Você está na página 1de 26

Arbitragem em Conflitos que Envolvem o Estado: Análi-

se Prática da Aplicação do Instituto no Brasil


Gisela Burle Cosentino1

1 Graduada em direito pela Universidade Católica de Pernambuco, tendo cursado


parte da graduação na Università di Pisa. Membro do CAMARB Jovem. Membro da Asso-
ciação Brasileira dos Estudantes de Arbitragem – ABEArb. Membro do INOVARB – AM-
CHAM. Ex-Pesquisadora auxiliar do CNJ. Advogada. E-mail: gburlecosentino@gmail.com.
Resumo: A utilização da arbitragem nos conflitos que envolvem o
Estado foi objeto de muitas discussões no Brasil. Antes mesmo da edição
da Lei de Arbitragem, o Supremo Tribunal Federal já havia se posicionado
quanto à possibilidade de utilização dessa forma extrajudicial de resolução
de conflitos para dirimir controvérsias em que figuram como parte entes
públicos, e, a partir daí, foram-se desenvolvendo a doutrina e a jurisprudên-
cia pátria. Contudo, em que pese a pacificação da ideia geral de arbitragem
como meio adequado de resolução de disputas inclusive para o Estado, este
instituto não vem sendo razoavelmente utilizado pelos entes públicos.
Palavras-chave: Arbitragem – Meios Extrajudiciais de Resolução
de Conflitos – Estado – Administração Pública – Administração Pública
Consensual.
Sumário: 1. A Administração Pública contemporânea. 1.1. Fases
históricas. 1.2. Administração Pública consensual. 2. Arbitragem como
meio adequado de resolução de conflitos que envolvem o Estado. 2.1. Li-
nhas gerais sobre arbitragem. 2.2. A arbitrabilidade nos conflitos em que
figura como parte o Estado. 3. Arbitragem em conflitos que envolvem o
Estado: análise prática da aplicação do instituto no Brasil. 3.1. Panorama
teórico: pacificação da doutrina e jurisprudência. 3.2. Escassa utilização
da arbitragem em conflitos que envolvem o Estado.

Introdução

A arbitragem foi instituída no ordenamento jurídico brasileiro no


ano de 1996, através da Lei Federal n. º 9.307. No início, não se entendia
que esse método de resolução de conflitos era facultado ao Estado, posto
que, em seu primeiro artigo, a lei estabelece como arbitráveis apenas os
conflitos de direito patrimonial disponível, o que, aparentemente, conflita
com o princípio da indisponibilidade do interesse público.
A Lei Federal n. 13.129 de 2015 ultrapassou essa questão e eliminou
qualquer dúvida sobre a arbitrabilidade em conflitos com o Estado. Some-
se a isso a evolução do direito administrativo e da legislação no que tange à
participação da sociedade na Administração Pública, agora consensual, o que
serviu para propagar ainda mais o cabimento do instituto no meio público.

153
Contudo, em que pese a consensualização do Estado, resta a incer-
teza acerca da existência ou não de dissonância entre o nível de aceitação
doutrinária e jurisprudencial e o nível de utilização do instituto da arbitra-
gem nos conflitos envolvendo o Estado. A utilização da arbitragem pelos
entes estatais, mesmo diante da referida evolução, ainda parece escassa.

1. Administração Pública consensual

O Estado Democrático de Direito, com sua legalidade e horizontali-


dade, proporcionou a aproximação entre Administração Pública e adminis-
trados, incentivando a tomada de decisões administrativas que mais se apro-
ximam aos destinatários e propiciando maior participação dos cidadãos no
exercício dos poderes da nação. Na prática, houve uma atualização da Admi-
nistração Pública que passou a ser democrática, participativa e consensual.
Nas palavras de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, deve-se buscar
o “esgotamento das alternativas consensuais antes de recorrer-se às impo-
sitivas”.2 O rumo consensual é vantajoso à medida que:

É inegável que o consenso, como modo alternativo de ação estatal,


representa para a Política e para o Direito uma benéfica renova-
ção, pois, [...] contribui para aprimorar a governabilidade (eficiên-
cia), propicia mais freios contra os abusos (ilegalidade), garante a
atenção de todos os interesses (justiça), proporciona decisão mais
sábia e prudente (legitimidade), evita os desvios morais (licitude),
desenvolve a responsabilidade das pessoas (civismo) e torna os co-
mandos estatais mais aceitáveis e facilmente obedecidos (ordem).3

2 NETO, Diogo de Figueiredo Moreira. Administração Pública Consensual. Car-


ta Mensal, v. 42, n. 500. Rio de Janeiro: Confederação Nacional do Comércio, Conselho
Técnico, 1996, p. 63-73.
3 NETO, Diogo de Figueiredo Moreira. Algumas notas sobre o progresso da con-
sensualidade. Novas mutações juspolíticas – Em memória de Eduardo G. de Enterría,
jurista de dois mundos. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 176.

154
No Brasil, a consensualização das relações com o Estado é cada
vez mais expressiva.4 Um de seus exemplos é o Termo de Ajustamento
de Conduta, que pode ser firmado, dentre outros casos, nas hipóteses de
dano ou de iminência de dano ambiental, sendo medida aceita e apreciada
pela sociedade: evita litígios e ineficiência na medida em que garante o
interesse público da coletividade ao meio ambiente sadio.
A legislação pátria é permeada pela tendência consensual aqui de-
fendida. A flexibilização de cláusulas contratuais exorbitantes pela Lei das
Parcerias Público-privadas ou a repartição de riscos entre as partes, a pos-
sibilidade de aplicação de penalidade também à Administração e hipóte-
ses de inadimplência do Poder Público capazes de ensejar o acionamento
de garantia5 são exemplos da busca pela horizontalidade na relação do
Estado com a sociedade.
É levando em consideração esta tendência consensual da Adminis-
tração Pública, respeitando-se a legalidade, a eficiência e o interesse pú-
blico, que se entende pela possibilidade de submissão de litígios de direito
patrimonial disponível contra o Estado à jurisdição arbitral.

2. Arbitragem como meio adequado de resolução de conflitos que


envolvem o Estado

2.1. Linhas gerais sobre arbitragem

A arbitragem é um dos meios mais antigos de heterocomposição


de conflitos. Conhecida desde o Império Romano e da Antiga Grécia, é
procedimento privado pelo qual as partes elegem um terceiro, imparcial,
para dirimir determinado conflito. Ao final do procedimento é elaborada
uma sentença arbitral que, nos termos do artigo 515, inciso VII do Código
de Processo Civil, é título executivo judicial.

4 BORGES, Alice Gozales. Considerações sobre o futuro das cláusulas exorbitan-


tes nos contratos administrativos. Revista do Advogado: Contratos com o Poder Público,
ano XXIX, n. 107, São Paulo: AASP, nov. 2009, p. 20.
5 BORGES, op. cit., p. 16-24.

155
É certo afirmar que a arbitragem tem natureza jurídica inicialmente
contratual, à medida que é estabelecida por acordo entre as partes, assumin-
do, adiante, caráter jurisdicional, vez que o árbitro é juiz privado, equipara-
do ao juiz togado pelo artigo 18 do Código de Processo Civil, possuindo ca-
pacidade e competência de dizer o direito no caso concreto que lhe é posto.
São muitas as vantagens atribuídas à arbitragem. O procedimento
arbitral é, via de regra, mais rápido que o processo judicial e a decisão de
mérito é mais especializada, em razão da possibilidade de escolha do jul-
gador, o que implica, muitas vezes, a dispensa de perícia.
Em que pese a existência do instituto há séculos, ele só foi explicita-
mente adotado no Brasil através da Lei Federal n. º 9.307/1996, tardando,
contudo, a ser utilizado com maior frequência no país. Com nacionaliza-
ção do instituto, os questionamentos a seu respeito não pararam de surgir.
Os estudiosos buscavam entender melhor o procedimento, adequá-lo às
normas pátrias e testar a sua viabilidade em solo tupiniquim.
Para identificar se um determinado conflito pode ser levado ou não
à jurisdição privada do árbitro, deve-se levar em consideração dois pon-
tos básicos de admissibilidade do procedimento arbitral: a arbitrabilidade
objetiva e a arbitrabilidade subjetiva.

2.2. A arbitrabilidade nos conflitos em que figura como parte o Estado

2.2.1. Conceito de arbitrabilidade

A arbitrabilidade é a condição essencial conferida pelo ordenamen-


to jurídico para que os conflitos sejam submetidos à arbitragem6 – é como
um filtro que seleciona quem pode recorrer e o que pode ser discutido em
um procedimento arbitral.
No Brasil, os critérios de arbitrabilidade são trazidos pela Lei Brasi-
leira de Arbitragem, em seu artigo 1.º, que dispõe: “as pessoas capazes de
contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a
direitos patrimoniais disponíveis”. Neste sentido, percebe-se que a arbitra-

6 CAHALI, Francisco José. Curso de arbitragem. 5. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2015, p. 133.

156
bilidade possui dois aspectos: a arbitrabilidade subjetiva, ratione personae,
que trata daqueles que podem se valer da arbitragem; e, de outra parte, a
arbitrabilidade objetiva, ratione materiae, que estabelece quais matérias
podem ser levadas ao juízo arbitral.

2.2.2. A arbitrabilidade subjetiva

É fácil perceber a existência da arbitrabilidade subjetiva nos confli-


tos em que é parte o Estado. Os entes da Administração Pública direta e
indireta possuem personalidade jurídica própria e, conforme estabelece o
Código Civil brasileiro, podem exercer os atos da vida civil sem o auxílio
de terceiros, sendo capazes, portanto, de contratar.
Entender pela não arbitrabilidade dos conflitos oriundos de atos
negociais e de gestão do Estado seria quitar-lhe atributo inerente de sua
personalidade jurídica: sua autonomia contratual. Nas palavras de Fran-
cisco Mendes Pimentel:

Pode comprometer quem pode contratar. Ninguém nega que os


Estados podem celebrar contratos. Ninguém duvida que essas
convenções podem ser ajustadas entre essas pessoas jurídicas de
direito público interno. Portanto – pelas regras de “nosso direito
privado” pelas normas de nosso “processo civi” – podem os Esta-
dos comprometer.7 [sic]

Questão mais difícil, contudo, é a verificação da arbitrabilida-


de objetiva nesses conflitos.8 Ao mesmo tempo em que a Lei Federal n.º
9.307/1996 limita o uso da arbitragem para os casos que versem sobre
direitos patrimoniais disponíveis, a própria Constituição Federal de 1988
traz o princípio da indisponibilidade do interesse público como conceito
informador de toda a atuação da Administração Pública.

7 MENDES PIMENTEL, Francisco apud LEMES, Selma Ferreira. Arbitragem na


Administração Pública. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 121-122.
8 LEMES, op. cit., p. 124.

157
É possível deixar-se levar, portanto, por esta falsa imagem de an-
tagonismo entre o direito patrimonial e a indisponibilidade do interesse
público. Contudo, tais ideias não são contrapostas e, para além disto, po-
dem, inclusive, somar-se.

2.2.3. Arbitrabilidade objetiva e os enfoques do interesse público

2.2.3.1. Análise do interesse público

Antes de partir para a análise da arbitrabilidade objetiva, impres-


cindível é a conceituação – ou, pelo menos, esclarecimento – de alguns
termos inerentes ao estudo. Primeiramente, é preciso entender em que
se caracteriza o direito patrimonial disponível. Este, pois, é todo aquele
direito passível de valoração econômica e que pode ser exercido por seu
titular de acordo com os institutos negociais.
O princípio da indisponibilidade do interesse público, por sua vez,
é o interesse qualificado como próprio de toda a coletividade, sobre o
qual seu órgão administrativo representante sequer possui disponibilida-
de.99Ou seja, o princípio limita e pauta a atuação dos gestores públicos
no sentido do alcance dos interesses sociais da coletividade, os quais são
evidenciados no próprio interesse público e não podem ser dispensados
livre e discricionariamente pelo Poder Público.
Ainda preliminarmente, é preciso entender em que consiste o pró-
prio interesse público, trazido pela Constituição Federal de forma implícita.
O seu artigo 1º, por exemplo, estabelece a necessidade de busca do interesse
público pela Administração Pública, ao passo em que traz como fundamen-
tos da República Federativa do Brasil a cidadania, a dignidade humana, a
soberania, os valores sociais do trabalho, da livre iniciativa e do pluralismo
político. O artigo 3º, mais adiante, estabelece como objetivos a serem busca-
dos pela nação o desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza, a re-
dução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos.

9 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 32. ed.
São Paulo: Malheiros, 2015, p. 76.

158
Na tentativa de identificar o que representa o interesse público, parte
da doutrina acredita ser possível a sua conceituação e o define de cinco formas
diferentes: (i) uma soma de interesses privados, (ii) soma de certos interesses
privados, (iii) interesse social, (iv) interesse coletivo, e (v) interesse difuso.10
Em sentido oposto, porém, está grande parte da doutrina, defen-
dendo que o termo sequer pode ser conceituado.11 Nas palavras de Guil-
lermo Andrés Muñoz:

Un poco con el interés público, pasa como con el amor: quién no se


anima a decir que ha sentido que conoce lo que es el amor, que sus ve-
nas han latido a través del amor, que el ritmo de su pulso se ha movido
a través de esa cosa ancestral que es el amor? Sin embargo cuando al
amor se lo quiere definir, es como si desapareciera, como si perdiera
fuerzas, como si perdiera todo. Entonces, es mejor no definirlo.12 13

10 Estas diferentes conceituações são trazidas por Marçal Justen Filho (Conceito de
interesse público e a “personalização” do direito administrativo. Revista Trimestral de Di-
reito Público. São Paulo, n. 26, p. 115-136, 1999); Héctor Jorge Escola (El interés público
como fundamento del derecho administrativo. Buenos Aires: Depalma, 1989, p. 242); Ali-
ce Gonzalez Borges (Interesse Público: um conceito a determinar. Revista de Direito Ad-
ministrativo, Rio de Janeiro, v. 205, p. 109-116, jul/set. 1996); Hidemberg Alves de Frota (O
princípio da supremacia do interesse público sobre o privado no direito positivo comparado:
expressão do interesse geral da sociedade e da soberania popular. Revista de Direito Admi-
nistrativo, Rio de Janeiro, v. 60, n. 239, p. 45/65, jan/mar. 2005, p. 47-54); José Luís Bolzan
de Morais (Do direito social aos interesses transindividuais: o Estado e o direito na ordem
contemporânea. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996, p. 137-138).
11 Nesse sentido: VEDEL, Georges. Derecho Administrativo. Traducción de la 6ª edi-
ción francesa por Juan Rincón Jurado. Madrid: Biblioteca Jurídica Aguilar, 1980; TRUCHET,
Didier. Les fonctions de la notion d’intérêt général dans la jurisprudence du Conseil d’État.
Paris: La librairie juridique de référence en ligne, 1977; NIETO, Alejandro García. La Adminis-
tración sirve con objetividad los intereses generales. Estudios en homenaje a Eduardo García
de Enterría, v. III. Madrid: Editorial Civitas, 1997, p. 2185; PAJERO, Luciano Alfonso. Interés
público como criterio de control de la actividad administrativa, Biblioteca Digital del Banco
Interamericano de Desarrollo (BID) (www.iadb.org/etica). apud MUÑOZ, Guillermo Andrés.
Él interés público es como el amor. In: BACELLAR FILHO, Romeu Felipe; HACHEM, Daniel
Wunder (Coords.). Direito administrativo e interesse público: estudos em homenagem ao
Professor Celson Antônio Bandeira de Mello. Belo Horizonte: Fórum, 2010.
12 MUÑOZ, op. cit., p. 21-22.
13 Tradução livre: O interesse público se dá um pouco como o amor: quem não se

159
A partir daí, advêm as inúmeras conjecturas que o interesse público
assume atualmente: ora é apresentado pelo Estado, ora é defendido pelo
próprio particular ou usufruidor do serviço público; ora defendendo os in-
teresses sociais de uma determinada classe, ora resguardando os interesses
sociais de outra classe. O que se conclui, portanto, é que, dada sua grande
dimensão, o interesse público, muitas vezes, pode ser contraditório.
Ainda no tocante ao interesse público, cumpre analisar a diferencia-
ção feita por Renato Alessi, através da teoria del doppio, entre os níveis de
interesse público, em que é considerado: (a) primário, o interesse de toda a
coletividade na persecução do bem comum, intransponível e oriundo do
poder absoluto estatal; e (b) secundário, o interesse do Estado como pessoa
jurídica, de cunho patrimonial, oriundo de um poder estatal secundário.14
A impressão errônea de contradição entre o direito patrimonial dis-
ponível e a indisponibilidade do interesse público ocorre justamente em
razão da confusão de termos e da mistura das acepções de Renato Alessi.
Em que pese o interesse público tratar-se de vetor orientador da atuação
administrativa, muitos, por confundirem o interesse público primário com
o interesse público secundário, confundem também o princípio da indis-
ponibilidade do interesse público com a conotação do vernáculo disponível.
Ao entender que disponível significa a livre e discricionária disposição
de bens e utilizar esse conceito na interpretação do princípio da indisponibili-
dade do interesse público, perverte-se o sentido do princípio e embaralha-se a
arbitrabilidade objetiva dos procedimentos em que o Estado é parte.
Ora, dizer que determinado direito patrimonial do Estado é dis-
ponível nada mais é do que dizer que o interesse público por trás dele é
secundário, sendo aquele bem passível de valoração econômica e negocia-
ção conforme os institutos do direito privado. Tal negociação configura-
se, exatamente, no atendimento do interesse público, posto que a nego-

alegra em dizer que já sentiu e que conhece o que é o amor, que suas veias já bateram por
causa do amor, que o ritmo de seu pulso já se moveu através desta coisa ancestral que é o
amor? Contudo quando se quer definir o amor, este parece desaparecer, é como se perdes-
se forças, como se perdesse tudo. Então, é melhor não o definir.
14 ALESSI, Renato. Sistema istituzionale del diritto amministrativo italiano.
Milano: Giuffrè, 1953, p. 147-182.

160
ciação deve ser feita visando à consecução do interesse da coletividade, o
interesse público.15 Nesse sentido, explica Marçal Justen Filho:

O argumento de que a arbitragem nos contratos administrativos


é inadmissível porque o interesse público é indisponível conduz a
um impasse insuperável. Se o interesse público é indisponível ao
ponto de excluir a arbitragem, então seria indisponível igualmente
para o efeito de produzir contratação administrativa. Assim como
a Administração Pública não disporia de competência para criar
a obrigação vinculante relativamente ao modo de composição do
litígio, também não seria investida do poder para criar qualquer
obrigação vinculante por meio contratual. Ou seja, seriam invá-
lidas não apenas as cláusulas de arbitragem, mas também e igual-
mente todos os contratos administrativos.16

Entende-se, portanto, que a análise do interesse público deve ser fei-


ta caso a caso, posto que às vezes suas características principais podem se
contradizer. Um exemplo nítido de tal antagonismo é o reequilíbrio econô-
mico-financeiro que ocorre com frequência nos contratos administrativos:
opõe-se a necessidade de continuidade do serviço público à proteção do
patrimônio financeiro estatal – ambos constituintes do interesse público,17
sendo que um é interesse público primário e o outro, secundário.
O interesse público, bem valioso e pretendido por cada indivíduo e
que se identifica com o querer geral de toda a coletividade,18 é amplo e al-
berga várias facetas, as quais devem ser sobrepostas no sentido de garantir
a sua correta análise.

15 DI PIETRO, Maria Sylvia. As possibilidades de arbitragem em contratos admi-


nistrativos, 2015. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-set-24/interesse-publico-
-possibilidades-arbitragem-contratos-administrativos2>. Acessado em 26 de abril de 2017.
16 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 11. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2015, p. 824-825.
17 DI PIETRO, op. cit
18 ESCOLA, op. cit.

161
2.2.3.2. Interesse público no procedimento arbitral

O interesse público é evidenciado em um procedimento arbitral me-


diante a celeridade no julgamento da causa, a precisão e especificidade da
decisão e a obtenção de maiores investimentos de particulares. Tudo isso,
muitas vezes, se sobrepõe à economicidade imediata da jurisdição estatal.
A submissão de um litígio com o Estado à apreciação de um tri-
bunal arbitral, portanto, não enseja o esquecimento do interesse público,
mas, sim, o respeito a esse mesmo princípio. Com efeito, não é compatível
com o interesse público primário a obrigatoriedade de recurso judicial,
esfera que não tem o conhecimento técnico necessário à resolução de
muitas questões pertinentes ao Estado e que tarda anos a fio para solucio-
nar litígios. Ao optar pelo procedimento arbitral, o gestor público escolhe
solucionar determinada lide de forma célere e técnica, precisamente em
atenção ao interesse público19. Explica Carlos Alberto Carmona:

supondo que a Administração persiga sempre o escopo de concre-


tização da justiça [e o interesse público], é de todo recomendável
que, havendo qualquer dissenso em contratos de que participe, seja
a controvérsia resolvida pela via mais rápida, mais técnica e menos
onerosa, evitando-se procrastinação indesejável.20

Para além disso, o princípio da legalidade se coaduna com o aqui


exposto. A Lei Federal nº. 13.129 promulgada em 2015 positivou inequi-
vocamente no ordenamento jurídico a possibilidade da arbitragem nos
litígios em que é parte o Estado: o legislador, responsável por balizar o
interesse público a ser perseguido pelos administradores públicos, expli-
citou a compatibilidade do procedimento arbitral com o interesse público,

19 Neste sentido: GROTTI, Dinorá Musetti. A arbitragem e a Administração Pública.


In: GUILHERME, Luiz Fernando do Vale de Almeida (Org.). Novos rumos da arbitragem
no Brasil. São Paulo: Fiuza, 2004, p. 153; DALLARI, Adílson Abreu. Arbitragem na conces-
são de serviço Público. Revista Trimestral de Direito Público, n. 13, p. 5-10, 1996.
20 CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo – Um comentário à Lei nº
9.307/96. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 66.

162
razão pela qual a utilização do instituto pelo Poder Público vai de acordo
com o princípio da legalidade.21
Nesse sentido, valioso o entendimento do Superior Tribunal de
Justiça no Mandado de Segurança nº. 11.308 do Distrito Federal, publica-
do em 19.5.2008, de relatoria do então Ministro Luiz Fux, que ao enten-
der que o “uso da arbitragem não é defeso aos agentes da administração,
como, antes é recomendável, posto que privilegia o interesse público”, en-
frenta, ponto a ponto, todo o explanado até o momento:
Nesse sentido, valioso o entendimento do Superior Tribunal de
Justiça no Mandado de Segurança nº. 11.308 do Distrito Federal, publi-
cado em 19.5.2008, de relatoria do então Ministro Luiz Fux, que ao enten-
der que o “uso da arbitragem não é defeso aos agentes da administração,
como, antes é recomendável, posto que privilegia o interesse público”, en-
frenta, ponto a ponto, todo o explanado até o momento:

ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. PERMIS-


SAO DE ÁREA PORTUÁRIA. CELEBRAÇAO DE CLÁUSULA
COMPROMISSÓRIA. JUÍZO ARBITRAL. SOCIEDADE DE
ECONOMIA MISTA. POSSIBILIDADE. ATENTADO. 1. Manda-
do de segurança impetrado contra ato do Ministro de Estado da
Ciência e Tecnologia, ante a publicação da Portaria Ministerial nº
782, publicada no dia 07 de dezembro de 2005, que anuiu com a
rescisão contratual procedida pela empresa NUCLEBRÁS EQUI-
PAMENTOS PESADOS S/A - NUCLEP, com a ora impetrante, em-
presa TMC -TERMINAL MULTIMODAL DE COROA GRANDE
-SPE - S/A. 2. Razões do pedido apoiadas nas cláusulas 21.1 e 21.2,
do Contrato de Arrendamento para Administração, Exploração e
Operação do Terminal Portuário e de Área Retroportuária (Com-
plexo Portuário), lavrado em 16/12/1997 (fls.31/42), de seguinte
teor: “Cláusula 21.1 Para dirimir as controvérsias resultantes deste
Contrato e que não tenham podido ser resolvidas por negociações

21 MELLO, Rafael Muñoz. Arbitragem e Administração Pública. Direito do Esta-


do em Debate – Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Estado do Paraná. Curitiba,
n. 6, p. 47-48, 2015.

163
amigáveis, fica eleito o foro da Comarca do Rio de Janeiro, RJ,
em detrimento de outro qualquer, por mais privilegiado que seja.
Cláusula 21.2 - Antes de ingressar em juízo, as partes recorrerão ao
processo de arbitragem previsto na Lei 9.307, de 23.09.06. 3. Ques-
tão gravitante sobre ser possível o juízo arbitral em contrato admi-
nistrativo, posto relacionar-se a direitos indisponíveis. 4. O STF,
sustenta a legalidade do juízo arbitral em sede do Poder Público,
consoante precedente daquela corte acerca do tema, in “Da Arbi-
trabilidade de Litígios Envolvendo Sociedades de Economia Mista
e da Interpretação de Cláusula Compromissória”, publicado na Re-
vista de Direito Bancário do Mercado de Capitais e da Arbitragem,
Editora Revista dos Tribunais, Ano 5, outubro - dezembro de 2002,
coordenada por Arnold Wald, e de autoria do Ministro Eros Grau,
esclarece às páginas 398/399 , in litteris: “Esse fenômeno, até certo
ponto paradoxal, pode encontrar inúmeras explicações, e uma de-
las pode ser o erro, muito comum de relacionar a indisponibilidade
de direitos a tudo quanto se puder associar, ainda que ligeiramente,
à Administração.” Um pesquisador atento e diligente poderá facil-
mente verificar que não existe qualquer razão que inviabilize o uso
dos tribunais arbitrais por agentes do Estado.

Tratando, então, do entendimento do Supremo Tribunal Federal


quando do julgamento do Caso Lage – anos antes da promulgação da Lei
de Arbitragem e que será tratado no próximo tópico do presente estudo
–, continua o acórdão:

Aliás, os anais do STF dão conta de precedente muito expressivo,


conhecido como “caso Lage”, no qual a própria União submeteu-se
a um juízo arbitral para resolver questão pendente coma Organi-
zação Lage, constituída de empresas privadas que se dedicassem a
navegação, estaleiros e portos. A decisão nesse caso unanimemente
proferida pelo Plenário do STF é de extrema importância porque
reconheceu especificamente “a legalidade do juízo arbitral, que o
nosso direito sempre admitiu e consagrou, até mesmo nas cau-
sas contra a Fazenda.” Esse acórdão encampou a tese defendida em

164
parecer da lavra do eminente Castro Nunes e fez honra a acórdão
anterior, relatado pela autorizada pena do Min, Amaral Santos. Não
só o uso da arbitragem não é defeso aos agentes da administração,
como, antes é recomendável, posto que privilegia o interesse pú-
blico”. (grifou-se)

Passos a frente, o acórdão do Superior Tribunal de Justiça aborda a


questão dos direitos disponíveis e de sua compatibilidade com a legislação
que trata da Administração Pública, bem assim dos entendimentos dou-
trinários acerca do princípio do interesse público:

5. Contudo, naturalmente não seria todo e qualquer direito públi-


co sindicável na via arbitral, mas somente aqueles conhecidos como “dis-
poníveis”, porquanto de natureza contratual ou privada. 6. A escorreita
exegese da dicção legal impõe a distinção jus-filosófica entre o interesse
público primário e o interesse da administração, cognominado “interesse
público secundário”. Lições de Carnelutti, Renato Alessi, Celso Antônio
Bandeira de Mello e Min. Eros Roberto Grau. [...] 8. Deveras, é assente na
doutrina e na jurisprudência que indisponível é o interesse público, e não
o interesse da administração. 9. Nesta esteira, saliente-se que dentre os
diversos atos praticados pela Administração, para a realização do inte-
resse público primário, destacam-se aqueles em que se dispõe de deter-
minados direitos patrimoniais, pragmáticos, cuja disponibilidade, em
nome do bem coletivo, justifica a convenção da cláusula de arbitragem
em sede de contrato administrativo. (grifou-se)

Por fim, conclui o acórdão que a escolha pela arbitragem não fere o
interesse público, mas, ao contrário, respeita o próprio princípio e confere
celeridade ao procedimento, garantindo o atendimento do direito à justiça:

11. Destarte, é assente na doutrina que “Ao optar pela arbitragem


o contratante público não está transigindo com o interesse público,
nem abrindo mão de instrumentos de defesa de interesses públicos,
Está, sim, escolhendo uma forma mais expedita, ou um meio mais
hábil, para a defesa do interesse público. Assim como o juiz, no pro-

165
cedimento judicial deve ser imparcial, também o árbitro deve decidir
com imparcialidade, O interesse público não se confunde com o mero
interesse da Administração ou da Fazenda Pública; o interesse público
está na correta aplicação da lei e se confunde com a realização correta
da Justiça.” (grifou-se ) (In artigo intitulado “Da Validade de Convenção
de Arbitragem Pactuada por Sociedade de Economia Mista”, de autoria
dos professores Arnold Wald, Atlhos Gusmão Carneiro, Miguel Tostes de
Alencar e Ruy Janoni Doutrado, publicado na Revista de Direito Bancário
do Mercado de Capitais e da Arbitragem, nº 18, ano 5, outubro-dezembro
de 2002, página 418.) 12 . Em verdade, não há que se negar a aplicabi-
lidade do juízo arbitral em litígios administrativos, em que presente
direitos patrimoniais do Estado, mas ao contrário, até mesmo incenti-
vá-la, porquanto mais célere, nos termos do artigo 23 da Lei 8987/95, que
dispõe acerca de concessões e permissões de serviços e obras públicas, que
prevê em seu inciso XV, entre as cláusulas essenciais do contrato de con-
cessão de serviço público, as relativas ao “foro e ao modo amigável de so-
lução de divergências contratuais”. 13. Precedentes do Supremo Tribunal
Federal: SE 5206 AgR / EP, de relatoria do Min. SEPÚLVEDA PERTEN-
CE, publicado no DJ de 30-04-2004 e AI. 52.191, Pleno, Rel. Min. Bilac
Pinto. in RTJ 68/382 – “Caso Lage”. Cite-se ainda MS 199800200366-9,
Conselho Especial, TJDF, J. 18.05.1999, Relatora Desembargadora Nancy
Andrighi, DJ18.08.1999, 14. Assim, é impossível desconsiderar a vigência
da Lei 9.307/96 e do artigo 267, inc. VII do CPC, que se aplicam inteira-
mente à matéria sub judice, afastando definitivamente a jurisdição esta-
tal no caso dos autos, sob pena de violação ao princípio do juízo natural
(artigo 5º, LII da Constituição Federal de 1988). 15. É cediço que o juízo
arbitral não subtrai a garantia constitucional do juiz natural, ao contrário,
implica realizá-la, porquanto somente cabível por mútua concessão entre
as partes, inaplicável, por isso, de forma coercitiva, tendo em vista que
ambas as partes assumem o “risco” de serem derrotadas na arbitragem.
Precedente: Resp. nº 450881 de relatoria do Ministro Castro Filho, publi-
cado no DJ 26.05.2003: 16. Deveras, uma vez convencionado pelas partes
cláusula arbitral, será um árbitro o juiz de fato e de direito da causa, e a
decisão que então proferir não ficará sujeita a recurso ou à homologação
judicial, segundo dispõe o artigo 18 da Lei 9.307/96, o que significa dizer

166
que terá os mesmos poderes do juiz togado, não sofrendo restrições na
sua competência. [...] 19. Agravo Regimental desprovido.22 (grifou-se)
A doutrina brasileira, de igual forma, tem entendido pela arbitrabili-
dade objetiva em lides que envolvem o Estado nas seguintes hipóteses:223a-
tos de gestão, atos negociais, contratos de direito privado, empresas estatais
que desenvolvem atividade econômica e serviços comerciais e industriais
do Estado. Em todos esses casos, o Poder Público atua com direitos patri-
moniais disponíveis, via de regra, em situação de isonomia com os particu-
lares, mediante negociação do interesse público secundário.
Ainda, oportuno diferenciar a indisponibilidade do direito material
da indisponibilidade da pretensão à tutela jurisdicional estatal.24 É certo
que a indisponibilidade é a impossibilidade de renúncia a uma posição
jurídica, contudo, quando esta incide tão somente na pretensão à tutela
jurisdicional estatal, em nada interfere com o interesse público, vez que
o árbitro é investido de poder decisório e é um verdadeiro juiz privado.25
Portanto, sempre que a Administração Pública puder contratar,
o que significa disponibilidade de direito patrimonial, poderá contratar
também cláusula de arbitragem;26 da mesma forma que sempre que o con-
flito com o Estado for de ordem patrimonial e puder ser resolvido sem a
intervenção do Poder Judiciário, será arbitrável,27 tudo isso sem que im-
porte disposição do interesse público.

22 BRASIL. STJ. MS 11.308, Primeira Seção, Rel. Min. Luiz Fux, Dje 19.05.2008.
23 MARTINS, Pedro Batista apud LEMES, op. cit., p. 78.
24 TALAMINI, Eduardo. A (in)disponibilidade do interesse público: consequên-
cias processuais (composições em juízo, prerrogativas processuais, arbitragem, negócios
processuais e ação monitória) – versão atualizada para o CPC/2015. Revista de Processo.
v. 264. ano 42. p. 83-107, São Paulo: Ed. RT, fev. 2017.
25 CAHALI, Francisco José. Curso de arbitragem. 5. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2015, p. 226.
26 GRAO, Eros Roberto apud LEMES, op. cit., p. 123.
27 TALAMINI, Eduardo. A (in)disponibilidade do interesse público: consequên-
cias processuais (composições em juízo, prerrogativas processuais, arbitragem, negócios
processuais e ação monitória) – versão atualizada para o CPC/2015. Revista de Processo.
v. 264, ano 42. p. 83-107, São Paulo: Ed. RT, fev. 2017.

167
Afinal, como assinalou Diogo de Figueiredo Moreira Neto, “jamais
se cogita negociar o interesse público, mas se negociar os modos de atin-
gi-lo com maior eficiência”, posto que ao mesmo passo em que existe o
interesse público do conflito, tão importante é resolvê-lo.28
Ao sopesar o princípio da indisponibilidade do interesse público
com a arbitrabilidade objetiva, portanto, percebe-se que estes se alinham
e juntos delimitam o objeto da arbitragem com o Estado – que deve res-
peitar as leis pátrias, garantindo a preponderância do interesse público
primário e precípuo do caso em concreto.

3. Arbitragem em conflitos que envolvem o Estado: análise prática


da aplicação do instituto no Brasil

3.1. Panorama teórico: pacificação da doutrina e jurisprudência


3.1.1. Esboço histórico

É certo que, antes mesmo da Lei de Arbitragem e da Lei nº.


13.129/2015, que expressamente permitiu a participação de entes públicos
em procedimentos arbitrais, esse mecanismo já era utilizado pela Admi-
nistração Pública, tendo o Supremo Tribunal Federal, inclusive, manifes-
tado-se quanto à sua constitucionalidade em julgado que ficou conhecido
como Caso Lage. Dado seu pioneirismo e importância, transcreve-se a
ementa do caso:

INCORPORAÇÃO, BENS E DIREITOS DAS EMPRESAS ORGA-


NIZAÇÃO LAGE E DO ESPOLIO DE HENRIQUE LAGE. JUÍZO
ARBITRAL. CLÁUSULA DE IRRECORRIBILIDADE. JUROS DA
MORA. CORREÇÃO MONETÁRIA. 1. Legalidade do juízo arbi-
tral, que o nosso direito sempre admitiu e consagrou, até mesmo nas
causas contra a fazenda. Precedente do supremo tribunal federal. 2.
Legitimidade da cláusula de irrecorribilidade de sentença arbitral,
que não ofende a norma constitucional. 3. Juros de mora concedi-

28 NETO, op. cit., p. 159-192.

168
dos, pelo acórdão agravado, na forma da lei, ou seja, a partir da pro-
positura da ação. Razoável interpretação da situação dos autos e da
lei n. 4.414, de 1964. 4. Correção monetária concedida, pelo tribunal
a quo, a partir da publicação da lei n. 4.686, de 21.6.65. Decisão cor-
reta. 5. Agravo de instrumento a que se negou provimento.29

A pacificação da viabilidade da arbitragem para resolução de con-


flitos públicos teve seu pontapé inicial, portanto, com o Caso Lage em
1973. Neste julgado, entendeu-se possível a sujeição da União à jurisdição
arbitral nas desapropriações das Organizações Lage, para a quantificação
do valor indenizatório a ser pago em face de desapropriação ocorrida em
1942, conforme houvera determinado o Decreto-Lei nº 9.521, de 1946.30
Dois pontos chamam especial atenção na análise do julgado: a “legalidade
do juízo arbitral”, e “o nosso direito sempre [o] admitiu e consagrou, até
mesmo nas causas contra a fazenda”.
Com efeito, este leading case brasileiro da arbitragem com o Es-
tado foi baseado precisamente no juízo de que nunca houve vedação na
legislação pátria quanto à utilização da arbitragem em causas públicas.
Este entendimento tem fulcro histórico, pois há comprovação da ampla
utilização da arbitragem pelo Estado no Brasil Império;31 legal, pois a lei
não impedia a sua utilização; e doutrinário, pois desde meados da década
de 1950, doutrinadores brasileiros dispunham sobre a natureza contratual
da arbitragem e sua adequação com a autonomia contratual do Estado em
suas relações contratuais privadas.32
Contudo, muitos foram os juristas que, por diversas razões, enten-
deram pela inconstitucionalidade do instituto na Administração Pública,
e alguns advogam neste sentido até os dias atuais. Lúcia Valle Figueiredo,
por exemplo, afirmava não ser possível levar a um árbitro privado con-
flitos em que figurava como parte o Estado, porque se estaria violando o

29 BRASIL. STF. AI 52181, Tribunal Pleno, Rel. Min. Bilac Pinto, Dje 14.11.1973.
30 LEMES, op. cit., p. 79-81.
31 LEMES, op. cit., p. 63-70.
32 NUNES, José de Castro apud LEMES, op. cit., p. 79-80.

169
artigo 5º, incisos XXXV, LXIX, LXX e LXXIII da Constituição Federal,
que tratam da inafastabilidade do poder judiciário e da possibilidade de
impetração de mandado de segurança ou ajuizamento de ação popular
para anular ato lesivo ao interesse público.33
Neste mesmo sentido, Carlos Medeiros Silva afastava o cabimento
da arbitragem nos contratos com o Poder Público, em razão da impossibi-
lidade de renúncia da função administrativa de dizer o direito, que estaria
sendo cedida ao árbitro.34

3.1.2. Atualização legal e pacificação da doutrina e jurisprudência

Através da Lei de Arbitragem, o instituto foi positivamente afir-


mado no Brasil e começou a ter sua prática difundida no país. Contudo,
referida norma não previa expressamente a possibilidade de utilização do
procedimento arbitral pelo Estado, tratando tão somente da “capacidade
negocial”, para referir-se à arbitrabilidade subjetiva, e dos “direitos patri-
moniais disponíveis”, para tratar da arbitrabilidade objetiva.
Apenas com a promulgação da Lei Federal nº. 13.129/2015, que
reformou a legislação arbitral, é que começa a superar-se tal questão. Re-
ferida lei previu, de forma expressa, a possibilidade de utilização da arbi-
tragem nos casos com o Estado.
Dentre outras mudanças, a referida lei ampliou o âmbito de aplicação
da arbitragem e acrescentou o parágrafo primeiro ao art. 1º da Lei de Arbitra-
gem, explicitando a faculdade do Estado de utilizar-se da jurisdição arbitral e,
assim, erradicando quaisquer dúvidas que pudessem existir quanto à matéria.
Com o desenvolvimento do instituto na legislação, a doutrina che-
gou a um consenso majoritário quanto à possibilidade de utilização da
arbitragem pelos entes e entidades estatais. Os argumentos trazidos por
Lúcia Valle Figueiredo, apresentados acima, foram superados: a ação de
anulação de sentença arbitral pode ser ajuizada com o fito de evitar abusos
e violações ao interesse público, assim como não há que se falar em vio-

33 FIGUEIREDO, Lúcia Valle apud LEMES, op. cit., p. 75-79.


34 SILVA, Carlos Medeiros apud LEMES, op. cit., p. 73-74.

170
lação ao acesso à justiça, posto que, nas palavras de Diogo de Figueiredo
Moreira Neto, a justiça e a jurisdição não se confundem:

monopólio [de jurisdição é] indisputável do Estado, já que é abso-


lutamente necessário que exista esse terceiro, parte neutra e dotado
de atributos de coercitividade, para dar a última palavra em todas
as controvérsias litigiosas; ocorre apenas que essa prerrogativa não
envolve, não elimina nem prejudica a busca de “justiça”, enquanto
anseio e atividade humana que não é monopólio de ninguém, nem
mesmo das organizações políticas.35

Ademais, com esse mesmo argumento de diferenciação entre mono-


pólio de jurisdição e monopólio de justiça, José de Castro Nunes suplantou
as questões acerca da suposta inconstitucionalidade do juízo arbitral em
face da competência constitucional processual para causas contra a União
– o acesso à justiça regular é garantido com solução semelhante à judicial.36
Nesse sentido, ainda, as afirmações de Carlos Medeiros Silva acerca
da cessão de função administrativa restaram sobrepujadas, haja vista, nas
palavras de Selma Lemes, “inconteste confusão entre o mister de árbitro,
aquele que dirime controvérsia, com a posição da autoridade administra-
tiva que decide questões que lhe são próprias”.37
Foi extensa, também, a contribuição da jurisprudência dos tribu-
nais superiores na construção de um entendimento pacífico acerca do
tema. Não é ocioso reforçar, o ponto de partida para tal uniformização
foi o julgamento do Caso Lage, proferido pelo Supremo Tribunal Federal
ainda no ano de 1973, tendo o Superior Tribunal de Justiça, ao seu turno,
manifestado-se pela primeira vez a respeito do tema no ano de 2006 – res-
salte-se que também antes da edição da Lei 12.319/2015 –, julgando caso
que discutia questões meramente contratuais:

35 NETO apud LEMES, op. cit., p. 107-108.


36 NUNES apud LEMES, op. cit., p. 75-77.
37 LEMES, op. cit., p. 73-74.

171
PROCESSO CIVIL. JUÍZO ARBITRAL. CLÁUSULA COMPRO-
MISSÓRIA. EXTINÇÃO DO PROCESSO. ART. 267, VII, DO
CPC. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. DIREITOS DISPO-
NÍVEIS. EXTINÇÃO DA AÇÃO CAUTELAR PREPARATÓRIA
POR INOBSERVÂNCIA DO PRAZO LEGAL PARA A PROPOSI-
ÇÃO DA AÇÃO PRINCIPAL. 1. Cláusula compromissória é o ato
por meio do qual as partes contratantes formalizam seu desejo de
submeter à arbitragem eventuais divergências ou litígios passíveis
de ocorrer ao longo da execução da avença. Efetuado o ajuste, que
só pode ocorrer em hipóteses envolvendo direitos disponíveis, fi-
cam os contratantes vinculados à solução extrajudicial da pendên-
cia. 2. A eleição da cláusula compromissória é causa de extinção do
processo sem julgamento do mérito, nos termos do art. 267, inciso
VII, do Código do Processo Civil. 3. São válidos e eficazes os con-
tratos firmados pelas sociedades de economia mista exploradoras
de atividade econômica de produção ou comercialização de bens
ou de prestação de serviços (CF, art. 173, § 1o) que estipulem cláu-
sula compromissória submetendo à arbitragem eventuais litígios
decorrentes do ajuste. 4. Recurso especial parcialmente provido.38

Dois anos mais tarde, em julgamento de mandado de segurança já


transcrito nesse trabalho,39 o Superior Tribunal de Justiça se manifestou
de maneira mais ampla e aprofundada, passando, então, a entender que
“não só o uso da arbitragem não é defeso aos agentes da administração,
como, antes é recomendável, posto que privilegia o interesse público”.40
Em 2012, esse mesmo tribunal superior entendeu que as questões
referentes ao equilíbrio econômico-financeiro dos contratos administra-
tivos configuram direitos patrimoniais, também arbitráveis41 e que a au-

38 STJ. REsp 612.439/RS, Segunda Turma, Rel. Min. João Otávio Noronha, julga-
do em 25/10/2005, DJ de 14/09/2006.
39 Vide nota 21.
40 BRASIL. STJ. MS 11.308, Primeira Seção, Rel. Min. Luiz Fux, Dje 19.05.2008.
41 BRASIL. STJ. REsp 904.813/PR, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi,
Dje 28.02.2012.

172
sência de previsão acerca da arbitragem no edital do certame não invalida
compromisso posterior firmado entre o Estado e a sociedade contratada.
De mais a mais, da análise dos precedentes judiciais, até os dias atuais, é
possível verificar que, de forma crescente, as cortes apoiam a faculdade do
Estado de utilizar-se da via arbitral.42
Assim foi se desenvolvendo a doutrina em sintonia à jurisprudên-
cia: enquanto Hely Lopes Meireles afirmava, ainda em 2013, que a arbitra-
gem com o Estado era possível e facultativa era a sua utilização,43 o Supre-
mo Tribunal Federal asseverava a possibilidade da utilização do instituto
pelo Estado, tudo antes mesmo da própria Lei de Arbitragem.44

3.2. Escassa utilização da arbitragem em conflitos que envolvem o Estado

3.2.1. Estudo desenvolvido por Selma Ferreira Lemes


Apesar de o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de
Justiça já possuírem consolidado entendimento quanto à possibilidade de
o Estado se valer da arbitragem para dirimir conflitos de direito patrimo-
nial disponível, tendo, inclusive, a doutrina majoritária referendado tal
entendimento, a utilização deste mecanismo ainda é escassa
Em estudo desenvolvido pela jurista Selma Ferreira Lemes, pu-
blicado em julho de 2016,45 foram analisados os principais centros de
arbitragem do país, o Centro de Arbitragem da AMCHAM – Brasil
(AMCHAM), o Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio Brasil-

42 Vide as várias recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça sobre as arbitra-


gens da Petrobrás e União, como o Conflito de competência nº 151.130/SP, de relatoria da
Ministra Nancy Andrighi, em que foi revista decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª
Região, no sentido de determinar a participação da União em procedimento arbitral mo-
vido pelos acionistas da Petrobrás, conforme cláusula arbitral constante do estatuto social
da sociedade de economia mista.
43 MEIRELES, Hely Lopes apud LEMES, op. cit., p. 113,
44 Vide Caso Lage, nota 46.
45 LEMES, Selma Ferreira. Pesquisa: arbitragem em números e valores, 2016. Dis-
ponível em: <http://selmalemes.adv.br/noticias/An%C3%A1lise%20da%20pesquisa%20
arbitragens%20em%20n%C3%BAmeros%202010%20a%202015.pdf>. Acessado em 01 de
junho de 2017.

173
Canadá (CCBC), a Câmara de Mediação, Conciliação e Arbitragem de
São Paulo (CIESP/FIESP), a Câmara de Arbitragem do Mercado (BO-
VESPA), a Câmara de Arbitragem da Fundação Getúlio Vargas (CAM-
FGV) e a Câmara de Arbitragem Empresarial – Brasil (CAMARB), e
descobriu-se que, no ano de 2015, existiam apenas vinte arbitragens en-
volvendo o poder público no Brasil.
Além disso, o estudo aponta que as referidas câmaras arbitrais possu-
íam, quando da pesquisa, 566 (quinhentos e sessenta e seis) arbitragens em
trâmite. Ou seja, o percentual de processos em que figura como parte um
ente público, em 2015, era de pouco mais de 3,5% (três e meio por cento):

Figura 1 – Análise das partes litigantes em arbitragem no ano de 2015.

Percebe-se que o número de procedimentos arbitrais em que figura


o Estado, seja ele administração direta ou indireta, de âmbito municipal,
estadual ou federal, é ínfimo quando comparado à quantidade de proce-
dimentos existentes em trâmite em território nacional.

3.2.2. Experiência da CAMARB – Câmara de Arbitragem Empresarial Brasil

Outro estudo que merece atenção foi desenvolvido pela CAMARB.


Com atuação mais relevante no âmbito da arbitragem com o Estado, dentre
as arbitragens iniciadas pela referida câmara no ano de 2014, 17% (dezes-
sete por cento) possuía algum ente da Administração Pública como parte.

174
Figura 2 – Distribuição dos procedimentos arbitrais instituídos na CAMARB, por partes
envolvidas, no ano de 2014.

Contudo, ao comparar os dados da CAMARB relativos ao ano de


2014 com os dados desta mesma câmara atinentes ao período compreen-
dido entre os anos de 2014 e 2016, percebe-se uma diminuição no percen-
tual de arbitragens em que figura como parte o Estado. Dentre os 78 (se-
tenta e oito) procedimentos arbitrais instaurados na câmara no período
mencionado, 12 (doze) possuíam algum ente da Administração Pública
como parte, perfazendo o percentual de 15% (quinze por cento).

Figura 3 – Distribuição dos procedimentos arbitrais instituídos na CAMARB, por partes


envolvidas, entre 2014 e 2016.

175
3.2.3. Comparação do estudo de Selma Ferreira Lemes e da CAMARB
com pesquisa da Associação dos Magistrados do Brasil

Ao comparar os dados obtidos pela jurista e os dados da experi-


ência da CAMARB com os obtidos pela Associação dos Magistrados do
Brasil mediante pesquisa intitulada “O Uso da Justiça e o Litígio no Bra-
sil”,46 realizada com o intuito de analisar os agentes atuantes nos tribunais
pátrios também no ano de 2015, o resultado da sobreposição é destoante.
A pesquisa da Associação dos Magistrados do Brasil demonstra
que o Estado, de forma geral, é o maior litigante em juízo, estando pre-
sente em mais de 50% (cinquenta por cento) das demandas nos oito entes
federativos em que foi realizado o estudo.
No Estado da Bahia, por exemplo, 71,5% (setenta e um vírgula cin-
co por cento) das demandas em trâmite no primeiro grau foram ajuizadas
pela Administração Pública Municipal. Por sua vez, a Fazenda Pública do
Distrito Federal ingressou com 71% (setenta e um por cento) das deman-
das em trâmite no primeiro grau dos tribunais locais, enquanto que no
Estado de São Paulo o percentual de ações ingressadas pelo Órgão Público
Municipal foi de 62,3% (sessenta e dois vírgula três por cento).
Diante desses dados, denota-se que (i) o Estado é o maior litigante
em juízo do Brasil; e (ii) a participação do Estado nos processos arbitrais
é mínima.

46 AMB. O Uso da Justiça e o Litígio no Brasil, 2015. Disponível em: <https://


d2f17dr7ourrh3.cloudfront.net/wp-content/uploads/2015/08/O-uso-da-Justi%C3%A7a-
-e-o-lit%C3%ADgio-no-Brasil.pdf>. Acessado em 01 de junho de 2017.

176

Você também pode gostar