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Fórum Administrativo ‐ FA

Belo Horizonte, ano 9, n. 103, set. 2009

Controle judicial de políticas públicas: possibilidades e limites1


Maria Paula Dallari Bucci

Palavras­chave: Controle judicial (políticas públicas). Controle judicial (limites). Controle judicial
(objeto).

Sumário: Parte 1 ­ O controle judicial como instrumento da força normativa da Constituição e das
leis ­ a) Possibilidades ­ b) Limites ­ b.1) Papel subsidiário do Poder Judiciário em matéria de
iniciativas para concretização de direitos ­ b.2) Argumentos doutrinários sobre os limites do
controle judicial ­ b.3) Examinando mais de perto o objeto do controle judicial ­ Parte 2 ­ Alguns
exemplos concretos ou "o que você faria se fosse o gestor público?" ­ a) Possibilidades ­ Política de
prevenção da Aids ­ b) Limites ­ Vagas em creches ­ Conclusão ­ Conjugando possibilidades e
limites

Parte 1 ­ O controle judicial como instrumento da força normativa da Constituição e das


leis

a) Possibilidades

A possibilidade de controle judicial para a garantia do exercício é o que faz das normas de direitos
fundamentais prescrições obrigatórias, no sentido fático. Como se sabe, o direito subjetivo é aquele
dotado de ação para exigir o seu cumprimento. Essa possibilidade, alçada à Corte Suprema do país,
aparelhada dos mecanismos processuais necessários, garante a força normativa de uma
Constituição, de modo que essa supere a condição de mera folha de papel.

A grande inovação do constitucionalismo europeu do pós­guerra, que se irradiou para toda sua
área de influência, é a existência desse aparato institucional de garantia de cumprimento, com a
atuação dos Tribunais Constitucionais. Mesmo chegando mais tarde em alguns países, a diretriz
relativa à obrigatoriedade da existência de uma corte independente para o julgamento da matéria
constitucional, assimilada oficialmente pelas instâncias dirigentes da União Européia, levou à
quebra de paradigmas, de que é exemplo eloqüente a decisão sobre a criação da Corte
Constitucional na Inglaterra, pelo Constitutional Reform Act, aprovado no governo trabalhista em
2005.2

A superação do positivismo formalista, com a introdução da dimensão axiológica nas normas, e o


desenvolvimento de padrões de interpretação e aplicação baseados na coexistência de princípios e
regras igualmente impositivos, confere à jurisdição papel mais ativo na efetivação dos direitos
prescritos na Constituição e na legislação. Em que pese a percepção de um certo exagero ou
"euforia principiológica",3 a demandar a busca por um ponto de equilíbrio, é certo que a prática e a
cultura jurídica de um país de dimensões continentais como o Brasil civilizam­se com a existência
de referenciais de sentido axiológico­normativo cogentes em qualquer tempo, lugar e
circunstância, em face das pessoas ou dos poderes instituídos, sejam eles públicos ou privados.

Que os tribunais — e os atores da cena jurídica, partes, advogados, Ministério Público, associações
e organizações — se dediquem a explorar ao máximo as fronteiras para a tutela dos direitos

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fundamentais no âmbito do processo judicial, é não apenas meritório, mas um eixo importante da
evolução do significado concreto das prescrições jurídicas para os agentes do processo político,
governantes, parlamentares e grupos de interesse. Que a teoria jurídica se debruce sobre esse fato
e procure alargar as fronteiras de aplicação de seus conceitos fundamentais, à luz desse novo
papel, como tem acontecido no direito constitucional mais recente no Brasil, é bastante auspicioso.

b) Limites

b.1) Papel subsidiário do Poder Judiciário em matéria de iniciativas para concretização


de direitos

No entanto, nos países periféricos, que receberam por inspiração o modelo constitucional da
reconstrução da Europa no pós­guerra, a percepção da importância dessa inovação e a abertura de
possibilidades antes inéditas no campo da interpretação constitucional têm ofuscado a consciência
de que a elevação do patamar da cidadania depende mais de alterações estruturais na organização
e no funcionamento do Estado e do sistema econômico do que das decisões do Poder Judiciário,
cujo papel é subsidiário, em matéria de políticas públicas.

A evolução recente do tema revela, a meu ver, uma certa hipertrofia do olhar focado na atuação
judicial para concretização dos direitos, em especial os direitos sociais. E não se dá conta da
insuficiência da prescrição constitucional do catálogo de direitos para as tarefas necessárias à
implementação da igualdade social.

Os desafios do desenvolvimento, que podem levar à superação das desigualdades de renda e


oportunidades, reclamam a modificação de estruturas econômicas, políticas e sociais produtoras e
reprodutoras de desigualdade e exclusão. A minimização desse fato, mais significativa no contexto
acadêmico que no judicial, desvia atenção de questões mais centrais para o tema, como a
persistência da desigualdade de renda, num cenário de crescimento econômico, no qual seria
possível, em certa medida, a outorga de prestações sociais, sem a modificação das estruturas
geradoras da pobreza.

Cria­se uma sobrecarga de expectativas em relação às reais possibilidades da enunciação


constitucional dos direitos, em detrimento das condicionantes — também constitucionais — ligadas
ao processo político, às estruturas regionais do poder, à permanência das condições de exercício
das forças econômicas dominantes etc.

Os direitos fundamentais constituem, inequivocamente, a referência normativa principal de um


patamar mínimo de civilidade, ponto de partida e de chegada. Entretanto, o enfrentamento dos
mecanismos sociais, políticos e econômicos geradores da exclusão requer a compreensão mais
alargada dos elementos e processos pelos quais se exercem a dominação e a privação de direitos
na sociedade brasileira, inteiramente permeados de institucionalização jurídica.

A experiência pós­constitucional mostra que é necessária nova superação, de modo que não nos
limitemos à interpretação jurídica e não nos atenhamos ao direito posto, seja o texto constitucional
sejam a legislação e normas infra­legais. Isso não significa, evidentemente, a defesa do direito
alternativo, a interpretação contra lei, mas, ao contrário, a ocupação de vazios existentes nos
espaços tradicionais e legítimos de criação do direito.

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O papel da norma e o significado do processo legislativo são temas que, salvo raras exceções, não
vêm sendo contemplados pelo constitucionalismo nacional mais recente. A desproporção entre o
número de trabalhos sobre interpretação constitucional e sobre as condições do exercício do poder
político é bastante elevada e faz pensar. Numa pauta européia de pesquisa em direito público,
talvez se explicasse essa opção, vez que o processo político está relativamente estabilizado e
maduro.

Entre nós, contudo, o processo de elaboração da norma, seja legislativo, em sentido estrito, seja o
que compreende a formação dos projetos de lei e normas infra­legais no âmbito do Poder
Executivo, tem merecido pouca atenção sistemática nos estudos do direito público. E esse
conhecimento é necessário quando se deseja passar de um olhar retrospectivo do fenômeno
jurídico a um olhar prospectivo.

A presença dos profissionais jurídicos nos processos de renovação do direito tem se dado, com mais
freqüência, por meio das representações de classe, entidades de magistrados, membros do
Ministério Público ou advogados. A contribuição da ciência jurídica mais qualificada como subsídio
para a elaboração normativa e como caixa de ressonância dos seus efeitos sobre o sistema jurídico
tem se revelado um tanto acanhada. Pode­se dizer, com certo exagero, em relação ao tema da
efetivação dos direitos sociais, que os juristas se desinteressaram das tarefas de entender, explicar
e orientar — por que não? — a organização do Estado e suas injunções jurídicas, preferindo armar­
se para as batalhas judiciais em torno da questão.

É possível que essa abordagem se explique em razão da crise de legitimação do poder e da


representação políticos, cujos loci são o Poder Executivo e o Poder Legislativo. O exercício do poder
político entre nós está muito longe de um padrão racional, apreensível pelo direito. A política
brasileira, dizia um professor de direito familiarizado com o ambiente parlamentar, está mais perto
de ser explicada pela antropologia, com seus conhecimentos sobre tribos, clãs e famílias no poder.

Mas é forçoso reconhecer que o período que se segue à promulgação da Constituição de 1988 tem
visto um amadurecimento institucional, esse sim, sem precedentes na história do país. E uma
expressão desse amadurecimento há de se traduzir no enfrentamento mais sistemático do uso dos
meios à disposição do Estado para a implementação da cidadania e dos direitos sociais.

b.2) Argumentos doutrinários sobre os limites do controle judicial

Alguma coisa se tem escrito sobre as limitações do processo judicial para o controle de políticas
públicas.4 Os argumentos encontrados com maior freqüência são de duas grandes ordens, a
primeira, de cunho político­institucional, e a segunda, de cunho econômico­financeiro, e essas, por
sua vez, se subdividem da seguinte maneira:

I) Argumentos de ordem político­institucional:

­ Separação de poderes, com base no art. 2º da Constituição Federal;

­ Déficit democrático do Poder Judiciário;5

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­ Limitações técnicas do Poder Judiciário para apreciação das políticas públicas em toda
sua complexidade;

­ Discricionariedade administrativa;

II) Argumentos de ordem econômico­financeira: "reserva do possível":

­ Questão da iniciativa das políticas públicas: Poder Executivo (CF, art. 61, §1º, II, a e
b) e Poder Legislativo.

Quanto ao primeiro grupo de argumentos, a matriz da separação de poderes sintetiza o problema


político. O então juiz federal, hoje deputado, Flavio Dino de Castro examinou a questão a partir da
indagação sobre o caráter absoluto de limites impostos à função de julgar, exercida pelo Poder
Judiciário. E conclui refutando a tese, uma vez que "não há incompatibilidade principiológica entre
o exercício do controle jurisdicional sobre a atuação sobre os demais Poderes e o postulado inscrito
no art. 2º da nossa Constituição".6 Na verdade, entendo que a invocação desse argumento, tout
court, como obstáculo para apreciação de atos do Poder Executivo pelo Poder Judiciário faz parte
de uma tradição anterior à Constituição de 1988. Essa abordagem, contemporânea à figura dos
"atos de governo", insuscetíveis de controle judicial, encontra­se, como aquela, em grande medida
superada na prática e na teoria pelo exercício de controles judiciais, que se dá em relação ao
processo de produção dos atos e decisões do Poder Público, à motivação e até mesmo em relação à
razoabilidade de seu teor. No mesmo sentido evoluiu a doutrina das questões políticas, que
impunha ao Supremo Tribunal Federal autocontenção em assuntos vinculados à vida político­
institucional do país. "A regra agora é o controle judicial das questões políticas; a exceção, o
exercício pelo Tribunal de sua autocontenção."7

Caíram, portanto, os círculos de imunidade absoluta do poder político ao controle jurisdicional. O


que, todavia, torna o problema mais complexo, na medida em que se faz necessário definir
parâmetros e critérios dentro dos quais o exercício do controle é legítimo. A atuação judicial
revisora dos atos do Poder Executivo ou Legislativo, a toda evidência, não pode usurpar as
atribuições próprias daqueles Poderes, cujos titulares neles foram investidos por força do voto.

E daí se passa ao problema do déficit democrático do Poder Judiciário. A não responsabilização


política do juiz pelo teor da decisão, no sentido de sua não exposição à fonte de legitimação do
poder, pelo exercício do voto, debilita, em certa medida, a legitimidade da atuação judicial no
controle de políticas públicas. O juiz não conhece os ônus subjacentes a cada escolha que resultou
naquele arranjo complexo, nem a composição de interesses que sustenta a decisão política,
tampouco assumirá conseqüências pela interferência sobre a estratégia que orientou a adoção de
um ato ou outro (a qual pode ter conexões, meritórias ou perversas, com outras estratégias,
pertinentes a outras políticas do governo). Nesse sentido é que se fala da irresponsabilidade
política do Judiciário.

Esse problema se conecta a um outro, ao mesmo tempo técnico e político, relativo à


impossibilidade de o juiz se assenhorear das circunstâncias mais amplas nas quais se insere o
pedido individualizado na ação. Nessa linha, algumas pesquisas têm demonstrado que se pode
manipular os recursos ao Poder Judiciário, de forma a proteger interesses distintos do apregoado
interesse público.8 Ocorre, não poucas vezes, com a assunção de posição pouco informada no
processo, considerando que o universo da política pública é multifacetado e muito mais cheio de

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nuances do que aparenta.

A hipótese de criação de uma estrutura técnica de suporte ao juiz nesse sentido, aventada por
alguns, responderia de forma parcial e provavelmente insatisfatória a esse problema. Isso porque a
lógica da atuação judicial é essencialmente atomizada, baseada nos conflitos explicitados, sejam
eles individuais ou coletivos. A lógica das políticas públicas é, ao contrário, ampla, aglutinadora de
perspectivas e informações, as quais se enfeixam na estratégia de decisão e implementação
finalmente adotada.

O argumento da proteção à esfera de discricionariedade administrativa é evidentemente conexo ao


da separação de poderes e bastante familiar ao leitor, razão pela qual me permito recorrer, mais
uma vez, à conclusão sumariada por Flavio Dino, de que não mais prevalece a doutrina da
imunidade absoluta dos atos discricionários ao controle judicial. A uma, em vista do dever de
motivação, hoje positivado no art. 50 da Lei do Processo Administrativo, Lei nº 9.784, de 1999,
sucedendo a doutrina dos motivos determinantes e do desvio de finalidade, que assegura, em
qualquer circunstância, a possibilidade de cotejo dos fundamentos do ato atacado com a motivação
apresentada, além dos aspectos formais, nunca afastados da sindicabilidade judicial. A duas, em
vista da possibilidade de confrontação do mérito administrativo do ato que compõe a política, ainda
que de forma excepcional e limitada, em relação aos seus pressupostos, o que a doutrina francesa
mais recente chama de controle da qualificação jurídica dos motivos.

Dos argumentos relacionados como objeções à intervenção do Judiciário em matéria de políticas


públicas, o mais perturbador é o das limitações econômico­financeiras, uma vez que se trata,
claramente, de matéria que escapa ao domínio pleno do direito. Em que pese a existência da
disciplina orçamentária, ângulo pelo qual se tem discutido a questão, no âmbito do direito, a
escassez de recursos para fazer face às necessidades de investimento e custeio relativas aos
serviços e prestações que concretizam direitos sociais é um fato incontornavelmente econômico.

Os limites são dados pelos recursos efetivamente existentes e ainda que se trabalhe com a idéia de
produção de déficits pelo Estado que amenizem condições adversas, movimentando a economia em
direção ao crescimento, é fato que também esses recursos são limitados. A superação das
condições que impedem o pleno desenvolvimento é bastante complexa e depende da adoção de
estratégias pactuadas pelas diversas forças políticas, sociais e econômicas de um país, para que se
conjuguem os vários fatores envolvidos no processo. A presença atuante do Poder Judiciário será
um desses fatores, mas é preciso não superestimá­la e concentrar esforços e atenções em tópicos
que concretamente atuam como obstáculo a esse movimento.

Outro aspecto a considerar, nesse ponto, diz respeito à possibilidade de que a escassez de
recursos, tratada por um ângulo particularizado, desencadeie uma corrida entre direitos, que
concorrerão por recursos escassos, dilema que só pode ser resolvido pela adoção de estratégias
mais gerais, que modulem no tempo as etapas de atendimento dos direitos em seu conjunto,
estabelecendo compromissos do governo, explicitados nos seus planos e leis orçamentárias. Essa é
a razão pela qual recai sobre o Poder Executivo a iniciativa de projetos de lei que criem despesas
diretas ou serviços públicos que suportam a realização das políticas públicas.9

b.3) Examinando mais de perto o objeto do controle judicial

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Passei de forma aligeirada pelos argumentos que vêm sendo apontados em decisões judiciais e nos
comentários teóricos, porque me interessa explorar uma outra perspectiva. O que me parece é que
a abordagem das políticas públicas instrumentaliza um outro modo de ação, mais adequado às
demandas de efetivação constitucional, visto que mais apto a combinar, em um único conjunto
cognitivo, várias dimensões que compõem o agir governamental. As políticas públicas são
esquemas de aglutinação de conhecimentos e ações.

As decisões usualmente associadas ao controle de políticas públicas, na verdade tratam do


cumprimento de direitos, na ausência dessas, e não propriamente da formulação ou implementação
de políticas públicas. Cumpre ilustrar com alguns exemplos: ação do Ministério Público para
compelir um hospital público a contratar pessoal, ação em face de escola pública determinando a
criação de programa especial para deficientes visuais, ação exigindo o aumento da oferta de vagas
no ensino noturno em universidade pública etc. Essas decisões manejam, a rigor, categorias já
estabelecidas no direito, de forma alargada, vez que a questão contenciosa predominantemente diz
respeito a obrigação de fazer pelo Poder Público.

A grande inovação que elas trazem é imputar conseqüências, dentro de determinados parâmetros
— ainda não estabilizados e definidos de forma sistemática (e aí está o problema) —, para a inércia
ou a incúria dos governos em implementar as políticas públicas ou medidas necessárias para a
efetivação dos direitos.

Pesquisando as características peculiares das políticas públicas, explicitam­se alguns traços, que
podem ser úteis ao aprofundar a compreensão sobre o modo de incidência do controle judicial.

Evoluindo em relação a reflexões que venho empreendendo,10 tomo como ponto de partida da
noção de política pública o processo decisório governamental. As políticas públicas devem ser
compreendidas como arranjos institucionais complexos, expressos em estratégias formalizadas ou
programas de ação governamental, visando coordenar os meios à disposição do Estado e as
atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente
determinados, e resultam de processos conformados juridicamente.

Nesse sentido, são próprias da ação governamental, isto é, dos poderes dotados de iniciativa de
ação e, portanto, predominantemente o Poder Executivo, dentro dos marcos legais definidos pelo
Poder Legislativo.

Como arranjos complexos (ou outputs da ação governamental, se não quisermos frisar a forma que
essa externalização da ação assume), agregam elementos políticos, econômicos, sociais,
organizacionais, relativos à gestão pública e legais, numa combinação peculiar que resulta de
processos, juridicamente disciplinados.

As políticas públicas não se confundem com os direitos. Por essa razão, salvo excepcionalmente, a
Constituição não contém políticas públicas, mas direitos, cuja efetivação, especialmente no caso
dos direitos econômicos, sociais e culturais, ditos, elipticamente, sociais, depende das políticas
públicas.

A noção de política pública é útil, para o direito, na medida em que permita compreender, analisar
e tratar fenômenos que a teoria jurídica tradicional não logra fazer, organizando a compreensão,
com base no diálogo interdisciplinar, de fenômenos econômicos, políticos, sociais e da gestão

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pública que influenciam na formação de decisões conformadas pelo direito e geram efeitos
jurídicos.

Os direitos sociais não são políticas públicas nem devem ser confundidos com elas. São direitos
fundamentais, cuja satisfação integral requer programas, recursos públicos, os quais, em
circunstâncias de escassez, são alocados segundo a dinâmica política, que combina tempo e
definição de prioridades.

Resultando de processos juridicamente regulados (eleitoral, administrativo, legislativo,


orçamentário, e também, em certa medida, judicial) as políticas públicas são conformadas pelo
Direito, embora não redutíveis a ele. E esse é um ponto importante quando se discute o controle
judicial, em vista da necessidade de identificar que componente da política pública se põe sob o
foco da ação judicial. Proponho, portanto, uma abordagem mais restritiva, a fim de ganhar em
precisão, retirando do campo da análise casos abrangidos dentro do leque da "judicialização da
política", cuja solução se dá com base na leitura política de aspectos sedimentados na teoria
jurídica. Não é disso que cuida a noção de política pública em meu modo de abordar.

A noção de política pública agrega vantagens analíticas importantes tanto para a compreensão da
atuação do poder público como para a prescrição de modelos de ação. Por essa razão cabe enfatizar
a tônica prospectiva do trabalho com políticas públicas, distinto da atividade jurisdicional típica,
cujo olhar é retrospectivo. As decisões judiciais não se pautam, primordialmente, pelos efeitos que
a jurisprudência, como fonte de direito, irá gerar sobre outros casos não submetidos a julgamento,
mesmo que saibamos que essa circunstância pode se apresentar (e geralmente se apresenta) entre
as considerações do juiz.

Já a política pública é, por definição, prospectiva, resultando de uma atividade programada, de


escala ampla. Nesse ponto reside uma diferença essencial entre o provimento jurisdicional e a ação
governamental. O objeto de uma política pública é, sempre, não apenas plúrimo, mas abrangente
de uma coletividade previamente definida, e.g., as crianças do Município, os doentes com
determinada moléstia, os habitantes do Estado, as empresas exportadoras do produto tal ou qual e
assim por diante. A questão da escala opõe o processo judicial ao processo administrativo em
sentido amplo.

Se adotarmos a dualidade sistema/problema, veremos que as políticas públicas são instrumentos


mais adequados ao tratamento sistemático de questões jurídicas. Nesse sentido, são úteis como
esquemas de construção de relações. O manejo das políticas públicas representa atividade
fragmentada de planejamento e execução de decisões pelo poder público e particulares. É meio,
portanto, de organizar um conjunto de ações e relações, em direção a um sentido comum.

Já o controle jurisdicional se dá sob a forma de ações judiciais, cada uma delas expressando um
conflito atomizado. Na dualidade proposta, apresentam­se como problemas.

Não por acaso, o processo judicial moderno tem evoluído no sentido de buscar a agregação de
interesses, seja sob a forma dos direitos individuais homogêneos, ou direitos coletivos ou difusos.
Por essa razão, as ações coletivas e as ações cujas decisões têm efeitos contra todos são mais
afeitas ao controle judicial das políticas públicas ou das obrigações de fazer subjacentes a políticas
públicas idealmente concebidas.

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Seria de se cogitar de um regime processual específico de prestação de informações pelo Poder


Público legitimado no pólo passivo, ao qual se seguiria a concessão de prazos escalonados para
obrigações de fazer que, se não correspondessem ao implemento integral da obrigação,
consolidariam passos irreversíveis em direção a tal, segundo a dinâmica a que é induzido o próprio
ente público.

Quanto mais a atividade jurisdicional de controle compreender o processo de formação e execução


das políticas públicas na dinâmica própria da atividade política, mais eficaz tende a ser o controle.
Segundo a teoria política, o ciclo de formação de uma política pública se dá em cinco etapas: I)
inclusão do tema na agenda; II) formulação de alternativas; III) decisão; IV) implementação da
política; e V) avaliação. Eduardo Appio entende que o controle judicial é admissível sobre o
momento da execução e não da formulação da política.11

Esse conjunto de critérios e balizas para enfrentamento das omissões há de se estabelecer,


predominantemente com base em regras processuais que permitam7 o contraditório entre a
medida governamental reclamada pelo autor (que a coerência recomenda seja um legitimado pela
coletividade) e a ação desempenhada — dentro dos limites do possível ou abaixo desse, caberá ao
juiz decidir — pelo ente governamental responsável.

Parte 2 ­ Alguns exemplos concretos ou "o que você faria se fosse o gestor público?"

Essa exposição seria incompleta se não explorássemos a perspectiva própria da Administração


Pública. Com a consolidação do processo democrático no Brasil, o poder político encontra­se,
concreta ou potencialmente, em mãos diversas no País, o que enfraquece o discurso teórico
produzido sob o influxo da resistência. Impõe­se reorganizar os fundamentos jurídicos da ação
propositiva.

O teste relativo a essa perspectiva, a ser aplicado em cotejo com o controle judicial aqui
examinado, é formular­se a pergunta: "o que você faria se fosse o gestor público?"

Passarei a examinar dois casos concretos, objeto tanto de processos judiciais como de medidas
governamentais, em que a diferença de perspectivas se faz muito nítida e, assim, útil para
conhecimento das peculiaridades do processo judicial que se pretende estudar.

a) Possibilidades ­ Política de prevenção da Aids

O histórico da política brasileira de controle da AIDS, mundialmente festejada como estratégia de


salvação de vidas humanas com base na prevenção, a um custo muito mais reduzido que seria o do
tratamento, é associado à existência de demandas judiciais postulando a distribuição de
medicamentos. De fato, no início dos anos 90 houve uma série de ações judiciais exigindo o
fornecimento de medicamentos, em alguns pontos semelhantes às que hoje se intentam em
relação às mais diversas doenças.

Ao cabo de sucessivas decisões judiciais concessivas dos pleitos, firmou­se jurisprudência favorável
ao fornecimento de medicamentos. O Supremo Tribunal Federal, pela relatoria sempre lúcida do

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eminente Ministro Celso de Mello, decidiu o Recurso Extraordinário nº 267.612, vinculando a


proteção ao direito fundamental à saúde ao fornecimento concreto das prestações requeridas, cuja
ementa sintetiza o argumento essencial sobre a matéria:

Medicamentos para Pacientes com AIDS. Pacientes com HIV/AIDS. Pessoas destituídas
de recursos financeiros. Direito à vida e à saúde. Fornecimento gratuito de
medicamentos. Dever constitucional do Estado (CF, arts. 5º, caput, e 196). Precedentes
(STF).

O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível


assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art.
196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve
velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular — e
implementar — políticas sociais e econômicas que visem a garantir, aos cidadãos, o
acesso universal e igualitário à assistência médico­hospitalar. ­ O caráter programático
da regra inscrita no art. 196 da Carta Política — que tem por destinatários todos os
entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado
brasileiro — não pode converter­se em promessa constitucional inconseqüente, sob
pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela
coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável
dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a
própria Lei Fundamental do Estado. (...)

Se nos detivermos na análise do objeto da ação, veremos que a questão posta em julgamento era,
como não poderia deixar de ser, tópica, versando sobre o direito à obtenção de medicamentos
fornecidos pela rede pública de saúde, e, nesse sentido, mais restrita que o que veio a se
consubstanciar no Programa de AIDS do Ministério da Saúde, esse sim, a política pública na
acepção mais precisa da expressão.

A distinção é o que explica que se tenham incontáveis decisões determinando o fornecimento de


medicamentos a particulares — para diabetes, câncer, doenças coronarianas etc. —, sem que delas
resultem, necessariamente políticas públicas tal como se conhece em relação à AIDS. Em alguns
casos ocorre mesmo o contrário, as decisões judiciais produzem um efeito de desorganização de
políticas existentes, na medida em que o fornecimento de medicamentos em demandas individuais,
amplificadas pela repetição de demandas, pode comprometer o funcionamento de determinados
serviços de atendimento coletivo.

Uma política pública de saúde, mesmo se estruturada sobre a distribuição de medicamentos,


necessariamente se insere numa estratégia mais abrangente, que deve ser constantemente
reafirmada, uma vez que se desdobra na existência de medidas necessárias como apoio e
confirmação do núcleo central da política, tais como a estruturação de serviços de referência, a
renovação da destinação de recursos e uma série de outras. O relato oficial do Programa da AIDS,
inserido na página eletrônica do Ministério da Saúde, é ilustrativo dessa abrangência:

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É em 1996, contudo, com o advento de uma nova classe de fármacos, os inibidores da


protease, e uma nova abordagem terapêutica, com a utilização simultânea de múltiplas
drogas, que uma importante vitória na luta contra a doença é alcançada. A combinação
de medicamentos detém a progressão da doença e evita a progressão da deterioração do
sistema imunológico. A mortalidade pela AIDS cai drasticamente com a nova
terapêutica. Amparado pela aprovação naquele mesmo ano de legislação garantindo o
acesso aos medicamentos, mesmo contra recomendações e advertências do Banco
Mundial, o Brasil adota uma política de distribuição da medicação, via SUS, para todas
as pessoas acometidas pela doença. Com o passar do tempo, esta estratégia mostra­se
não apenas eficaz, do ponto de vista da redução da mortalidade, mas também
poupadora de recursos, na medida em que os gastos com o tratamento da aids em seus
estágios iniciais consomem menos recursos que as repetidas internações dos pacientes
em estado grave.

(...) A mera distribuição dos medicamentos, contudo, não garante a qualidade do


tratamento; é necessário monitorar a resposta dos pacientes à medicação, para que se
possa avaliar sua eficácia. Dois exames, em particular, a contagem de linfócitos CD4
(...) e o teste de carga viral, que identifica a quantidade de vírus circulando no
organismo (ao contrário dos testes sorológicos, que assinalam a presença de anticorpos
para o HIV), são relativamente sofisticados e caros, e estariam fora do alcance da
maioria da população brasileira, por um lado, e a ausência de um controle da qualidade
de sua realização poderia ter resultados catastróficos no acompanhamento de pacientes
em uso da medicação. Para enfrentar estes problemas, não só se estimulou a
implantação destas técnicas em laboratórios ligados ao SUS em todo o país, como em
1997 foi criada a Rede Nacional de Laboratórios para Realização de Exames de Carga
Viral e Contagem de CD4+/CD8+. (...)

O Brasil tem enfrentado as pressões da indústria farmacêutica multinacional, que,


amparada na legislação internacional sobre patentes, pratica preços francamente
abusivos para as novas drogas, como é o caso dos antiretrovirais.12

Com base no relato oficial, o papel das ações judiciais é relativizado, em vista da disposição
legislativa e da existência de um conjunto de medidas, de ordem administrativa, tipicamente
caracterizadas como serviço público, a cargo de diversos entes governamentais. Mais importante,
esse conjunto de iniciativas se orienta segundo uma estratégia, cuja efetivação depende de
racionalidade, coerência, além da apreensão fiel dos elementos históricos e organizacionais
envolvidos na formulação e implementação da política. Isso permite entender de que forma o
controle judicial atua sobre elemento ou parte da política ou ainda se ele opera como fator de
pressão pela formulação da política pública.

b) Limites ­ Vagas em creches

Uma decisão paradigmática do Supremo Tribunal Federal, mais uma vez sob a relatoria corajosa do

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Ministro Celso de Mello, nos oferece oportunidade de explorar o problema dos limites da decisão
judicial em matéria de políticas públicas.

A decisão tem a maior importância, no sentido de afirmar o caráter obrigatório dos direitos
referidos na Constituição. O argumento da fundamentalidade nesse caso é preponderante, pois o
caso trata da educação infantil, compelindo o Município a ofertar vagas em creches e pré­escolas,
de modo a assegurar a formação e proteção das crianças de idade mais tenra. A decisão dá corpo a
algo que é consenso entre pedagogos, o caráter determinante da educação nos primeiros anos de
vida em relação às possibilidades de evolução pessoal e social do indivíduo.

A decisão no Agravo Regimental em Recurso Extraordinário interposto pelo Ministério Público do


Estado de São Paulo em face do Município de Santo André, RE­AgR nº 410.715, tem a seguinte
ementa:

Recurso Extraordinário – Criança de até seis anos de idade – Atendimento em creche e


em pré­escola – Educação infantil – Direto assegurado pelo próprio texto constitucional
(CF, art. 208, IV) – Compreensão global do direito constitucional à educação – Dever
jurídico cuja execução se impõe ao poder público, notadamente ao Município (CF, art.
211, §2º) – Recurso Improvido. ­ A educação infantil representa prerrogativa
constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de
seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o
atendimento em creche e o acesso à pré­escola (CF, art. 208, IV). ­ Essa prerrogativa
jurídica, em conseqüência, impõe, ao Estado, por efeito da alta significação social de que
se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas
que possibilitem, de maneira concreta, em favor das "crianças de zero a seis anos de
idade" (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré­
escola, sob pena de configurar­se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar,
injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação
estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal. ­ A educação infantil, por
qualificar­se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo
de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem
se subordina a razões de puro pragmatismo governamental. ­ Os Municípios — que
atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211,
§2º) — não poderão demitir­se do mandato constitucional, juridicamente vinculante,
que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que
representa fator de limitação da discricionariedade político­administrativa dos entes
municipais, cujas opções, tratando­se do atendimento das crianças em creche (CF, art.
208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de
simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole
social. ­ Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a
prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela­se possível, no entanto, ao
Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas
hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas
implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão — por importar em
descumprimento dos encargos político­jurídicos que sobre eles incidem em caráter

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mandatório — mostra­se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos


sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. A questão pertinente à
"reserva do possível". Doutrina.

Destaquem­se na argumentação do voto a refutação às teses da discricionariedade da


administração e à reserva do possível como elementos de amparo à inércia do Poder Público
competente para a realização do direito. Mas convém examinar, à luz desse notável acórdão, as
relações da decisão judicial com as políticas públicas, sempre contrapondo possibilidades e limites.

As conseqüências imediatas que se pode projetar para a oferta de educação infantil no Município de
Santo André são a ampliação da oferta, com a construção de creches e a alocação da estrutura e
pessoal necessários ao cumprimento da decisão.

No entanto, caso exista, de fato, limitação econômica e se trate de invocação leal da reserva do
possível, um possível "efeito colateral" poderá ser a retirada de recursos de outro programa para o
atendimento desse, com as formalizações pertinentes nos termos da legislação orçamentária, se
necessário. Há um risco, portanto, de exacerbação da concorrência entre direitos, privilegiando­se
aqueles que lograram ultrapassar o filtro de seletividade da atuação do Ministério Público.

No plano das possibilidades, deve­se considerar o aprendizado institucional que deve advir dessa
decisão, de modo que o Ministério Público do Estado de São Paulo passe a intentar outras ações
semelhantes, em face de outros Municípios, com o efeito global de aumento real da oferta da
educação infantil, pelo menos no Estado de São Paulo.

No entanto, parece­me que o argumento mais importante, no plano dos limites, é o que se refere à
escala, sendo bastante elucidativo o diagnóstico contido no Plano Nacional de Educação, aprovado
pela Lei nº 10.172, de 2001, em relação aos antecedentes da carência de vagas na educação
infantil.

A Sinopse Estatística da Educação Básica/1999 registra um decréscimo de cerca de 200


mil matrículas na pré­escola, em 1998, persistindo, embora em número menor (159
mil), em 1999. Tem­se atribuído essa redução à implantação do FUNDEF, que
contemplou separadamente o ensino fundamental das etapas anterior e posterior da
educação básica. Recursos antes aplicados na educação infantil foram carreados, por
Municípios e Estados, ao ensino fundamental, tendo sido fechadas muitas instituições de
educação infantil. Na década da educação, terá que ser encontrada uma solução para as
diversas demandas, sem prejuízo da prioridade constitucional do ensino fundamental.
(item 1.1)

Segundo esse diagnóstico, a política pública de universalização da educação fundamental,


consubstanciada na criação do Fundo Nacional da Educação Fundamental (Fundef) pela Emenda
Constitucional nº 14, de 1996, que alterou o art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias, teria operado uma seleção de prioridades, excluindo do financiamento especial os

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segmentos da educação infantil e do ensino médio.

Confirmando­se o diagnóstico do PNE, uma resposta satisfatória ao problema teria que assumir a
mesma escala do Fundef. E de fato, expirando­se a Emenda nº 14, foi aprovada, por iniciativa do
Poder Executivo, a Emenda Constitucional nº 53, que instituiu o Fundo Nacional da Educação
Básica (Fundeb). O art. 8º, §§1º a 3º, da Lei nº 11.494, de 2007, que regulamenta o Fundeb,
considerando a inexistência de vagas disponíveis na rede pública de educação infantil, prevê a
possibilidade de oferta de vagas em regime de convênio com creches (crianças de até 3 anos) ou
escolas de educação infantil (4 ou 5 anos),13 comunitárias ou filantrópicas, sem fins lucrativos,
observados os requisitos pertinentes. A medida resultou de intensos debates no Legislativo, mas
parece ter se revelado acertada, como estratégia, conforme dados do censo da educação básica,
que apontam o crescimento de matrículas nas creches da rede pública, no território nacional, da
ordem de 13,7%, entre 2006 e 2007 (Diário Oficial da União, 14 nov. 2007).

O que se demonstra, portanto, é que há uma diferença significativa de escala entre o resultado de
uma política pública bem­sucedida e o de um conjunto de ações judicialmente igualmente bem­
sucedidas para exigir o cumprimento de prestações voltadas à efetivação de direitos sociais.
Evidentemente, não se trata de abordagens excludentes, mas complementares. Mas a
peculiaridade de cada uma há de ser reconhecida, se pretendemos alimentar a pesquisa teórica
com demandas jurídicas reais.

Conclusão ­ Conjugando possibilidades e limites

Seria conservadora, se não retrógrada, uma leitura que atribuísse caráter absoluto aos limites,
preservando a esfera de atuação de poderes deslegitimados, em vista do descaso na efetivação dos
direitos constitucionais. Uma visita aos presídios brasileiros seria suficiente para convencer quem
duvidasse que a implantação da constituição ainda é uma tarefa por se fazer e que deve envolver
não só os poderes responsáveis pela formulação de políticas públicas ainda inexistentes, Poderes
Executivos e Legislativos das várias esferas federativas, como também, intensamente, o Poder
Judiciário, além da imprensa, a sociedade civil organizada e a comunidade internacional, cada um
em seu papel.14

A consideração sobre os limites da atuação judicial visa chamar a atenção para o que me parece
um desvio da rota mais importante para a implementação dos direitos, em especial os direitos
sociais, nas preocupações do constitucionalismo mais avançado.

De um lado, considero perigosa a tônica preponderante do controle, que tende a tornar mais
robusto o não­fazer do que o fazer do poder público. Essa tônica reforça a oposição entre a
Administração Pública, responsável pela outorga de prestações, e os cidadãos.

De outro lado, o desejável, na minha opinião, na linha da construção da Administração Pública


democrática, seria fomentar mecanismos de coordenação e produção de consenso ou da
explicitação e processamento do dissenso, quando aqueles não são possíveis. Nesse sentido os
modos de organização e processamento das decisões do poder público, em especial o Poder
Executivo, carecem de vigorosa modernização, para o que se reclama a presença da teoria jurídica.

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A caixa de ferramentas dos juristas para a elaboração das políticas públicas tem, neste momento,
pouco mais que alguns apetrechos enferrujados e peças gastas pelo uso.

Sempre me pareceu que esse é um debate fora do lugar. O controle judicial das políticas públicas é
possível, mas limitado. Do ponto de vista estrito, trata­se do controle judicial dos atos e processos
jurídicos que compõem a política. Do ponto de vista amplo, trata­se de um controle de omissões,
quando não há ato ou processo que leve a resultado compatível com o objetivo constitucional.

Nesse sentido, a elaboração teórica em torno da noção de política pública deveria antecipar­se e se
voltar ao estudo das características jurídicas dos atos e processos e, a partir daí, dos modelos
jurídicos, que configuram políticas públicas.

O desafio está em estudar práticas bem­sucedidas de implantação de um regime de direitos, seja


no contexto do direito comparado, seja no contexto de experiências de sucesso localizadas para a
concretização de um ou outro direito num espaço local definido.

Isso exigirá a construção de um acervo de modelos, possivelmente, por temas, isto é, em matéria
de saúde, educação, assistência social, posteriormente examinando­se as políticas públicas
voltadas à infra­estrutura. E esses modelos se valerão de determinados instrumentos, e aí, sim,
teremos vasto material de trabalho para estudos de direito ainda mais transformadores.

1 O texto é resultado de comunicações feitas no V Congresso Mineiro de Direito Administrativo, em

Belo Horizonte, em junho de 2007, e no II Congresso Internacional de Direitos Sociais, promovido


pela Procuradoria­Geral do Município do Rio de Janeiro, em 14 de novembro de 2007.

Muito me alegra a oportunidade dessa homenagem ao Prof. Fabio Konder Comparato. A escolha do
tema foi natural, não apenas porque se trata do assunto que venho pesquisando nos últimos anos,
mas porque a inspiração para o assunto teve origem nas aulas do Prof. Comparato, nas disciplinas
Direitos Fundamentais e Direito do Desenvolvimento, que cursei durante o doutorado, quando se
abriu, para mim, uma importante chave de conexão entre o pensar e o fazer jurídicos, síntese que
representa a marca mais forte do aprendizado com o Prof. Comparato. Ao mestre, com carinho.

2 CYRINO, André Rodrigues. Revolução na Inglaterra? Direitos humanos, Corte Constitucional e

declaração de incompatibilidade das leis. Novel espécie de judicial review?. Revista de Direito do
Estado, Rio de Janeiro, n. 5, p. 267­288, jan.­mar. 2007.

3 Veja­se, nesse sentido, a esclarecedora retrospectiva traçada por Ana Paula de Barcellos em "O

direito constitucional em 2006" (Revista de Direito do Estado, Rio de Janeiro, n. 5, p. 3­24, jan.­
mar. 2007).

4 APPIO, Eduardo. Controle judicial de políticas públicas no Brasil. Curitiba: Juruá, 2005; COSTA,

Flavio Dino de Castro e. A função realizadora do Poder Judiciário e as políticas públicas no Brasil.
Revista do TRF­1a. Região, p. 27­47; VALLE, Vanice Lírio do. Dever constitucional de enunciação de
políticas públicas e auto­vinculação: caminhos possíveis de controle jurisdicional. Mimeografado;
PIOVESAN, Flavia. Justiciabilidade dos direitos sociais e econômicos no Brasil: desafio e

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perspectivas. Revista de Direito do Estado, Rio de Janeiro, n. 2, p. 55­70, abr.­jun. 2006;


CRISTOVAM, José Sérgio da Silva. O controle jurisdicional das políticas públicas. Informativo de
Direito Administrativo e Responsabilidade Fiscal, n. 41, p. 451­463, dez. 2004­2005, entre outros.

5 Referido por Luis Roberto Barroso na conferência "Responsabilidade e Políticas Públicas", de

setembro de 2007, noticiada por VALLE, ob. cit., p. 5.

6 COSTA, ob. cit., p. 30.

7 TEIXEIRA, José Elaeres Marques. A doutrina das questões políticas no Supremo Tribunal Federal.

Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005. p. 162.

8
É o caso das ações judiciais para o fornecimento de medicamentos, que deixarei de comentar
neste estudo, tendo em vista a grande quantidade de material já produzido sobre o tema. A
possível existência de beneficiários privados não carentes, em parcela significativa dessas ações,
está sendo trabalhada por Fernanda Terrazas e Virgílio Afonso da Silva em estudo, cujos dados
preliminares foram apresentados no II Congresso de Direitos Sociais, de iniciativa da Procuradoria­
Geral do Município do Rio de Janeiro, naquela cidade, em novembro de 2007.

9 Tratei desses pontos em "O conceito de política pública em direito" (In: BUCCI, Maria Paula

Dallari (Org.). Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. p.
1­50, especialmente p. 36).

10 Em "O conceito de política pública em direito" (ob. cit.), formulei a seguinte proposição: "Política

pública é o programa de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos


juridicamente regulados — processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo,
processo orçamentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial — visando
coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos
socialmente relevantes e politicamente determinados.

Como tipo ideal, a política pública deve visar a realização de objetivos definidos, expressando a
seleção de prioridades, a reserva de meios necessários à sua consecução e o intervalo de tempo
em que se espera o atingimento dos resultados."

11 Ob. cit.

12 E x t r a í d o d a p á g i n a e l e t r ô n i c a d o M i n i s t é r i o d a S a ú d e s o b r e o P r o g r a m a d e A i d s ,

<www.aids.gov.br>, em 16 nov. 2007. Texto original de Kenneth Camargo, em outubro de 2005,


adaptado pelo Dr. Pedro Chequer, ex­Diretor do Programa Nacional de DST e Aids. A lei em
questão é a Lei nº 9.313, de 13 de novembro de 1996, cujos dispositivos mais importantes são os
seguintes:

Art. 1º Os portadores do HIV (vírus da imunodeficiência humana) e doentes de AIDS (Síndrome da


Imunodeficiência Adquirida) receberão, gratuitamente, do Sistema Único de Saúde, toda a
medicação necessária a seu tratamento.

§1º O Poder Executivo, através do Ministério da Saúde, padronizará os medicamentos a serem


utilizados em cada estágio evolutivo da infecção e da doença, com vistas a orientar a aquisição dos

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mesmos pelos gestores do Sistema Único de Saúde.

§2º A padronização de terapias deverá ser revista e republicada anualmente, ou sempre que se
fizer necessário, para se adequar ao conhecimento científico atualizado e à disponibilidade de
novos medicamentos no mercado.

Art. 2º As despesas decorrentes da implementação desta Lei serão financiadas com recursos do
orçamento da Seguridade Social da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios,
conforme regulamento. (...)

13 No caso de estabelecimento para crianças de 4 a 5 anos, a possibilidade é temporária, restrita

aos 4 anos de vigência da lei.

14
Cabe referir, mais uma vez, a resenha de Ana Paula de Barcellos: "O contraste da realidade com
as pretensões normativas da Carta de 1988 se mostrou tão chocante em determinados momentos
que pareceu veicular, afora muitas outras mensagens, uma provocação debochada dirigida aos
juristas. É certo, porém, que a constrangedora impotência do instrumental jurídico tradicional para
levar a cabo as pretensões de determinadas disposições constitucionais, que se tornou evidente,
acabou por fomentar a busca por soluções diversas. Os eventos que talvez ilustrem com maior
dramaticidade esse confronto são aqueles que envolveram (e continuam a envolver) a violência,
sobretudo urbana, e o sistema penitenciário brasileiro" (Ob. cit, p. 8).

Como citar este artigo na versão digital:

Conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto
científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:

BUCCI, Maria Paula Dallari. Controle judicial de políticas públicas: possibilidades e limites. Fórum
Administrativo ­ Direito Público ­ FA, Belo Horizonte, ano 9, n. 103, set. 2009. Disponível em:
<http://www.bidforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=62501>. Acesso em: 17 jun. 2013.

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