Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
INTRODUÇÃO
N
o século XIX, a integração entre os diferentes mercados nem de longe
se equiparava ao quadro atual, e a limitação quanto à livre contratação
de mão de obra era uma discussão formulada eminentemente no plano
interno dos países. O direito do trabalho, surgido nesse contexto, tinha, portanto,
a pretensão de compensar as distorções ocasionadas por um capitalismo ainda
atado ao campo doméstico – ou, quando muito, a um cenário supranacional
restrito –, em razão das limitações tecnológicas de então e das barreiras impostas
pela política externa, que muitas vezes redundavam na deflagração de guerras.
A complexidade assumida pelo capitalismo moderno em decorrência
dos avanços no processo de globalização, da integração econômica entre os
mercados, dos avanços tecnológicos e da ampliação do número de atores no
comércio internacional pôs em xeque a eficácia dos mecanismos clássicos do
direito do trabalho para fazer frente a essa nova realidade, mormente porque nela
a limitação normativa quanto à utilização do labor humano por parte do Estado
pode ser facilmente contornada por intermédio da transferência das empresas e
dos investimentos para outro país detentor de um ordenamento mais tolerante.
Diante disso, cabe perquirir se o direito do trabalho, em sua concepção
compensatória tradicional, tem condições de neutralizar as distorções sociais
ocasionadas pelo atual estágio do capitalismo ou se é necessário conceber uma
proposta de redefinição de suas estruturas, a fim de possibilitar o cumprimento
de tal desiderato.
5 Vide, nesse sentido: LYON-CAEN, Gérard; PÉLISSIER, Jean; SUPIOT, Alain. Droit du Travail, p. 8.
6 A propósito, Palomeque López enfatiza que:
“A legislação operária responde, prima facie, a uma solução defensiva do Estado burguês para, através
de um quadro normativo protetor dos trabalhadores, prover à integração do conflito social em termos
compatíveis com a viabilidade do sistema estabelecido, assegurando, deste modo, a dominação das
relações de produção capitalistas. Não é, por isso, nenhuma casualidade que as primeiras leis operá-
rias versem precisamente sobre aqueles aspectos da relação laboral em que se haviam manifestado os
resultados mais visíveis da exploração dos trabalhadores, abordando, assim, a limitação do trabalho
das mulheres e menores, a redução dos tempos de trabalho, o estabelecimento de salários-mínimos ou,
finalmente, a preocupação pelas condições de segurança e higiene no trabalho e a prevenção dos riscos
profissionais.
(...)
A intervenção do Estado nas relações de produção, através da promulgação de ‘normas protectoras’ das
condições de vida e de trabalho do proletariado industrial e limitadoras da até então absoluta vontade
do empresário na fixação do conteúdo do contrato de trabalho, responde historicamente, como se viu,
à necessidade social de integrar e canalizar o ‘conflito social’ surgido entre novos antagonistas sociais.
O novo corpo normativo integrador haveria de cumprir, pois, a transcendental missão de impor ao con-
flito um canal de desenvolvimento compatível com a permanência e progresso do modo de produção
capitalista e as paredes mestras da sociedade burguesa.” LÓPEZ, Manuel Carlos Palomeque. Direito
do Trabalho e Ideologia, p. 30-33.
(...)
A segunda tendência diz respeito ao desabrochar da globalização
econômica, que encontra uma de suas manifestações mais significativas
no recente incremento dos acordos bilaterais, regionais e multilaterais,
especialmente daqueles supervisionados pela Organização Mundial do
Comércio, a promoverem a liberalização do comércio. Ao introduzirem
gradualmente reduções tarifárias recíprocas e ao eliminarem as barrei-
ras de importação não tarifárias, tais acordos passaram a representar a
superestrutura jurídica da nova ordem econômica internacional, onde o
capitalismo opera cada vez mais em escala global e possui a capacidade de
se mover de forma relativamente livre através das fronteiras nacionais.”12
Assim, a década de 1990 foi marcada por um movimento extremamente
representativo a apregoar sua reestruturação à luz da nova realidade econômi-
ca mundial, no sentido de reduzir seu escopo tutelar com vistas a adequar os
ordenamentos jurídicos internos à necessidade de captação de investimentos e
de submeter a contratação e a dispensa de mão de obra às demandas imediatas
das empresas13.
12 No original: “Two dramatic trends are increasingly challenging the traditional capacity of domestic
labor law to promote justice in the world of work. The first relates to the introduction of flexible forms
of production. What some scholars are calling ‘post-fordist’ production processes are supplementing
and in come cases supplanting traditional forms of mass production dependent on routinized labor
hierarchically structured by detailed rules and responsibilities. Facilitated in part by new developments
in computer and information technology, these flexible forms of production rely on an increasingly
versatile labour force, motivated by a spirit of cooperation and generalism, to produce customized
products just in time to meet ever-shifting consumer demand.
The second trend relates to the onset of economic globalization, manifest in the recent spate of bilateral,
regional and international agreements, especially those supervised by the World Trade Organization,
promoting trade liberalization. By gradually introducing reciprocal tariff reductions and eliminating
non-tariff import barriers, these agreements represents the legal superstructure of a new international
economic order, where capitalism increasingly operates on a global scale and possesses the capacity to
move relatively freely across national boundaries”. MACKLEM. Patrick. Labour law beyond borders,
(2002) 606.
13 Nesse sentido, a obra formulada por Luiz Carlos Amorim Robortella em 1994 é bem ilustrativa do
momento pelo qual passava o direito do trabalho naqueles idos.
Propunha ali o autor, em apertada síntese, um “moderno direito do trabalho”, (i) em que os atores
coletivos (empregadores e sindicatos obreiros) teriam uma atuação não apenas conflitiva, mas colabo-
rativa, (ii) em que a autonomia da vontade seria resgatada, por intermédio da possibilidade de novas
modalidades contratuais menos rígidas se comparadas à clássica relação de emprego, (iii) em que seu
escopo não mais se limitaria à proteção dos trabalhadores em face da preponderância dos empregadores,
abrangendo, principalmente, o incremento dos níveis de emprego, (iv) em que os níveis de proteção
seriam relativizados em função do maior ou menor grau de subordinação e (v) em que as relações atí-
picas de trabalho integrariam seu escopo. ROBORTELLA, Luiz Carlos Amorim. O Moderno Direito
do Trabalho, p. 55-59.
(...)
El establecimiento de este ‘mercado de productos legislativos’
debe conducir a la eliminación progresiva de los sistemas normativos
menos aptos para satisfacer las expectativas financieras de los inversores.
Por tanto, la competición a la que se entregan las empresas bajo la égida
de los mercados financieros no debería limitarse a la esfera económica,
sino convertirse en el principio de organización de la esfera jurídica.”15
O resultado dessa “corrida” internacional pelo desmonte do arcabouço
protetivo juslaboralista não poderia ser outro senão a institucionalização do
dumping social, ou seja, a busca frenética pela redução do custo de mão de
obra por parte dos Estados com vistas à obtenção de vantagens na precifica-
ção de seus produtos no concorridíssimo mercado internacional, às custas da
depreciação das condições de vida e de trabalho dos obreiros.
Tal depreciação, de fato, afeta não só os trabalhadores dos países “hos-
pedeiros” das empresas “globalizadas”, como também os obreiros daqueles
países que deixaram de receber (ou de manter) o investimento. Assim, se para
aqueles primeiros o custo reduzido da produção representará o desempenho do
labor em condições precárias, sob jornadas exaustivas e mediante a percepção
de salários irrisórios, para estes últimos a fuga das fábricas redundará não só
em desemprego como também na depreciação do sistema de previdência social,
na redução da arrecadação estatal, no desmonte das estruturas de bem-estar
social e, finalmente, no desmantelamento do direito do trabalho sob o pretexto
de adequação à nova realidade mercadológica16.
Diante da situação ora narrada, observa-se de plano que o direito indivi-
dual do trabalho, concebido em seu nascedouro como um conjunto de normas
positivas voltadas para a compensação das vicissitudes capitalistas existentes
realidade atual, sem abrir mão das pautas humanitárias a integrarem o núcleo
protetivo elementar que lhe confere identidade?
Desde já cumpre ressaltar que a proposta a ser formulada descarta a sin-
gela edição de normas domésticas destinadas à flexibilização ou à eliminação
das garantias legais asseguradas aos trabalhadores e aos seus sindicatos como
mecanismos aptos a promover a reestruturação do direito do trabalho. Tais
soluções, para além de reproduzirem em dias atuais aquela subserviência que
o direito tradicionalmente vem tributando às estruturas econômicas e sociais
postas, limitar-se-iam a compensar efeitos ocasionados pelo capitalismo con-
temporâneo sem interferir diretamente no âmago de tais distorções.
Se o direito do trabalho não logrou acompanhar as mudanças do capi-
talismo, isto ocorreu justamente porque seus artífices o conceberam, desde o
início, como um mecanismo meramente compensatório das distorções sociais
e econômicas existentes no estágio da Revolução Industrial a permear o final
do século XIX e o início do século XX, na crença de que a singela edição de
normas domésticas detalhistas e casuísticas nesse sentido lograria, de per si,
promover a melhoria das condições de vida e de labor dos trabalhadores e
assegurar-lhes, através da liberdade sindical, da negociação coletiva e do direito
de greve, a igualdade de forças em relação ao patronato.
De outro turno, a reprodução de tal lógica pelos intérpretes e aplicadores
do direito do trabalho contribuiu significativamente para sua estagnação evo-
lutiva. De fato, a exegese predominante conferida às normas juslaboralistas
vem se pautando há muito pela estrita subsunção dos dispositivos existentes
às hipóteses fáticas a que elas fazem menção, sem cogitar na extensão de seu
conteúdo protetivo às novas situações carreadas pela evolução do capitalismo
e da globalização.
Desse modo, a proposta a ser formulada nas linhas supervenientes
procurará esboçar mecanismos aptos a interferir diretamente nas estruturas do
capitalismo contemporâneo que representam, justamente, os problemas enfren-
tados pelos trabalhadores e por seus sindicatos na atualidade. Nesse sentido,
partir-se-á do pressuposto de que o intuito protetivo a conferir identidade ao
direito do trabalho desde sua concepção afigura-se ainda válido, devendo ser,
portanto, reavivado no fito de se contrapor eficazmente àquelas vicissitudes.
A reestruturação ora proposta pautar-se-á, assim, pela subsistência do
conteúdo histórico-institucional dos princípios fundamentais que conferem nota
distintiva ao direito do trabalho e pelo restabelecimento de sua eficácia por in-
termédio da adoção de mecanismos internacionais de proteção dos trabalhadores
22 Sobre o conteúdo das cláusulas sociais, Erika de Wet ressalta que estas deveriam levar em conta, pelo
menos, o direito à liberdade sindical e à negociação coletiva, nos termos das Convenções ns. 87 e 98
da OIT, a prevenção contra o trabalho forçado (Convenções ns. 29 e 105), a proibição de discriminação
(Convenções ns. 100 e 111) e a introdução de uma idade mínima para o trabalho (Convenção nº 138).
WET, Erika de. Labor Standards in the globalized economy, 17.3:443-462.
23 Algumas empresas multinacionais, em especial aquelas que operam no ramo do vestuário e se valem
da subcontratação de outras firmas situadas, principalmente, em nações asiáticas e latino-americanas
estabeleceram códigos de conduta após terem vindo à tona as péssimas condições de trabalho a que
estavam submetidos seus “colaboradores” daqueles países, cuja divulgação pela imprensa internacional
causou péssima repercussão em seus maiores mercados consumidores.
Vide, nesse sentido: SANYAL, Rajib. The Social Clause in Trade Treaties. Implications for International
Firms.
extremas ao objeto tutelado pelas cláusulas sociais. Tal hipótese teria lugar, a
título exemplificativo, ao se constatar que um determinado bem é fabricado com
a utilização de mão de obra infantil ou escrava ou que as condições laborais
nas fábricas são extremamente penosas a ponto de colocar em risco efetivo a
vida e a integridade física dos trabalhadores.
De outro turno, as políticas a serem adotadas pelo Estado no resguardo de
suas relações justas de trabalho deveriam estabelecer severas sanções cíveis e
mesmo criminais àquelas empresas sediadas em sua jurisdição que se valerem,
no exterior, de formas de trabalho contrárias àqueles standards mínimos de
proteção, de modo a prejudicar não só os trabalhadores do país receptor como
a coletividade obreira diretamente afetada no plano doméstico e, em última
instância, toda a sua sociedade.
De modo mais preciso, as legislações domésticas (e, naturalmente, os
aplicadores do direito) poderiam classificar tais práticas – em rol exemplificati-
vo – como violação a interesses coletivos e difusos e possibilitar aos sindicatos
obreiros e ao Ministério Público o ajuizamento de ações de indenização por
dano moral coletivo, estabelecendo-se a reversão dos montantes a um fundo
criado especialmente para a concessão de benefícios sociais aos trabalhadores
e à sociedade de maneira geral25.
Em complemento a tais medidas, as políticas estatais em apreço deveriam
condicionar a atuação das empresas que pretendem operar no exterior à adoção
de um código de conduta, a prever que sua atuação para além das fronteiras
nacionais pautar-se-ia, no mínimo, pela observância àquelas diretrizes elemen-
tares elencadas pela OIT em suas declarações de 1998, 2008 e 2009, sob pena
de sanções cíveis e criminais no plano doméstico.
Com a implementação dos mecanismos ora cogitados, em complemento
às cláusulas sociais a serem apostas nos tratados multilaterais de livre-comércio,
o direito do trabalho deixará de ser compreendido como um mero arcabouço
25 O interesse coletivo em questão é aquele titularizado pela coletividade obreira eventualmente preju-
dicada pelos investimentos feitos por parte da empresa no exterior com vistas a reduzir seus custos
produtivos à custa da exploração predatória de mão de obra oferecida pelo país receptor.
A fim de ilustrar tal situação, poder-se-ia pensar em uma firma hipotética do setor de confecções que
encerra uma unidade produtiva em um determinado país e a transfere para outro que tolera ou incentiva
a prática de dumping social. Nessa situação, os empregados demitidos no país de origem seriam os
titulares do interesse coletivo em sentido estrito vilipendiado pela empresa.
O interesse difuso, por sua vez, caberia a toda a sociedade do Estado de origem, que, com a transferência
da empresa para aquele país patrocinador de práticas lesivas aos direitos mínimos dos trabalhadores,
deixou de se beneficiar com o montante dos tributos que seriam arrecadados da firma, caso ela perma-
necesse sob sua jurisdição.
CONCLUSÃO
Pode-se até objetar o que foi dito acima sob a alegação de que as propos-
tas ora formuladas beiram o impossível, senão mesmo o utópico. No entanto,
há de se reconhecer que, ante a complexidade assumida pelas estruturas do
capitalismo nos dias atuais, as soluções fáceis para a neutralização de suas
distorções não se encontram disponíveis.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALBUQUERQUE, Rafael. “Sindicalismo y Globalización”. In: ALBUQUERQUE. Rafael; DE
BUEN. Nestor. El Derecho del Trabajo ante el nuevo milenio. México: Porrúa, 2000.
ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho. Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho.
2. ed. São Paulo: Boitempo, 2010.
BARBAGELATA, Héctor-Hugo. Curso sobre la evolución del pensamiento juslaboralista.
Montevideo: Fundación de Cultura Universitaria, 2009.
BERMAN, Harold. Direito e revolução. A formação da Tradição Jurídica Ocidental. São Leo-
poldo: Unisinos, 2006.
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. Lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006.
DE LA CUEVA, Mario. El nuevo Derecho mexicano del Trabajo. Tomo II. 14. ed. México:
Porrúa, 2006.
LEARY, Virginia. “The WTO and the Social Clause: Post Singapore”. In: European Journal of
International Law. 8(1): 118-122. Cambridge: Oxford University Press, 1997.
LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Globalização, regionalização e soberania. São Paulo:
Juarez de Oliveira, 2004.
LÓPEZ, Manuel Carlos Palomeque. Direito do Trabalho e ideologia. Coimbra: Almedina, 2001.
LYON-CAEN, Gérard; PÉLISSIER, Jean; SUPIOT, Alain. Droit du Travail. 19. ed. Paris:
Dalloz, 1998.
MACKLEM, Patrick. “Labour law beyond borders”. In: Journal of International Economic Law
(2002) 606. Cambridge: Oxford University Press.
MAIOR, Jorge Luiz Souto. Curso de Direito do Trabalho. Teoria Geral do Direito do Trabalho.
v. I – Parte I. São Paulo: LTr, 2011.
ROBORTELLA, Luiz Carlos Amorim. O moderno Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 1994.
SANYAL, Rajib. “The Social Clause in Trade Treaties. Implications for International Firms”.
In: Journal of Business Ethics. 29: 379-389. Amsterdam: Kluver, 2001.
SIQUEIRA NETO, José Francisco. Liberdade sindical e representação dos trabalhadores no
local de trabalho. São Paulo: LTr, 2000.
SUPIOT, Alain. El Espíritu de Filadelfia. La justicia social frente al mercado total. Barcelona:
Península, 2011.
______; et alii. Trabajo y Empleo. Transformaciones del trabajo y futuro del Derecho del Trabajo
en Europa. Valencia: Tirant lo Blanch, 1999.
VON POTOBSKY, Geraldo; DE LA CRUZ. Héctor Bartolomei. La Organización Internacional
del Trabajo. Buenos Aires: Astrea, 1990.
WET, Erika de. “Labor Standards in the globalized economy: The inclusion of a social clause
in the General Agreement on Tariff and Trade/World Trade Organization”. In: Human Rights
Quarterly. 17.3: 443-462. Baltimore: John Hopkins University Press, 1995.
ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho Dúctil. 6. ed. Madrid: Trotta, 2005.