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ENTRE A RIGIDEZ E A MUDANÇA: A

CONSTITUIÇÃO NO TEMPO
RIGIDITY AND FLEXIBILITY: THE CONSTITUTION
IN THE LONG RUN

JOSÉ EDUARDO FARIA


Professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da USP.

SUMÁRIO: Introdução – 1. As implicações éticas e morais das cláusulas pétreas


– 2. A Constituição entre a rigidez e a mudança – 3. O mercado e a segurança
do direito – 4. Bibliografia.

RESUMO: Neste texto, a discussão, ao situar-se mais no âmbito da Sociologia


Jurídica do que no campo do Direito Público, busca questionar a eficácia dos direitos
adquiridos em sociedades tão dinâmicas e cambiantes quanto a brasileira, tendo
como pano de fundo a questão da longevidade e da efetividade das constituições.
O texto circunscreve-se na elucidação do paradoxo entre a política e a ética no que
se refere às chamadas cláusulas pétreas, ante a adequação da ordem constitucional
às reais possibilidades econômicas do país. Diante das novas demandas de uma
economia de mercado (globalização econômica), a experiência de uma solução
politicamente negociada pode apresentar-se como um recurso viável para que não
se perca o emprego de meios democráticos que assegurem uma ordem jurídica
respeitada e eficaz.

PALAVRAS-CHAVE: constituição, sociedade de mercado, direito estatal, poder


constituinte.

ABSTRACT: The discussion in this article revolves around the Juridical Sociology field
of knowledge rather than the Public Law area. It questions whether the acquired rights
are effective, in a society as dynamic and changeable such as the Brazilian society.
The issue of Constitutional longevity and effectiveness serves as the background for
this analysis. The author tries to enlighten the paradox between politics and ethics
concerning the “stony clauses” (unchangeable clauses) in cases when the constitu-
tional order must adapt to the real economic conditions in Brazil. Considering the
market economy new demands (global economy), the experience of a politically settled
solution may be a resource in preserving the course of democracy to ensure the rule
of law is respected and effective.

KEYWORDS: Constitution, free market society, state law, constitutional power.

Recebido para publicação em setembro de 2003.


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Introdução textos econômicos, políticos e culturais


distintos dos que lhes deram origem? Até
Se nas discussões em matéria de Di- onde é possível reformar um texto cons-
reito Público as questões relativas à vali- titucional sem uma ruptura formal com os
dez e ao controle da constitucionalidade critérios e procedimentos que ele mesmo
das leis são as mais recorrentes, no âmbito estabelece ao definir os limites materiais
da Sociologia Jurídica o debate sobre esse de revisão de suas normas e princípios?
tema tende a se concentrar em torno da Essas questões não são originais. Elas
eficácia das constituições – mais precisa- ganharam presença na academia e na mídia
mente às condições sociais, econômicas, após o advento das extensas e prolixas
políticas, culturais, ideológicas e até an- constituições pós-autoritárias da década de
tropológicas para a aceitação e cumpri- 70. É o caso das cartas espanhola, portu-
mento das normas constitucionais. E ao guesa e brasileira. E entre nós foram
contrário da tradição do Direito Público, recolocadas em debate por causa das refor-
que vê a eficácia numa dimensão basica- mas estruturais, especialmente a previden-
mente formal, ou seja, como o poder de ciária, e a oposição a elas por parte de
produção de efeitos jurídicos concretos na servidores públicos, militares e operadores
regulação de situações, relações e compor- de direito, como juízes e promotores, que
tamentos previstos pela ordem constituci- perderam o direito à aposentadoria com
onal, a Sociologia Jurídica já a encara vencimentos integrais. Segundo essas cor-
como uma questão de fato e como uma porações, a Constituição em vigor, promul-
questão de valor. Como questão de fato, gada em 5 de outubro de 1988, inclui o
a eficácia diz respeito à conformidade princípio do direito adquirido no inciso
entre as normas estabelecidas pelo legis- XXXVI de seu art. 5.º, que cataloga um
lador constitucional e os resultados por enorme rol de direitos individuais e cole-
elas efetivamente alcançados num determi- tivos. E como o art. 60 converteu o extenso
nado contexto socioeconômico e político- art. 5.º em “cláusula pétrea”, por conseqü-
administrativo. Como questão de valor, ela ência lógica os direitos adquiridos – entre
está relacionada à correspondência entre eles a aposentadoria com vencimentos in-
os fins e as exigências de uma dada Carta tegrais, por parte do funcionalismo – teriam
e as expectativas de eqüidade, as deman- adquirido um caráter permanente e defini-
das por justiça, as pautas éticas e os tivo.
interesses sociais democraticamente com- Esse argumento e as reações contrárias
partilhados. trouxeram à tona a tensão entre o poder
Situado mais no âmbito da Sociologia constituinte originário e o poder constitu-
Jurídica do que no campo do Direito inte dele derivado. O primeiro é o que
Público, o objetivo deste trabalho é dis- estabelece uma ordem constitucional. O
cutir a eficácia dos direitos adquiridos em segundo tem a prerrogativa de alterar essa
sociedades tão dinâmicas e cambiantes ordem, mas dentro dos limites e dos pro-
como a brasileira, tendo como pano de cedimentos por ela previamente estabele-
fundo a questão da longevidade e da cidos. Nesse sentido, afirmam os teóricos
efetividade das constituições. De que modo do direito constitucional, não caberia ao
preservá-las do inexorável desgaste do poder revisor – um poder constituído –
tempo, permitindo sua adequação a con- afastar-se do horizonte imposto que lhe foi

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imposto pelo poder originário – um poder pétrea, por vezes não se revela uma medida
constituinte. antidemocrática, restringindo o campo de
ação de maiorias parlamentares legitima-
1. As implicações éticas e morais das mente escolhidas a cada nova eleição? Por
cláusulas pétreas fim, como evitar o risco de que o “excesso
de Constituição” não acaba tendo o efeito
Na aparência, essas distinções e esses perverso de obrigar operadores políticos e
limites parecem claros. Na prática, contu- jurídicos a terem de fazer leituras compla-
do, eles encerram pelo menos dois proble- centes de suas normas, com o objetivo de
mas. Um é de caráter político e está “salvar” a Constituição para a realidade e
associado à compatibilidade da rigidez adequá-las à mutação das circunstâncias
constitucional, expressa sob a forma das históricas? (Moreira, 2001: 272). De que
cláusulas pétreas, com a própria essência modo impedir que esse “excesso da Cons-
da democracia. O outro problema é de tituição” não resulte, contraditoriamente,
natureza essencialmente ética e tem impli- num perigoso déficit de normatividade
cações transgeracionais. constitucional?
Em termos políticos, um texto constitu- Desse problema político decorre o pro-
cional sempre representa um limite decisó- blema ético acima referido. Ele se expressa
rio à vontade popular. Em nome da con- sob a forma de um paradoxo. Na perspec-
sagração de determinadas liberdades, ele tiva do poder constituinte originário, a
impõe determinadas restrições. Ou seja: maioria que elabora, aprova e promulga
institucionaliza direitos e obrigações. Esta- uma Constituição reivindica um corte ju-
belece prerrogativas e deveres. Promulgar rídico com o passado, ao mesmo tempo em
uma Constituição significa assim limitar a que se arvora ao direito de poder vincular
liberdade da maioria em cada momento o futuro. Todavia, por mais democrática
histórico. Por conseqüência, lembra um que seja no momento de sua promulgação,
arguto analista, quanto mais Constituição, é moralmente aceitável que um texto cons-
mais limitação do princípio democrático. titucional possa, com seus dispositivos de
“Constitucionalizar é colocar fora do co- intangibilidade ou irreversibilidade materi-
mércio político, fora do alcance da vontade al, sob a forma de cláusulas pétreas, blo-
da maioria tudo aquilo que é constitucio- quear a capacidade de autodeterminação
nalizado”, diz ele (Moreira, 2001: 272). No jurídica das gerações vindouras? É justo
âmbito político, por isso mesmo, o proble- que esse texto constitucional, por mais
ma é saber até que ponto as normas nobres e generosas que sejam suas inten-
constitucionais relativas aos limites mate- ções, possa impor compulsoriamente às
riais de revisão não se traduzem em pre- gerações futuras obrigações de cunho fi-
juízo do princípio da regra de maioria que nanceiro e encargos fiscais vindos do pas-
caracteriza o regime democrático. sado?
Nesse sentido, em que medida um poder Como sair dessa armadilha e escapar
constituinte originário pode impor ad eter- desse paradoxo, principalmente quando
nitates uma vontade democrática para o essa Constituição está excessivamente
futuro? Em que medida a limitação na marcada pela conjuntura social, e política
liberdade de revisão material de um texto de sua origem, como é o caso da nossa?
constitucional, prevista por uma cláusula Uma saída polêmica contrapõe a idéia do

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poder constituinte originário como ato trabalho, relativa ao alcance, à efetividade


unigênito e unimomentâneo à idéia de um e à longevidade de uma Constituição.
poder constituinte evolutivo, ou seja, de
um poder constituinte visto como um 2. A Constituição entre a rigidez e a
processo capaz de acompanhar a dinâmica mudança
da realidade socioeconômica sem subjugar
as atuais gerações a determinações do Qual é a força da Constituição no
passado. Essa foi a experiência portugue- mundo contemporâneo? Que papel deve
sa, cuja Constituição de 1976, repleta de ela exercer num período histórico marcado
cláusulas pétreas, já sofreu quatro revi- pelo alto grau de concentração de renda e
sões. Como foi isso possível? A resposta profundas desigualdades no acesso a ser-
é dada pelo já mencionado por Vital viços e benefícios públicos, em termos
Moreira, o brilhante jurista coimbrão que, sociais, e pela concentração do poder
como constituinte, tanto lutou para dar um empresarial, acirramento da concorrência,
caráter dirigente e ideologicamente com- independência global dos mercados finan-
prometido à Carta portuguesa de 1976, ceiros e crescente porosidade das fronteiras
tendo sido, 21 anos depois, o responsável nacionais, em termos político e econômi-
por sua quarta revisão. Por um lado, diz cos? E, no caso específico de sociedades
ele, passou-se a promover uma interpre- tão diferenciadas, heterogêneas e injustas
tação soft das cláusulas pétreas, reduzindo- como a brasileira, de que modo pode uma
as mais à salvaguarda de princípios gené- Constituição continuar exercendo dois atri-
ricos do que à garantia de direitos con- butos básicos – o de estatuto organizador
cretos assegurados por uma Constituição de poderes políticos e processos decisórios,
eminentemente conjuntural. Por outro, por um lado, o de estatuto definidor do que,
passou-se a admitir com maior flexibili- como e quando dirigentes e legisladores
dade a revisão dos próprios limites mate- têm de fazer para implementar princípios
riais de revisão, suavizando alguns dos e medidas de caráter social e natureza
limites originários, o que libertou para distributiva?
futuras revisões matérias que de outro No primeiro item deste trabalho discuti
modo não poderiam ser sequer alteradas. essas questões do ponto de vista ético,
“A imodéstia constituinte dificilmente fica perguntando se é moralmente aceitável que
impune e o poder constituinte evolutivo um texto constitucional, por mais genero-
acaba por ser a sanção da imodéstia e da sos que sejam seus objetivos, possa impor
arrogância do poder constituinte, quando compulsoriamente às gerações futuras obri-
ele não é capaz de ousar acima da con- gações financeiras e encargos fiscais vin-
juntura da sua própria época”, conclui dos do passado. Neste item, minha preo-
(Moreira, 2001: 273). cupação agora é com a funcionalidade da
Evidentemente, essa estratégia de “re- Constituição, como lei ou norma funda-
forma constitucional sem solução de con- mental.
tinuidade formal” não é nada pacífica e sua À luz da intensificação dos fluxos co-
factibilidade é no mínimo discutível. Mes- merciais e financeiros em âmbito transna-
mo assim, e por isso mesmo, vale a pena cional e da “desterritorialização” das novas
discuti-la de novo mais detalhada, recolo- formas de produção capitalista, não é di-
cando em termos a questão inicial deste fícil ver como o potencial de eficácia de

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constituições tão extensas, prolixas e pro- ficando sua interpretação condicionada pelas
gramáticas, como a brasileira de 1988, vem circunstâncias do momento, a partir dos
diminuindo. Ao exigir novos padrões de interesses em conflito e da capacidade de
contratualidade, formas jurídicas mais fle- negociação de cada geração. Com isso, o
xíveis e uma institucionalidade complexa, campo das realizações de políticas públicas
a integração dos mercados e a formação de é deslocado para o âmbito da legislação
grandes blocos comerciais transnacionais ordinária, cujos critérios de revisão são
reduziram o alcance dos poderes legislati- muito mais simples do que os de um texto
vo, administrativo e judicial antes conside- constitucional. É esse processo que foi
rados exclusivos dos Estados e diluíram a chamado no item anterior de “poder cons-
soberania nacional numa rede de foros tituinte evolutivo”, um provocativo jogo de
internacionais e organismos multilaterais. palavras concebido para denunciar o gran-
Com isso, as regras daí advindas passaram de pecado dos defensores da idéia de poder
a coexistir com as normas constitucionais, constituinte originário como um poder
competindo entre si em diferentes âmbitos absoluto e imutável – a incontinência, a
de validez material, espacial e temporal e imodéstia, a arrogância e a soberba de
obrigando os governos a promover suces- pensar que o legislador constitucional es-
sivas revisões em seus ordenamentos jurí- tava num momento demiúrgico da história
dicos, para harmonizá-las. e dispunha de autoridade e legitimidade
Na dinâmica desse processo, fortemente para disciplinar para todo o futuro as
determinado pelas relações de poder inte- maiorias democráticas, subtraindo-lhes a
restatais assimétricas que caracterizam a liberdade pelo recurso às cláusulas pétreas
integração econômica mundial, o tradicio- (Moreira, 2001: 288).
nal papel da Constituição como norma Privada assim de suas funções unifica-
fundamental ou “lei das leis” foi perdendo doras, a Constituição perde seu caráter
sentido. À medida que todo o direito estatal absoluto, de texto intocável, não conse-
teve sua exclusividade posta em xeque e guindo mais dotar suas normas de um
mercados globalizados e organismos mul- significado concreto determinado a priori.
tilaterais foram progressivamente criando Pelo contrário, no atual contexto de poli-
as normas de que necessitam para resolver centrismo decisório e pluralismo jurídico,
litígios transnacionais, a própria Constitui- esse significado agora só pode ser determi-
ção acabou ficando diante de uma encru- nado a posteriori, em função das tensões,
zilhada. Como ignorar processos econômi- problemas e dilemas decorrentes da velo-
cos e políticos que transcendem os limites cidade, intensidade e complexidade socio-
do território por ela coberto, mas que econômica do mundo contemporâneo. Em
influenciam de modo decisivo a aplicabi- outras palavras, no lugar do caráter fecha-
lidade de suas normas e comprometem sua do, unívoco e predeterminado das normas
eficácia? constitucionais e da idéia que o poder
Para fugir dessa encruzilhada, as cons- constituinte originário se extingue no ato
tituições contemporâneas foram submeti- unigênito e unimomentâneo de produção
das a reformas ainda mais amplas do que da Constituição está surgindo um direito
as anteriores, com o expurgo de normas constitucional novo, fundado sobre um
rígidas, a relativização dos limites de revi- conjunto de matérias normativas mais fle-
são e a utilização de normas mais abertas, xíveis, permitindo a adaptação do texto

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constitucional às circunstâncias do mo- para a cidadania: o desafio da preservação


mento. da segurança do direito. Este é o tema do
Não podendo mais ser pensada como próximo item deste trabalho.
um centro do que tudo deriva por irradi-
ação lógico-formal, alicerçado na sobera- 3. O mercado e a segurança do direito
nia do Estado, nem como documento sa-
grado ou “condensado” de políticas públi- Se a interpretação do direito há tempos
cas (Canotilho, 1996: 16), a Constituição vinha sendo condicionada à existência ou
é agora um centro para o qual algumas não de recursos disponíveis no caixa do
matérias fundamentais podem afluir. Em Tesouro Nacional, por causa da crise fiscal
outras palavras, ela é mais um centro a do Estado, com o debate sobre a reforma
alcançar do que um centro do qual se deve da Previdência os defensores da tesouraria
partir. Numa situação-limite, é um centro teriam avançado na hermenêutica, subme-
de convergência de valores em cujo âmbito tendo a Constituição e o direito constitu-
teriam caráter absoluto apenas duas exigên- cional a interpretações de conteúdo exclu-
cias fundamentais mínimas. Do ponto de sivamente financeiro. Esta tem sido a in-
vista substantivo, os direitos de cidadania tervenção de alguns importantes juristas
e a manutenção do pluralismo ideológico, nessa polêmica, preocupados com a inver-
mediante a adoção de mecanismos capazes são de meios e fins no âmbito da ordem
de preservar as liberdades de opinião, jurídica brasileira (Ramos, 2003: 7).
informação e participação. Do ponto de Quanto maior a discricionariedade dos
vista procedimental, as garantias para que governantes, a ponto de legislar para situ-
o jogo democrático seja travado dentro de ações passadas, menor a certeza jurídica –
regras precisas e estáveis, ainda que des- este seria, na ótica desses juristas, o efeito
pidas de prescrições extensivas e detalha- mais corrosivo de uma “razão econômica”
das. que, situada fora do domínio das determi-
No entanto, é importante reconhecer nações legais e deixada sem um efetivo
que as metamorfoses ocorridas no papel da controle constitucional, conduziria à pro-
Constituição acarretam custos, em termos gressiva erosão do Estado de Direito. Nesse
de redução do alcance da política e esva- sentido, na medida em que as premissas da
ziamento das possibilidades de substituição decisão econômica não são regras que
do modelo econômico em vigor – em precisam ser obedecidas de modo estrito,
suma, de diminuição do potencial transfor- mas recursos avaliados do ponto de vista
mador da própria democracia. A polêmica de sua adequação para a consecução de
em torno dos limites à revisão da Consti- determinados objetivos, o direito seria re-
tuição de 1988, que foi deflagrada pela duzido a mero instrumento de poder.
reforma da Previdência, só teria a ganhar Quanto menor a estabilidade macroeco-
se muitos de seus participantes levassem nômica, maior a taxa de risco do País e
em conta essas indagações. Afinal, ao menor é o crédito financeiro – esta tem sido
invocar uma concepção excessivamente a reação dos defensores da reforma da
rígida e formalista de ordem constitucional Previdência, para quem o excesso de for-
para justificar direitos adquiridos, eles malismo dos juristas desestabiliza a moeda,
deixam de lado um problema fundamental nega aos governantes liberdade para gestão
que as reformas estruturais podem trazer de pessoal e preserva “privilégios” política

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e moralmente condenáveis de determina- jurídicas e dos próprios setores da socie-


das corporações, inviabilizando a retomada dade contra a reforma” (BBV – Área de
do crescimento e a geração de empregos. Pesquisa e Estudos Macroeconômicos,
“Direitos adquiridos têm de ser respeita- comentário semanal, 31 de janeiro de 2003).
dos”, afirmam os porta-vozes e articulado- Com o já mencionado acirramento da
res dessa reforma, justificando-a em nome competição global, e que levou à interna-
de um senso de justiça. “Mas, na verdade, cionalização da oferta de crédito, ao au-
existem direitos que foram mal adquiridos. mento da volatilidade dos capitais e à
Por exemplo, uma aposentadoria de R$ disseminação dos riscos sistêmicos, a assim
30.000,00, num País como o nosso, pode chamada “globalização econômica” modi-
ser construída segundo a lei, mas ela jamais ficou as noções de espaço e tempo, solapou
terá sido construída segundo o direito” as tradicionais formas de organização po-
(Genro, 2003: 4). lítico-territorial e abriu caminho para que
Nos itens anteriores, discuti essa ques- a política fosse progressivamente substitu-
tão à luz da tensão entre poder constituinte ída pelos mercados, como instância de
originário e as transformações da economia regulação social. Com isso, pôs em xeque
contemporânea, lembrando (com base em a exclusividade das estruturas jurídicas do
Moreira: 2001) que o excesso de rigidez Estado, reduziu as margens de autonomia
constitucional, sob a forma de cláusulas das políticas macroeconômicas nacionais e
pétreas, pode ter o efeito inverso e perigoso esvaziou as políticas monetárias indepen-
de levar a leituras complacentes da própria dentes, abrindo caminho para os mais
Constituição. Se por um lado essa estraté- diversos conflitos de competência entre
gia permite adequar suas normas às cir- poderes locais e centrais, nacionais e inter-
cunstâncias do momento, a partir dos in- nacionais, infra-estatais e supra-estatais.
teresses em conflito e da capacidade de Em princípio, qualquer governo nacio-
negociação de cada geração, por outro ela nal poderia recusar-se a vincular decisões
encerra o risco de reduzir o alcance da internas aos imperativos dos mercados trans-
política e passar por cima de determinadas nacionalizados, com o objetivo de preser-
garantias fundamentais, comprometendo a var a independência na definição de sua
segurança do direito. Agora retomo essa agenda política. Mas, em face da crescente
discussão para tentar identificar as contra- mobilidade dos fatores de produção, dos
dições que, como decorrência da ambigüi- riscos de fuga em massa de capitais e das
dade com que mercados cada vez mais dificuldades de acesso a fontes de crédito
integrados estão tratando a ordem jurídica e tecnologia, os custos econômicos e so-
estatal, envolvem o tema da segurança do ciais de uma opção hostil aos mercados
direito. A expressão em itálico pode ser acarretariam um perigoso isolamento co-
forte, à primeira vista, mas a estranheza mercial, financeiro, tecnológico e cultural.
inicial passa quando se vê newsletters de Diante disso, e conscientes de que ne-
instituições financeiras afirmando que “le- nhum programa será sustentável por muito
var a discussão da Previdência para o tempo, os governos aprenderam que; ou
Conselho de Desenvolvimento Econômico atuam como guardiões da moeda e assu-
pode ser um ótimo caminho para se obter mem os compromissos fiscais e monetários
um consenso mínimo em torno da questão pedidos pelo mercado, não medindo esfor-
e, dessa forma, minar resistências políticas, ços para promover reformas estruturais

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com o objetivo de garantir crédito, ou as incerteza jurídica e a instabilidade institu-


incertezas decorrentes de suas dificuldades cional têm um impacto altamente negativo
de ação e hesitação em matéria de auste- no desempenho das empresas, na proteção
ridade fiscal e estabilidade monetária intro- legal dos créditos, na definição das propri-
duzem fatores adicionais de risco nos ne- edades material e intelectual e dos proce-
gócios, aumentando os spreads bancários dimentos para sua transferência na inova-
e desestimulando investimentos de médio ção produtiva e na captação de investimen-
e longo prazo. tos de médio e longo prazo, pondo assim
Para evitar esse risco, muitos governos em risco a qualidade das políticas macro-
passaram a reformar sua infra-estrutura econômicas.
legal, formulando projetos de deslegaliza- Eis aí a essência da questão. Na demo-
ção e desconstitucionalização para revogar cracia, a segurança do direito fundado em
vinculações orçamentárias, anular cláusu- lei ou vale para todos, indistintamente, ou
las pétreas e suprimir direitos adquiridos e, a dualidade de tratamentos, como a que tem
com isso, assegurar a confiança dos mer- sido reclamada pelos mercados, tira a
cados. É justamente daí que surge o con- seriedade do debate sobre o alcance e a
fronto entre a “razão jurídica” e a “razão vitalidade da ordem constitucional e põe
econômica”, anteriormente mencionado. A em risco a legitimidade do próprio regime.
forte reação corporativa do Judiciário e das Por isso, diante do desafio trazido pela
forças armadas, na medida em que seus reforma da Previdência, de compatibilizar
integrantes são atingidos por essas medi- certeza jurídica com viabilidade financeira,
das, é só um dos lados do problema. o importante é não se deixar levar nem
O outro lado, bem menos visível a olho pelos argumentos daqueles para quem di-
nu, é o das contradições que envolvem a reitos adquiridos são “prerrogativas histo-
questão da segurança do direito. Afinal, os ricamente estabelecidas” e pertencentes à
mercados que reclamam e apóiam amplas sociedade”, como têm afirmado algumas
estratégias de deslegalização e desconstitu- “cartas de protesto” de determinadas cor-
cionalização de determinados direitos são porações estatais, nem pelas teses simplis-
os mesmos que também reivindicam um tas e simplórias daquelas que acreditam
clima de estabilidade institucional e um bastar boas intenções e senso de justiça
“ambiente saudável” para os negócios para justificar sua revogação sumária, com
(Banco Mundial: 2002), por meio de uma o atropelo do processo legislativo definido
infra-estrutura legal que preserve o direito pela Constituição. É, isto sim, trazer a
de propriedade, assegure o cumprimento de discussão para uma questão preliminar – a
contratos, proteja investimentos externos e adequação da ordem constitucional às reais
garanta o reconhecimento de patentes, possibilidades econômicas do País por meios
pagamento de royalties, liberdade de re- absolutamente democráticos.
messa de lucros etc. Como afirmei antes, ao contrapor a
E o argumento para justificar essa pre- tradicional concepção de poder constituin-
tensão, curiosamente, é o de que a insegu- te originário à provocativa idéia de poder
rança do direito gera um ambiente adverso constituinte evolutivo, do ponto de vista
aos negócios, inviabiliza o planejamento estritamente jurídico-formal talvez não haja
público, empresarial ou individual e mul- uma saída técnica passível de consenso,
tiplica os custos das transações. Ou seja, a capaz de conciliar juristas e financistas,

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beneficiários dos direitos adquiridos e os ordem jurídica que, além de respeitada,


responsáveis pela tesouraria. Por isso, se também seja eficaz.
estiver certo em minha análise, não haverá
outra alternativa para a questão dos direitos 4. Bibliografia
adquiridos no âmbito da reforma previden-
ciária a não ser a negociação política. A CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Rever ou
vida do direito, como já dizia há muito romper com a Constituição dirigente? De-
tempo o respeitado juiz Oliver Wendell fesa de um constitucionalismo moralmente
Holmes, numa passagem clássica, não tem reflexivo. Revista dos Tribunais, São Paulo:
sido lógica, tem sido experiência. “The RT, 1996. n. 15.
actual life of the law has not been logic: GENRO, Tarso. Não pode haver guerra entre
it has been experience. The felt necessities ricos e pobres. Jornal do Brasil, Rio de
of the times, the prevalent moral and Janeiro, 02.02.2003.
political theories, intuitions of public po- HOLMES, Oliver Wendell. The common law.
licy, avowed of unconscious, even the Apud DEWEY, John. Logical method and
prejudices which judges share with their law. Cornell Law Review, Ithaca, 1924. n.
10.
fellow-men, have had a good deal more to
do than the syllogism in determining the MOREIRA, Vital. Constituição e democracia na
experiência portuguesa. Constituição e de-
rules which men should be governed”
mocracia. Org. Antonio G. Maués. São
(Holmes: 1924). Paulo: Max Limonad, 2001.
Só por meio de um “experimento” desse RAMOS, Saulo. Previdência, imprevidência de
porte, por meio de uma negociação tensa, constituinte. O Globo, Rio de Janeiro,
delicada e difícil como será concluída, é 24.01.2003.
que, a meu ver, se conseguirá eliminar o WORLD Bank. Building Institutions for Markts,
tratamento contraditório que os mercados Washington, word Development Report
dão à segurança legal e assegurar uma 2002, Oxford University Press, 2002.

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