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O CC/1916, sem diminuir a sua magnitude técnica, em sua crueza, é

egoísta, patriarcal e autoritário, refletindo, naturalmente, a sociedade do


século XIX.
Preocupa-se com o “ter”, e não com o “ser”.
Ignora a dignidade da pessoa humana, não se compadece com os
sofrimentos do devedor, esmaga o filho bastardo, faz-se de desentendido
no que tange aos direitos e litígios pela posse coletiva de terras, e, o que é
pior, imagina que as partes de um contrato são sempre iguais.
Por tudo isso, a Constituição Federal, consagrando valores como a
dignidade da pessoa humana, a valorização social do trabalho, a igualdade
e proteção dos filhos, o exercício não abusivo da atividade econômica, deixa
de ser um simples documento de boas intenções e passa a ser considerada
um corpo normativo superior que deve ser diretamente aplicado às relações
jurídicas em geral, subordinando toda a legislação ordinária.
Dentro desse contexto atual – caracterizado pela descentralização
normativa –, em que avulta a importância do Direito Civil Constitucional,
que dizer de um projeto de código em curso desde 1975? Haveria
consagrado os avanços da Constituição Federal de 1988?
Estaríamos na contramão da história?
Essa questão, todavia, para o momento, encontra-se superada.
Temos um novo Código Civil.
E é com esse novo instrumental normativo que iremos trabalhar, sem
prejuízo da análise dos dispositivos do CC/1916, que, por regras de Direito
Intertemporal, ainda terão vigor por algum tempo, mesmo depois do termo
da sua vigência formal.
Ressalve-se que a modificação dos pressupostos culturais que
respaldaram as codificações – e cada código civil em particular – não deve,
porém, suprimir bruscamente o apoio que lhe sustenta se a referida norma
foi redigida em estilo abstrato e generalizante, pois isso permite que os
próprios tribunais façam a devida atualização axiológica. Só assim se pode
explicar, inclusive, a sobrevivência de códigos com fundamentação
ideológica individualista em um meio social coletivizado, com premissas
sociais e econômicas completamente diversas das existentes no século
XIX79.
Vejamos, portanto, como foi o processo de construção e edição desse
Novo Código Civil brasileiro.

6. O NOVO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO


Em 1969, foi criada uma nova Comissão para rever o Código Civil,
preferindo elaborar um novo código em vez de emendar o antigo.
Tal comissão, composta por JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES, AGOSTINHO
DE ARRUDA ALVIM, SYLVIO MARCONDES, EBERT CHAMOUN, CLÓVIS DO
COUTO E SILVA e TORQUATO CASTRO, sob a coordenação de MIGUEL
REALE, apresentou, em 1972, o seu Anteprojeto de Código Civil.
No ano seguinte (1973), depois de receber inúmeras emendas, foi
publicada a segunda edição revisada do Anteprojeto, submetida, porém, a
nova revisão, com grandes modificações, para se transformar no efetivo
“Projeto do Código Civil brasileiro”, enviado, através do Poder Executivo,
pela Mensagem n. 160/75, ao Congresso Nacional, onde se transformou no
Projeto de Lei n. 634, de 1975.
Depois de anos de debates na Câmara dos Deputados, onde a matéria
até se mostrou esquecida, ante a ausência de um clamor social que a
exigisse, em 1984 foi aprovado o projeto, com sua transformação no Projeto
de Lei n. 634/B, conforme publicação no Diário do Congresso Nacional de 17
de maio de 1984 (Suplemento n. 47).
Depois de adormecido por longos anos, o projeto foi retomado no
Senado, com a competente e lúcida relatoria do Senador JOSAPHAT
MARINHO, que conseguiu reavivar o interesse na tramitação do novo Código
Civil, sendo aprovado naquela Casa Legislativa, para retorno à Câmara dos
Deputados.
Registre-se que o trabalho do ilustre Senador foi digno de todos os
encômios, discutindo amplamente com a sociedade e os operadores do
direito os aspectos mais importantes da nova lei.
Todavia, em que pese o brilho do ilustre Relator, diversos segmentos da
sociedade civil organizada questionavam supostos retrocessos no texto do
projeto, sempre argumentando sobre o possível anacronismo de uma
legislação concebida na primeira parte da década de 70.
Tais críticas em parte são justificadas, embora o Novo Código haja
avançado em muitos outros pontos da legislação ordinária até então em
vigor.
Na Câmara dos Deputados, foi designado como Relator o Deputado
RICARDO FIUZA, que, verificando as muitas arguições de
inconstitucionalidade no projeto submetido à sua Relatoria, e diante da
impossibilidade, em princípio, de alterar o conteúdo do projeto (uma vez
que não havia sido objeto de emendas no Senado), conseguiu aprovar um
projeto de resolução, alterando o Regimento Comum do Congresso Nacional
e permitindo que o projeto pudesse sofrer adequações constitucionais e
legais (Resolução CN n. 1, de 31-1-2000)80, o que permitiu, na realidade, a
sua revisão.
No ano 2001, o projeto foi finalmente levado a votação, após as
“atualizações” procedidas pelo relator, Deputado RICARDO FIUZA, sendo
aprovado por acordo de lideranças e levado à sanção presidencial.​
Em solenidade realizada no Palácio do Planalto, foi sancionado, sem
vetos, o projeto aprovado na Câmara dos Deputados, convertendo-se na Lei
n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (publicada no Diário Oficial da União de
11-1-2002), o Novo Código Civil brasileiro, que, dentre outras modificações,
consagra a unificação parcial do direito privado (obrigações civis e
comerciais).

7. PRINCÍPIOS NORTEADORES DO CÓDIGO CIVIL DE 2002


Um dos temas mais fascinantes sobre o novo Código Civil brasileiro é a
sua principiologia.
De fato, tem ele uma concepção bem diferente da encampada pelo seu
antecessor.
Embora talvez não seja o colosso legislativo, com o primor redacional da
codificação de 1916, o vigente diploma está fundado em três princípios
norteadores que lhe permitem sonhar com uma vida ainda mais longa do
que a do código revogado.
São eles os princípios da eticidade, socialidade e operabilidade.
Consiste o Princípio da Eticidade na busca de compatibilização dos valores
técnicos conquistados na vigência do Código anterior, com a participação de
valores éticos no ordenamento jurídico.
Nessa linha, um dos exemplos mais visíveis é a previsão do seu art. 113,
segundo o qual “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a
boa-fé e os usos do lugar de sua interpretação”. Também a boa-fé objetiva,
prevista no art. 422, é exemplo da sua aplicação.​
Já o Princípio da Socialidade surge em contraposição à ideologia
individualista e patrimonialista do sistema de 1916. Por ele, busca-se
preservar o sentido de coletividade, muitas vezes em detrimento de
interesses individuais.
Por isso, valores foram positivados no prestígio à função social do
contrato (art. 421) e à natureza social da posse (art. 1.239 e s.).
Nesse sentido, observam JUDITH MARTINS-COSTA e GERSON LUIZ
CARLOS BRANCO:
“O quadro que hoje se apresenta ao Direito Civil é o da reação ao excessivo individualismo
característico da Era codificatória oitocentista que tantos e tão fundos reflexos ainda os lega. Se às
Constituições cabe proclamar o princípio da função social – o que vem sendo regra desde Weimar
–, é ao Direito Civil que incumbe transformá-lo em concreto instrumento de ação. Mediante o
recurso à função social e também à boa-fé – que tem uma face marcadamente ética e outra
solidarista –, instrumentaliza o Código agora aprovado a diretriz constitucional da solidariedade social,
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posta como um dos ‘objetivos fundamentais da República’” .

Por fim, o Princípio da Operabilidade importa na concessão de maiores


poderes hermenêuticos ao magistrado, verificando, no caso concreto, as
efetivas necessidades a exigir a tutela jurisdicional.
Nessa linha, privilegiou a normatização por meio de cláusulas gerais, que
devem ser colmatadas no caso concreto, merecendo destaque, como
exemplo, a nova regra de responsabilidade civil incrustada no parágrafo
único do art. 927, em que se admite a “obrigação de reparar o dano,
independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a
atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua
natureza, risco para os direitos de outrem”.
É com essa nova principiologia que o civilista do século XXI deverá
preparar-se para os desafios que se avizinham.
Capítulo III
Lei de Introdução às Normas do Direito
Brasileiro

Sumário: 1. O objetivo da Lei de Introdução ao Código Civil: ser uma Lei de Introdução às Normas
do Direito Brasileiro. 2. Vigência, validade, eficácia e vigor das normas. 3. Aplicação de normas
jurídicas. 3.1. Interpretação de normas. 3.2. Algumas noções sobre a integração normativa. 3.3.
Aplicação temporal de normas. 3.4. Conflito de normas no tempo (Direito Intertemporal). 3.5.
Aplicação espacial de normas. 3.6. Conflito de normas no espaço.

1. O OBJETIVO DA LEI DE INTRODUÇÃO AO CÓDIGO CIVIL: SER UMA LEI DE


INTRODUÇÃO ÀS NORMAS DO DIREITO BRASILEIRO
A finalidade da outrora denominada Lei de Introdução ao Código Civil
brasileiro era muito mais ampla do que a primeira intelecção literal possa
depreender.
De fato, em que pese se referir ao Código Civil, a norma conhecida
originalmente como Lei de Introdução ao Código Civil (em verdade, o
Decreto-lei n. 4.657/42) dele não era parte integrante, constituindo, na
realidade, um diploma que disciplina a aplicação das leis em geral.
Por isso, desde a primeira edição desta obra, defendemos que mais
técnico seria, inclusive, se fosse denominada “Lei de Introdução às Leis”,
sendo efetivamente uma regra de superdireito82, aplicável a todos os ramos
do ordenamento jurídico brasileiro, seja público ou privado.
Sua função, portanto, não é, tecnicamente, reger relações sociais,
“mas sim as normas, uma vez que indica como interpretá-las ou aplicá-las, determinando-lhes a

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