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SUMÁRIO

1. Carta aos militantes da Consulta Popular, Regina


Beltran................................................................................................................3

2. Considerações sobre o debate em torno da China, Núcleo Zona Oeste


(SP) .................................................................................................................. 12

3. Censura e crítica, Herick Argôlo ................................................................ 24

4. "Tem que ser muito forte para assumir o quão frágil somos nós: uma
reflexão sobre a masculinidade e os desafios da nossa organização,
Fabiano Paixão e Venício Montalvão .............................................................. 32

5. O espectro neofascista se instalou no país!, Felipe Sena ..................... 44

6. Sobre o Levante Popular da Juventude, Durval Siqueira e Marcos Galvão


......................................................................................................................... 52

7. "(...) o Partido não pode ser liquidado, pois ele é a vanguarda das
massas e conduz a sua luta", José Beniezio Eduardo Carvalho da Silva/BA,
Fabiano Paixão de Souza/BA, Juan Gonçalves da Silva/BA, Léia Nascimento
da Silva/BA, Magno Luiz da Costa Oliveira/BA e Vinicius Luduvice/TO ......... 81

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Carta aos militantes da


Consulta Popular
Regiane Beltran
Junho de 2020

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Seria muita pretensão de minha parte chegar até vocês por meio de um texto, de um
artigo, por isso, opto por esse formato de carta, embora também considere
pretenciosa. Poderia dizer que esta é, na verdade, uma carta de apresentação. No
entanto, trata-se de uma reapresentação. Apresentação porque ainda não estive em
nenhuma atividade de caráter nacional recente da Consulta Popular e
reapresentação porque entrei para a Consulta Popular em 1998, tive que me afastar
por questões pessoais e retornei em 2014. Hoje, procuro manter uma atividade
militante comprometida e disciplinada, conciliando com a vida de professora em
escolas públicas, sou bióloga de formação, crio sozinha uma filha e moro na periferia
de Guarulhos/SP. A minha intenção aqui é compartilhar com vocês um pouco do
meu olhar com relação a Consulta Popular no decorrer desses anos de modo que
este possa ser mais um elemento com a finalidade de compreender, sob o olhar e a
vivência de uma de suas militantes, qual o papel que a Consulta buscou e busca
preencher em nossa sociedade.

A minha entrada para a consulta popular em 1998 está diretamente vinculada a


minha participação mais efetiva no movimento estudantil. A partir de 98 fui
coordenadora geral do DCE UNICAMP por 3 gestões consecutivas, gestões estas
que procuraram dar uma nova cara ao movimento estudantil e que foram ganhando
repercussão no estado e fora dele. Até aquele momento as gestões vinham se
mantendo constantemente nas mãos do PCdoB e articulação do PT (grupo
majoritário liderado por Lula). Essas sucessivas gestões tinham como principais
ações as defesas das políticas partidárias e a sua manutenção financeira através
das carteirinhas da UNE, cujas gestões também eram mantidas pelos mesmos
grupos políticos citados. Não haviam vínculos diretos com os estudantes e com as
suas preocupações que, naquele momento, se dava em torno da necessidade de
uma defesa efetiva das Universidades Públicas, gratuitas e de qualidade para todos,
que se mostrasse comprometida com essa real necessidade para além dos
discursos e chavões utilizados pelas militâncias estudantis desses partidos.

As disputas eleitorais do DCE UNICAMP eram marcadas por uma invasão de


militantes partidários ligados a UNE vindos de várias partes do Brasil, era o único
momento em que apareciam por lá, não tinham o interesse e nem o domínio para
dialogar com os estudantes sobre os temas que eram considerados essenciais
diante das ameaças que as Universidades Públicas vinham enfrentando. Essas
disputas envolviam muito dinheiro, distribuíam camisetas das chapas que apoiavam
e faziam sempre a disputa em cima dos alunos recém ingressados que, por não
haver formação política estudantil eram facilmente manipulados. Qualquer risco de
perda eleitoral era resolvido na base da ilegalidade, com ameaças físicas aos
oponentes e roubos de urnas. Assim se dava também as disputas na UNE, os
Diretórios Estudantis que tinham posição diferente das defendidas pela direção da
UNE eram abandonados no meio da estrada a caminho do Congresso ou eram
trancados pra fora e impedidos de participar das votações, uma realidade que
também ocorria nas disputas das diretorias sindicais, como também pude

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presenciar. A frase maquiavélica que marcava aquele período era a de que os fins
justificavam os meios.

As eleições de 1997/1998 foram o basta e uma reorganização do ME da UNICAMP


foi se dando a partir de uma maior participação dos Centros Acadêmicos. A antiga
visão de militância voltada para galgar espaços e oportunidades políticas em seus
partidos visando o movimento estudantil e entidades estudantis como o DCE como
um troféu a ser barganhado em troca de espaços políticos eleitoreiros estavam se
encerrando na UNICAMP. Buscávamos o novo, buscávamos formação política séria,
vinculação com a nossa base, autonomia como militantes formuladores de ações
políticas condizentes com a necessidade que o período nos impunha. Foi nesse
período que fui apresentada a recém criada Consulta Popular, mais especificamente
ao Gebrim e o Fon. Nossa visão de autonomia no movimento estudantil já vinha
sendo inspirada pela forma de organização do MST, então, a minha entrada e de
outros estudantes para a Consulta Popular foi um processo muito natural. Lembro
que outros estudantes que também entraram para a Consulta nesse mesmo período
e que tinham uma aproximação maior com o PT relatavam a hostilidade com que
eram tratados pela militância petista, diziam que a Consulta iria destruir o PT.

O que nos animava bastante na Consulta Popular era a relativa autonomia dos
movimentos sociais, a sua independência com relação as políticas eleitorais e a
possibilidade de construir uma frente popular para além das alianças partidárias que
nos permitia dialogar com a sociedade. Em ações diretas com o MST e demais
movimentos sociais construímos a Marcha Nacional pelo Brasil em 1999,
construíamos os canais de apoio e diálogo com a população por onde a marcha ia
passando, lembrado que não havia celular, apenas telefone fixo e computador com
internet era raridade e nós dispúnhamos desse suporte, ligávamos para Paróquias,
sindicatos nas cidades por onde a marcha iria passar para pedir apoio, buscávamos
contribuir para essa rede de apoio, mas construíamos o apoio, principalmente
financeiro, também nos locais onde estávamos inseridos, tínhamos apoio das
entidades universitárias e sindicatos universitários e da cidade de Campinas. Íamos
estabelecendo uma rede de ajuda mútua entre os movimentos e a sociedade civil. O
apoio da UNICAMP se fortaleceu a tal ponto que a Universidade passou a sediar,
por intermédio do DCE, o Encontro Nacional de jovens do MST, o Encontro Nacional
de Cooperativas do MST, as Assembleias da Consulta Popular, o Curso Realidade
Brasileira (CRB) e o primeiro encontro dos amigos do MST na UNICAMP, PUCCamp
daí por outras Universidades afora. Lembro da grande quantidade de exemplares da
coleção Terra, doada a nós por Sebastião Salgado que vendíamos para a
comunidade universitária e de Campinas para arrecadar fundos para as nossas
ações.

O nosso movimento ia ganhando força e se reproduzindo em outros DCE como o da


PUCCamp e USP, conseguíamos barrar ações neoliberais contra a Universidade e
contra os estudantes, sobretudo, os que, como eu, vinham de famílias com mais

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dificuldades financeiras, conseguíamos isso porque nos dedicávamos à formação
política desde a recepção dos calouros, desenvolvemos um movimento de forte
apoio estudantil, íamos para o enfrentamento direto contra a reitoria, fazíamos
ocupações da reitoria, da diretoria acadêmica, do restaurante universitário, da sala
do conselho universitário, nunca fizemos nenhuma ação onde não estivesse com a
gente no mínimo 200 estudantes ou que não pudéssemos levantar um abaixo
assinado em apoio ao DCE com 2.000 nomes em meio dia. Concedemos o título de
Doutor Honores Causa a Dom Paulo Evaristo Arns, denunciamos Badan Palhares.
Quando comecei a ser convidada para encontros internacionais de estudantes e de
juventude, falava pelo DCE, pela Consulta e pelo MST. Em ações importantes como
novas ocupações pelo MST estávamos presentes, como estávamos presente em
Porto Seguro na comemoração de FHC aos 500 anos, nos dividimos, os estudantes
da pós graduação em Coroa Vermelha com os indígenas e nós do DCE com os
estudantes de graduação em Eunápolis com o MST. Nunca nos poupamos as
grandes lutas, tínhamos consciência do nome que carregávamos e dávamos a ele o
seu devido valor. No ano em que me formei, participei de minha última eleição e
entreguei a coordenação geral do DCE nas mãos de uma companheira da Consulta
Popular.

Por uma série de questões pessoais tive que me afastar da Consulta, a gente
sempre acaba achando que já fez a sua parte, que ninguém é insubstituível e que
pessoas mais jovens e com mais disposição podem assumir a tarefa de levar a
diante aquilo que construímos. Estava enganada, na luta, ninguém é substituível,
somos a soma de muitos aprendizados, eu, como descendente de ciganos deveria
saber que a sabedoria é um acúmulo da experiência de vida e a maior de todas as
experiências solidárias é saber compartilhá-las. Logo eu, que tive a honra de
conviver com professores/as que foram perseguidos pelo regime militar e tive a
humildade de saber ouvi-los e tirar desses momentos os melhores aprendizados da
minha vida. A UNICAMP foi construída em plena ditadura militar e tinha sido
planejada para estar entre as principais universidades com viés científico da América
Latina e do mundo, a deportação dos grandes intelectuais e cientistas brasileiros
punham em risco esse objetivo e a estratégia utilizada foi a de transformar a
UNICAMP num local de abrigo seguro para esses intelectuais e cientistas onde a
polícia e o exército eram proibidos de entrar. A construção repetitiva dos blocos e
casas na moradia estudantil foi pensada como uma rota de fuga caso o acordo fosse
quebrado.

Assistindo perplexa às manifestações de 2013 e vendo ruir o projeto petista, volto


para a Consulta em 2014. Os primeiros momentos são marcados pelo olhar de
alguém que a vê de fora. Agora ocupando uma dimensão nacional, atuando
efetivamente na construção de um movimento social composto pela juventude, mas
que se mantêm firme aos seus ideais e posicionamentos que marcaram a sua
criação. Que consegue não se deixar levar pelo fato de ter uma esquerda
progressista no poder, mas que não representa o seu projeto de democracia

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participativa e que sempre visou na formação política popular as bases para a
construção de um projeto popular para o Brasil. Que vem, mesmo com todos os
percalços, se mantendo firme a ideia revolucionária, a ideia do povo no poder. Essa
firmeza ideológica não é pouca coisa em momentos onde a sedução pelo poder é
inquestionável. Mas, somente os lutadores e lutadoras populares, embasados por
um tripé de organização, formação e luta, se mantendo fiéis aos compromissos
levantados pela I Assembleia Nacional dos Lutadores e Lutadoras do Povo ao final
da Marcha Popular pelo Brasil, realizada em outubro de 1999, são capazes de
manter e dar continuidade a esse projeto. Foi isso que eu vi quando voltei.

Do meu retorno pra cá tenho tido o prazer de conhecer quadros altamente


qualificados, disciplinados e dispostos a construir um Projeto Popular para o Brasil
junto ao povo brasileiro, não é e nem nunca foi uma missão fácil, só será possível a
médio e longo prazo, denota paciência e persistência, mas não há ninguém melhor
do que nós para fazê-lo. Temos a qualidade e o compromisso necessário.

Neste momento em que escrevo, posso dizer que tenho total consciência do meu
local de fala, sou uma militante de base da Consulta Popular. Estabeleço a ponte
entre as formulações políticas de nossa organização e o trabalho de base nas
comunidades onde estou inserida. Embora busque me dedicar aos estudos no
sentido de progredir enquanto militante, não me vejo preparada para uma discussão
em nível teórico. Sou mais propensa ao empírico e a minha história de vida me
conduz a isso. Portanto, é sim um ato ousado, mas cercado de toda a humildade e
espero que me compreendam. É claro que é um ato de muita coragem, mas aprendi
na vida a nunca me calar. A nossa próxima Assembleia Nacional não será aberta a
toda a militância, esses são os rumores que tenho ouvindo, acho muito ruim essa
posição, esse não é um gasto material e de energia desnecessários, eu,
particularmente, vejo como um indispensável espaço de formação e
amadurecimento político para a nossa militância. Historicamente, nossas
Assembleias sempre tiveram a ampla participação da nossa militância como uma
prioridade e evidentemente, é assim que deve se manter. Tenho dito muito no meu
núcleo que esse é o momento de amadurecermos enquanto militantes e é por
acreditar nisso que hoje dou esse passo e me dirijo a vocês. Se essa é a forma de
participar efetivamente nessa Assembleia, que assim seja. Não acho justo ter me
dedicado em acompanhar e estudar cada um dos cadernos de debates lançados até
agora e ser privada de participar da Assembleia.

Quando leio os textos do Fon e do Gebrim não há como não me emocionar com a
clareza da leitura da realidade que estamos vivendo tanto interna como
externamente à nossa organização e a fidelidade às nossas ideias iniciais e é isso
que me motiva a me dirigir a vocês hoje. Espero também que essa minha iniciativa
sirva como estímulo para que todos aqueles que como eu, esteja sentindo a
necessidade de se colocar, quer seja por escrito, nos seminários ou na assembleia,

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que o façam. Nossa construção é coletiva e a voz de todos deve ser dita e ouvida.
Sem o diálogo franco e aberto nunca teremos solidez em nossas construções.

Sim, também existem críticas, sobretudo àquelas que vêm se acumulando desde a
nossa V Assembleia Nacional “Zilda Xavier”, mas não apontarei falhas organizativas,
erros táticos ou desvios estratégicos por acreditar que estes estão muito bem
representados por Fon e Gebrim nos cadernos do nosso processo congressual.
Tratarei de valores. É certo que a Consulta Popular vive uma crise que ao meu ver
aponta dois caminhos, ou seguiremos por aquele que vem sólida e lentamente
sendo construído ao longo desses mais de 20 anos que aponta para a consolidação
de um instrumento político de caráter estratégico marxista-leninista pertencente ao
campo popular revolucionário ou uma guinada repentina, abrupta, sem uma clara
defesa dos motivos que a sustentam e sem assumir claramente quem são os seus
reais defensores, mas que claramente se alia a uma proposta eleitoreira lulista,
petista, reformista que enxerga um possível caminho de reorganização do campo da
esquerda a partir de um eventual governo liderado por Lula.

Evidentemente que todos somos hoje, capaz de reconhecer que esta é a posição
tomada pelo MST e que acaba arrastando consigo todo o nosso campo popular e,
de maneira drástica, também, a Consulta Popular. Compreendo a necessidade de
urgência e imediatismos nos quais os movimentos populares estão sendo colocados,
são, evidentemente, momentos de bastante tensão que impactam diretamente sobre
os movimentos. No entanto, não devemos perder de vista o que acreditamos. É
quando acreditamos em nossas ideias que nos fortalecemos ideologicamente. Hoje,
percebo que a nossa independência política e ideológica veio se alterando e se
perdendo desde o golpe de 2016, isso marca, claramente, um retrocesso em nossa
organização, como disse no início, a Consulta Popular nasce se posicionando contra
esse reformismo, contra esse rebaixamento político de cunho exclusivamente
eleitoreiro. Nós nascemos para quebrar com essa lógica política eleitoreira, onde os
governantes empossados de uma legitimidade de superioridade passam a definir o
que é melhor para o país. A nossa humildade e grandeza foi sempre marcada pelo
desejo de um dia termos o povo no poder e isso requer formação política e
comprometimento genuíno com um trabalho de base que vise o empoderamento e
formação política popular independente das disputas eleitorais, ou melhor, para além
das disputas eleitorais.

Guarulhos tem uma particularidade importante a ser mencionada dentro dessa


discussão, ela foi governada pelo PT por 16 anos, ou seja, quatro mandatos, duas
reeleições, entre os anos de 2000 a 2016. Assim como nos governos federais é
inegável que o governo petista tenha desenvolvido políticas públicas muito
importantes para a cidade, sobretudo na área de saneamento básico e educação.
No entanto, as suas contradições foram as maiores responsáveis por sua queda. Foi
um partido que cresceu muito nesse período se colocando entre os principais
partidos do país, a possibilidade de ganhos eleitorais foi atraindo para o partido uma

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militância sem vínculos ideológicos com ele, vindo dos mais diversos partidos e
quando assumiam cargos importantes no governo, deixavam a desejar. Uma vez,
chegando ao governo a lógica de permanência se resume a estar sempre focado
nas eleições seguintes, as práticas de cooptações das lideranças de bairros em
troca de cargos foi se tornando evidentes a tal ponto que ao pedirem votos, as
pessoas sempre queriam saber o que ganhariam com isso, a cooptação de
lideranças sindicais também se evidenciou fortemente, as disputas internas para as
candidaturas seguintes chegaram ao ponto de se auto sabotarem ainda em gestão,
com as secretarias puxando os tapetes umas das outras. A militância questionava
essas posturas a todo momento, mas não eram ouvidas e acabavam se afastando.
Essa realidade que descrevo aqui, certamente se repetiu e se repete por muitos
lugares Brasil a fora. É um modus operandi já enraizado e dificilmente será alterado.
Talvez a expressão, os fins justificam os meios, permaneçam em vigor.

Embora pertença ao núcleo sindical na cidade de São Paulo, sou coerente com a
necessidade de inserção no local onde vivemos e trabalhamos, logo minha
prioridade é consolidar um trabalho ao qual venho me dedicando desde 2014 na
cidade de Guarulhos. Estabelecemos a um ano e meio um polo do Curso Realidade
Brasileira, o CRB Guarulhos, onde contamos com uma coordenação local de cerca
de 15 participantes, concluímos uma turma de 60 cursistas no ano passado, somos
reconhecidos pelos setores progressistas da política local, dialogamos com o PT,
com o Psol, com a bancada de vereadores de esquerda, com mandatos estaduais,
diversos sindicatos, com a Frente Povo sem Medo de Guarulhos, com o MTST de
Guarulhos, com os setores progressistas da igreja católica, com a Pastoral da
Juventude, com movimentos socioambientais locais, ou seja estamos inseridos no
cenário político local e temos uma avaliação muito positiva da nossa inserção.
Dialogamos com todos, mas mantemos a nossa independência. Lembro que,
quando fui conversar com uma vereadora do PT sobre o CRB a pergunta que ela me
fez foi fundamental para compreender porque a nossa independência da política
eleitoral é fundamental, ela me disse que vários grupos políticos tentaram iniciar
processos de formações políticas na cidade, mas nunca conseguiam abranger mais
do que a sua própria militância e ela me perguntou, por que vocês acham que com
vocês será diferente? E a minha resposta muito simples foi, porque não somos de
nenhum grupo em específico, porque não nos envolveremos nas disputas eleitorais
locais, nosso compromisso é exclusivamente voltado para atender a uma
necessidade já identificada em garantir um espaço de formação política. E esse tem
sido o nosso grande ganho até aqui.

A consolidação de nossa entrada no cenário político guarulhense não se deu


instantaneamente, foi um trabalho construído ao longo de anos e que necessitou de
avaliações e leituras da realidade local, que foi se consolidando baseando-se na
confiança, compromisso, seriedade e reconhecimento enquanto profissional e
militante. Fui conquistando referência junto aos meus pares, professores e
professoras da Educação de Jovens e Adultos (EJA) na rede municipal de

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Guarulhos, atuei pela Secretaria de Educação com a formação continuada dos
educadores e educadoras da Rede. Tive e tenho a incrível oportunidade de exercer
minha função diretamente com a classe trabalhadora, operária e periférica de
Guarulhos, estou ligada, enquanto cidadã guarulhense a lutas socioambientais no
bairro onde moro, as primeiras iniciativas enquanto CRB-Guarulhos foram
desenvolvidas em escolas da rede para educandos/as e educadores/as da EJA.
Quero dizer com isso que, assim enxergo o papel que deve ser ocupado pela nossa
militancia, que só se dá ativamente a partir do envolvimento com as lutas cotidianas,
conhecedora das condições de vida dos trabalhadores, vinculada com o
reconhecimento e as necessidades das lutas cotidianas nos locais onde estamos
inseridos, onde moramos e trabalhamos, onde se possa construir relações de
confiança, e dessa forma, se vincular e realizar a mediação entre as necessidades e
lutas cotidianas com a luta política.

Quando militava no movimento estudantil e na Consulta Popular uma das coisas que
eu mais prezava era o discernimento entre um movimento social/popular e uma
ferramenta política. Embora eu tenha mencionado a minha inclinação à prática,
tenho claro que essa prática deve ser sustentada por um embasamento teórico
fortemente trabalhado junto a militância e que as formulações práticas devam ser
construídas vivamente pelo todo da militância. Dos últimos dois anos pra cá, não é
isso que vejo ocorrer na Consulta Popular, estamos virando meros executores de
tarefas que chegam prontas até nós, numa postura, evidentemente, verticalizada. Os
espaços de reflexões e construções coletivas tem se esvaziado e os núcleos cada
vez mais burocratizados, logo esses, que deveriam ser os locais mais efervescentes
e orientadores de nossas ações, onde deveriam ser os locais de estudo e suporte
para o reconhecimento, fortalecimento e apoio aos potenciais de nossa militância, os
locais de formulação de nossas ações. A formação política vem sendo negligenciada
e a teoria leninista abandonada. Aqueles quadros altamente qualificados,
disciplinados e dispostos que mencionei acima acabam, pouco a pouco, se
afastando de uma participação mais orgânica porque percebem que não há espaços
para participação nas tomadas de decisão, de definição porque agora tudo vem
pronto e aqueles que descordam dessas decisões são sumariamente afastados,
postos de lado. Nos tornamos uma organização onde não há espaços para
divergências. Sabemos reconhecer isso nos nossos maiores inimigos hoje, mas não
somos capazes de ver que estamos reproduzindo essa prática. Ou pensam como eu
penso ou está fora. É esse o novo que estamos propondo? Ou estamos passando a
reproduzir a velha política de sempre? Usamos o discurso democrático do respeito
ao outro, de respeito a história, do respeito a história de vida e contribuições do
outro, mas será que de fato praticamos esses respeitos?

A coesão do nosso campo político só avançará quando colocarmos claramente o


que queremos, o que acreditamos e pelo o que lutamos. Nossa coesão consiste em
reafirmar o nosso compromisso com o socialismo, nos mantendo centrados na
nossa estratégia de conquista do poder de Estado que só será alcançado através de

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uma revolução proletária que vise implementar um projeto popular para o Brasil,
condizentes com a transformação desse país em uma nação soberana e
socialmente justa. Podemos buscar alianças pontuais para esse processo transitório
desde que toda a militância da Consulta Popular e do nosso campo político tenha
total consciência de para onde caminhos. Sem empenhar demasiadamente nossas
forças físicas e intelectuais naquilo que não é, de fato, nosso objetivo maior. Nem a
Consulta e nem os movimentos que compõem o nosso campo político poderá se
abster desse compromisso porque quem o fizer trairá a sua própria história, esse é o
momento de nos mantermos firmes e coerentes.

Enquanto educadora, percebo claramente por que o nome Paulo Freire é tão
aterrorizador para as forças neofascistas no poder, porque é nesses ensinamentos
que reside o poder transformador...

“O homem chega a ser sujeito por uma reflexão sobre sua situação, sobre
seu ambiente concreto. Quanto mais refletir sobre a realidade sobre sua
situação concreta, mais emerge plenamente consciente, comprometido,
pronto para intervir na realidade para mudá-la. A realidade não pode ser
modificada, senão quando o homem descobre que é modificável e que ele
pode fazê-lo.”
(PAULO FREIRE)

Nós, militantes da Consulta Popular, lutadores e lutadores do povo, somos os agentes


dessa transformação.

Pátria livre. Venceremos!

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Considerações sobre o debate


em torno da China
Núcleo Zona Oeste, São Paulo.

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1. Introdução

O presente texto foi elaborado pelo núcleo Zona Oeste da cidade de São Paulo/SP
após um pequeno ciclo de estudos e debates em torno da China e da transição ao
socialismo. O objetivo do presente artigo é contribuir com esta fundamental
discussão em nossa organização, considerando o período preparatório para nossa
próxima Assembleia. Esperamos que funcione como incentivo para que o tema seja
aprofundado pelo conjunto da organização.

1.1 Contextualização

A República Popular da China (RPC) e sua nova democracia social foram criadas
em outubro de 1949, após a longa guerra civil chinesa e a guerra sino-japonesa.
Com a expulsão das forças japonesas e do Kuomintang, a RPC entrou em um
profundo processo de transformações políticas, econômicas e sociais sob a
liderança do Partido Comunista Chinês (PCCh). Já nessa época tem início um
intenso processo de desenvolvimento, que estabeleceria as bases para as grandes
taxas de crescimento que fizeram da China a maior economia do mundo.

Em 1964, a partir de um discurso de Zhou Enlai, começam os debates sobre as


quatro modernizações (Agricultura; Ciência e Tecnologia; Defesa; e Economia), que
desaguaram nas reformas de 1978. As reformas abriram um período sem
precedentes de desenvolvimento e redução da pobreza, especialmente nas zonas
rurais. Nesse período também avança a combinação estatal-privada que seria uma
marca do socialismo de características chinesas. As contradições oriundas destas
reformas, entretanto, teriam efeitos negativos, especialmente nas cidades,
resultando em uma crise social urbana. Em tal contexto se insere o conflito de
Tiananmen (Praça da Paz Celestial) em 1989. Tal episódio, independentemente de
sua caracterização, teve efeitos profundos na política chinesa.

A crise de legitimidade do final dos anos 80 se converteu em um novo consenso no


começo dos anos 90, centrado na modernização econômica e bastante favorável
aos interesses dos grupos sociais urbanos e, em especial, das elites econômicas de
regiões costeiras. Ao longo da década de 1990 foram fortalecidos cada vez mais os
preceitos de uma economia de mercado, mais especificamente um capitalismo de
Estado. O aumento quantitativo do setor privado desde então é evidente, mas segue
em debate o quanto tal setor se mantém dependente do principal ator econômico, o
Estado. Independente disto, é notório que o Estado Chinês tenha conseguido se
utilizar das profundas transformações pelas quais passava a economia mundial,
fazendo delas um impulso para o seu projeto nacional de desenvolvimento.

A crise asiática de 1997 reestabeleceria mais claramente a centralidade do Estado e


a partir dos anos 2000 se intensifica uma transição da dinâmica de acumulação, com
foco em inovação e consumo. Com a crise de 2008 esta tendência se intensificou,

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sendo que o aumento do crédito e dos gastos públicos foram fundamentais como
políticas anticíclicas. Desde então, se estabeleceu o ciclo chamado de “novo
normal”. Neste contexto, a participação da formação bruta de capital fixo (que mede
os gastos com ampliação das capacidades produtivas) no PIB aumentou
significativamente, mantendo-se acima de 40% até 20181.

Passados 70 anos da revolução chinesa, os resultados dessa experiência saltam


aos olhos. Em 2017, a China ultrapassou os EUA e alcançou o maior PIB do mundo
em paridade de poder de compra (Gráfico 1). A expectativa de vida e a mortalidade
infantil passaram por grande melhora (Gráfico 2), fazendo com que a China
ultrapassasse a média mundial ainda na década de 60. No âmbito da redução da
pobreza, os dados são impressionantes e a expectativa, antes da pandemia da
Covid-19, era alcançar a erradicação em 20202. Segundo as medidas de Ravallion &
Chen (2007), apenas no período entre 1978 e 1985 [“reforma sem perdedores”]
foram 419 milhões de pessoas retiradas da pobreza. O segundo grande período de
redução da pobreza se deu entre 1993 e 1996, bastante influenciado pelo aumento
dos preços agrícolas em 1994 (Gráfico 3). As estratégias de desenvolvimento ao
longo dos diversos períodos da RPC são apresentadas abaixo (Gráfico 43)

1
World Bank Open Data (https://data.worldbank.org/indicator/NE.GDI.FTOT.ZS?locations=CN)
2
Graphics: Ending China's poverty by 2020 (disponível em: https://news.cgtn.com/news/2019-10-
17/Graphics-Ending-China-s-poverty-by-2020-KREfWKGkIU/index.html)
3
Fonte: Chu-yuan Cheng - China's Economic Development: Growth And Structural Change

14
15
As contradições deste processo também são evidentes. Em primeiro lugar, nota-se
um grande aumento da desigualdade desde a década de 1980. Após o período
conhecido como “reforma sem perdedores”, o índice de GINI4, menos de 0,30 em
1983, saltou para níveis próximos de 0,50 em meados da década de 2000, com
ligeira diminuição a partir de 2008. Além disso, uma série de autores e organizações
identificam práticas imperialistas nas relações estabelecidas entre a RPC e outras
nações periféricas. Com os sucessivos anos de crescimento do PIB, altas taxas de
investimento e o saldo positivo das exportações, a RPC acumulou uma vasta
quantidade de reservas cambiais (quase 4 trilhões de dólares em 2014 5). Nesse
sentido, alguns autores afirmam que o atual estágio do desenvolvimento chinês seria
marcado por condições e contradições como as que levaram os países centrais a
exportarem capitais; a saber, grandes quantidades de reservas, sistemas financeiro
e bancário desenvolvidos, diminuição da lucratividade e pressão do trabalho no
conflito distributivo. Com isso, entra em questão o debate sobre o “imperialismo
chinês”, especialmente em função da notória expansão dos investimentos chineses
no continente africano.

1.2 A teoria das contradições no maoísmo

O maoísmo foi fruto do desenvolvimento do marxismo de acordo com as


características chinesas, ou seja, a integração dos princípios universais do marxismo
com a prática concreta e particular da revolução chinesa. Entre as grandes
contribuições de Mao Zedong para o marxismo, a sua teoria das contradições tem
especial relevância, ainda mais para a análise da experiência chinesa de transição
ao socialismo.

Mao reconhecia a universalidade da contradição em todos os fenômenos. Assim,


cada fenômeno traz consigo o universal e ao mesmo tempo o particular, ou seja,
afirma a relação entre o geral e o particular. No exercício da análise concreta da
realidade concreta, portanto, é fundamental identificar os aspectos universais de
cada particularidade. Além disso, no complexo processo de desenvolvimento dos
fenômenos, há sempre uma contradição principal, que age sobre ou mesmo
determina o desenvolvimento das demais contradições. Não se trata de uma
condição estática, uma vez que a própria essência da dialética é o movimento, mas
a expressão de uma série de determinações, que fazem daquela a contradição
principal naquele determinado momento histórico. Por fim, toda contradição se divide
em dois polos, ou dois aspectos. Invariavelmente, em determinado estágio do
desenvolvimento, um destes polos será o aspecto principal da contradição, ou seja,

4
Medida que indica a desigualdade de renda em uma sociedade, sendo 0,0 uma sociedade
completamente igualitária e 1,0 uma sociedade completamente desigual. Assim, quanto mais próximo
de 1,0, mais desigual é a sociedade.
5
World Bank Open Data (https://data.worldbank.org/indicator/FI.RES.TOTL.CD?locations=CN)

16
desempenhará o papel dominante naquela contradição, determinando o caráter do
fenômeno6.

Munido desta teoria das contradições, Mao se dedicou à análise da realidade


chinesa, identificando as contradições principais em cada momento, seus aspectos
principais e as medidas necessárias para solucionar tais contradições. No texto de
1957, “Sobre o tratamento correto das contradições no seio do povo” 7, pode-se
observar um exemplo da aplicação de sua teoria das contradições para a análise
concreta, identificando e classificando as contradições na sociedade chinesa. Mao
inicia este texto com a discussão sobre as contradições na China após a vitória da
revolução. Para ele, haveria naquele momento uma série de contradições na
sociedade chinesa, sendo que estas poderiam ser divididas em duas categorias: as
contradições no seio do próprio povo e as contradições entre o povo e seus inimigos.
Tal discussão ganha grande destaque, uma vez que Mao defende a ideia de que
parcelas da burguesia chinesa poderiam ser entendidas como parte do povo, desde
que se mantivessem sob a orientação política dos trabalhadores e comprometidos
com a transição socialista. Com os anos de guerra contra o Japão imperialista e as
forças do Kuomintang, a aliança entre uma burguesia nacional e o PCCh se
estabeleceu. Para Mao, a contradição entre burguesia e trabalhadores, certamente
antagônica, nas condições concretas da RPC deixava de ser a principal, o que a
permitia ser tratada de forma pacífica. Tal avaliação é coerente com o processo
histórico da revolução chinesa, que é socialista, mas também anti-imperialista
(nacional) e antifeudal (camponesa), ou seja, popular. O reconhecimento do papel
da burguesia nacional na construção da RPC se deu [e se mantém] inclusive
institucionalmente, através da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês, que
conta com a participação de partidos não comunistas e mesmo partidos com
membros burgueses, como é o caso da Associação Nacional da Construção
Democrática da China.

1.3 A contradição do desenvolvimento

As conclusões apresentadas na seção anterior só seriam possíveis pela


identificação de outra contradição que assumiria o status de principal naquele
contexto. Como afirma Mao, resolver as contradições no seio do povo era
fundamental para:

[...] unir todas as nacionalidades do nosso país para o empreendimento de


uma nova batalha – a batalha contra a natureza -, de modo a desenvolver a
nossa economia e a nossa cultura, a ajudar todo o povo para atravessar de
maneira relativamente fácil o atual período de transição e de modo a
consolidar nosso novo regime e edificar o nosso novo Estado.

6
Sobre a contradição (disponível em: https://www.marxists.org/portugues/mao/1937/08/contra.htm)
7
Disponível em: https://serviraopovo.wordpress.com/2017/10/06/sobre-o-tratamento-correto-
dascontradicoes-no-seio-do-povo-mao-tsetung-1957/

17
Tal passagem nos permite concluir que a análise concreta da realidade chinesa
levou o PCCh a compreender que a contradição principal na sociedade chinesa
naquele momento era justamente a questão do desenvolvimento. Mais de 30 anos
depois, em 1992, Deng Xiaoping visitaria a costa sudeste da China (onde ficam
Xangai, Shenzhen e Cantão) e afirmaria que “o desenvolvimento é a dura razão
[verdade]”8. Com esta visita, o já aposentado promotor das reformas de 1978
expressava o entendimento mais geral do PCCH de que só o desenvolvimento
poderia salvar a China e sua revolução e de que as reformas de 1978 deveriam ser
aprofundadas e aceleradas. O pensamento de Xi Jinping sobre a Nova Era do
socialismo de características chinesas também mantém esta centralidade no
desenvolvimento. Tal entendimento foi ainda reforçado no último congresso do
PCCh, em 2017, onde se afirmou que “a principal contradição na sociedade chinesa
evoluiu para uma entre desenvolvimento desequilibrado e inadequado e as
crescentes necessidades das pessoas por uma vida melhor” 9. Assim, pode-se dizer
que, para o PCCH, a contradição principal em todo o processo chinês de transição
ao socialismo foi, e continua sendo, a questão do desenvolvimento.

A opção do PCCh de se associar à burguesia nacional e se utilizar do mercado para


a promoção do desenvolvimento fez com que muitos colocassem em questão o
próprio caráter socialista da experiência chinesa. Para muitos, as reformas de 1978
promoveram uma crescente mercantilização da economia chinesa, colocando-a em
uma trajetória de restauração capitalista. Além desta tese, há também aquelas que
afirmam que, ainda que o PCCh mantenha o socialismo como princípio, há um
aumento de quadros direitistas dentro de suas fileiras e espaços de direção,
comprometendo a construção do socialismo de fato. Somam-se a estas teses ainda
aquelas que afirmam a China como uma nação imperialista ou a expressão de um
novo imperialismo. Samir Amin10 entende que tais debates se baseiam em uma
pergunta de partida insuficiente. O autor entende que a RPC ainda se encontra em
um processo de transição ao socialismo, mas que a forma de organização do
trabalho expõe a persistência da exploração capitalista. Assim, a RPC poderia ser
mais bem caracterizada como um capitalismo de Estado em um processo de
transição ao socialismo. Trata-se, portanto, de um projeto acelerado de
desenvolvimento que poderia dar condições materiais para completar a transição ao
socialismo, mas que também poderia se desviar para a via capitalista. Para chegar a
tal conclusão e afirmar que a China não pode ser caracterizada como uma nação
capitalista stricto sensu, Amin se sustenta em dois aspectos: a propriedade estatal
da terra na China [que a impede de ser negociada na forma de mercadoria] e o
controle estatal do sistema financeiro nacional chinês, que viabilizou uma entrada no

8
Why is Deng Xiaoping’s 1992 Southern Inspection Tour still relevant today? (disponível em:
https://news.cgtn.com/news/3451444e79677a6333566d54/share_p.html)
9
Resolution of the 19th National Congress (disponível em: http://www.xinhuanet.com/english/2017-
10/24/c_136702625.htm)
10
China 2013 (disponível em: https://www.novacultura.info/single-post/2015/08/11/China-2013)

18
mercado mundial e na globalização de forma mais controlada, permitindo à China
preservar grande parte de sua autonomia.

A experiência chinesa tem tido grande sucesso no seu projeto de desenvolvimento


nacional, lançando mão de métodos e instrumentos novos, pensados a partir do
marxismo e da experiência concreta chinesa. Conforme vimos nesta breve
introdução, a análise desta experiência exige de nós uma maior elaboração sobre a
transição ao socialismo, bem como sua relação com o desenvolvimento e com o
capitalismo de Estado.

2. Transição ao socialismo e Capitalismo de Estado

O socialismo em si é uma transição para uma fase superior chamada comunismo.


Por isso, soa estranho falar em “transição para o socialismo”. Porém, o conceito de
“experiências de transição ao socialismo” ajuda a enfrentar o complexo debate,
ainda inconcluso, das possibilidades de construir o socialismo num só país ou num
grupo limitado de países. O que tivemos, desde o triunfo da Revolução Russa em
1917, são experiências diferenciadas de transição para o socialismo. Em todas elas,
há um período de transição no qual será preciso trabalhar por um rápido aumento da
massa das forças produtivas, a partir de limites históricos determinados.

A suposta incompatibilidade entre capitalismo de estado e a transição ao socialismo


se retém na dimensão econômica, mas precisa levar em conta a dimensão política.
O que seria a Rússia durante a NEP, senão capitalismo de estado em uma
experiência de transição ao socialismo?

Quais os critérios para definir como uma experiência de transição ao socialismo? É


uma pergunta importante. O fundamental é se perguntar: quem ocupa a hegemonia
no bloco no poder? Se for o proletariado, estamos diante de uma experiência de
transição ao socialismo, mesmo em um capitalismo de estado. É preciso averiguar
em que direção vão as políticas de Estado. Qual o programa em curso.

É certo que os conceitos de capitalismo de Estado e socialismo são contraditórios


exatamente porque é um velho que se quer transformar num novo. Mas,
contraditório não significa incompatível. O que é inadequado é definir simplesmente
que a China é um capitalismo de estado. A China é uma experiência de transição
socialista que se vale de capitalismo de Estado.

É preciso considerar que a China era imensamente mais atrasada em relação ao


capitalismo em 1949 e, mais ainda, em 1978, que a Rússia em 1921. Na China, o
esforço de desenvolvimento não cuidou apenas de fortalecer uma economia, mas de
reorientar totalmente a economia, no sentido, até mesmo, de criação de um
proletariado, de tão incipiente que era aquele que lá existia.

19
Foi graças à aliança do proletariado com o campesinato e a burguesia que foi
possível não apenas derrotar o invasor japonês, como a aliança imperialista e o
Kuomintang. E foi também graças a essa aliança que foi possível abrir o país para
os investimentos estrangeiros, para criar uma economia desenvolvida.

Há uma dominância do capital público e essa dominância (como na Rússia


Soviética) nasce da política, da hegemonia do proletariado (representado por seu
Partido). Importante o seguinte trecho do Relatório do 19* Congresso do PCCh ao
apontar:

O pensamento sobre o socialismo com características chinesas na nova


época deixa bem claro o seguinte: a tarefa geral de seguir e desenvolver o
socialismo com características chinesas reside na concretização da
modernização socialista e da grande revitalização da nação chinesa, e na
conversão da China, em dois passos, com base na conclusão da construção
integral de uma sociedade moderadamente abastecida, em um poderoso
país socialista modernizado, próspero, democrático, civilizado, harmonioso
e belo até meados deste século; a principal contradição da nossa sociedade
na nova época se dá entre as crescentes demandas do povo por uma vida
melhor e o desenvolvimento desequilibrado e insuficiente, portanto é preciso
persistir no conceito de desenvolvimento centrado no povo e promover
constantemente o desenvolvimento integral das pessoas e a prosperidade
comum de toda a população; a disposição geral da causa do socialismo
com características chinesas é a de "cinco em um" e sua disposição
estratégica é a de "quatro integrais", com ênfase no aumento da confiança
no caminho, teoria, sistema e cultura; o objetivo geral do aprofundamento
integral da reforma reside no aperfeiçoamento e desenvolvimento do
sistema socialista com características chinesas e na promoção da
modernização do sistema e da capacidade de governança do país; o
objetivo geral da administração integral do país conforme a lei reside na
construção do sistema legal socialista com características chinesas e na
construção de um Estado de direito socialista; o objetivo do Partido para o
fortalecimento das Forças Armadas na nova época é construir um Exército
Popular que obedeça ao comando do Partido, seja capaz de vencer e tenha
um bom estilo, bem como transformá-lo em um exército de primeira
categoria mundial; a nossa diplomacia de grande país com caraterísticas
chinesas deve promover tanto o estabelecimento de um novo modelo das
relações internacionais como a formação de uma comunidade de destino
comum da humanidade; a característica mais inerente ao socialismo com
características chinesas e a maior vantagem do seu sistema residem na
liderança do Partido Comunista da China, que é a suprema força dirigente
política, e que se deve ressaltar a construção política como importante
posição na construção do Partido, conforme a exigência geral formulada
para construção do Partido na nova época.

Eis aí o horizonte estratégico de transição socialista. Está claro, mas com certeza,
carregado de disputas internas que expressam as contradições existentes.
Recordemos as inúmeras peculiaridades de muitas experiencias com perspectiva
socialista na África, em países islâmicos etc.

Embora Lenin tenha vivido praticamente apenas 6 anos após o triunfo em 1917, sua
teoria, especialmente a partir da NEP, ao se colocar a questão da transição,
considera questões de tempo, de métodos, de lugar, de dinâmica revolucionária.

20
Além do posicionamento e ordenamento político, ressalta o aspecto econômico,
onde toma forma marcante a reconstrução da economia baseada na indústria
pesada, em mãos do proletariado, bem como a utilização do capitalismo de Estado.

3. Como caracterizar a experiência chinesa?

A experiência chinesa demonstra a possibilidade de desenvolvimento nos países


periféricos. Contudo, demonstra também uma série de determinações envolvidas na
viabilidade de uma trajetória desse tipo. Entre os aspectos externos que contribuíram
decisivamente com o sucesso do projeto de desenvolvimento chinês podemos citar:
1. A estratégia americana de isolamento da URSS e aproximação da China 11; 2. A
ofensiva comercial americana contra o Japão; 3. Os aumentos de salários em países
exportadores de manufaturas do leste asiático frente à estagnação dos salários
chineses12. Por outro lado, não se pode negar o fundamental papel da revolução
chinesa e do comando político do PCCh. Se é verdade que o projeto de
desenvolvimento chinês foi viabilizado por condições que escapavam ao seu
controle, é também verdade que as bases para o projeto já haviam sido lançadas
desde os primeiros anos da RPC13; que o planejamento Estatal e os altos níveis de
investimento doméstico foram fundamentais; e que uma série de medidas foram
adotadas para que a inserção da RPC no mercado mundial e na internacionalização
financeira se dessem de forma controlada14. Pode-se dizer, portanto, que a grande
façanha da RPC foi, a partir das condições internacionais e da realidade chinesa,
construir um projeto de desenvolvimento nacional integrado ao capitalismo mundial,
porém com um grau de autonomia muito maior que o observado em outras nações
periféricas ou mesmo nos novos países industrializados.

É claro que tal processo traz consigo uma série de contradições e ainda mais
debates em torno de sua justa caracterização. Sem a pretensão de esgotar tais
debates, é preciso avançar no estudo e na elaboração sobre o tema dentro de nossa
organização. A correta análise da experiência chinesa nos trará dois grandes
acúmulos teóricos. Em primeiro lugar, o estudo da história e dos fundamentos
teóricos da experiência chinesa é fundamental para localizar a RPC dentro da
estrutura hierárquica do capitalismo global, permitindo a justa análise de suas
contradições e potencialidades. Além disso, considerando o sucesso da experiência
de desenvolvimento na China, um país dependente como o nosso, o seu estudo

11
New York Times - Kissinger meets Mao for 2 hours [1973] (disponível em:
https://www.nytimes.com/1973/02/18/archives/kissinger-meets-mao-for-2-hours-accord-on-trade-
reported-specific.html)
12
Ho-Fung Hung - America’s head servant? The PRC’s Dilemma in the Global Crisis [2009]
(disponível em: https://newleftreview.org/issues/II60/articles/ho-fung-hung-america-s-head-servant)
13
Isabela Nogueira de Morais - Do legado maoísta à economia política das reformas: As bases do
desenvolvimento recente chinês [Cap. 1] (disponível em:
https://chinaepmufabc.files.wordpress.com/2020/03/isabela_nogueira_de_morais.pdf)
14
Cintra e Silva Filho - O Sistema Financeiro Chinês: a grande muralha [Cap. 9] (disponível em:
https://chinaepmufabc.files.wordpress.com/2020/03/150918_livro_china_em_transformacao.pdf)

21
pode contribuir também com nossa análise da realidade brasileira e com a
elaboração estratégica que segue em curso dentro de nossa organização.

O presente texto foi o resultado de alguns debates sobre a China realizados em


nosso núcleo. Buscamos evitar apontar grandes posicionamentos sobre a questão,
mas apontar uma série de referências e reflexões que podem contribuir com o
desenvolvimento deste debate no interior de nossa organização. Longe de obter
conclusões, nosso núcleo conseguiu constatar a diversidade de interpretações,
mesmo no campo do marxismo, sobre esta experiência. Assim, é fundamental que
este texto seja entendido como um ponto de partida para aqueles que querem se
aprofundar nesta discussão e como um incentivo ao todo da organização para que
avancemos neste debate fundamental. Não é possível entender o capitalismo
contemporâneo sem compreender a experiência chinesa e sua relação com o
capitalismo global. Tampouco é possível pensar um projeto nacional de
desenvolvimento sem levar em conta os impactos e possibilidades da economia
chinesa em nossa própria economia.

4. Questões para aprofundamento

- Como se manifesta o imperialismo na atual fase do desenvolvimento capitalista? A


partir daí, é possível afirmar a existência de um [sub]imperialismo chinês?

- Quais são as principais contradições resultantes da complexa relação de


cooperação e rivalidade estabelecida entre China e EUA e quais tendências elas
imprimem? A China tende de fato a assumir a hegemonia mundial? Tal processo
poderia se dar de forma “pacífica” ou tende a um acirramento, inclusive bélico, do
conflito?

- Como interpretamos o uso que o socialismo de características chinesas faz do livre


mercado? É possível pensar em um socialismo que utiliza o mercado como forma de
alocar seus recursos ou seria isso um dos aspectos fundamentais que definem o
modo de produção capitalista?

- Como tratar a questão da democracia chinesa? O quanto deste debate nas


esquerdas acaba contribuindo ou é influenciado pelo que se chama de ”China
Bashing”15?

15
Prática de difamação sistemática da China, que combina desinformação com preconceito. Se
manifesta tanto à direita quanto à esquerda, especialmente no Ocidente. Exemplo disso é a noção
estabelecida de que a China fabrica apenas quinquilharias e produtos de baixa qualidade, quando é
também responsável por produzir tecnologia de ponta em setores como eletrônica, maquinaria e
tecnologia da informação e da comunicação. Obs.: sobre a produção chinesa para exportação, cabe
consultar o Atlas da Complexidade Econômica da Universidade de Harvard (disponível em:
https://atlas.cid.harvard.edu/countries/43/export-basket).

22
- Seria o capitalismo de Estado uma possível etapa preliminar para a transição
socialista? Podemos identificar outras possibilidades teóricas e históricas?

5. Conclusão

Estamos diante de um debate complexo, que necessita ser aprofundado pela nossa
organização se pretendemos que a Consulta Popular prossiga em sua trajetória de
um instrumento político autônomo, de natureza partidária. Suas implicações são
imediatas e incidem em nosso debate estratégico. Assim, a 6ª Assembleia não pode
deixar de enfrentar este debate e avançar na nossa própria caracterização do
fenômeno.

23
________________________________________________________________________

Censura e crítica
Herick Argôlo

24
O curso “O que é Marxismo-Leninismo?” foi lançado recentemente, por iniciativa do
Rondó da Liberdade, instrumento de propaganda marxista da Consulta Popular em
Sergipe, numa parceria com a revista Crítica Marxista. Desde então, um grupo de
companheiros passou a fazer uma série de críticas surpreendentes e pouco
sustentáveis contra essa iniciativa.

Por que um curso sobre o marxismo-leninismo causou tanto alvoroço entre esses
companheiros, ao ponto de pretenderem censurá-lo? Deitemos os olhos nas
justificativas que caíram do céu.

A primeira é que o curso seria “clandestino”, pois “não utiliza a marca da Consulta
Popular”, mas a do Rondó da Liberdade. Pois bem. Essa iniciativa não difere, nem
um pouco, do que a Consulta Popular sempre fez com nossos instrumentos de
propaganda ao longo da nossa história. Como exemplo, a Expressão Popular, o
Brasil de Fato e a própria Expressão Sergipana, dentre muitos outro. Ressalte-se
que à época que a Expressão Sergipana foi lançada pela Consulta Popular em
Sergipe, mesmo sem a marca do partido, não recebeu as críticas que agora são
desferidas contra nós, porém diversos comentários elogiosos.

Em todos esses instrumentos, nós não colocamos, e seguimos sem colocar, o


carimbo “Consulta Popular”. Assim o fizemos porque a finalidade principal deles não
é atrair novos militantes para o partido, mas a disseminação da propaganda. Não há
cabimento algum em querer, agora, inventar uma regra diferente para o Rondó da
Liberdade, instrumento construído pela Consulta Popular em Sergipe. Esse suposto
requisito só serve para, com a alcunha de “clandestino”, tentar marginalizar o curso e
os militantes que o promovem.

Um outro argumento dos companheiros diz que o curso “fere a unidade ideológica
da organização”. Esse é ainda mais surpreendente, além de sintomático.
Esqueceram-se os companheiros que a Consulta Popular é uma organização
marxista-leninista? Qual unidade está sendo ferida?

Nos Cadernos de Debates, temos feito críticas ao ecletismo ideológico que impregna
a Consulta Popular. Destaco um fato que ali apontamos:

“Nos últimos levantamentos da secretaria nacional, cerca de apenas dois


em cada dez militantes da Consulta Popular havia passado pelo nosso
curso de formação de militantes. Nós contamos com abnegados lutadores
nas nossas fileiras, cuja maioria, no entanto, não passou do ‘Manifesto do
Partido Comunista’ na sua formação teórica marxista. Será que o que nos
falta são mais estudos de autores não marxistas – que sim, devem ser lidos,
mas corrigidos a partir do marxismo –, ou o que nos falta é uma formação
mais firme, a partir do arsenal teórico do marxismo-leninismo?”16

16
“Somos a Consulta Popular II”, Dalva Angélica, Durval Siqueira, Erick Feitosa, Herick Argôlo e
Kevin Ismerim, Caderno de Debates nº 2, 2018.

25
Os que alegam que a propaganda da obra de Lenin “fere a unidade ideológica da
organização” protegem não a unidade ideológica, como dizem, mas a sua verdadeira
ausência. Protegem, no final das contas, o ecletismo ideológico, que germina tal qual
uma erva daninha no terreno que não é arado por uma teoria coerente e refletida, e
que obstrui o florescimento do marxismo-leninismo enquanto ciência que possibilita
nos orientar corretamente na realidade.

Um curso sobre marxismo-leninismo, ao contrário do que alegado por esse seleto


grupo de companheiros, ajuda a conferir mais unidade ideológica à Consulta
Popular. Não menos.

É verdade que, de inocente, esse curso não tem nada. Ele conta com onze módulos
sobre as temidas obras de Lenin. Obras que, não raro, escandalizaram desde a
burguesia até pretensos marxistas que descambaram para concepções e linhas
políticas reformistas.

Uma terceira denúncia é que esse curso deveria ser censurado porque “não faz
parte da formação interna da Consulta Popular”. Sim, é óbvio que ele não faz parte
da nossa formação. Como ensinou-nos o CEPIS, de forma tão rigorosa e instrutiva,
a formação é feita para militantes, com o objetivo fundamental de implantar uma
estratégia de poder.

É indispensável que a Consulta Popular tenha uma escola oficial, com o objetivo de
implantar a estratégia revolucionária por nós formulada. O seu conteúdo deve, sim,
ser rigorosamente debatido e aprovado pelo Setor de Formação Nacional e na nossa
Direção Nacional. Isso não impede, contudo, a propaganda de ideias e obras
revolucionárias.

O curso nunca pretendeu substituir o necessário papel da formação do partido, nem


dispensar a oficialidade de uma linha teórica-ideológica. Aliás, muitos companheiros
têm insistido na necessidade de debater a nossa formação, que já é insuficiente para
a necessária inflexão tática e aprofundamento estratégico que a luta revolucionária
tem exigido de nós17. Não se sustenta o suposto fundamento para a censura.

Questionemo-nos, ainda assim, há limites para a propaganda exercida pelos


membros de um partido? Sim, os há. Por um lado, a propaganda deve ser muito
livre, até para criticar o programa e a linha partidária. Por outro, a propaganda dos
militantes do partido não deve atentar contra os princípios do programa partidário,
nem ferir a unidade de uma ação determinada.

17
Ver, por exemplo, “Uma proposta de formação política para nossa realidade”, Armando Boito, Aton
Fon e Ricardo Gebrim, Caderno de Debates nº 1 de 2018; e “Sobre a questão eleitoral e algo mais”,
Herick Argôlo, Caderno de Debates nº 2 de 2020.

26
O centralismo democrático, princípio leninista que melhor orienta a organização do
partido comunista, é composto por uma unidade de contrários. Esse princípio
decorre da relação de interdependência e luta entre a liberdade de discussão e a
unidade de ação.

Ao tempo que possibilitam o exercício da democracia interna, as instâncias


nacionais devem cuidar da unidade em torno dos princípios e de sua linha política, e
agir quando esse limite é transposto.

“Os membros do nosso Partido são obrigados a aceitar o seu programa.


Isso não significa, é claro, que um programa, uma vez adotado, não possa
ser criticado. Nós já reconhecemos, e efetivamente reconhecemos e
continuaremos a reconhecer a liberdade de crítica. Mas quem quiser
permanecer como membro do nosso Partido deve permanecer, mesmo em
suas críticas, no terreno do programa”, Plekanov, nas “Atas do Segundo
Congresso do POSDR”18.

Perguntemo-nos, um curso sobre o marxismo-leninismo sai, utilizando a metáfora de


Plekhanov, do “terreno do nosso programa”? Ele abandona os marcos teóricos da
nossa organização? Óbvio que não, pelo menos não em relação aos marcos que
originalmente reivindicamos.

Um exemplo histórico é ilustrativo. Em 1901, no Congresso de Lübeck do SPD, foi


aprovada uma resolução de advertência direta contra Eduard Bernstein, que vinha
intensificando sua propaganda, no interior e para fora do partido, contra os princípios
do seu programa. Bernstein negava a necessidade da revolução, rechaçava
absolutamente a ideia de ditadura do proletariado, negava a teoria da luta de
classes, criticava o que chamava de “marxismo velho e dogmático” e defendia que o
SPD se convertesse em um partido democrático de reformas sociais. Eis aqui uma
transgressão muito clara do “terreno do programa”, das fronteiras da liberdade de
crítica, que não pode significar a liberdade de introduzir na luta pelo socialismo as
ideias burguesas.

Nossos companheiros invertem a coisa. Pretendem nos censurar não por críticas
burguesas às ideias fundamentais do marxismo-leninismo. Mas por estarmos
divulgando-o.

No entanto, prosseguem afirmando os companheiros que querem nos censurar, o


curso “deveria ter sido debatido e aprovado nas instâncias nacionais da
organização”. Ou seja, esses companheiros querem avocar para alguma instância
nacional o direito de fazer uma censura prévia sobre o conteúdo da nossa
propaganda.

18
Trecho também disponível em https://www.marxists.org/portugues/lenin/1906/05/20.htm#tr2

27
No breve texto “Sobre a Liberdade de Crítica”19, já havia assinalado que alguns
companheiros, encobertos com a invocação do “centralismo democrático”, violavam
o aspecto democrático desse princípio, não tolerando qualquer tipo de crítica.
Recordemo-nos o que destaca Lenin sobre a liberdade crítica:

“A crítica dentro dos limites dos princípios do Programa do Partido deve ser
bastante livre (lembramos ao leitor aquilo que Plekhanov disse sobre esse
assunto no Segundo Congresso do POSDR), não apenas nas reuniões do
Partido, mas também nas reuniões públicas. Tal crítica, ou tal ‘agitação’
(porque a crítica é inseparável da agitação) não pode ser proibida”. Lenin,
em “Centralismo Democrático: Liberdade para Criticar e Unidade de
Ação”20.

Se até a crítica “deve ser bastante livre”, como bem recomenda Lenin, o que dizer
sobre a liberdade de divulgação de ideias e obras revolucionárias? Não é possível
deixar de perceber que o autoritarismo que emana das pretensões de censura dos
companheiros é gritante, é aberrante.

Porém, alguns pensam se esquivar quando dizem que o problema do curso não
seria o marxismo-leninismo em si, apenas que “sejam ajustados os facilitadores”.
Desse modo, esses companheiros querem, simplesmente, ter o poder de decidir
quem pode ou não fazer propaganda na Consulta Popular.

Não nos ajuda a avançar essas críticas vazias a uma iniciativa de indivíduos dos
quais se tem divergências políticas. Não há problema algum em rejeitar a posição
desse ou daquele, mas há em querer, autoritariamente, censurar. Buscar impedir um
militante ou uma instância local do partido de ter voz é o mesmo que atentar contra o
seu direito de existência política.

Outra curiosa acusação é que o curso chegou à militância da Consulta Popular do


país inteiro não através das instâncias locais, mas da sua própria divulgação
orgânica. Companheiros, deem-nos então os parabéns, e não protestos! Se um
curso foi capaz de chegar em toda nossa militância apenas com a divulgação na
internet, sem apoio ou recomendações da secretaria nacional, então é sinal que
fizemos um eficiente trabalho de divulgação.

Aliás, já perdemos as contas de quantos cursos promovidos pelo MST ou outras


entidades foram entusiasticamente recomendados pela secretaria nacional. Não que
esses cursos devessem ser, também, censurados. Muito menos incorporados
automaticamente a nossa formação. Mas essa mesma instância tem mostrado, até
aqui, muito pouca preocupação em revigorar e disseminar nossa própria escola de
formação da Consulta Popular entre seus militantes. Isso sim tem o efeito análogo
de substituir o papel das nossas formações pelos cursos do campo político. A

19
Herick Argôlo, “Caderno de Debates nº 1, 2019.
20
Disponível em https://www.marxists.org/portugues/lenin/1906/05/20.htm#tr2

28
diluição da Consulta popular nos movimentos tem sido cada vez mais evidente,
como alertado em “O ‘Campo do Projeto Popular’ substituirá a Consulta Popular?”21,
dentre outros.

Por fim, esses companheiros se dizem incomodados porque a finalidade desse


curso seria a luta interna, que, segundo eles, “teria a lógica de composição de
grupos” e que “dilaceram as instâncias nacionais”. Dizem, ainda, que pretendemos
“aproximar militantes da Consulta Popular de determinadas concepções
minoritárias”.

Companheiros, em primeiro lugar, não creiam que o marxismo-leninismo seja uma


concepção minoritária dentro da Consulta Popular. É verdade que, na nossa
organização, pouquíssimos militantes tiveram a oportunidade de ter uma robusta
formação marxista-leninista. Mas acontece que a primeira conexão de um militante
com o marxismo não é intelectual, ela é emocional. E quando essa emoção
incontornável tem a chance de se encontrar e de se compreender na ciência
marxista-leninista, então temos aí um quadro tanto pronto para entregar sua vida
pela revolução, quanto conhecedor do caminho para fazê-la vitoriosa.

A Consulta Popular, apesar de todas suas fragilidades e todos os percalços que tem
enfrentado nos últimos anos, permanece como o ponto de partida mais promissor no
nosso país para reconstruirmos um polo revolucionário no Brasil e na América
Latina. Simplesmente porque o sentimento marxista-leninista transborda na
militância da nossa organização. Na medida em que esse sentimento encontrar a
razão científica marxista-leninista, a erupção da vontade revolucionária será
incontrolável.

No texto “Ode à Luta Interna”22, já tratei sobre a importância do exercício da


democracia interna e dos debates em torno de divergências teóricas e ideológicas
no seio do partido. Alguns companheiros seguem repudiando os debates como
“internismo”, ou reduzindo a luta interna ao nível pessoal de “composição de
grupos”.

De fato, a composição de grupos ligados por laços puramente pessoais, com o único
intuito de manter ou conquistar o controle burocrático de instâncias, é abominável e
nocivo em um partido comunista. Não é disso que se trata a luta interna. Naquele
texto destaquei:

“Um segundo cuidado é estar ciente que a luta interna não se trata de uma luta de
grupos, nem por poderio individual, mas uma luta em torno de ideias, em torno da
ideologia revolucionária e da teoria marxista-leninista. Assim, o compromisso de
cada revolucionário não deve se dar com indivíduos ou grupos, embora estes
possam, naturalmente, se formar e encarnar determinada posição em dado

21
Ricardo Gebrim, Caderno de Debates º1, fevereiro de 2020.
22
“Ode à Luta Interna”, Herick Argôlo, “Caderno de Debates nº 2, 2019.

29
momento. Mas o compromisso deve se dar, como princípio, em torno do
conhecimento preciso da realidade, da correta orientação teórica e ideológica, da
justeza da linha que daí decorre, enfim, em torno da verdade. O revolucionário
deve ter um compromisso inquebrantável com a verdade”23.

O repúdio à luta interna, enquanto prática que põem à prova diferentes posições
políticas no partido revolucionário, impede-nos de alcançar uma orientação científica
na luta política. Entregues ao espontaneísmo, os que rebaixam o papel da teoria
perdem de vista as relações de classe e as determinações sociais identificadas pelo
materialismo histórico.

O contrário de luta interna não é paz interna. As contradições permeiam todo o


mundo natural e social, e não deixam de existir no partido. Impedir que se ponham à
prova e se resolvam as diferentes concepções políticas só pode resultar ou em
autoritarismo interno, ou em anarquia interna. Não desejamos nem um, nem outro.
Mas um partido vivo, independente, coeso ainda que não seja uniforme e que não
abra mão do debate teórico para guiar sua prática.

O que, de fato, “dilacera as instâncias nacionais” e esvazia a nossa organização são


as concepções movimentistas que temos criticado nos cadernos de debates, que
diluem a Consulta Popular nos movimentos. Assim, insistimos que as nossas
divergências sejam resolvidas não com censuras ou sanções burocráticas, mas no
debate político e democrático.

Um curso sobre marxismo-leninismo, companheiros, só de muito longe se aproxima


de ser definido como luta interna. E somente se tomada no sentido que, com base
em toda tradição revolucionária vitoriosa, dava-lhe Carlos Marighella:

“O marxismo é o que pode haver de mais oposto e contrário ao espontaneíamo e


à renúncia ao domínio das leis sociais.
Em vez de deixar que as leis objetivas se manifestem sem dominá-las, o
materialismo histórico procura conhecê-las e utilizá-las como guia em favor da
ação do proletariado.
Daí por que só há um método correto a ser aplicado na luta interna, um único
método capaz de fazer avançar o partido no curso de tal luta, e este é o método
dialético-materialista.
Segundo tal ponto-de-vista, a luta interna constitui a um só tempo uma luta
ideológica e teórica.
A teoria por si só não pode modificar a realidade, não tem condições para fazê-lo.
Mas sem a teoria é impossível conhecer e dominar as leis objetivas, uma vez que
o conhecimento não é mais do que a atividade teórica do homem.
Como luta teórico-ideológica, a luta interna exige que se saiba generalizar a
experiência da realidade brasileira, a experiência concreta de nossa revolução e
de nosso partido. E isto não se consegue sem o manejo da teoria.
O objetivo da luta interna — no seu aspecto teórico-ideológica — ou como luta
teórico-ideológica — é conseguir chegar a mudanças na cabeça dos homens, na
consciência dos militantes da vanguarda”24.

23
Idem.
24
“Luta Interna e Dialética”, Carlos Marighella (destaquei), disponível em
https://www.marxists.org/portugues/marighella/1966/10/15.htm

30
Companheiros, não restam de pé razões para pretenderem censurar nosso curso.
Muito menos para quererem anular a atividade política de militantes e instâncias
locais, colocando-as sob a censura prévia de alguma instância nacional.

Somos a Consulta Popular. Inspirados no exemplo marighellista, seguiremos no


intento de fortalecê-la.

Houve revoluções populares no século XIX, houve no século XX e as haverá no


século XXI, quiçá no Brasil. Nelas participaremos, de uma forma ou de outra. Há
uma grande lição que Lenin nos deixou, e que será objeto do nosso curso. É que a
vitória nessas revoluções não cairá do céu. O sucesso delas dependerá da prévia
construção de sólidas organizações partidárias, munidas da ciência marxista-
leninista, vinculadas ao proletariado e demais classes populares e que superem a
fragmentação dos sindicatos e movimentos.

É como uma organização desse tipo que a Consulta Popular deve ser construída. É
por meio delas que os movimentos revolucionários do século XXI poderão ser
vitoriosos e poderão se espalhar pelo mundo.

31
________________________________________________________________________

“Tem que ser muito forte para


assumir o quão frágil somos nós”:
uma reflexão sobre a masculinidade e os
desafios da nossa organização
Fabiano Paixão25 e Venício Montalvão26

25
Fabiano Paixão de Souza- Núcleo João Leonardo
26
Venício da Silva Montalvão- Núcleo João Leonardo

32
“Tenho consciência de ser autêntica e
procuro superar todos os dias minha própria
personalidade, despedaçando dentro de mim
tudo que é velho e morto, pois lutar é a
palavra vibrante que levanta os fracos e
determina os fortes.”

Introdução

Camaradas, encaminhamos este texto ao Caderno de Debates como contribuição à


discussão sobre masculinidade, tema bastante discutido nas diversas plataformas na
internet, mas ainda pouco tratado internamente.

O impulso inicial surgiu de um encaminhamento do Núcleo João Leonardo da


Consulta Popular do município de Guanambi, cujo objetivo inicial era a proposição
de uma metodologia para atividade presencial, impossibilitada pela pandemia,
ressaltamos também que esse texto é fruto das provocações feitas pelas
companheiras de nossa organização, na tentativa de desenvolver um método.
Assim, optamos por sistematizar uma síntese sobre o tema, que pudesse ajudar
fornecer uma aproximação ao debate, além de qualificar nossas condições de
avaliar e propor formas de enfrentar situações e posturas machistas, tanto já
passadas, assim como as que ocorrem e possam ocorrer no futuro.

Destarte, o texto que enviamos contém o conteúdo mais geral, resultado dessa
iniciativa, o qual julgamos necessário submete-lo ao conjunto da organização
através do Caderno de Debates, isso por um motivo principal. Trata-se de uma
discussão amplamente difundida nas redes sociais e nos diversos meios digitais,
portanto, de fácil acesso, inclusive subsidiando em alguma medida estudos de nossa
militância, mas a organização em si encontra-se em atraso na formulação a respeito,
tornando qualquer iniciativa individual ou de pequeno grupo suscetível a vícios,
desvios teóricos, enfim, limitações diversas. Submetendo ao conjunto do partido,
possibilitamos a continuidade do debate e caminhamos para um entendimento
comum.

Observamos, logo de início, que não utilizamos o termo masculinidade tóxica


enquanto nossa referência para explicar o conteúdo em pauta. Embora venha sendo
amplamente utilizado, nosso limitado acumulo, dos autores e da organização,
dificulta uma posição em defesa ou contra a adesão desse termo. Por isso, usamos
como referência apenas a palavra masculinidade.

Afim de deixar o tema debatido mais acessível, e de maneira a pensa-lo para dentro
de nossa organização, o estruturamos trazendo incialmente o debate teórico, como
vem sendo discutido atualmente e depois entramos na discussão sobre como nossa

33
organização (não) vem enfrentando o debate sobre a construção de espaços em que
se possa debater a masculinidade.

Por último, avisamos de logo, há a ausência de um tratamento sobre a questão da


masculinidade negra e a respeito de como os ideais de masculinidade se
manifestam nos relacionamentos não héteros. Isso devido a avaliação feita por nós,
com a ajuda de camaradas do núcleo, de que com os poucos conhecimentos
acumulados até agora, seria mais prudente, dada a complexidade dos problemas,
tratar incialmente do que nos parece mais claro.

Masculinidade tóxica

O debate sobre a masculinidade está sendo mais e mais ampliado, principalmente


através das redes sociais, podcasts, canais de youtube, e muitos outros meios, além
de estar sendo criado muitos espaços de socialização para reflexões sobre o tema,
como é o caso de círculos, coletivos, entre outros. Também nas organizações e
movimentos do nosso campo popular, em alguns espaços, especialmente nos
momentos de encontros, plenárias, assembleias, a discussão tem tido alguma
atenção. Porém, faz-se necessário, na nossa organização, refletir sobre como tornar
esse processo mais consequente e constante.

É neste esforço que está sendo escrito este texto. Com certeza haverá muitos
limites, mas servirá, acreditamos nisso, como uma primeira aproximação, que
somada aos espaços de debates e novas contribuições de outros e outras
companheiras e companheiros, ajudará a ir compreendendo mais e mais as
determinações que vem constituindo os homens revolucionários, assim como
também, os homens da classe trabalhadora. E na medida dessa compreensão que
se criará as condições para enfrentar as manifestações problemáticas, cujo efeito
impacta negativamente as companheiras, os próprios homens e, portanto, a causa
da transformação de modo geral.

A discussão sobre as masculinidades, ou masculinidade tóxica, termo que é mais


utilizado nos dias atuais, vem refletindo como a sociedade construiu historicamente
um ideal, caricaturado e idealizado, de o que é ser homem e o que é ser mulher, ou
seja, um contínuo reforço de papeis de gênero, tendo o masculino como superior e
admirável, ao tempo que se inferioriza o feminino. De um lado o masculino, dotado
para dominar, de outro o feminino, frágil e dominável. E essa ideia de ser homem
seria baseada na concepção de que, quanto mais se afasta de práticas, posturas e
atitudes consideradas femininas, mais homem é.

Na maior parte das discussões em redes sociais, canais de youtube, podcasts e


outras plataformas, o tema principal tem sido a postura do homem nos espaços
sociais, como o combate a masculinidade tóxica pode proporcionar uma melhor
qualidade de vida e condições para inserção em espaços que poderiam ser

34
considerados femininos. Além do cuidado com a saúde, a percepção de que o corpo
precisa de cuidados, de que precisa procurar o médico, assim como questões
relacionadas a paternidade, a criação dos filhos com maior afetividade, substituindo
a lógica agressiva e ideal de macho pela diversidade das possibilidades na formação
do sujeito, entre outras reflexões neste sentido.

Com a atenção nestes aspectos, o debate da masculinidade tóxica torna-se limitado,


pois, em primeiro lugar, pouco evidencia como esse ideal de masculinidade é
funcional a estrutura da sociedade, e em segundo lugar, tem como objeto de
reflexão um homem cujas condições sociais, econômicas, raciais, diz respeito a um
padrão especifico, no geral, branco, hétero, que não se identifica, aparentemente,
com o povo trabalhador.

Diante dessas duas limitações evidentes, pelo menos de modo inicial, podendo ser
constadas outras no futuro, tentaremos sintetizar discussões que podem ser um
referencial para nossa militância.

As primeiras reflexões sobre masculinidade e a identificação de sua


funcionalidade para a estrutura da sociedade

O ponto de partida para a reflexão sobre o masculino foi o próprio desenvolvimento


da prática e da teoria no movimento feminista. A partir dos anos 70, feministas
começam a refletir sobre a necessidade de inserir os homens na discussão sobre o
machismo, o patriarcado, o sexíssimo.

No ano 2000 foi publicado nos Estados Unidos o livro de bell hooks “O feminismo é
para todo mundo”, obra cujo objetivo é escrever numa linguagem fácil e acessível
sobre a teoria feminista, possibilitando que qualquer pessoa pudesse conhecer o
feminismo. Já no prefácio ela afirma:

“Em momento algum acreditei que o movimento feminista devesse ser, e


fosse, só para as mulheres. (...) Nunca teríamos um movimento feminista
bem sucedido se não conseguíssemos incentivar todo mundo, pessoas
masculinas e femininas, homens e mulheres, meninas e meninos, a se
aproximar do feminismo.” (hooks, 2018)27

Em todo o livro ela ressalta a importância de envolver os homens no movimento


feminista, e a eles, também, fazer chegar a teoria feminista, tendo em vista que o
sexismo é sistêmico, e por isso, tanto os homens quanto as mulheres eram
prejudicados, embora fossem os homens os beneficiados pelos privilégios do
sexismo. Contra esse inimigo, portanto, todos os aliados são importantes, de modo
que o feminismo deveria ser um movimento de massa contra esse inimigo sistêmico.

27 27
HOOKES, bell. O feminismo é para todo mundo. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018.

35
No livro, capítulo 12, “masculinidade feminista”, discute fundamentalmente o quanto
é negativo a masculinidade sexista, pois ela prejudica também os homens, já que
eles tem que pagar um preço caro para exercer dominação sobre as mulheres.

“(...) [A] masculinidade patriarcal incentiva homens a serem patologicamente


narcisistas, infantis e psicologicamente dependentes dos privilégios (ainda
que relativos) que recebem simplesmente porque nasceram homens. Muitos
homens sentem que a vida será ameaçada se esses privilégios lhes forem
tirados, já que não estruturaram qualquer identidade essencial significante.
Por isso, o movimento dos homens tentou positivamente ensinar homens a
se reconectar com sentimentos, a resgatar o garoto perdido e a nutrir a
alma, o crescimento espiritual.” (hooks, 2018)

Essa masculinidade, ao contrário do que pode aparentar, torna os homens muito


mais inseguros, mais frágeis emocionalmente, tendo em conta que sua confiança, o
sentido de existência enquanto homem que as expectativas sociais apoiadas no
sexismo constrói, são baseadas na dominação de outros sujeitos, e não em algo
particular, essencial. Esses homens não podem amar as mulheres com quem se
relacionam, considerando os relacionamentos heterossexuais, pois não pode haver
amor para operar uma dominação, e tampouco podem, estes homens, amar a si
mesmos, quando sua confiança, sua concepção de admirável está, de um lado,
baseado na sua capacidade de dominação. E de outro lado, quanto mais se afasta
do que é considerado feminino, como a manifestação de sentimentos, o cuidado, o
próprio amor, mais se consideram machos.

A atribuição às mulheres das faculdades amorosas, sentimentais, sensíveis, e aos


homens da agressividade e da dominação, faz dos relacionamentos, ao invés de
trocas, experiências de dominação. A mulher cuida, expressa sentimentos, carinho,
amor, e os homens sãos os provedores, protegem e recebem amor, mas duros,
insensíveis, descuidados, desatenciosos com as parceiras.

O extremo desse poder do homem sobre as mulheres, no que diz respeito


principalmente ao prazer, é o estupro. A inculcação no homem de sua faculdade de
caçador, de predador, sendo a mulher a preza, objeto de desejo, torna o estupro
algo frequente, e pior, registrado recorrentemente no seio de famílias, por autoria de
pais com suas filhas, e mesmo na relação entre casal, marido e mulher, assim como
em namoros, pois os homens aprendem a sempre realizar seu prazer, seu desejo, e
a mulher deve estar disponível para isso. A linha, nos relacionamentos, entre a troca
com consentimento mútuo e o estupro, ela é muito tênue. A força, a chantagem, o
abuso emocional, o medo, tudo isso leva mulheres a ter relações sexuais contra sua
vontade, ou, ainda, a fazer sexo quando na verdade desejariam conversar,
aproveitar a companhia de outra maneira, coisa para a qual as masculinidades
sexistas não são educadas.

Outra obra importante para o debate sobre a masculinidade é o livro o Poder do


Macho, de Heleieth Saffioti, tendo em vista que nele, na medida em que explica as

36
determinações constitutivas das construções sociais dos papeis de gênero e suas
manifestações negativas, relaciona de maneira clara o papel dessas construções
para o capitalismo, sendo este texto, uma importante referência para os
revolucionários e as revolucionárias organizados e organizadas em torno da
superação da sociedade de classes, cujo patriarcado é um dos pilares.

Uma das observações sobre os efeitos danosos da masculinidade patriarcal, feita


por Saffioti, refere-se a sexualidade masculina ter sido culturalmente genitalizada.
Afirma ela:

“(...) O processo histórico conduziu o homem a concentrar sua sexualidade


nos órgãos genitais. A maioria dos homens nem sequer sabe que seu corpo
possui muitas outras zonas erógenas. Ignoram, portanto, que podem
desfrutar de muito prazer através da manipulação de outras partes de seu
corpo. Isto representa uma perda para eles, da qual é importante tomar
consciência, a fim de poder combate-la.” (Saffioti, 1987)28

Essa sexualidade limitada constitui-se um problema tanto para as mulheres quanto


para os homens. As mulheres costumam explorar de maneira mais ampla as zonas
de prazer do corpo, mas como o homem vê a relação sexual como a realização do
seu desejo, e sua sexualidade é concentrada no falo, a penetração seguida de
ejaculação é o limite do prazer, o que faz de muitas experiências sexuais, serem,
para as mulheres, frustrantes, mas como se espera que ela cumpra seu dever, ela
conforma-se em satisfazer o desejo do parceiro, e para os homens, uma experiência
mecânica, desprovida de sentimentos e de troca.

As discussões atuais sobre a masculinidade ressaltam como grande número de


homens, devido a essa ideia de sexo, desenvolvem, inclusive, problemas como
ejaculação precoce. Se são socializados para serem predadores e o falo é o
instrumento supervalorizado nessa cultura do homem caçador, a ejaculação precoce
ou outros problemas dessa natureza provocam frustração no homem, além de
vergonha e baixa autoestima.

Saffioti chama atenção ainda, que esse empobrecimento não se dá apenas no


âmbito da relação sexual, mas também nas demais dimensões da vida, e
principalmente da relação entre mulheres e homens.

“Ter na companheira uma serviçal, sempre disposta a preparar-lhe as


refeições, a lavar e passar-lhe as roupas, a buscar lhe os chinelos, impede a
troca, a reciprocidade. E é exatamente no dar e receber simultâneos que
reside o prazer. As relações homem-mulher, na medida em que estão
permeadas pelo poder do macho, negam enfaticamente o prazer. Esta
negação do prazer, embora atinja mais profundamente a mulher, não deixa
de afetar o homem.” (Saffioti, 1987)

28
Saffioti, Heleieth I. B. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987.

37
E ela observa a necessidade de se atentar para isto, quando se visa construir as
condições para que homens e mulheres se realizem plenamente. Pois só na medida
em que nenhuma pessoa for impedida de realizar todas as dimensões de sua
personalidade é que se pode alcançar o prazer.

Avançando na reflexão, após mostrar como o patriarcado e as expectativas sociais


dos papeis de gênero é danosa tanto para mulheres quanto para homens, Saffioti
provoca para a necessidade de investigar, então, a quem serve esse estado de
coisas.

E assim ela demonstra que na sociedade capitalista uma minoria de possuidores de


meios de produção subordina uma maioria de trabalhadores que recebem um salário
para produzir um quantitativo muito maior de valor do que o que recebem como
pagamento de salário, e a maior parte dessa produção fica no bolso dos patrões. E
de acordo descobrem essa disparidade entre o volume que produz e o salário que
recebem, os homens engajam na reivindicação de melhorias de salário, auxílios para
melhorar as condições de vida, entre outras pautas. Mas esses trabalhadores não
aderem do mesmo modo as reivindicações das mulheres trabalhadoras, como
creches, salário igual para trabalho igual, e outras reivindicações. Assim como nas
instancias das organizações da classe trabalhadora a presença da mulher é limitada,
permanecendo uma maioria de homens nas direções sindicais, por exemplo.

A dominação masculina sobre a mulher torna-se, portanto, funcional para a


dominação dos capitalistas sobre a massa trabalhadora, uma vez que divididos pela
dominação entre homens e mulheres no interior da própria classe, encontram menos
condições para organizar a resistência contra dominação capitalista.

Soma-se a isso, como desenvolve a autora, a construção da ideia de que o homem


deve ser o provedor. Mesmo com eventual contribuição da mulher nas despesas, se
o homem não é o provedor destacado, então é falho enquanto homem. E isso deve
se fazer independente das condições econômicas, ou seja, se uma crise provoca
uma redução da oferta de emprego, não é por isso, segundo a ideologia patriarcal,
que o homem deverá deixar de ser o provedor.

Frente a situações de desemprego, ou redução significativa na renda, portanto, da


impossibilidade de prover o seu sustento e de sua família, como orienta o ideal de
masculinidade hegemônica, esses homens se encontram frustrados, com sentimento
de fracasso, adoecem e entram em depressão.

“Quantos homens não perdem o desejo de viver em face da impossibilidade


de cumprir o destino que a sociedade lhes reserva? Quantos não se tornam
alcoólatras ao cabo de um longo período de buscas infrutíferas de
emprego? Quantos não se tornam sexualmente impotentes pela
impossibilidade de desempenhar sua função de macho, segundo reza a
cartilha das classes dominantes? Quantos não se tornam violentos,

38
espancando mulher e filhos, em virtude do desespero provocado pelo
desemprego?” (Saffioti, 1987)

Essas afetações decorrentes da frustração dos ideais de masculinidade são


discutidos em muitos círculos, coletivos, assim como nas redes sociais, porém
generalizando aos homens em geral. Mas sabemos como isso, devido a piora das
condições de sobrevivência, afetam sobremaneira as classes trabalhadoras. É
inclusive no seio da família trabalhadora onde se vê maior nível de violência
doméstica, desestruturação das famílias, já que a miserabilidade frustra de maneira
mais aguda a realização do ideal de masculinidade padrão. Mas ao mesmo tempo,
são os homens em melhores condições econômicas, sobretudo de classe média,
que estão discutindo a revisão dos padrões de masculinidade.

Outro elemento nocivo do ideal de masculinidade hegemônico, para o qual Saffioti


chama a atenção, diz respeito a associação que se faz dos valores de razão, força,
coragem, de modo que (..) “os raquíticos, os afetivos, os tímidos são solicitados
impositivamente a se comportarem de forma contrária às suas inclinações.” Ou seja,
os homens devem reprimir sentimentos, atitudes, e tudo mais que se aproxima do
considerado feminino, o que lhe afastaria do ser macho, segundo o ideal
hegemônico.

O homem, por isso, é considerado macho quanto mais seus sentimentos são
controlados, reprimidos, quanto mais são escondidos. Afinal, evidentemente eles
existem. E nisso reside a toxidade, como é chamado hoje o potencial adoecedor
dessa masculinidade. Ora, não pode ser saudável reprimir sentimentos, não
manifestar estar sensível diante de algum acontecimento, ou nas relações. A
manifestação de alguma insatisfação, no caso dessa masculinidade patriarcal, se dá
pela violência, pela agressão muitas vezes, mas não pelo diálogo, pela expressão
natural dos sentimentos, sob pena de, assim, ser associado a afetividade, ou a
qualquer outro elemento considerado feminino.

Não é nada difícil identificar a pouca disposição masculina para falar do que sente,
para manifestar desejos, afetando inclusive as relações sexuais, uma vez que,
mesmo alguma insatisfação, ou o desejo de experimentar alguma forma diferente na
relação ou mesmo indisposição em ter uma relação, fica escondida. Isso não pode,
principalmente a longo prazo, ser saudável para o homem e para as relações que
estabelece. Sobre isso, chama atenção o seguinte trecho na obra de Saffiot:

“Quantos homens tiveram que engolir lágrimas diante da tristeza, da


angustia, do luto, em nome desta norma de conduta! Pesquisas
demonstraram que as glândulas lacrimais de determinados homens chegam
a atrofia em virtude do desuso (Muldworf, Bernard, La femme a la recherche
de sa personne, La femme ala recherche d'ele meme, Paris-Genebra, La
Palatine, 1965). Como um televisor, que quase nunca é usado, estraga-se,
as glândulas lacrimais de homens que nunca choram deixam de produzir
lágrimas. Observa-se, pois, que o processo de castração do homem não é
apenas psicológico; é também orgânico.” (Saffioti, 1987)

39
Há algo de muito danoso, portanto, nas masculinidades idealizadas pelo patriarcado.
Se esse processo é capaz de provocar modificações orgânicas nos homens,
certamente há muitos efeitos desastrosos na dimensão emocional e psicológica, e
seus efeitos afetam os homens e as relações que estes estabelecem, assim como a
organização e luta coletiva.

Masculinidade, nossas lacunas e os desafios da nossa organização.

As avaliações aqui apontadas, partem de um olhar sobre os espaços nacionais e


estaduais da nossa organização, mas em especial do Núcleo João Leonardo da
Consulta Popular do município de Guanambi, do qual fazemos parte. Em virtude do
nosso pouco tempo de organização dentro da CP, talvez faltem mais elementos,
inclusive de apontar experiências que possam ter ocorrido em outros estados, ou até
nacionalmente, assim se já houver algum debate ou construção acerca da temática
aqui abordada, fica aqui nosso pedido de socialização afim de podermos avança
coletivamente. Posto isso adentremos ao debate.

Como sabemos o patriarcado é algo estruturante de nossa sociedade, com essa


afirmativa podemos concluir que as nossas relações sociais estão permeadas por
esse elemento. No entanto, assumir esse fato não implica em dizer que isso seja
algo natural, nem tão pouco constitui uma saída para a desresponsabilização dos
indivíduos. Pelo contrário, sendo eles (homens) sujeitos onde o patriarcado se
expressa com maior força, é deles também a tarefa de estudar, escrever sobre como
se dão esses processos, e se descontruir. Essa é uma reflexão importante e
devemos ser consequentes com ela, mas, apesar de os indivíduos serem
responsáveis por uma alteração dessas relações sociais, o rompimento com essa
sociedade e o modo como ela se organiza e organiza os sujeitos requer uma
revolução por parte da classe trabalhadora, que somente pode ser conduzida por um
instrumento de caráter partidário, que pense e formule um projeto de sociedade,
possibilitando a construção e efetivação de novos valores, como aponta nossa
companheira Laura Lyrio (Juanita), no texto “Mulheres do Projeto Popular por
uma cultura de democracia paritária da classe trabalhadora: reflexões a partir
de organização, formação e luta da juventude feminista popular do DF” que
saiu no caderno de debates de junho de 2018 (fazemos aqui a indicação de leitura).

“Destarte, é tarefa do partido construir a unidade da classe


trabalhadora e, no entanto, desigualdades, violências e
preconceitos (de classe, patriarcais e racistas) tem nos
fragmentado porque a desatenção de nossos princípios e
valores criam ambientes insuportáveis em que os espaços de
organização política que deveriam ser para a emancipação
humana se tornam, contraditoriamente, mais uma dimensão

40
de reificação da qual o povo passa longe posto já estar
saturado de ser tratado como coisa. ”29

Por ter tal compreensão, a Consulta Popular em sua IV Assembleia ocorrida no ano
de 2011 entre os dias 31 de janeiro e 04 de fevereiro, que homenageou um dos
nossos grandes lutadores, Carlos Marighella, apontou o Feminismo Popular
enquanto o seu sexto compromisso, de lá para cá foram muitas reflexões e
construções importantes, avançamos em muitas formulações, ainda que tenhamos
um longo caminho a percorrer.

No entanto, o debate sobre a masculinidade bem como a construção de espaços


para que os homens possam dialogar que tipo masculinidade estão exercendo não
tem sido debatido e construído dentro da nossa organização de forma objetiva. Nos
últimos períodos em espaços de Auto-organização das companheiras temos feito a
manutenção de limpeza e cuidado do espaço, algo importante tendo em vista que
historicamente essa tarefa é delegada às mulheres, mas esse método enfrenta
sérios limites, visto que os sujeitos que são opressores diretos acabavam não
discutindo entre si, suas relações e quais caminhos construir para a mudança de
mentalidade sobre o que é ser homem. Nossas discussões a respeito de nossas
posturas e como isso afeta as companheiras se restringiam/restringem a realização
de espaços mistos, que acabam não dando conta de debater a construção de um
novo tipo de masculinidade.

Nossa construção no Alto Sertão da Bahia não está a parte desse processo, aqui
tivemos grandes acúmulos sobre o feminismo e nossa realidade, no entanto muitas
foram as debilidades no sentido organizativo, em algumas ocasiões não
conseguimos dar as condições necessárias para as companheiras, sejam essas
condições materiais, ou psicológicas, soma-se a isso as dificuldades individuas que
permeiam as questões subjetivas que em algum grau foram aprofundadas pelas
práticas machistas de companheiros da organização.

Tratando-se do debate sobre masculinidade, ele é praticamente inexistente, nunca


tivemos um espaço nacional, e estadualmente tivemos o primeiro no final de 2019, a
realidade no nosso território também não destoa do cenário nacional, enquanto
Consulta Popular só realizamos um espaço com esse caráter, muito pouco
compreendendo o caminho que temos que trilhar na busca de formamos novos
homens. O fato é que temos muitas limitações em decorrência da ausência de
orientação nacional que pudesse nos munir de um método para discutir tal temática,
por nossa parte também se colou uma inércia em propor algo, essa é uma
autocrítica que fizemos, e que precisa ser preenchida ainda de ações mais
consequentes, e é nesse sentido que escrevemos esse texto afim de suscitar essa
discussão.
29
LYRIO, Laura. Mulheres do Projeto Popular por uma cultura de democracia paritária da
classe trabalhadora: reflexões a partir de organização, formação e luta da juventude feminista
popular do DF. Caderno e Debates, 2018, p.44.

41
Por vezes é comum a idealização de homens que fazem parte de organizações de
caráter popular- não tenham comportamentos machistas- sobretudo as que tem o
feminismo enquanto um pilar estratégico, como a nossa. No entanto, esses
indivíduos não estão alheios as relações sócias, pensar dessa forma é acreditar que
a organização é uma bolha, que não recebe e nem exerce influência no seu meio
social. Esse fato não autoriza, ninguém a reproduzir práticas machistas, com as
quais queremos romper, pelo contrário, esses indivíduos que estão nessas
organizações devem ter uma responsabilidade ainda maior e a eles devem ser
cobradas posturas condizentes com os preceitos defendidos pela organização, mais
do que isso devem ser responsabilizados pela reprodução de práticas machistas. As
decepções causadas por algumas posturas de companheiros as vezes geram
reflexões como “ os homens que não estão dentro das organizações estão mais
avançados” ou coisa do tipo, de antemão não há aqui uma defesa, desses
indivíduos, mas nossa compreensão deve partir de que dentro da organização é
mais fácil lidar com a reprodução de práticas machistas posto que o indivíduo está
subordinado politicamente a organização algo muito difícil para alguém não
organizado.

A necessidade de afirmação da masculinidade é algo presente em nosso meio, um


olhar cuidadoso sobre nossos espaços de reuniões e formações, podem nos
demonstrar isso, sejam essas práticas de forma conscientes ou as inconscientes
que se apresentam na forma de falar tendo uma comunicação agressiva (alteração
da voz e gesticulação demasiadamente excessiva em alguns momentos), no
excesso de competitividade, na pouca abertura para ouvir ou o simples, ato de
demonstrar nossos sentimentos, tais características estão ligadas.

“A descrição estreita e repressiva da masculinidade que a designa como


definida por violência, sexo, status e agressão; é o ideal cultural da
masculinidade, onde a força é tudo, enquanto as emoções são uma
fraqueza; sexo e brutalidade são padrões pelos quais os homens são
avaliados, enquanto traços supostamente ‘femininos’ – que podem variar de
vulnerabilidade emocional a simplesmente não serem hipersexuais – são os
meios pelos quais seu status como ‘homem’ pode ser removido.”30

Tal concepção de masculinidade, ainda que esteja no nosso ambiente psicológico,


existe, e a expressamos de maneira inconsciente muitas vezes. Mas uma pergunta
deve nos inquietar, individualmente e coletivamente, quais ações estamos ou
devemos tomar para que possamos construir um ambiente mais saudável para
nossas companheiras e inclusive para nós mesmos? Encarar isso é dar um salto de
qualidade no feminismo, que reivindicamos, responsabilizando igualmente os
homens a dar consequência ao que deliberamos em assembleia.

30
GELEDES. Disponível em: https://www.geledes.org.br/voce-sabe-o-que-e-masculinidade-toxica/.
Acesso em: 25 abr. 2020.

42
Outro fator importante que merece nossa atenção é que a procura pelo debate sobre
masculinidade vem crescendo, afim de garantir essas discussões inúmeros grupos
estão sendo criados, esse fato se revela enquanto um grande avanço, saber que
homens visam construir outras formas de se relacionar adotando uma masculinidade
mais saudável é interessante para a construção da nova sociedade que queremos,
no entanto ainda não temos incidência nem qualquer discussão a respeito do tema,
enquanto organização política é de suma importância a disputa desses espaços, se
essa leitura tiver consenso no conjunto da organização, devemos construir
nacionalmente um método que oriente nossos núcleos, que ajude na discussão que
aponte que debate queremos construir, afim de avançarmos no fortalecimento do
feminismo popular, atraindo outros sujeitos que visam avançar na construção de
uma nova masculinidade e romper com as estruturas que garantem a manutenção
do patriarcado.

43
________________________________________________________________________

O Espectro Neofascista
instalou-se no país!
Felipe Sena
Militante do Núcleo Dom José Rodrigues
Juazeiro / BA

44
Este texto tem por objetivo suscitar reflexões e mais debates acerca do que se
projeta para frente no governo Bolsonaro e quais serão as consequências políticas
da sua gestão. É importante destacar que todas os desdobramentos desta ofensiva,
nesse momento histórico que vivemos, nos trarão (para a CP e toda a esquerda
brasileira) enormes desafios.

I. A GUERRA HÍBRIDA E ASCENSÃO DO NEOFASCISTA

Antes de mais nada é importante frisar uma questão: Bolsonaro não é tolo e não faz
as coisas de maneira impensada. Existe uma lógica nas suas ações políticas e nas
narrativas por ele disseminadas. Por mais que pareçam não-racionais, estúpidas e
asquerosas. Para tanto, vou apontar aqui algumas características que ilustrarão a
capacidade política da retórica bolsonarista e sua influencia ideológica.

Antes de apontar os elementos do atual momento da cena política brasileira, vamos


retomar a crise econômica mundial 2008, que apontamos na cartilha “Para debater a
crise” da Assembleia Popular, se tratar de:

Na natureza da atual crise não é apenas do modo de


produção não é apenas do modo capitalista de organizar
a produção, mas ela está afetando os recursos naturais o
meio ambiente com alterações climáticas graves. Afeta as
condições de vida de bilhões de pessoas que hoje vivem
sobretudo nas grandes cidades e portanto tem um
componente social ainda maior. É uma crise política que
desmoralizou os organismos internacionais em vigor,
como ONU, OMC, G-8, G-20 etc. E é uma crise que,
segundo alguns analistas afetam os próprios paradigmas
fundantes do capitalismo, relacionados com a forma de
gerar falsas necessidades humanas, falsos valores de
convivência agora fundados no (egoísmo, individualismo
e consumismo desnecessário)

Como saída para a crise, ocorreu em toda a América Latina uma onda de iniciativas
contra-revolucionárias; é como se ocorre-se uma nova etapa da Operação Condor.
Não é a toa que os golpes parlamentares em Honduras (2009), no Paraguai (2012),
no Brasil (2016), são parte da nova forma de fazer guerra, a guerra Híbrida. Além
disso, soma-se o Lawfare contra Rafael Correa, Cristina Kishiner, entre outros e
outras dirigentes progressistas, numa evidente tentaiva de criminalização da
esquerda e fragilização da democracia.

Fazendo uma revisão historiográfica, identificamos que existe um ponto de


convergência entre a ascensão do Fascismo na Europa na década de 30 e 40 e o
seu ressurgimento nos dias atuais: as duas ondas conservadoras expressaram-
se, como aponta Poulantzas, como saídas para a crise política e econômica.
No caso brasileiro, antes mesmo de 2016, já se percebia uma movimentação da

45
burguesia e uma (re)organização das frações de classe burguesa.

Neste texto, por questão de tempo, não vou apresentar uma elaboração mais
sistematizada em relação a forma de estado adotada pelo Neofascismo e a sua
relação com a atual fase do imperialismo, a relação capitalista dos países de
centro/periferia com a nova revolução 4.0, o alinhamento do grande capital com a
pequena burguesia no Brasil, mas vale a pena reforçar que é fundamental uma
análise mais aprofundada destes elementos.

Parafraseando Marx, podemos dizer que o Fascismo na história primeiro


apresentou-se como tragédia, pela quantidade de prejuízos (humanitários, sociais,
econômicos, culturais, políticos) causados, e agora no século XXI, como farsa. E que
baseia-se em duas premissas: a) as saídas autoritárias sempre se colocam no
horizonte da burguesia como “estratégia de salvação” para não perder seu poder
econômico e político e b) que os resultados disso recaem diretamente sobre as
trabalhadoras.

De acordo com L. Konder, um regime Fascista não pode ser desencavado do


passado, mas precisa ser inventado. É nesse sentido que no livro Os engenheiro do
Caos, do italiano Giuliano Da Empoli, constatamos que essa segunda onda - agora
Neofascista -, tem características próprias e que usa novas armas para a ascensão
das suas ideias.

Nesse sentido destaco as três formas mais palpáveis de sua utilização nos dias de
hoje:

1º) Movimentos Sociais de Massa – apesar de não serem grupos fascistas,


movimentos sociais como o MBL, MBC, entre outros grupos, muitos deles
articulados pelos partidos de direita, e com ampla participação de jovens,
conseguem colocar em debate na sociedade pautas antidemocráticas, racistas,
misóginas, xenofóbicas. Até muito antes, não era tão comum ver estes grupos
posicionando-se publicamente, e pior, tendo adesão de parcelas da sociedade.

2°) a utilização da Pós Verdade e das Fake News como forma de desvirtuar os
conceitos, as pessoas e os fatos. Estamos vivendo uma disputa de narrativas. Cada
dia que passa, redes como Faceobook, Instagram e Twitter tornam-se um problema
e não uma saída para a disputa ideológica. Algorítimos estão criando “fossos” e nos
deixando cada dia mais isolados.

Trago para nossa reflexão algumas questões: Estamos utilizando de maneira


adequada estas redes? Elas estão sendo disputadas “de verdade”? Estamos
alcançando as classes trabalhadoras a partir da utilização delas? Elas estão
cumprindo o papel de politização do povo?

46
3°) o uso do Lawfare (Judicialização da Política), que usa as manobras jurídicas
como forma de criminalizar as correntes de pensamento e concepções políticas
diferentes. O melhor caso de Lawfare foi o ex presidente Lula, que foi criminalizado e
tirado do jogo político emsa 2018. é importante problematizarmos que esta tática
será recorrente na luta política. Qualquer agrupamento que sentir-se prejudicado
poderá recorrer a manobras jurídicas e “dar golpes”.

Essa questão é importante pois aponta os limites jurídicos/institucionais existentes


dentro da democracia burguesa e sua inevitável degeneração. Cabe a esquerda
uma reflexão profunda sobre até onde conseguiremos avançar em conquistas de
direitos, e até onde as eleições são a maneira ideal de alcançá-las, entendendo que
a direita, ao se ver ameaçada, se utilizará destas manobras para manipular o jogo
político.

Além disso ainda percebemos que existe um forte financiamento de Think


Tanks31, que são organismos ou agências de inteligência, que elaboram e formam
politicamente seus intelectuais orgânicos.

Em seguida apontaremos alguns aspectos que fazem parte da onda Neofascista e


que precisamos estar atentos, pois se não combatermos tais questões ficaremos
vulneráveis, que quando menos imaginarmos estaremos vivendo um estado
autoritário e policialesco, muito parecido com os livros 1984, de George Orwell e O
Conto de Aia, de Margaret Atwood.

1.1. A Ética e a demonização da política

Um elemento característico do fascismo e que se apresenta hoje no discurso


bolsonarista é a demonização da política. A narrativa de Bolsonaro é direcionada
para desqualificação da Democracia – representação política, exercício e controle de
poder, sistema partidário, institucionalidade –, pois seu objetivo é instituir um regime
político de característica autoritária. Não é a toa que todos os atos convocados por
seus apoiadores está repleto de pedidos de fim do Congresso, do STF, de
intervenção militar. Bolsonaro sabe que ao colocar em xeque a
credibilidade/legitimidade da Democracia, ele credita tal desconfiança também a
seus inimigos, que na sua argumentação, não passam de “oportunistas e bandidos”.

A sua retórica populista assemelha-se aos discursos de Mussolini, que dizia: “O


nosso programa é simples, queremos governar a Itália”. A mesma lógica usa
Bolsonaro, quando afirma: “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos!”. Todas as
narrativas pautadas pelo bolsonarismo seguem o mesmo modus operanti dos
fascistas da década de 30 e 40.

31
https://diplomatique.org.br/o-conservadorismo-moral-como-reinvencao-da-marca-mbl-2/

47
Uma outra argumentação que é possível constatar nos últimos acontecimentos e
que demonstram o avanço do conservadorismo e do neofascismo no Brasil é a
atmosfera construída pelos grupos de extrema-direita, onde a única possibilidade de
saída para construção de um estado ético e com possibilidade de progresso é com
efetivação de um novo projeto político, e tendo Bolsonaro como seu líder.

Claro que o jogo político não se organiza assim tão facilmente, mas Bolsonaro está
mantendo uma base de apoio (apesar das pesquisas apontaram como péssima),
mas o conteúdo do seu discurso é perigosíssimo.

1.2. A construção do Mito

Tanto Bolsonaro, como muitos outros são fruto de um fenômeno também conhecido
como Militarização da Política, que se utiliza dessa atmosfera de “incorruptível” e
“salvacionista” para agentes de segurança pública (polícia, forças armadas) adentrar
na vida político partidária. Aqui não cabe uma generalização, nem censura, até
mesmo porque todo cidadão brasileiro pode e tem o direito de se candidatar. O
propósito é apresentar uma constatação que hoje impregnou a política brasileira.

Além de políticos com perfil militar, existe também aqueles ditos “outsideres”, que
tem uma vida política profissional exemplar, muitas das vezes profissionais liberais,
empresários. São esses dois perfis que mais se destacam como os “seres
capazes de pôr fim as mazelas sociais”.

Muito antes de 2016, já estavam sendo sedimentados pela meios de comunicação


da burguesia, um ambiente hostil e de criminalização ao Partido dos Trabalhadores,
numa tentativa real de culpabilizá-lo pela corrupção. De fato essa moda pegou,
pois tudo tornou-se culpa do PT (e abrindo precedente justificável para o uso
de Lawfare), mas sobretudo favoreceu a ascensão de figuras políticas como
Bolsonaro. Mas lembrando que como ele, dezenas de candidatos/as foram eleitos
utilizando-se dessa retórica.

Não sabemos ao certo de onde surgiu essa ideia de que Bolsonaro é um Mito, mas
que ele soube aproveitar-se desse “desígnio divino” - dizendo ele que iria salvar o
Brasil da dita praga vermelha. Lembremos quantas vezes no seu discurso de posse
ele falou em “acabar com os vermelhos”.

Dentro da lógica neofascista, a busca de um herói é o mais importante, pois


acredita-se que somente ele seja capaz de combater os problemas do país. Tal
assertiva se verifica nas dezenas de vezes que Bolsonaro utiliza nos seus discursos,
que a culpa pela situação que vive o país são dos seus adversários e inimigos
políticos.

48
1.3. A violência como saída necessária

A cada dia que passa Bolsonaro tem endurecido seu discurso político, sabendo ele,
que o agravamento da polarização é necessária e que suas consequências – como
a violência física sofrida por jornalistas no último 3 de maio - podem ser manipuladas
e distorcidas pela mídia (e do gabinete do ódio criada por seus filhos).

Mussolini, ditador italiano, utilizava-se de uma máxima em seus discurso: “Toda


violência quando é instintiva e impulsiva, ela é justificável, não importando o
meio”. Parece que Bolsonaro também aposta nessa afirmação, pois com o passar
dos meses a sensação de agressividade e diferenças irreconciliáveis dentro da
sociedade está cada vez mais forte. Dando vazão para seus seguidores organizarem
acampamentos para treinar pessoas para acabar com socialistas e comunistas,
publicado pela site da Revista Fórum32.

Apesar de saber que não é possível a instauração de um projeto neofascista sem


apoio militar e que ele precisa ter instrumentos de dominação ideológica para
manipular a opinião pública, Bolsonaro utiliza da radicalização como maneira de
mobilizar novas adesões ao seu projeto político.

Muito provavelmente, com todas as flexibilizações na legislação acerca do


armamento, desde seu posse e porte, até a facilidade para compra pela redução de
taxas tarifarias, será mais fácil para Bolsonaro armar a população e realizar uma
guerra civil. O que ele precisa nesse momento é apenas de tempo.

2. O HORIZONTE BOLSONARISTA

Para alcançar seu objetivo, Bolsonaro continua se movimentando politicamente em


duas frentes: I) avançando na militarização da vida política, e para isso ele vem
radicalizado nos seus discursos, pois só assim ele conseguirá manter sua base
social e ganhar espaço pela coerção, e II) suprimir o parlamentarismo, desgastando
as instituições da república, na tentativa de usurpar as competência dos outros
poderes (legislativo, judiciário) e conferir-lhe todos os poderes necessários para seu
projeto político. E para isso ele conta com boas oportunidades.

1°) oportunidade: Aparelhamento das instituições. Se Bolsonaro não for impedido


de continuar governando o Brasil, que pelo que se parece já não será mais possível,
pelo acordo feito com o Centrão33, ele terá a possibilidade de indicar os dois
próximos ministros do STF, o que representará uma retaguarda jurídica fundamental
para seu projeto político. Tendo dois aliados dentro do STF, Bolsonaro conseguirá

32
https://revistaforum.com.br/noticias/acampamento-paramilitar-bolsonarista-bate-meta-em-vaquinha-
virtual/
33
https://www.brasil247.com/brasil/psdb-firma-posicao-contra-o-impeachment-e-a-favor-da-
continuidade-de-bolsonaro

49
impedir que muitos dos crimes que ele e seu grupo político venha cometer sejam
“protelados ou arquivados pela justiça”.

O poder conferido a ele como chefe de Estado lhe dá competências fundamentais


para aparelhar as instituições. O melhor exemplo disso, está sendo o caso das
mudanças que ele está promovendo dentro da Polícia Federal, com objetivo de ter
acesso a informações privilegiadas e de forma ilícita manipular as regras do jogo.

Se Bolsonaro continuar interferindo na autonomia das instituições, ele se aproximará


do seu objetivo, e que segundo alguns analistas colocam, que seu propósito no
aparelhamento é criar instrumentos de patrulhamento ideológico e político, tão
necessários para seu projeto ditatorial.

2°) Oportunidade: Agravamento da crise sanitária e socioeconômica. O


aprofundamento da crise causada pela chegada do coronavírus no Brasil, fortalecerá
os Poderes Paralelos. Esses poderes são constituídos majoritariamente pelas
igrejas e o crime organizado, que assegurarem uma “ajuda” para as pessoas
necessitadas (principalmente nas periferias das metrópoles), esvaziando a
responsabilidade do Estado em garantir as condições dignas de vida, e acentuando
a desorganização da classe trabalhadora, pois a população vai acreditar e legitimar
politicamente aquele que lhe dá a comida, a segurança, do que alguém que lhe
chame para reivindicar por seus direitos. E como já sabemos, pelos diversos fatos já
noticiados, Bolsonaro e família tem ligação umbilical com esses segmentos, e que
faz muitos anos lhes ajudam nas suas candidaturas. Não é a toa que o carreirismo
político virou praxe na família Bolsonaro.

Dentro do tecido social, isso se mostra como um grande desafio, pois com o passar
do tempo a população não terá o Estado como Ente Responsável por assumir suas
demandas, mas sim iniciativas duvidosas e comprometidas a fortalecer um projeto
de poder autoritário, que hoje é da família Bolsonaro, mas que amanhã pode ser de
qualquer outra pessoa.

É inegável o papel decisivo que os militares estão cumprindo dentro do governo


Bolsonaro. Deixo aqui algumas questões que me faço quando penso até onde as
forças armadas estão com Bolsonaro. Seriam eles transitórios no seu governo?
Estariam eles interessados em dar um golpe em Bolsonaro na hora certa e como
mourão como Presidente? Os militares estariam negociando nos bastidores com
PSDB, DEM? De certo até o momento, sabemos que os militares são culpados e
coniventes com todas as arbitrariedades ocorridas no Brasil, bem como são
cúmplices do imperialismo norte americano, e desinteressados em desenvolver um
projeto nacional autônomo e soberano.

Como reflexão para todo o partido, gostaria de deixar a seguinte questão: Quais
serão as consequências do avanço neofascista para a sociedade brasileira?

50
Bolsonaro provavelmente não seja capaz de dar um golpe neste momento (diga-se
em 2020), mas vem avançando decisivamente para isso. Ela cotidianamente tem
manobrado politicamente e garantido se manter no jogo. É necessário muita atenção
aos seus movimentos, pois eles determinarão a que pé o Golpe está. Ele e seus
aliados ainda tem muita munição para gastar! Não podemos deixar que essa farsa
se repita!

51
________________________________________________________________________

Sobre o Levante Popular


da Juventude
Durval Siqueira Sobral e Marcos Galvão34

34
Militantes da Consulta Popular e Levante Popular da Juventude em Sergipe

52
SUMÁRIO

1. Nascimento, nacionalização e relação com a Consulta Popular

2. A leitura correta e ação correta: crescimento da organização

3. “Pior do que não saber o que fazer, é não fazer o que se aprendeu”

4. Qual legado estamos renunciando?


4.1 A Construção de “Figuras Públicas”
4.2 O Levante e sua entrada no processo eleitoral
4.2 O método
4.4 Considerações

5. Por que é necessário construir uma organização de caráter partidário?


5.1 A relação movimentismo e o culto ao espontâneo
5.2 O movimentismo na conjuntura recente da América Latina (o
caso do Equador e do Chile)
5.3 O movimentismo e a conjuntura atual do Brasil

6. Considerações finais

53
“Pode-se dizer da política e dos partidos, com as variações correspondentes,
o mesmo que dos indivíduos. Inteligente não é aquele que não comete erros.
Não há, nem pode haver, homens que não cometam erros. Inteligente é
aquele que comete erros não muito graves e sabe corrigi-los acertada e
rapidamente.”35
Lenin

Saudações à militância da Consulta Popular.

Escrevemos esse texto por visualizarmos que o atual período congressual abre a
oportunidade de ajustarmos a rota que a Consulta vem adotando. Fizemos um
esforço de nessas linhas trazer a complexa relação que se tem entre as disputas de
destino da Consulta Popular e atual linha predominante no Levante Popular da
Juventude.

Apesar de ser um texto que especifica questões e reflexões quanto a esse


movimento, ele de maneira alguma se descola da conjunção de debates que dão
ênfase ao todo da realidade da Consulta. Assim, esperamos que estas linhas
demonstrem questões pertinentes para mantermos o forjar de muitas gerações de
militantes revolucionários.

Abraços em todos e todas. Contamos que estejam bem.

1.NASCIMENTO, NACIONALIZAÇÃO E RELAÇÃO COM A CONSULTA


POPULAR.

O Levante Popular da Juventude nasceu como uma experiência de trabalho com


jovens no Rio Grande do Sul. Aquela experiência contava com o envolvimento de
militantes da Consulta Popular. A partir de um dado momento essa experiência fora
socializada em informes da Consulta, tal socialização instigou em outros
companheiros que ali poderia ser desdobrada uma experiência de movimento social
que organizasse a juventude.

Em nossa IV Cartilha “Carlos Marighella”, foi aprovada uma resolução que fazia uma
breve análise da juventude e do seu papel, tal resolução constatava que os
elementos jovens ao serem organizados poderiam impulsionar a construção de uma
estratégia revolucionária e que o período de acesso à educação pública superior
e empregos constituiriam uma condição prévia de potencial organização. A Consulta
Popular, sabiamente, deliberou na mesma Assembleia que se deveria impulsionar a
organização do Levante Popular da Juventude, destacando os desafios a sua
nacionalização, obtenção de uma organicidade permanente e construção de uma
direção coletiva36.

35
Pág. 65. Esquerdismo, doença infantil do comunismo. Nota do autor no rodapé da página.
36
Pág. 96. Cartilha 21. Resoluções politicas da IV Assembleia Carlos Marighella.

54
A Consulta já contava com uma coluna de quadros experimentada na organização
reconhecida como “Por um Projeto Popular Para a Educação”. Essa organização
possuía em seu início o centro de atuação nas executivas de curso e trabalho em
centros acadêmicos, possuindo presença marcante no que seriam os cursos das
“Ciências Agrárias”, principalmente. Foram percalços desse trabalho a falta de uma
identidade nacional e plano de lutas que superassem a segmentação natural do
trabalho em cursos de universidade. A construção do Levante Popular da Juventude
sanou esses percalços iniciais e ainda lançou novos desafios, como organizar e se
articular com os jovens do campo e das periferias. Tendo como sua primeira grande
ação nacional a rodada de “escrachos a torturadores da ditadura militar”.

O que cabe inicialmente reconhecer é que o Levante que conhecemos atualmente


foi maturado dentro da Consulta Popular e impulsionado primordialmente pela
Consulta Popular. Portanto, a correspondência das leituras, propagadas e a ações
feitas tem em sua maioria uma relação com as deliberações e leituras que a
Consulta fazia.

Vale ressaltar que não apontamos para a tutela da Consulta Popular sobre o
Levante Popular da Juventude ou qualquer outro movimento que a Consulta se
propõe a impulsionar, não se trata de correia de transmissão. O que conclamamos
aqui é a responsabilidade dos militantes da Consulta em construírem esse
necessário instrumento político revolucionário, reafirmando a CP como o espaço
político pelo qual seus militantes se centralizam.

2.A LEITURA CORRETA E AÇÃO CORRETA: CRESCIMENTO DA


ORGANIZAÇÃO

41. A juventude é o alicerce da construção da nossa organização. Uma geração que


poderá, ao se reviver um ciclo de ascenso, ser decisiva na conjuntura, levando
adiante a revolução. A renovação do movimento revolucionário faz-se pela juventude,
livre de carga de responsabilidade pela construção do passado. Apenas o entusiasmo
e o espírito ofensivo dos elementos mais novos são capazes de assegurar os
primeiros sucessos na luta, e apenas esses sucessos podem fazer voltar ao caminho
da revolução os melhores elementos da velha geração.37

Conforme trouxe o companheiro e professor Armando Boito em seu livro “Reforma e


Crise política no Brasil. Os conflitos de classe nos governos do PT”, ocorreu durante
o período de governos encabeçados pelo Partido dos Trabalhadores a constituição
de uma ampla, heterogênea e contraditória frente Neodesenvolvimentista. Tal leitura
foi produzida principalmente em cima da correspondência da ação entre os atores e
representantes da burguesia interna brasileira e a política econômica implementada
pelos governos petistas. Com essa leitura vislumbramos que era uma aliança
instável, mas que a princípio trazia benefícios para o conjunto da classe

37
Pág. 96. Cartilha 21. Resoluções da IV Assembleia Carlos Marighella.

55
trabalhadora, como acesso a programas de distribuição de renda, valorização do
salário mínimo dentre outros.

A burguesia interna brasileira ganhou com a melhora de condições que protegiam e


privilegiavam a reprodução dos seus lucros. Na medida em que a crise econômica
internacional chegou com mais força no Brasil e ao se encontrar com a retomada de
uma ofensiva restauradora da hegemonia estadunidense na América Latina, foi
constituída uma campanha de cerco e aniquilamento das esquerdas no nosso
continente. Essa ofensiva agiu e foi exitosa em diversos países do continente latino-
americano, conforme demonstrou recentemente a companheira Paola Estrada38 em
sua dissertação “Neogolpismo na América Latina: uma análise comparativa do
Paraguai (2012) e do Brasil (2016)” e conforme reconhecemos em nossas
declarações políticas e, posteriormente na cartilha 23 denominada “Saída para o
Brasil”.

Utilizamos o conceito da campanha de “cerco e aniquilamento” para tirar conclusões


importantes como a necessidade urgente da unidade das forças populares, a
mudança da política econômica dos governos do PT e a construção de uma
bandeira política que colocasse a questão do poder em evidência abrindo a
possibilidade de rompimento do cerco.

Sabia-se que encarávamos uma situação complexa, em que o Governo Dilma não
apostava na mobilização popular e se apoiava em concessões cada vez mais
amplas para o conjunto burguesia. Acumulavam-se também, elementos negativos
anteriores a aquela conjuntura, como o déficit organizativo do movimento sindical-
popular. A constatação de que não ocorreu ao menos uma greve política contra o
Golpe de 201639 é simbólica para demonstrar que as forças populares não obtiveram
forças suficientes para barrar aquela ofensiva.

O Levante Popular da Juventude chegou naquela conjuntura já nacionalizado e,


devido à leitura justa construída na Consulta, foi possível perceber quais forças
estavam em choque e quais seriam suas consequências no curto, médio e longo
prazo. Fomos uma organização destacada na consolidação da Frente Brasil Popular
e na propagação da bandeira da constituinte.

Saber que aquela ofensiva pedia uma unidade maior das forças populares, saber
que o Governo Dilma corroía sua base de apoio popular na medida em que traía seu
programa eleitoral de 2014 e saber, por fim, que para colocar o Projeto Popular na
ordem do dia seria necessária uma bandeira política materializada na campanha da

38
Neogolpismo na América Latina: uma análise comparativa do Paraguai (2012) e do Brasil (2016).
Paola Estrada. Em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/84/84131/tde-17122019-153041/
39
Pág. 289. “Por que foi fraca a resistência ao golpe de 2016?”. Reforma e Crise Política no Brasil.
Armando Boito Jr. Editora UNICAMP e Editora UNESP.

56
Constituinte, nos deu um diagnóstico que permitiu agir em crescente destaque nas
linhas de frente daquelas batalhas.

Foi extremamente importante denunciarmos, na medida em que tínhamos o


parlamento mais conservador desde 1964, que aquela correlação de forças
institucional era produto de um processo eleitoral altamente controlado por nossos
inimigos. Foi igualmente importante entender que aderir a uma linha de defesa cega
ao governo nos colocava uma linha de defesa passiva que não acumulava forças e
nos conduziria ao precipício. Importante também, foram os esforços e a paciência
revolucionária de construir a Frente Brasil Popular com uma esquerda fragmentada e
que pouco se encontrava. Nosso 3° Acampamento Nacional foi uma demonstração
espetacular de força e os congressos da UNE nos trouxeram a posição destacada
de Vice-Presidência, expressões do nosso movimento de crescimento e da nossa
força que marcam de maneira feliz a nossa história.

Não crescemos por que éramos grandes articuladores, grandes animadores,


grandes agitadores, ou porque celebrávamos a mística revolucionária. Fomos em
alguma medida tudo isso, mas o nosso crescimento se deu em decorrência de
adotarmos a linha justa derivada de uma leitura correta com respaldo na realidade.
Destaque-se que as técnicas de agitação e animação podem ser apropriadas em
sua forma. Temos, como exemplo, a mudança que o Levante impactou na agitação
e animação dos movimentos de juventude (podendo ser visto e aferido
principalmente em atos unitários e encontros da UNE). Já a articulação só é possível
se ocorrer o encontro dos mais diversos interesses das organizações de esquerda
com a capacidade de quem pretende conduzir uma articulação, assim como a
mística só adquire sentido se a tática demonstra coerência com um horizonte
transformador. Nos últimos anos conquistamos corações e mentes, não somente por
termos conseguido nos projetar com ações de agitação; ou por alimentarmos a
mística histórica que herdamos; ou por cultivarmos valores e princípios que apontam
para a construção de novas mulheres e novos homens em contraposição aos
homens e mulheres que a sociedade capitalista, racista e patriarcal tenta imprimir.
Todos esses elementos são importantíssimos e indispensáveis para um movimento
que se propõe a tarefas tão grandiosas quanto as tarefas que nossa aguerrida
juventude se propõe a cumprir, mas eles fariam pouco sentido se não tivessem
baseados e indo de encontro com uma análise e ação adequadas, que
proporcionaram ao Levante Popular da Juventude respaldo entre as forças de
esquerda e referência política em uma parcela considerável da juventude brasileira
que esbanjava o desejo de expressar suas indignações e se colocava em luta.

Embora o óbvio seja autoexplicativo, por vezes ele precisa ser dito e relembrado:
com essas palavras não queremos deslegitimar o papel que o Campo Popular
cumpriu em dar suporte ao Levante nos estados, embora isso tenha se expressado
primordialmente em estados que a Consulta ainda encontra ou encontrava
problemas organizativos, o Campo Popular foi (e ainda é) importante para alavancar

57
o Levante de diversas maneiras, seja girando militantes para sua construção, seja
estruturalmente, costurando articulações ou legitimando nossa entrada em certos
espaços de decisão. Também reiteramos o devido crédito e gratidão aos militantes
que não foram/são da Consulta Popular, mas foram/são cruciais para os êxitos do
Levante, cumprindo um importante papel no desenvolvimento e materialização
dessa obra, acumulando preciosamente para o Projeto Popular. Devemos ser gratos
a todas e todos que desprenderam esforço, tempo, finanças, suor, mentes e
corações para construirmos o que somos hoje. O que trazemos é a centralidade que
a leitura, e consequentemente, a ação adequada tem no avanço político-
organizativo. Sem isso os outros elementos não seriam tão aproveitados.

A esquerda que simpatizou conosco (leia-se o petismo principalmente) sempre nos


taxou sobre os adjetivos positivos (mas superficiais) da agitação, animação e da
articulação. Intencionalmente ou não, essa leitura é a expressão da superfície da
nossa tática naquele período.

Infelizmente, esse amplo assédio do petismo foi forte o suficiente para criar uma
sensação de que aqueles adjetivos eram adequados e correspondentes às nossas
qualidades. Como o tempo nos mostrou, aquele período se modificaria numa grande
virada negativa e aprenderíamos que não é possível crescer a todo o momento,
sermos destacados a todo momento, principalmente quando erramos na análise dos
cenários e/ou na implementação da tática.

Nesse sentido, entendemos que ter a análise justa e a implementação da tática são
fatores decisivos para o crescimento de uma organização. Vale ressaltar que o
cumprimento desses requisitos não é uma garantia de crescimento e organização.
Muitos são os fatores que atravessam os processos políticos. Hoje, por exemplo, a
classe trabalhadora tem sido pressionada a correr atrás da sua sobrevivência do que
se insurgir ou aderir a propostas de organização social, o que tem se convertido em
uma verdadeira paralisação de sua ação política. Entretanto, não é possível crescer
com qualidade sem os elementos da análise justa e da ação correspondente.

3. “Pior do que não saber o que fazer, é não fazer o que se aprendeu”

É verdade que, diferentemente do que seria uma receita de bolo, uma revolução não
é apenas o agrupamento exato de ingredientes aquecidos no forno da história. O
acontecimento extraordinário de uma revolução não pode ser resumido a um
esquema. Porém, reconhecer isso não pode ser a autorização para que as novas
gerações de militantes joguem fora certos elementos que demonstraram ser
indispensáveis para verdadeiras revoluções triunfantes.

Assim como o desenvolvimento do conhecimento e das tecnologias, o


desenvolvimento do movimento revolucionário só reúne grandes condições de
avanço quando encara os desafios do seu próprio tempo, sem deixar de refletir e

58
ligar-se às experiências revolucionárias do passado. Aqui está uma característica da
prática militante marxista-leninista, extrair lições do momento presente e dos
momentos passados.

Sabiamente, em O Estado e a Revolução, Lenin demonstrou que “(...) Como


sempre, a doutrina de Marx é aqui um resumo das lições da experiência,
iluminadas por uma concepção filosófica profunda e um rico conhecimento da
história.”40 Prossegue mais a frente “Muito embora o movimento revolucionário
das massas falhasse ao seu objetivo, Marx viu nele uma experiência histórica
de enorme importância, um passo para frente na revolução proletária
universal, uma tentativa prática mais importante do que centenas de
programas e argumentos. Analisar essa experiência, colher nela lições de
tática e submeter à prova a sua teoria, eis a tarefa que Marx se impôs.”41

Com isso, nos cabe questionar qual o procedimento para identificar as lições que o
movimento revolucionário nos deixou?

Entendemos que o primeiro aspecto é perceber a lição enquanto uma afirmação da


ação do movimento revolucionário, confrontando uma realidade específica que
possui contexto e data; o segundo aspecto é entender o valor das lições passadas
no presente momento, observando se no presente momento uma lição determinada
pode ser utilizada para enfrentar um problema novo ou “aparentemente novo”.

Realizar com eficácia esse procedimento é algo extremamente complexo e


trabalhoso. São desvios comuns no curso desse procedimento o de:

A) Fechar os olhos para experiência acumulada e se superestimar,


generalizando a própria experiência. Por exemplo: o Partido dos Trabalhadores se
auto vangloriou durante muito tempo, afirmando ser uma experiência completamente
nova na esquerda brasileira, renegando a tradição marxista e parte do legado das
lutas anteriores a sua conformação. O resultado foi à constituição de um Partido que
negou o paradigma da luta de classes, afirmando que todas as classes poderiam
crescer juntas, imputando ao aparelho de Estado um papel neutro à luta de classes,
subestimando o papel da organização popular. Hoje, podemos entender que o PT foi
uma experiência nova quando se capitalizou politicamente na representação de fato
de amplos leques da classe trabalhadora, entretanto, foi uma experiência
equivocada quando negou a luta de classes, o caráter classista do Estado e o
horizonte revolucionário. Sendo hoje vítima dos seus próprios equívocos. Equívocos
reformistas.

40
Pág.49. Estado e Revolução. Lenin. Editora Expressão Popular.
41
Pág. 58. Idem.

59
B) Não ter em conta que as situações e a realidade confrontadas são
diferentes, subestimando a experiência própria e suas potencialidades,
copiando mecanicamente as experiências alheias. Por exemplo: O PCdoB foi
reconhecido pela migração mecânica a diferentes tradições marxistas como formula
de se repaginar e anunciar adequações táticas. Afirmava vinculação com o
Stalinismo, depois se vinculava ao Maoísmo e em um dado momento construiu mais
uma imigração se filiando ao Hoxhaismo. Toda essa migração refletia no plano
tático/estratégico também o enfrentamento a problemas específicos da realidade
brasileira. O que se demonstrou uma esterilização que posteriormente alimentou
profundas frustações quanto a possibilidade de uma revolução no Brasil.

Retomando os bons exemplos. Entendemos que os grandes ensinamentos que


podemos extrair da contribuição de Lenin para a Revolução Russa foram:

A) Não recuar no confronto que negava lições que Marx e Engels haviam
trazido. Por exemplo, no confronto com marxistas que queriam negar a necessidade
da ditadura do proletariado para defender e programar a nova ordem socialista,
assim como, a defesa do internacionalismo proletário que colocava os interesses do
proletariado acima dos interesses das burguesias nacionais expresso no episódio
emblemático de apoio dos partidos de esquerda/socialistas a aos seus países na 1°
guerra mundial, culminando na falência da segunda internacional.

B) Avançar em questões que Marx e Engels não haviam formulado – ou ao


menos não de maneira suficiente- ou que não eram aplicáveis a sua realidade e
ao momento em que se encontrava. São exemplos disso, as suas formulações
sobre o imperialismo e as possibilidades revolucionárias em países que não
pertenciam ao centro capitalista, assim como a questão da necessidade da aliança
operária e camponesa para o processo revolucionário da Rússia.

Nesse sentido, o seu legado atravessou gerações, trouxe poder e conhecimento


para outros processos revolucionários. A sua aplicação “criativa” e enriquecedora se
deu sobre esses dois principais marcos indicados acima. A disposição de
desenvolver a teoria e ação marxista, sem revisar e negar parte da tradição que já
havia sido testada na arena da luta de classes.

A jovem militância da Consulta deve com muito apreço observar a resolução


41° da Assembleia “Carlos Marighella”. A nossa disposição e a nossa não
vinculação com os traumas do passado trarão a possibilidade de,
conjuntamente, vinculados aos melhores elementos do passado (as lições
aplicáveis ao momento e os quadros anteriores a nossa geração que
continuam militando) retomar o caminho da revolução brasileira.

60
4.QUAL LEGADO ESTAMOS RENUNCIANDO?

Toda comparação deve guardar suas proporções. No fim do século 19 e início do


século 20, o socialismo era mais iminente na esquerda do que hoje. O
desenvolvimento do capitalismo na Europa permitiu que diversos movimentos
grevistas e de resistência à nova exploração se irrompessem. A bandeira do
socialismo não era sequer plenamente hegemonizada pelos marxistas, sendo
disputadas por outros agrupamentos, como os anarquistas e socialistas utópicos.
Ao mesmo tempo a teoria marxista encontrava cada vez mais espaço no debate do
movimento revolucionário europeu. Lenin viveu sobre aquela época, a transição do
modo de produção feudal para o capitalista na Rússia e a ascensão das ideias
revolucionárias. O marxismo não possuía o peso dos erros e acertos que os
processos revolucionários posteriores trariam. A geração contemporânea a Lenin se
desenvolveu sobre esses termos.

A nossa geração vive uma realidade muito diferente. A maioria de nós não
experimentou ver um mundo em que se polariza entre um campo socialista e outro
capitalista. A grande maioria da militância da Consulta nasceu no final da década de
80 para 90, e a maior parte da militância da Consulta que milita no Levante nasceu
da metade da década de 90 para cá.

Somos desvinculados de um peso duro e contraditório das experiências


revolucionárias e de transição socialista. Ao mesmo tempo, somos
desvinculados dos ensinamentos e tradições revolucionárias que marcaram os
destinos do século passado.

O fim da União Soviética abriu o caminho para a ofensiva neoliberal que destruiu
boa parte das bases daquele antigo mundo. A derrota das ideias revolucionárias
mudou o debate político da esquerda, por isso, afirmamos a desvinculação, que é
determinada pelos primeiros contatos organizativos e ideológicos que os militantes
nascidos nas referidas datas, adquiriram nos seus primeiros anos de militância, e
pelo debate predominante na esquerda que esses militantes encontraram, um
debate que já não tinha qualquer perspectiva pós-capitalista.

Neste período de profunda crise programática, estratégica e ideológica da esquerda


mundial, a Consulta Popular surge. No início com muitas diferenças e
particularidades da organização que conhecemos hoje. Entretanto, o sentido geral
da iniciativa do nascimento da Consulta Popular se mantém: a manutenção de uma
prática visando um horizonte de transformação socialista.

Hoje é possível afirmar que o principal legado da Consulta Popular foi não
deixar a bandeira do socialismo ser abaixada. Fazer isso hoje pode parecer
relativamente fácil, mas naquele período com certeza não foi. Ademais, não foi
somente esse o legado que a Consulta acumulou.

61
Fomos uma organização que em um movimento de espiral, no confronto de diversas
concepções internas, maturou-se para assumir um caráter especifico. O caráter
partidário. Mas, não qualquer caráter partidário, um caráter partidário do tipo
marxista-leninista. Isso permitiu que se abrisse um caminho de diálogo entre
gerações de lutadoras e lutadores, dialogo sobre os desafios do presente e as
reflexões do passado.

Permitiu que resgatássemos o leito revolucionário latino-americano, permitiu


que indicássemos (com antecedência) os limites do Petismo, permitiu que
reivindicássemos o pensamento de Marighella e permite hoje compreender a
difícil situação na qual nos encontramos.

Não nos cabe nesse trecho construir uma sessão de autoelogios. Sabemos todos,
que a Consulta é permeada de fraquezas e debilidades, está longe de ser uma
organização perfeita. Acumula fluidez organizativa, política e ideológica. Mas,
também não vale a pena relatar que a Consulta só possui lacunas e falhas.
Cabe reconhecer o lugar e o significado que essa organização ocupa na esquerda
brasileira, desde que passou a existir.

Assim, definitivamente, respondemos à pergunta que dá título ao presente


tópico... Qual legado estamos renunciando?

Conforme trouxemos no início desse texto, o Levante cresceu e conquistou corações


e mentes. Com isso veio também o reconhecimento e admiração. Junto ao
reconhecimento e a admiração vieram os assédios e as pressões. Após o 3°
Acampamento Nacional, já éramos reconhecidos por toda esquerda enquanto umas
das principais, senão a principal, organização da juventude, possuindo uma coluna
de militantes invejável, com muita criatividade e uma grande capacidade de
convocação e aglutinação. Esse último ponto obviamente chama muito a atenção
dos que não propõem a organização do nosso povo, mas se importam apenas com
volume de votos em processos eleitorais.

Foi naquele acampamento em que, sob um contexto de perseguição judicial e


crescente força nas pesquisas eleitorais, o ex-presidente Lula se fez presente. Ali foi
uma das nossas maiores demonstrações de força para a cúpula petista. Não se
aponta aqui que o convite tenha sido errado, assim como não foi errado o apoio às
eleições de 2018 e nem a campanha pela libertação de Lula.

A Consulta Popular e o Levante se posicionaram acertadamente nessas três


situações.

Entretanto, os militantes da Consulta que constroem as instâncias de direção


do Levante, cometeram equívocos na efetivação dessas posições. O maior foi

62
ver nossas direções cultivarem de forma acrítica o apoio a Lula e cultivar de
maneira acrítica o legado dos governos do PT na nossa militância. Ao observar
as posições públicas do Levante e das principais direções do movimento,
vemos cada vez mais um culto equivocado a esse líder e ao legado Petista.
Referências que mistificam suas capacidades, suas ações e a sua história,
referências que tecem elogios e saudades “daquele tempo que a gente era feliz”.
Omitindo cada vez mais o lado “B” da história de Lula e do Partido dos
Trabalhadores. Embora Lula tenha cumprido um papel muito importante na história
da luta das classes populares do Brasil, não podemos esquecer as ambiguidades de
suas posições, a defesa passiva na ofensiva de 2016, a cooptação de direções da
esquerda... Seriam apenas algumas das críticas possíveis que poderíamos trazer
reiteradamente, com o intuito de não baixarmos a nossa guarda e preservar nossa
militância da força do desvio reformista. Apesar disso, existe uma crítica a ser
feita que é primordial para entender o papel de Lula e do Petismo na esquerda
brasileira.

O reformismo, é essencialmente o sepultamento do horizonte e da prática


revolucionária. Esse desvio cumpre o papel de induzir a esquerda de que devemos
atuar somente dentro de certos limites históricos, como a democracia burguesa e
sua institucionalidade, visando no máximo “ajudar aqueles que mais precisam”.
Vincula-se a esse campo todo pensamento e prática que reduz as suas metas a
melhoramentos circunstanciais, não preparam as suas organizações para o
processo de tomada de poder, pois sequer visam esse processo. Este desvio
provém da grande pressão ideológica que a burguesia emana encima das
vanguardas da esquerda, para que assimilem a tese de que não existe
transformação pós-capitalista.

A Consulta, e por sua vez o Levante, tiveram durante o período de ascensão da luta
de massas (2011-2016) a habilidade de ter relações com o reformismo e com o
esquerdismo, sem incorrer no erro de guinar para algum desses lados, ou seja, não
nos isolávamos diante desses dois predominantes campos da esquerda, mas
também não nos integrávamos a eles completamente. Apoiar o que poderia ser uma
política aparentemente mais esquerdista não poderia (e não deve) nos induzir
adesão a essa tradição. Da mesma forma deveria ser com o reformismo.

Assim, não negamos nem questionamos a necessidade da esquerda ter


diálogo interno, unidade de ação e alianças. O que enfrentamos aqui é uma
crítica a outro tipo de movimentação. A movimentação de na convivência e
construção conjunta, a Consulta Popular se descaracterizar e se subordinar a
outra força/concepção de esquerda, esvaziando o sentido da Consulta
Popular.

Assim, entendemos que a referência que os integrantes da Secretaria Nacional do


Levante induzem a Lula, traz a reação em escala de grande parte da militância do

63
movimento. Bastaria observar as nossas crescentes referências -falas, discursos,
postagens, banners de rede social- completamente positivas as ações petistas, do
passado e do presente. Entendemos que essas referências não são produtos de
uma mera “falta de habilidade” ao se lidar com um aliado importante que
hegemonizou o último ciclo da esquerda (ciclo este atravessado de equívocos).
Entendemos que o que se cultiva hoje pelo núcleo dirigente do Levante é um
tipo de adesão às práticas e tradições petistas.

Por fim, entendemos que existe níveis e tipos de adesão. Uma adesão “lateral”, que
não é explicita (no sentido da sua proclamação), mas que ocorre. E entendemos que
também existe uma adesão “frontal” que é totalmente explicita bastando observar as
últimas ações dos dirigentes da CP no Levante. Esse processo de adesão é,
inevitavelmente, a renúncia ao que acumulamos de melhor (!) e que nos leva
inevitavelmente a nos tornarmos algo que sabemos como é, como vive e como se
mantém. Bastando observar a prática e a forma de existir da Juventude do PT e da
UJS-PCdoB.

Agrupamos os reflexos e expressões dessa relação nestes subtópicos:

4.1 A construção de “Figuras Públicas”

Em meados de 2019, a Secretaria Nacional do Levante colocou em prática o


processo conhecido como “construção de figuras públicas”. Esse
encaminhamento chegou decidido, sem margens de questionamento e debate, sem
nenhuma reflexão ou sistematização. Não que concordemos com essa proposta
(conforme firmaremos abaixo), mas descartar o procedimento mínimo para se tomar
decisões foi (é) algo surpreendente em nosso meio. Também não se há registro que
esses debates tenham sido feitos ou aprovados na Executiva Nacional ou na
Coordenação Nacional do movimento.

A Secretaria Nacional escolheu três dirigentes do movimento para projetar


“para fora” da organização, de maneira programada, com a perspectiva de que
essa projeção traria benefícios para a organização, pois, seria importante ter
pessoas que fossem impulsionadas pela organização, para acumularem
referência perante a esquerda e perante a juventude brasileira.

Vale alertar que este subtópico não se direciona às pessoas que foram designadas
para essa projeção. Não se trata, por exemplo, de não reconhecermos a
contribuição, o valor e a capacidade política que as pessoas escolhidas possuem,
pois de fato possuem. Mas, se trata de combater um processo que inverte a
construção da referência na organização e que pode inclusive vitimar (para
além da nossa jovem organização) as próprias pessoas no processo de
projeção.

64
Opinamos.

Quando tratamos da nossa expressão “para fora” e fazemos isso tirando a referência
política da organização da centralidade da propaganda para orbitar esse centro em
torno de indivíduos, acabamos por cometer alguns equívocos, a título de exemplo: 1-
Diminuir o peso político da saída organizativa. Sempre nos destacamos por
apontar saídas coletivas que estimulam a organização popular, não podemos deixar
de resgatar isso ou suplantar esse eixo importante da nossa política para apontar
que a saída se dá seguindo pessoa A ou B; 2- Reduzir a qualidade das avaliações
dos processos. Quando criamos uma casta de indivíduos e colocamos os mesmos
em um patamar que está além da militância, acabamos também por lhes colocar em
uma posição aquém da militância. Rebaixando a moral geral e obstruindo a
honestidade nas avaliações; 3- Rebaixar a lógica da educação popular pela
educação nos modos individuais do mundo capitalista. Conseguimos ter hoje
um bom quadro de militantes no Levante, isso também se deu ao nosso método de
direção, aprendendo e ensinando mutuamente. “Ninguém ignora tudo. Ninguém
sabe tudo. Todos nós sabemos alguma coisa. Todos nós ignoramos alguma coisa.
Por isso aprendemos sempre.”. Portanto, para aprendermos “sempre” a educação
política deve pressupor o confronto de opiniões, prezando seguir uma proposição em
função no seu conteúdo e não de quem ele emana; 4- Subestimar nossa militância
e sua capacidade política. Quando fazemos isso o sinal mais evidente é o
esvaziamento político de debates e instâncias deliberativas, limitando a contribuição
e criatividade do nosso corpo militante.

Além dessa preocupação com o método e a questão organizativa. Há uma


preocupação que achamos necessário destacar: o rebaixamento da
propaganda. Infelizmente no último período tem sido comum constatar nas redes
sociais do Levante e repasses internos mensagens que giram em torno dessas
figuras, algumas vezes inclusive, fazendo parecer que certas orientações políticas
são originárias das destacas figuras públicas e não de instâncias coletivas de
deliberação. A título de exemplo: tornou-se rotina recebermos áudios ou
mensagens que pessoalizam as decisões e apontamentos (isso quando são
realmente deliberadas), o mais preocupante é que a orientação além de vir
personalizada nessas figuras, elas são orientadas para ampla divulgação à
toda militância. Não acreditamos que podemos extrair muitos frutos positivos desse
processo até agora.

Embora esses elementos exemplificados acima não pareçam ter esse intuito, por
vezes nos parece que suplantam e tomam uma dimensão de maior destaque que as
orientações e circulares internas deliberativas das legítimas instâncias, esse
alinhamento da propaganda e vinculação direta às figuras públicas tira o cerne e
centralidade política da propaganda e de nossas ações. E, quando somado à falta
de debate amplo, justo e aberto, já apontadas nesse texto, além de gerar
incompreensões no corpo militante do movimento, alimenta desvios que

65
desconstroem a virtude do exemplo pedagógico, tais como o dirigismo,
personalismo e o autoritarismo. Não precisamos ir longe para sabermos onde
esse caminho pode nos levar.
Entendemos ser um equívoco grave trazer esse “encaminhamento” sem o debate
aberto em outras instâncias que não a Secretaria Operativa Nacional do movimento.
Assim, como é grave e equivocado não trazer esse debate para avaliações
dentro do partido. Entendemos também, enquanto mais um equívoco
encampar esse encaminhamento através de uma frágil fundamentação política
e teórica da proposta, onde pouco foi demonstrado e argumentado sobre bons
exemplos desse tipo de projeção nas organizações revolucionárias. Também é
relevante lembrar que o Levante é uma organização de jovens, uma experiência
nova, que não está longe de ter fragilidades, e que tal encaminhamento pode sim,
conduzir a um processo de fragilização profunda do movimento.

Explicamos. Diferentemente do que pode aparentar... As “grandes direções


revolucionárias” ou “grandes figuras públicas revolucionárias”, foram
primordialmente constituídas e reconhecidas em virtude dos seus acertos e
formulações. E não por que suas organizações decidiram as impulsionar
enquanto grandes direções.

Existiram na história da esquerda, processos de impulsionamento intencionais tão


distorcidos quanto esse que a Secretaria Nacional tenta impor ao Levante. Esses
processos impulsionaram inevitavelmente um grave desvio que ficou conhecido
como “culto à personalidade”.

Como demonstra Álvaro Cunhal42 “O culto à personalidade é um fenômeno negativo


que comporta inevitavelmente pesadas consequências (...) os elogios públicos e o
exagero de méritos do dirigente objeto do culto são aspectos superficiais. As
questões de fundo são extraordinariamente mais graves. São as incompreensões e
a supervalorização do papel do individuo. É a atribuição a uma personalidade
não apenas aquilo que lhe é devido pelos seus méritos, mas mais do que se
deve aos méritos de muitos outros militantes.” (grifo nosso)

O reconhecido dirigente português alerta que a instauração de um ambiente de culto


a personalidade afoga a democracia interna nos seus mais variados aspectos,
como o trabalho coletivo, a independência de juízo, a independência de opinião e a
prestação de contas.

Completa o raciocínio afirmando que “é o caminho quase inevitável para a


intolerância, o dirigismo, a utilização de métodos administrativos e sanções em
relação aos que discordem do dirigente objeto de culto”43.

42
Pág. 119-121. O partido com paredes de vidro. Álvaro Cunhal. Editora Expressão Popular.
43
Pág.120. Idem.

66
A verdadeira referência de um militante ou de uma instância de direção provêm
dos acertos das suas decisões, do trabalho coletivo, da busca por opiniões e
contribuições. São reflexos de um ambiente em que o culto à personalidade se
instaurou: os balanços defeituosos das ações, apresentando os êxitos,
ocultando deficiências e erros; e a insistência de valorizar diversas vezes os
méritos de um militante ou de um organismo de direção.

Entendemos que o Levante precisa renegar tal direcionamento, entendemos que


este direcionamento contribui para instaurar um ambiente de culto à personalidade e
entendemos que esse direcionamento tem relação com a nossa adesão, cada
vez maior, as práticas e lógica de atuação do reformismo Petista.

4.2. O Levante e a sua entrada no processo eleitoral

Recentemente foi proposta a entrada do Levante no próximo processo eleitoral


relativo à disputa municipal da cidade de São Paulo. A companheira Jessy
Dayane seria indicada para disputa de um mandato de vereadora na capital Paulista.
Antes dessa proposta chegar à Coordenação Nacional do Levante, ela fora
apresentada para a Direção Estadual da Consulta de São Paulo e para a Direção
Estadual do Levante de São Paulo. Ambas as instâncias e organizações
rejeitaram a proposta de candidatura da Secretaria Nacional do Movimento.

Entretanto, a Secretaria Nacional incluiu essa “proposta” na pauta de debates da


reunião da Coordenação Nacional realizada entre os dias 13/04 e 15/03. O que no
nosso ver já seria um equívoco, pois, atravessaram o poder de decisão da Consulta
e do Levante de São Paulo sobre as suas próprias realidades.

Essa operação promoveu uma série de equívocos. O grupo de dirigentes da


Secretaria Nacional do Levante trouxe o debate para a Coordenação Nacional
do movimento sem levar a proposta (e o informe da prévia rejeição) para
debate na Direção Nacional da Consulta Popular. Uma conduta que, no nosso
entender, demonstra explicitamente o desvio movimentista que sabota a construção
de um instrumento político.

Sigamos.

Como se não pudesse piorar, a “proposta” foi apresentada enquanto uma proposta
fechada, direcionada, ou seja, basicamente um informe, visto que a Secretária
Nacional do Levante tem sido cada vez mais inexorável e intolerante com qualquer
pontuação que divirja do que “propõem”. Nesse informe, não foi sequer
mencionado, por exemplo, a rejeição a candidatura da parte da Coordenação
Estadual do Levante-SP e da parte da Direção Estadual da Consulta-SP.

67
Alguns Dirigentes ali presentes divergiram e pontuaram que a decisão de lançar a
candidatura própria do Levante poderia afetar a coesão interna do movimento, além
de trazer outros problemas, como a possibilidade de fragilização do trabalho de
base, o pouco tempo para maturação da proposta e as distintas relações, nos
estados, entre Levante, PT e suas diversas correntes. A Secretaria Nacional do
Levante se mostrou inflexível, sendo a pauta postergada para o último dia da reunião
devido ao impasse. Enquanto isso “bilaterais” e conversas de canto foram operadas
para tentar passar a proposta a todo custo. Uma subestimação e desrespeito ao
debate coletivo. Isso não quer dizer que não possamos conversar sobre os
temas nos corredores ou consultar uns aos outros principalmente quando há
dúvidas ou incompreensões, porém, definitivamente não pode acontecer
através do direcionamento da Secretaria Nacional do Levante para esvaziar o
debate coletivo, transparente e público.

O conflito se instaurou e com ele o impasse.

Diante da ausência de consenso, a saída apresentada pela Secretaria Nacional foi


de realizar duas movimentações: (1) Delegar à Executiva Nacional do movimento a
decisão sobre ter ou não uma candidatura própria do Levante em São Paulo e (2)
Consultar as organizações do Campo Político sobre a candidatura. O que
demonstra que essa candidatura precisaria passar a qualquer custo.

O que é incrível desse conjunto de fatos é como a Secretaria Nacional do


Movimento foi capaz de desrespeitar os processos de decisão da Consulta
Popular e o método de construção do Levante quando atravessou o poder de
decisão da Direção Estadual do movimento e omitiu a posição estadual para a
Coordenação Nacional. Tudo isso para... Aprovar uma candidatura.

4.3. O método

Primeiramente, esse parágrafo certamente é um dos mais delicados que nos


propomos a adentrar. Porém, se há algo que cultivamos nas organizações que
construímos é o papel de mão dupla que tanto os indivíduos têm em resolver
problemas coletivos como o coletivo tem em relação aos indivíduos. Vale ressaltar
que quando visualizamos um problema, compreendemos os erros e não nos
dispomos a saná-los, nos tornamos parte do problema.

Em segundo lugar, achamos mais didático responder e trazer os elementos


dessa problemática em questionamentos, tais como: Por que abrir essa
questão específica nesse Caderno de Debates? Os espaços de direção do
Levante não seriam o local apropriado?

Seria, mas não é possível.

68
Por que não é possível?

Em primeiro lugar, porque o elemento central que observamos é que há um limite da


capacidade do movimento resolver algumas questões antes da própria militância da
Consulta Popular se colocar de forma orgânica e sistemática em prol de se
posicionar e enfrentar essas questões: o movimentismo e o reformismo
predominantes hoje na CP. Um movimento é movimentista por sua natureza e não
há nenhum problema nisso, o movimentismo é um problema do Partido. O Partido só
“é partido”, quando estabelece uma linha política para uma situação determinada e
trabalha para convencer e dirigir as organizações que ele atua. Quando falamos que
hoje predomina na Consulta Popular uma concepção movimentista estamos
querendo dizer que o poder de decidir e/ou o trabalho de convencer e dirigir estão
rebaixados aos interesses econômico-imediatos das organizações que o partido
deveria trabalhar para conduzir. Ou seja, os militantes da Consulta veem o seu
centro de direção principal ser deslocado para fora do partido.

Não existe qualquer problema, em que no seio de um sindicato ou movimento, o


partido não alcance a suas metas. O grande problema está, em os dirigentes e
militantes da Consulta Popular negarem os interesses de direcionar e convencer as
organizações que atuam. Aderindo a qualquer dinâmica que a própria organização
sindical ou social lhe impuser, assim sepultando a existência de uma linha politica. E
esvaziando o instrumento.

Em segundo lugar, apesar da tentativa equivocada por parte da Secretaria


Nacional do Levante de tentar deslegitimar aqueles que tenham mínimas
ponderações dentro das instâncias do Levante, afirmando que estes que
discordam ou divergem dentro da Consulta não respeitam ou estão sendo
imprudentes com o Levante, quando não estão 100% concordantes com a
“linha do Campo”. Não temos como ver como algo verdadeiro e consistente o
argumento de que aqueles que divergem são imprudentes com o Levante, afinal,
imprudente, é colocar para debaixo do tapete o fato de estarmos em um período
congressual onde há divergências e fingir que esse debate é inexistente,
principalmente quando boa parte das direções do Levante são da CP, não se trata
somente de não priorizarmos o debate, se trata também de utilizar de forma
oportuna a estrutura do Levante para passar por cima do processo geral da VI
Assembleia da Consulta Popular. Isso não pode ser aceito!

Questionamos aos militantes da Direção Nacional da Consulta que também


constroem a Secretaria Nacional do Levante: Por que vemos hoje uma
discrepante desigualdade no empenho da construção de propostas de massas
para o Levante, nos dividindo, dispersando e saturando nossos militantes em
diversas tarefas, mas não vemos um empenho tão vívido na construção do
processo assemblear? Definimos calendários e planejamos metas dentro do
Levante, por que não fazemos o mesmo e aproveitamos esse momento para

69
fortalecer as leituras dos cadernos de debate, os seminários e outros instrumentos
de envolvimento no período assemblear? Ao contrário, é latente na militância da
Consulta que também é do Levante o desconhecimento e falta de
estímulo/direcionamento por parte das direções nacionais o envolvimento no debate.
A quem serve a falta do conhecimento das divergências teóricas e políticas
que estão sendo apontadas nos debates? É necessário que o corpo militante da
Consulta se inteire sobre isso. Se tem acontecido deliberadamente ou se são outras
as prioridades que estão sendo postas em detrimento da vida da Consulta e da
nossa VI Assembleia.

Frisamos que não falamos isso por achar que os militantes que fazem parte das 2
secretarias não estejam com problemas, com sobrecargas também. O que tratamos
aqui é: Estaria esse grupo de militantes realmente convencido da centralidade
do nosso processo congressual e da construção da Consulta Popular?

Queremos também debater o que tem acontecido no Levante, pois é fruto direto dos
acontecimentos da Consulta. Decidimos isso não por querermos apontar dedos,
muito menos porque sejamos os bastiões do método, práticas e valores. Mas, sim
porque o que está sendo pleiteado aqui é a mínima condição de termos um
debate justo, onde todos possam falar, ser ouvidos e questionados, com
posições políticas, argumentos lógicos, deslocando de forma incisiva e
objetiva qualquer pessoalidade que esse debate possa transparecer, seja
propositalmente ou involuntariamente.

Não podemos deixar de trazer experiências que demonstram o método posto em


prática pela Secretária Nacional do Levante. Somos militantes da Consulta em
Sergipe e diversas pessoas tem se posicionado nos Cadernos de Debate desde seu
início. A partir daí, estranhas movimentações foram acontecendo na relação de
militantes da direção nacional do movimento com o estado de Sergipe. Reiteramos
aqui que não queremos nos colocar em posição vítima, mas sim exemplificar, para
título de melhor visualização do conjunto da Consulta sobre o que tem acontecido no
Levante.

Exemplificamos: Desde que se iniciou o período congressual (através da publicação


dos primeiros cadernos de textos em 2018) e militantes do estado se posicionaram,
iniciou-se um grande processo sistemático de fofocas, falácias e tentativas de nos
deslegitimar enquanto militantes – chegando ao extremo de tentarem desconstruir a
referência que o nosso corpo de militantes tem nos membros da Direção Estadual do
movimento, de forma pública e constrangedora, colocando em risco, inclusive,
processos de trabalho de base que estavam sendo construídos.

Sendo extremamente difícil contornar a confusão semeada. Não é fácil sair de uma
situação quando uma direção nacional interroga de forma irresponsável e
deslegitima uma direção estadual para os novos militantes com perguntas

70
capciosas, tais quais: “É esse tipo de direção que dirige vocês?” ou “Vocês não tem
vergonha de ter essa pessoa como dirigente?”, transplantando de maneira distorcida
as divergências presentes na Consulta - Começou a ser comum ser relatado por
militantes que ouviram da Secretaria Nacional – falamos isso não para taxar
esses militantes, mas para que possamos colocar os pingos nos i’s e que
possamos delimitar bem os epicentros irradiadores do problema do método
que trazemos-, que Sergipe estava “revoltado” e sofrendo um desvio chamado
“derrotista” ou “pessimista”, isso por “apenas” reconhecermos as
consequências da resolução firmada na V Assembleia de que sofremos uma
Derrota Estratégica; que nossos militantes eram indisciplinados, assim como
também começamos a receber “orientações informais” em tom apelativo de
que caso não seguíssemos as saídas de massificação (a todo custo e de
qualquer forma) apontadas pela Secretaria Nacional do Levante, morreríamos
enquanto organização em nosso estado.

Entretanto, aqui estamos, cumprindo a partir de nossa realidade as tarefas propostas


e deliberadas nacionalmente, respeitando de forma coerente o princípio da Unidade
de Ação, mesmo com todo demérito apregoado a nós. Seguimos vivos. Vale lembrar
que a Unidade de Ação e o Centralismo Democrático não podem ser utilizados como
ferramentas de eliminação de divergência e opinião, muito menos como mecanismo
de censura.

A situação que vivenciamos na relação dos nossos militantes, assim como nos
espaços nacionais (mesmo os que não fazem parte da Consulta, mas constroem
o Levante) tem sido de constrangimento e asfixia, compreendemos isso como fruto
do processo de esvaziamento do debate político dentro da Consulta e consideramos
que essas questões poderiam ser evitadas se nossos companheiros e companheiras
tivessem compromisso com a construção da Consulta e seus percalços.

Não podemos deixar de rememorar o fato emblemático relatado pelo companheiro


Aton Fon no texto “A primeira vez como farsa, a segunda também”, do 5 caderno de
debates, em que a Secretaria Nacional da Consulta Popular tentou aprovar uma nota
de repúdio -que foi rejeitada- contra a opinião dos companheiros de Ricardo Gebrim
e Aton Fon no texto “Nossa encruzilhada” em que questionavam a não
correspondência entre o que era descrito nas circulares e o que realmente era
debatido e aprovado nas reuniões da Direção Nacional da Consulta. Um exemplo
cristalino da utilização da estrutura da Secretaria Nacional para cassar a liberdade
de crítica, na tentativa de fazer parecer que uma posição específica e discordante de
alguns militantes fosse passada para o todo do Partido como uma posição coletiva
da Direção Nacional.

71
4.4 Considerações

Com esses parágrafos procuramos trazer ao conhecimento do todo da Consulta


Popular a descrição de alguns fatos e as nossas avaliações sobre eles. Fizemos o
esforço de dar ênfase à situação objetiva e a exemplos concretos sobre as
expressões e reflexos do esvaziamento da Consulta enquanto um instrumento
político e sua relação com a atual linha de ação do Levante Popular da Juventude.
Uma relação difícil de abordar e desvencilhar, que como anunciamos, deveria ter
como ponto referencial a história de organização, nacionalização do Levante assim
como um debate que foca nos dirigentes do Levante que também são da Consulta
Popular.

5. POR QUE É NECESSÁRIO CONSTRUIR UMA ORGANIZAÇÃO DE CARÁTER


PARTIDÁRIO?

“A atividade prática dos social-democratas se propõe, como se sabe,


dirigir a luta de classe do proletariado e organizar essa luta em suas
duas manifestações: socialista (luta contra a classe dos capitalistas,
luta que visa a destruir o regime de classes do capitalistas, luta que
visa a destruir o regime de classes e organizar a sociedade socialista)
e democrática (luta contra o absolutismo, que visa a conquistar para a
Rússia a liberdade política e democratizar o regime político e social
do país).
(...) O trabalho socialista consiste em fazer a propaganda das
doutrinas do socialismo científico e difundir entre os operários.
(...) Em ligação indissolúvel com a propaganda está a agitação entre
os operários (...) consiste em participarem os sociais-democratas de
todas as manifestações espontâneas da luta das classes operárias,
em todos os conflitos dos operários com os capitalistas motivados
jornada de trabalho, pelo salário, pelas condições de trabalho, etc.”44

A revolução russa foi precisamente o evento mais importante do século passado.


Quase nenhum outro processo revolucionário ou processo de libertação nacional se
sucedeu sem qualquer influência ou reivindicação do leito dos feitos da primeira
grande revolução triunfante. De 1917 em diante, foi aberto o maior ciclo
revolucionário dos trabalhadores. Inclusive processos pós-dissolução da URSS
guardaram inspiração marxista-leninista, como a libertação de Timor-Leste e da
Eritreia.

A grande questão que se coloca (dentre outras) é a de que a reversão desse


processo de transição pôs em xeque várias afirmações e acúmulos que julgamos
não estarem superados. Nesse sentido, um dos principais questionamentos que
podemos observar foi o movimento de relegar o papel de um partido marxista-
leninista.

44
Pág.189. As tarefas dos social-democratas russos. V.l.Lenin. Obras escolhidas: volume 1°. Editoria
Vitória.

72
Muitos são os adjetivos negativos que se emplacaram sobre o conceito de partido
leninista. Dentre eles, o de que o mundo mudou o suficiente para imergirem outros
setores e sujeitos que não precisam se organizar em partidos, ou que o instrumento
partido leninista é algo dogmático, burocrático e atrasado. O plano de fundo de todo
esse questionamento está moldado por dois importantes desvios: um é do culto ao
espontâneo, que crê que a revolução não precisa ser organizada e que a própria
massa pode, através de seus instrumentos de luta econômica-social construírem
suas transformações. O outro é o próprio reformismo, que dispensa o instrumento
leninista, pois no seu horizonte já não está a perspectiva revolucionária da tomada
do poder do Estado para pôr em prática a transição socialista.

5.1 A relação movimentismo e culto ao espontâneo

No transcurso das edições dos cadernos de textos o debate sobre o que é o


movimentismo foi travado. Neste mesmo texto, abordamos de maneira breve e
lateral algumas características do movimentismo.

O movimentismo é a sobreposição dos interesses dos movimentos sociais de forma


segmentada sob os interesses, objetivos e direcionamentos definidos dentro do
partido leninista. O pano de fundo que permite essa tese aflorar, é o culto ao
espontâneo. Existe dentro dos movimentos sociais muitos companheiros e
companheiras que desejam profundamente ver e construir a revolução socialista, ao
mesmo tempo que existe esses companheiros e essa intenção, há a necessidade de
se precaver do desvio movimentista, visto que ele não é automaticamente afastado
das nossas práticas somente por reconhecermos essa necessidade e
compreendermos o papel do partido de característica leninista, mas sim executá-lo
cotidianamente na sua essência.

Por exemplo, “entender a importância” do partido, mas ter como centro de


direção a organização econômico-social que milita é uma prática
movimentista. Por quê? Porque a direção da vida e da ação desse militante não
está predominantemente determinada no partido, o que com toda certeza afetará as
suas tarefas e o plano de ação do movimento.

O culto ao espontâneo germina da incompreensão de que a grande maioria das


nossas energias deve ser girada para o fortalecimento da organização partidária. O
culto ao espontâneo se dá na incompreensão dessa centralidade, pois, o partido
deve ser o instrumento que organiza e congrega todos os interesses das classes
sociais que podem (e devem) executar a tarefa da revolução brasileira. O partido,
portanto, não é uma mera articulação, não é um posto de gasolina ou um grupo de
estudos. Ele tem que ser a expressão mais organizada da classe trabalhadora,
dotada de estratégia, levando consciência e firmeza ideológica aos seus amplos
leques sociais por compreender que a luta de segmentos não findará o sistema
capitalista por si só.

73
O Partido deve ser, sob pena de perder o seu conteúdo e sentido, o comando
unificador de dirigentes sociais e sindicais, guiados por uma estratégia
revolucionária.

O culto ao espontâneo é o pano de fundo do movimentismo, pois ele reduz a


importância e a centralidade da construção partidária, importando métodos,
invertendo prioridades e afins.
O desenvolvimento dessa tese foi bem tratado pelo texto “Somos a Consulta
Popular”, no segundo caderno de debates da Consulta Popular, transcreveremos:

“Uma organização é como a água, assume o formato daquele conteúdo que


preenche. Se a água preenche um copo, ela se torna um copo. Se o conteúdo é o de
um movimento popular ou de um instrumento político, nele a organização se
converte.
O movimento popular tem um conteúdo que lhe é próprio. Orienta-se, principalmente,
para a luta reivindicativa, a exemplo da luta por terra, por moradia, por creches, por
educação, por melhores condições de trabalho, etc. Organiza um grupo ou classe
social, como camponeses, operários, moradores de um bairro, jovens, etc. Deve ser o
mais amplo possível, de modo a conferir força às suas reivindicações.
Consequentemente, não é um problema ampliar seu gargalo para um baixo nível de
consciência política ou para um espectro amplo de orientações ideológicas, como
reformistas, economicistas, esquerdistas, anarquistas, etc.
Por sua vez, o instrumento político tem um conteúdo muito diferente desse. Organiza,
essencialmente, a atividade revolucionária, subordinando a ela a luta econômica.
Deve ir a todas as classes da população com teoria, propaganda, organização e
agitação. Precisa selecionar cuidadosamente os seus quadros e necessita combater,
decididamente, o ecletismo ideológico, preservando uma teoria coerente. Caso um
movimento popular tente assumir, ao mesmo tempo, o formato de um instrumento
político, ou vice-versa, irá, inevitavelmente, se esvaziar.”45

Isso quer dizer que os dirigentes dos movimentos populares e sindicais não tem
capacidade de construir uma estratégia revolucionária?

De maneira alguma! Como pode uma teoria ser validada? Como pode uma
estratégia ser testada? Se não existir nosso envolvimento no trabalho de
organização da classe trabalhadora brasileira? Assim, temos que reconhecer que o
próprio trabalho de base de organização para a luta reivindicativa e econômica é
parte concreta da construção da estratégia revolucionária. São nas nossas bases
populares que organizamos o povo, que validamos a justeza da nossa linha política,
que adquirimos uma compreensão melhor das problemáticas do nosso povo,
tomando lições sobre sua história, entretanto, todo esse acúmulo e conhecimento só
pode de fato servir a revolução brasileira caso se vincule a uma estratégia de
tomada de poder conduzida por uma vanguarda. Essa vanguarda é o Partido.

45
Pág . Somos a Consulta Popular. Segundo caderno de debates. Dalva Angélica, David Libório,
Erick Feitosa, Herick Argôlo.

74
Mas afinal de contas, o que é o partido?

Para responder essa pergunta recorremos à formulação clara e precisa trazida no


texto “Somos a Consulta Popular”:

“Quando o arsenal teórico do marxismo-leninismo é absorvido por um grupo


organizado, que se vincula estreitamente a todas as classes populares, influem nas
suas lutas, atuam como verdadeiros educadores, e as conquistam para a luta pelo
poder, torna-se possível saltar das lutas reivindicativas para a luta revolucionária. A
esse grupo, chamamos de partido revolucionário ou instrumento político.”46

Nesse sentido, todo estudo sobre o que é um partido dentro do campo


marxista-leninista sempre remeterá à necessidade de organizar a classe
trabalhadora para a tomada do Poder, indicando o Partido como o instrumento
que cumprirá essa função.

Assim, a postura do partido político é de apontar para a classe oprimida pelo que ela
luta e pelo que ela deve lutar:

“Não dizemos ao mundo – escrevia Marx em 1843- ‘deixa de lutar, toda tua luta não
vale nada’. Nós lhe fornecemos a verdadeira palavra de ordem de luta. Só fazemos
mostrar ao mundo aquilo por que ele está realmente lutando, e a consciência é uma
coisa que o mundo deve adquirir, querendo-o ou não.”47

5.2 O movimentismo na conjuntura recente da América Latina (Caso do


Equador e do Chile)

A conjuntura recente da América Latina nos proporcionou mais dois exemplos do


desenvolvimento de ações onde se predomina a vertente movimentista.

No Equador, no ano tal (2019), em virtude do corte, por parte do governo de Lenin
Moreno, de programas sociais históricos que a comunidade indígena detinha, foi
deflagrada um série de revoltas que foram capazes de superar a repressão das
forças estatais, ocupando a capital do país e instaurando insurreições em outras
importantes cidades. Entretanto, o que surgiu como um bom vento de embates que
poderiam gestar uma revolução logo cessou.

A vanguarda indígena se satisfez com a recomposição de parte dos seus direitos e


anistia pela revolta. Após fecharem um acordo sob estes termos, retornaram para
suas bases. Não havia uma estratégia visando uma transformação profunda, não
havia uma organização respaldada e unificadora dos interesses em choque. O

46
Pág. .Somos a Consulta Popular. Segundo caderno de debates. Dalva Angélica, David Libório,
Erick Feitosa, Herick Argôlo.
47
Pág. Carta de Karl Marx a Ruge (setembro de 1843). (edição alemã das obras completas de Marx e
Engels, seção I, t.T. parte I, págs.573-574). Menção feita por V.l.Lenin em “Quem são os amigos do
povo e como lutam contra os social-democratas?”. Págs.166-167. Obras escolhidas: volume 1°.
Editora Vitória.

75
resultado foi a capitulação dos interesses reivindicativos-imediatos de um importante
segmento daquele país. Mesmo que tenham reunido condições extremamente
especiais que poderiam sim desenrolar uma crise revolucionaria, pois, tiveram
força o suficiente para vencer a resistência em polos centrais e conquistar
apoio social; não se pôs em cheque a ordem social equatoriana.

Ano passado (2019) o Chile também explodiu uma incrível jornada de lutas sociais.
Essa extraordinária jornada foi capaz de fazer frente a um dos piores aparatos
militares herdados, daquela que possivelmente foi a ditadura latino-americana mais
sanguinária. A falta de perspectiva da juventude, a questão das pensões
privadas e os resquícios da transição conservadora foram pontos de grande
agitação. Tendo como uma das suas sínteses mais visadas à realização de
uma Assembleia Nacional Constituinte.

Entretanto, mais uma vez, a falta de uma vanguarda unificada dotada de uma
estratégia revolucionária orientada pela tomada estratégica do Poder de Estado foi
decisiva para a dispersão de forças, também foi notório e reconhecido pelos próprios
participantes daquelas jornadas que eles foram carentes de uma direção, uma
vanguarda que além de indicar o melhor caminho para as transformações, também
os representassem nas mesas de negociação nacional. O reformismo da centro-
esquerda jogou um importante papel na dispersão das forças populares
chilenas, mas sem dúvida, a falta de uma organização respaldada sobre as
características que defendemos foi o maior obstáculo para uma ruptura
popular.

Ambos são exemplos recentes que de alguma maneira expressaram que a falta de
uma organização que detenha a disposição e a capacidade de dirigir os processos
de insurreição, levando a cabo uma estratégia revolucionária, fez toda falta e faria
toda a diferença.

Recomendamos a toda militância que estude estes dois exemplos recentes e


extremamente elucidativos.

Por fim, vale observar que, entre os processos abertos nesse século no nosso
continente, aquele que melhor resiste é o Venezuelano. Justo o que unificou
vários segmentos sobre uma estratégia que encara com muita seriedade a
questão do poder e vem demonstrando disposição para construir uma futura
revolução socialista, dando especial atenção para a organização social e o
preparo para o inevitável choque militar.

5.2 O movimentismo e conjuntura atual do Brasil

Esquerdismo e reformismo, contraditórios muitas vezes, têm como ponto de


partida uma mesma origem na inadequação de suas práticas à análise

76
concreta da situação concreta, da realidade objetiva. A vertente movimentista
vai além, unindo num mesmo caldo o sabor do aventureirismo esquerdista
com o tempero da rejeição da organização política e do compromisso
revolucionário. 48

Os companheiros Aton Fon Filho e Ricardo Gebrim demonstraram no roteiro


estratégico denominado “Recalculando a rota” que são expressões do
movimentismo: um aventureirismo esquerdista e a rejeição à organização política.
Nesta última, daríamos especial atenção quanto a rejeição do embate teórico que é
exatamente a expressão mais desenvolvida da acumulação positiva em favor de
uma prática revolucionária.

O aventureirismo esquerdista está se fazendo presente entre nós. Ele se expressa


quando após uma brutal sequência de retirada de direitos, perseguições, prisões e
da vitória eleitoral do movimento neofascista, ainda parece forçoso aceitar que
sofremos uma derrota profunda de natureza estratégica e que a força dos nossos
inimigos e sua capacidade de influenciar a conjuntura são extremamente desiguais
em seu favor. Cada sopro de resistência que aparente uma melhora das
condições políticas acaba sendo suficientemente forte para lançar nossas
direções na efemeridade de iminência de uma queda de Bolsonaro e do fim da
ofensiva burguesa.

Foram assim nossas palavras de ordem nas jornadas estudantis de maio de 2019 e
tem sido assim com a queda de ministros e vazamentos na atual crise sanitária do
Covid-19. Onde afirmam teses que identificam uma “derrota do
neoliberalismo”, “isolamento de Bolsonaro” e que propagam palavra de ordem
efêmera do “acabou Bolsonaro”. Sendo que, na conjuntura atual o que vemos é,
muito mais a manutenção estrita do programa neoliberal e as possibilidades de um
fechamento do regime democrático. Enquanto, que no início das semanas nos
regozijamos com vazamentos, quedas de ministros e notas de repúdio, no final
das mesmas semanas Bolsonaro se reagrupava e ataca os poderes
constituídos da democracia burguesa e ainda convoca manifestações em seu
apoio. A infeliz metáfora do ministro do meio ambiente, em que no vídeo vazado da
reunião ministerial afirmou que “é hora de fazer a boiada passar”, mesmo sendo
infeliz, é extremamente concreta e aferível pelo noticiário e nas ações
governamentais.

Outra caraterística desse mesmo aventureirismo está na saturação de


direcionamentos e tarefas, que provêm da própria direção do levante, dos
movimentos do campo político, da Frente Brasil Popular... Vejam, não se necessita
aqui abrir um debate sobre o mérito de cada tarefa. Mas, de reconhecer que está
clara a saturação de ações (muitas vezes sem grandes acúmulos ou saldos
organizativos) e tarefas que atravessam a militância, quantos de nós não cumprimos

48
Pág. 25. Recalculando a rota(segunda parte). Aton Fon e Ricardo Gebrim. 5° Caderno de debates.

77
diversas tarefas, propostas de ações contínuas, instâncias, setores e coletivos
“simultaneamente”. Se perguntarmos a um militante do Levante Popular da
juventude ou da Consulta Popular qual é prioridade para o período atual ou
qual o seu centro de ação, garantiremos que a respostas serão várias e
díspares, e pior, não ocorrerá a constatação de um centro de prioridades, mas
de vários e diversos.

Se não negássemos, na prática, que sofremos uma derrota estratégica e se a


Consulta tivesse agindo de acordo com suas deliberações da V Assembleia, nesse
momento os princípios norteadores da nossa prática seriam a preservação,
reorganização e acumulação de forças. Princípios formulados por Mao Tsé Tung,
quando fez um balanço sobre as diversas derrotas que o exército vermelho sofreu.49
A outra face do desvio movimentista seria a do abandono da construção do
instrumento político.

Exemplos já anteriormente citados não precisam ser retomados aqui. O central é


demonstrar o que é o geral da expressão desse abandono. Atualmente o que ocorre
com a consulta é que as decisões do campo político são realizadas sem a
construção de uma linha dentro da CP. Outra expressão desse abandono se dá na
atual ausência dessa ala movimentista do debate e enfrentamento teórico, no debate
público e nos últimos cadernos de textos.

Dentro disso existem duas questões especiais a se trazer. O próprio abandono dos
dois últimos cadernos de texto e a tentativa de emplacar a tese presente no primeiro
“Por onde anda a coesão do campo do projeto popular?” Do 1° caderno de debates
de 2018, em que se negava as divergências e diferenças de posições apresentadas,
visando o fechamento do debate público dentro da Consulta Popular. Em
lapsos de formulação a ala movimentista se confortou a produzir um diagnóstico de
que a Consulta Popular tem lacunas e debilidades, sem, entretanto, indicar qual o
caminho para superá-las. Sem apontar, por exemplo, qual a contradição
principal ou qual o centro da disputa e atuação que ocorre dentro da Consulta
Popular hoje.

Para completar, e não menos grave, a ala movimentista do partido tem aderido à
proposta da frente ampla sem tocar em quaisquer polêmicas. Se lermos nossas
“orientações políticas” veremos que a declaração de que temos que construir a
frente ampla, não tocam em questões essenciais sobre por exemplo, o recuo no
programa econômico em favor da unidade de ação da centro direita com a esquerda
e as consequências dramáticas que isso pode impor as forças populares.

49
Referimos-nos ao texto que julgamos de essencial leitura para o momento atual “Problemas
estratégicos da guerra revolucionaria da China”, de Mao Tsé Thung. Em:
https://www.marxists.org/portugues/mao/1936/guerra/index.htm

78
No mês de abril, chegamos a ouvir de importantes dirigentes (que conduziam a
análise de conjuntura), em plenária nacional do Levante, proclamarem que as
divergências sobre a Frente Ampla são uma “falsa polêmica”. Logo veríamos a
realização de um dos primeiros de maio mais mórbidos que tivemos o desprazer de
vivenciar, em que a esquerda construiu um palanque para João Doria, Wilson Witzel,
FHC, Davi Alcolumbre, e Rodrigo Maia. Os dois últimos rejeitaram o convite. Nessa
mesma movimentação perdemos a unidade das frações de esquerda como a CSP-
Conlutas, PSOL e CUT’s estaduais que se retiraram do primeiro 1° de maio da frente
ampla. Podemos realmente afirmar que reflexões e ponderações à Frente
Ampla são “falsas polêmicas”?

Tal postura só é explicável pelo desvio movimentista que abandona a construção e


um instrumentos político e a sua luta teórica. Por que ao invés de argumentarem que
se tratava de uma falsa polêmica os companheiros não tomaram uma posição clara
sendo a favor ou contra essa proposta? Há alguma ligação disso com o receio de
contrariar as relações que estes têm com agrupamentos reformistas como o PT e o
PCdoB? Por que se privar de se posicionar a favor ou contra?

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS.

Por fim, esperamos que esse texto seja o início de um processo de debate em que
os militantes da Consulta que constroem o Levante possam trazer suas impressões,
apontamentos e opiniões sobre o passado, presente e futuro da nossa organização.
É nítido que nesses 8 anos de existência nacional, com muitos dias de lutas,
aprendizados, derrotas, glórias e muito amor ao nosso povo, o Levante chega hoje
com um histórico, coluna de militantes e acúmulo político incomparáveis com
qualquer outra organização de juventude do Brasil. Naturalmente, e principalmente
em momentos de derrota, problemas e falhas precisam ser observadas a fim de
serem corrigidas. Nosso desejo nesse texto não é apontar críticas pessoais muito
menos críticas sem intencionalidade, mas sim oportunizar ao conjunto da Consulta
Popular uma reflexão a partir de militantes da sua juventude, embora sejam
problemas presentes no todo da Consulta, pela relação simbiótica do Levante e
CP, esses problemas se materializam fortemente no movimento. Estamos ansiosos
para que as companheiras e companheiros, assim como nós, se desafiem a
sistematizar suas análises e socializá-las.

Esperamos também, de forma profunda e esperançosa, que consigamos fazer um


debate honesto, compromissado e que nenhuma cortina de fumaça seja levantada a
fim de tirar o cerne do que fundamenta o nosso período congressual: o
rebaixamento político que vivenciamos dentro do nosso Partido, como isso tem
refletido nas organizações que valorosamente construímos e como tem sido
perceptível a tentativa de esvaziamento da Consulta enquanto um instrumento
político. Reiteramos aqui que não estamos colocando isso na conta de 1 ou 2
militantes, como também não serão corrigidos por um pequeno punhado de

79
militantes. E nem corrigimos por decreto, mas pela luta interna e pela alteração da
cultura política que predomina na Consulta no momento atual.

Há um bom tempo a Consulta indica a necessidade da reorganização da esquerda


em torno de um projeto político revolucionário. Isso foi apontado pela compreensão
de que o percurso feito pela esquerda até o momento teve falhas e que essas falhas
precisam ser consertadas para que possamos avançar rumo nosso objetivo
estratégico: a Revolução Brasileira.

Terminamos este texto com a esperança de que ele estimule outras


companheiras e companheiros ao envolvimento de todos no caminho que
acreditamos ser central nesse momento: A construção da VI Assembleia
Nacional da Consulta Popular.

Somos a Consulta Popular!


Pátria Livre!

80
________________________________________________________________________

“[...] O Partido não pode ser


liquidado, pois ele é a vanguarda
das massas e conduz a sua luta.”
José Beniezio Eduardo Carvalho da Silva (Beni) 50, Fabiano Paixão
de Souza51, Juan Gonçalves da Silva52, Léia Nascimento da Silva53,
Magno Luiz da Costa Oliveira54 e Vinícius Luduvice55.

50
Núcleo de Caetité - Consulta Popular Bahia.
51
Núcleo João Leonardo - Consulta Popular Bahia.
52
Núcleo Suburbana - Consulta Popular Bahia.
53
Consulta Popular Bahia.
54
Núcleo Ilhéus - Consulta Popular Bahia.
55
Núcleo Padre Josimo – Consulta Popular Tocantins.

81
APRESENTAÇÃO

Este texto foi escrito a partir do esforço coletivo de retomarmos alguns debates
sobre nosso Partido, que nos parece necessário nesse momento, de esforço geral
do diálogo interno para a construção permanente deste instrumento que se coloca
no desafio de apresentar linhas para a construção de um Projeto Popular para o
Brasil. Não é pretensão nossa a apresentação de uma novidade, mas sim a
retomada de debates e provocação da necessidade de realizarmos um processo
avaliativo (crítico e autocrítico) genuíno e maduro a partir do exercício dialético do
centralismo democrático, ou seja, da combinação da direção política e da discussão
democrática (HARNECKER, 2019).

Nos alegra e anima o reconhecimento de que partimos de um leito histórico que nos
estimula a formularmos coletivamente propostas de atuação planejada com vistas à
transformação radical da realidade. Do mesmo modo a pedagogia do exemplo,
contida nos princípios e valores socialistas, nos educa a manter sempre viva a
iniciativa disciplinada de exercitar o debate interno responsável e sempre mais
qualificado como motor para fortalecer nossa organicidade e consolidar o pilar da
formação permanente dos Quadros do nosso Partido.

Buscamos exercitar a avaliação consciente e consequente, compreendendo que nós


construímos o Partido e os instrumentos de luta de massas agrários e urbanos e que
ao trazermos o debate sobre as lacunas do Partido e do Campo Político,
reconhecemos que, sim, a autocrítica deve ser coletiva e fraterna e deve incluir
todas as forças que o compõe. Por isso o esforço do texto ser construídos por
companheiros e companheira que constroem o MAM, MTD, Levante Popular da
Juventude. Ao olhar o Partido olhamos, também, os instrumentos de luta de massa e
vice-versa porque estamos convencidos e convencida de que apenas a avaliação, o
debate interno fraterno, democrático, amplo e transparente é quem favorece e
fortalece nossa construção popular.

Nesse sentido este texto se apresenta em três tópicos introdutórios acerca do que
entendemos como centralidade para o debate neste momento. O Primeiro tópico
trata da Crítica, a nosso ver, necessária para que não façamos do presente e futuro
a repetição dos erros do passado. Nele retomamos a reflexão de que os problemas
centrais da Consulta Popular não surgem do contexto recente, mas de nossos
limites e lacunas organizativas que são decorrentes de processos anteriores e mais
estruturais que comportam tanto o Partido quanto o Campo Político em geral. Erros
estes que precisam ser avaliados e superados. A partir desta linha, o segundo tópico
recupera do debate sobre a Consulta Popular e sua tarefa partidária buscando
afirmar que, sim, somos um Partido e que possuímos tarefas específicas junto ao
Campo Político e que, por isso mesmo, precisa ter um trato particular a partir de sua
caracterização, qual seja: Formação de Quadros para as tarefas revolucionárias
junto aos instrumentos de luta de massa.

82
O terceiro e último tópico se dispõe a endossar as afirmativas de que existe uma
problemática estrutural reformista que nos tem colocado numa condição de
subordinação (e não de uma condução unificada) e impossibilitado que a Consulta
Popular se afirme enquanto Partido e assuma a tarefa programática de ser o elo que
reflita a linha geral do Partido que queremos para o Campo do Projeto Popular para
o Brasil. Nele retomamos a relação indissociável entre Movimentismo,
Economicismo, Ecletismo com o Reformismo que, a nosso ver, se trata de um
fenômeno político de caráter parasitário que reflete os interesses da normativa
liberal, porém dentro das camadas democráticas não liberais.

Como se pode perceber, são debates que já foram iniciados no decorrer das
publicações dos cadernos de debates que nos antecederam e que, ao retomarmos
aqui, estamos afirmando que o debate não se esgotou porque ainda possui questões
a serem aprofundadas e dissecadas até que toda a militância de todos os cantos do
Brasil esteja apropriada e disposta a participar democraticamente deste mesmo
debate. Isso para nós é o que representa uma vida interna democrática ativa e fluida
em que “as construções de posições e o enriquecimento mútuo por meio do
intercâmbio de opiniões” (HARNECKER, 2019) seja, para nós, o constitutivo dos
consensos e/ou da maioria real nas definições do Partido.

A AUTOCRITICA NECESSÁRIA OU SERIA “[...] TIRAR LIÇÕES DOS ERROS


PASSADOS PARA EVITAR ERROS NO FUTURO”

A esperança, ao contrário do medo, não pode ser nunca uma


emoção passiva. Exige movimento, gente em ação. Até agora
as pessoas sempre sonharam com a possibilidade de uma
vida melhor. De repente pararam. Sei que é apenas um
ponto-e-vírgula, não um ponto final [...]. (Tariq Ali, Medo do
Espelho, 2000)

Nossa tentativa de contribuição para a Consulta Popular (CP) frente aos debates
centrais que enfrentamos nesse momento histórico deve ser primeiramente um
esforço de não fazermos uma pura repetição das discussões já apresentadas em
Cadernos de Debates anteriores. Também não temos pretensão de sintetizar tais
debates, mas continuarmos dialogando sobre a necessidade de não nos negarmos
enquanto partido e, portanto, contribuir enquanto instrumento político partidário para
a construção da revolução brasileira.

A Crise da Consulta Popular está articulada dentro da profunda crise que enfrenta o
conjunto da esquerda brasileira. Essa crise é de ordem estratégica, por isso,
ideológica e organizativa, tendo como desvio fundamental o reformismo. Assim,
avaliamos que a nossa prática política tem forte influência deste processo anterior.

83
Além disso, é diante da ofensiva do inimigo e da necessidade de respostas políticas
a uma complexa conjuntura que se tornam visíveis as nossas debilidades.

São situações que vem se arrastando por anos, nos sucessivos debates e
problemas em latência - seja na discussão para ser ou não um Partido, seja no
debate do programa estratégico, seja na definição de uma identidade - que
acabavam sempre priorizando a “coesão” e a “repactuação” do campo, e assim
sendo fomos postergando o que precisava ser enfrentado politicamente. Ao fim e ao
cabo sabemos hoje que nunca surtiram os efeitos necessários, pois sempre
tangenciamos e não tratamos “a doença para poder salvar o doente”.

A crise particular da CP, é histórica e tem como centro fundamental a relação com
nosso campo político, principalmente com o Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST) devido a sua maior envergadura obtida a partir de seu papel
cumprido na história recente da luta política brasileira. O MST, assim como os
demais movimentos da Via Campesina são carregados de muitos méritos, acertos e
qualidades valorosas, as quais incorporamos e ainda são muito importantes hoje e
ao longo da nossa existência.

É este campo político o responsável por nossa construção. Ou seja, são as


organizações de luta econômica/reivindicatórias que constroem o embrião do
instrumento político partidário, isto é uma característica particular que nos diferencia
da construção histórica clássica do movimento comunista internacional, em que a
priori, são os partidos que construíram os instrumentos de luta
econômica/reivindicatórias. Logo, essa é uma característica importante para
entendermos a natureza singular que enfrentamos. Essa característica particular
coloca como centro um tensionamento histórico – O esforço de nos afirmarmos
enquanto partido e o conflito com o Movimentismo. Os movimentos pela sua
natureza de massa, precisa incorporar concepções diversas ideológicas (ecletismo
teórico) e organizativas, o que gera conflito com a concepção de caráter partidário
marxista-leninista, ainda que em construção.

Apesar dos nossos tímidos avanços numa concepção partidária, vivemos momentos
de idas e vindas, já que em muitos momentos tivemos que ceder para não romper
com o campo político, pois surgimos atrelados umbilicalmente a ele. Podemos
destacar, como exemplo, a questão a respeito da nossa posição negacionista e
fluida em relação a tática eleitoral, já que se tornou comum fazermos referências
anacrônicas enquanto lacunas decorrentes puramente de uma relação de vontade,
escondendo as contradições em que estávamos submetidos em cada circunstância.
No caso específico, é importante mencionar que o conjunto de militantes que se
organizaram na CP se aproximaram da organização a partir de uma frustração com
a centralidade da luta eleitoral na esquerda majoritária, associada com desvios
ideológicos. Enfrentar esses desvios, assumindo as consequências políticas naquele

84
período conduziria a um esvaziamento CP que continuava seu processo de
construção em meio a uma grande rotatividade de militantes.

Outro fator nesse processo que avaliamos, é que pela capacidade visionária e sua
estrutura obtida na luta, são também os movimentos, com destaque para o MST,
que estrutura as condições indispensáveis construção e massificação de um partido:
Escola, Jornal, Editora, associado a isso, somos dependentes financeiramente dos
movimentos do nosso campo político, com destaque mais uma vez para o MST, já
que não temos legenda para ter um fundo partidário e é débil a nossa atuação
sindical, condições essas que historicamente são as bases do financiamento das
organizações políticas de caráter partidário durante o século XX.

Estes são alguns dos condicionantes que colocam a CP relativamente subordinada


às capacidades estruturais – ideológica e financeira - dos movimentos. Isso gera
consequências, e a primeira que fica evidenciada é o ecletismo na formação,
acessível principalmente para a militância do campo popular, fragilizando as
condições de avanço a respeito da unidade teórica quanto a concepção e política
partidária. Neste sentido, se mantém e segue se fortalecendo uma concepção
movimentista, concepção essa que debilita o amadurecimento e a consolidação de
uma teoria revolucionária que permita a CP incidir enquanto centro político junto ao
campo popular.

Não sendo a CP esse centro nos parece existir duas tendências: continuar jogando
“água no moinho” reformista, pois “toda e qualquer” iniciativa deságua na tática
eleitoral com programas cada vez mais rebaixados onde a questão da tomada do
poder de Estado sequer é citada. A outra tendência será “iniciação” de uma outra
construção reproduzindo os velhos vícios movimentistas distante de um instrumento
partidário revolucionário.

Todavia, não abandonamos a ideia da construção de uma organização partidária,


pelo contrário, o conjunto dos nossos esforços passam desde os meados da década
de 2000 por resgatar os debates históricos a respeito da estratégia voltada para
questão do poder, com intuito de dotar o campo popular de uma concepção
partidária marxista-leninista, entendendo que sem essa concepção a revolução
brasileira não passará de um desejo.

As fragilidades teóricas, naquilo em que podemos chamar de ecletismo são


aceitáveis e compreensíveis na medida em que avaliamos os condicionantes
históricos, principalmente o processo de articulação política que conformou a
construção da CP. Mas compreender não significa que não podemos ou não
devemos questioná-lo na atualidade. A forma passiva e conciliadora que tivemos
para enfrentar nossas divergências internas e externas, fragilidades e limites não só
chegou ao limite como não tem capacidade de nos fazer avançar além do que

85
somos hoje. Ademar Bogo elucida este fato num texto crítico ao processo
assemblear de 2011,

[...] temos que falar dos limites se quisermos avançar. Isto não quer dizer que
sejam desvios ou má vontade de fazer diferente; são simplesmente limites
que, ou pelas deficiências no campo das ideias ou pela busca recente de um
lugar afirmador da opção feita (ainda não encontrado), nos torna reféns de
um processo que não deixa ou nos tira a força de romper as barreiras para
construirmos mais livremente o projeto que queremos (BOGO, 2011, p. 01).

Precisamos fazer o que não foi feito até agora na CP e estamos muito aquém do
necessário – política e organizativamente - para sermos decisivos no processo de
construção da revolução brasileira:

Transparece, em certos sentidos, que alimentamos um tipo de “saudosismo


político” que nos impede de aperfeiçoar as perspectivas, modificando aquilo
que foi insuficiente e até equivocado no passado. Lembremos que a grande
maioria que fez parte daquele debate tinha outro tipo de preocupação e, o
projeto para o Brasil ainda seria construído pelo diálogo e pela “consulta”,
com uma clara concepção basista do processo de transformação da
sociedade brasileira. Esta concepção foi quem determinou o nome da
organização “Consulta Popular” que pode ser visto mais como uma diretriz
metodológica e menos como o nome de um partido. (BOGO, 2011, p. 08).

Nesta construção histórica, na medida em que fomos apontando para o rumo de


uma construção de organização de caráter partidário, foram se afastando os sujeitos
que acreditavam numa concepção partidária voluntarista e/ou horizontalizada, e isto
foi gerando uma permanente tensão dentro e fora da CP. Destacamos que um passo
fundamental neste processo envolve o Curso Estratégico em 2008, conformando um
conjunto de quadros políticos que foram responsáveis pela construção da CP nos
estados.

O amadurecimento político e organizativo desdobrou em uma análise da realidade


(análise das classes sociais, frações de classes e correlação de forças) dispostos na
resolução da Cartilha 22 (referente a 4ª Plenária Nacional Soledad Barret Viedma),
nos retirando da disjuntiva esquerdista de oposição ao governo PT, passando a uma
posição independente de apoio crítico, que consubstancia as condições de uma
tática política que se desdobra nos seus aspectos de incidência na luta política e de
construção de força própria, tendo como principal experiência a construção do
Levante Popular da Juventude, construção exitosa e que teve papel importante do
campo político, principalmente o MST. Ou seja, o zelo pela unidade do campo
popular nos proporcionou a construção de força própria, mas, quando atrelada a
uma capacidade de análise e orientação política independente.

Logo, quando se critica em nossa organização a ausência de uma política de


quadros, apesar de ser essa uma crítica justa e coerente, pelo fato de tal ausência
ser responsável por provocar vários desdobramentos que ampliam as nossas
fragilidades, não cabe generalização para todo o último período, pois, para além dos

86
fatos supracitados, é importante destacar que a nossa construção é de idas e vindas
e de afirmação enquanto instrumento político de caráter partidário, destaque que
exige uma crítica fraterna, considerando o nosso legado e especificidades históricas.

Nacionalmente a ampliação do Levante, a formação de novos quadros (a partir do


trabalho desenvolvido após o Curso Estratégico de 2008 e o recrutamento na
construção das frentes de massas e campanhas) e a ausência de formação de
quadros pelos movimentos populares conduz a um problema que enfrentamos no
atual momento, em que nossa militância passa a ser arrastada - muito por causa da
nossa limitada autonomia financeira - pelos movimentos sociais, relação que exige o
enfrentamento da política de quadros para o atual momento histórico.

Neste processo a nossa construção tem grande peso junto aos movimentos do
campo popular, no movimento estudantil e em experiências territoriais a partir da
organização do Levante. Porém, enfrentamos uma profunda fragilidade no mundo
sindical e na organização do proletariado espalhada pelas diversas periferias
brasileiras.

A nossa lacuna orgânica no mundo do trabalho envolve a nossa matriz histórica – o


legado camponês, a vinculação a classe média urbana e como falamos
anteriormente os debates teóricos e políticos que deixamos de fazer - o que
fragilizou a organização de experiências exitosas, assim como o período
hegemonizado por uma política reformista limitou a capacidade de incidência, já que
as conquistas econômicas eram organizadas em torno de dessa estratégia
reformista, associada às debilidades da estrutura sindical brasileira.

Por outro lado, apesar de a organização do MTD ser um esforço desde os anos
2000, a política dos governos petistas de melhora das condições de vida da classe
trabalhadora debilitou a condição de avanço do instrumento de organização das
periferias, já que as bandeiras econômicas fundamentais que poderiam alavancar o
movimento naquele período histórico foram absolvidas por uma política
governamental que garantia praticamente o pleno emprego e aplicava um dos
maiores programas de habitação popular, mas amputado de uma política estratégica
e organizativa. Associada à isso, a nossa ausência de quadros para as tarefas -
sindical e urbana -, principalmente porque após a Assembleia Nacional de 2011, os
nossos principais militantes estavam envolvidos na tarefa de construção do Levante
Popular da Juventude, debilitando as condições de avanço na organização de
experiências permanente nas periferias - embora os nossos esforços estejam
carregados de aprendizados - e dos trabalhadores do mundo sindical. No entanto, os
esforços nos permitiram embriões importantes de organização na educação,
resultado do trabalho do Levante neste setor, assim como de qualificação da
ferramenta do MTD para atuar neste momento histórico que foi intencionalizada
desde a Assembleia Nacional de 2017.

87
Em suma, quando olhamos para a história da CP observamos que “um conjunto das
nossas limitações, fragilidades e acertos estão associadas à nossa relação com o
campo popular, com predominância para o MST, sendo que o principal problema
decorre da nossa dependência econômica e política. As tensões históricas decorrem
de um conflito envolvendo concepções políticas (ideológica e organizativa), já que
grande parte dos/das dirigentes responsáveis pela nossa construção não puderam
acolher na sua totalidade a concepção de uma organização de caráter partidário
marxista-leninista pela sua relação com o movimentismo. Este choca-se com uma
concepção partidária que veio se desenvolvendo na CP, levando a um
desenvolvimento que foi incompatível para conseguirmos ser o centro político do
campo popular, que seguiu sendo o MST pela sua história, e que apesar de não ser
um partido político, era essa a referência para fora com as demais forças, e por isso
a CP era vista muito como a expressão do MST.

O conflito vem se agravando na medida que os principais dirigentes do MST que


compunham a direção da CP vêm se afastando paulatinamente das instâncias da
nossa organização, em especial a partir do período preparatório para a V
Assembleia. Isso não seria um problema vital se os mesmos além de serem grandes
quadros não pudessem arrastar o centro político do Campo para onde eles
estiverem.

Esse conflito de concepção política (ideológica e organizativa) enquanto processo


histórico no desenvolvimento da CP acaba se tornando inconciliável, na medida em
que a estratégia hegemônica do último período foi derrotada provocando uma
profunda mudança da situação política, onde o inimigo se coloca em profunda
ofensiva e a esquerda se encontra despreparada para construir uma contraofensiva.
Não é razoável que tratemos de forma simplista essa divergência de concepção
muito menos a derrota de caráter estratégico provocada pelo golpe em 2016, tentar
reabilitar uma estratégia que antes mesmo do golpe se mostrava incapaz de nos
levar além do neodesenvolvimentismo nesta conjuntura pode nos desautorizar
perante a história.

No que tange as condições particulares da CP, as debilidades estratégicas envolvem


o conflito permanente de concepções políticas, que criaram as bases do nosso
desenvolvimento dependente e subordinado ao Movimentismo, limitando o avanço
na qualidade necessária de uma concepção partidária em condições de intervir no
momento histórico. Ainda assim, traçamos nossos objetivos particulares, que tinham
como objetivo central atrair uma parte significante do campo político para um acerto
de contas com uma construção de caráter partidário

É diante destes problemas que é construída a V Assembleia Nacional, pensada


enquanto processo de repactuação do campo com um instrumento político, a CP.
Porém, a sua tentativa de síntese foi equivocada: “O campo é o partido” enquanto
expressão do processo. O equívoco é: se existe uma divergência de conteúdo -

88
concepção partidária - não seria o processo, ou seja, a forma que iria dirimir esse
problema. Nosso arremedo de síntese acaba sendo manter a unidade, que tem
como a outra face da moeda negação da identidade da CP enquanto partido.
Posteriormente, apesar dos principais dirigentes do MST serem eleitos enquanto
dirigentes da CP na V Assembleia, eles se afastam das instâncias da organização,
sem haver uma construção ou participação do processo de crítica e autocrítica que
nos propomos. E por sua capacidade de influência, o MST se mantém na direção do
campo a partir de uma análise e linha política que além de “não ser a da CP”
indiretamente nos secundariza e os aproxima da linha reformista hegemonizada pelo
Partido dos Trabalhadores.

Entretanto, estabelece inúmeras críticas equivocadas para diagnosticar a nossa


crise quando esconde ou secundariza as influências das organizações do campo
político, com destaque para o MST sobre a CP. Fundamentalmente se estamos
debatendo essas questões na CP é porque envolve um problema do nosso partido.
Porém a CP não está constituída em si mesma, por isso, o esforço de negar ou
simplificar essa contradição com os movimentos que nos constituíram e que hoje
fazem parte do campo popular é o esforço de nos mantermos preso umbilicalmente
ao movimentismo. Para elucidar destacamos alguns desses apontamentos
equivocados ou mal colocados frente ao nosso problema:

a) Concepção dirigista da CP;


b) O papel do MST na atual fase da luta política;
c) A manutenção da bandeira da Constituinte;
e) O nosso déficit organizativo e ideológico.

Não é de nosso interesse fazer uma análise profunda desses aspectos, pois
consideramos que esses elementos já foram bem abordados por análises que nos
antecederam. Portanto, apontamos que o que prevaleceu na CP não foi uma
concepção dirigista, pelo contrário, foi uma concepção Movimentista. Em segundo
lugar, devemos identificar que o papel de uma organização partidária é sua
capacidade de direção, e para isso, precisa de uma análise e política para municiar a
sua militância no convencimento das frentes de massas.

O outro aspecto envolvendo o papel do MST na atual fase da luta política é para nós
um apontamento errático, já que pelo contrário, temos muito bem definido o papel e
a capacidade do MST em todo o nosso processo histórico. O que está em debate
envolve uma concepção política, pois o núcleo central do MST não pode admitir uma
construção de concepção partidária pela necessidade em manter a sua convivência
pacífica interna no movimento e por isso fluida, entrando em choque com o
desenvolvimento da CP no interior de um campo popular que tem como maior
influência o MST.

89
Ainda sobre os apontamentos, destacamos que a bandeira da Constituinte foi o
maior acerto político da história recente da CP. Defendê-la, em especial em um
momento que o inimigo abria uma ofensiva, foi uma definição responsável com a
nossa leitura teórica e situação da luta de classes até 2015. A derrota da
possibilidade de manutenção da bandeira da Constituinte não decorre de um
equívoco de análise, mas sim da hegemonia do reformismo e dos desvios
esquerdistas que não permitiram a sustentação de uma bandeira que pudesse
fustigar o cerco do inimigo. O golpe nos coloca em uma nova situação política, em
que o nosso erro foi a manutenção dessa bandeira enquanto saída política para o
momento até a Assembleia de 2017, mas esse último aspecto é secundário com o
centro da nossa contradição histórica em particular.

No que tange aos aspectos ideológicos e organizativos, consideramos que o último é


o mais visível para a toda a militância da CP e acreditamos que não há divergências
a respeito da necessidade de avançarmos na política organizativa. Porém, é
equivocado esconder atrás dos problemas organizativos presentes em todas a
esquerda, inclusive nos movimentos do campo popular, a nossa contradição com o
movimentismo. Assim como não identificar e associar muitas das nossas debilidades
na dinâmica dessa relação histórica.

Consideramos, entretanto, que se é verdade que a organicidade que se subordina à


política e que o esforço organizativo poderá ser em vão se dissociado de uma
política que oriente e dê sentido aos esforços organizativos, é também verdade que
não existe política sem organização. Consideramos que a CP até aqui construiu
esforços organizativos, envolvendo os seus núcleos, a Secretaria Nacional, direções
e coordenações estaduais, e o principal, uma coluna de quadros, ainda que
permeados/as de disparidades teórico ideológicas. O conjunto dessas experiências
merecem um balanço mais profundo pela organização, mas o que está evidente são
suas debilidades, sendo que o crescimento da organização, em especial pelo acerto
da política de construção de força própria com o Levante expandiu bastante a
organização, constituindo um conjunto de contradições neste momento histórico e
que precisam ser seriamente enfrentadas.

Neste aspecto, a CP precisará enfrentar o problema da política de quadros, já que a


militância sem um processo claro (ausente em muitos momentos de
acompanhamento) e com intencionalidade acaba definindo um rumo não
coordenado de acordo com as definições coletivas, mas de acordo aos pressupostos
individuais, em especial decorrentes das condições de sobrevivência ou pela
omissão/impotência da organização diante das violências machistas, racistas e
homofóbicas que se apresentam. Consideramos que sobre desvios estratégicos em
relação às práticas patriarcais e racistas enquanto desvio teórico e político, cabem
reflexões ainda mais profundas por toda a organização, com destaque para aqueles
que vivem do privilégio estrutural dessa sociedade dividida em classes e que
articulam as opressões enquanto relação de dominação e exploração. As

90
debilidades teóricas e uma prática desviante constitui uma organização doentia que
afasta as mulheres, pretos/as, LGBT’s, ou seja, parte fundamental da classe.
Fundamentalmente, esses aspectos nos exigem um enfrentamento político
ideológico e organizativo para que a organização concretamente avance nesse
sentido, sendo fundamental a autocrítica na práxis cotidiana como um exemplo
fundante.

[...] a destruição da pseudoconcreticidade como método dialético-crítico,


graças à qual o pensamento dissolve as criações fetichizadas do mundo
reificado e ideal, para alcançar a sua realidade, é apenas o outro lado da
dialética, como método revolucionário de transformação da realidade. Para
que o mundo possa ser explicado "criticamente", cumpre que a explicação
mesma se coloque no terreno da práxis revolucionária (KOSIK, 1976, p.22).

Por outro lado, os movimentos do nosso campo, com escassez de quadros e


militância, mas estruturados em melhores condições financeiras, e em alguns casos
com certas medidas mais avançadas politicamente no combate às opressões, se
apresentam em melhores condições para atrair e acolher a nossa militância, que
acaba se dispersando a partir da subordinação ao movimentismo. O fundante deste
problema decorre da ausência de uma política com análise apurada e de
apontamentos orgânicos no âmbito ideológico e estrutural que dê condições de
sustentação nesses aspectos para a militância.

O primeiro aspecto envolve as debilidades da política organizativa que não


consegue garantir as condições de uma militância dedicada ao partido, com
destaque para os/as seus/suas principais dirigentes e estrutura organizativa, como
as secretaria nacional e estaduais. Para isso, é fundamental o avanço concreto na
definição sobre uma política de finanças, no que tange às condições de articulação
política institucional e de levantamento de fundos próprios capazes de construir uma
estrutura possível de edificar essa organização. E em segundo lugar pela
manutenção de uma política arcaica no que envolvem aspectos estruturais da
sociedade brasileira, como o racismo e o patriarcado.

Além disso, a necessidade do desenvolvimento de uma disciplina que supere o


senso comum que banalizou o termo “disciplina militante” e que possa efetivamente
garantir o andamento dos encaminhamentos organizativos. Por fim, outro aspecto é
característico da nossa forma anterior que nos prejudica é a anulação de nossa
própria simbologia como uma “forma” de garantir a afirmação da unidade. Ou seja,
para preservar o coesionamento do campo, em muitos aspectos negamos e
limitamos o desenvolvimento do partido. Essa relação implicou na negação da nossa
simbologia e pouco destaque para uma política de comunicação da CP.

Portanto, gostaríamos de considerar a necessidade da CP em estabelecer um


método de funcionamento. Os nossos pressupostos teóricos se sustentam nos
aspectos fundamentais do Centralismo Democrático. É óbvio que uma organização

91
com baixa organicidade não maturou ainda os seus aspectos fundamentais de
funcionamento.

Nenhum método pode ser abstrato, deve ser profundamente concreto em


suas funções técnicas e na prática organizativa. Os métodos somente se
desenvolvem e comprovam sua eficiência na medida que forem aplicados
sobre uma determinada realidade para transformá-la. De acordo com esta
visão antecipada que se tem do objetivo a ser alcançado (BOGO, 2000. p.
77).

Nisso, o Movimentismo cria uma tensão eterna que anula o fortalecimento do


método, já que a concepção política organizativa predominante não preza pelo
caráter partidário e por isso, debilita a organização. Centralmente, o que orienta o
método da organização é sua política, a qual deve ser fruto de amplo debate com
sua militância e nas suas instâncias, com o objetivo de amadurecer essa
organização e ter a coragem de fornecê-la na sua diversidade de experiência
política, com objetivo de amadurecer na sua ordem totalizante, ainda que
submetidos aos maiores choques e dimensões em sua direção. Assim sendo, o
método deve destacar de forma explícita as instâncias fundamentais dessa
organização, seus papéis e como formular uma política e corrigi-la nos seus desvios
e vícios.

Neste caso, é fundamental que os dirigentes com maior responsabilidade na


organização estejam orientados e submetidos a este método e seu processo. É
inadmissível as posições autoritárias, arrogantes e que não prezam pelo zelo com a
organização e seu arco de alianças. Por isso, é fundamental fazermos um
permanente processo de autocrítica no que tange a posturas irresponsáveis e que
nos atrapalham na construção de saídas superadoras. Isto não quer dizer que não
devemos enfrentar as ideias e os desvios, tarefa somente possível na organização
de forma aberta e transparente. Por isso, é fundamental a disposição e
fortalecimento de uma política (ideológica e estrutural) que afirme e consubstancia
esse partido dentro de uma relação que abarque e considere as determinações
específicas da classe, assim como materialize uma política de amplo debate nas
instâncias, com definições e avaliações coletivas sem prescindir de auto avaliações
enquanto marco coletivo de um permanente ajuste estratégico e de fortalecimento
dessa organização, e não seu contrário, a partir do método da fofoca e picuinha
enquanto desserviço para a conformação de um método e uma organização política.

No que tange aos aspectos ideológicos, consideramos que a debilidade de


enfrentarmos nas condições necessárias o conjunto de questões até aqui exposta na
qualidade necessária, expõe bem as nossas dificuldades. A respeito deste aspecto
dedicaremos um esforço particular no tópico posterior. Consideramos que existe um
grande déficit de formação junto a grande parte da nossa militância, sendo que muito
deles não passaram pelo curso de militantes. Assim como diante a profunda

92
mudança da situação política cabe um ajuste teórico necessário que prepare a
militância para enfrentar os desafios atuais da realidade.

Os aspectos tratados até aqui o autoriza ninguém a dizer que estamos negando a
importância dos movimentos sociais que compõem o que chamamos de “campo do
projeto popular” para a nossa formação histórica e atual. Chamamos atenção para a
necessidade da Consulta Popular se afirmar enquanto centro de orientação política
da sua direção e militância, e por isso, a necessidade de amplo debate sobre os
temas centrais que subsidiem a nossa prática política. O alerta é para que o campo
do projeto popular não se torne o centro onde definimos a nossa política, nos
anulando enquanto instrumento de caráter partidário. Ainda que seja de nosso
interesse cativar e convencer este campo sobre as nossas análises, assim como
incorporar na qualificação da nossa política a respeito do que o campo produz de
análise e prática política, enquanto relação pedagógica da nossa história, sem abrir
mão do nosso desenvolvimento com independência política ideológica. Porém,
mesmo a política referente às nossas frentes de atuação tem perpassado pela CP
somente enquanto repasses das definições, anulando nossa possibilidade enquanto
partido de elaborar uma reflexão de acordo as nossas prioridades, que possa
instrumentalizar a nossa militância no convencimento das respectivas frentes de
massas, sem perder o zelo político pelo campo popular.

Não estamos fazendo uma crítica distanciada deste processo, pelo contrário, nos
colocamos dentro dessa crítica na medida que construímos as frentes de massas e
somos na maioria das vezes ausente e irresponsável em fortalecer dentro do partido
esse exemplo pedagógico. Relação que explicita as vísceras abertas com o
movimentismo, e por isso, a necessidade de superarmos, se realmente queremos
levar até às últimas consequências um projeto revolucionário.

Parece então que nos falta no debate da Consulta, um degrau que não deixa subir a
escada. Ou seja, o degrau inferior está muito abaixo e o degrau superior, está muito
acima, logo, ficamos pendurados sem forças para seguir e propensos a descer.
Então as ações não aparecem, as inserções não acontecem e as formulações dos
métodos não avançam.

No último período temos quase que totalmente nos limitado a organizar lutas
reivindicatórias e agendas de luta que no máximo nos possibilitam conquistas
imediatas, todavia, sabemos que isso os movimentos sociais fazem e bem antes
mesmo da CP existir. E cabe mais uma vez afirmarmos que os movimentos atuam
em coerência com sua própria especificidade, mas para nós enquanto partido
político é o mesmo que nos negarmos para existirmos, no entanto acabamos não
sendo o partido nem mesmo o movimento.

Cabe destacar que ao caminharmos sem definição dos nossos objetivos e


prioridades de forma cristalina para o conjunto da organização, nos submetermos a

93
lógica movimentista, tendo como dinâmica de que a ação deslocada da teoria que
faz a revolução, no caso, caminhamos para um abismo sem precedente. Não nos
falta exemplos do conjunto de iniciativas políticas que já foram construídas nos
últimos anos sem nenhum equacionamento com a nossa análise da realidade e em
despropósito com um plano estratégico. Por isso mesmo, essas mesmas iniciativas
ficam pelo caminho e simultaneamente somos incorporadas a outras iniciativas sem
nenhuma consulta ou debate coletivo para garantir um balanço dos acertos, erros e
acúmulos. A manutenção dessa forma arcaica de política, sobrecarrega e afasta o
trabalho da nossa militância de um horizonte de poder. Não enfrentar este problema
com toda a organização é afirmamos a nossa irresponsabilidade com o nosso maior
patrimônio, a militância e com um projeto revolucionário.

Ao caírem no “praticismo”, os partidos seguiram dois caminhos. No primeiro


retrocederam para “facções”, rígidos nas formas organizativas e sectários
na política de alianças e no tratamento das lutas sociais. No segundo,
perderam a natureza de classe e passaram de contestadores a
subservientes da ordem estabelecida, com estrutura, normas e objetivos
parecidos com os da classe defensora da ordem, ou seja, equiparam-se
para disputar da legalidade, a democracia restrita, dentro da
institucionalidade, visando meramente a sucessão parlamentar como meio
para participar da democracia burguesa.
Com isso a forma organizativa partidária, nos moldes conhecidos,
degenerou e desviou-se do sentido original, passou a ser um potente
aparelho de disputa de espaço político formal, e enfraqueceu a idéia de ser
um elemento “associativo” revolucionário, mantendo a referência nominal,
mas descaracterizando através da prática, o aspecto de sua natureza que é
a luta pela transformação social (BOGO, s/d, p.14-15).

Sabemos que não nos é suficiente apenas o partido para impulsionar a revolução
proletária, mas também não é suficiente apenas a luta de massas. Dentro dessas
duas tarefas imprescindíveis para a construção da revolução não adianta dizermos
que temos que construir concomitantemente as duas porque isso não é suficiente, e
mais ainda, nossas limitações e fragilidades não permitem, por isso a importância
em dar centralidade as questões que ficaram em aberto durante esses 22 anos
passa a ser decisivo.

REFLEXÕES SOBRE OS PROBLEMAS ORGANIZATIVOS

Já argumentamos no decorrer deste texto que o nosso problema envolve uma crise
política interna, que é também uma crise histórica e teve seu ápice nesse momento,
decorrente dos elementos já expostos nos tópicos anteriores. O reformismo assim
como o esquerdismo correspondem a uma linha tênue para qualquer organização
política e provavelmente nenhuma organização, mesmo tendo já combatido os
referidos desvios estará completamente livre da necessidade de tempos em tempos
precisar combatê-los. Essa não é uma questão de menor importância para um
instrumento político de caráter partidário, é na verdade um aspecto fundamental que
pode decretar não o fim da organização, mas da sua capacidade de levar à frente
um projeto revolucionário. Estamos dizendo com isso que sem a correção desses

94
desvios é possível a organização continuar existindo e até mesmo crescer e ganhar
relevância, mas não mais tendo como estratégia a centralidade na tomada
revolucionária do poder de Estado.

A nossa crise tem como centro as nossas debilidades de natureza ideológica e


organizativa. Essa é uma crise da esquerda, mas se manifesta em nós
particularmente pelo economicismo de nosso tempo, aqui denominado de
movimentismo, acompanhado do racismo e machismo enquanto expressão
conjugada do nosso reformismo. Essa doença debilita as condições de existirmos
enquanto conteúdo revolucionário e por isso de permanente conflito político, cuja
expressão é também uma disputa de concepção partidária. Não podendo assim,
fugir da nossa tarefa histórica enquanto organização revolucionária, que em face de
sociedades concretas, tem como objetivo modificar as relações estabelecidas, em
especial as relações de poder e dominação.

Não nos cabe aqui retomar este debate que acumulamos sobre o significado de
partido leninista, que tem como fundamental expressão a capacidade criativa de
elaboração e construção para cada realidade histórica, mas, mantendo os seus
aspectos fundamentais no que se refere ao eixo teoria-movimento. Ou seja, a
organização partidária precisa ter a vocação de formular permanentemente uma
política para atuar em cada conjuntura histórica com o objetivo de tomar o poder do
Estado para o seu definhamento e construção de uma sociedade comunista.

Por isso o marxismo é apenas um guia para ação. As grandes verdades


fundamentais foram descobertas e, a partir delas, usando o materialismo
dialético como arma, vai-se interpretando a realidade em cada lugar do
mundo. Por isso, nenhuma construção será igual; todas terão características
peculiares próprias a sua formação. [...] não podem se desligar das grandes
verdades, não podem ignorar as verdades absolutas descobertas pelo
marxismo, não inventadas, não estabelecidas como dogmas, mas
descobertas na análise do desenvolvimento da sociedade. (GUEVARA,
2010, p. 138).

O movimentismo, como concepção política organizativa, é uma doença que nos


acomete desde os primeiros anos de nossa existência, e por isso, trava e debilita as
condições de avanço em conformação de uma organização de novo tipo, na
qualidade de instrumento político de caráter partidário dentro das especificidades da
realidade brasileira. O patriarcado e o racismo mantêm seus tentáculos na nossa
organização pelos desvios quanto a uma práxis política, nos afastando de uma
estratégia revolucionária.

A partir deste entendimento é necessário, portanto, reconhecer que a


violência das opressões é parte de relações de dominação-exploração, ou
seja, possui uma dimensão estrutural na sociedade de classes. Assumindo
o trabalho como categoria fundante, inferimos que as divisões social,
sexual, racial e internacional do trabalho se imbricam dialeticamente para
fomentar um multifacetado sistema de dominação, por meio da coexistência
indissociável de explorações e opressões diversas (LYRIO, p.41, 2018).

95
Com isso queremos dizer que os elementos dessa velha sociedade da qual
precisamos no desprender, permanecem presentes em nossos círculos políticos,
adoecendo nossa organização, impedindo de levarmos a frente as tarefas políticas
de construção do poder da classe trabalhadora. Ademais e associado a este
aspecto, a nossa construção envolve uma alta irregularidade organizativa e
ideológica, tendo contradições específicas nos diversos territórios que estamos
inseridos.
São essas debilidades que nos afastam de uma prática/cultura política
revolucionária. E por isso debilita o método, que é o processo de construção e
garantia de funcionamento de uma organização.

A nossa organização tem como instância máxima as assembleias onde deliberamos


as nossas definições de ordem estratégica e tática, sendo as Plenárias, espaços que
tem o objetivo de ajuste destas.

Adotamos, desde a V Assembleia Nacional em 2017, a instância da Direção


Nacional, responsável por zelar, acompanhar e garantir o ajuste tático. A Direção
Executiva enquanto instância menor em relação a DN e com maior periodicidade de
reuniões para dar conta do refinamento da tática e de orientações políticas. Além
disso, a Secretaria Geral com o papel no acompanhamento dos encaminhamentos,
zelo pelas resoluções, e manutenção da nossa política de incidência de
comunicação interna. Esses três são os principais espaços nacionais, que devem
garantir a condução política da organização.

Os estados possuem níveis e relações de organicidade que modificam de acordo às


realidades, sendo necessário o avanço na nossa política que oriente maior condição
de fortalecimento da Consulta Popular enquanto partido. Nos estados em que a
Consulta tem maior desenvolvimento e amadurecimento, temos instâncias
semelhantes à organização nacional, a partir das direções ou coordenações
estaduais, direções executivas e secretarias. Sem adentrar nos aspectos da
dinâmica dos estados pela sua desigualdade organizativa, questão que precisa ser
aprofundada pelo todo da organização a partir da disposição de uma política clara
que oriente a sua ação, faremos uma introdutória reflexão a respeito de algumas
questões que consideramos serem importantes a respeito da organização.

Consideramos, em primeiro lugar, que a nossa cultura política mais recente no


partido e nos movimentos dos quais muitos/as de nós fazemos parte, priorizam os
encontros, reuniões, formulações e definições em espaços menores, debilitando
uma direção coletiva. Podemos citar a dinâmica de funcionamento dos Núcleos, das
instâncias estaduais e nacional. Destacamos por exemplo, a dinâmica das
operativas nos estados e nos núcleos ou mesmo as executivas. São esses espaços
que se expressam como emulador da política, já os demais espaços coletivos e com
maior amplitude acabam ocupando papel de recepção das análises,
encaminhamentos e distribuição de tarefas. Essa relação impede o debate mais

96
amplo junto à sua direção, reforçando a dinâmica do “tarefismo” sem
desenvolvimento criativo dos seus membros. Pois, como destaca Bogo (2000)
“Formar quadros significa incorporar os lutadores em os todos planos. Dirigir é tomar
decisões, por isso é que se torna quase impossível formar quadros fora do espaço
onde se tomam as decisões” (p.85).

Outro aspecto associado ao anterior, é que diante da questão de os movimentos


pautarem a dinâmica da militância da nossa organização, e com a ausência de
definição interna sobre as prioridades políticas, com destaque para o último período,
se aprofunda o tarefismo, desprezo ou secundarização pela formação, ocasionando
limites no desenvolvimento ideológico e organizativo dessa militância, assim como
na capacidade de formação de outros companheiros/as em condições de responder
as demandas políticas e organizativas. Essa relação provoca a sobrecarga, cansaço
emocional e físico e afastamento de muitos/as militantes em decorrência deste
gargalo.

Neste sentido, precisamos rever nosso método de organizar e construir a política. A


prioridade deve ser amplos debates nas instâncias para o ajuste tático e construção
de objetivos e prioridades para cada momento de acordo ao nosso objetivo
estratégico. Devemos, neste caso, repensar e incentivar uma qualidade superior das
instâncias organizativas.

Política de quadros

Devemos enfrentar o problema da política de quadros. Fundamentalmente não


podemos manter a relação de ausência de um plano de recrutamento, seleção,
acompanhamento, inserção e de sustentação de nossos/as militantes. Esta é uma
tarefa da organização em todas as suas instâncias.

Nos últimos períodos viemos desenvolvendo alguns equívocos no processo de


recrutamento. Em muitos momentos o/a militante que adentrou em nossas frentes de
massas, já inserimos rapidamente na CP. Este processo é compreensível em um
primeiro momento, levando em consideração territórios que ainda inexistia a CP ou
que continham muita fragilidade pela ausência de militantes. Porém, muitos faziam
parte, mas, sem sequer dimensionar as motivações do por que ocupam esse espaço
na organização, qual era o seu papel e qual é a especificidade da organização
política frente ao movimento. É obvio que a inserção da militância na CP
corresponde em muitos momentos a um amadurecimento, mas é preciso cuidado
para não provocar atropelo dos processos e sobrecarga emocional da militância que
não tem consciência dos objetivos e tarefas que assumem.

O critério de participação não deverá ser a questão dos movimentos sociais, mas, no
que tange ao compromisso político, ou seja, estratégico com a organização. Em
segundo lugar, é fundamental que esses sujeitos façam parte da classe trabalhadora

97
na sua diversidade. Em terceiro lugar, esses sujeitos devem se subordinar a maioria,
garantindo a liberdade de expressão internamente, pois sabemos que até mesmo as
minorias podem ter razão.

Na medida em que se toma a decisão deve prevalecer à vontade da


maioria. Mas isto não significa que todos devem pensar igual, ou
quem foi derrotado deve renegar as suas ideias. Isto seria um
suicídio e cairíamos em uma ditadura, pois pode ser que em
determinados aspectos a minoria tivesse razão, mas o momento não
possibilitou que estas ideias fossem assimiladas pela maioria. Por
isso a unidade é ter o direito de discordar, sem atrapalhar a
organização das ações, obedecendo e submetendo-se sempre à
vontade da maioria. A uniformidade seria a proibição de discordar
como se tivesse um único caminho para se chegar à verdade
(BOGO, 2000, p.83).

Um fato condicionante sobre a questão da autonomia que é a dependência


financeira. A questão da sobrevivência pesa sobre os ombros da classe
trabalhadora. Como diria Marx e Engels (2009), nós mulheres e homens temos que
ter condições de viver para podermos fazer história. Ao menos nos parece que
pensar uma política de quadros sem autonomia financeira do partido continuará
sendo uma “carta de intenções”.

Precisamos identificar de forma mais apurada quais militantes já incorporaram a


compreensão dos limites impostos nas bandeiras reivindicatórias, tendo assim
condições objetivas e subjetivas para vir a construir a Consulta Popular, sendo
fundamental a construção de apresentações da CP, acompanhadas de um processo
de nucleação com acompanhamento de forma integral e adequado às dinâmicas de
cada realidade, mas, aprofundando os seus conteúdos no que tange a questão da
formação social, do Estado, das classes sociais e sobre o papel do partido.

Ademais, é fundamental o envolvimento permanente dessa militância nos nossos


processos formativos – que devem manter uma periodicidade - internos que devem
ser aprofundados com vista a dar conta da realidade. Neste processo devemos
inserir a nossa militância com intencionalidade de acordo aos nossos objetivos
políticos e potencialidades dos sujeitos na ocupação de setores que definirmos como
estratégicos. Para além da distribuição nas tarefas internas, é preciso identificar os
setores do Estado, do trabalho que queremos ir acumulando estrategicamente.

O acompanhamento é um processo que deve ocorrer com intencionalidade por parte


da direção nacional, direção estadual, e municipal estimulando que a militância
conheça outros estados e territórios no processo de acompanhamento, para que
possa aprofundar a análise das lacunas, potencialidades e apreenderem a
diversidade política e organizativa, para a construção de síntese que adeque a um
método nacional. O acompanhamento deve garantir a linha política da organização e
desdobramentos nos estados e municípios/regiões. Em segundo lugar, estimular o
fortalecimento da organização e, por isso, a necessidade do combate ao reformismo

98
e o fortalecimento do marxismo-leninismo. Neste aspecto é imprescindível que todos
núcleos mantenham periodicidade de acompanhamento por membros das direções
estaduais, assim como as direções estaduais possam ter uma periodicidade de
acompanhamento pela direção nacional.

Método

Já afirmamos que o método corresponde, antes de tudo, a uma prática política. Esta
deve está orientada para seus objetivos estratégicos e táticos. Sem a definição clara
dos objetivos que deve ser traduzido na sua política não existe método.

O método somente pode existir em função de um objetivo. Na


medida em que se tem o objetivo, necessariamente deve-se buscar
um método para implementá-lo. Por isso quanto mais claro for o
objetivo maior facilidade se tem em elaborar o método. Neste
sentido, não existem métodos bons e métodos ruins o tempo todo,
isto porque o método não é um dogma que nunca muda. Os
elementos sempre são modificados e alguns são adaptados de
acordo com cada objetivo. Ou seja, os elementos são estruturados
sobre as contradições concretas (BOGO, p. 76, 2000).

Neste caso, é fundamental o fortalecimento de uma direção coletiva, e por isso, das
suas instâncias e o pleno debate interno, combatendo sempre o oportunismo e o
esvaziamento das instancias e do conteúdo da política, com respeito a maioria e da
minoria na sua diversidade e fortalecendo a unidade numa concepção política
partidária. Para isso, a necessidade de garantir as condições de correção dos
desvios fundamentais que corroem essa organização, com o objetivo do exercício
coletivo do poder. Sendo fundamental que a Consulta Popular em todas as suas
instâncias incentive e desenvolva permanentemente os processos de crítica e
autocrítica, desde a nossa estratégia e tática política, assim como a conduta da
nossa militância com para qualificarmos a nossa ação revolucionária.

No que tange as reproduções de ordem racista e patriarcal, consideramos que é


fundamental a construção de espaços que incentivem a reflexão, apuração,
depuração e enfrentamento das práticas racistas e machistas. Nos últimos períodos,
muitos dos movimentos que fazemos parte, assim como em alguns momentos da
nossa organização, iniciamos a adoção de espaços auto-organizados das mulheres
e mistos. Assim como desenvolvemos algumas experiências em relação aos
espaços auto organizados de negros e negras. Entendemos que é fundamental
adequarmos essa proposta como prática permanente da organização, enquanto
ajuste cotidiano dos desvios da nossa militância, incentivando sempre a construção
de sínteses, debates coletivos e acompanhamento a partir de uma proposta
pedagógica de superação das práticas opressoras e incorporação de uma práxis
revolucionária.

99
Setores

Para fortalecermos as instâncias precisamos incentivar os nossos setores na


produção de análise e orientações políticas que possam subsidiar as direções da
Consulta Popular. As divergências dentro dos setores não devem ser encaradas
como um entrave, mas a relação necessária para o desenvolvimento por
incorporação de orientações necessárias para a elaboração estratégica e tática
partidária. Sem isso, a organização priva a contribuição coletiva e diversa em
condições de garantir ajustes táticos e estratégicos, nunca esquecendo que os
setores devem respeitar as respectivas instâncias do partido.

Instâncias

É preciso discutir qual a nossa política e qual o tamanho da direção necessária para
dar conta de um funcionamento adequado para as instâncias. Precisamos fazer
muitos ajustes organizativos. Desde já devemos refletir que uma direção nacional
com 64 pessoas é inviável pelo tamanho da nossa organização e pela média de
participação. Por outro lado, diante da possibilidade de aprofundamento dos limites
de reuniões amplas em decorrência das questões de ordem financeira e política, é
necessário refletirmos sobre os ajustes, para a viabilidade de manutenção de um
coletivo em permanente funcionamento, ou seja, com maior periodicidade de tempo
em encontros de formação, debates e definições. Desse modo a DN precisa ser
ajustada quanto a sua composição para dar conta desses objetivos.

Destacamos que a permanência do que vimos considerando como executiva,


enquanto instância intermediária entre a Direção Nacional ou estadual também deve
sofrer ajustes, para que aquela não comprometa o desenvolvimento de uma direção
coletiva, ou seja, para que a executiva não venha ocupar ou anular o papel também
da Direção Nacional e Estadual de formular e definir politicamente.

É preciso também qualificar um debate a respeito do papel e composição da


secretaria Geral e das operativas estaduais. O aprofundamento das contradições e
conflitos políticos na sociedade brasileira, exige um coletivo com capacidade de
iniciativa na elaboração de orientações da organização com maior dinamicidade.
Indicamos que a conformação atual da secretaria geral com 9 pessoas é uma
conformação que precisa ser amplamente avaliada, mas, que dentro dos objetivos
expostos corresponde a uma proposta política razoável. No entanto, é preciso rever
e discutir o papel das secretarias operativas para fortalecer uma direção coletiva e
capaz de responder aos desafios do momento histórico na rapidez que desdobram
as contradições.

100
A instância basilar: os núcleos

Os núcleos correspondem um espaço fundamental da organização. No entanto,


eles vêm tendo em muitos territórios diversas fragilidades para a garantia do seu
funcionamento. Os aspectos são múltiplos, mas, destacamos os seguintes:

• Transição para o mundo do trabalho: Grande parte da militância que foi


forjada a partir de 2011, ou seja, após a IV Assembleia Nacional são
estudantes, em especial que organizaram o Levante até o período de 2016.
Muitos desses jovens se formam e são forjados neste período. A dinâmica da
organização era desenvolvida por essa militância, que pela sua condição
social de estudantes permitiam uma autonomia no tempo e garantia que a
organização, expressando em especial nos seus núcleos, tivessem uma outra
dinâmica. E foi neste processo que a CP se organizou no último período. Boa
parte desses jovens se formaram e precisaram trabalhar, fazendo com que a
organização tenha uma dinâmica diferenciada diante a alteração da qualidade
das condições desses sujeitos.

• Mudança da situação política: A mudança da situação política em que a


ofensiva da burguesia contra os direitos dos trabalhadores impactam nas
condições de vida da militância. Muitos são obrigados a buscarem formas de
sobrevivência, e com uma perca crescente de direitos e ampliação do
desemprego que afeta as suas condições particulares a familiares, colocando
problemas não enfrentados por essa geração. Essa relação faz com que
muitos militantes se afastam para responder a seus problemas de ordem
econômica e pessoal pela incapacidade e ausência de preparo da
organização em respondê-los e não se adequar as condições desses/dessas
sujeitos.

• Reformismo – Entendemos que a nossa estratégia leva em conta um projeto


revolucionário de poder da classe, e por isso, a necessidade de destruição da
estrutura capitalista, racista e patriarcal. Neste caso, a omissão e
conveniência com quaisquer práticas deste tipo, significa nos afastar de uma
estratégia revolucionária. Destacamos que a reprodução das opressões no
seio da organização infelizmente não vem sendo enfrentada nas condições
necessárias, conduzindo a saídas de expressões fundamentais – mulheres,
negras/os e LGBT’s do nosso partido, assim como o movimentismo distância
a militância de uma política organizativa de caráter partidário.

• Sofrimentos psicossociais: O conjunto dos fatos em decorrência da ausência


de amadurecimento de uma política ideológica e organizativa, aprofunda o
sofrimento da nossa militância, levando muitos a se afastarem e não retornar,
em especial quando esse sofrimento é consequência da violência machista e
racista. É imprescindível termos um método para atuar, pois essas situações

101
continuam sendo corriqueiras e nossas respostas quando não são
insuficientes acabam gerando outros problemas decorrentes da forma como
as tratamos.

Para dar conta desses problemas, em primeiro lugar a CP terá que enfrentar um
debate teórico a respeito do reformismo, dotando a organização de uma concepção
partidária e para isso a aplicação de política (ideologia e organização) revolucionária.
Em segundo lugar, garantir um plano financeiro adequado às condições políticas da
organização, levando em consideração a sua militância. Por fim, e não menos
importante, os núcleos devem ser um espaço agradável, místico, acolhedor, que
unifique sujeitos diferentes, mas, com muita criatividade e dedicação para refletir o
particular e o universal num ajuste permanente da política.

Política de Finanças

Sabemos que avançar nas condições de finanças exige um ajuste da política que
possibilite a nossa orientação e acúmulo de força. Todavia, é pouco provável termos
uma política acertada sem uma política revolucionária de finanças. Entendemos que
vivemos uma profunda dependência dos movimentos do nosso campo, pela nossa
limitação em construir avanço numa política de finanças. A razão decorre, inclusive,
do processo que desenvolvemos até aqui, tendo como relação fundamental o
distanciamento das condições clássicas de autofinanciamento e que na atual
conjuntura ficaram ainda mais difícil.

Sem fundo partidário ou inserção sindical suficiente para garantia de uma


contribuição para o partido, a nossa organização fica refém da contribuição militante
cada vez mais irregular e com critérios assistemáticos para o conjunto da
organização. Outro problema, é que diante do distanciamento de dirigentes dos
movimentos do campo popular para com a construção da CP, se aprofunda a nossa
debilidade de sustentação financeira. Destacamos também que a autonomia é uma
relação que exige a construção de autonomia nas finanças. Diante da nossa pouca
força, como enfrentaremos este problema para a manutenção das nossas instâncias
e a organização?

Temos diversas experiências localizadas no âmbito das relações institucionais, a


partir da relação parlamentar ou secretarias do poder executivo. Devemos em todos
os locais incentivar experiências de relações deste tipo, para inserção do nosso
projeto institucionalmente e buscar alternativas que garantam o desenvolvimento da
nossa atividade política e liberação da nossa militância. No entanto, sabemos que
este é um espaço que tende a ser reduzido, já que a ofensiva da direita com vista a
fechamento dos espaços institucionais e derrotas sofridas pela esquerda vão
fechando as possibilidades de obtermos resultados suficientes para as nossas
necessidades. Em segundo lugar foi desenvolvido ao longo da construção da
Consulta Popular experiências de arrecadação própria, envolvendo iniciativas

102
diversas. Mas, quase todas elas são insuficientes – quando não pouco conhecidas -
para dar conta das nossas necessidades.

Entendemos que para dar conta deste desafio fundamentalmente devemos precisar
a nossa política e as nossas prioridades. Por consequência devemos definir as
condições organizativas necessárias para dar conta desta política. Por isso,
devemos considerar precisamente os custos de funcionamento da secretaria
nacional - para isso temos que pensar em prestação de contas - das nossas
instâncias e garantia de liberação de nossos/as principais quadros. Concomitante a
este levantamento, toda a organização deve-se comprometer a fazer um profundo
debate sobre as condições de sustentação financeira com o objetivo de dar conta da
política da organização.

Esses aspectos tratados são apenas sugestões reflexivas dos nossos aprendizados,
debates e olhares sobre essa construção. Cabe um aprofundamento pelo todo da
organização a respeito dos aspectos mencionados e outros fundamentais à nossa
organização. Cabe equacionarmos a nossa política organizativa para sermos cada
vez mais um partido imbuído de uma estratégia revolucionária de poder.

REFORMISMO, PARTIDO REVOLUCIONÁRIO E FORMAÇÃO DE QUADROS

A verdade de um conhecimento ou de uma teoria é


determinada não por uma apreciação subjetiva, mas
sim pelos resultados da prática social objetiva. O
critério da verdade não pode ser outro senão a prática
social (Mao Tse-tung).

Antes de tudo sigamos afirmando que nossa situação é de Derrota Estratégica e da


urgente orientação de preservação de forças da Classe Trabalhadora e da Coluna
de Quadro que se dispõe a pensar e fazer a revolução brasileira. Para isso algumas
questões, linhas políticas equivocadas e orientações que não contextualizam ou
indicam para condutas centralizadas de nossa ação partidária precisam mais uma
vez serem pontuadas do modo que o Reformismo (inclusive por osmose) não seja,
para a Consulta Popular, uma questão de fato consumado.

O movimentismo, ecletismo e economicismo são práticas nocivas, artesanais que,


se não combatidas, vão sedimentando nas linhas gerais do partido e o corroendo por
dentro. Essas práticas nada mais são do que o desdobramento do Reformismo no
seio do partido e que, historicamente em todos os processos revolucionários
triunfantes e derrotados, se mostrou como a tática dos oportunistas e tendenciosos.
Para as revoluções que triunfam até os dias atuais o reformismo foi combatido e aos
que não combateram, a derrota foi sem precedentes.

Com isso já fica explicito aqui que partimos da afirmação e princípio de que a
Consulta Popular precisa ajustar sua conduta e retomar o caminho indicado

103
coletivamente na Assembleia Zilda Xavier e da qual se afastou profundamente.
Reconhecemos que se tem hegemonizado a prática não centralizada do Partido e
que, os três desvios acima mencionados, tem sido uma constante e têm se
manifestado na ausência de direção política coesa e coerente, ausência de política
de formação de quadros que possibilite-nos atuar em tempos desfavoráveis, práticas
artesanais e dependentes, incapazes de orientar política e organicamente o corpo de
militantes na linha daquilo que nos afirmamos: Partido Revolucionário!

Vamos retomar algumas afirmações e rememorar brevemente os sentidos e seus


efeitos de modo a qualificar nossa posição. Ao indicarmos que, sim, há o desvio do
movimentismo56 estamos afirmando que toda ação pela ação não significa tática que
acumula para o fortalecimento da classe ou da estratégia, do contrário, a ação
irrefletida desencadeia o tarefismo, a incapacidade de avaliar adequadamente as
correlações de forças, a conjuntura e a história e cai-se nas análises equivocadas
destas mesmas correlações de forças (a exemplo da equivocada defesa do
Equilíbrio de Forças).

Desde 2018 até os dias atuais (com Crise Sanitária) o movimentismo tem sido a
marca das ações do nosso Partido indicando, com gravíssimo erro, que parecíamos
estar em igual situação de forças com a classe inimiga. Conduta equivocada e que
colocou em risco não apenas nossa tática, mas a estratégia e quanto mais erramos
mais nos afastamos do objetivo que é a Tomada do Poder. Seguimos 2019 na
mesma dinâmica como se as condições fossem as mesmas de 2002, 2006 e 2010
nos comportando com a mesma falta de autocrítica dos partidos hegemônicos de
esquerda (aliás, como se fôssemos a tendência mais atualizada deles) e sem saldo
organizativo algum.

Parece-me que a melhor forma definição é a que designa como reformistas


os que por meio das reformas procuram aperfeiçoar a atual ordem existente,
e como revolucionários os que, ao impulsionar as reformas, lutam ao
mesmo tempo para muda-las profundamente, mudança que não se pode
produzir sem uma ruptura com a ordem anterior (grifos da autora)
(HARNECKER, p. 86, 2019).

Chegamos em 2020 e nos deparamos com uma das situações mais difíceis e
dolorosas da humanidade na contemporaneidade e a Consulta Popular se mantém
refém do mesmo movimentismo criticado e reconhecido por toda a organização
ainda no início do mesmo ano. Sem linha política revolucionária o partido se limita a
se movimentar mecanicamente na tendência artesanal e não consegue
profissionalizar seus quadros para atuarem em circunstâncias tão desfavoráveis

56
Abordamos a categoria movimentismo numa relação dialética e trata-se tanto da sobreposição do
movimento de massa em detrimento do partido, quanto da prática de realizar ação pela ação,
baseada na análise aparente da realidade, sem o estudo adequado da realidade para que se possa
atuar sobre ela de modo a cometer o mínimo de erros táticos possíveis. São movimentações táticas
que vão sendo realizadas, ações após ações, sem avaliação, sem medir o acúmulo de forças, sem
sentir o terreno real das correlações de forças, etc.

104
como esta de Guerra e necessidade de recuo organizado. Parece-nos que não
compreendemos a situação em que vivemos, então recordemos as afirmações de
Lenin quando diz que para conduzir corretamente o movimento revolucionário é
necessário a compreensão da situação política, das forças que se enfrentam, da
forma mais disciplinada, cuidadosa, exata e serena possível.

Do mesmo modo, com a falta de linha política que oriente para a formação
revolucionária de quadros, o Ecletismo se tornou a centralidade teórica desdobrando
na mais desastrosa teorização contemporânea pós modernista, intimista
(COUTINHO, 2011) e não raras vezes que intimida, nega o debate e esteriliza as
construções coletivas, sem a prática do método dialético, levando à hegemonia da
análise da aparência da realidade apenas. Reduzindo assim a objetividade e
subjetividade do indivíduo e das relações a uma questão de vontade e não à
dinâmica interna desta em relação à condições dadas. Aqui voltamos a reafirmar que
a teoria revolucionária é que deve orientar toda e qualquer leitura da realidade
desenvolvida pela Consulta Popular.

E nesse sentido não há como forjar a Consciência Revolucionária dos quadros e da


militância de nosso Partido se não houver uma política de Formação de Quadros
capaz de forjar sujeitas/os suficientemente lúcidos das suas tarefas revolucionárias e
dispostos a combater todo reformismo e oportunismo que venham a brotar em
nossas trincheiras. Por isso não é demais recordar que toda prática revolucionária só
é possível no exercício permanente da teoria revolucionária, atualizando-a,
refinando-a e incorporando os elementos necessários para garantir que a elevação
da Consciência de Classe dos quadros do partido seja permanente e ininterrupta.

A aparência e a essência da realidade não podem jamais caminhar em direções


opostas. Não faz sentido analisarmos a realidade e necessidade de mudanças
profundas e permanecermos atuando na manutenção da ordem. Isso só prova o
quanto estamos distantes da realidade ou analisamos apenas aquilo que nos
convém. Se essa é a prática então nunca foi revolucionária, mas oportunista. E o
economicismo é um dos desvios que mais dão condições para que o oportunismo
entre na sutileza das ações coletivas e por isso que passa despercebido aos olhos
desatentos.

Sabemos que a produção e reprodução da vida (economia) é a centralidade na qual


se desdobram as demais relações (política), desde as individuais às coletivas.
Porém, quanto mais complexa as relações se tornam, mas difícil é fazer com que a
produção da vida se torne um processo simples e imediato. Por isso que afirmamos
que a alteração da economia só se dá na dialética da alteração da política e isso por
si só já significa um elemento antagônico ao economicismo.

Em modo de produção e de relações complexas, não existe respostas imediatas,


logo a prática artesanal e o espontaneísmo não pode ser uma alternativa viável para

105
um partido que se reivindica revolucionário. O economicismo sempre beneficia e
fortalece as forças hegemônicas e coloca em situação desfavorável toda a ala
revolucionária, recordemos o que foi o neodesenvolvimentismo e a perda do
horizonte revolucionário. O ativismo, o assistencialismo sem o exercício interrupto da
organização de camadas e mais camadas das classes populares apenas desgasta
as forças e nos expõe física e politicamente. Lenin já nos alertava que se não somos
capazes de forjar revolucionários profissionais nosso trágico destino será o
Reformismo e para isso não há salvação.

O reformismo, por sua vez, preconizado por pseudo-revolucionários nada mais é do


que o oportunismo pronto a negar a liberdade do povo acaso a circunstância lhe
convenha. Não queremos que esta desgraça recaia sobre nós, mas é possível que
isso aconteça acaso não estejamos suficientemente vigilantes e disciplinados na
centralidade política, do respeito às resoluções tiradas pela instância máxima do
Partido, do exercício permanente do estudo disciplinado e da avaliação permanente
(crítica e autocrítica), aspectos estes, ausentes no seio da Consulta Popular nos
últimos períodos.

Não precisamos ir muito longe para conseguirmos identificar estas contradições,


basta refletirmos com base em nossos compromissos, princípios e valores. Citemos
apenas dois exemplos determinantes para a legitimação de nossa afirmativa
revolucionária: Feminismo Popular e Luta Antirracista. O que temos avançado
especialmente em um momento de trágicos acontecimentos no seio da vida do povo
brasileiro e que tem afetado de forma incalculável a vida das mulheres e das negras
e negros no país? Notas de repúdio, panelaços, pedidos de impedimento, doação de
cestas básicas? Ações legítimas, mas que não tem acumulado forças para nós, mas
apenas assumimos um papel que o Estado deveria assumir. Temos conseguido
contribuir para a alteração da condição da vida de nossas irmãs e irmãos? E das
mulheres e negras e negros da organização, qual lugar dispomos para quem, de
fato, constrói o partido?

Falamos constantemente de construção de plano estratégico para a Tomada do


Poder. Sem Feminismo Popular? Sem Teoria Revolucionária? Como? Estes se
constroem na prática diária, permanente. O Reformismo nega a teoria
revolucionária, nega o método e no lugar coloca a aposta, o teste, o golpe de sorte.
Vale lembrar que nenhuma Revolução triunfou por golpe de sorte, mas por
planejamento consciente, coletivo, preparação de coluna de militantes e de quadros.
E se hoje estamos em situação de derrota estratégica se dá em grande medida por
nossa condescendência ao reformismo, ao oportunismo e às práticas artesanais que
nos expõem e nos colocam em risco.

Não diferente nos territórios em que as experiências revolucionárias fracassaram se


deu essencialmente devido ao reformismo, à prática oportunista, parasitária de
negar a revolução como possível e legitima apenas se permanente, construída e

106
liderada pela Classe Trabalhadora. Vejamos a experiência de governos
progressistas que implantaram o neodesenvolvimentismo no início dos anos 2000 na
América Latina (Paraguai, Argentina, Brasil, Chile), ou de partidos como o PT57 que,
ao optarem pela governança, perdeu o horizonte revolucionário e assumiu o
reformismo58 como centralidade.

Não é difícil perceber o rebaixamento teórico, político, social e as consequências


nefastas do Reformismo em qualquer instrumento que se reivindique revolucionário.
Do mesmo modo, as experiências que se mantiveram vigilantes, coerentes e fiéis à
libertação do seu povo e à manutenção do Poder Popular rechaçaram
veementemente o Reformismo e combateram esse vício até as últimas
consequências. E esta deve ser, também, a tarefa da Consulta Popular. Nosso leito
histórico é a Revolução Socialista com horizonte comunista e ele nos ensina que os
vícios, mais do que os desvios, levam a derrota de qualquer projeto que busque
incluir as Forças Populares.

O Reformismo é um vício gravíssimo ao qual não pode haver ressalvas, brechas,


concessões porque se trata de uma categoria parasitária que representa os
interesses liberais (ou neoliberais), porém dentro das camadas mais fragilizadas
ideologicamente tanto na esquerda quanto nas tendências democráticas. E por essa
razão, precisa ser combatido em todas as instâncias e estrutura organizativa da
Consulta Popular e somente a reconexão entre teoria revolucionária e prática
revolucionária poderão restituir nossa capacidade de nos afirmarmos como um
Partido legitimamente revolucionário.

Obviamente que a paralisia do proletariado é um elemento de maior tensão e


dificuldade para nós, mas não sejamos ingênuos em negar a profunda relação com
os desvios e vícios da esquerda brasileira e que, juntando ao processo de
reorganização do modo de produção e das forças produtivas dentro da revolução 4.0
referente à crise atual, se desdobrará em desafio sem precedente para nossa
demarcação ou não do papel da esquerda revolucionária (ou reformista?) na qual
queremos nos consolidar.
Nesse sentido, mais uma vez se abre uma nova “janela histórica”: crise sanitária
mundial. Tudo será alterado e precisaremos entender o significado daquilo que

57
“Enquanto isso, o pensamento que diz não haver alternativa senão a saída capitalista, em que o
mercado, e não o Estado, é que corrigirá as inclemências e as disfunções do capitalismo, penetrou
profundamente na geração militante que controla a direção política do PT e da CUT” (Consulta
Popular, Cartilha 16. In.: CONSULTA POPULAR, Cartilha 25 – Resoluções da 5ª Assembleia
Nacional, p. 13, 2017).
58
“A História nos mostra que o reformismo só avançou em determinadas condições, isto é, quando
existe crescimento da economia capitalista, quando existem possibilidades de ampliar o mercado
interno, quando existe uma situação internacional favorável. A inexistência de tais fatores determinou
que as ideias “social democratas”, ao chegarem aos governos locais ou nacional, se limitassem a
reproduzir o modelo neoliberal, impotentes para esboçar qualquer alternativa com mínima
credibilidade” (Consulta Popular, Cartilha 16. In: CONSULTA POPULAR, Cartilha 25 – Resoluções da
5ª Assembleia Nacional, p. 14, 2017).

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afirmamos enquanto reorganização de nossas forças enquanto esquerda mundial,
latino-americana e nacional e isso passará, também, por nós, Consulta Popular. A
história nos cobrará posição e testará nossa capacidade de organização da Classe
Trabalhadora.

CONSIDERAÇÕES

A meu partido
Me deste a fraternidade para o que não conheço.
Me acrescentaste a força de todos os que vivem.
Me tornaste a dar a pátria como em um nascimento.
Me deste a liberdade que não tem o solitário.
Me ensinaste a acender a bondade, como o fogo.
Me deste a retidão que necessita a árvore.
Me ensinaste a ver a unidade e a diferença dos homens.
Me mostraste como a dor de um ser morreu na vitória de todos.
Me ensinaste a dormir nas camas duras dos meus irmãos.
Me fizeste construir sobre a realidade como sobre uma rocha.
Me fizeste adversário do malvado e muro do frenético.
Me fizeste ver a claridade do mundo e a possibilidade da alegria.
Me fizeste indestrutível porque contigo não termino em mim mesmo
(Canto Geral - Pablo Neruda).

Os problemas apontados no texto é fruto de debates fraternos com vários


companheiros e companheiras que no dia a dia da militância se vêem diante de
contradições políticas já mencionadas. Temos ciência que, embora façamos o
esforço para contribuir no encontro da problemática, não poderemos resolvê-la por
conta própria. Para a estatura da problemática é necessário a estatura de um
Partido. Por isso reafirmamos a prioridade sobre o debate estratégico,
consequentemente, afirmamos a importância sobre o debate teórico.

Se acreditamos que uma hora ou outra o povo se levantará por que a direita não
consegue dar respostas concretas ao povo e toda a ação exige uma reação cabendo
ao nosso partido se colocar a “disposição” do espontaneísmo das massas, se
confundimos identidade com unidade, se temos dificuldade de compreender em que
ponto estamos na luta de classes, se não entendemos o papel do Estado no atual
desenvolvimento do capitalismo, se não conseguimos construir uma palavra de
ordem que aglutine forças, então abre-se o principal debate: o Teórico.

A nossa deficiência teórica faz com que involuntariamente reafirmemos a estratégia


derrotada. A luta por dentro do Estado se converte em único caminho, os problemas
econômicos e políticos só parecem ter soluções por esse percurso. Quando isso
acontece no movimento real da luta política (reuniões dos movimentos, articulações,
eleições, frentes, etc.) estamos fortalecendo o reformismo no Brasil, prejudicando a
reorganização da classe trabalhadora e a conformação duma vanguarda
revolucionária. Isso quer dizer que o reformismo dentro do nosso partido poderá
destruir todas as possibilidades de luta revolucionária que tencionemos construir.

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Cortará pela raiz as iniciativas políticas em longo prazo seja nos sindicatos ou nas
organizações populares que participamos.

Vejam, não é uma questão simples. E por que não é simples? Nosso partido está
carente de um instrumental teórico que nos possibilite ver/compreender as sínteses
causais, o movimento, das forças políticas que se enfrentam em graus diferentes de
abstração. Tudo encontra-se em primeiro plano, à primeira vista, como fenômenos
difíceis de encontrar elos explicativos. As lutas econômicas aparecem como única
forma de compreender/ver a concretude da luta. Essa carência se cristaliza no
movimento dialético duma luta de classes que se agudiza e quando olhamos para
nós, nos vemos com um arsenal teórico do ciclo anterior. O que isso quer dizer? É
como tentar ver uma célula com um binóculo. A nossa defesa estratégica só faz
sentido com uma teoria revolucionária. Ora, tal exigência só terá resposta no partido.
Partido enquanto aquele, autorizado pela dinâmica da luta de classes, que liga a
teoria à prática política.

Encerramos esse texto abrindo-o para o próximo. Desejosos do debate político,


aberto, qualificado, nos comprometemos a somar esforços, com os companheiros e
companheiras do nosso partido, na elaboração duma teoria que tenha como lastro a
tomada do Poder do Estado, a transição socialista e a ditadura do proletariado. Para
tal fim, mister se faz, aprofundarmos nosso debate sobre a formação. Qual a
formação necessária para este momento histórico? Como fazer para que ela seja
instrumental de luta? São passos importantes no quais queremos contribuir.
Muito estimamos o Cadernos de Debates, pedimos que ele seja o principal canal de
diálogo sobre as nossas questões internas. Que ele capilarize nossas questões em
cada núcleo e permita que cada militante possa ajudar nas resoluções dos nossos
problemas históricos. Sigamos firmes nessa jornada!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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conduzir a revolução.
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