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06/11/2023, 01:17 A Constitucionalização do Direito Civil e a Fuga do Legalismo - Empório do Direito

A Constitucionalização do Direito Civil e a Fuga do Legalismo


16/05/2015

Por Alexandre Barbosa da Silva - 16/05/2015

Pietro Perlingieri, um dos primeiros autores a pensar o direito privado na perspectiva constitucional, inicia sua
mais conhecida obra traduzida para o português, dizendo que: o estudo do direito – e portanto também do direito
tradicionalmente definido 'privado' – não pode prescindir da análise da sociedade na sua historicidade local e
universal, de maneira a permitir a individualização do papel e do significado da juridicidade na unidade e
complexidade do fenômeno social.[1]

Esse é o alcance que se pretende dar ao que, desde final da década de 1980, notáveis juristas brasileiros designam
por Direito Civil-Constitucional, ou seja, a consideração de elementos que facultem a leitura do Direito Civil
com as lentes da Constituição, a partir do reconhecimento da pluralidade e complexidade da sociedade
contemporânea.

Luiz Edson Fachin, acerca do tema, expõe: "Na complexidade, esse fenômeno apresenta, neste momento, um
interessante banco de prova que se abre em afazeres epistemológicos que acolhem as novas demandas da
juridicidade, ao lado da recuperação discursiva de valores como ética e justiça."[2]

A compreensão dessa nova metodologia de análise do Direito Civil, qualifica-se pela primazia da pessoa, com a
valorização da liberdade, da diversidade e das específicas necessidades individuais, que no mais das vezes o
direito clássico codificado não consegue alcançar.

A pessoa que se quer proteger sob esse viés, não é mais a abstrata do Estado Liberal, mas a de carne e osso, que
precisa receber do Direito uma resposta única a seu caso concreto, ainda que a norma infraconstitucional não
alcance sua pretensão, uma vez que participa de sistema jurídico que se coloca como democrático de Direito.

O Código Civil de 2002, declarado por Miguel Reale como a "constituição do homem comum", em verdade,
mantém a mesma estrutura de caráter abstrato, individualista e patrimonialista, de pretensão totalizante, do
Código Beviláqua de 1916, em que pese o reconhecido esforço e justificativa do codificador em tentar imprimir
ao texto "a estrutura e as atribuições do Estado em função do ser humano e da sociedade civil."[3]

Continua, entretanto, o idêntico propósito que norteou a codificação anterior, ao pretender atender as demandas
sociais com a “segurança” e “certeza”, típicas do positivismo exegético, não intentando conceder guarida às
inovações do pensamento e das realidades da vida.

A pretensão de segurança e totalização da lei como ordenamento completo é típica da perspectiva oitocentista e
não tem mais espaço na contemporânea e líquida atmosfera deste século XXI.

Note-se que o Código Civil entra em vigor 15 anos após a promulgação da Constituição, mas, ainda assim, não é
suficiente para reproduzir seu conteúdo de maneira coerente com um sistema jurídico que pretende ser
igualitário, democrático e solidário. Em outras palavras, é uma lei que se preocupa em demasia com a
manutenção do status quo das aparentes liberdades da modernidade, com a rígida estruturação da família, do
contrato e da propriedade.

Mantém-se, sob sua égide, a crise do Direito já apontada por Paolo Grossi, Pietro Barcelona e Pietro Perlingieri,
que, a partir da perspectiva do direito europeu, igualmente forte no legalismo abstrato e de índole codificante, é,
também, incapaz de humanizar-se para atender às necessidades da pessoa.

Aludida conturbação tem lugar, especialmente, no fato da impotência dos Códigos em renovar-se
cotidianamente, o que é muito mais fácil ao texto constitucional, em virtude de sua natureza principiológica que
consegue dialogar frequentemente com a sociedade, por meio dos motes interpretativos e hermenêuticos havidos
nas escolas de Direito, nos tribunais e em todos os ambientes produtores de ciência jurídica.

Toda essa conformação logicista – fruto do pós-revolução francesa, cujas ideias que iluminaram o Code
Napoléon influenciaram sobremaneira o Código Civil de 1916 – primava pela formal divisão da esfera pública
em relação à privada, trazendo à tona um dogma de incomunicabilidade que até hoje insiste em se reafirmar. Isso
gerava uma grande dificuldade de se pensar o momento presente, com suas demandas diferenciadas, em que
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frequentemente o público e o privado se misturam nas atitudes de gestores e atores do momento político, jurídico
e social.

Essa dicotomia, no entanto, é posta em xeque a partir do fenômeno constitucionalizante, ganhando contornos de
publicização da esfera privada.

O desenvolvimento das teorias de efetivação dos direitos fundamentais – quer na individualidade, quer no âmbito
social –, e a queda do paradigma da programaticidade do fenômeno constitucional são fatores que influenciaram
de maneira relevante na constitucionalização dos ramos do direito e, como não poderia deixar de ser, do Direito
Civil.

A necessidade de atuação do público na proteção e fiscalização do privado, como, por exemplo, nos contratos de
massa, nas garantias do consumidor, na exigência de que a propriedade cumpra sua função social, são exemplos
da dificuldade de manter-se a dicotomia. À Constituição, como determinante dessas intervenções públicas,
cumpre o mister de realização protetiva da pessoa, na medida em que elege a dignidade humana como valor
máximo do sistema normativo.

A constitucionalização, portanto, aproximando o público do privado, promove a alteração do paradigma


mitológico da autonomia privada moderna, que nada mais significou do que uma ilusão de liberdade.

Por isso, a Constituição deve ser o ponto de partida para a análise de quaisquer temas de Direito.

Para tanto, existem algumas premissas de ordem metodológica, muito bem explicadas por Gustavo Tepedino[4],
e que possibilitem suprir eventual argumento de que a proposta de constitucionalização não encontre razoável
estruturação lógica, ainda que, naturalmente, esta proposta ideológica não se centre no apego aos conceitos e
estruturas típicas do Direito Civil clássico, oriundo da pandectística ou das teorias oitocentistas e novecentistas,
mas sua superação pela funcionalização dos institutos fundamentais do Direito Civil.

Pode-se, em virtude da brevidade natural deste texto, oferecer-se um resumo da ideia do autor, que tem como
primeira característica a substituição do modelo hermético (tipo específico, que descumprido gera sanção) pelo
formato de cláusulas gerais, mais abrangentes e abertas, o que determina ao intérprete condicionar as normas às
situações de fato, em fuga da lógica silogística restritiva e excludente.

O segundo traço consiste na modificação da linguagem empregada pelo legislador, agora menos jurídica e mais
específica a cada área de concentração (exemplo da informática e dos negócios empresariais), o que vai exigir do
intérprete maior dedicação a temas pontuais. A linguagem codificada era universal ao jurista e para fora dela não
era necessário enveredar-se. Agora, caberá ao hermeneuta a tarefa de detalhar a técnica e aplicar a norma ao
caso.

No modelo atual de aferição do direito civil, a norma típica dos estatutos fica menos repressiva e mais
orientativa, incentivando seus destinatários a determinadas práticas antes obtidas mediante sanção. Por esta
terceira característica, caberá ao novo intérprete ser criativo para aproveitar ao máximo suas potencialidades.

Como quarta característica, o formato contemporâneo de legislação não mais se limita a disciplinar as relações
patrimoniais. Na esteira da Constituição, os estatutos tendem a dispor formas de realização da pessoa humana,
tutelando a dignidade. Pode-se ver claramente isso no Estatuto da Criança e do Adolescente, no Estatuto do
Idoso, entre outros.

O quinto traço característico do novo Direito para além do Código Civil está no caráter contratual dos estatutos,
ou seja, os códigos tendem – como era o de 1916 e não é diverso o de 2002 – a fixar formas muito rígidas de
organizações de determinados entes, como por exemplo, associações, sindicatos, etc., ao passo que as leis
especiais flexibilizam o formato, permitindo maior possibilidade de decisão aos atores sociais.

Com essas cinco intervenções empreendidas pela Constituição de 1988, que se fizeram mostrar a partir do ato de
legislar por estatutos, entende Gustavo Tepedino, com base na leitura de Natalino Irti, que o Direito Civil perde
sua cômoda unidade sistemática derivada do Código Civil de 1916, o que, levada às últimas consequências,
representa “grave fragmentação do sistema, permitindo a convivência de universos legislativos isolados,
responsáveis pela disciplina completa dos diversos setores da economia, sob a égide de princípios e valores
díspares, não raro antagônicos e conflitantes, ao sabor dos grupos políticos de pressão.

A partir desses vários caminhos possíveis – Código Civil e farta legislação estatutária – que muitas vezes entram
em conflito e, além disso, retiraram da codificação seu caráter unificante, entende o autor carioca que, diante da
preocupação da Constituição em definir princípios e valores bastante específicos visando tutelar as relações de
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Direito Civil, particularmente a propriedade, a proteção da personalidade, das relações de consumo, da atividade
econômica privada, da empresa e da família, forçoso que o intérprete consiga "redesenhar o tecido do Direito
Civil à luz da nova Constituição".

Assim, ainda, que se reconheça a existência desses "universos legislativos setoriais", torna-se possível manter a
unidade do sistema, "deslocando-se para a tábua axiológica da Constituição da República o ponto de referência
antes localizado no Código Civil."

Em outras palavras, diante da pluralidade legislativa pós-1988, bem como dos novos desafios que se impõe ao
jurista, com as novas demandas da sociedade, em constante transformação, nada mais tecnicamente correto do
que buscar na essência das promessas constitucionais a fonte maior dos fundamentos do Direito.

Ademais, um Estado que pretende ser democrático de Direito não tem a opção de efetivar os princípios e
promessas consolidadas em sua Constituição, de maneira que deve haver, indubitavelmente, a prévia
fundamentação dos temas na carta maior e, em momento posterior, na legislação infraconstitucional, ainda que
seja o tradicional Código Civil.

Retomando a reflexão de Gustavo Tepedino, após promover a especificação de assuntos ligados à criança e ao
adolescente, à propriedade e outras temáticas constitucionais e legais, estas havidas no Código e em estatutos,
deixa claro que o civilista deve, na atividade interpretativa, superar o que denomina "preconceitos" que o afastam
de uma perspectiva civil-constitucional.

Deve o intérprete, nessa sequência de ideias: a) aplicar diretamente os princípios e valores constitucionais aos
casos concretos; b) não confundir princípios constitucionais com princípios gerais de direito, sob pena de
inversão da hierarquia, uma vez que os princípios gerais são os da legislação infraconstitucional; c) acostumar-se
às disposições abertas, às cláusulas gerais, uma vez que era acostumado às descrições casuísticas e específicas da
lei; d) deixar de lado a summa divisio entre direito público e direito privado.

A constitucionalização do Direito Civil, como bem frisa Paulo Nalin, "não é o único mas, sim, representa um dos
caminhos possíveis para a eleição de um novo paradigma de renovação dos institutos privados."[5]

Para além de toda essa justificativa metodológica, tão coerentemente edificada por Gustavo Tepedino, retomem-
se os relevantes motivos descritos por Pietro Perlingieri, Luiz Edson Fachin e Paulo Lôbo, que assinalam para a
tendência (já realidade) de uma civilística construída na perspectiva constitucional, quais sejam, a complexidade
e a pluralidade dos modos de vida no contexto da sociedade contemporânea.

Não que se pretenda criar um "novo ramo do direito", um Direito Civil diferenciado, ao contrário, quer-se
reforçar a importância dos conteúdos da disciplina, mas permitindo-lhe evoluir para além da clausura da norma
estanque. O que deve ser objeto de remodelagem, isso sim, é a mentalidade do intérprete, que precisa se abrir ao
novo e ao aprofundamento do conhecimento hermenêutico.

Este o propósito da constitucionalização do Direito Civil: propiciar o acesso, a partir de exame do caso concreto
à luz do dispositivo constitucional em seus valores e princípios, possibilitando reconhecer as situações peculiares
das pessoas para além do dogmatismo abstrato e excludente.

Notas e Referências:

[1] PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. 2.ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002. p.1.

[2] FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil: à luz do novo código civil brasileiro. 3.ed. rev. e atual.
Rio de Janeiro: Renovar, 2012. p.5.

[3] REALE, Miguel. O projeto do novo código civil: situação após a aprovação pelo Senado Federal. 2.ed. rev.
e atual. São Paulo: Saraiva, 1999. p.3.

[4] TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para constitucionalização do direito civil. In: _____. Temas
de direito civil. 3. ed. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p.1-2.

[5] NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno (em busca de sua formulação na perspectiva civil-
constitucional). 2.ed. rev. e atual. Curitiba: Juruá, 2008. p.32-43.

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Alexandre Barbosa da Silva é Doutor em Direito Civil pela UFPR, Professor da Univel
e da Escola da Magistratura do Paraná, Procurador do Estado do Paraná.

Imagem Ilustrativa do Post: I'm still running away // Foto de: Vincepal // Sem alterações Disponível
em: https://www.flickr.com/photos/vincepal/3633230337 Licença de uso:
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posicionamento do Empório do Direito.

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