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Constitucionalização do Direito Civil

Delineamentos da Constitucionalização do Direito Civil

O direito civil possui seguramente uma função política, que vai definida em todas
as diversas épocas constitucionais. E, por essa razão, todos os princípios éticos e
políticos, evidenciados como fundamentos da constituição do Estado, exercem uma
forte influência sobre o direito privado.

O direito civil, ao longo de sua história, sempre foi um locus normativo


privilegiado do indivíduo. Já a partir do constitucionalismo moderno, o direito civil se
distanciou da Constituição. Era, nesse sentido, o elemento de oposição à constituição
política, pois se tratada da constituição do homem comum. Essa separação bem
acentuada é fruto do esquema liberal que separava o Estado da sociedade civil,
concebendo a Constituição como lei do Estado e o direito civil como lei do segundo.

Contudo, estudos mais recentes demonstram a falácia dessa visão restrita e


tradicional do direito civil. Isso porque pretende-se, ao longo do estudo do direito civil,
investigar a inserção do direito civil na Constituição e, ainda, os fundamentos da
validade jurídica do direito civil, que devem, à priori, ser extraídos da Constituição.

Portanto, entende-se que, atualmente, existe a unidade hermenêutica, a partir da


Constituição como sendo o ápice conformador da elaboração e da aplicação da
legislação civil. A mudança de atitude é bem demarcada: deve o jurista interpretar o
Código Civil segundo a Constituição, e não o contrário.

O processo de constitucionalização das relações jurídicas privadas está, por sua


vez, intimamente ligado à ascensão da ideia de Estado Social, que se projeta além da
específica Constituição.

Nesse processo, é certo que os fundamentos do ordenamento jurídico civil foram


absorvidos pela Constituição – como os conceitos de propriedade, família e contrato.
Por outro lado, a Constituição também possui certa autonomia em relação ao Direito
Civil, pois, como no caso do Brasil, a visão orientadora do constituinte angariou
elementos outros, como das declarações e tratados internacionais de direitos humanos
individuais e sociais.
Origens e Desenvolvimento do Tema no Direito Brasileiro

O fenômeno do direito civil constitucional tomou corpo no Brasil principalmente


a partir da última década do século XX. Foi um processo de revitalização do direito civil
que contou com a sua adequação aos valores consagrados na Constituição de 1988,
como expressão das transformações sociais.

Dessa maneira, disseminou-se uma importante visão: a da insuficiência da


codificação. Isso porque, diante da complexidade da vida contemporânea, foi necessário
o advento de microssistemas jurídicos e de legislações especiais.

Além disso, era necessário alterar as categorias, conceitos, classificações,


princípios de direito civil ministrados nos cursos jurídicos e aplicados na prática
jurídica, pois esse conjunto já não mais demonstrava proximidade com a realidade
social vigente. Logo, era necessário readequar o direito civil à nova organização da
sociedade, espelhando-se na própria Constituição de 1988, pois foi a que mais
agudamente pretendeu regular e controlar os poderes privados, na perseguição da justiça
material.

Os civilistas, finalmente, deram-se conta de que a centralidade de sua disciplina


tinha migrado definitivamente para a Constituição. A partir disso, entende-se que os
fundamentos do direito civil, quando elevados ao status constitucional, correspondem a
um dos resultados do processo de consolidação do Estado Democrático e Social de
Direito, com consequente promoção da justiça social e da solidariedade.

Nesse processo, é fundamental salientar que é a Constituição, e não mais o


Código, que dá a unidade do sistema jurídico vigente. A constitucionalização do direito
civil marca, portanto, a correlação entre os direitos fundamentais e a matéria que
constitui a substância do direito civil. Da mesma maneira, o Código é uma importante
fonte de interpretação da Constituição, pois os princípios do Código interferem na
interpretação da Constituição para enriquecer e desenvolver seu conteúdo.

Críticas à Constitucionalização do Direito Civil

O processo de constitucionalização do direito civil não foi aceito sem resistências


e ressalvas. Essas resistências, por sua vez, advêm das correntes mais tradicionais de
civilistas, que entendem que a interlocução entre Direito Civil e Constituição não é
benéfica, uma vez que cada qual deve permanecer em seu devido lugar.
Para sustentar essas ressalvas, argumentam que esse processo pode ocasionar a
banalização da constitucionalização, com a elevação de todas as relações de direito civil
ao plano constitucional. Por outro lado, argumentam que o processo pode também
ocasionar a redução da importância do direito civil, que passaria a ser somente um
apêndice do direito constitucional.

Há ainda, entre alguns civilistas, a identificação da necessidade de retorno à


centralidade do Código Civil. Isso ocorre, dentre outros motivos, pelo desencanto em
relação à instabilidade político-constitucional, contraposta à maior estabilidade da
sociedade civil e de seu Código Civil. Logo, para esses civilistas, embora a sociedade
tenha realmente mudado, o Código ainda mantém sua importância central no contexto
jurídico. Para esses civilistas, pode haver prevalência da Constituição quando as
mudanças forem dominantes ou prevalência do Código quando a estabilidade das
relações sociais for dominante.

Todavia, não há como promover a cisão entre os dois hemisférios normativos, que
estão inseparavelmente interligados. Cabe, assim, ao intérprete, assegurar a
compatibilidade de cada decisão, fundada em norma do Código Civil, tendo os
princípios constitucionais sempre observados, embora não explicitamente. Isso porque
cada interpretação é um microcosmo da imensa tarefa de realização de uma sociedade
livre, justa e solidária. Assim, o Código Civil cumprirá sua vocação de pacificação
social se for efetivamente iluminado pelos valores maiores projetados nas normas
constitucionais vigentes.

O Direito Civil no Estado Social

A constitucionalização do direito civil não foi circunstancial, mas uma


consequência inevitável da natureza do Estado social. O Estado social, por sua vez, é a
etapa vivida contemporaneamente ao Estado moderno, apesar dos prenúncios de retorno
ao modelo liberal, com o neoliberalismo.

A Constituição consagra o Estado social, que tem por objetivos fundamentais


constituir uma sociedade livre, justa e solidária, a partir da redução das desigualdades
sociais. Assim, entende-se por Estado social, no plano jurídico, todo aquele regido por
uma Constituição que regule a ordem econômica e social, reconhecendo plenamente
direitos fundamentais, os quais compreendem direitos sociais. Logo, esse modelo é
substancialmente irredutível diante da lógica de mercado.
Além disso, identifica-se como Estado social aquele que estabelece mecanismos
jurídicos de intervenção nas relações privadas econômicas e sociais, nas dimensões
legislativa, administrativa e judicial, a fim de garantir a tutela dos vulneráveis. Portanto,
o objetivo final do Estado social é a realização da justiça social, a partir da presença
militante do poder político nas esferas sociais.

No âmbito da crise do Estado social, entende-se que foi aguçada pela constatação
dos limites das receitas públicas para atendimento das demandas sociais, cada vez
crescentes. Por outro lado, no que diz respeito à ordem econômica, a crise é muito mais
ideológica do que real, pois se dirige à redução do Estado empreendedor.

A ideia do retorno ao Estado liberal, ou seja, ao Estado mínimo, é anti-histórica.


É, dessa maneira, pouco crível que a humanidade suporte viver sem as garantias legais
coletivas que duramente conquistou, evidenciadas nas relações de trabalho, nos direitos
do consumidor, no direito da livre concorrência, na função social da propriedade e do
contrato e na preservação do meio ambiente.

Tradição Patrimonialista do Direito Civil e as Tendências de


Repersonalização

A codificação individualista tinha como valor necessário da realização da pessoa e


da garantia de sua dignidade a propriedade ou o patrimônio. Logo, a tutela jurídica
estava direcionada à proteção do patrimônio em relação ao arbítrio dos mandatários do
poder político, num momento histórico em que se considerava a propriedade como
esfera exterior da liberdade.

É certo que as relações civis possuem forte caráter patrimonializante, já que seus
principais institutos são a propriedade e o contrato. Todavia, quando o contexto jurídico
prioriza o patrimônio, a pessoa humana fica submersa e abstraída de sua dimensão real.

Dessa maneira, entende-se que a patrimonialização das relações civis é


incompatível com os valores fundados na dignidade da pessoa humana, adotados pelas
Constituições modernas, como é o caso da brasileira. Afirma-se, portanto, a primazia da
pessoa humana inserida num contexto social no qual devem imperar valores como a
justiça e a solidariedade.
Nesse sentido, a teoria da repersonalização das relações civis se insere na longa
trajetória da emancipação humana, no sentido de recolocar a pessoa humana como
centro do direito civil, tendo o patrimônio ao seu serviço.

O desafio que se coloca aos civilistas é o de enxergar as pessoas em toda sua


dimensão ontológica e, posteriormente, enxergar o seu patrimônio. Impõe-se, assim, a
humanização dos sujeitos de direitos, que são mais do que apenas titulares de bens de
consumo. Essa restauração da primazia da pessoa humana nas relações civis é a
condição primeira de adequação do direito aos fundamentos e valores constitucionais.

Firma-se, portanto, a concepção de que o domínio sobre as coisas não é um fim


em si mesmo, mas a concepção de um patrimônio mínimo, constituído de bens e
créditos, que garanta a sobrevivência de cada um. Seria, portanto, imprescindível como
suporte de realização do princípio da dignidade da pessoa humana.

Força Normativa da Constituição nas Relações Civis

O processo de constitucionalização do direito civil não se resume à aplicação


direta dos direitos fundamentais às relações privadas, sendo esse apenas um de seus
aspectos. O significado mais importante, por sua vez, é o da aplicação direta das normas
constitucionais, com destaque aos princípios, em quaisquer que sejam as relações
privadas. Portanto, as normas constitucionais sempre serão aplicadas em qualquer
relação jurídica privada, seja integralmente, seja pela conformação de normas
infraconstitucionais.

Notou-se, ainda, que as forças vivas da sociedade influíram efetivamente nas


opções do constituinte de 1988, muito mais que na elaboração de códigos. Por essa
razão, a Constituição, além de ser a norma hierarquicamente superior a todas as outras,
determinante do sentido do ordenamento jurídico, absorveu, de fato, os valores que a
sociedade conseguiu veicular para servir de fundamento o u base à organização social.

Constitucionalização dos Principais Institutos de Direito Civil

Os três principais institutos específicos do Direito Civil são, a saber, a família, a


propriedade e o contrato. Ressalta-se, a partir disso, o conteúdo que passaram a carregar
quando alinhados aos fundamentos constitucionais.

Inicialmente, a família está funcionalizada ao desenvolvimento da dignidade das


pessoas humanas que a integram. A entidade é, por sua vez, instrumento de realização
existencial de seus membros. Nesse sentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente tem
por fim assegurar todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana dessas
pessoas em desenvolvimento e a absoluta prioridade dos direitos referentes às suas
dignidades.

Com relação à propriedade, entende-se ser esse o grande foco de tensão entre as
correntes individualistas e solidaristas. O direito de propriedade, no Estado democrático
e social de direito, termina por refletir esse conflito. A partir disso, houve uma
acomodação do conflito, a partir do caminho baseado no critério hermenêutico do
princípio da proporcionalidade, ponderando os interesses em conflito. Dessa maneira, é
vedada a interpretação isolada de cada regra ou a hegemonia de uma regra sobre a outra,
devendo-se buscar o sentido harmônico entre ambas.

Já o contrato, fundado na soberania da vontade individual, é o instrumento


jurídico da acumulação capitalista. Segue, portanto, o modelo adotado pela burguesia
liberal que visa a acumulação de riqueza. A Constituição Federal apenas admite o
contrato que realiza a função social, condicionando a ela os interesses individuais e
considerando a desigualdade material das partes. Logo, toda liberdade assegurada pelos
contratos deve ser exercida nos limites da função social do contrato, estabelecidos pela
Constituição. Dessa forma, está prevista a nulidade de qualquer convenção das partes
que contrarie a função social do contrato.

A Imprescindibilidade da Constitucionalização do Direito Civil

A constitucionalização do direito civil, a partir da inserção constitucional dos


fundamentos jurídicos das relações civis, constitui a etapa mais importante do processo
de transformação ou de mudança de paradigma por que passou o direito civil. Tal
transformação é evidenciada na transição do Estado liberal para o Estado social.

Os institutos básicos do direito civil, nomeadamente a família, a propriedade e o


contrato não são, portanto, os mesmos que vieram do individualismo jurídico e da
ideologia liberal.

Nesse sentido, sai de cena o indivíduo proprietário para revelar a pessoa humana.
Despontam, logo, a afetividade como valor essencial da família; a função social como
conteúdo de limites à propriedade; a eticidade, os princípios sociais e a tutela do
contratante vulnerável no contrato.
A perspectiva da Constituição, portanto, tem contribuído para a renovação dos
estudos do direito civil. É o que se nota na doutrina civilística da atualidade, no sentido
de reconduzir o direito civil ao destino histórico de direito de todas as pessoas humanas.

Referências:

Direito civil: parte geral / Paulo Lôbo. – 6. Ed. – São Paulo: Saraiva, 2017.

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