Você está na página 1de 6

FGV Direito SP

Mestrado Profissional em Direito dos Negócios


Arranjos Negociais I
Professor: Pedro Ricardo e Serpa
Aluna: Gisela Burle Cosentino
Matrícula: C367786

Análise jurídica da indústria de Venture Capital

1. NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

Não há qualquer dúvida que a tecnologia chegou para ficar. Apenas no primeiro
trimestre de 2022, dados levantados pelo Transactional Track Record (TTR) indicam
que o mercado de Venture Capital brasileiro movimentou quase R$ 9 bilhões, em 173
rodadas de investimento. E o segredo por trás de números tão altos, além de decorrer
– é claro – do alto potencial de retorno dos negócios de risco e da disponibilidade de
capital, também perpassa pelos aspectos jurídicos do mercado. O objeto deste
trabalho é abordar a indústria de Venture Capital por meio de seus aspectos jurídicos.

Sabe-se que as startups são aquelas empresas em etapa inicial de operação, que
desenvolvem um modelo de negócios inovador, seja ele um produto ou serviço, com o
intuito de solucionar um problema vivenciado por uma grande quantidade de pessoas,
físicas ou jurídicas, e que, portanto, possuem um alto potencial de escalabilidade. Estas
empresas dependem fortemente de seu time fundador, possuem despesas altas, têm
receita limitada e, assim, são permeadas por um alto risco atrelado a um alto potencial
de retorno em prazo razoável. A principal forma encontrada por essas empresas para
fazer frente às altas despesas e à receita limitada é, justamente, a captação de
recursos externos, nas chamadas rodadas de investimento que formam a indústria de
Venture Capital.

Os principais participantes da indústria são os próprios empreendedores – chamados


“fundadores” – e os investidores, que podem ser investidores-anjo, investidores
institucionais, familly offices, bancos de investimento e outras instituições financeiras
ou até empresas consolidadas com braço voltado à inovação. Cada um destes
investidores tem diferente apetite para risco, diferente estratégia de investimento e
ingressa na empresa em uma determinada fase de seu ciclo de vida.

Estas fases são conhecidas como early, mid e late stage e têm características


peculiares entre si, que são perceptíveis, inclusive, no âmbito jurídico. Isso, porque os
documentos jurídicos das rodadas de investimento devem compor interesses
contrapostos, visando à efetivação das operações, com foco em ganhos mútuos e com
garantia de segurança jurídica. Esses documentos, portanto, devem acompanhar as
fases do ciclo de vida das startups, moldando-se aos interesses específicos dos
participantes de cada rodada de investimentos. Por exemplo, não faz sentido
empregar documentos complexos, com aquisição direta de participação societária, em
fases iniciais de investimento, pois, neste momento, as startups têm interesse em
agilidade para captar os recursos e os investidores, por sua vez, têm interesse em
afastarem-se do quadro social para, consequentemente, afastarem-se dos altos riscos
jurídicos de eventual insucesso da empresa.

A primeira fase do ciclo de vida das startups é chamada de early stage. Ela abrange as
rodadas de investimento iniciais da empresa e, atualmente, tem início nas captações
denominadas “Series Pre-Seed” ou “Series Seed”. Neste momento, o ticket médio das
operações costuma ser de até US$ 4 milhões e é comum que os investidores sejam,
majoritariamente, aqueles chamados investidores-anjo, embora também exista muitos
investidores institucionais especializados em investimento early stage no Brasil e no
mundo. O fator principal que influencia os investidores na percepção de valor das
empresas nesta fase é a experiência do time fundador, somada às perspectivas do
mercado alvo e ao product/market fit do produto ou solução desenvolvidos.

A última rodada usualmente caracterizada como early stage é a “Series A”, em que o


ticket costuma ser de até US$ 10 milhões e em que há uma maior concentração de
investidores institucionais, family offices e empresas tradicionais, que buscam
evidências mais concretas de um modelo de negócios repetitivo e escalável, com alto
potencial de retorno.

Os investidores iniciais, que ingressam nas startups ainda em early stage, têm uma


grande importância para a empresa e geralmente as apoiam não só com recursos
financeiros, mas também com mentorias, conhecimento e know-how, aconselhando os
fundadores no desenvolvimento de seus produtos ou soluções.

Como o nível de maturidade das empresas nas rodadas iniciais ainda é baixo e tendo
em conta o grau de urgência que têm na captação de recursos, os investimentos early
stage (à exceção das rodadas Series A) costumam ser realizados por meio de títulos
conversíveis em participação societária, que permitem aos investidores aportar
recursos sob a promessa de participação societária futura, adquirida apenas na
hipótese de amadurecimento do modelo de negócios da startup. Estes títulos são uma
forma mais simples de contratação, que permite minimizar negociações, permitindo,
ainda, que os investidores abandonem seus investimentos malsucedidos sem maiores
dificuldades. Eles costumam ser formalizados como mútuo conversível, contrato de
participação, opção de subscrição, simple agreement for future equity (SAFE)
ou convertible note.

Por sua vez, a mid stage engloba as startups que estão captando as rodadas de


investimento denominadas “Series B”, “Series C” e, geralmente, “Series D”, em que
são captados recursos que giram em torno de US$ 10 milhões a US$ 60 milhões. Nesta
fase, as startups já possuem um modelo de negócios bem definido, já demonstram
bem o product/market fit de seus produto e solução e precisam de recursos para
acelerar e escalar o seu crescimento.

Por fim, o late stage é a fase que abarca as rodadas finais de captação de recursos
pelas startups no mercado de Venture Capital, denominadas Series E e seguintes, que
costumam movimentar valores a partir de US$ 60 milhões. Esta fase, que costuma
preceder os chamados “eventos de liquidação” ou uma oferta pública inicial de ações
(IPO), é marcada por investimentos realizados por investidores institucionais
especializados em late stage, bancos de investimento, hedge funds e fundos
soberanos, que miram em empresas reconhecidas no mercado, que possuem receita
recorrente mensal considerável e base de parceiros e clientes consolidada.

A partir das rodadas Series A, os investimentos tendem a ser formalizados mediante


aquisição direta de participação societária pelos investidores. A cada nova rodada, o
tempo da operação costuma aumentar, em razão de maior complexidade na auditoria
legal e contábil e da própria estrutura e operação da empresa.

Nestes casos, a empresa e os investidores geralmente celebram um term sheet ou um


memorandum of understandings com condições preliminares do negócio,
estabelecendo os termos base (que, na verdade, muitas vezes já contemplam todas as
variáveis da operação) para negociação dos documentos definitivos da rodada de
investimentos. A rodada, então, é formalizada por meio dos acordos de investimentos
atrelados às atas de assembleia geral para aumento de capital social ou, a depender de
onde a startup investida esteja situada, por meio dos documentos estrangeiros
denominados Share/Units Purchase Agreement, Memorandum and Articles of
Association, Investors Right Agreement, Right of First Refusal and Co-sale
Agreement e Voting Agreement.

Com o decorrer das rodadas, a estrutura de capital da startup começa a ficar mais


complexa. Em sua constituição, o capital social da startup é compartilhado apenas
pelos fundadores. Após as rodadas Series Pre-Seed e Series Seed, passa a contar com a
presença de investidores-anjo ou até institucionais que detêm títulos conversíveis em
participação societária de emissão da empresa, mas que (ainda) não integram
formalmente o seu quadro social. Os investidores institucionais, por sua vez,
frequentemente exigem a constituição de um option pool anteriormente ao
fechamento de sua rodada, que garante a separação de parcela da participação
societária da empresa para alocação futura a colaboradores chave da empresa, os
quais também não figuram, ainda, nos documentos societários vigentes.

Para manter o controle desta estrutura de capital – em que diversas pessoas têm
direito a participação societária, mas apenas algumas estão, de fato, nos documentos
societários vigentes, e em que é necessário realizar diversos cálculos para alcançar
dados objetivos da situação do capital social da empresa – os fundadores devem
manter sempre atualizada a tabela de capitalização da empresa, chamada de “cap
table”. O cap table apresenta todas as participações societárias emitidas e passíveis de
emissão (mediante conversão de títulos conversíveis ou atribuição em âmbito
de option pool) pela empresa, indicando a classe das ações, seus preços de emissão e
os percentuais totais de interesse dos sócios e investidores na empresa.

A elaboração e o gerenciamento do cap table estão intimamente ligados aos conceitos


jurídicos e às cláusulas contratuais presentes em todos os documentos que formalizam
as rodadas de investimento. É por meio da correta interpretação da definição
contratual de “bases totalmente diluídas”, por exemplo, que se chega ao efetivo preço
por ação considerado em uma respectiva rodada de investimento; é por meio da
correta compreensão dos mecanismos contratuais para ajuste na taxa de conversão de
ações preferenciais em ações ordinárias que se chega à efetiva recomposição de
participação societária de um investidor em casos de diluição indevida em rodadas
com valuation inferior (os chamados downrounds).

A ideia dos investidores com os investimentos em Venture Capital não é adquirir o


controle das startups, mas sim fomentar a inovação por meio de um amplo portfólio
com o qual o investidor pode contribuir no limite de seu conhecimento e de seu
envolvimento com as startups em que investiu. É por esta razão que dois aspectos
tendem a ser considerados pelos estudiosos do mercado os principais pontos em
qualquer operação de Venture Capital: os aspectos econômicos, que garantem o
retorno do investimento aos investidores, e os aspectos de governança, que garantem
maior ingerência dos investidores na estratégia da empresa.

2. ASPECTOS ECONÔMICOS E SUAS IMPLICAÇÕES JURÍDICAS: VALUATION E


PREFERÊNCIA NA LIQUIDAÇÃO

2.1. Aspectos Econômicos e suas Implicações Jurídicas

Por mais que a ideia dos investidores na indústria de Venture Capital, de fato, seja de
fomentar a inovação por meio de um amplo portfólio com o qual o investidor pode
contribuir no limite de seu conhecimento e de seu envolvimento com as startups em
que investiu, fato é que o principal motivador do investimento continua sendo os
aspectos econômicos e a possibilidade de alto retorno que o investimento em capital
de risco traz consigo.

E o papel que o direito desempenha para resguardar os aspectos econômicos e


garantir, de um lado, o retorno do investimento para o investidor e, de outro lado, o
estímulo para empreender e a manutenção de participação societária para os
fundadores, é fundamental. São diversos, portanto, os aspectos econômicos que
devem ser traduzidos em palavras nos documentos das rodadas de investimento, a fim
de garantir a cada player sua participação no cheque que será recebido na ocasião de
um evento de liquidação ou de um IPO.

2.2. Valuation

Talvez o mais conhecido dos aspectos econômicos presentes em operações da


indústria de Venture Capital, o valuation é o valor atribuído pelo investidor à startup
em uma respectiva rodada de investimento. A definição deste valor é importante, pois
é a partir dele que a participação dos investidores no capital social da startup é
definida.

O valuation pode ser definido de duas formas: pre-money ou post-money. A diferença


entre as duas definições nada mais é do que o valor captado pela startup na rodada de
investimentos. Assim, se um valuation é pre-money, ele considera o valor da empresa
no momento imediatamente anterior à rodada de investimentos; quando somado ao
valor dos recursos captados pela empresa na rodada de investimentos, forma-se o
valuation post-money.

Apesar de simples, esta diferença é crucial para qualquer rodada de investimentos.


Isso, porque se o mesmo valor de investimento é realizado considerando-se um
valuation pre-money e post-money definido em um mesmo valor numérico, este
investimento garantirá ao investidor, na rodada com valuation pre-money, uma
participação no capital social inferior à participação no capital social do investidor na
rodada com valuation post-money.

Em números: se um investidor aporta R$ 1 milhão de reais em uma startup,


considerando um valuation post-money de R$ 10 milhões, ele terá direito a 10% de
participação no capital social da startup, pois o investidor pagou por sua participação o
valor equivalente a R$ 1 milhão do valor total da empresa, de R$ 10 milhões;
enquanto, se o mesmo investidor aportar R$ 1 milhão de reais em uma startup,
considerando um valuation pre-money de R$ 10 milhões, ele terá direito a
aproximadamente 9% de participação no capital social da startup, pois terá pago o
valor equivalente a R$ 1 milhão do valor total de empresa, de R$ 11 milhões.

O tipo de valuation a ser adotado na rodada de investimentos deve ser definido de


forma clara (ainda que implicitamente, se por meio da definição do preço por ação a
ser pago pelo investidor) desde o termsheet ou qualquer outro documento inicial que
oriente as negociações a serem levadas adiante na rodada de investimento.

2.3. Preferência na Liquidação

Outro aspecto econômico de extrema relevância para qualquer rodada de


investimentos é a definição das preferências do investidor nos chamados “eventos de
liquidação”. Estes eventos são exatamente o momento em que o investidor perceberá
o retorno de seu investimento, liquidando sua participação societária na startup e
realizando a sua saída da empresa. Na grande maioria das vezes, os eventos de
liquidação correspondem, em quase todas as startups, às operações de venda de ações
representativas de mais da metade do capital social ou na venda ou licenciamento
definitivo da totalidade dos ativos da startup.

A preferência na liquidação é composta por duas variáveis: a ordem de prioridade para


recebimento de recursos e a participação nos recursos remanescentes.

Como se depreende de seu título, a ordem de prioridade é, justamente, a ordem em


que os recursos oriundos de um evento de liquidação devem ser alocados entre os
detentores de ações da startup. Via de regra, investidores que ingressam em rodadas
de investimento mais avançadas, com valuations mais altos, pagando um preço por
ação mais caro, têm prioridade para recebimento de recursos, devendo a estes serem
transferidos os primeiros recursos oriundos de uma venda de participação societária
ou de um licenciamento definitivo da totalidade dos ativos, conforme o caso.
Esta preferência deve estar limitada a um valor determinado ou determinável que,
geralmente, é calculado de acordo com um múltiplo do investimento realizado pelo
investidor ou com a atualização monetária e aplicação de taxa de juros. Assim, um
investidor que invista em uma rodada de investimentos Series C, por exemplo, com
ações preferenciais que lhe deem direito de preferência na liquidação de 1,5 vezes o
preço por ação originalmente pago pelo investidor, na hipótese de ocorrência de um
evento de liquidação, receberá 1,5 vezes o valor do seu investimento, antes que os
investidores da rodada de investimentos Series A, por exemplo, recebam qualquer
valor decorrente do referido evento de liquidação.

A preferência na liquidação, ainda, deve indicar o critério de participação dos


investidores nos recursos remanescentes dos eventos de liquidação. É dizer, além de
terem prioridade no recebimento dos recursos oriundos de um evento de liquidação,
até o valor determinado ou determinável pré-estabelecido, os investidores poderão ou
não participar dos valores que remanesçam após o pagamento de todos os
preferencialistas que possuem preferência na liquidação.

A participação das ações após a preferência na liquidação pode ser integral, limitada
ou inexistente. Assim, o investidor que possui preferência na liquidação com
participação integral participará, após recebimento de recursos prioritários por todos
os investidores, da distribuição dos recursos remanescentes a ser realizada aos demais
acionistas (especialmente os fundadores), em iguais condições com os demais
acionistas, com base em suas respectivas participações no capital social da empresa; o
investidor que possui preferência na liquidação limitada receberá, após recebimento
de recursos prioritários por todos os investidores, da distribuição dos recursos
remanescentes até um valor determinado ou determinável; e, por fim, o investidor
que possui preferência na liquidação com participação inexistente não participará da
distribuição dos recursos remanescentes.

A preferência na liquidação é sempre estabelecida como um direito econômico das


ações preferenciais emitidas pela startup para o investidor. E este direito, muitas vezes
menosprezado pelos estudiosos da área, é de suma importância no ecossistema das
startups, pois pode implicar até mesmo o não recebimento de recursos por fundadores
em uma venda da empresa, por exemplo.

Isso porque, a depender do valuation da empresa em um evento de liquidação, os


recursos captados podem não ser suficientes ao pagamento dos investidores com
preferência na liquidação com sobras. É preciso definir, de forma clara, nos
documentos de investimento e nos documentos societários das startups os exatos
termos da preferência na liquidação, de forma a evitar discussões no momento de
fechamento dos eventos de liquidação.

Você também pode gostar