o alargamento de um complexo burocrático-
monetário.
No Estado de Bem-estar Social, o direito, como meio, foi impulsionado por
dois movimentos contraditórios: de um lado, a sua configuração como um direito
autônomo, positivado, altamente formalizado e profissional; e de outro, por exigências
específicas do sistemas econômico e político-burocrático, a configuração de adequação
material aos imperativos dessas duas realidades. Era um movimento contraditório de
autonomia e de dependência, em que ao mesmo tempo que o direito aumentou a sua
consistência foi obrigado a adequar-se às determinações instrumentalizadoras do poder
e do dinheiro. Todavia, as condições de constituição do direito e do poder político
acabaram vulneradas quando a política banalizou o uso do direito para os seus fins,
dissolvendo a função, a identidade e a consistência próprias ao direito.
Aí destaca-se a emergência de um direito material legitimado por uma
regulação direta voltada para resultados, em que se destaca a soberania da finalidade,

49
Idem. Ibidem, p. 496
irrompendo uma crise do direito formal. É a predominância de uma orientação, marcada
por padrões abertos e diretivas direcionadas a êxitos.
A materialização do direito vincula-se à juridicização crescente de esferas
anteriormente informais, associada ao crescimento do Estado de Bem-estar Social com
a intervenção do Estado nas estruturas de mercado organizado, com a seguinte
conformação: 1) a racionalidade interna marcou-se pela finalização, em que padrões
imprecisos, gerais e abertos sobrepuseram-se a aplicação do direito orientada por regras.
No lugar de valer-se de programas condicionais, em que se destacava a estrutura “se,
então”, em que se vinculava a descrição abstrata de um fato a uma sanção, os
especialistas do direito passaram a valer-se de programas finalísticos, direcionados a
resultados, com uma ordenação instrumental de meios a fins, 2) a racionalidade
normativa deslocava-se da delimitação da esfera privada para a direção, passando o
direito a reger comportamentos em vista de resultados a serem atingidos, desaparecendo
a figura universal do sujeito de direitos que é substituída por diversos papéis sociais,
como o de trabalhador, consumidor, pobre etc.; 3) a racionalidade sistêmica apresentou-
se na ordenação das figuras doutrinárias e dos procedimentos como meios de
intervenção do Estado de Bem-Estar Social, havendo a instrumentalização do direito
pela política, que objetivava corrigir as insuficiências do mercado e implementar
medidas de compensação social50.
O direito apresentou-se como um meio, instrumento, para que a política
conduzisse o processo social, definindo objetivos, escolhendo os meios normativos e
ordenando condutas concretas, de acordo com programas finalísticos. No Estado de
Bem-estar Social, imperava a preocupação com justiça distributiva, em torno do
problema da partição de utilidades fruíveis socialmente produzidas, encerrando-se a
questão da liberdade dentro de um tratamento do tipo assistencial 51 e reduzindo-a ao
distanciá-la de preocupações mais amplas vinculadas à emancipação e à dignidade da
pessoa humana. Os direitos, que são fundamentalmente relações jurídicas, acabavam

50
TEUBNER, Gunther. Droit et réflexivité. Paris: L.G.D.J., 1996, p. 16.
51
HABERMAS, Jürgen. Factidad y Validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Editorial Trotta, 3ª ed.,
2001, p. 501.
reduzidos ao âmbito do ter. A participação cidadã resumia-se a cada um receber a sua
parte.

Como se vê, o Estado Social, de natureza coorporativa, na tentativa de domar


os efeitos disfuncionais da economia capitalista, evoluiu para o modelo de Estado de
Bem-estar, em que sobressai a estratégia compensatória das situações de debilidade
social. No entanto, é importante ressaltar que, nesses paradigmas de Estado, manteve-
se a natureza produtivista do modelo econômico, assentado na propriedade e na
liberdade de contratar. Para tanto, optou-se por uma configuração interventiva de Estado
com implementação burocrática e redenção monetária de utilidades sociais, formando
uma cidadania clientelizada.

2.4 O Estado Democrático de Direito e o Estado Regulador

De forma semelhante à relação Estado Liberal e Estado de Direito, Estado


Regulador e Estado Democrático de Direito são feições simbióticas e contemporâneas
de um mesmo paradigma. São ênfases distintas: o Estado Regulador revela um modelo
jurídico-econômico, ao passo que o Estado Democrático de Direito remete a um modelo
político-jurídico. Ambos operam em dimensões distintas da dinâmica social.

O Estado Democrático de Direito desenvolve-se contra relações de


dominação que emergem do sistema político-burocrático e do sistema econômico,
organizados de forma em que o direito sobressai apenas como meio para reprodução
sistêmica. O seu desafio central é domar ambos os sistemas, constituindo um veículo de
integração social, ao conectá-los como canais legitimadores de entendimento que
remetem ao mundo da vida e tomam forma de um sistema de direitos de inspiração
universalista, em que circulam também discursos de moral política.
O ambiente em que se situa o Estado Democrático de Direito é
funcionalmente diferenciado, dando lugar a dois sistemas sociais instrumentalizadores
e altamente invasivos, o sistema econômico e o sistema político-burocrático. Por isso,
é um desafio da sociedade pluralista a manutenção da diferenciação sistêmica. As
sociedade contemporâneas não podem prescindir de uma integração sistêmica voltada
para a produção e distribuição de utilidades materiais, mas, para que os âmbitos de
interação social voltados para o êxito possam funcionar adequadamente, é indispensável
um sistema jurídico que opere reflexivamente, constituindo o Estado Regulador.

2.4.1. O Estado Democrático de Direito

O Estado Democrático de Direito ganhou sua primeira formatação com a


Revolução Francesa e ocupou a teoria do Estado desde pensadores como Rousseau e
Kant até os dias de hoje. Além das garantias típicas do Estado de Direito, com essa nova
etapa de juridicização assegurou-se a participação política como formatação da
liberdade almejada pelos jusnaturalistas modernos.

As leis só se consideravam válidas quando por via da participação


democrática, especialmente por intermédio do Parlamento. Presumia-se que expressava
a vontade geral e, portanto, todos os afetados poderiam hipoteticamente assentir aos
seus comandos. A discussão pública era outra fonte de legitimação das normas jurídicas.
A atividade normativa de caráter inovador deslocou-se para o Poder Legislativo.

A democracia não era apenas o governo do povo, mas o seu governo por
canais predeterminados e segundo procedimentos predefinidos pelas formas do direito52
com o surgimento de uma esfera pública de debates com forte influência sobre os órgãos

52
HOLMES, Stephen. Vincoli constituzioli e paradosso della democrazia. In: ZAGREBELSKY, Gustavo et alli.
Il future della costituzione. Turim: Einaudi, 1996, p. 201.
legislativos. Os discursos jurídicos implantaram-se na forma de voto universal e igual
e com liberdades de associação e criação de partidos políticos.

Nesse contexto, não só a divisão funcional de poderes sobressaiu como


garantia unívoca de liberdade, mas também direitos de participação política,
caracterizados pelo sufrágio universal e liberdades como a de associação ganharam
relevo. A divisão de poderes estendeu-se para o estabelecimento da repartição funcional
da atividade legislativa, da executiva e da administração da justiça, já que, sob a
perspectiva do Estado de Direito, o problema se colocava principalmente na repartição
de poderes entre o Executivo e a Justiça.53

A tripartição clássica de poderes reservou precipuamente ao Legislativo a


“discussão e o acordo sobre programas gerais”54. Ao Judiciário, por meio de processos
específicos, civil e penal, foi conferida a função de decidir conflitos estabilizando
expectativas de comportamentos com a validação e a determinação do direito para o
caso concreto. Por último, ao Executivo coube a execução do conteúdo teleológico do
direito vigente por uma forma pragmática, estratégica e instrumental de realizar, de
forma eficaz, os fins coletivos expressos pela lei, o que lhe impôs uma forma
hierarquizada, burocratizada e inquisitorial de atuar55.

No entanto, mesmo no Estado de Direito, com a separação entre Executivo


e Judiciário, a divisão de poderes já apresentava um aspecto positivo além do mero
controle do arbítrio, que era a especialização funcional, potencializadora da efetividade
dos poderes, aumentando sua autoridade. Ao menos na origem, o Judiciário
independente não foi criado para limitar o poder, mas, ao contrário, para aumentar a
capacidade do governo de desenvolver suas funções56.

A democracia ganhou com a divisão de poderes, eis que cada um deles tem
uma forma distinta de recrutar seus integrantes, o que amplia a variedade e a
sensibilidade do Estado como um todo, atribuindo-se outro significado o equilíbrio

53
HABERMAS (Op. cit., p. 509)
54
Idem. Ibidem, p. 255.
55
Idem. Ibidem. pp. 255-6.
56
HOLMES (Op. cit., p. 198).
entre eles. Não se tratava de um balanceamento estático, mas de mútua interferência
dinâmica como reflexo dos estímulos sociais e democráticos.

A distribuição dos poderes possibilitou ao cidadão ter a noção de que o


direito e suas leis eram válidos para todos. A dispersão do processo de decisão levou a
que nenhum dos poderes por si só pudesse determiná-las. A tripartição de poderes
significou deliberação e compartilhamento institucional de decisões.

Enquanto o Estado Absolutista havia deixado a sociedade civil como uma


matéria informe, orientando legislativamente apenas a economia e o poder
administrativo-burocrático, o ordenamento do Estado Democrático de Direito se
enriqueceu para regular também a sociedade civil e o mundo da vida, para ser objeto de
reconhecimento e proteção57. Por intermédio do direito criam-se instituições e
procedimentos para que a comunicação flua entre o cidadão e os sistemas político-
burocrático e econômico. Nas palavras de Habermas, nesse paradigma, o Estado
Moderno adquire uma legitimidade por direito próprio, adquire legitimações baseadas
no mundo da vida58.

Passo a passo o Estado Democrático de Direito desenvolveu-se contra as


relações de dominação e dependência que emergiram com o aparato burocrático e a
empresa capitalista, organizados no âmbito do Estado e da economia, encartados num
arranjo em que o direito sobressaia apenas como meio. No Estado Democrático de
Direito, o direito apresenta-se como instituição que veicula e carece de legitimação. O
mundo da vida afirma-se contra estrutura abstratas de dominação que violentam
vivências concretas. Com isso, há um ancoramento definitivo do poder num mundo da
vida racionalizado e organizado em parâmetros de instituições jurídicas moralmente
válidas.

Como tentativa de superação das aporias do Estado de Bem-estar Social, o


Estado Democrático de Direito parte de algumas premissas: 1) a de que está fechado o
caminho, proposto pelo neoliberalismo, de volta à sociedade civil e seu direito

57
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa, II – crítica de la razón funcionalista. Trad. Manuel
Jiménez Redondo. Madri; Taurus, 2001, p. 509.
58
Idem. Ibidem.
meramente formal, 2) o redescobrimento do indivíduo, a partir da afirmação da
dignidade da pessoa humana, que está colocado em risco por um tipo de juridicização
instrumentalizadora proposta pelo Estado de Bem-estar Social, 3) o projeto de Estado
de Bem-estar Social não pode ser interrompido, devendo, em verdade, prosseguir num
plano superior de reflexão59. A linha mestra é a de domesticar o sistema econômico
capitalista com a sua reestruturação social e ecológica por uma via que
concomitantemente freie e “adestre” o sistema político-burocrático com parâmetros de
efetividade e eficácia, com formas moderadoras de regulação e com controle indiretos.
Outro ponto importante é a reconexão do Estado e do direito com formas linguísticas
de entendimento, como meio de legitimação.

As restrições a que a política fica submetida pelo direito são do tipo


estrutural, e não quantitativo, como supõe o neoliberalismo. Nesse sentido, o
incremento da quantidade de políticas compensatórias não só leva a uma sobrecarga do
direito como meio, mas também vulnera procedimentos de sua produção legítima. Os
direitos compensatórios típicos de Estado de Bem-estar Social só podem possibilitar
aos interessados configurar suas vidas no marco da autonomia privada, ao mesmo passo
que possibilitem a autodeterminação cidadã. O processo capitaneado por um sistema
político-burocrático hipertrofiado vulnera o procedimento democrático da configuração
autônoma do sistema de direitos60. Os critérios de legitimação da regulação jurídica
acabam substituídos por critérios de efetividade do poder político. É aí que reside o
perigo da inflação das tarefas estatais. No contexto de um sistema administrativo
autonomizado, o direito degrada-se, tornando-se apenas um meio a mais para resolver
problemas de integração funcional de uma sociedade constituída em termos de sistemas
invasivos e instrumentalizadores, como a economia e poder político-burocrático.

Considerar a legitimação, nos termos de Estado de Bem-estar Social, como


decorrência da efetividade de regulação do mercado e controle de redistribuição de
riqueza, leva a enganosa ideia que o direito é algo que está à disposição de um poder
político que constrói uma ordem arbitrária de preferências valorativas, desvinculada de

59
HABERMAS, Jürgen. Faticidad y validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Trota, 2001, p. 492.
60
HABERMAS, Jürgen. Faticidad y validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Trota, 2001, p. 514.
um critério prévio de legitimação. É um processo de desenraizamento da produção
legítima do direito, que, em verdade, depende de discussões validatórias em foros
públicos, em que se apresentem experiências individuais e biográficas de injustiças,
repressões e falta de respeito. Esse descasamento legitimatório do Estado de Bem-estar
Social abre espaço para uma Administração que se autoprograma num exercício de
poder alheio à sociedade, em que, tanto a política como a burocracia tendem a se
autonomizar de forma ilegítima e invasiva, em relação a outros sistemas sociais.
De outro lado, as instituições legais não podem ser legitimadas formalmente
apenas por critérios positivas e procedimentais. É preciso uma legitimação de conteúdo
em termos de uma moral universalista. Questões socialmente sensíveis, como aborto,
afirmação de minorias, sexualidade, etc. não podem ser objeto de normatização jurídica
desvinculada de contextos de ordenação moral da sociedade. O direito, como
instituição, deve estar além de um conjunto de regras. No Estado Democrático de
Direito, há uma reordenação das instituições jurídicas, que passam a ser concebidas
como um sistema de regras que apoia-se, justifica-se e respeita uma constelação de
princípios e, ao mesmo tempo, favorece uma série de diretrizes políticas, como
ordenação legítima de preferências.
É assim que o direito configura-se como instituição social componente do
mundo da vida. Na perspectiva de meio, o direito pode ser mais ou menos funcional na
articulação dos sistemas do poder político-burocrático e sistema econômico. “As áreas
tecnicizadas e amoralizadas do direito que crescem dentro do ambiente dos sistemas
econômico e político-burocrático devem ser avaliados de acordo com imperativos
funcionais e com normas de maior estatura.”61 No entanto, o jogo entre garantia e
retirada de liberdade não pode ser encerrado no âmbito do direito como meio e
instituição, já que as questões que cercam a liberdade só tem sentido pleno no horizonte
do mundo da vida, remetendo à uma formação de vontade ancorada numa moral
universalista que envolva vivências de pessoas integrais dotadas de uma história
individualizada.

61
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa, II – crítica de la razón funcionalista. Trad. Manuel
Jiménez Redondo. Madri; Taurus, 2001, p. 213.
Uma dicotomia de legitimação do direito como meio, em que os critérios
procedimentais/formais parecem ser suficientes, e o direito como instituição, em que há
necessidade de justificação de caráter ético/moral, mostra-se duvidosa em face do
intervencionismo estatal62. Temas e necessidades do cotidiano passam a ser satisfeitos
por intermédio de um direito formal, o que pode redundar em coisificação dos possíveis
beneficiários, que passam a desempenhar sobretudo o papel de clientes da burocracia.
A economia e o Estado, utilizando o direito como meio, apresentam-se cada vez mais
complexos, e com seu crescimento penetram cada vez mais profundamente em
componentes do mundo da vida como a cultura, a personalidade e a sociedade, afetando
sua reprodução e colonizando-os. Esse fenômeno apresenta-se não só em temas como
proteção ao meio ambiente, ao controle do risco nuclear, na proteção da intimidade etc.,
mas também quando se impõem regulações ao tempo livre, à cultura, às férias, ao
turismo, à família etc. Aí, enxerga-se a interferência sistêmica e sua juridicização por
um processo potencialmente deletério em que simplesmente as formas jurídicas não
podem legitimar a regulação que se avoluma.
Os princípios da participação política e das compensações sociais são
instituições sociais constitucionalmente ancoradas, a serem preservadas no âmbito do
Estado Democrático de Direito. O direito como meio do Estado de Bem-Estar Social é
talhado para locais de ação previamente organizados em termos de direito formal e que
podem ser mantidos apenas por meio desse mecanismo, como é exemplo a burocracia.
A questão é que o direito como meio Estado de Bem-Estar Social estende-se para
âmbitos informalmente organizados do mundo da vida, colonizando-o e desfigurando
esferas de vivências indiferenciadas e únicas. Em termos de Estado Democrático de
Direito, o direito como meio fica à disposição da política, mas simultaneamente como
instituição estabelece condições procedimentais e de conteúdo sob as quais é possível a
sua disposição.
O Estado Democrático de Direito instaura uma tensão entre direitos oriundos
do Estado Liberal e os gestados no paradigma de bem-estar social. É que o direito
formal privado realiza liberdades de forma unívoca canalizando demandas do mundo

62
Idem. Ibidem, 516.
da vida contra a dominação burocrática. De outro lado, as prestações compensatórias
são necessárias para a realização material da autonomia material como reequilíbrio das
relações assimétricas constitutivas do capitalismo, em que se opõe capitalistas
proprietários a trabalhadores subordinados em relações de emprego.
Noutra direção, o Estado de Direito também erra ao reduzir a justiça a uma
igual distribuição de direitos, como se estes fossem bens repartíveis. O Estado de Bem-
estar Social, por sua vez, amesquinha a cidadania ao configurá-la numa clientelização
hipertrofiada. Um sistema de direitos constituído por cidadãos emancipados que se
considerem como iguais em respeito e consideração, com a edificação reflexiva de
âmbitos privados e públicos de autonomia, é o que permite a superação das
insuficiências dos dois paradigmas anteriores.
O Estado de Bem-estar Social orienta-se predominantemente por critérios de
justiça redistributiva, em torno do problema da partição de utilidades fruíveis
socialmente produzidas. No Estado Democrático de Direito, essas compensações
sociais são o resultado de um direito que tem como objetivo garantir a liberdade e a
integridade de cada um, num recíproco reconhecimento entre os cidadãos informados e
esclarecidos.
No modelo de sociedade liberal, o mercado constitui uma quase-natureza,
resultado de forças espontâneas que fogem ao controle dos atores individuais. No
Estado de Bem-estar Social, desaparece esse caráter quase-natural, sobressaindo-se o
Estado controlador, regulador, e socialmente configurador, de modo que tão logo as
variáveis sistêmicas comecem a oscilar além de um certo grau de compatibilidade
social, o Estado as atribui como situações de crises, considerando-as um déficit de
controle e de regulação.
Do Estado Liberal para o Estado de Bem-estar Social, passa-se de um nível
de descrição da ação para um nível de descrição ligado a sistema. Desloca-se de um
ponto de referência posicionado no ator individual, dentro de um entorno natural, em
que se exerce a liberdade de ação, como responsabilidade por consequências de suas
decisões, para outro em que afloram “contextos de um sistema, estatisticamente
descritos, sob os quais decisões duplamente contingentes das partes envolvidas, junto
com suas consequências, são consideradas variáveis dependentes.”63 No Estado Liberal,
verifica-se o único, o individual, o pessoal, o concreto, o anedótico, o ocasional, o
aleatório, a conduta isolada, imprevisível, o esperar e o ver, dentro de um certo
fatalismo. Em contraste, o Estado de Bem-estar Social, é o campo em que está o
estatístico, a categoria, o impessoal, o generalizado, a depuração de detalhes, o
recorrente, o sistêmico, como parte de uma atividade, manejável, controlável, em que
impera a planificação mediante seguros e regulação.
O Estado Democrático de Direito instaura uma transição reflexiva entre
esses dois pontos de referência, como forma de construção de uma autonomia bipartida
como privada e pública. “O substrato para realização do direito não é constituído, nem
pelas forças de uma sociedade de mercado que opere de forma espontânea, nem
tampouco pelas medidas de um Estado Social que opere de forma intencional” 64, mas
sim por vias de entendimentos linguisticamente mediados e por influxos de tipo
publicístico e democráticos que originam-se da sociedade civil e do espaço público-
político, em que se situam pessoas na sua dimensão privada com a constituição
autônoma de uma configuração única de vida.
A construção do sistema de direitos supera o direito formal e material,
adotando o direito reflexivo que visa a assegurar em última instância o exercício
bipartido da autonomia, privada e pública, passando todos os atos jurídicos a serem
concebidos como um aporte da configuração dos direitos fundamentais. No Estado
Democrático de Direito, estão em concorrência modelos oriundos do Estado Liberal
com os originados no âmbito do Estado de Bem-estar Social, a formarem uma ordem
transitiva e complementar de prioridades numa construção interpretativa articulada a
partir do caso concreto.
O papel social que sobressaí no Estado Democrático de Direito é o do
cidadão, dotado de autonomia privada e pública, que toma parte do discurso político
para expressar os seus interesses violados cooperando para construir critérios de decisão
iguais para casos iguais e desiguais para casos desiguais. Para escapar do paternalismo
do Estado de Bem-estar Social, é necessária a construção de uma cidadania esclarecida

63
HABERMAS, Jürgen. Faticidad y validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Trota, 2001, p. 488.
64
Idem. Ibidem, p. 528.
e informada que permita capacidade e competência de mobilizar o direito com seus
instrumentos de ação e defesa procedimentais, traduzindo os seus problemas cotidianos,
situados no mundo da vida, em construções jurídicas em nível maior de abstração. A
coletivização do direito, por associações e instituições com capacidade de substituição
processual, são um caminho para implicação do indivíduo por meio de uma participação
política com a representação de seus interesses individuais na formação dos interesses
coletivos.
Não foi por acaso que a dignidade da pessoa humana foi expressamente
consagrada na Carta Fundamental de Bonn, logo depois da superação do nazismo, assim
como não foi acidental a sua adoção na Constituição Brasileira após um período de
governo autoritário65. O sentido de tal positivação é afastar qualquer concepção
relativista ou reducionista da condição humana, oriundo de ordens sociais que busquem
sobrepor-se aos indivíduos, como sujeitos de direitos e fins em si mesmos. Todos os
países que afirmaram a dignidade da pessoa humana são Estados Democráticos de
Direitos, garantidores de um núcleo indisponível e incindível de direitos à pessoa
humana.
A autonomia que, em Kant, tem um papel chave na dignidade da pessoa
humana está no cerne da definição de sujeito de direito. Em outras palavras, a qualidade
da pessoa humana como ser racional, que reconhece e participa da elaboração de regras
em livre manifestação de vontade, indica as características essenciais desse papel social
singularmente protegido. Daí que ter personalidade signifique participar da condução
política de sua organização social, bem como fixar-se uma esfera para escolhas privadas
no exercício da autonomia.66 Aliás, esses dois âmbitos da autonomia se afirmam numa
mútua dependência entrecruzada, em que a participação política é a garantia das

65
POPPER, em. La Sociedad Abierta y sus Enemigos. Trad. Eduardo Loedel e Amparo Gómez Rodríguez.
Barcelona: Paidós Básica, 2000, p. 692, mostra a incompatibilidade do totalitarismo com a dignidade da pessoa
humana no seguinte trecho: É por isso que a nossa civilização ocidental é essencialmente pluralista e, também
por isso que fins socialmente monolíticos significariam a morte da liberdade; da liberdade de pensamento, da
livre busca da verdade, e, com ela, da racionalidade e da dignidade do homem.
66
HABERMAS, In: HABERMAS, Jürgen & RAWLS, John. Debate sobre el Liberalismo Político. Trad. Gerard
Vilar Roca. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1998, p. 66, conceitua no seguinte trecho esses dois âmbitos de
manifestação da autonomia: os liberais destacaram na ‘liberdade dos modernos’, em primeiro lugar, a liberdade
de crença e de consciência, assim como a proteção da vida, a liberdade pessoal e a propriedade, é dizer, o núcleo
do direito privado subjetivo. O republicanismo, pelo contrário, defendeu a ‘liberdade dos antigos’, ou seja,
aqueles direitos de participação e de comunicação política que possibilitam a autodeterminación dos cidadãos.
liberdades individuais e em que estas liberdades individuais de pessoas iguais em
dignidade legitimam o Poder Político.
Se há algo inquestionável num Estado Democrático de Direito, é que a ordem
social se organiza a partir de indivíduos, dotados de dignidade e, por isso, tratados com
igual respeito e consideração67. Em tal contexto, para proteger o indivíduo autônomo
contra relativizações, inclusive coletivistas, o Estado garante um núcleo indisponível e
inviolável de direitos. É, por isso, que Dworkin diz que direitos são trunfos nas mãos
dos indivíduos68, sendo os objetivos sociais legítimos apenas quando e na medida em
que se respeitem os direitos dos indivíduos.
Não se pode, porém, esquecer que a autonomia, como ideia central na
dignidade da pessoa humana, exerce-se em sociedade. Por isso, a necessidade de um
reino de fins em que todas as autonomias se conectem por edição individual de leis
universalmente e reciprocamente válidas, de modo que cada um não persegue apenas
os seus fins, mas ao de todos os outros, tratando-os como pessoas69. Só há verdadeira
autonomia e, portanto, respeito da dignidade humana quando a ação individual leva em
consideração todos os outros como fins em si mesmos. Do contrário, os outros estarão
sendo coisificados e haveria um uso indevido da autonomia em descompasso com a
responsabilidade que lhe é inerente.
Nessa linha, é certo que a sociedade é composta de uma pluralidade de
indivíduos, todos dotados de dignidade e merecedores de igual respeito, o que redunda
na coordenação de autonomias com a construção de esferas coletivas e transindividuais.
Efetivamente, a dignidade da pessoa humana pode proteger sujeitos não determinados
e gerações futuras. Todavia, a igualdade de respeito e consideração impõe que o

67
DWORKIN, Ronald. A virtude soberana. A teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005,
p. 209.
68
DWORKIN, Ronald. Los Derechos en Serio. Trad. Marta Gustavino. Madri: Ariel, 1999, p. 37.
69
RAWLS, em. Leciones sobre la Historia de la Filosofía Moral. Trad. Andrés de Francisco. Barcelona:
Ediciones Paidós Ibérica, 1997, p. 227, elabora melhor o significa de reino (domínio) de fins em Kant:“pelo que
quer dizer Kant com um todo de fins em enlace sistemático, também deveríamos ter em conta o seguinte
parágrafo... Desse modo, como disse nele, o enlace sistemático característico de um domínio [reino] dos fins
surge quando todas as pessoas razoáveis e racionais se tratam a si mesmas e as demais como pessoas e, portanto,
como fins em si mesmas. Pela segunda formulação, isso significa que cada qual não só persegue seus fins
(permissíveis) pessoais dentro dos limites dos deveres de justiça (os direitos dos homens) mas também dá um
valor significativo e apropriado aos fins obrigatórios ordenados pelos deveres da virtude. Esses deveres, para
enunciá-los sumariamente, são promover a própria perfeição moral e natural e a felicidade alheia.
Adicionalmente, cada qual tem o dever de respeitar os direitos de justiça, pois também isso é meritório e uma
obrigação (não um dever) de virtude, conforme o explica Kant.”
indivíduo não seja dissolvido em esferas de valores coletivos. Em outras palavras,
direitos coletivos e transindiduais devem ser colocados num mesmo plano de discussão
que a dignidade da pessoa humana individual, sem ordem de precedência prévia. A
sociedade justa encerra promessa emancipatória, em realização da dignidade da pessoa
humana. “Injustiça é a coartação da liberdade e vulneração da dignidade"70, que se
manifesta na opressão e dominação em que se nega o exercício da autonomia pública e
privada, como pressupostos institucionais para o exercício das capacidades individuais
e de cooperação.
Assim, para o Estado Democrático de Direito, apresenta-se um duplo
desafio: a domesticação da economia capitalista, em que se mantém compensações
típicas de Estado de Bem-estar Social, e a legitimação do direito e da política, a partir
de um sistema de direitos, fundado na dignidade da pessoa humana e que apontam para
uma constelação de princípios, como juízos de moral política. Para tanto, a cidadania
encontra-se bipartida, na sua configuração como autonomia privada e autonomia
pública, bem como os direitos fundamentais são compreendidos numa tensão que
remete a uma concorrência entre princípios oriundos do Estado Liberal/de Direito com
princípios de Estado de Bem-estar Social.

2.4.2 O Estado Regulador

Os programas condicionais, típicos de Estado de Direito e finalístico, típicos


de Estado de Bem Estar, deixaram de ser suficientes num cenário em que se avolumam
normas procedimentais e de organização que se destinam a regular matérias complexas
em âmbitos funcionais, com lógica interna própria. De outro lado, a inserção do direito
num âmbito de racionalidade material, ou seja, finalística, no âmbito do Estado de Bem-
estar Social, instrumentaliza-o e subordina-o a critérios que lhe são estranhos,
especialmente os políticos, desfigurando a racionalidade jurídica e gerando uma crise

70
HABERMAS, Jürgen. Faticidad y validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Trota, 2001, p. 503.
de regulação. Algo semelhante ocorre com a economia e outros sistemas sociais que
também pela sua crescente complexidade têm dificuldades de desenvolver uma
capacidade normativa de controle e regulação interna71, que não pode ser
adequadamente efetivada dentro de um contexto dirigista e intervencionista de
racionalidade material, que, em verdade, cria interferências para um funcionamento
autônomo de tais sistemas.
A partir dessa problematização, o modelo ingênuo do Estado de Bem-estar
Social a quem atribui-se um largo espaço de ação para imposição dirigista de sua
vontade sobre a sociedade deve ser substituído por um mais realista que o concebe como
um sistema entre outros que, dentro de um espaço de ação mais restrito, limita-se a
impulso controladores indiretos.
Por sua vez, Estado Democrático de Direito como uma institucionalização
que flui por meio de um direito legítimo, garantindo a autonomia privada, articulando-
se com procedimentos e condições comunicativas na configuração discursiva da
vontade política, como exercício da autonomia política a legitimar a produção de
normas, instaura um modelo plural e reflexivo de sociedade, em que a política
institucionalizada como Estado de Direito é um entre vários sistemas sociais.
Todavia, ainda mantém-se uma sociedade de capitalismo combinada com
preocupação políticas de bem-estar, em que subsistem formas de dominação, como o
controle burocrático racionalizado, “submetendo pessoas nas suas múltiplas áreas de
existência à disciplina da autoridade e dos experts.”72 A evolução do sistema capitalista
acompanha-se de um desenvolvimento social em que aflora a diferenciação entre os
sistemas sociais, especialmente a economia e o sistema político-burocrático. As
divergências entre esses sistemas sociais agudizam-se dentro dessa dinâmica, gerando
crises inevitáveis.
A propósito das crises de legitimação do capitalismo organizado, Habermas
considera que elas não são de fato resolvidas, havendo tão-somente o deslocamento de
um sistema para o outro, de modo que o Estado intervencionista intercepta crises
econômicas primárias, absorvendo-as no sistema político, em que surgem novos

71
TEUBNER, Gunther. Droit et réflexivité. Paris: L.G.D.J., 1996, p. 38.
72
HABERMAS, Jürgen. Faticidad y validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Trota, 2001, p. 503.
fenômenos73. Os imperativos contraditórios da gestão econômica pelo Estado
ultrapassam rapidamente as capacidade de intervenção do Estado, levando a uma crise
de racionalidade que compromete a integração sistêmica e coloca em xeque a integração
social.
A complexidade das pressões sócio-econômicas faz com que os mecanismos
jurídicos e políticos não sejam suficientes para satisfazer uma racionalidade material e
de resultados. Nesse contexto, o mercado acaba por perder a sua legitimação natural
como mecanismo de repartição, por causa do processo de concentração econômica e do
intervencionismo. O sistema político toma decisões conscientes de repartição de bens,
procurando legitimar-se pela lealdade das massas, porém num cenário de difícil gestão
econômica, em que se apresentam tarefas contraditórias, como corrigir as deficiências
do mercado para permitir o constante crescimento econômico, efetivar redistribuições
compensatórias por meio de direitos sociais e garantir propriedade e contratos.
Assim, a sociedade em que se apresentam as pretensões legitimatórias do
Estado Democrático de Direito é um cenário de diferenciação funcional, em que estão
sistemas altamente operativos, que funcionam numa lógica instrumental, sobressaindo
a necessidade de resultados e uma tendência permanente de crise. O direito aí não opera
apenas como instituição, mas também como meio que se confronta com sistemas
altamente invasivos, como o econômico e o poder político burocrático. Num paradigma
que suceda o Estado de Bem-estar Social, coloca-se o desafio de frear os impulsos
intromissivos de uma política interventora que desfigure a autonomia e diferenciação
do sistema econômico. É dizer, o direito, numa feição funcional, tem como desafio
evitar a politização da economia, sem, no entanto, cair no exagero oposto, em que
incorreu o Estado Liberal, de economicizar a sociedade e consequentemente a política.
É uma questão de integração social, mais especificamente sistêmica, que o
direito assume dentro de um contexto de extrema diferenciação funcional. A
manutenção da diferenciação dependerá de que cada sistema parcial social represente o
ambiente decorrente dos outros, devendo haver compatibilidade entre as suas funções e

73
HABERMAS, Jürgen. A crise de legitimação do capitalismo tardio. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002,
p. 47 e seg.
estruturas.74 A diferenciação social requer a constante ampliação de mecanismos
integratórios entre a sociedade geral e cada um dos sistemas parciais. Isso requer uma
integração social descentralizada sem a predominância central de mecanismos político-
jurídicos, típicos de sociedades estratificadas. Cada sistema funcional deve acolher em
suas estruturas reflexivas limitações correspondentes a essa integração social.
Os sistemas devem ser capazes de três operações de seleção: a função,
quando o sistema orienta-se à sociedade em geral; performance, quando ele orienta-se
a outros subsistemas; e a reflexão, quando ele se orienta a ele mesmo. É, no âmbito, da
reflexão que eventuais incompatibilidades entre a função e a performance são
compensadas.
A função do direito consiste em disponibilizar à sociedade estruturas
normativas congruentes e generalizáveis. A sua performance é regular conflitos que
ocorrem dentro dos outros sistemas sociais. O direito pode contribuir significativamente
por meio de uma legitimação procedimental, fornecendo condições para a auto-
organização e a autorregulação democrática dos subsistemas por meio de normas que
estimulem sistemicamente estruturas de reflexão no seio de outros sistemas, em formas
mais contidas, mais abstratas e indiretas de controle social, intervindo de forma limitada
e reflexivamente e assumindo responsabilidade pelos resultados, sem, no entanto,
produzir as utilidades de interesse público. A reflexividade caracterizar-se-ia pelos
meios técnicos que o direito servir-se-ia para esse fim, criando, no âmbito da economia,
um mercado emulado de segunda ordem por meio de estruturas burocratizadas e
estruturadas juridicamente, na forma de autoridade reguladora. O direito responsivo
realiza sua orientação reflexiva ao criar os pressupostos estruturais dos processos de
reflexão dos outros sistemas sociais.75
Ao direito, como sistema regulador abrangente de toda a sociedade,
referindo-se ao mundo da vida, ao sistema econômico e ao poder político-burocrático,
cabe operações reflexivas que abranjam não apenas a sua função e performance, mas
também a de outros sistemas, numa configuração coordenadora para preservação da
integração social. É isso que se pode chamar de Estado Regulador, em que o poder

74
TEUBNER, Gunther. Droit et réflexivité. Paris: L.G.D.J., 1996, p. 38.
75
TEUBNER, Gunther. Droit et réflexivité. Paris: L.G.D.J., 1996, p. 43.
político-burocrático assume a configuração de um “sistema administrativo protegido
diante de partidos e do público”76, configurando um planejamento compreensivo e
apresentando-se como “uma autoridade responsável pela expansão do horizonte de
possibilidades”77, em que se fundem ciência e administração e que se vale de um direito
como meio sobrecarregado por estabilizações cognitivas e imperativos pragmáticos.
O direito como meio assume uma feição responsiva, em que: 1) não é o
resultado de uma evolução unidimensional de uma nova racionalidade finalística do
Estado de Bem-estar Social, mas de um deslocamento da racionalidade formal para a
material, dirigida pelo Estado com objetivo de êxito na distribuição de utilidade,
acompanhada de uma reorientação reflexiva; 2) que representa um impulso da dinâmica
interna do sistema jurídico que se abre a estrutura sociais externas, compatíveis com o
direito responsivo, em que deve aflorar a dimensão da sua adequação à complexidade
social; 3) que, a partir da covariação da estruturas jurídicas com as sociais, confronta-
se com os problemas da reintegração dos sistemas sociais altamente diferenciados
(Luhmann) ou com a necessidade de legitimação do Estado intervencionista na
sociedade de capitalismo organizado (Habermas).78
O direito reflexivo é uma orientação menos definida que aparece com a crise
do Estado de Bem-Estar Social, mas ainda remete aos conceitos intervencionistas e aos
programas compensatórios. No entanto, a responsabilidade abrangente pelos resultados
concretos passa a orientar-se por uma regulação mais abstrata, envolvendo processos
reflexivos de outros sistemas. Fala-se numa racionalidade reflexiva por ela remeter a
autoidentificação do direito como sistema, à função de apoio que o direito permite de
autoidentificação dos outros sistemas e aos mecanismos autorreferenciais de que a
ordem jurídica se serve.
Na sua racionalidade interna, ele ultrapassa os programas condicionais e
finalísticos, fundando-se na constituição de um metanível de estruturas organizacionais,
com redefinição de competências de decisão e de controle, com programas
procedimentais mais abstratos, para se desvincular da administração material do direito,

76
É parte da apresentação do pensamento de Luhmann feita por Habermas em HABERMAS, Jürgen. A crise de
legitimação do capitalismo tardio. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002, p. 168.
77
Idem. Ibidem.
78
TEUBNER, Gunther. Droit et réflexivité. Paris: L.G.D.J., 1996, p. 7.
passando para a coordenação dos diversos atores sociais e, portanto, para meios mais
indiretos e abstratos. São mecanismos reflexivos que não geram necessariamente o
conteúdo das decisões, mas fixam as premissas organizacionais e procedimentais para
que outros sistemas cognitivamente determinem a substância das normas jurídica e em
que afloram o objetivo de reduzir as deficiências sistêmicas a partir de correções
compensatórias. A racionalidade sistêmica é do tipo reflexivo, orientando-se pelo
problema central das sociedades altamente diferenciadas, que é a integração dos
diversos sistemas autônomos, preocupando-se com uma integração social
descentralizada. O seu papel é o de disponibilizar mecanismos de organização e
procedimentais para que os sistemas sociais possam manter uma autonomia
coordenada.
O direito do Estado Regulador é compatível com estruturas intrassistêmicas
de reflexão (Luhmann): “de um lado, a reflexão dos subsistemas sociais pressupõe
processos de democratização e produzem estruturas discursivas; de outro lado, a função
primária de democratização não é o aumento da participação, nem da neutralização do
poder, mas sim da reflexão intrassistêmica sobre a identidade social”.79 O direito
reflexivo tem um papel essencial de promover procedimentos e organização de
processos democráticos internos aos subsistemas sociais. Nesse curso, a comunicação
jurídica é capaz de fazer transitar interações simples ao nível abstrato de relações
estruturadas e organizadas, atingindo as camadas reveladoras da complexidade da
sociedade.
É possível que haja estruturas reflexivas operando de modo compensatório.
É o caso das cláusulas gerais, como, por exemplo, a boa fé, que não deve
necessariamente ser veículo para estatização do contrato, a partir de uma estratégia
intervencionista. Dentro de uma cláusula geral, estruturas contraditórias podem surgir,
como, no caso da boa-fé, as advindas da interação entre as partes do contrato, as
instituições de mercado, da interferência política, da economia e do direito. A cláusula
geral tem como objetivo emular processos sociais dentro do direito, para coordená-los

79
TEUBNER, Gunther. Droit et réflexivité. Paris: L.G.D.J., 1996, p. 31.
e compatibilizá-los, com a formulação de deveres jurídicos definidos pela autoridade
judicial, como, por exemplo, deveres de informação e padrões profissionais.
Pode surgir, no entanto, um déficit de legitimidade e racionalidade a exigir
uma melhora cognitiva e procedimental para a formulação de modelos de observação
exteriores como meios de comunicação e aprendizagem dentro dos círculos envolvidos,
como forma de atingir as associações, as autoridades públicas de controle e comunidade
científica. Um exemplo pode dar-se no direito societário, em que a empresa pode ser
forçada a internalizar conflitos exteriores da sociedade, para acolher interesses dos
consumidores, dos trabalhadores e do público em geral, criando estruturas reflexivas
internas dentro das empresas que permitam a criação de uma consciência organizacional
para sensibilizar as pessoas jurídicas sobre os efeitos sociais da maximização de sua
racionalidade própria. É o caso dos mecanismos de compliance.
No âmbito do Estado Regulador, os atores individuais pagam o preço de
perda de sua autonomia com uma inclusão sistêmica, submetidos ao exercício de
funções de controle e regulação, com a submissão a uma rede de dependência funcional.
A cidadania é gerida como se os indivíduos fossem meros sujeitos de interesse,
maximizadores de seu bem-estar80. A instrumentalização do direito e da cidadania para
fins de regulação política embaça o sistema de direitos, levando também a uma
dissolução da clássica divisão de poderes. A lei geral e abstrata deixa de ser pode ser o
único eixo que articula a produção legislativa do direito, sua aplicação judiciária e sua
execução administrativa.
No plano da repartição de poderes, a reflexividade do direito põe como tarefa
do legislador parlamentar a tomada de decisões num metanível, tomando decisões sobre
decisões, estabelecendo atores competentes e condições legítimas para realização dos
programas legislativos. É o âmbito do surgimento do direito regulatório, em que o
legislador se desincumbe de tomar decisões em face de situações em que sua capacidade
de precisão é insuficiente.81 Surge, então, um problema da legitimação, principalmente
levando em conta que a miríade de tarefas atribuídas à administração deixam evidente
a ingenuidade de uma administração neutra, submetida aos limites da lei. As questões

80
É o que Foucault chama de biopolítica. Ver item 3.1 e seguintes.
81
HABERMAS, Jürgen. Faticidad y validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Trota, 2001, p. 525.
pragmáticas inseridas no âmbito do Executivo inevitavelmente envolvem questões de
moral política, na disputa por bens coletivos e na eleição entre objetivos concorrentes.
Por isso, o administrador, especialmente quando edita normas, não pode
eximir-se dos discursos de fundamentação e justificação, principalmente levando em
conta que a regulação caracteriza-se por um direito escrito em padrões de burocracia e
técnica, com sobrecarga cognitiva técnica e científica. Daí que a regulação ocorra
especialmente no plano acelerado da expansão do direito com baixo nível de
densificação do saber jurídico. Como observa Habermas, “quanto mais se recorre ao
direito como meio de regulação social e controle políticos e de configuração social,
maior é a carga de legitimação que a gêneses democrática do direito tem de suportar.”82
A configuração reflexiva do direito leva a um trânsito entre direito formal,
direito material e direito reflexivo. Diante da insuficiência da racionalidade material e
de resultados para legitimação do Estado, faz-se necessária uma racionalidade
discursiva, adensada por critérios normativos veiculados em procedimentos de
discussão e decisão, num espaço que permita a colaboração do ciência, da política e do
espaço público, em que estaria inseridos atores como associações, sindicatos e outras
entidades e pessoas da sociedade civil, colocando-se como característica marcante a
reflexividade. O direito deixaria de desempenhar exclusivamente o papel de meio para
os objetivos do sistema político burocrático, colonizador do mundo da vida, passando a
se conformar como instituição veiculadora dessa racionalidade discursiva e reflexiva.
Levando em conta que a reflexão jurídica contribui para a integração da
sociedade ao mediar a função e a performance do direito, é necessário saber como ela
pode ocorrer com um maior nível de densificação e com capacidade legitimatória, ao
referir-se a discursos de fundamentação e justificação. A teoria do direito vem
reconhecendo modelos jurídicos que, a partir de elementos empíricos, assumem caráter
prospectivos e operacionais, como, por exemplo, os hard cases de Dworkin83, em que
utilizando-se a distinção entre princípios e regras, o direito, num modelo construtivista,
formula teorias políticas. A partir de um contexto de circunstância, o direito, de um
ponto de vista normativo, cria uma realidade própria aplicando o repertório de conceitos

82
HABERMAS, Jürgen. Faticidad y validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Trota, 2001, p. 513.
83
TEUBNER, Gunther. Droit et rélexivité. Paris: L.G.D.J., 1996, p. 48.
inerentes à linguagem jurídica, que leva a uma seleção em que diversos aspectos sociais,
econômicos e políticos acabam ignorados e neutralizados.
Isso coloca o direito na posição de assumir a “responsabilidade de um
processo de planificação global”84, com verdadeiras análises de política social, o que
exige uma competência cognitiva que está além do instrumental jurídico existente.
Nesse contexto, o direito deve assumir-se como apenas um sistema dentro de um
complexo ambiente, passando a se servir dos saberes das outras ciências sociais e
principalmente autolimitando-se. É assim que se deve configurar o direito do Estado
Regulador para dar conta dos imperativos de integração sistêmica em que sistemas, com
o econômico e o político-burocrático, devem ser articulados de forma reflexiva e
coordenada.

84
Idem. Ibidem, p. 49.

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