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Justiça Multiportas no Brasil

Trícia Navarro Xavier Cabral


Pós-Doutoranda em Direito Processual pela USP, Doutora
em Direito Processual pela UERJ, Mestre em Direito pela
UFES, Juíza Estadual no Espírito Santo, Membro da Comissão
Acadêmica do FONAMEC, Membro-efetivo do IBDP.

A administração da justiça

Não é de hoje que se busca a solução para a chamada crise da justi-


ça. Diversos ordenamentos jurídicos tentam, ao longo dos anos, encon-
trar soluções viáveis para desafogar o Judiciário, bem como para reduzir
ou acabar com as causas da insatisfação popular.
Custo, lentidão e complexidade dos processos judiciais são as
maiores reclamações dos jurisdicionados. E o cenário do Poder Judiciário
brasileiro é desanimador. Temos hoje cerca de 76,7 milhões de processos
em tramitação, e um crescimento do estoque acumulado de 31,2% nos
últimos 07 anos, conforme diagnóstico formulado na edição de 2017 do
relatório Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Esse número excessivo de demandas não é um fenômeno ex-
clusivo do Brasil, mas aqui pode-se atribuir ao problema algumas causas
sociais, políticas e jurídicas.
A Constituição Federal de 1988 assegurou, em seu art. 5º, XXXV,
o amplo acesso à justiça, permite a postulação de tutela jurisdicional, pre-
ventiva ou reparatória, versando sobre direitos individuais ou coletivos, e
ainda previu no inciso LXXIV do mesmo dispositivo a assistência judiciária
integral e gratuita aos que comprovarem insu ciência de recursos. Esses
fatores – especialmente o relativo ao custo do processo – zeram com que
os con itos antes reprimidos pela sociedade passassem a ser judicializados
com maior frequência.
Em seguida, a Lei 9.099/95 trouxe grandes novidades aos liti-
gantes, permitindo – nas hipóteses em que a lei especi ca – o direito de
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ação sem a presença de advogado, de forma gratuita e com um procedi- cas– que não o Judiciário – para tentar solucionar a disputa, eliminando,
mento mais simples. Os Juizados Especiais tiveram o mérito de propiciar inclusive, a dependência social em relação aos órgãos judiciários que
ao cidadão uma Justiça mais informal, atraindo, assim, a judicialização das muitas vezes a ige os cidadãos.
controvérsias. Nessa perspectiva, a mudança de comportamento dos pro ssio-
Outro importante fator de facilitação do acesso à justiça foi nais do direito se mostra imprescindível, tanto para se bene ciar dos va-
a estruturação da Defensoria Pública, proporcionando a concretização riados instrumentos de resolução de con itos que são colocados à dispo-
da assistência jurídica aos cidadãos mais necessitados, tanto no âmbito sição das partes, como para permitir a formação de um novo mercado de
extrajudicial quanto na esfera judicial. Acresça-se a isso a elevada qua- trabalho, pautado na e ciência e na humanização do trato com o cliente.
li cação dos Defensores Públicos, que vem permitindo uma defesa de
Para tanto, o ensino jurídico precisa se reciclar, com urgência. A
direitos de modo formal e materialmente efetivo.
combatividade até então pregada deve ceder espaço à consensualidade e
No campo social, houve relevante alteração no comportamen-
às novas formas de justiça.
to de consumo do brasileiro, bem como o crescimento dos con itos de
massa, cuja proteção já havia sido devidamente regulamentada, espe-
cialmente pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990).
A consensualidade no direito brasileiro
No âmbito jurídico, tivemos uma mudança no papel do Poder
Judiciário, com o incremento da judicialização da política (interferência
O Brasil vem passando por relevantes mudanças legislativas
em políticas públicas) e uma politização do poder judicial (tensão políti-
ca entre magistrados e políticos). Assim, questões de atribuições de ou- e ideológicas, que estão transformando os diversos setores do Direito,
tros Poderes passaram a sofrer um maior controle pelo Poder Judiciário, especialmente os pertencentes ao direito público.
o que também contribuiu para o congestionamento dos processos. O direito público cuida do modo de ser do Estado, incluindo
suas relações com outros Estados e com os indivíduos . Ele versa so-
1
Essas circunstâncias praticamente inviabilizaram o Poder
Judiciário, que se viu sem condições de lidar com tamanha quanti- bre as relações jurídicas que envolvem a participação e a autoridade do
dade de processos e paci car a sociedade, gerando o seu descrédito Estado, por meio de atribuições conferidas pela lei.
frente aos litigantes. Assim, os ramos do direito público, como o administrativo e o di-
Foi necessário, então, se repensar a forma de tratamento dos reito penal, sempre trabalharam com os dogmas da supremacia do interesse
con itos, com a inserção de mudanças que vão da adoção de maior público sobre o interesse privado, e com a indisponibilidade do interesse
gestão administrativa e processual, até a utilização de métodos ade- público, fazendo com que o Estado tivesse uma relação verticalizada com o
quados de resolução de controvérsias, como a conciliação, a mediação particular. Porém, houve uma releitura desses conceitos, impulsionada pelos
e arbitragem. Isso porque esses mecanismos são capazes de solucionar ideais democráticos preconizados pela Constituição de 1988, que imprimiu
con itos de modo apropriado, reduzindo o número de processos ju- uma roupagem mais contemporânea aos referidos paradigmas, e também
diciais, combatendo o desvirtuamento da função judicial do Estado, e
propiciou a inserção da consensualidade no Direito brasileiro .
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conferindo uma leitura contemporânea do acesso à justiça.


A postura original do Estado, geralmente imperativa e auto-
Por outro lado, deve ser enaltecido que o acesso à ordem jurí-
dica justa pode ocorrer dentro do Poder Judiciário ou fora dele. Com ritária, está, aos poucos, cedendo a um comportamento mais exível,
efeito, a prevenção dos litígios e a desjudicialização das demandas tam-
1 12 ed. rev. e ampl.
bém são medidas importantes para o alcance de uma maior qualidade e São Paulo: Saraiva, 2003, pp. 18-20.
satisfação das partes, que passam a dispor de entidades privadas e públi- 2 Sobre o tema, cf.: BARREIROS, Lorena Miranda Santos. Convençõesprocessuais e poder público.
Salvador: JusPODIVM, 2017.
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dialogado, paritário e participativo com o particular, permitindo a cons- Ademais, dois outros marcos legislativos devem ser incorpora-
trução de soluções consensuais para os con itos. dos ao microssistema de métodos adequados de resolução de con itos:
Nesse contexto, temos na atualidade, diversos exemplos de al- a Lei nº 13.140/2015 (Lei de Mediação) e a Lei nº 13.129/2015 (Lei
terações legislativas que afetaram ramos do direito público e passaram a de Arbitragem), que permitem algum grau de consenso entre as partes,
permitir algum grau de consensualidade com o particular . tanto na espera privada como na esfera pública.
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A Lei nº 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa) Portanto, vê-se que há uma paulatina mudança de perspectiva
vedava expressamente em seu art. 17, §1º, a celebração de transação, e de possibilidades relacionadas às formas de interação do Estado com
acordo ou conciliação em ações de improbidade, sob a justi cativa de outros órgãos público ou com particulares, com variadas as opções de
sua simetria com o Processo Penal. Contudo, a doutrina já defende a re- mecanismos colocados à disposição dos interessados na busca de uma
vogação tácita da referida proibição com base em dois fundamentos: a) a solução satisfatória para as controvérsias.
perda das razões históricas que lastreou o referido dispositivo, especial-
mente diante de outras Leis que passaram a permitir a consensualidade
na esfera Penal e no Processo Penal; b) o advento da Lei nº 13.140/2015 Justiça multiportas
(Lei de Mediação), que prevê, em seu art. 36, §4º, a possibilidade de acordo
em procedimento de mediação quando a matéria objeto do litígio estiver A forma de tratamento dos con itos vem passando por rele-
sendo discutida em ação de improbidade administrativa, desde que exista vante mutação, atualizando, assim, o conceito de acesso à justiça, tradi-
expressa anuência do juiz da causa ou do ministro relator. cionalmente vinculado à ideia de imposição de uma sentença pelo juiz.
No Direito Penal, de natureza sancionadora, com a promulga- As transformações sociais, jurídicas e legislativas já menciona-
ção da Lei nº 9.099/1995 ( Juizados Especiais Criminais), passou-se a das deram ensejo à formação no Brasil da Justiça Multiportas, que ofere-
admitir a celebração de transação penal para os crimes de menor poten- ce ao jurisdicionado diversas opções de resolução de suas controvérsias,
cial ofensivo e de suspensão condicional do processo. compatibilizando-as com o tipo de con ito em jogo, a m de que esta
No Direito Processual Penal, com o surgimento da Lei nº adequação garanta uma solução que seja efetivamente satisfatória para
12.850/2013, criou-se o instituto da colaboração premiada, possibilitan- os consumidores da justiça.
do ao acusado o perdão judicial, a redução da pena privativa de liberdade Nesse contexto, o acesso à justiça passa a ser concebido como
ou a sua conversão em pena restritiva de direito. acesso à ordem jurídica justa, capaz de garantir às partes não só diversas
No Direito Administrativo, em matéria de defesa da concor- maneiras de se ingressar ao Poder Judiciário, mas também diversos ca-
rência, há previsão de celebração de acordo de leniência, instituída pela minhos de evitá-lo ou dele sair com dignidade.
Lei nº 10.149/2000. No combate à corrupção e no campo da licitação, o A expressão, originalmente concebida como “Tribunal
acordo de leniência foi regulamentado pela Lei nº 12.846/2013. Multiportas”, foi fruto da conferência “Variedades de processamento de
No Direito Processual Civil, a Lei nº 13.105/2015 que refor- con itos”, proferida em 1976, em St. Paul, Minessota, na Pound Conference,
mou o Código de Processo Civil trouxe a ideia de consensualidade em pelo Professor de Harvard Frank E. A. Sander, que propôs que as Cortes
diversos dispositivos, mas em especial no art. 3º, inserido capítulo que fossem transformadas em “Centros de Resolução de Disputas4, onde o inte-
estabelece as suas normas fundamentais. ressado primeiro seria atendido por um funcionário encarregado da triagem

4 WATANABE, Kazuo. “Juizados Especiais” e política judiciária nacional de tratamento


adequado dos con itos de interesses. CEJUSC e Tribunal Multiportas. In: BACELLAR,
3 Salvador: JusPO- Roberto Portugal; LAGRASTA, Valeria Ferioli (Coords.). Conciliação e mediação: ensino em
DIVM, 2017, pp. 85-92. construção. 1ª Edição. São Paulo: IPAM/ENFAM, 2016, pp. 122-123.
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dos con itos, que depois faria o encaminhamento dele ao método de reso- Tribunais Estaduais e Federais, e pelos Centros Judiciários de Solução
lução de controvérsia mais apropriado às particularidades do caso (concilia- de Con itos e Cidadania (CEJUSCs), responsáveis pela execução da
ção, mediação, arbitragem, entre outras formas)4. Essa concepção, contudo, Política Judiciária de tratamento adequado dos con itos.
foi divulgada por uma das revistas da ABA (American Bar Association) como Nesse contexto, os Centros assumem a função de verdadeiros
“Tribunal Multiportas”, e assim cou mundialmente conhecida . “Tribunais Multiportas”, na medida em que são os responsáveis por ofe-
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Segundo o Professor Sander seriam inúmeros os benefícios recer as diversas opções de meios adequados de resolução dos con itos, e
desse sistema, tornando a justiça mais acessível, barata, rápida, infor- ainda prestam serviços de orientação e informação ao cidadão.
mal e compreensível, que possibilita o uso de técnicas que permitem às Assim, o interessado pode se dirigir ao Centro para a solu-
partes desenharem a própria solução para o con ito, eliminando muitas ção pré-processual do con ito, por meio da realização de sessões de
vezes a intimidação do processo litigioso, e conferindo mais satisfação e conciliação ou de mediação, conforme o caso, ou para tentar resolver
menos animosidade do que o processo adversarial . consensualmente con itos já judicializados, bem como para obter
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No Brasil, a concepção de Justiça Multiportas foi introduzida serviços de cidadania. Trata-se, pois, de órgão do Poder Judiciário
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em nosso sistema pelo Conselho Nacional de Justiça, que, atento à neces- criado para efetuar a triagem, o tratamento, e a resolução adequada
sidade de implementação de mecanismos adequados de resolução de dis- dos con itos de interesses.
putas como forma de melhorar a justiça brasileira, editou em 29.11.2010 Além disso, uma vez existindo o processo judicial, o juiz assu-
a Resolução nº 125/10, que trata da Política Judiciária Nacional de me papel de suma importância nessa Política Judiciária, competindo-lhe
Tratamento Adequado de Con itos de Interesses no âmbito do Poder efetuar a triagem dos casos, podendo designar audiência de concilia-
Judiciário e dá outras providências.
ção ou mediação para tentar a autocomposição, analisar a alegação de
Por essa Política buscou-se assegurar a todos o direito à existência de convenção de arbitragem, atender ao pedido das partes de
solução dos con itos por mecanismos adequados à sua natureza e suspensão do feito para a tentativa de acordo extrajudicial, ou, se for a
complexidade, com vista à boa qualidade dos serviços judiciários e à
hipótese, julgar o litígio com ou sem resolução do mérito.
disseminação da cultura da paci cação social, por meio da criação de Como se observa, saímos de um modelo de justiça em que só
uma estrutura física e pessoal própria, capaz de gerir as controvérsias
se oferecia ao jurisdicionado a solução judicial e adjudicada do con ito,
de forma racional e pro ssional. para um formado em que são disponibilizados variados métodos de re-
Essa estrutura idealizada é composta pelo Conselho Nacional
solução de disputa, cada qual usando técnicas que sejam mais apropria-
de Justiça, que ca responsável, no âmbito nacional, por implemen- das para atender às peculiaridades do caso concreto.
tar o programa com a participação de rede constituída por todos os Com isso, o Poder Judiciário passa efetivamente a servir ao
órgãos do Poder Judiciário e por entidades públicas e privadas par-
consumidor da justiça, e não o contrário. Muda-se a perspectiva única
ceiras, inclusive universidades e instituições de ensino, pelos Núcleos de decisão imposta pelo juiz, abrindo-se para a possibilidade de decisão
Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Con itos
construída pelos litigantes, por meio do seu empoderamento.
(NUPEMECs), que tratam dessa Política Judiciária no âmbito dos Por conseguinte, busca-se mais qualidade, com menor custo,
5 nível em: <https:// complexidade e tempo na resolução da controvérsia. E como resultado, a
goo.gl/TfLBV4>. Acesso em: 13.02.2018. solução do con ito ganha mais legitimidade e, via re exa, enseja menos
6 KESSLER, Gladys & FINKELSTEIN, Linda J. e Evolution of a Multi-Door Cour-
thouse, 37 Cath. U. L. Rev. 577 (1988). Disponível em: <https://goo.gl/FKwQ6 U>. Acesso em:
risco de descumprimento.
13.02.2018.
7 ZANETI JR., Hermes; CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Justiça Multiportas: me diação,
conciliação, arbitragem e outros meios de solução adequada de con itos. (Coleção Grandes
Temas do Novo CPC – vol. 9). Salvador: JusPODIVM, 2017.
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Análise prospectiva do tema dicial foi cando cada vez mais palatável aos juízes, advogados, partes
e Ministério Público, embora os tribunais ainda se encontrem em fase
O Conselho Nacional de Justiça, em 2010, cumpriu uma impor- de implementação da Política Nacional de Tratamento Adequado dos
tante missão de chamar para o Poder Judiciário a responsabilidade pela Con itos instituída pela Resolução nº 125/2010, do CNJ.
transformação do modelo de Justiça existente no Brasil, abrindo a discussão Reconhece-se que ainda há muito que se avançar na esfera ju-
e as perspectivas sobre os métodos adequados de tratamento dos con itos. dicial. Os atores no Poder Judiciário precisam de mais engajamento na
Essa relevante iniciativa, embora não tenha, em um primeiro priorização da solução consensual dos con itos, capacitando mediado-
momento, entusiasmado os órgãos do Poder Judiciário diante da gran- res e conciliadores, criando CEJUSCs, regulamentando a remuneração
diosidade estrutural demandada, desencadeou outras propostas legisla- dos facilitadores, entre outras iniciativas, a m de que se ofereça aos li-
tivas que culminaram na formação de um microssistema de mecanismos tigantes mecanismos legítimos de resolução de disputas, com resultados
adequados de resolução de disputas no Brasil, o que ainda está sendo justos e satisfatórios para todos.
assimilado pela comunidade jurídica. Veri ca-se, ainda, na prática forense, que os jurisdicionados
Com efeito, além da abertura para a consensualidade inserida e muitos advogados não conhecem possibilidades disponibilizadas
em variadas Leis especiais, tivemos a reforma da Lei de Arbitragem pelo CEJUSCs, como, por exemplo, a homologação de acordos para
(Lei nº 13.129/15), em vigor desde 27/07/2015, a Lei de Mediação (Lei transformar avenças em título executivos judiciais. Hoje os interes-
nº 13.140/15), cuja vigência iniciou em 26/12/15, e a reforma do CPC sados se valem de jurisdição voluntária com o m especí co de se
(Lei nº 13.105/15), vigente desde 18/03/2016. alcançar a homologação judicial de acordo, o que seria perfeitamente
A doutrina, por sua vez, passou a se preocupar com eventuais possível pela via do Centro.
incompatibilidades entre as referidas leis, enquanto que os pro ssionais No âmbito extrajudicial as conquistas foram maiores. Os me-
do direito caram a itos para entender melhor como essas técnicas de dia-dores privados, que já atuavam antes mesmo da edição das referidas
solução de controvérsias seriam aplicadas na prática forense. Leis, ampliaram seu negócios pro ssionais, com a criação de diversas
O maior desa o era vencer a barreira cultural, eliminando re- câmeras de mediação, conciliação e arbitragem.
sistências que, em muitos casos, não se justi cavam. E apesar de todos os Também cresceu de forma impressionante a procura por cursos
receios, podemos dizer que o Brasil hoje conta com um efetivo aparato de capacitação, nos moldes do CNJ, para ns de cadastro no referido
de métodos adequados de resolução de con itos, que vem se aperfeiço- órgão e também perante os tribunais, surgindo um novo mercado de
ando ao longo do tempo e conseguindo cada vez mais adeptos. trabalho.
No Poder Judiciário, a di culdade maior era adequar a estru- Com isso, em São Paulo, os mediadores e conciliadores já con-
tura– material e pessoal – para implantar a audiência inaugural do art. tam com sindicato próprio, como o SIMEC, e também comemoram o
334, do CPC, que teve o mérito de trazer para o início do processo o Dia dos Mediadores e Conciliadores Judiciais e Extrajudiciais, no dia
primeiro contato entre os litigantes, antes mesmo da apresentação da 23 de setembro, cuja data foi o cialmente instituída pelo PL 626/2016.
defesa. Contudo, em razão dos obstáculos estruturais, a maioria das uni- Já o dia 20 de outubro foi designado pela Associação para Resolução de
dades judiciárias passou a dispensar o ato, retirando dos jurisdicionados Con itos (ACR) como sendo o Dia Mundial de Resolução de Con itos.
a oportunidade de autocomposição, ou, ao menos, de tentar compreen- Outro movimento interessante foi a criação de plataformas
der o contexto con ituoso em que se encontravam. on-line para a solução consensual dos con itos, cujos resultados têm
Entretanto, importa ressaltar que as varas que apostaram na sido exitosos, com mais agilidade, menos custo e imediato encerra-
audiência, especialmente as de família, alcançaram elevados índices de mento da disputa, embora o seu controle e scalização ainda careçam
acordo. Não obstante, observou-se que a ideia da autocomposição ju- de aperfeiçoamento.
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Além da criação das câmaras de mediação, conciliação e arbi- concretas ao cidadão que, até então só conhecia o modelo de resolução
tragem, e de plataformas on-line, as empresas têm feito mutirões para de controvérsias apresentado pelo Poder Judiciário.
solucionar amigavelmente os con itos, e também têm procurado modi- E não por outra razão tramita no Senado a Proposta de
car por completo a sua política interna, visando diminuir a incidência Emenda à Constituição nº 108, de 2015, que: “Inclui entre os direitos
de problemas que deságuem em processos judiciais. Essas iniciativas e deveres individuais e coletivos o estímulo pelo Estado à adoção de
têm servido, inclusive, como fator de marketing e de tentativa melhora métodos extrajudiciais de solução de con itos.” A proposta acrescen-
da imagem dessas empesas perante a sociedade. ta inciso LXXIX ao art. 5º da Constituição Federal, para estabelecer
Em outra perspectiva, a potencialidade do uso de métodos ade- o emprego de meios extrajudiciais de solução de con itos como um
quados de resolução de con itos vai para além das relações simples de direito fundamental. A última movimentação de sua tramitação ocorreu
consumo. O rompimento da barragem de Fundão, ocorrido em 2015, é em 13/07/2017, estando pronta a proposta para pauta na Comissão de
um exemplo de utilização da modalidade extrajudicial de autocomposição. Constituição, Justiça e Cidadania do Senado.
A Fundação Renova, responsável por gerir os impactos da tragédia, im- No âmbito da Administração Pública, os avanços foram tími-
plementou o Programa de Indenização Mediada (PIM), visando ressarcir dos, mas, nem por isso, despercebidos. Na realidade, como já mencio-
danos sem custos e sem tramitação de ação judicial. Assim, os escritórios nado, a abertura para a consensualidade tem permeado diversos ramos
chamados de Centros de Indenização Mediada promovem atendimento do Direito, inclusive os que envolvem elevado grau de interesse público,
à comunidade impactada, por meio da realização de sessões de mediação como o Direito Administrativo e o Direito Penal.
e, em caso de acordo, o pagamento da indenização é feito via depósito ou A grande di culdade é que esses temas dependem de edição de
cartão-benefício, no prazo de 90 (noventa) dias a partir da celebração do lei autorizativa, sendo que os órgãos públicos não têm tido a exigida agili-
termo de acordo. Tudo é resolvido de forma desburocratizada e isonômica. dade em criar critérios objetivos para a realização de acordos, o que causa
Ademais, outra forma de se atingir o consenso é pela via da ne- insegurança jurídica nos agentes públicos que temem sofrer procedimen-
gociação direta ou resolução colaborativa de disputas, em que as partes tos administrativos. Isso porque, embora a Lei de Mediação e o Código
buscam um diálogo sem a presença de um terceiro facilitador. de Processo Civil tenham disciplinado o assunto com regras gerais, é ne-
No campo extrajudicial, mais um tópico merece destaque: a cessário que os órgãos públicos regulamentem parâmetros prévios, por
realização de sessões de mediação e conciliação pelas serventias extra- meio de normas legais ou administrativas, e com a devida publicidade.
judiciais. O tema tem gerado polêmica. De um lado estão os cartórios Com efeito, sabendo-se que o Poder Público é o maior litigan-
querendo incluir em suas atividades o oferecimento da mediação e con- te do País, revela-se promissor o uso de métodos consensuais de solução
ciliação à população. De outra banda, o Conselho Nacional de Justiça, de con itos que envolvam a Administração Pública, como se vê dos mu-
que apesar de ter permitido que notários atuem como conciliadores e tirões e programas destinados a resolver causas do INSS, da CEF, além
mediadores, entendeu pela necessidade de a Corregedoria Nacional de de execuções scais e da mediação coletiva, entre outras possibilidades.
Justiça criar normas para uniformizar as condições. Dessa forma, resta O ensino jurídico também tem se transformado, com a modi-
aguardar o posicionamento nal do órgão para saber se os cartórios po- cação da grade curricular para incluir matérias e disciplinas que abor-
derão, ao nal, instituir os serviços de mediação e conciliação, mas não dam os métodos adequados de resolução de disputas, o que, certamente,
há dúvidas de que, em se tratando de órgão com fé pública e ampla s- re etirá na qualidade dos pro ssionais do futuro.
calização, possibilitaria não só a disseminação dos métodos autocompo- Diante desse cenário otimista e promissor, constata-se que, ape-
sitivos na sociedade, como traria grande segurança jurídica ao cidadão. sar do pouco tempo de vigência da Lei de Mediação, Lei de Arbitragem
De qualquer modo, a desjudicialização dos con itos está sendo e do novo Código de Processo Civil, houve uma rápida absorção do mo-
cada vez mais estimulada, por meio da disponibilização de alternativas delo de Justiça Multiportas pelo nosso ordenamento jurídico, restando
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doravante, aperfeiçoar-se a consolidação prática dessas novidades, cujas
vantagens são inegáveis e revelam perfeita sintonia com as tendências
Lei de Mediação em vigor. E agora?
dos sistemas jurídicos mais modernos da atualidade.

Referências
Silvia Maria Costa Brega
BARREIROS, Lorena Miranda Santos. Convenções processuais e poder público. Advogada com formação em 1982 pela Pontifícia Universidade
Católica – PUC/SP-RJ, é sócia da Simonaggio Advogados desde
Salvador: JusPODIVM, 2017.
1999. Com sólida atuação em contencioso civil e consultivo
BRANCATO, Ricardo Teixeira. Instituições de direito público e de direito privado. 12 ed. rev. e ampl. empresarial, acumula larga experiência em gestão de con itos e
São Paulo: Saraiva, 2003. consultoria na viabilização de modelos governança em empresas
familiares. Formada em Mediação privada e empresarial pela
KESSLER, Gladys & FINKELSTEIN, Linda J. e Evolution of a Multi-Door Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, é mediadora certi cada
Courthouse, 37 Cath. U. L. Rev. 577 (1988). Disponível em: <https://goo.gl pelo ICFML e reconhecida como mediadora empresarial pelo
/UAmBuR>. Acesso em: 13.02.2018. Centre de Médiation e d’Arbitrage de Paris – CMAP. Integra,
como mediadora: CAM-CCBC; Câmara da Comissão das
MENDES, Gardenia M. L. Tribunal multiportas e sua adequação no Brasil. Disponí- Sociedades de Advogados da OAB/SP; CAMFIEP; CAE,
vel em: <https://goo.gl/hiKYf8>. Acesso em: 13.02.2018. CAMITAL; CCFB, dentre outras.
WATANABE, Kazuo. “Juizados Especiais” e política judiciária nacional de tratamento adequado
dos con itos de interesses. CEJUSC e Tribunal Multiportas. In: BACELLAR, Roberto Por-
tugal; LAGRASTA, Valeria Ferioli (Coords.). Conciliação e mediação: ensino em construção. 1ª
Edição. São Paulo: IPAM/ENFAM,2016. Introdução
ZANETI JR., Hermes; CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Justiça Multiportas: mediação, conci-
liação, arbitragem e outros meios de solução adequada de con itos. (Coleção Grandes Temas do Há pouco mais de um ano, com a edição da Lei 13.140, de 26
Novo CPC – vol. 9). Salvador: JusPODIVM, 2017.
de junho de 2015, que disciplinou a mediação no Brasil, os particulares
foram emancipados para, se assim o quiserem e sempre que assim mani-
festarem, exercerem o livre e responsável direito de decidirem e controla-
rem o modo, a forma e o tempo de resolverem suas disputas.
Controvérsias entre particulares, assim entendidas aquelas
que versem sobre direitos que permitam transação, é ao que se cinge a
presente re exão.
Mas,por que dizer que a dita lei confere emancipação? De imedia-
to, porque ela anuncia que “dispõe sobre a mediação entre particulares como
meio de solução de controvérsias”, o que signi ca que aos particulares passou
a ser reconhecida a capacidade de eleger a mediação como meio legítimo,
e de tal forma su ciente e autônomo, que à decisão de consenso que ali venha
a ser alcançada é conferida e cácia e força executiva.
A nal, se parece certo que ela inaugura uma nova ordem jurídica,
em que inova a Lei nº 13.140 de 26 de junho de 2015?
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